mapeando os comuns: uma estratégia de empoderamento das...
TRANSCRIPT
Mapeando os Comuns: Uma Estratégia de Empoderamento das Comunidades do Rio Cuieiras, Margem Esquerda do Baixo Rio
Negro, Amazônia Central.
Leonardo Pereira Kurihara (ATU/INPA e IPÊ)Biólogo e Mestrando em Agricultura dos Trópicos Úmidos no INPA
Pesquisador Associado do IPÊ [email protected]
Thiago Mota CardosoPesquisador do Projeto Sociobiodiversidade
[email protected] Gama Semeghini (IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas)
Pesquisadora e Coordenadora do Projeto [email protected]
RESUMO
No rio Cuieiras, Baixo rio Negro - Amazônia Central existem seis comunidades que
vivem na região há mais de 60 anos. Estas populações habitam as margens dos rios e
a terra-firme e reproduzem todo um saber-fazer na convivência com os rios e com os
elementos da floresta, sendo a pesca, a caça, a agricultura e o extrativismo os
principais sistemas produtivos. A sazonalidade dos sistemas hídricos da Bacia do rio
Cuieiras e a rica biodiversidade local influenciam diretamente nas formas de uso dos
recursos das populações locais, que, nesta dinâmica, desenvolveram uma complexa
escala espacial de acesso aos recursos. Observa-se na região do rio Cuieiras, que a
implantação de certos programas governamentais, vem desestabilizando as relações
socioambientais da região e limitando as comunidades locais na dinâmica do uso de
recurso. Neste sentido, o mapeamento participativo mostrou ser uma ferramenta
interessante no processo de empoderamento das comunidades locais e ordenamento
territorial da região.
PALAVRAS-CHAVE
Uso de Recursos Naturais, Mapeamento participativo e Ordenamento Territorial.
INTRODUÇÃO
Os recursos naturais e os espaços vêm sendo utilizados por uma diversidade de
sujeitos e instituições sociais com interesses distintos e muitas vezes conflitantes na
Amazônia (Kohlhep, 2002), evidenciando múltiplas territorialidades, percepções e
formas de apropriação da natureza, bem como níveis diferenciados de
sustentabilidade ecológica (Lima & Pozzobon, 2005). O Estado Nacional se coloca,
neste esquema, como a instituição que busca exercer a soberania perante o território
e, através do ordenamento territorial público, conciliar a apropriação do espaço e dos
recursos entre a diversidade de sujeitos na esteira da sociedade civil e destes com os
interesses estatais.
Faz algumas décadas que o ordenamento territorial está na agenda política da região
norte do Brasil, sendo concebido como um importante instrumento de planejamento do
espaço urbano e rural. O termo foi introduzido durante a década de 60 quando da
necessidade de regularização da situação fundiária e ocupações das fronteiras do
desenvolvimento tem sido motivo para sérios conflitos sociais (Gutberlet, 2002).
Evidencia-se, no atual cenário, que as políticas fundiárias com objetivos sociais,
ambientais ou de desenvolvimento econômico vêm se mostrando divergentes em suas
formulações e contraditórias em suas aplicações, dentre os diversos setores do estado
e destes com as comunidades tradicionais e agricultores familiares. Temos como
exemplos os casos das sobreposições entre as Unidades de Conservação (UCs), e
Terras Indígenas (TIs) e áreas militares (Ricardo, 2004) e a implantação de projetos de
assentamento e de desenvolvimento que não respeitam as demandas
socioambientais.
Este ensaio tem como objetivo principal apresentar o caso do ordenamento territorial
na bacia do rio Cuieiras, situado no mosaico de áreas protegidas do baixo rio negro
evidenciando as formas de territorialização dos povos tradicionais frente aos territórios
estatais, os conflitos e negociações em andamento e suas conseqüências para a
conservação da biodiversidade. Ao mesmo tempo apresentamos as estratégias e
ações da sociedade civil, tendo em vista o re-ordenamento territorial desta região,
utilizando-se de ferramentas participativas como o mapeamento participativo.
METODOLOGIA
Coleta de Dados
A coleta de dados do referido ensaio, se apoiou nas abordagens e técnicas da
pesquisa participativa (Chambers, 1991; Seixas, 2005 e Vieira et al., 2005). A
pesquisa participativa reconhece a existência, o valor e a legitimidade dos diferentes
tipos de conhecimento, em particular o conhecimento “popular”, “local” e “nativo”
(McAllister, 1999). As abordagens e técnicas da pesquisa participativa vêm sendo
muito utilizada para o entendimento, monitoramento e avaliação da gestão dos
recursos naturais, a partir da perspectiva local (Chambers, 1991; McAllister, 1999;
Huizer 1997).
As coletas de dados aconteceram no ano de 2007, sendo complementadas no ano de
2008 e 2009. As ferramentas utilizadas para coleta de dados incluíram entrevistas, o
calendário sazonal e o mapeamento participativo. As entrevistas foram importantes
para traçar um perfil das unidades familiares amostradas, possibilitando um
entendimento e analise dos principais fatores socioeconômicos que influenciam na
dinâmica dessas famílias. O calendário sazonal foi fundamental para ampliar o
conhecimento sobre a variação de utilização dos recursos ao longo do ano,
possibilitando o entendimento dos períodos em que se dedicam a determinadas
atividades, como roçado, época de plantio, as épocas mais favoráveis a caça e pesca
e suas técnicas distintas para cada período desses. O mapeamento foi utilizado para
espacializar às áreas de uso. Com auxilio de mapas hidrológicos e imagens satélites,
os consultores locais foram identificando os nomes dos lagos, igarapés e outros
utilizados. Em seguida, com o uso de adesivos de cores específicas, eles foram
identificando, no mapa hidrológico, as casas e as principais áreas de roça,
extrativismo, de caça e pesca. Na ficha auxiliar eram anotados – pelo observador – as
atividades realizadas e os principais produtos gerados ou extraídos nas áreas
marcadas. O processo de construção de um mapa e as discussões agregadas a ele
forneceu uma base de análise sobre a qualidade ambiental e social da área.
Sistematização dos dados
A segunda etapa diz respeito à organização dos dados. Os dados coletados nos
questionários, anotações de campo e calendário sazonal servirão de base para
construção de um banco de dados. Os dados espaciais, georreferenciados foram
analisados no programa ArcGIS 8.3. Para o mapeamento das casas e das atividades
de pesca foram utilizados pontos, que foram localizados através do reconhecimento de
algum local conhecido na imagem, no caso os rios e igarapés, ou pela visualização na
imagem, como é o caso das casas.
Para mapear a área de agricultura, foram identificadas as áreas cultivadas, levando-se
em consideração toda área da comunidade e o seu entorno, ou seja, os quintais, os
roçados e as capoeiras. Sendo assim, estes polígonos foram desenhados através de
padrões observados na imagem.
A caça e o extrativismo foram mapeados através de polígonos, porém, para tanto
foram criados alguns critérios, que levaram em consideração o conhecimento das
atividades e as informações de comunitários, coletadas em campo. Na atividade de
caça, puderam ser facilmente identificadas duas estratégias. Uma ligada ao
oportunismo, aproveitando a presença constante de roedores e pequenos mamíferos
nos roçados. E outra referente ao uso dos corpos d’água como base para realização
da atividade. Para primeira, que denominamos como “caça de roçado”, foi plotado um
ponto sobre as “áreas cultivadas”, e a partir deste ponto, foi criado um “buffer” circular
de 750m de raio, uma vez que concluímos que esta seria a maior área explorada pelos
comunitários para esta estratégia. Para a segunda, foi utilizada uma linha guia,
cobrindo todos os igarapés que foram identificados para esta atividade. A partir destas
linhas, foram criados buffers de 500m para o interior da terra firme.
A atividade de extrativismo foi georreferenciada a partir de pontos indicados pelos
comunitários, em cima destes foram criados buffers também de 750m, assim como
para “caça de roçado”.
As técnicas foram complementadas nas reuniões, palestras e visitas esporádicas nas
residências dos comunitários. Dados bibliográficos, participação em reuniões e visitas
institucionais serviram para levantar informações sobre as estratégias e políticas de
gestão das instituições que atuam na região. No término de todas as atividades, os
dados foram analisados e repassados para que os participantes confirmassem e
aprovassem os resultados.
AS COMUNIDADES LOCAIS
O rio Cuieiras é um afluente do rio Negro, localizado na margem esquerda, a cerca de
50 Km do da cidade de Manaus. O rio possui uma população de aproximadamente 96
famílias, distribuídos em seis comunidades. Essas famílias organizam-se de forma
nuclear, onde a média de pessoas, por unidade domestica1 é de 3,9. Seus moradores
são, na sua maioria, indígenas da região do Médio e Alto Rio Negro (dos municípios
de Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira) e ribeirinhos, descendentes
principalmente da região nordeste.
Essas populações vivem na região há mais de 60 anos, segundo Semeghini et.al.
(2008) e Cardoso (2008), a agricultura é um dos principais meios de subsistência local,
tendo a mandioca como base alimentar. Os moradores da região manejam a floresta
secundária ou capoeiras de forma a incrementar sua base alimentar e de suprimentos,
podendo inserir espécies madeireiras e frutíferas formando sistemas agroflorestais. A
produção excedente geralmente é demandada e comercializada no próprio local.
As populações habitantes do rio Cuieiras têm a pesca como uma das principais
atividades culturais. Ela representa a melhor fonte de obtenção de proteína nas bacias
de água preta. Entre os apetrechos de pesca utilizados pelas populações da área de
estudo, a zagaia (tridente de metal preso a uma haste) é o mais utilizado. Caniços,
linhas e redes de espera (malhadeiras) também possuem uso freqüente. O uso de
diferentes tecnologias varia de acordo com os conhecimentos dos hábitos alimentares
e dos padrões de mobilidade de cada espécie. A malhadeira é menos seletiva,
capturando ampla diversidade de espécies de tamanhos variados. A zagaia é mais
seletiva, capturando peixes noturnos que descansam a noite no igapó.
A caça é uma das principais atividades realizadas pelas populações ribeirinhas que
habitam os sistemas de águas pretas, e, associada à pesca, constitui fonte vital de
proteína e gordura nesse ambiente (Moran, 1990). A caça em canoas a remo, durante
a noite, é a mais praticada na região do Cuieiras. Nessa forma de captura, o caçador
procura os animais nas margens dos igarapés com lanterna a pilha, geralmente está
atividade está associada à atividade de pesca com zagaia. As espingardas de
cartucho é o apetrecho mais utilizado para a caça na região.
A região também apresenta uma história de intensa exploração madeireira, que visa
atender à demanda da cidade de Manaus (Kurihara & Cardoso, 2009). O extrativismo
madeireiro é realizado por homens adultos e jovens. A atividade se resume a três
formas: através da “madeira serrada” (pranchas, tábuas e compensados); com a
venda de varas (árvores jovens utilizadas como pau-escora na construção civil); e na
retirada de madeira para confecção do “espetinho de churrasco”. A atividade é
manual, sendo o transporte na mata realizado de forma braçal, esses fatores,
economicamente, limitam a área de uso da madeira na região. 1 – Por unidade domestica entende-se a unidade residencial de coabitação de uma ou mais famílias nucleares em comunidade.
Figura 01: Mapeamentos da área de uso dos recursos de cada comunidade do rio Cuieiras
Também são desenvolvidas outras atividades cujo objetivo é a geração de renda. Na
região, destacam-se atividades vinculadas ao turismo, principalmente na confecção do
artesanato e à prestação de serviços temporários (diárias). Os benefícios estatais
constituem uma renda importante para muitas famílias, principalmente pelos
programas bolsa família e aposentadoria. Funcionários públicos vinculados às escolas
e postos de saúde também têm representação significativa. Vale destacar que o
modelo econômico local é de baixa escala produtiva e a produção de excedentes para
comercialização sempre foi pequena e destinou-se principalmente à obtenção de
outros gêneros essenciais à sobrevivência das famílias.
ORDENAMENTO TERRITORIAL NA REGIÃO
Em 1995, foi decretado na região do rio Cuieiras, o Parque Estadual Rio Negro Setor
Sul com uma área de aproximadamente 157.807.00 hectares. O Parque é uma
unidade de conservação de proteção integral, que não permite o uso direto. Na
ocasião o parque foi criado, sem consulta publica e estudos técnicos aprofundados,
tendo seus limites sobrepondo à área de uso de quatro comunidades localizadas no
rio Cuieiras. Apesar de decretado, o parque que foi criado em gleba Federal, nunca
tiveram suas terras arrecadadas ao INCRA – Instituto Nacional da Reforma Agrária.
Dez anos depois, em 2005, O INCRA - Instituto Nacional da Reforma Agrária, não
reconhecendo o Parque Estadual Rio Negro Setor Sul e seus limites, criou na região
um modelo de assentamento da região Norte, o Programa de Desenvolvimento
Sustentável – PDS Apuaú – Anavilhanas com aproximadamente 210.000.00 hectares.
Esse assentamento foi criado sem um trabalho mínimo de organização social, gerando
uma situação de desinformação e conflito entre os assentados. Além disto, o
assentamento da forma com que foi desenhado sobrepôs à área do PERN Setor Sul
em aproximadamente 70.710.00 hectares, aumentando ainda mais o conflito da
região, criando uma situação de contradição entre os objetivos das duas áreas.
Existe ainda na região um pedido feito pelos índios Barés perante a FUNAI para
realização de estudos de identificação e delimitação de Terra Indígena. O objetivo
deste território seria garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas,
onde a disponibilidade de recursos naturais conservados é um fator intrínseco, pois é
determinante para a manutenção das atividades produtivas (agricultura, caça, pesca e
coleta, principalmente).
Deve-se levar em conta que o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas” não se
refere à imemorialidade ou presença histórica, mas sim à forma de ocupar o território,
à relação que se estabelece entre os recursos naturais e os meios de produção, o que
legitima a presença indígena na área. Assim, o território Baré, se decretado,
sobreporia a todos os outros territórios e, caso isso ocorra sem os devidos estudos e
negociações, poderá gerar sérios conflitos sociais entre as comunidades indígenas e
não-indígenas da região.
A falta de diálogo entre as partes governamentais é flagrante e pode ser ilustrada pela
instalação de uma área de treinamento militar da Marinha do Brasil, sobrepondo com a
área de uso das comunidades Barrerinhas e Boa Esperança do rio Cuieiras e também
sobrepondo aproximadamente 14.960.00 hectares da área do Parque. Por fim, existe
também na região uma base avançada da Polícia Federal no rio Cuieiras, sobrepondo
à área do Parque.
Ao inverso do que ocorre em vastas regiões da Amazônia onde o ordenamento
territorial não está sendo devidamente realizado, prevalecendo situações de extremo
conflito social e degradação ecológica, como no caso das grilagens de terras na
fronteira do desmatamento e da cessão de terra pública para empreendimentos de
mineração, ocorre no rio Cuieiras um “excesso” e indefinição no ordenamento estatal.
De fato, cada órgão vem realizando seus próprios programas e agendas de forma
sobreposta ou de encontro aos interesses da população local, submetendo-os a uma
situação de incerteza e de falta de definição permanente quanto ao cenário fundiário
da região (Cardoso et.al. 2008).
As áreas e as sobreposições citadas podem ser vistas na Figura 2. A área de uso dos
recursos (território) por estas comunidades tradicionais é abrangente (cerca de
70.582,00 ha) e se sobrepõe com áreas governamentais. Desta área de uso das
comunidades, aproximadamente 60% encontram-se dentro dos limites do PERN. O
Parque tem 26% de sua área ocupada pela área de uso das comunidades estudadas.
Deste valor, 18% são utilizados para caça, 11% para extrativismo e apenas 1% para
áreas cultivadas.
Figura 02: Sobreposições dos territórios comunitários e estatais.
TERRITÓRIOS SOCIAIS NO BAIXO RIO NEGRO
A territorialidade é definida por Little (2002) como o esforço de um grupo social para
ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela de seu ambiente biofísico,
convertendo-o em território, sendo este, produto histórico de processos socioculturais
e políticos. Para os povos tradicionais da área deste estudo o território é comunitário e
a identificação e delimitação do mesmo são feitas mediante critérios locais que, muitas
vezes, não possuem paralelo com os critérios técnicos ou burocráticos.
Os “coomuns”, ao contrário do que teorizou Hardin (1968), podem ser sistemas
eficientes de gestão dos espaços e dos recursos naturais e a desorganização destes
sistemas ou a sua simples substituição por regimes estatais e/ou privados, onde os
sistemas locais são deslegitimados e o estado e setor privado podem ser ineficientes,
podem gerar falta de participação ou de controle sobre o uso dos espaços e recursos,
além de invasões e o posterior esgotamento (Berkes et. al. 1989; Orstrom, 1990). A
perda de direitos de propriedade dos grupos tradicionais acaba convertendo os
comunitários em usuários ilegais. Isto, juntamente com o crescimento populacional,
mudanças tecnológicas, acesso a mercados e rupturas políticas ampliam a
degradação dos recursos naturais, pois não há mais o sentimento de território
pertencido. Nada mais evidente do que na atual forma de exploração de madeira, de
pesca predatória e turismo desordenado na região.
O termo comunidade foi incorporado de fora – do Estado – e é utilizado no rio Cuieiras
para designar uma unidade sociopolítica, com territorialidade definida através de
formas tradicionais de ocupação e gestão do território. São as famílias, com interesses
e propósitos comuns e relações de compreensão, que formam uma comunidade.
Essas delimitam, se apropriam e manejam coletivamente um território comunitário,
nestes espaços, se articulam áreas de posse dos grupos domésticos (roças, quintais
produtivos e capoeiras) e áreas de usufruto comum (floresta densa e infra-estrutura
comunitária) e estatais (área do parque, reserva da Marinha, escolas e postos de
saúde). A comunidade é representada por um presidente e por um vice-presidente,
considerados como lideranças que são escolhidas por consenso em reuniões
comunitárias. Esses são responsáveis por manter a paz, representarem as
comunidades em fóruns públicos e lutarem pelos direitos e por benefícios econômicos
e sociais.
O território é regido por normas que estão baseadas no respeito e possíveis quebras
normativas, como por exemplo realizar atividades de caça numa capoeira de outrem.
Tais atividades são tratadas de forma explicita, com a liderança ou outro membro
comunitário chamando a atenção do infrator, ou implica, no isolamento social da
pessoa o que pode dificultar o convivio do mesmo em determinado lugar, forçando-o a
se mudar ou a tentar se redimir. As normas também se aplicam a atores externos à
comunidade. Neste caso uma pessoa de determinada comunidade que não possua
vinculos estabelecidos só poderá acessar recursos em outra comunidade mediante
anuência dos membros desta. Caso acesse o território sem o consentimento de quem
defende o território, um conflito pode se estabelecer. Fica explicito neste exemplo que
existe e persiste uma forma de gestão comunitária e não simplesmente a ausência de
uma política local, e que, por estar baseada em regras, possuiria efeitos no controle do
uso do espaço e dos recursos, contribuindo concientemente para a conservação
ambiental, impedindo – ou até negando – a propalada « tragédia dos comuns ».
Portanto, ao se criar uma figura territorial, como um Parque sem a participação das
comuidade locais, as perspectivas de gestão local dos povos tradicionais são postas
na invisibilidade ou não são compreendidas pelo estado. O que poderá advir disto é
uma quebra sistemática e abrangente de regras e um abandono das
responsabilidades tradicionais sobre o espaço. Desta forma, quem era dono se torna
invasor ou morador, na perspectiva dos órgãos gestores, e injustiçado na visão local.
As comunidade que defendiam territórios e protegiam os recursos naturais, agora os
exploram de forma livre, sem regras locais, seguindo um sentimento de perda de
poder sobre o espaço. O conflito é estabelecido entre o estado e as comuidades.
Paradoxalmente, a criação das Unidades de Conservação e de outros territórios
estatais na área observada reforçaram o sentimento de identidade e engendrou
movimentos. Ë certo também que as mudanças sociais e econômicas também
contribuem para desorganizar a gestão comunitária do território, complexificando ainda
mais o cenário.
É importante salientar que as formas de territorialização dos povos tradicionais são
distintas das empreendidas pelas forças políticas “ocidentais”, estas últimas se
baseiam em limites rígidos embasados em direitos estabelecidos pelo estado, tendo o
controle e a dominação como pressupostos da ocupação e definição de limites
territoriais. Por outro lado as comunidades definem o território de forma dinâmica
tendo bases o contexto das relações sociais, valores morais e as contínuas
negociações entre famílias, sempre baseados em relações de compreensão.
MAPEAMENTO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL
Os mapeamentos subsidiaram processos de mobilização social e negociação entre as
comunidades do rio Cuieiras e o Estado (Cardoso et al. 2008). Em 2009, os dados
foram trabalhados no diagnóstico socioeconômico do Plano de Gestão do Parque,
debatidos com as lideranças e subsidiaram o zoneamento da UC. Em março de 2010,
as comunidades do rio Cuieiras, por meio do FOPEC, acessaram o ministério publico,
buscando apoio do órgão para que seus territórios, identificados nos mapeamentos,
fossem reconhecidos, garantindo a regularização fundiária e o ordenamento territorial
da região. Em agosto de 2010, as comunidades da região, em conjunto com o INCRA,
o órgão ambiental estadual, representantes da sociedade civil e a comissão do meio
ambiente da assembléia legislativa, realizaram uma audiência pública na assembléia
legislativa buscando propor ações conjuntas para o ordenamento territorial da região.
Os mapeamentos serviram de base para subsidiar as ações, reconhecendo as áreas
de usos e direitos das comunidades.
CONCLUSÕES
O mapeamento dos territórios e dos usos dos recursos pode se constituir como uma
poderosa ferramenta para subsidiar o empoderamento local e os processos de
econegociação. Os resultados do mapeamento participativo estão subsidiando o Plano
de Manejo do PERN, a gestão do PDS e as ações para a resolução dos conflitos e
realização do re-ordenamento territorial na região.
Reconhecer os aspectos socioculturais dos povos tradicionais, buscar entendê-los e
respeitá-los como sistemas legítimos de gestão do território e dos recursos naturais,
numa perspectiva de diálogo intercultural e co-gestão, é um passo importante no
ordenamento territorial e no desenvolvimento de projetos de etnodesenvolvimento e
conservação da biodiversidade
REFERENCIAS
BERKES, F., FENNY, D., MCCAY, B.J.; ACHESON, J.M. The benefits of the commons. Nature, n.340, p. 91-93, 1989.
CARDOSO, T.M. Etnoecologia, construção da diversidade agrícola e manejo da dinâmica espaço temporal de roçados indígenas do rio Cuieiras, Amazonas.Dissertação de mestrado (Dept. Ecologia do INPA), 2008.
CARDOSO, T. M., MOSQUEIRA, F., KURIHARA, L. P., SEMEGHINI, M. G. Os povos tradicionais e o ordenamento territorial no baixo rio Negro numa perspectiva da conservação e uso sustentável da biodiversidade in Amstrong, G., Bensusan, N. (org). Da paisagem do manejo ao manejo da paisagem. Brasília: IEB. p. 69 – 86, 2008.
CHAMBERS, R. Shortcut and participatory methohods for gaining social information for projects in Cernea, M. M. Putting people first: Social variables in Rural development. Oxford University Press, p. 515-537, 1991.
GUTBERLET, J. Zoneamento da Amazônia: uma visão crítica. Estudos Avançados, 16 (46). p.157-174, 2002.
HARDIN, G. The tragedy of the commons. Science, 162 (3859), 1968.
HUIZER, G. Participatory action research and people’s participation: Introduction and case studies. Sustainable Development department, FAO, 1997.
KOHNLEP, G. Conflitos de interesse no ordenamento territorial da Amazônia brasileira. Estudos Avançados, 16 (45). p.37-61, 2002.
LIMA, D. & POZZOBON, J. Amazônia socioambiental, sustentabilidade ecológica e diversidade social. Estudos Avançados 19 (54). p.45-76, 2005.
LITTLE, P. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília: Série Antropologia, UNB, 2002.
MCALLISTER, K. Understanding participation: Monitoring and evaluating process, outputs and outcomes. IDRC series. Ottawa: International Development Research Centre, 1999.
MORAN, E. A Ecologia humana das populações da Amazônia. Petrópolis: Editora Vozes, 1990.
OSTROM, E. Governing the commons. Cambride, Cambridge Univ. Press, 1990.
Ricardo, F. (org). Terras indígenas e unidades de conservação no Brasil: O desafio das sobreposições. Instituto Socioambiental. 687pp, 2004.
SEMEGHINI, M.G., CARDOSO, T.M. E KURIHARA, L.P. Diagnóstico Participativo em Comunidades Ribeirinhas do Entorno da Estação Ecológica de Anavilhanas – AM.Série Técnica do Projeto Corredores Ecológicos, 2008
SEIXAS, C. S. Abordagens e técnicas de pesquisa participativa em gestão dos recursos naturais in Vieira, P. F., Berkes, F., Seixas, C. S. Gestão integrada e participativa de recursos naturais. Florianópolis: APED, 2005.
VIEIRA, P. F; BERKES, F.E SEIXAS, C. 2005. Gestão integrada e participativa de recursos naturais: conceitos, métodos e experiências. Florianópolis: Secco/APED. 416 p, 2005.