caniello_patronagem e rivalidade_artigo rbcs

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Caniello_patronagem e Rivalidade_artigo Rbcs

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  • PATRONAGEM E RIVALIDADE:Observaes iniciais sobre processosde modulao tica numa cidade dointerior

    Mrcio Caniello

    Quando se fala em patronagem (1), uma configurao dupla se nos apresenta: primeiramente, uma variabilidadeetnogrfica notvel que preenche um espectro compreendendo desde o sudeste asitico (Scott,1977; Land,1977b) atas "sociedades mediterrneas" (Boissevain,1966; Graziano, 1977; Pitt-Rivers, 1971; Silverman, 1977; Kenny, 1977),passando pela Amrica Latina (Foster, 1963, 1967; Wolf, 1956) e alguns enclaves no dito "mundo desenvolvido"(Scott, 1969). Segundo, uma concomitncia de fenmenos em certa medida correlatos, como o clientelismo, aspolticas- de favores, o caciquismo poltico e a corrupo em algumas dessas sociedades, principalmente aquelas de"tradio mediterrnea" (2).

    Conseqentemente, pode-se dispor de pelo menos duas alternativas no exerccio de anlise desse conjunto defatos. Por um lado, tomar a "configurao da patronagem" como objeto, considerando sua unidade, pelo menosaparente, em padres estandardizados como reciprocidade desequilibrada, troca de bens necessrios por lealdade, deproteo por servios, padro pessoal, relaes embebidas em afetividade etc., procurando estabelecer um modelogeral que desse conta de suas verses especficas, assim produzindo uma sociologia da patronagem. Ou ento, tentardivisar um padro tico (3) que informaria, num contexto cultural especfico, a ocorrncia da patronagem e dessesfenmenos correlatos como partes expressivas da totalidade social da qual so produtos, realizando o que maisespecificamente se poderia chamar de uma etnografia.

    Se bvio que esses dois procedimentos no so excludentes entre si alis so necessariamentecomplementares para uma sntese mais sofisticada , a marcao de sua diferena fundamental para o esclarecimentodo que comum e do que peculiar a cada sociedade na objetivao concreta do que conceituamos como"patronagem". Ora, e este um ensinamento bsico da antropologia, nem tudo que reluz ouro; ou melhor, se todasemelhana significativa, toda peculiaridade um desafio. Quero dizer que, talvez, possa ocorrer com a patronagemo mesmo que aconteceu com o totemismo; se no estivermos atentos s armadilhas que construmos para ns mesmoscom nossas snteses conceituais, talvez corramos o risco de comprometer o projeto mais tico de nossa disciplina, oresgate da diversidade.

    Nesse sentido, fao uma opo na conduo da anlise que me proponho a desenvolver neste artigo: considerara patronagem como um elemento corroborador de um cdigo tico que hipoteticamente caracterizaria as "sociedadesde tradio mediterrnea", o padro pessoalizante de relaes sociais (Da Matta, 1987). Ou seja, meu objeto no apatronagem, mas a base tica que permite que ela seja, dentre outras, uma linguagem de comportamento social numacultura especfica.

    Tentarei discutir neste artigo como o padro tradicional de relaes sociais, numa pequena cidade, reage diantedas transformaes que parecem acompanhar a "modernizao econmica" resultante da expanso capitalista. Pois, se

  • a exigncia tica do capitalismo basicamente um individualismo de ,tradio puritana (Weber, 1987), a insero deuma comunidade nos trmites "impessoais" que o caracterizam dever produzir modulaes, no mnimo, originais.

    Dentro deste esprito, tomarei como referencial de anlise um fenmeno bastante presente na memria doshabitantes da cidade de So Joo Nepomuceno (MG): uma rivalidade ritual acionada, principalmente, pela afiliaodas pessoas a dois clubes carnavalescos, que seriam os classificadores institucionais mais importantes dos indivduos.Esse clubismo tem sua existncia em concomitncia a um perodo em que a poltica local poderia ser definida comoum caso clssico de patronagem, tal como foi aqui delineado.

    Sendo o carnaval um elemento fundamental no imaginrio social sanjoanense, um dos critrios definidores daprpria identidade da cidade, e o veiculados por excelncia da rivalidade tradicional, tomei como estratgia anlisede sua transformao num perodo de mudanas scio-poltico-econmicas, para tentar verificar em que medida sepoderia relacion-la com aquelas modulaes ticas que se supe devam ocorrer. Pois quer me parecer, alis comosugere Turner (1974), que a anlise dos rituais um instrumento privilegiado na deteco das estruturas sociais,ainda'mais quando eles fornecem o prprio mapa de navegabilidade social; tenho a impresso de que isso pode terocorrido em So Joo Nepomuceno em relao ao carnaval.

    Esse procedimento que permite visualizar a lgica que informa a patronagem ou seu cdigo performador, opadro tico atravs da anlise do carnaval e de suas transformaes, sustenta-se heuristicamente a partir de umaespcie de consenso metodolgico por parte dos antroplogos sociais. Desde que Malinowski props a metodologia dotrabalho de campo (1978 [ 1922]) e Marcel Mauss elaborou o conceito de "ato social total" (1974 [ 1923]), as anlisesantropolgicas tomaram a forma de um empreendimento totalizador e microscpico; o objeto da antropologia socialpassou a ser concebido como a unidade social organicamente constituda pela relao de todos os seus aspectos, cujalgica poderia ser inferida atravs da anlise de suas instituies rituais mais importantes. Alis, segundo Roberto daMatta (1983b), exatamente essa a caracterstica mais marcante do fazer antropolgico, a raiz da peculiaridade daexplicao antropolgica.

    Ora, o suposto bsico deste artigo a considerao do carnaval sanjoanense como o ritual mais importante dacidade de So Joo Nepomuceno, a prpria vitrine das categorias de representao de sua vida social e que, portanto,tal como o potlatch analisado por Marcel Mauss e o kula por Malinowski, tem condies de explicitar de maneiraexemplar e sobretudo dramtica esses cdigos totalizadores que informam a prtica social, o que chamei de padrotico. Pois, como bem aponta Roberto da Matta, o carnaval um ritual nacional e seu mbito .o mundo da metfora(Da Matta, 1983; p. 35, passim); ou seja, se "podemos conceituar o mundo do ritual como totalmente relativo ao queocorre no cotidiano" (Da Matta, 1983; p. 30), ele pode ser considerado como um marcador essencial da vida coletiva,sendo antes de tudo um palco de ao social, espao especialmente eficaz de atualizao e difuso das regras desociabilidade numa formao social; afinal, ele um indivduo seguro desse padro: sua vantagem para o analista suavisibilidade, um jogo de aes estandardizadas profundamente marcado por disposies simblicas.

    Nesse sentido, a aproximao analtica entre a patronagem e o carnaval atravs do paralelo entre a histriapoltica e o clubismo, na cidade de So Joo Nepomuceno, tem como objetivo hipotetizar acerca da lgica quepossibilita a concomitncia desses dois fenmenos, em certa medida correlatos ambos tm um componentemarcadamente pessoalizante na histria da insero mais concreta desta pequena cidade no capitalismo brasileiro. Autilizao do clubismo e do carnaval, como centro da anlise, uma estratgia metodolgica para colocar a discussosob outro ponto de vista que no aquele dos tradicionais estudos de poder local e seu privilegiamento analtico dasestruturas polticas. Sem reivindicar uma oposio analtica, contudo, este artigo tem a pretenso de indicar, nessesentido, uma alternativa de anlise da patronagem que a tome mais como um elemento de uma certa ordenao ticadas relaes sociais gerais e menos como um "fenmeno" essencialmente poltico.

    Escolhi o perodo que vai de 1955 a 1970 para este exerccio de anlise, primeiramente, em funo do prpriorelato dos informantes, que colocam no incio da dcada de 60 o declnio da rivalidade clubstica. Alm do mais, nesse mesmo perodo que o Brasil entra definitivamente para o "mundo capitalista industrial" em funo da polticadesenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek. Coincidncia ou no, a velha poltica baseada no caciquismosofre transformaes tambm nesse perodo.

  • Basicamente, a fonte dos dados so entrevistas e um levantamento nos arquivos do jornal semanal da cidadeque circula ininterruptamente desde o ano de 1907; no mais, algum material impresso sobre o municpio e algumasinformaes adicionais obtidas em conversas informais (4).

    Enfim, minhas expectativas em relao amplitude analtica deste artigo, dirigem-se ao objetivo de, atravs deuma etnografia, cruzar a bibliografia sobre a patronagem com a reflexo acerca das modulaes pelas quais podepassar uma determinada matriz tica de relaes sociais no decorrer da histria de uma comunidade. Parece-me que ascorrespondncias so, nesse caso, no apenas circunstanciais mas; sobretudo, significativas.

    Uma histria de patronagem

    O municpio de So Joo Nepomuceno situa-se na Zona da Mata do Estado de Minas Gerais, tendo umaextenso de 408km2. Est sob a rea de influncia de Juiz de Fora, municpio contguo, e dista 206km da capital doestado.

    A anlise dos indicadores demogrficos, no perodo que compreende de 1950 a 1980, nos d boas indicaesda evoluo do quadro populacional da cidade. Primeiramente, a taxa de crescimento demogrfico negativa: de22.707 habitantes em 1950, passa a cidade a comportar 18.987 em 1960, 18.156 em 1970, at chegar aos 17.611 em1980; desconsiderando o declnio atpico entre 1950 e 1960, resultante da emancipao de um distrito do municpio, ataxa uma constante de 0,3% negativos anuais.

    Em segundo lugar, a distribuio dessa populao tambm sofre modificaes no perodo: de umapredominncia de populao no espao rural em 1950 (61,27% do total), passa-se ao inverso em 1970 o relatrio docenso de 1960 no especifica a distribuio por local de moradia dos habitantes dos municpios , 27,98% contra72,02% de populao urbana, at chegar aos magros 19,34% do total em 1980. Em terceiro lugar, levando-se emconsiderao a situao ocupacional dos habitantes, h tambm uma variao em relao aos ramos econmicosprincipais: uma elevao constante da taxa de ocupao industrial (9,56% em 1950, 14,77% em 1960, 19,29% em 1970e 27,16% em 1980) e uma certa inconstncia-mas de variabilidade relativamente pequena, uma taxa de 10% negativospara um perodo de 30 anos em relao s atividades agropecurias (30,1 % em 1950, 54,9% em 1960, 38,16% em1970 e 21,58% em 1980).

    A histria da cidade tem incio no limiar do sculo XIX, seguindo o declnio do perodo aurfero em MinasGerais e, como de resto, em toda a Zona da Mata, abrindo novas possibilidades econmicas para o estado; a partir dadistribuio de sesmarias no ltimo quartel do sculo XVIII, instalaram-se na regio os primeiros fazendeiros que, umpouco mais tarde, seriam os responsveis pela cultura do caf em Minas Gerais (Castro, 1987).

    Seguindo a prtica de ento, o surgimento do primeiro povoamento quedaria origem cidade de So JooNepomuceno foi resultado da edificao de uma capela sob o orago do santo toponmico em terreno doado CriaDiocesana por Jos Antnio Furtado de Mendona, em 27 de novembro de 1811 (idem, ibidem; Medina, 1980). Depoisde um perodo de decises polticas e administrativas, que deslocaram por vrias vezes a sede do municpio,finalmente, em 1880, So Joo Nepomuceno torna-se definitivamente autnomo; em 25 de outubro de 1881, a vila elevada categoria de cidade e, em 25 de setembro de 1882, instalada a primeira Cmara Municipal (Medina, 1980,p. 6).

    Data da segunda legistratura da Cmara Municipal, o primeiro indcio concreto da dominncia poltica domunicpio pela famlia Mendona: em 1887 eleito presidente da Casa que ento acumulava a chefia do Legislativoe Executivo municipais o coronel Jos Braz de Mendona, que depois, em 1905, consolida seu papel de "chefe dapoltica dominante do municpio" (5), elegendo-se novamente Agente Executivo.

    Sobre esse personagem, escreve Roberto Capri em 1916:

    "O cel. Jos Braz de Mendona . o chefe do glorioso Partido Republicano Mineiro. E esta brilhante posiosocial conquistou pelo seu trabalho benfico e perseverante na poltica local. Como Presidente da CmaraMunicipal, por diversas vezes reeleito, tem prestado com elevado critrio e patriotismo os mais relevantesservios a S. Joo. A elle deve-se a reconstruco da Igreja Matriz e a realisao do Grupo Escolar, a que,

  • como merecida homenagem, foi dado seu nome.Desde 1908 exerce o cargo de Colletor Federal ... A gratidopopular como prova de admirao ao seu prestimoso chefe poltico, ligou a uma das mais bellas praas dacidade o nome honrado de Jos Braz"' (Capri, 1916, pp. 18-19).

    Quem d continuidade sua liderana poltica seu filho, Pricles Vieira de Mendona, que exerce as funesde Agente Executivo e presidente da Cmara de 1916 a 1927, acumulando esses cargos com seu mandato de deputadodo Congresso Mineiro; transfere-se em 1922 para o Senado mineiro, completando o mandato do Dr. Levindo FerreiraLopes, sendo reeleito para um novo perodo que terminaria em 1934. nomeado Interventor Municipal aps aRevoluo de 30, exercendo o cargo at 1933. De acordo com os depoimentos a que tive acesso, voz unnime que o"Doutor Pricles" teve sob suas mos o mando da poltica local durante quase cinqenta anos.

    Poder-se-ia dizer, tomando-se como base a discusso em torno do tema nas cincias sociais, que se estariadiante de um caso tpico de liderana fundada num cdigo de patronagem:

    Fazendo-se uma suma desta discusso, parece-me que h cinco condies necessrias e principais para adefinio da ocorrncia de relaes de patronagem em uma unidade social.

    Primeiramente, um posicionamento desta unidade numa relao definida por dois termos comunidade/nao onde a tenso entre centro e periferia condiciona a formao de prticas alternativas de acesso aos bens correntes naeconomia e s obrigaes formais e direitos legais dos cidados nos sistemas burocrticos do governo central(Silverman, 1977b; Wolf, 1956 e 1966).

    Quando for discutida a categoria cidade pequena ou cidade do interior (6), ficar demonstrado que, mesmo nasprprias elaboraes dos informantes, essa relao vivida e pensada como tal. Alm do mais, pode-se caracterizar o"Dr. Pricles" como um mediador (7) dessa relao, considerando sua insero nos espaos da comunidade e dasinstituies polticas nacionais enquanto uma autoridade, o que conformaria, grosso modo, sua condio de "patro".

    Um segundo aspecto importante a existncia de estruturas sociais desequilibradas, o que vai caracterizar osistema de patronagem como uma relao entre desiguais (8).

    No h dvida de que, no perodo de dominncia poltica do Dr. Pricles, o quadro que se configurava era deextrema desigualdade econmica e de acesso ao poder: numa economia agrria onde a concentrao de terras era atnica, havia como de resto ainda h at hoje uma clara diviso entre o povo da roa e as elites dominantes.

    Um terceiro aspecto a ser ressaltado o tipo de lgica que essas relaes seguem em funo exatamente de sefundarem em unidades sociais que tm as caractersticas anteriormente listadas: por estarem inseridas em umacomunidade onde a estrutura social desigual, as relaes de patronagem esto embebidas num padro dereciprocidade desequilibrada (9). Ou seja, normalmente a "troca" envolvida em uma relao de patronagem basicamente entre os mais diversos bens, vindos do "patro", e prestgio e lealdade conferidos pela clientela;principalmente pela dificuldade do "clculo de equivalncias" (Land, 1977, p. 25), na medida em que os bens eservios tm uma objetivao concreta mais evidente e que a ao do "patro" torna-se mais necessria em momentosde crise, criando uma visibilidade muito maior dos seus atos, o "cliente" est em constante divida para com ele. Nocaso em anlise, essa troca objetivada principalmente na base de uma lealdade eleitoral:

    "...Ele [Dr. Pricles] trabalhando de graa, ele prestava servio, e prestando servio, principalmente no interior... aquela pessoa que faz o trabalho que ele fazia sempre recebe a contrapartida; no caso do poltico recebe acontrapartida do voto. Ento ele, por exemplo, era um lder poltico aos moldes da poca..., se ele indicava umcandidato, este candidato tinha uma boa possibilidade de vencer a eleio". (A., 55 anos, advogado).

    A quarta caracterstica refere-se prpria figura do "patro", aqui um "chefe poltico": necessrio um certograu de legitimidade que lhe permita exercer seu poder e desempenhar seus atributos; esta legitimidade conferidaatravs do reconhecimento de sua autoridade, normalmente atribuda a partir de uma articulao entre critrios destatus social, situao econmica e influncia e um comportamento "generoso" para com sua clientela (10):

    "Minha famlia que fundou a cidade Mendona, Henriques e Furtado ... Foram eles os fundadores, meusbisavs ...O meu pai estudou Direito em Ouro Preto, ele se formou junto com os contemporneos de Getlio

  • Vargas: o Getlio, o Benjamin e o Lutero ... Mas ento, meu pai estudou l e veio pra c advogado..."

    "E a poltica foi sempre feita da seguinte forma: com o poder econmico, uns fazendo favores econmicos aopessoal e outros, alguns com prestao de servios. Ento tinha, pelo que eu sei, de prestao de servios: opapai aqui em So Joo, em Guarani tinha um mdico..."

    ... Sempre no comando do Dr. Pricles, meu pai. Dr. Pricles que estava no comando, compreendeu?Todos esses homens (os prefeitos eleitos de So Joo at a sua morte) o Dr. Pricles que comandava, ele era ochefe poltico de So Joo" (P, 69 anos, filho do Dr. Pricles).

    "Ele [Dr. PriclesJ era uma pessoa de recursos, de famlia tradicional, vamos dizer, famlia rica para o nvelde So Joo...". "Dr. Pricles era um prestador de servios; por exemplo, ele era um advogado, ento dentroda profisso dele, ele trabalhou de graa para muita gente...". "Mesmo velhinho ele sempre foi um velhoespigado, lcido ele era sempre uma espcie de conselheiro; tanto que tinha o grupo do Dr. Pricles, queera o periclista, n? Os periclistas invariavelmente votavam com ele" (A., SS anos, advogado filho deoperrios).

    Finalmente, a quinta e mais importante caracterstica pelo menos para os propsitos deste artigo refere-se base pessoal da patronagem que informa relaes de um tipo direto, face-a-face, de longa durao, cuja permanncia epossibilidade so garantidas pela confiana; o paradigma estrutural dessa base pessoal so as relaes de amizade (11).

    Poder-se-ia estar diante de um padro tico pessoalizante que forneceria a gramtica das relaes sociais e quepossibilitaria, frente s ms condies apostas em conjunto, a ocorrncia da patronagem como uma linguagem decomportamento social (12). Melhor dizendo, se a patronagem como fenmeno sociolgico tem uma variabilidadeextensa de ocorrncias, a partir da sua relao com padres culturais estandardizados que se podem especificar suaspeculiaridades, principalmente sua natureza tica.

    Os depoimentos colhidos corroboram, em larga medida, essa matriz tica, no s em relao ao perodo do Dr.Pricles, como tambm s fases mais recentes da histria de So Joo Nepomuceno (13):

    "...O Dr. Pricles um homem que se tornou poltico, um homem inteligente, advogado com bastante visodas coisas e que soube na poca dele manter um relacionamento como eleitor de uma maneira assim cordial,ntima; ento o eleitor confiava nele, sob qualquer aspecto, o eleitor era amigo dele" (JM., 60 anos, ex-candidato a prefeito).

    "...O candidato na cidade grande no tem o contato pessoal corri o eleitor. um negcio mais ou menosimpessoal. Ao passo que no interior o negcio completamente diferente. No interior o contato pessoal. oparente, o amigo..:" (JM., 60 anos).

    "S para ilustrar esse negcio: eu tava l na prefeitura, terminando uma festa no final de ano, pagando eles odcimo terceiro salrio ... e um daqueles l, um rapaz de cor, falou: Seu Antnio, eu queria que o senhoralmoasse comigo no dia de Natal'. Eu falei: vou si. Eu acho que o senhor no vai, seu Antnio'. Podedeixar que eu vou, eu no t falando com voc que eu vou?' A chegou o dia de Natal, antes de eu viralmoar em casa, eu passei l; eu fui l .... Quando cheguei l, ele quase caiu de costas, achou que eu nofosse. E numa casa simples aqui no bairro popular, eu almocei com ele, tomei uma cerveja, brincamos l,rimos muito..." (AC., ex-prefeito).

    Ainda que possa haver, at os dias de hoje, na cidade de So Joo Nepomuceno um padro de relaespolticas do tipo clientelista (14), os informantes referenciam-se ao fim do perodo do Dr. Pricles como sendo oprprio fim da "era dos coronis". Articulando em seus discursos um perodo de modernizao econmica e ampliaodo contato com a sociedade inclusiva com a prpria derrocada desta forma de personalismo poltico, datam essatransformao do perodo entre as dcadas de 5O e 60:

    "Antes da revoluo (1964) ainda tinha o chefe poltico; a mquina. Agora campanha popular..." (P, 69anos, filho do Dr. Pricles).

    "Ele (Dr. Pricles) foi chefe poltico aqui durante uns setenta anos; de 1890 at 1950,1960, por a assim... Eleera do PR Mineiro, do Arthur Bernardes, era bernardista ...""O PR estava ofuscando ele ofuscou junto, n? Acompanhou geral... Voc v que a cidade do interior sofre o

  • reflexo da cidade grande... D que acontece no Brasil, a cidade pequena passa automaticamente viver aquilo;nem parece que est vivendo aquilo, mas automaticamente ela vive aquilo, problema econmico, problemapoltico..." (JM., 60 anos).

    Finalmente, depois desse perodo, o que se percebe na histria poltica de So Joo Nepomuceno apermanncia no poder dos herdeiros polticos do Dr. Pricles; primeiramente, atravs da coligao PR/PSD, at areforma partidria de 1968, e, depois, sob as legendas da ARENA, PDS e PFL. Apenas no ltimo pleito (1988), umcandidato do PMDB foi eleito:

    "O papai apoiou uma poro de prefeitos. Papai apoiou o Carlos Henriques Stiebler (1951/54), o Sr. Dario .[1955/58] e o Nagib [ 1959/62]; e os vice-prefeitos eram sempre do papai, do PR" (P , 69 anos, filho do Dr.Pricles).

    "Ele [Dr. Pricles] dominou isso at 1950. A ele indicou o Dr. Nagib como vereador, a o Dr. Nagib foiprefeito e passou a mandar na poltica ... A Dr. Nagib mais tarde foi e coligou com a UDN, a ficouUDN/PR ... Pera, que eu errei aqui a sigla, eu falei errado pra voc; a sigla no UDN, no, PSD,entendeu? A eles dominaram isso a at 1970..." (SH., 55 anos)

    "Herclio Ferreira [prefeito, 1971/72], foi na poca que eu fui vereador ... A nossa Cmara naquela poca eramonze vereadores, nossa frico poltica tinha sete vereadores, eles tinham quatro ... Ns tivemos o comando ado municpio perto de vinte anos, na nossa ala poltica .:. Nesse perodo de vinte anos a nossa faco polticaque chefiou o municpio de So Joo. A gente elegia o prefeito, elegia o vice-prefeito, elegia a maioria naCmara" (AC., ex-prefeito no perodo 1977/82).

    "Bolote [Herclio Ferreira] tinha o compromisso com o Z Salu (Jos Zeferino Barbosa, prefeito, 1973/76) quena outra eleio trabalharia para ele ser prefeito; ento na outra eleio o Z Salu foi prefeito e o AntnioCavalheiro, vice. A chegou nas eleies, o Cavalheiro prefeito ... Ento o Cavalheiro entrou pra prefeito e oVagner, vice [1977/82], da a seis anos, Vagner prefeito (1982/88]. E dessa vez era pro Cavalheiro voltar, naeleio passada" (CE, atual prefeito).

    Enfim, importante salientar que se pode estar, talvez, diante de um indcio mais ou menos seguro de que,como prope Gellner (1977), em muitos contextos a patronagem pode sofrer transformaes a partir de novassituaes institucionais, mas, a sua base tica permanece como um elemento crucial no padro determinante dasrelaes sociais. Melhor ainda, essas "transformaes" podem indicar a possibilidade de sistemas sociais elaboraremticas dplices, articulando as mudanas econmicas e institucionais no bojo de sua tradio cultural.

    exatamente esta hiptese que tentarei colocar em prova na anlise da histria das transformaes do carnavalda cidade de So Joo Nepomuceno: o dilema tico de uma sociedade de tradio pessoalizante em sua insero nomundo impessoal que o capitalismo parece supor.

    Uma histria de carnavais

    O carnaval para os habitantes de So Joo Nepomuceno uma espcie de carto de visitas: a todo momento deminha estada na cidade, em quase todas as conversas formais ou informais um convite a passar os dias do "melhorcarnaval do interior" normalmente feito; pessoas de todas as geraes esmeram-se em descrever a costumeiraanimao dos "festejos de Momo", opondo-se pasmaceira que as "cidades pequenas" vivem durante o seu cotidiano.

    Alis, essa pice de resistance do imaginrio sanjoanense parece constituir o signo mais evidente da elaboraode sua identidade: em contraste com as demais "cidades do interior", ela se caracterizaria por uma espcie decosmopolitismo festivo evidenciado pela afluncia de pessoas nos seus dias feriados fins de semana, frias, carnaval.

    A bem da verdade, pode-se perceber com clareza um ritmo alternado na cidade: permaneci l por trs perodosde uma semana cada nas frias de julho, no incio do ms de dezembro de 1989 e no carnaval de 1990. Seja nasemana inteira durante as frias ou nos fins de semana em poca normal, o nmero de pessoas que acorre para a cidade grande; as ruas enchem, os bares ficam animados, as duas boates repletas e os clubes tomados. Durante o carnaval, apopulao chega quase a duplicar; os preos disparam, casas so alugadas "para a temporada" e uma verdadeiramultido preenche os espaos na folia. Normalmente so pessoas da prpria cidade que vo morar em centros maiorespara estudar ou trabalhar e passam esses perodos com a famlia; h, tambm, pessoas das cidades vizinhas e aqueles

  • "cidados honorrios" cooptados pela animao da cidade nesses perodos. Alguns depoimentos so esclarecedores,nesse sentido:

    "Se voc for estudar a tradio carnavalesca, a histria do carnaval em toda a nossa microrregio, quecomporta aqui de quarenta a cinqenta municpios, toda ao nvel nosso aqui,. talvez um pouquinho maior...por exemplo, Cataguases trs vezes maior que So Joo, mas o carnaval de So Joo d de dez a zero;sempre foi a tradio..." (A., 55 anos).

    "... o carnaval tem um permanente que vem de fora, n? ... No carnaval, 80% da freqncia dentro do salo gente de fora" (CE, atual prefeito, ex-diretor do Clube Trombeteiros).

    Ainda que no tenha peguntado diretamente, parece que o carnaval tem, para os habitantes de So JooNepomuceno, aquela caracterstica de contemporaneidade com o surgimento da cidade que s6 os mitos de origem socapazes de conferir aos acontecimentos histricos (Lvi-Strauss, 1981, pp. 55-64). De qualquer maneira, as fonteshistricas a que tive acesso do de certa forma um indcio de sua profundidade temporal.

    A referncia mais antiga em relao ao carnaval da cidade que consegui obter uma pequena nota nohebdomadrio Voz do Povo (15), de 24 de novembro de 1907, convocando os associados do Club Filhos do Infernopara a eleio do vice-presidente da entidade. A edio do dia 8/3/1908 tem sua primeira pgina tomada pela coberturado carnaval alis uma prtica editorial at o inicio dos anos 60 onde se l um cumprimento pelo sucesso dosfestejos dirigido ao Filhos do Inferno, que contava ento com seis meses de existncia (16). Segundo as matriasdaquele semanrio, o carnaval era basicamente de rua, contando em seus "prstitos" com os carros alegricos e oscarros de crtica; estes ltimos consistiam em pequenas peas jocosas ambulantes que circulavam pelos pontoscentrais da cidade "criticando" os problemas vividos no municpio como, na poca, a ineficincia da LeopoldinaRailway, a precariedade das redes de esgoto etc. (17).

    Mas no ano de 1913 que ocorre um fato de fundamental importncia para o carnaval de So JooNepomuceno: a fundao quase simultnea, dos dois clubes carnavalescos, o Democrticos e o Trombeteiros,inaugurando uma rivalidade que faria histria na cidade.

    J na edio de carnaval do semanrio local de primeiro de maro de 1914, l-se, por exemplo, que os "carrosde critica" j no se dirigiam aos problemas do municpio, mas cada clube "criticava" um ao outro atravs deles. Acostumeira primeira pgina de cobertura do carnaval dividia-se em duas matrias, uma falando do carnaval doTrombeteiros e a outra do carnaval do Democrticos, o que tambm se tornaria uma prtica editorial at os primeirosanos da dcada de 60.

    Das edies anteriores ao carnaval de 1915, uma outra matria em destaque na primeira pgina do dia 14/2,anunciava a formao de uma comisso composta de associados dos dois clubes, "para evitar ofensas"; uma dasprimeiras medidas tomadas pela comisso foi determinar dois percursos diferentes para as "passeatas" dos dois clubes.Parece que, desde ento, estava consolidada o que chamamos em outra ocasio de "rivalidade ritualizada em metades"(Caniello e Soarez, 1989; p. 20), esse componente crucial do imaginrio social sanjoanense, assim definido pelocronista "John Bull": "So Joo nica. inimitvel. inigualvel. Uma das razes caractersticas do seudesenvolvimento a rivalidade. No a rivalidade pura e simples, mas a rivalidade orientada (quase diramoscontrolada)..." (VSJ,18/2/62).

    Essa rivalidade era produzida por dois tipos de atividades associativas, o que chamei de clubismo: os clubes defutebol e os clubes carnavalescos que existiam na cidade. Ainda que essas associaes possam variar em nmero nodecorrer da histria da cidade, a rivalidade constitui-se sempre numa polarizao dual entre, no carnaval,Democrticos e Trombeteiros e, no futebol, entre Mangueira e Operrio, num perodo que antecede fundao de umterceiro clube, o Botafogo, e, desde ento, entre este ltimo e o Mangueira (18).

    interessante notar que os clubes carnavalescos e esportivos, tradicionalmente rivais, tm em sua composiode associados pessoas classificadas pelos informantes como de classe mdia a alta (19), principalmente no caso dosclubes carnavalescos. Um indcio desse "alinhamento de classe" a maneira como as outras associaes soreferenciadas: os scios do Operrio so a "turma do batente", os freqentadores do Fenianos so "os mulatinhos

  • rosados". Numa cidade onde a visibilidade inevitvel (Caniello e Soarez, 1989, p. 22) uma caracterstica marcante,em funo do carter autocontido de sua vida social (Da Matta, 1977, p. 4), a rivalidade um jogo entre os visveis,cabendo aos negros, pobres, operrios etc. os invisveis estruturais um espao fora dessa contenda.

    Uma outra caracterstica marcante deste clubismo a ausncia de alinhamentos diretos entre a filiao sassociaes carnavalescas e esportivas. Isso coloca um problema que exige uma anlise mais detida: talvez no estejadiante de um faccionalismo em termos clssicos, onde o indivduo seja automaticamente vinculado a uma faco quecondicione seu trnsito em todas as esferas da vida social. Ao invs disso, tratar-se-ia de um faccionalismo em srieque, dentre outros defeitos, circunscreveria a rivalidade a espaos de sociabilidade especficos e a ocasies rituaisdemarcadas, inviabilizando a sua generalizao em termos de alinhamentos grupais inclusivos. Ou seja, as pessoasteriam classificadores sociais. diversificados; esses ainda que marcados por uma forte referncia de rivalidade dual,no pressuporiam uma identificao transclubstica do tipo trombeteiro = mangueirense, ou trombeteiro =botafoguense, ou democrtico = mangueirense, ou, finalmente, democrtico = botafoguense. Alguns depoimentos soclarssimos a esse respeito:

    "Um que rival... que no est junto l no Democrticos, aqui no Botafogo eles esto na roda, tomandocerveja, so tudo Botafogo; aqui so Botafogo, l so Democrticos" (ZZ, 70 anos).

    "O pessoal trocava, entendeu? por isso que eu tenho a impresso que o problema do desforro pessoalacabou. Porque, por exemplo, o cara que era trombeteiro, ento ele era trombeteiro, mas aqui tinham doistrombeteiros aqui [indicando os clubes de futebol] tinham trs trombeteiros discutindo, por exemplo; mas, nahora que voc fosse mexer com o futebol, um era Mangueira, outro era Botafogo, outro era Operrio... entoeu acho que fez com a que a coisa no partisse para a guerra pessoal; o sujeito no tinha como... como que euvou fazer para ofender um cara que era de um outro partido l, como que eu vou fazer para ofender esse caraque do PSD se ele meu amigo l no Trombeteiros?" (JM., 60 anos) (20).

    Quer me parecer que uma histria das transformaes deste tipo de rivalidade institucionalizada em clubes, cujoassociativismo tem uma base claramente pessoalizante ele um classificador dos indivduos , possa indicar umatrilha mais ou menos segura nos trnsitos ticos que supus possam ter ocorrido na cidade de So Joo Nepomuceno.Limitar-me-ei a enfocar, levando em considerao as ponderaes expressas na Introduo, a rivalidade dos clubescarnavalescos no decorrer do tempo atravs de uma espcie de etnografia histrica dos carnavais sanjoanenses,tomando como base a programao dos festejos carnavalescos.

    Essa programao comea na noite do dia 31 de dezembro com os bailes de reveillon nos clubes; desse dia ata data oficial do carnaval, aconteciam as domingueiras e sabatinas, que eram bailes promovidos em todos os fins desemana pelos clubes. Havia um acordo de alternncia em relao promoo desses bailes, j que o domingo era o diapreferido: numa semana o Democrticos fazia o baile nesse dia, cabendo o sbado ao Trombeteiros, e na semanaseguinte a programao se invertia.

    No decorrer desse perodo, principalmente antes dos bailes, nos domingos tarde, os clubes colocavam ascrticas na rua. Como j foi mencionado, as criticas consistiam de pequenos sketches jocosos montados sobre acarroceria de um caminho e alusivos, principalmente, s "gafes" ou "ratas" cometidas pelos clubes ou seus adeptosdurante o ano; divulgava-se publicamente com a necessria circunscrio nesta espcie de diplomacia carnavalescaque s a ridicularizao permite , tudo aquilo que reservadamente servia de alimento s redes cotidianas de mexerico:

    "...o Democrticos fazia uma festa durante o ano e a festa no foi coroada de xito por isso ou por aquilo, teveuma falha qualquer, teve uma briga na festa, a orquestra no veio, por exemplo, diz que vinha um cidadoqualquer e no veio ...enfim uma falha qualquer... ento o outro clube no carnaval juntava isso tudo paracriticar o outro ... Se aproveitava o carnaval para fazer essas desafeies; quer dizer, voc estava com raiva,foi pisado, ento nessa poca aproveitava para botar essa coisa toda para fora ... E a critica isso a, voc notinha meio de falar, no tinha como externar, ento ele trepava num caminho e mandava brasa ... E, porexemplo, hoje ningum mais fala disso, mas se o diretor do Democrticos, a mulher dele largou ele porexemplo, o cara mexia com ele ... Durante o ano no tinha sentido; mexia no carnaval, porque desloca opessoal". (JM., 60 anos, trombeteiro).

    O carnaval propriamente dito comeava na quinta-feira antecedente ao sbado oficial com uma batalha deconfetes, a chamada "Sesquipedal"; na rua mais importante da cidade uma verdadeira guerra era protagonizada pelos

  • adeptos dos clubes:

    "... teve um ano que ns fomos disputar, porque eles falaram que queriam ver qual era que ia vencer a batalhade confete ... De repente, surge a turma do Trombeteiros da rua ali e os Democrticos de l. A eu no sei oque eles quiseram fazer, eles queriam derrubar o nosso estandarte; a a que estava com o estandarte doTrombeteiros enfrentou. Enfrentou e derrubou o estandarte do Democrticos e saiu com ele pendurado noestandarte do Trombeteiros... foi uma loucura". (L., 63 anos, trombeteira).

    A partir do sbado, os clubes promoviam bailes noite, bailes infantis na tarde de domingo e encerravam ocarnaval com a "passeata" que, antecedendo o ltimo baile, era o ponto alto da disputa carnavalesca. Nela desfilavamcarros alegricos "ricamente ornamentados" com os adeptos dos clubes em fantasias especialmente confeccionadaspara a ocasio, soltavam-se "fogos-de-bengala" e terminava-se com um carro de critica, fechando o "prstito"exatamente no seu clmax. Durante o ltimo baile ocorria a "visita", num fechamento ritual do carnaval:

    "... no ltimo dia de carnaval, tinha as visitas para tranqilizar os nimos, para botar fim naquelas disputas.Um clube ia visitar o outro... pegavam o estandarte, alguns diretores e alguns adeptos, ia aquela caravana... achegava l, a gente pegava no estandarte deles junto com o do Trombeteiros ... Depois o outro ia retribuir avisita e era bem recebido l... Acabou o carnaval, pronto; eram todos amigos..." (ZZ., 70 anos, trombeteira).

    Na verdade, o carnaval ainda no havia terminado a; a discusso em torno de quem "ganhara" o carnavalestendia-se por semanas e era matria para o jornal durante vrias edies: escreviam-se cartas de protestos,argumentaes, editoriais. A "deciso" nunca era homologada:

    "Os trombeteiros diziam ns que vencemos e os democrticos diziam ns que vencemos e ficavanisso..." (M., 85 anos, democrticos).

    "Depois que vinha a discusso pessoal; quer dizer, o sujeito tomava umas brama e dizia que o carnaval doTrombeteiros era melhor, o sujeito do Democrticos dizia que era melhor". (JM., 60 anos, trombeteiro).

    "O N. C. Trombeteiros de Momo, ante a incontestvel vitria alcanada neste carnaval, vem de pblicoapresentar os melhores agradecimentos aos artistas que confeccionaram seu prstito..." (VSJ, 15/2/59, primeirapgina):

    "A diretoria do Clube Democrticos sente-se orgulhosa e satisfeita em vir a pblico e externar seuconhecimento mui sincero e cordial a todos quanto colaboraram para a conquista de mais uma esplendorosavitria no carnaval deste ano..." (idem).

    Um elemento importante dessa "disputa" pelo melhor carnaval era exatamente a ausncia de regras quedefinissem claramente o "vencedor"; no havia uma comisso julgadora, nem qualquer espcie de tentativa deconsenso: mais do que uma competio, o carnaval era uma espcie de enfrentamento entre rivais onde o que se queriaafirmar era exatamente a existncia dessa rivalidade.

    Essa configurao dizem os informantes comea a se modificar a partir do final da dcada de SO e incioda dcada de 60. A concomitncia de alguns fatores concorrentes pode prover algumas indicaes para uma possvelinterpretao dessa propalada "modificao".

    Talvez um bom indicador da "transformao" seja uma categoria bastante usada pelos informantes nos seusdepoimentos: a diversificao da vida social em So Joo Nepomuceno a partir desse perodo. Opondo-se ao cartertotal do clubismo como espao e meio de sociabilidade caracterstico de uma comunidade relativamente fechada, a"modernizao" da cidade teria trazido consigo um leque de alternativas a seus habitantes que teria esvaziado arivalidade:

    "... se voc correr os olhos na histria do Brasil, e especialmente nas pequenas comunidades, voc vai depararcom o seguinte quadro: at mais ou menos o governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira, que foi o grandemarco, o grande divisor da histria do desenvolvimento brasileiro... a partir daquele momento, o leque deopes como conseqncia do desenvolvimento trazido por sua poltica desenvolvimentista... ofereceu,proporcionou, deu opes juventude... A partir deste momento parece que houve um esvaziamento". (A., 55anos).

  • De alguma maneira, corroborando este depoimento, data desse mesmo perodo uma sensvel mudana no jornallocal. H um significativo aumento de matrias publicitrias oferecendo bens de consumo durveis comoeletrodomsticos, automveis etc.; o jornal promove, durante anos seguidos, uma campanha para a instalao de umaunidade repetidora de sinais de televiso e, principalmente, modifica-se o tom das matrias sobre o carnaval. Osarticulistas, ora defendem uma "retomada da tradio do carnaval de rua", ora reivindicam a formao de comissesjulgadoras para que a deciso sobre o vitorioso seja incontestvel um sinal, segundo essas matrias, de "civilidade".Obviamente, h quem discuta a eficcia ou mesmo possibilidade de tal julgamento atravs de divertidas matrias naVoz de So Joo, mas a verdade que por dois anos 1962 e 1963 o jornal promove uma "pesquisa de opinio", sobos auspcios do "Ibope-mirim" e estampa os percentuais, procurando legitimar assim um resultado palpvel.

    Por outro lado, uma novidade no carnaval de 1962 parece mudar os rumos da programao dos "Festejos deMomo": definitivamente as Escolas de Samba consolidam sua participao no carnaval e tem-se noticia do julgamentoe premiao da melhor escola em desfile por uma comisso julgadora nomeada pelo prefeito (21). A partir de ento eisso voz corrente nos depoimentos colhidos o carnaval dos clubes "foi para dentro do salo", ao que se reputa oarrefecimento da tradicional rivalidade que teria sido substituda exatamente por outra entre as escolas de samba (22).

    Sistematicamente, depois desse fato, o jornal vai dando menor destaque antiga rivalidade em suas edies decarnaval, at suprimi-lo completamente, de 1965 at 1970, o marco temporal final para os propsitos deste artigo.

    Sem querer proclamar absolutamente com isso que "a rivalidade acabou" alis os depoimentos no meautorizam a fazlo , o que se percebe ' que os clubes carnavalescos perderam, nesse perodo, aquela capacidade degalvanizar seus adeptos num jogo totalizador que colocava em baila uma rivalidade baseada em elementosinstitucionais de base associativista. Talvez esse fato seja, de alguma maneira, significativo para se avaliarem asmodulaes ticas no cdigo de comportamento social dos habitantes da cidade de So Joo Nepomuceno; isso queme proponho a discutir na prxima seo deste artigo.

    Uma interpretao possvel

    Ainda que no se possa afirmar com segurana quais so as relaes de causalidade entre as duas srieshistricas aqui desenvolvidas, evidente que h uma concomitncia entre as transformaes no carnaval e na vidapoltica de So Joo Nepomuceno. Para no absolutizar nenhuma suposio, no estado atual de meu acesso sinformaes, eu diria que, a partir do final da dcada de 50 e incio de dcada de 60, h uma modificao sensvel nastradicionais estratgias de navegabilidade poltica e social, coincidindo tal fato com a insero mais concreta da cidadeno mbito do incipiente capitalismo nacional.

    Como disse na Introduo, tentarei interpretar tal modificao tomando como base o "declnio da rivalidadetradicional" entre os clubes carnavalescos tal como os informantes o qualificam e sua possvel relao, por umlado, com as novas condies de insero da comunidade na sociedade inclusiva, e, por outro, com as modulaesticas que porventura possam ser identificadas no mbito deste processo.

    Talvez, a melhor maneira de iniciar esta discusso seja a partir de uma categoria que parece encetar a prpriarepresentao que os habitantes de So Joo Nepomuceno formulam sobre sua cidade: uma "cidade pequena", uma"cidade do interior. Tal categoria acionada, como elemento contrastivo para se definir a peculiaridade dos padres denavegabilidade que definem a vida social da cidade:

    "Amizade no interior tipo de namorado, a gente briga, pisa na bola e depois fica tudo bem. Por exemplo, nosoutros lugares, voc acorda puto, sai e no cumprimenta ningum. Aqui voc tem que sair e cumprimentartodo mundo . ... s vezes acontece alguma coisa, mas com o tempo passando voc volta a conversar com ocara, cumprimentar e tal, porque todo dia voc v o cara". (F., 25 anos).

    "... Poltica, rapaz, no interior, um negcio difcil pra danar... a poltica no interior te absorve totalmente, total, voc no tem como ser cinqenta por cento poltica no; total, no tem jeito, o cara te conhece, elevotou em voc e a todo momento que voc encontrar com ele na rua, ele te cobra..." (JM., 60 anos, ex-candidato a prefeito).

    Quer dizer, diante de uma realidade geogrfica e socialmente limitada onde "todo mundo se conhece",

  • esquadrinha-se um elemento crucial para a vida social sanjoanense, a visibilidade inevitvel; subsumida por laossociais evidentes ao domnio pblico, a individualidade dissolve-se em uma rede de relacionamento compulsrio,ditado pela obrigatoriedade do contato cotidiano. Neste sentido, o cdigo das relaes sociais um principio dereciprocidade que, ao contrrio do que prope Foster (1967), no tem apenas uma base contratual didica: umprincpio envolvente, totalizador e obrigatrio.

    Um dos aspectos mais evidentes dessa espcie de vida tribal, tal como ressalta um dos informantes citados, a dificuldade de se viver situaes conflitivas. A inevitabilidade do contato pessoal supe um controle social profundodos indivduos pelos laos a que eles esto presos. Estaramos diante de uma espcie de tradio holista como padrodominante das relaes sociais. Entretanto, se o fechamento do sistema social dificulta, por um lado, a vivncia desituaes conflitivas, por outro, estimula sua possibilidade na medida em que, num universo to restritivo as vidas daspessoas, tangenciam-se inevitalvelmente. Tenho a impresso de que, em So Joo Nepomuceno, esse dilema contornado atravs de duas prticas: a fofoca e a rivalidade. Se o mexerico uma estratgia cotidiana, difusa einterindividual de controle social evitativo do confronto pessoal aberto, a rivalidade proporciona, ritualmente, a prticadesse confronto em situaes especiais, de uma maneira concentrada, generalizada e circunscrita por padres decomportamento invertidos (23).

    Isso feito atravs de uma espcie de dualismo institucional, o que chamei de clubismo e, em outra ocasio, dediviso ritual em metades (Caniello e Sorez, 1989, pp. 10-11).

    Como o reverso perfeito da reciprocidade caracterizadora das relaes sociais na vida cotidiana, a rivalidadeteria aquele carter apontado por Land de reciprocidade hostil (Land, 1977, p. XXXII); ou seja, os clubescarnavalescos enquanto faces em conflito afirmariam, por contraste, a coeso social da sociedade da qual emergem.Um indcio interessante em relao a esta afirmao so as manchetes do jornal semanal que, nas edies de carnaval,ao lado do destaque costumeiro rivalidade, afirmavam incontinenti que "antes de qualquer dos clubes, o grandevencedor do carnaval o povo sanjoanense".

    Assim, se, por um lado, a verdadeira guerra desencadeada pelos clubes no momento ritual mais importante davida social de So Joo Nepomuceno era uma inverso das expectativas comportamentais do cotidiano, o carnavalproporcionava com isso, por outro lado, a prpria possibilidade da vida social permanecer regida pelos padres decomportamento social tradicionais.

    O importante, dessa configurao, que os cdigos tanto rituais quanto cotidianos tinham uma matrizpessoalizante: mesmo no desencadeamento dos conflitos, a ao individual dissolvia-se na adeso a um clube; ao fime ao cabo, a uma instituio associativa.

    Um outro aspecto importante alis j ressaltado na quarta seo que a falta de um consenso em torno deum "vencedor" do carnaval dava, na verdade, um estatuto no-competitivo rivalidade: mais do que a vitria,buscava-se a afirmao auto-referenciada da vitria; sem um detentor hegemnico da superioridade, a batalha era umaafirmao da existncia dos contendores, definidos enquanto partes complementares de uma mesma "comunidade".

    Este estado de coisas comea a se modificar em funo, principalmente, de uma diversificao da vida socialda cidade resultante de sua relao mais freqente com a sociedade inclusiva. Como dizem os informantes, os clubesdeixaram de desempenhar aquele papel totalizador na vida social, na medida em que esta vida social desprendia-se desua caracterstica auto-referenciada; a construo de estradas, o maior acesso aos meios de comunicao, adiversificao da economia remodelaram, de uma forma ou de outra, a prtica social.

    Um indicio interessante dessa transformao o deslocamento que se opera no carnaval com o surgimento dasescolas de samba; voz corrente que "o carnaval dos clubes foi para o salo", ficando o carnaval de rua - locustradicional da rivalidade - para as escolas e os blocos. Ainda que se mantivesse desde os primeiros anos de suaexistncia uma disputa tambm ferrenha, saa-se do campo da rivalidade para se entrar no campo da competio. Se,at ento, o carnaval caracterizava-se por ser um ritual agonstico de conjuno, onde se afirmava uma diviso com ointuito de se retomar a totalidade numa clara inverso ritual de base holstica agora partia-se da igualdade para secriar um desvio diferencial, estabelecido por um julgamento baseado em regras externas (24), que definiaindividualidades: em termos levistraussianos, substitua-se a lgica ritual pela lgica do jogo (Lvi-Strauss, 1976, p.

  • 54).

    Se nos carnavais tradicionais comeava-se por uma batalha de confetes, cujo objetivo era tomar o estandarte esse totem carnavalesco do clube rival e destru-lo, para terminar numa "visita" esmaltada por uma espcie deconcepo diplomtica cortes, onde se trocavam estandartes numa comunho pela paz, os carnavais das escolas desamba resumiam-se aos desfiles competitivos, onde entrar em igualdade e sair em vantagem era a tnica.

    Apesar da coincidncia significativa que se pode alinhavar a partir do arrefecimento de uma rivalidade entrefaces clubsticas, com relao ao declnio de uma estrutura clientelista de base personalista e a insero dacomunidade na arena da modernizao econmica promovida pelo capitalismo brasileiro, isso no significa que oethos tradicional tenha se desestruturado em favor de uma tica individualista. Pois, se parece evidente que a lgica dadisputa carnavalesca indica uma gramaticalidade diversa, h que se perguntar em que medida essa "transformao"no seria apenas uma "modulao" do padro tico caracterstico provocada pelas novas condies da relao de SoJoo Nepomuceno com a sociedade inclusiva. Como no adgio drummondiano, talvez se esteja diante do "esquecerpara lembrar".

    Pois, se houver condies de qualificar este "cdigo tico", talvez a melhor maneira de defini-lo seja destacarsua natureza dplice. O que chamei de faccionalismo em srie, com sua difuso de espaos de enfrentamento, nocolocaria baila, exatamente, uma articulao entre uma "lgica competitiva" inerente s disputas esportivas e uma"lgica de rivalidade" no que tange ao carnaval? Tal constatao levaria a evitar o fcil caminho da substituio de umtipo de padro por outro no trnsito histrico, apontando para a pressuposio mais sofisticada de uma articulaoengenhosa que teria, antes de mais nada, uma transitividade adaptativa s transformaes que esse movimento parecedemonstrar.

    Quer me parecer, neste sentido, que se considerarmos as regras das disputas clubsticas como parmetro vlidopara a visualizao dos padres ticos em So Joo Nepomuceno e, se formos opor um padro de rivalidade ritual debase holstica a um padro de disputa competitiva que pressuponha normas de regulao "impessoais", estaramosdiante de uma realidade evidentemente bipartida: Entretanto, um outro elemento importante pode esclarecer, seno ahegemonia de um desses padres no mapa das relaes sociais, pelo menos uma "tendncia dominante": o grau deencompassamento social das instituies clubsticas. Quer dizer, quanto maior o grau de mobilizao na disputa, tantomenor o seu carter competitivo e to mais relevante o seu papel ritual: se, antigamente, o futebol parecia galvanizarapenas uma parte da populao - os homens -, os clubes carnavalescos tinham .aquela capacidade generalizadora queMauss demonstra caracterizar os fenmenos sociais totais (Mauss, 1974).

    Alm disso, se formos avaliar a "transformao" operada a partir do incio da dcada de 60, veremos que,depois de uma curta temporada de "competio" nos desfiles, estes passam a ser to demonstrativos quanto os antigosprstitos carnavalescos. E isso parece ter ocorrido na medida em que as escolas foram se tornando locas no apenas dadiverso popular, mas tambm espao de participao dos antigos freqentadores dos clubes. Hoje em dia, a rivalidade obviamente berra menos totalizadora, mas igualmente forte parece ter se transferido para as escolas de samba;como se viu, aos blocos cabe o espao competitivo (25).

    No se quer dizer com isso que as coisas no mudaram na cidade de So Joo Nepomuceno, mas que as novascondies de insero na sociedade inclusiva no foram to devastadoras como os habitantes da cidade parecemformular. Obviamente, a "abertura" da cidade s presses econmicas e ideolgicas de um capitalismo que seorganizava a nvel nacional, deveria produzir respostas condizentes s "novas condies", o que efetivamente ocorreu.Entretanto, as relaes polticas ainda guardam at hoje um componente de pessoalizao evidente no completamentesuprimida pela organizao partidria do tipo "moderno" (26). No se pode dizer que a cidade tenha secosmopolitizado totalmente com suas relaes mais freqentes com a nao como um todo, nem afirmar o completo"esvaziamento" da rivalidade clubstica; como se viu.

    Se algo se pode afirmar a partir da avaliao das "mudanas histricas" pelas quais a cidade passou, que, aoinvs de transformaes, o padro tico de relaes sociais, sofreu modulaes. Alis, o processo assim se realizou emfuno das peculiaridades que caracterizam a natureza desse padro.

  • Ou seja, ao contrrio do que afirmam alguns analistas deste tipo de processo em outros contextos scio culturais(27), no parece ter havido em So Joo Nepomuceno um simples declnio da pessoalizao nas relaes sociais comoresultado da sua insero no movimento de modernizao econmica. Ao contrrio, exatamente pelo seu carterdplice (28) ele pde dar uma espcie de resposta adaptativa s mudanas decorrentes desta insero: modificou-separa permanecer o mesmo. No se estaria diante nem de uma "sociedade holista" que se "individualiza" nem de umasociedade atrasada que se moderniza, mas, talvez, em face do mesmo procedimento que a sociedade brasileira escolhepara traar sua peculiaridade: -estar e permanecer na liminaridade do dilema entre sua tradio pessoalizante e aexigncia individualista que o capitalismo na qual ela se insere parece supor (29).

    A contribuio que esta constatao talvez possa trazer ao debate em tomo das relaes entre os cdigos desociabilidade e as transformaes nas condies econmicas das sociedades nas quais ocorrem, urda relativizao daequao expanso do capitalismo = modernizao econmica = despessoalizao das relaes sociais, substituindo-apor uma frmula menos determinista que considere os cdigos como elementos que, produzidos culturalmente, tmuma face e uma constituio significativas para a compreenso da vida social da qual emergem e para a qual servemcomo padro. Talvez sirva, enfim, para ajudar no dever programtico de nossa disciplina: pensar os processos atravsde suas peculiaridades e no substituir, pelas snteses, a riqueza da diversidade.

    (Recebido para publicao em agosto de 1990)

    NOTAS

    1- Este artigo uma verso modificada de um trabalho de final de curso originalmente apresentado como requisito de avaliao referente aoSeminrio "Estrutura e Sistema de Poder", ministrado durante o segundo semestre de 1989, no Museu Nacional, pelo professor Moacir Palmeira, aquem agradeo pelas crticas e sugestes fundamentais para a elaborao desta verso.

    2 - Daqui por diante considerarei os pases latino-americanos, por sua histria colonial, como "sociedades de tradio mediterrnea".

    3 - Quando falo em padro tico estou me reportando noo weberiana de que a prtica social requer um cdigo regulador de esprito tico e queela pode ser interpretada luz deste padro (Weber, 1987 [1904]).

    4 - Os depoimentos tm a seguinte origem: a) entrevistas realizadas, em julho de 1989, durante trabalho de campo sob a coordenao do professorRoberto da Matta, em parceria com Elena Sorez (Caniello & Sorez, 1989); b) entrevistas realizadas na mesma ocasio por Tnia Fernandes eJacqueline Muniz (Fernandes & Muniz, 1989), a quem agradeo pela gentileza da permisso do uso do material de pesquisa para os propsitosdeste artigo; c) entrevistas realizadas em dezembro de 1989 especificamente para este artigo (nesta fase da pesquisa contei com o apoiofundamental d professor Afrnio Raul Garcia Jr., a quem agradeo).

    5 - Conforme o jornal A Voz de So Joo, 16/7/61.

    6 - Discutida, mais frente, na seo "Uma Interpretao Possvel".

    7 - Sobre a noo de mediador, ver Silverman, 1977b; para a noo similar de broker, ver Wolf, 1956, pp. 1075-1076.

    8 - Sobre esse conceito ver Boissevain, 1966, pp. 18-19; Foster, 1963, p. 1.280; Foster,1967, p. 214; Kenny, 1977, p. 356; Scott,1977, p. 22; Scott,1977b, p. 294; Silverman, 1977b, p. 294; Weingrod, 1977, p. 42; Wolf, 1966, p. 16.

    9 - A respeito da noo de reciprocidade desequilibrada ver Bailey, 1971, p. 238; Foster, 1967, pp. 224-225; Kenny, 1977, p. 358; Land, 1977, p.XVII; Scott, 1977, p. 24, passim; Scott,1977b, p. 125; Silverman, 1977, pp. 12-13; Silverman, 1977b, pp. 295-296; Weingrod, 1977, p. 45; Wolf,1966, pp. 16-17.

    10 - Ver a esse respeito Bailey, 1971, p. 236; Foster, 1967, p. 222, Kenny, 1977, p. 356; La.nd, 1977, pp. XXVII-XXVIII; Pitt-Rivers, 1971, pp.139-159; Pitt-Rivers, 1972, pp. 907-908; Scott, 1977, p. 28.

    11- Sobre a considerao das relaes de amizade como paradigma dessa base pessoal, ver Boissevain, 1966, p. 21, passim; Land, 1977, p.XXIX; Pitt-Rivers, 1971, pp. 138-158; Pitt-Rivers, 1972, p.-508; Scott, 1977, p. 22; Scott, 1977b, p. 26; Silverman, 1977b, pp. 295-296; Wolf,1966, pp. 10-13.

    12 - Sobre a noo de patronagem enquanto linguagem, ver Silverman, 1977, pp. 12-18, especialmente.

    13 - No se quer afirmar .com isso, obviamente, que haja um padro tico exclusivo baseado na lgica da patronagem. Alis, como se ver adiante,

  • a concluso deste artigo nos levar exatamente a colocar a hiptese da possibilidade de uma tica dplice na conformao social em foco.

    14 - Aqui baseio-me na definio de clientelismo proposta por Land (1977, p. XXII).

    15- A Voz do Povo, depois chamada Voz de So Joo um jornal semanal que sai aos sbados e que circula desde 1907 at hoje. H um arquivode todas edies na redao atual, de onde extra a maioria das informaes histricas sobre o carnaval. Referenciarei as citaes de matrias pelassiglas VP e VSJ seguidas das datas de publicao.

    16 - Pode-se inferir que o carnaval ainda mais antigo, levando-se em considerao o artigo de "John Bull": "De um pequeno grupo de alegresrapazes folies da primeira hora do Carnaval sojoanense - partiu a homenagem inicial a Rei Momo e, tal foi o sucesso, que outros jovens noquerendo ficar atrs no conceito da sociedade em geral e das `belas' da poca, em particular, logo imitaram o seu gesto. De blocos de rua passarampara o velho Rink, para barraces mais abrigados, at que, num lance de arrojo sensacional, criou-se o primeiro clube com estatutos, diretoria esede social. Confirmando a regra, pouco depois foi fundada outra sociedade recreativa". (VSJ, 18/2/62).

    17 - Ver adiante uma descrio mais pormenorizada das "crticas".

    18 - O Botafogo Futebol Clube foi fundado no ano de 1937 por uma dissidncia do Mangueira.

    19 - Como ainda no tive a oportunidade de fazer um mapeamento detalhado da composio social dos clubes atravs dos seus registros, querodestacar o carter provisrio desta afirmao, ainda que haja fortes indcios em relao sua veracidade.

    20 - H indicaes de que a estrutura partidria tambm faa parte dessa "lgica clubstica"; entretanto, pela limitao dos dados de que disponhoem relao a este"aspecto, deixarei para trabalh-la em ocasio mais oportuna.

    21- No consegui informaes seguras sobre a permanncia desta prtica, mas segundo o depoimento de um informante, ela durou apenas por doiscarnavais. A verdade que, hoje em dia, tal prtica no seguida; como no tempo dos clubes, no h julgamento. Entretanto, no que se refere aosdesfiles de blocos carnavalescos, este o procedimento: no dia posterior ao desfile divulga-se por meio do servio de som os trs primeiroscolocados.

    22-Por motivo de tempo, no tive condies de colher dados e, portanto, analisar com mais calma esta "nova rivalidade", o que pretendo fazer namedida em que me aprofundar mais no trabalho de campo que desenvolverei na cidade.

    23 - Sobre a noo do carnaval como um ritual de inverso, ver Da Mana (1983).

    24 - Agradeo ao professor Roberto da Matta pela sugesto deste ponto relativo exterioridade das regras.

    25- Ver nota 22.

    26- Inclusive oportuno destacar as consideraes de Scott (1977b) e Stirling (1968) que demonstram em outros contextos culturais a prpriaagudizao dos padres pessoalizantes nas relaes polticas em face insero de comunidades tradicionalmente "fechadas" no contexto ampliadodo Estado-Nao.

    27 - Cf. as consideraes de Gellner no que tange incompatibilidade entre as definies de estrutura clientelista e estado liberal e lgica domercado (Gellner, 1977, p. 3); as de Graziano caracterizando a permanncia de padres pessoalizantes como "sobrevivncias feudais", funo deuma "racionalizao capitalista incompleta": "Market relations are anonymous, general and abstract: they despersonalize all human relations"(Graziano, 1977, p. 362); as de Land relacionando o declnio de relaes clientelistas em face das presses ticas do capitalismo, que provocariamurina "menor rentabilidade" aos laos pessoais (Land, 1977, p. XXX); as de Scott que preconizam que com o desenvolvimento econmico passa-se, no caso das "mquinas polticas", da lgica da honra para a lgica econmica do "curto prazo" (Scott, 1969, p. 48); as de Boissevain queafirmam ser a despessoalizao a resposta ao desenvolvimento econmico em Malta (Boissevain, 1977, p. 89).

    28 - "...no Brasil,... o sistema dual: de um lado, existe o conjunto de relaes pessoais estruturais, sem as quais ningum pode existir como serhumano completo; de outro, h um sistema legal, moderno, individualista (ou melhor: fundado no indivduo), modelado e inspirado na ideologialiberal e burguesa" (Da Matta, 1983, p.20).

    29 - Sobre este "dilema brasileiro", ver Da Matta (1983).

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