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Mapeando os Comuns: Uma Estratégia de Empoderamento das Comunidades do Rio Cuieiras, Margem Esquerda do Baixo Rio Negro, Amazônia Central. Leonardo Pereira Kurihara (ATU/INPA e IPÊ) Biólogo e Mestrando em Agricultura dos Trópicos Úmidos no INPA Pesquisador Associado do IPÊ [email protected] Thiago Mota Cardoso Pesquisador do Projeto Sociobiodiversidade [email protected] Mariana Gama Semeghini (IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas) Pesquisadora e Coordenadora do Projeto Sociobiodiversidade [email protected] RESUMO No rio Cuieiras, Baixo rio Negro - Amazônia Central existem seis comunidades que vivem na região há mais de 60 anos. Estas populações habitam as margens dos rios e a terra-firme e reproduzem todo um saber-fazer na convivência com os rios e com os elementos da floresta, sendo a pesca, a caça, a agricultura e o extrativismo os principais sistemas produtivos. A sazonalidade dos sistemas hídricos da Bacia do rio Cuieiras e a rica biodiversidade local influenciam diretamente nas formas de uso dos recursos das populações locais, que, nesta dinâmica, desenvolveram uma complexa escala espacial de acesso aos recursos. Observa-se na região do rio Cuieiras, que a implantação de certos programas governamentais, vem desestabilizando as relações socioambientais da região e limitando as comunidades locais na dinâmica do uso de recurso. Neste sentido, o mapeamento participativo mostrou ser uma ferramenta interessante no processo de empoderamento das comunidades locais e ordenamento territorial da região. PALAVRAS-CHAVE Uso de Recursos Naturais, Mapeamento participativo e Ordenamento Territorial.

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Mapeando os Comuns: Uma Estratégia de Empoderamento das Comunidades do Rio Cuieiras, Margem Esquerda do Baixo Rio

Negro, Amazônia Central.

Leonardo Pereira Kurihara (ATU/INPA e IPÊ)Biólogo e Mestrando em Agricultura dos Trópicos Úmidos no INPA

Pesquisador Associado do IPÊ [email protected]

Thiago Mota CardosoPesquisador do Projeto Sociobiodiversidade

[email protected] Gama Semeghini (IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas)

Pesquisadora e Coordenadora do Projeto [email protected]

RESUMO

No rio Cuieiras, Baixo rio Negro - Amazônia Central existem seis comunidades que

vivem na região há mais de 60 anos. Estas populações habitam as margens dos rios e

a terra-firme e reproduzem todo um saber-fazer na convivência com os rios e com os

elementos da floresta, sendo a pesca, a caça, a agricultura e o extrativismo os

principais sistemas produtivos. A sazonalidade dos sistemas hídricos da Bacia do rio

Cuieiras e a rica biodiversidade local influenciam diretamente nas formas de uso dos

recursos das populações locais, que, nesta dinâmica, desenvolveram uma complexa

escala espacial de acesso aos recursos. Observa-se na região do rio Cuieiras, que a

implantação de certos programas governamentais, vem desestabilizando as relações

socioambientais da região e limitando as comunidades locais na dinâmica do uso de

recurso. Neste sentido, o mapeamento participativo mostrou ser uma ferramenta

interessante no processo de empoderamento das comunidades locais e ordenamento

territorial da região.

PALAVRAS-CHAVE

Uso de Recursos Naturais, Mapeamento participativo e Ordenamento Territorial.

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INTRODUÇÃO

Os recursos naturais e os espaços vêm sendo utilizados por uma diversidade de

sujeitos e instituições sociais com interesses distintos e muitas vezes conflitantes na

Amazônia (Kohlhep, 2002), evidenciando múltiplas territorialidades, percepções e

formas de apropriação da natureza, bem como níveis diferenciados de

sustentabilidade ecológica (Lima & Pozzobon, 2005). O Estado Nacional se coloca,

neste esquema, como a instituição que busca exercer a soberania perante o território

e, através do ordenamento territorial público, conciliar a apropriação do espaço e dos

recursos entre a diversidade de sujeitos na esteira da sociedade civil e destes com os

interesses estatais.

Faz algumas décadas que o ordenamento territorial está na agenda política da região

norte do Brasil, sendo concebido como um importante instrumento de planejamento do

espaço urbano e rural. O termo foi introduzido durante a década de 60 quando da

necessidade de regularização da situação fundiária e ocupações das fronteiras do

desenvolvimento tem sido motivo para sérios conflitos sociais (Gutberlet, 2002).

Evidencia-se, no atual cenário, que as políticas fundiárias com objetivos sociais,

ambientais ou de desenvolvimento econômico vêm se mostrando divergentes em suas

formulações e contraditórias em suas aplicações, dentre os diversos setores do estado

e destes com as comunidades tradicionais e agricultores familiares. Temos como

exemplos os casos das sobreposições entre as Unidades de Conservação (UCs), e

Terras Indígenas (TIs) e áreas militares (Ricardo, 2004) e a implantação de projetos de

assentamento e de desenvolvimento que não respeitam as demandas

socioambientais.

Este ensaio tem como objetivo principal apresentar o caso do ordenamento territorial

na bacia do rio Cuieiras, situado no mosaico de áreas protegidas do baixo rio negro

evidenciando as formas de territorialização dos povos tradicionais frente aos territórios

estatais, os conflitos e negociações em andamento e suas conseqüências para a

conservação da biodiversidade. Ao mesmo tempo apresentamos as estratégias e

ações da sociedade civil, tendo em vista o re-ordenamento territorial desta região,

utilizando-se de ferramentas participativas como o mapeamento participativo.

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METODOLOGIA

Coleta de Dados

A coleta de dados do referido ensaio, se apoiou nas abordagens e técnicas da

pesquisa participativa (Chambers, 1991; Seixas, 2005 e Vieira et al., 2005). A

pesquisa participativa reconhece a existência, o valor e a legitimidade dos diferentes

tipos de conhecimento, em particular o conhecimento “popular”, “local” e “nativo”

(McAllister, 1999). As abordagens e técnicas da pesquisa participativa vêm sendo

muito utilizada para o entendimento, monitoramento e avaliação da gestão dos

recursos naturais, a partir da perspectiva local (Chambers, 1991; McAllister, 1999;

Huizer 1997).

As coletas de dados aconteceram no ano de 2007, sendo complementadas no ano de

2008 e 2009. As ferramentas utilizadas para coleta de dados incluíram entrevistas, o

calendário sazonal e o mapeamento participativo. As entrevistas foram importantes

para traçar um perfil das unidades familiares amostradas, possibilitando um

entendimento e analise dos principais fatores socioeconômicos que influenciam na

dinâmica dessas famílias. O calendário sazonal foi fundamental para ampliar o

conhecimento sobre a variação de utilização dos recursos ao longo do ano,

possibilitando o entendimento dos períodos em que se dedicam a determinadas

atividades, como roçado, época de plantio, as épocas mais favoráveis a caça e pesca

e suas técnicas distintas para cada período desses. O mapeamento foi utilizado para

espacializar às áreas de uso. Com auxilio de mapas hidrológicos e imagens satélites,

os consultores locais foram identificando os nomes dos lagos, igarapés e outros

utilizados. Em seguida, com o uso de adesivos de cores específicas, eles foram

identificando, no mapa hidrológico, as casas e as principais áreas de roça,

extrativismo, de caça e pesca. Na ficha auxiliar eram anotados – pelo observador – as

atividades realizadas e os principais produtos gerados ou extraídos nas áreas

marcadas. O processo de construção de um mapa e as discussões agregadas a ele

forneceu uma base de análise sobre a qualidade ambiental e social da área.

Sistematização dos dados

A segunda etapa diz respeito à organização dos dados. Os dados coletados nos

questionários, anotações de campo e calendário sazonal servirão de base para

construção de um banco de dados. Os dados espaciais, georreferenciados foram

analisados no programa ArcGIS 8.3. Para o mapeamento das casas e das atividades

de pesca foram utilizados pontos, que foram localizados através do reconhecimento de

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algum local conhecido na imagem, no caso os rios e igarapés, ou pela visualização na

imagem, como é o caso das casas.

Para mapear a área de agricultura, foram identificadas as áreas cultivadas, levando-se

em consideração toda área da comunidade e o seu entorno, ou seja, os quintais, os

roçados e as capoeiras. Sendo assim, estes polígonos foram desenhados através de

padrões observados na imagem.

A caça e o extrativismo foram mapeados através de polígonos, porém, para tanto

foram criados alguns critérios, que levaram em consideração o conhecimento das

atividades e as informações de comunitários, coletadas em campo. Na atividade de

caça, puderam ser facilmente identificadas duas estratégias. Uma ligada ao

oportunismo, aproveitando a presença constante de roedores e pequenos mamíferos

nos roçados. E outra referente ao uso dos corpos d’água como base para realização

da atividade. Para primeira, que denominamos como “caça de roçado”, foi plotado um

ponto sobre as “áreas cultivadas”, e a partir deste ponto, foi criado um “buffer” circular

de 750m de raio, uma vez que concluímos que esta seria a maior área explorada pelos

comunitários para esta estratégia. Para a segunda, foi utilizada uma linha guia,

cobrindo todos os igarapés que foram identificados para esta atividade. A partir destas

linhas, foram criados buffers de 500m para o interior da terra firme.

A atividade de extrativismo foi georreferenciada a partir de pontos indicados pelos

comunitários, em cima destes foram criados buffers também de 750m, assim como

para “caça de roçado”.

As técnicas foram complementadas nas reuniões, palestras e visitas esporádicas nas

residências dos comunitários. Dados bibliográficos, participação em reuniões e visitas

institucionais serviram para levantar informações sobre as estratégias e políticas de

gestão das instituições que atuam na região. No término de todas as atividades, os

dados foram analisados e repassados para que os participantes confirmassem e

aprovassem os resultados.

AS COMUNIDADES LOCAIS

O rio Cuieiras é um afluente do rio Negro, localizado na margem esquerda, a cerca de

50 Km do da cidade de Manaus. O rio possui uma população de aproximadamente 96

famílias, distribuídos em seis comunidades. Essas famílias organizam-se de forma

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nuclear, onde a média de pessoas, por unidade domestica1 é de 3,9. Seus moradores

são, na sua maioria, indígenas da região do Médio e Alto Rio Negro (dos municípios

de Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira) e ribeirinhos, descendentes

principalmente da região nordeste.

Essas populações vivem na região há mais de 60 anos, segundo Semeghini et.al.

(2008) e Cardoso (2008), a agricultura é um dos principais meios de subsistência local,

tendo a mandioca como base alimentar. Os moradores da região manejam a floresta

secundária ou capoeiras de forma a incrementar sua base alimentar e de suprimentos,

podendo inserir espécies madeireiras e frutíferas formando sistemas agroflorestais. A

produção excedente geralmente é demandada e comercializada no próprio local.

As populações habitantes do rio Cuieiras têm a pesca como uma das principais

atividades culturais. Ela representa a melhor fonte de obtenção de proteína nas bacias

de água preta. Entre os apetrechos de pesca utilizados pelas populações da área de

estudo, a zagaia (tridente de metal preso a uma haste) é o mais utilizado. Caniços,

linhas e redes de espera (malhadeiras) também possuem uso freqüente. O uso de

diferentes tecnologias varia de acordo com os conhecimentos dos hábitos alimentares

e dos padrões de mobilidade de cada espécie. A malhadeira é menos seletiva,

capturando ampla diversidade de espécies de tamanhos variados. A zagaia é mais

seletiva, capturando peixes noturnos que descansam a noite no igapó.

A caça é uma das principais atividades realizadas pelas populações ribeirinhas que

habitam os sistemas de águas pretas, e, associada à pesca, constitui fonte vital de

proteína e gordura nesse ambiente (Moran, 1990). A caça em canoas a remo, durante

a noite, é a mais praticada na região do Cuieiras. Nessa forma de captura, o caçador

procura os animais nas margens dos igarapés com lanterna a pilha, geralmente está

atividade está associada à atividade de pesca com zagaia. As espingardas de

cartucho é o apetrecho mais utilizado para a caça na região.

A região também apresenta uma história de intensa exploração madeireira, que visa

atender à demanda da cidade de Manaus (Kurihara & Cardoso, 2009). O extrativismo

madeireiro é realizado por homens adultos e jovens. A atividade se resume a três

formas: através da “madeira serrada” (pranchas, tábuas e compensados); com a

venda de varas (árvores jovens utilizadas como pau-escora na construção civil); e na

retirada de madeira para confecção do “espetinho de churrasco”. A atividade é

manual, sendo o transporte na mata realizado de forma braçal, esses fatores,

economicamente, limitam a área de uso da madeira na região. 1 – Por unidade domestica entende-se a unidade residencial de coabitação de uma ou mais famílias nucleares em comunidade.

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Figura 01: Mapeamentos da área de uso dos recursos de cada comunidade do rio Cuieiras

Também são desenvolvidas outras atividades cujo objetivo é a geração de renda. Na

região, destacam-se atividades vinculadas ao turismo, principalmente na confecção do

artesanato e à prestação de serviços temporários (diárias). Os benefícios estatais

constituem uma renda importante para muitas famílias, principalmente pelos

programas bolsa família e aposentadoria. Funcionários públicos vinculados às escolas

e postos de saúde também têm representação significativa. Vale destacar que o

modelo econômico local é de baixa escala produtiva e a produção de excedentes para

comercialização sempre foi pequena e destinou-se principalmente à obtenção de

outros gêneros essenciais à sobrevivência das famílias.

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ORDENAMENTO TERRITORIAL NA REGIÃO

Em 1995, foi decretado na região do rio Cuieiras, o Parque Estadual Rio Negro Setor

Sul com uma área de aproximadamente 157.807.00 hectares. O Parque é uma

unidade de conservação de proteção integral, que não permite o uso direto. Na

ocasião o parque foi criado, sem consulta publica e estudos técnicos aprofundados,

tendo seus limites sobrepondo à área de uso de quatro comunidades localizadas no

rio Cuieiras. Apesar de decretado, o parque que foi criado em gleba Federal, nunca

tiveram suas terras arrecadadas ao INCRA – Instituto Nacional da Reforma Agrária.

Dez anos depois, em 2005, O INCRA - Instituto Nacional da Reforma Agrária, não

reconhecendo o Parque Estadual Rio Negro Setor Sul e seus limites, criou na região

um modelo de assentamento da região Norte, o Programa de Desenvolvimento

Sustentável – PDS Apuaú – Anavilhanas com aproximadamente 210.000.00 hectares.

Esse assentamento foi criado sem um trabalho mínimo de organização social, gerando

uma situação de desinformação e conflito entre os assentados. Além disto, o

assentamento da forma com que foi desenhado sobrepôs à área do PERN Setor Sul

em aproximadamente 70.710.00 hectares, aumentando ainda mais o conflito da

região, criando uma situação de contradição entre os objetivos das duas áreas.

Existe ainda na região um pedido feito pelos índios Barés perante a FUNAI para

realização de estudos de identificação e delimitação de Terra Indígena. O objetivo

deste território seria garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas,

onde a disponibilidade de recursos naturais conservados é um fator intrínseco, pois é

determinante para a manutenção das atividades produtivas (agricultura, caça, pesca e

coleta, principalmente).

Deve-se levar em conta que o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas” não se

refere à imemorialidade ou presença histórica, mas sim à forma de ocupar o território,

à relação que se estabelece entre os recursos naturais e os meios de produção, o que

legitima a presença indígena na área. Assim, o território Baré, se decretado,

sobreporia a todos os outros territórios e, caso isso ocorra sem os devidos estudos e

negociações, poderá gerar sérios conflitos sociais entre as comunidades indígenas e

não-indígenas da região.

A falta de diálogo entre as partes governamentais é flagrante e pode ser ilustrada pela

instalação de uma área de treinamento militar da Marinha do Brasil, sobrepondo com a

área de uso das comunidades Barrerinhas e Boa Esperança do rio Cuieiras e também

sobrepondo aproximadamente 14.960.00 hectares da área do Parque. Por fim, existe

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também na região uma base avançada da Polícia Federal no rio Cuieiras, sobrepondo

à área do Parque.

Ao inverso do que ocorre em vastas regiões da Amazônia onde o ordenamento

territorial não está sendo devidamente realizado, prevalecendo situações de extremo

conflito social e degradação ecológica, como no caso das grilagens de terras na

fronteira do desmatamento e da cessão de terra pública para empreendimentos de

mineração, ocorre no rio Cuieiras um “excesso” e indefinição no ordenamento estatal.

De fato, cada órgão vem realizando seus próprios programas e agendas de forma

sobreposta ou de encontro aos interesses da população local, submetendo-os a uma

situação de incerteza e de falta de definição permanente quanto ao cenário fundiário

da região (Cardoso et.al. 2008).

As áreas e as sobreposições citadas podem ser vistas na Figura 2. A área de uso dos

recursos (território) por estas comunidades tradicionais é abrangente (cerca de

70.582,00 ha) e se sobrepõe com áreas governamentais. Desta área de uso das

comunidades, aproximadamente 60% encontram-se dentro dos limites do PERN. O

Parque tem 26% de sua área ocupada pela área de uso das comunidades estudadas.

Deste valor, 18% são utilizados para caça, 11% para extrativismo e apenas 1% para

áreas cultivadas.

Figura 02: Sobreposições dos territórios comunitários e estatais.

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TERRITÓRIOS SOCIAIS NO BAIXO RIO NEGRO

A territorialidade é definida por Little (2002) como o esforço de um grupo social para

ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela de seu ambiente biofísico,

convertendo-o em território, sendo este, produto histórico de processos socioculturais

e políticos. Para os povos tradicionais da área deste estudo o território é comunitário e

a identificação e delimitação do mesmo são feitas mediante critérios locais que, muitas

vezes, não possuem paralelo com os critérios técnicos ou burocráticos.

Os “coomuns”, ao contrário do que teorizou Hardin (1968), podem ser sistemas

eficientes de gestão dos espaços e dos recursos naturais e a desorganização destes

sistemas ou a sua simples substituição por regimes estatais e/ou privados, onde os

sistemas locais são deslegitimados e o estado e setor privado podem ser ineficientes,

podem gerar falta de participação ou de controle sobre o uso dos espaços e recursos,

além de invasões e o posterior esgotamento (Berkes et. al. 1989; Orstrom, 1990). A

perda de direitos de propriedade dos grupos tradicionais acaba convertendo os

comunitários em usuários ilegais. Isto, juntamente com o crescimento populacional,

mudanças tecnológicas, acesso a mercados e rupturas políticas ampliam a

degradação dos recursos naturais, pois não há mais o sentimento de território

pertencido. Nada mais evidente do que na atual forma de exploração de madeira, de

pesca predatória e turismo desordenado na região.

O termo comunidade foi incorporado de fora – do Estado – e é utilizado no rio Cuieiras

para designar uma unidade sociopolítica, com territorialidade definida através de

formas tradicionais de ocupação e gestão do território. São as famílias, com interesses

e propósitos comuns e relações de compreensão, que formam uma comunidade.

Essas delimitam, se apropriam e manejam coletivamente um território comunitário,

nestes espaços, se articulam áreas de posse dos grupos domésticos (roças, quintais

produtivos e capoeiras) e áreas de usufruto comum (floresta densa e infra-estrutura

comunitária) e estatais (área do parque, reserva da Marinha, escolas e postos de

saúde). A comunidade é representada por um presidente e por um vice-presidente,

considerados como lideranças que são escolhidas por consenso em reuniões

comunitárias. Esses são responsáveis por manter a paz, representarem as

comunidades em fóruns públicos e lutarem pelos direitos e por benefícios econômicos

e sociais.

O território é regido por normas que estão baseadas no respeito e possíveis quebras

normativas, como por exemplo realizar atividades de caça numa capoeira de outrem.

Tais atividades são tratadas de forma explicita, com a liderança ou outro membro

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comunitário chamando a atenção do infrator, ou implica, no isolamento social da

pessoa o que pode dificultar o convivio do mesmo em determinado lugar, forçando-o a

se mudar ou a tentar se redimir. As normas também se aplicam a atores externos à

comunidade. Neste caso uma pessoa de determinada comunidade que não possua

vinculos estabelecidos só poderá acessar recursos em outra comunidade mediante

anuência dos membros desta. Caso acesse o território sem o consentimento de quem

defende o território, um conflito pode se estabelecer. Fica explicito neste exemplo que

existe e persiste uma forma de gestão comunitária e não simplesmente a ausência de

uma política local, e que, por estar baseada em regras, possuiria efeitos no controle do

uso do espaço e dos recursos, contribuindo concientemente para a conservação

ambiental, impedindo – ou até negando – a propalada « tragédia dos comuns ».

Portanto, ao se criar uma figura territorial, como um Parque sem a participação das

comuidade locais, as perspectivas de gestão local dos povos tradicionais são postas

na invisibilidade ou não são compreendidas pelo estado. O que poderá advir disto é

uma quebra sistemática e abrangente de regras e um abandono das

responsabilidades tradicionais sobre o espaço. Desta forma, quem era dono se torna

invasor ou morador, na perspectiva dos órgãos gestores, e injustiçado na visão local.

As comunidade que defendiam territórios e protegiam os recursos naturais, agora os

exploram de forma livre, sem regras locais, seguindo um sentimento de perda de

poder sobre o espaço. O conflito é estabelecido entre o estado e as comuidades.

Paradoxalmente, a criação das Unidades de Conservação e de outros territórios

estatais na área observada reforçaram o sentimento de identidade e engendrou

movimentos. Ë certo também que as mudanças sociais e econômicas também

contribuem para desorganizar a gestão comunitária do território, complexificando ainda

mais o cenário.

É importante salientar que as formas de territorialização dos povos tradicionais são

distintas das empreendidas pelas forças políticas “ocidentais”, estas últimas se

baseiam em limites rígidos embasados em direitos estabelecidos pelo estado, tendo o

controle e a dominação como pressupostos da ocupação e definição de limites

territoriais. Por outro lado as comunidades definem o território de forma dinâmica

tendo bases o contexto das relações sociais, valores morais e as contínuas

negociações entre famílias, sempre baseados em relações de compreensão.

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MAPEAMENTO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

Os mapeamentos subsidiaram processos de mobilização social e negociação entre as

comunidades do rio Cuieiras e o Estado (Cardoso et al. 2008). Em 2009, os dados

foram trabalhados no diagnóstico socioeconômico do Plano de Gestão do Parque,

debatidos com as lideranças e subsidiaram o zoneamento da UC. Em março de 2010,

as comunidades do rio Cuieiras, por meio do FOPEC, acessaram o ministério publico,

buscando apoio do órgão para que seus territórios, identificados nos mapeamentos,

fossem reconhecidos, garantindo a regularização fundiária e o ordenamento territorial

da região. Em agosto de 2010, as comunidades da região, em conjunto com o INCRA,

o órgão ambiental estadual, representantes da sociedade civil e a comissão do meio

ambiente da assembléia legislativa, realizaram uma audiência pública na assembléia

legislativa buscando propor ações conjuntas para o ordenamento territorial da região.

Os mapeamentos serviram de base para subsidiar as ações, reconhecendo as áreas

de usos e direitos das comunidades.

CONCLUSÕES

O mapeamento dos territórios e dos usos dos recursos pode se constituir como uma

poderosa ferramenta para subsidiar o empoderamento local e os processos de

econegociação. Os resultados do mapeamento participativo estão subsidiando o Plano

de Manejo do PERN, a gestão do PDS e as ações para a resolução dos conflitos e

realização do re-ordenamento territorial na região.

Reconhecer os aspectos socioculturais dos povos tradicionais, buscar entendê-los e

respeitá-los como sistemas legítimos de gestão do território e dos recursos naturais,

numa perspectiva de diálogo intercultural e co-gestão, é um passo importante no

ordenamento territorial e no desenvolvimento de projetos de etnodesenvolvimento e

conservação da biodiversidade

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