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4 Linguagem da poesia e linguagem da pintura Um poema e um quadro: em Ses purs ongles..., de Mallarmé, a evocação vaga de um interior burguês do fim do século, com todos os seus móveis, bibelôs e artifícios e, em Rochedos em l’Estaque, de Cézanne, a evidência de uma natureza provençal sem idade que, em sua estranha plenitude e autonomia, parece prescindir de toda presença humana. O cenário noturno e vago do soneto, iluminado pela luz pálida de uma lâmpada, contrasta com a paisagem solar do quadro apontando para o contraste entre dois temperamentos, dois homens cujas formas de vida nada têm em comum. Com efeito, Mallarmé, que era amigo de Huysmans, criador da mais famosa figura literária de um dandy decadente, apaixonado pelo artificial e cheio de desprezo pela natureza 1 , confessava seu gosto pelo interior: “(...) je vague peu, préférant à tout, dans un appartement défendu par la famille, le séjour parmi quelques meubles anciens et chers et la feuille de papier souvent blanche” 2 , ao passo que Cézanne buscava sobretudo um contato íntimo com a natureza e expressava fascinação pela paisagem provençal: “esse velho solo natal, tão vibrante, tão áspero e reverberando a luz que faz piscar as pálpebras e enfeitiça o receptáculo das sensações (...)” 3 . A esses contrastes, entre o artificial e o natural, o fechado e o aberto, acrescenta-se ainda outro, mais forte: o entre as cores. O poema de Mallarmé fora inicialmente escrito para uma coletânea ilustrada por águas-fortes, Sonnets et eaux-fortes. De acordo com a descrição proposta pelo poeta, ele é todo em preto e branco: C’est confesser qu’il est peu ‘plastique’, comme tu me le demandes, mais au moins est-il aussi ‘blanc et noir’ que possible, et il me semble se prêter à une eau-forte pleine de Rêve et de Vide. - Par exemple, une fenêtre nocturne ouverte, les deux volets attachés; une chambre avec personne dedans, malgré l’air stable que présentent les volets attachés, et dans une nuit faite d’absence et d’interrogation, sans meubles, sinon l’ébauche plausible de vagues consoles, un cadre, belliqueux et agonisant, de miroir appendu au fond, 1 Trata-se do personagem de Des Esseintes no romance À Rebours. 2 Citado in. THIBAUDET, op. cit., p. 41. 3 CÉZANNE, Correspondência, op. cit., p. 204.

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4 Linguagem da poesia e linguagem da pintura Umpoemaeumquadro:emSespursongles...,deMallarm,aevocao vaga de um interior burgus do fim do sculo, com todos os seus mveis, bibels eartifciose,emRochedosemlEstaque,deCzanne,aevidnciadeuma natureza provenal sem idade que, em sua estranha plenitude e autonomia, parece prescindirdetodapresenahumana.Ocenrionoturnoevagodosoneto, iluminadopelaluzplidadeumalmpada,contrastacomapaisagemsolardo quadroapontandoparaocontrasteentredoistemperamentos,doishomenscujas formas de vida nada tm em comum. Com efeito, Mallarm, que era amigo de Huysmans, criador da mais famosa figuraliterriadeumdandydecadente,apaixonadopeloartificialecheiode desprezopelanatureza1,confessavaseugostopelointerior:(...)jevaguepeu, prfranttout,dansunappartementdfenduparlafamille,lesjourparmi quelquesmeublesanciensetchersetlafeuilledepapiersouventblanche2,ao passoqueCzannebuscavasobretudoumcontatontimocomanaturezae expressavafascinaopelapaisagemprovenal:essevelhosolonatal,to vibrante, to spero e reverberando a luz que faz piscar as plpebras e enfeitia o receptculo das sensaes (...)3. Aessescontrastes,entreoartificialeonatural,ofechadoeoaberto, acrescenta-se ainda outro, mais forte: o entre as cores. O poema de Mallarm fora inicialmenteescritoparaumacoletneailustradaporguas-fortes,Sonnetset eaux-fortes. De acordo com a descrio proposta pelo poeta, ele todo em preto e branco: Cest confesser quil est peu plastique, comme tu me le demandes, mais au moins est-ilaussiblancetnoirquepossible,etilmesembleseprteruneeau-forte pleine de Rve et de Vide. - Par exemple, une fentre nocturne ouverte, les deux volets attachs; une chambre avec personne dedans, malgr lair stable que prsentent les volets attachs, et dans une nuit faite dabsence et dinterrogation, sans meubles, sinon lbauche plausible de vagues consoles, un cadre, belliqueux et agonisant, de miroir appendu au fond, 1 Trata-se do personagem de Des Esseintes no romance Rebours. 2 Citado in. THIBAUDET, op. cit., p. 41. 3 CZANNE, Correspondncia, op. cit., p. 204. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 106avec sa rflexion, stellaire et incomprhensible, de la grande Ourse, qui relie au ciel ce logis abandonn du monde4. Aparentemente,combasenessareflexo,seriadifcilencontrarumpoema maisdistantedascoresvivazesdeCzannee,emgeral,maisdistanteda tonalidade prpria sua obra. necessrioperguntar-seentoemquesentidoaacepodosilncio inspiradapelasteoriasdoslugaresvazioseelaboradanombitodosestudosda literatura pode ser vlida tambm no mbito de uma reflexo sobre a pintura. Ser possvel falar-se de lugares vazios em um quadro? Essa pergunta torna necessria areflexosobreasafinidadeseasdiferenasexistentesentrealinguagemda poesia e a da pintura.A relao entre pintura e literatura, entre visual e verbal, desde o incio do sculoXXumdostemasmaisrecorrentesnadiscussosobreaarte.Hubert Damisch notou, no sem sarcasmo, que a necessidade ou at a obrigao de uma reflexosobreessarelao,equemelhorseexpressanaindagaoemtorno traduo da pintura em discurso, prpria da nossa poca a tal ponto que se poder tom-la como um topos da cultura: Il est de bon ton, aujourdhui, daller sinterogeant sur les voies et les moyens par lesquelsestcenssoprerlepassagedelapeintureaudiscoursquileprenden charge sinon sur la finalit de ce transfert.Cest mme lun des lieux parmi les pluscommunsdenotrecultureartistiqueetlittraire,untopos(...).Quecette question se donne aujourdhui pour telle, et pour une question laquelle la culture, notre culture, napporterait pas de rponse toute faite, cest encore la culture, notre culture, qui en aura voulu ainsi, et qui nous fait la poser toujours nouveaux frais5. Ainsistnciadadapelanossaculturananecessidadedeumareflexo sobreatraduodapinturaemdiscursoaquicolocadasobumsignonegativo atravsdaevocaodosnovoscustosquecostumamacompanh-la.Umdos motivosparaissosemdvidaainsistncianaunilateralidadedessarelao, freqentementesituadadesdeumaperspectivalogocntrica,ondeoelemento suscetvel de traduo sempre a pintura. No entanto, a relao entre a linguagem verbalealinguagemvisualestlongedeserunilateral,apresentando-se freqentemente,antes,comoumconjuntodetrocasdiversasecomplicadas.Elas 4 MALLARM, Correspondance. Lettres sur la posie., op. cit. p. 392. 5 DAMISCH, Hubert. Fentre jaune cadmium ou les dessous de la peinture. Paris: Seuil, 1984, p. 186. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 107semdvidaimplicamcertoscustos,maslevamtambmadiversosganhos inquestionveis. 4.1 A relao entre a pintura e a poesia na poca de Mallarm e Czanne Oprimeiropassoparaumatentativadecomparaodasduaslinguagens consistirnumbreveolharsobrearelaoentrepinturaepoesianasegunda metadedosculoXIX.Sendoummomentodecriseparaambasaslinguagens, essapocacondensacertosconflitossignificativosparaumaapreensogeraldo problema.Nelatorna-setambmperceptvelquearelaoentreaquelas linguagens no unilateral, implicando, ao contrrio, no surgimento de dilogos e trocasenriquecedores. A segunda metade do sculo XIX, poca em que Mallarm e Czanne criam suas obras, marca um momento de ruptura na histria das relaes entre pintura e poesia,poiscoincidecomatentativadeseparao,naprticaartstica,dasduas linguagens:visualeverbal.IniciadadesdeapocadeRomantismo,essa separao,descritanaintroduodopresenteestudoeporvezesassociadaaum certosilncio,corresponde,napinturaenapoesia,exploraodeseus prprios meios e busca por aquela autonomia que o sculo XX chamar de auto-reflexividade.Naverdade,tantopinturaquantopoesiaprocuramcaminhospara afastar-sedarepresentaoilusionistadarealidade,ligadanarratividadee retrica, em nome das quais, at ento, se empenhavam solidariamente. De fato, desde a Antigidade at meados do sculo XIX, a pintura e a poesia mantiveramrelaespermanentes.ComafamosafrmulaatribudaaSimnides poemapicturaloquens,picturepoemasilense,depois,comaquelaaindamais clebre, de Horcio, ut pictura poesis, a linguagem da pintura e a linguagem da poesiapuseram-senumasituaodecomparaoe,logo,derivalidade,que desembocou no famoso paragone clssico. A aproximao terica entre pintura e poesia, a busca de equivalncias entre ambas, teve como base sobretudo a retrica. NosculoXV,estachegouadesempenharumpapeltoimportantena conceitualizaodapinturaquesepodechegarmesmoaresumiressa PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 108dependncia na frmula ut rhetorica pictura6. E, at a metade do sculo XIX, as amplas descries e figuras retricas da poesia costumavam encontrar paralelo nas figuras alegricas da pintura7.A partir da segunda metade do sculo XIX, a pintura, que depois de sculos deirmandadetorna-seaprincipalvtimadaliteratura8,negajustamentetodo contedoliterrioenarrativo.OprprioCzanneafirmaanecessidadedessa negao, escrevendo que se deve rejeitar o literatismo, que com tanta freqncia levaopintoraseafastardoseuverdadeirocaminhooestudoconcretoda natureza9.Napoesia,porsuavez,noapenaseliminam-seaslongasdescries poticasmastambmaprpriareferencialidadequepassaaserpostaem questo. Um dos mais famosos questionamentos da referecialidade na linguagem potica provm, alis, do prprio Mallarm: Je dis: une fleur! Et, hors de loubli omavoixrelgueaucuncontour,entantquequelquechosedautrequeles calicessus,musicalementselve,idemmeetsuave,labsentedetous bouquets10. Talrejeiodoscontedosnarrativosassocia-se,porsuavez,tentao, carapoca,de,tantoporpartedapoesiaquantodapintura,sebuscaruma aproximaocomrelaomsica.Avalorizaodestaenquantoaartemais afastadadaimitao,maisdiretaesugestiva,perceptvelnofreqenteusode noes oriundas do vocabulrio musical na descrio do fazer potico e pictrico. MallarmeCzanne,queemumdadomomentoexperimentaram,ambos,uma certaadmiraoporWagner,so,comotantosoutros,representativosdetaluso da msica como fonte de inspirao para a reflexo sobre suas respectivas prticas artsticas.Com efeito, por momentos, Mallarm compartilha com outros simbolistas o sonhoidealistadeumapoesiapura, na qual a predominncia da musicalidade da linguagem asseguraria a expresso de smbolos indizveis. No por acaso que na famosafrasecitadaacimaomovimentoemancipatriodaquelaidiaprpriae 6 A frmula aparece no ttulo de um artigo de John R. Spencer sobre Alberti. Cf. SPENCER, John R. Ut Rhetorica Pictura. A Study in Quattrocento Theory of Painting, In. Journal of the Warburg and Courtland Institutes, 15, 1957, n1-2, pp. 26-44. 7 Cf. A respeito da relao entre retrica, literatura e pintura, ver: ARAMBASIN, Nella. Le Parallle Arts et Littrature. In. Revue de littrature compare, n298, avril-juin 2001, pp. 304-309 e LICHTENSTEIN, op. cit. 8 GREENBERG, op. cit., p. 50. 9 CZANNE, Correspondncia, op. cit., p. 246. 10 MALLARM, Posies et autres textes, op. cit., p. 198. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 109suavesejadescritopeloadvrbiomusicalmente.Czanne,porsuavez,na explicitaodeseufazerpictrico,atribuiumlugarcentralnoomusicalde modulao. Esse termo, que significa a passagem de uma tonalidade para outra, utilizado por ele para explicar seu tratamento da cor: Lire la nature, cest la voir souslevoiledelinterprtationpartachescoloressesuccdantselonuneloi dharmonie.Cesgrandesteintessanalysentainsiparlesmodulations11. Abandonandoosprocedimentostradicionaisdamodelaodacorlocalpelo acrscimodetonsqueaclareavamouescureciam,ochiaroscuro,opintor renuncia obteno do efeito de relevo por meio do jogo de semi-tons, preferindo o esquema de modulaes, ou seja, a criao do efeito de relevo pela sucesso de passagens entre cores distintas, sobretudo entre os tons frios e quentes. Apesardaimportnciadadamsicaparasepensarasprticaspoticae pictricadapoca,nodeixadeserverdadequeousodenoesoriundasda msicaconsistefreqentementeemumabusocriativoe,namaioriadoscasos, bastantevago.Seriatambmerradoafirmarquearelaoentreapinturaea linguagem verbal se dissipa em prol de que se devolvam aos meios pictricos sua plena autonomia e pureza. Ao contrrio, a problematizao dos meios plsticos e ocrescenteafastamentodocontedonarrativoporpartedapinturaprovocam, antes, um considervel crescimento da literatura sobre a pintura. Nesse sentido, significativoque,desdeBaudelairequeescreviasobreDelacroix,escritorese poetastenhamdesenvolvidoumaprticacujoalcancemaiordoque normalmente suspeitado. Com efeito, escrever sobre a pintura de seu tempo algo que para eles no se limita sua funo mais bvia, a de fazer a difcil mediao entreopintoreopblicoespantado,mas,defato,talescritatorna-secadavez maisumexercciodevermelhorapintura.Porvezes,elachegamesmoater efeitossobreoprpriofazerdospintores,nonosentidodeumasimples prescrio literria, mas no de um importante enriquecimento. Essacuriosatrocaadquireumgrandedinamismojustamentenapocada luta dos impressionistas contra os hbitos do pblico acomodado com as regras do academismodominante.Vriosescritoresepoetas,taiscomoHuysmans,Zola, Laforgue,Mirbeau,Verhaeren,MaupassanteoprprioMallarm,defendema pinturaimpressionista,contrabalanandoosartigosfreqentementevulgarese 11 DORAN, op. cit., p. 36. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 110simplistasescritosporjornalistasdapocacomariqueza,adiversidadeea qualidade de seus estilos e de suas recepes. E mesmo quando tais recepes nos parecemtateantesecegasqualidadedeobrashojereconhecidasaquia incompreenso da pintura de Czanne por parte do seu amigo e escritor Zola o exemplomaisdramticoelastmdeservistasantesdemaisnadacomouma maneiradesedialogar,atravsdaescrita,comumaexperinciavisualnovae perturbadora. Comessastentativas de lidar, atravs da escrita, com a dificuldade darecepodapintura,produz-seento,noumaseparao,mas,antes,um significativodeslocamentonarelaoentrepinturaelinguagemverbal.Escrever sobreapinturanoapenasseconfundecadavezmaiscomoprprioatode recepodeumquadro,mastambmtalformaespecficaderecepodevolve cada vez mais seu efeito prpria prtica pictrica. 4.2 Dizer a pintura: o curioso caso da obra-prima invisvel de Frenhofer (...)cescouleurs,quelesyeuxtouchent,ellesdemeurentinaccessiblesla nomination,bienquenoussachionsquesanslesmotsmmenondits elles ne pourraient tre lobjet du regard12. Um breve olhar na relao entre a pintura e a poesia na poca de Mallarm e Czannelevaconstataodeumasituaoparadoxal:quantomaisapintura tendeadeixardeserumaimagemlegvelenarrvel,ouseja,aseafastardo discurso,tantomaiselasuscitacomentrios.Tambmosprpriospintoresso cadavezmaisprovocadosafalareescreversobreoseufazer.Czanne,que comentasuaprticacomcertasreticncias,dizarespeitoquelescauseriessur lartsontpresqueinutiles13.Significativaaatenuaoexpressapeloquase, quedefatoabreocaminhoalongasconversascomseusjovensadmiradores: Larguier, Borly, Bernard, Schnerb, Jourdain, Denis, Gasquet... Publicadas, essas quaseinteisconversasconstituem-senumdiscursoterico,que,pormais lacunarecontraditrioqueseja,setornadefatoumacompanhanteassduode todarecepodosquadrosdeCzanne.Poucodepois,paraumKlee,um Kandinsky e para tantos outros, les causeries sur lart tornam-se assumidamente essenciais. 12 MACHOT, Robert. Le message de Paul Czanne. Mayenne: Champ Vallon, 1997, pp. 13-14. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 111Ao mesmo tempo, em meio a essa crescente profuso de discursos em torno pintura, surge o problema, alis tambm pertinente para o presente trabalho, do significadoedalegitimidadedatraduodapinturaemlinguagemverbal.O prpriosurgimentodesseproblemamarcaumarupturaemrelaotradio, pois,desdeaAntigidade,aprticadacfrase,ouseja,daquelesub-gneroda poesiaqueconsistenadescriocriativadeumaobradearte,tentava,ao descrever os quadros, pr-se simplesmente em seu lugar. O que se postulava era, assim,umadescrioque,porseucartervivoeevocativo,fossecapazdefazer apareceraobradescritaperanteosolhosdoespritodoleitor,comoseesta estivesse realmente presente14. Essepostuladoutpicodesubstituiodoquadropelodiscursoqueo descreveencontrou,sobretudoaolongodosculopassado,vriasformasde contestao. As crticas verbalizao da linguagem pictrica e a acusao de que estaconsistia,defato,numaprticareducionista,tiveramcomoalvo,por exemplo,asinterpretaesdecunhoestruturalista,que,comsuapretensode analisaralinguagempictricaemtermoslingsticos,acabaramsendovistas como constituindo uma maneira de se lutar contra o indizvel presente no domnio dovisveleafavordeumaaspiraopossibilidadedetraduoliteralda pintura. Emrespostaaumtalprojetodetraduoliteral,deixaram-se,noentanto, tambmouvirpostulaesdiametralmenteopostas,quedefendiamaradical intraduzibilidadedapintura.Assimporexemplo,umdosdefensoresdocarter indizveldalinguagemvisual,MarcelinPleynet,insistenaimpossibilidadede umatraduoverbaldapintura:Sefalamosdepintura,nofalamosdepintura. Deumalinguagemoutrahnecessariamenteperdadealgumacoisa,dessa algumacoisaquepertenceespecificidade,squalidadesespecficasdecada lngua15. Se, ao falar da pintura, no se fala realmente da pintura, de que se est 13 In.DORAN, op. cit., p. 37. 14 VERDONK, Peter. Painting, poetry, parallelism: ekphrasis, stylistics and cognitive poetics. In: Language and Literature 14, 2005, pp. 231-244. 15PLEYNET,Marcelin.Art etlittrature. Paris:Seuil,1977, p. 280. Aspropostasmaiscticas nessesentido,comoporexemploadeMichaelBaxandall,afirmamnoapenasumaperdana passagem de uma linguagem para outra, mas o carter intransponvel da distncia entre a pintura e alinguagemverbal.Assim,paraBaxandall:Nsnoexplicamosumquadro:explicamos observaes sobre um quadro. Dito de outra forma, somente explicamos um quadro na medida em queoconsideramosluzdeumadescrioouespecificaoverbaldele.(...)aspalavras representammenosoquadroemsidoqueaquiloquesepensadeleapst-lovisto.In. BAXANDALL, op. cit., p. 31. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 112ento falando? Da recepo, que o nosso encontro com o visvel, ou, talvez, da nossa linguagem to caduca e, no entanto, inevitvel? Assumindoqueemtodatraduo, no apenas a da pintura para o discurso, mas tambm na traduo de uma lngua para outra, h, de fato, sempre uma perda, acriticadaverbalizaodapinturaacaba,noentanto,porlegitimaruma interpretaoverbalqueseutilizadeumalinguagemmaisadequadaaoquese buscadescrever,ouseja,emsimesmaartsticaecriativa.Trata-sedese aproximardapinturafalandoumalinguagempotica,tornando-seperanteaela no um mero comentador ou terico mas, antes, um escritor, um artista. Com isso, procura-secorrespondnciasprofundasentreapoticadalinguagemverbalea potica da linguagem pictrica. Essa reivindicao de uma traduo da linguagem pictricanumalinguagempoticapossuitodaumatradio,vistoquejDiderot emseusSalestentavaadequarosestilosdesuaescritavariedadedos pincis16.Asrealizaesmaisexplcitasdessacrticaartsticaremontamao romantismoe,sobretudo,aoSalonde1846deBaudelaire,passandopelascartas de Rilke sobre a pintura de Czanne, e marcando os escritos sobre arte de Roland Barthes.Nessatradio,ocrtico-artistaope-seaocrtico-cientistaereivindica um discurso que funcione como metfora do quadro: Le recentrage du discours sur la subjectivit du descripteur et la mtaphoricit sans frein qui lui imprime son rgime le dportent loin du tableau en tant que rfrent: le discoursnestplusaxprincipalementsurlerfrent;flchisurlui-mme,ilse donnecommecontre-donsymboliqueschangeantladonationdelapeinture dans le tableau17. Tal discurso metafrico sobre a pintura a ela no se sobrepe, mas funciona, antes, como um paralelo, como um contra-dom simblico. A metfora abre um caminhoparaoaprofundamentodaexperinciavisual,constituindo-senuma celebrao das sensaes ticas. O crtico-artista, em vez de falar sobre o quadro, tenta falar com ele. Comparando-se essa fala a uma traduo, deve-se admitir aqui que se trata de uma traduo assumidamente infiel. H nessa forma de traduo inevitavelmenteumaperda,quecorrespondedistnciaprovenienteda 16 DIDEROT, Denis. Salons de 1759-1761-1763. Paris: Flammarion, 1967, p. 104. 17 VOUILLOUX, Bernard. La peinture dans le texte. XVIIIe-XXe sicles. Pris: CNRS Langage, 1994, p. 106. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 113heterogeneidadedasduaslinguagens,distnciaestaqueMichelFoucaultchama, numa bela passagem, de relao infinita: Masarelaodalinguagemcomapinturaumarelaoinfinita.Noquea palavrasejaimperfeitaeesteja,emfacedovisvel,numdficitqueemvose esforaria por recuperar. So irredutveis uma ao outro: por mais que se diga o que se v, o quese v nosealoja jamaisno que se diz, e pormaisque se faa ver o queseestdizendoporimagens,metforas,comparaes,olugarondeestas resplandecem no aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucesses da sintaxe definem18. Essadistnciaincontestvelnodevenoentantoimplicarnuma generalizadadesvalorizaodeastodastentativasdetraduo.Deve-se,ao contrrio, aceitar que esse tipo to particular de traduo que lida com a distncia infinitaentrelinguagemverbalelinguagemdapinturainevitavelmente marcado por aquelas perdas que Umberto Eco, falando sobre a traduo, chama de absolutas: Existem perdas que poderamos definir como absolutas. So os casos em que no possveltraduzire,secasosdogneroacontecem,digamos,nocursodeum romance, o tradutor recorre ultima ratio, a de anexar uma nota de p de pgina e a nota em p da pgina ratifica a sua derrota19. Emanalogiacomessadefiniodeperdaabsoluta,atraduoverbalda pintura corresponde justamente quela parte da traduo marcada pela derrota e que fica registrada nas notas de p de pgina. Essa prtica da derrota possui, no entanto, uma longa e rica histria e, mesmo sem ter em vista sua anlise exaustiva, logopercebe-sequeseupapelnoapenasodeumameradescrio.As tentativas fracassadas de traduo sempre, de algum modo, coincidiram, de fato, comaprpriaelaboraodalinguagemtantodapinturaquantodapoesia.Esse esforodetraduo,porvezesvalorizadocomoummeiodeenriquecimento, porvezesdenunciadocomolimitador,naverdadeestimulou,sobretudoquando conseguiaelevar-seacimadabuscaporumasimpleshierarquia,aexplorao daquiloquenatraduofatalmenteseperdeequeapontaparaosrespectivos limites e possibilidades da linguagem da pintura e da poesia. 18 FOUCAULT, op.cit., p. 25. 19 ECO, Quase a mesma coisa. Experincias de traduo. op. cit., p. 109. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 114Pensaradistnciaentreestasemtermosdeumatraduotoimpossvel quantonecessria,permitefreqentementequeseformuleproblemasrelativos prprialinguagemverbal.Comefeito,todatraduodapinturaleva inevitavelmente no apenas perda de algo do domnio do visual, mas tambm constatao de uma perda em relao prpria linguagem verbal. A incapacidade deseultrapassaradistnciaqueseparaoverbaldovisualevidencia,pois,a prpriaincompletudedaquele.Assim,nocontextomaisgeraldopensamentodo sculoXX,areflexosobreaopacidadedalinguagemfeitaporHeidegger, Merleau-Ponty,Deleuze,LyotardouDerrida,devemmuitoreflexosobrea pintura.EparaelesespecialmenteapinturadeCzannequeseconstituinum lugar de dvida a respeito da relao entre linguagem e pensamento20. Heidegger talvezsejaaquioexemplomaiscurioso,postoquerecorreformapoticapara comentar filosoficamente a pintura de Czanne: Czanne Das nachdenksam Gelassene, das instndig Stille der Gestalt des alten Grtners Vallier, der Unscheinbares pflegte am chemin des Lauves. Im Sptwerk des Malers ist die Zwiefalt von Anwesendem und Anwesenheit einfltig geworden, realisiert und verwunden zugleich, verwandelt in eine geheimnisvolle Identitt. Zeigt sich hier ein Pfad, der in ein Zusammen- gehren des Dichtens und des Denkens fhrt21. 20 Cf. KIEPUSZEWSKI, ukasz. Obrazy Czannea. Midzy spojrzeniem a komentarzem. Gdask: sowo/obraz terytoria, 2004. 21 HEIDEGGER, Martin. Denkerfahrungen. Frankfurt: Klostermann, 1983, p. 163. Uma possvel traduo seria: A serenidade refletida, a ardente quietude da figura do velho jardineiro Vallier, que cultivava o singelo no caminho de Lauves. Na obra tardia do pintor a duplicidade do que presente e da presena torna-se simplicidade, ao mesmo tempo realizada e ferida, transformada numa misteriosa identidade. Mostra-se aqui um caminho, que leva ao co-pertencimento da poesia e do pensamento. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 115Vriospoetaseescritores,continuandoeenriquecendoasprticasde Baudelaire e dos escritores defensores do impressionismo, desde Appollinaire at Bonnefoy,tornaramareflexosobreasrelaesentreopoticoeovisualuma parte constitutiva de sua escrita. Henri Michaux, por exemplo, um dos raros casos depoetaepintornamesmamedida,meditousobreessaquestopormeioda caligrafiaque,comseugestual,desafiaaoposioentrelerever,presentena escritaquedesejafazerocaminhodovisvelaoinvisvel.Hemingway, finalmente, afirmava que tinha apreendido com Czanne como construir paisagens verbais, incorporando-as sua escrita atravs da arte da omisso e da reiterao22. Ospintores,porsuavez,desdeainscriodeletrasnaspinturascubistas, tais como, por exemplo, Un coup de th num quadro de Picasso que brinca com o famoso poema de Mallarm23,questionam freqentemente as fronteiras entre o visveleolegvel.Apartirdosanos70dosculoXIX,elesdialogamcadavez mais com os poetas criando o livro de dilogo24, um espao de encontro entre a escrita e o fato plstico. Mallarm e Manet, Cendrars e Lger, luard e Ernst, so apenasalgunsdosvriospoetasepintoresquedialogaramdessamaneira.No mbitosurrealista,arelaoentrevisualeverbaltorna-seassuntodeforte discusso,chegando-seporvezesasubversestoradicaiscomoadolivroLes Mainslibres,de1937,umacoletneadedesenhosdeManRayilustradospor poemas de Paul luard. Esses so apenas alguns dentre muitos exemplos de como odebruar-sesobrearelaoentreapoesiaeapinturalevouaquese experimentasse que h, em ambas, processos comparveis e que, paradoxalmente, apontam para os limites de cada uma daquelas formas de expresso. Nocontextodessasvigorosastrocasentrepoetasepintores,nodese estranharqueaprimeiraintuiodevriosproblemasdapinturamodernatenha sidorecolhidanoporumtextoterico,masporumaobradefico.Assim,os impassesdodiscursoquefalasobreapintura,edesuamultiplicidade perturbadora,constituemoquepostoemjogonofamosocontodeBalzac,Le Chef-doeuvreinconnu,obraenigmtica,daqualhvariasverses,equedeum contofantstico(1831)tornou-seumcontofilosfico(1837)atchegar, 22 Cf. GAILLARD, Theodore L. Jr. Hemingways Debt to Czanne: New Perspectives. In: Twentieth Century Literature, 45, 1999, pp. 65-78.23 Trata-se do quadro Garrafa, copo e jornal sobre uma mesa Un coup de th. Cf. o comentrio de Francis Frascina em HARRISON, Charles, FRASCINA, Francis, PERRY, Gill. Primitivismo, Cubismo, Abstrao. Comeo do sculo XX. So Paulo: Cosac&Naify, 1998, p. 164. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 116finalmente,formadeumestudofilosfico(1847).Trata-sesemdvidade umadasobrasmaisestudadasecontroversasdeBalzacequeathoje reconhecidacomorefernciaconstantenadiscussosobreaartemoderna.Este pequenoconto,comonotaGeorgesDidi-Huberman,atravessatodaa modernidade25,ehouveatquemodenominassedeocatecismoesttico26. SegundooprprioCzanne,todosospintoresdeveriamrel-lopelomenosuma vez por ano27.Essa relevncia extraordinria atribuda ao pequeno conto de Balzac poderia parecerdesmesuradavistoquehouve,noprpriosculoXIX,tantastentativas aparentementemaisambiciosasdesetrazerasquestesdaarteparaasobrasde fico28.Noentanto,soasquestespresentesnocontodeBalzacquemais apontamparaasdvidasdevriospintores,inclusiveparaasdeumPicasso, aparentementetosegurodesi,equenoentantoilustrouocontoem1931.No quintocaptulodessetrabalhoserlevantadaaquestodasuaimportnciana reflexosobreaobradeCzanne.Porenquantotrata-seapenasdemostrarque umaoutrafontederiquezadocontoparaareflexosobreapinturaconsisteem problematizartambmasdvidasqueseapresentamaoespectador.Issosed atravs da genial idia de Balzac de fazer do quadro um quadro contado e com isso,detransform-lonumparadoxonodesprovidodeeficcia:odoinvisvel ou, antes, o do falsamente visvel. Todaanarrativaconsisteemumlentoiremdireoobra-prima prometidadesdeottulo.Jeste,noentanto,situa-sesoboregimedeum oxmoro, pois como uma obra-prima, ou seja, reconhecida como fruto da maestria, poderia ser desconhecida? A obra-prima desconhecida de fato tambm uma obra invisvel:elaexisteapenasnotextodeBalzac.Oleitornuncapodetornar-se espectadorpelajustaposiodavisualizaodeumquadrorealsdescries propostas pela narrativa. A obra, o famoso retrato de Catherine Lescault, adquire dessa maneira um carter fortemente fantasmtico, assombrando a imaginao do leitor com uma falsa promessa de visualizao. dessa maneira, alis, que a obra 24 PEYR, Yves. Peinture et posie. Le dialogue par livre. Paris: Gallimard, 2001. 25 DIDI-HUBERMAN, Georges. La Peinture incarne. Paris: Les ditions de Minuit, 1985, p. 13. 26 LOUBRIET, Pierre. Un catchisme esthtique. Le Chef-duvre inconnu de Balzac. Paris: Didier, 1961. 27 In. DORAN, p. 159. 28 Por exemplo os romances Manette Salomon de Jules e Edmond Goncourt e Luvre de mile Zola. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 117sevdotadadeumagrandeeficcia,tornando-seatprotagonistadanarrativa29. Toda a narrativa transforma-se num grande adiamento da visualizao prometida, que tambm reguladora da tenso crescente do conto levada a seu paroxismo na cena final. Apromessadevisualizaodaobra-primamantidaaolongodoconto atravsdodiscursotericoedaapresentaodotalentoincomumdoseuautor Frenhofer. O pintor, apesar de todas as dvidas acumuladas ao longo de dez anos de trabalho, acredita em sua perfeio. Sua descrio hiperblica pois promete a visualizao de um quadro no qual no mais se trata de representar uma criatura, mas da criao propriamente dita: Qui le verrait, croirait apercevoir une femme couche sur un lit de velours, sous des courtines. Prs delle un trpied dor exhale des parfums. Tu serais tent de prendre leglanddescordonsquiretiennentlesrideaux,etiltesembleraitvoirleseinde CatherineLescault,unebellecourtisaneappelelaBelleNoiseuse,rendrele mouvement de sa respiration30. Essadescriotentadoranoentantologocontraditadapeladescriodos doisoutrosespectadores:ospintoresPorbusePoussin.Porbus,eleitorcomele, no consegue ver nada, apenas des couleurs confusment amasses et contenues parunemultitudedelignesbizarresquiformentunemurailledepeinture. Poussinlevaporsuavezoleitoratentarimaginarperceberumpperfeitonum cantodatelaeafirmaquilyaunefemmel-dessous.Areaoimediatade Frenhofernodeixadeconfundiraindamaisoleitoremseupapeldefalso espectadorfrustrado:superandoseudesespero,ovelhomestreafirmaque continua a v-la e que ela maravilhosamente bela. Assim,chegaraveraobra-primaresultaimpossvelparaoleitordoconto de Balzac. Atravs da acumulao dos relatos de Frenhofer, Porbus e Poussin, ela apareceironicamentecomomltiplaedefinitivamenteinvisvel.Avisodequal dentre os personagens a verdadeira descrio do quadro? Qual sua verdadeira traduo?Essasperguntasinquietamoleitoreanunciamosdebates metodolgicos do sculo XX. Para o leitor do conto o que resulta dessa frustrao aevidnciadatensoentreasduaslinguagens:verbalepictrica.Aomesmo 29 Sobre os quadros - protagonistas nos contos fantsticos do sculo XIX cf. SABRY, Randa. Raconter les pouvoirs de la peinture. In. Potique, n121, fevereiro 2000, pp. 93-114. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 118tempo,justamenteatravsdessaimpossibilidadedevisualizaonicaqueLe Chef-doeuvreinconnucolocaemevidnciaaeficciadaineficciadodiscurso sobre a pintura. Afinal, todas as obras-primas so indizveis exatamente da mesma maneira que a obra-prima de Frenhofer invisvel. Essaseriatalvezumalioproporcionadapelastrocasintensasentrea linguagemverbal,esobretudopotica,ealinguagemdapintura.Hojeemdia, ningummaisrealmentepretendeaumasubstituiodoquadropelodiscurso, comoaindaeracasodosSalesdeDiderot.Todaescritaquetentachegarata pinturanopretendedaraver,mas,antespropereveroj-vistodealguma maneira enriquecedora. criture parlant de la peinture, ou de toute vue, cela fait toujoursdeux,deuxvues,notaMichelServire31.Essasvistasmultiplicam-se, acrescentandonotasaopdapginaemarcandoosdiversoscaminhosqueos discursos procuram para ir na direo da pintura. 4.3 Recepo da linguagem da poesia e da linguagem da pintura Umaespciedeconfusodasartesalgoquesempreexistiu,existee existir,constata,descontente,ClementGreenberg,paralogocolocarem questo, alis, essa permanente confuso32. Para pensar a questo das recepes dapoesiaedapinturanoemtermosdealgumaconfusoindesejvelmas, antes, como experincias irredutveis e no entanto comparveis, preciso sempre levaremcontaafortetensoquemarcaadiscussosobrearelaoentreessas duas linguagens. H muito tempo, de fato, pensar essa relao caracteriza-se pelas tendnciascontraditriasquedesembocamtantonaprocuraporequivalncias quanto na denunciao de contrastes. A primeira grande ruptura na tradicional busca por equivalncias de acordo comolemeutpicturapoesisfoiformuladaem1766,porLessingemseu Laocoonte.Lessinginsistenadistinofundamentalentrepoesiaepintura, anloga distino entre tempo e espao, e reivindica a separao radical dos dois domnios: 30 BALZAC, Honor de. Le chef doeuvre inconnu. In. La comdie humaine IX. tudes philosophiques. Vol. 1.. Paris : Gallimard, Bibliothque de la Pliade, 1950, p. 408. 31 SERVIRE, Michel. Le sujet de lart. Paris: LHarmattan, 1997, p. 96. 32 GREENBERG, Clement. Rumo a um mais novo Laocoonte, in. FERREIRA, Glria e COTRIM, Ceclia (org.), op. cit., p. 45. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 119 Voicimonraisonnement:silestvraiquelapeintureemploiepoursesimitations desmoyensoudessignestendusdanslespace,alorsquecelle-ciemploiedes sonsarticulsquisesuccdentdansletemps;silestincontestablequelessignes doiventavoirunerelationnaturelleetsimpleaveclobjetsignifi,dessignes juxtaposs ne peuvent alors exprimer que des objets juxtaposs (...). Donc les corps avec leurs qualits visibles sont les objets de la peinture. Des objets successifs, ou dontlespartiessontsuccessives,sappellentgnriquementdesactions.Doncles actions sont lobjet propre de la posie33. Comessadistinofamosa,Lessinganuncia,semdvida.osdebatesdo sculoXX,sobretudoabuscadaidentidadedecadaarte,apurezaemartee, finalmente,aspropostascrticasemetodolgicasformalistas,queafirmama autoridadedomeioenquantogarantiadeidentidadedecadaumadasartes.Essa filiao alis explicitada por Clement Greenberg, que d a um dos seus textos o eloqente ttulo Rumo a um mais novo Laocoonte34. No mbito formalista, que enfatiza sobretudo a autonomia do meio de cada arte, toda comparao entre elas resultaproblemtica.Sintomticaaesserespeitoacrticadasimplicidadedos esforoscomparativosentreasvriasartesfeitaporRenWellekeAustin Warren: Oartistanoconcebeemtermosmentais gerais,massimemfunodoelemento materialconcreto;eoconcretomeioporqueseexprimetemsuaprpriahistria, amide muito diferente da de qualquer outro meio de expresso. (...) Cada uma das vriasartesartesplsticas,literaturaemsicatemumaevoluoindividual, com diferente cadncia e diferente estrutura interna de elementos35. Osdebatestericosemtornoquestodaspossveiscomparaesentre pinturaepoesiadesembocamnosculoXXnaformulaodanoode linguagemdapintura.Essanoo,tocorriqueirahojeemdia,nodeixade colocarmltiplosproblemasedeconservaralgodaambivalnciadeuma metfora,naqual,deacordocomNelsonGoodman,hdefatotantoresistncia quantoatraodosdoistermos:Possessometafricano,defato,possesso literal;noentanto,apossessoatual,sejaelametafricaouliteral.[...]A 33 LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoon ou des frontires de la peinture et de la posie. Paris: Hermann, 1964, pp. 14-15. 34 In. FERREIRA, COTRIM, op. cit., pp. 45-59. 35 WELLEK, Ren, WARREN, Austin. Literatura e outras artes. In. Teoria da literatura. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1962, pp. 157-170, aqui pp. 162 e 169. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 120metforarequertantoatraoquantoresistncianaverdade,umaatraoque ultrapasse a resistncia36. Nombitodasemiologiaestruturalistadosanos60tentou-serechaara qualquerpreotodaambivalnciae,esquecendoaresistnciaqueexisteentreo termo linguagem e termo pintura, pensar a pintura como uma modalidade da mesma estrutura ou cdigo que a linguagem verbal. A pergunta por caractersticas deumatalestruturarevelou-se,noentanto,constrangedora,poisaevidnciadas diferenasentreessasduaslinguagens,verbalevisual,fazcomquenenhuma buscadeanalogiaspossaescapardescriodessasdivergncias.Esta irredutibilidadeficouevidentejnosanos60,pocadofracassodasemiologia estruturalistaedesuabuscaporumametodologiacapazdepensarasduas linguagensemtermosdeummesmocdigo,comparvelaosistemadalngua saussuriana.Muitorpido,revela-seavriosestruturalistasque,defato,muito difcil aplicar o paradigma lingstico pintura: Podemosfacilmentedescobriroselementosdocampopictrico:ascores(que existemaomesmotemponaturalmentecomocoresde...eculturalmentecomo produtosindustriaisdisponveis),osvalores,emesmoaslinhasouasformas organizadoras, e os temas plsticos [...]. O que caracteriza os elementos que entram natexturadaobra,emprimeirolugar,queelesnosoverdadeiramente significantes: a linguagem das cores pode ser um cdigo, mas a pintura o ignora37. O principal problema consiste na falta evidente, na linguagem da pintura, de umaduplaarticulao,ouseja,resultaimpossveldistinguirnapinturaunidades diferenciais capazes de se opor e combinar. No mximo, poder-se-ia falar, no caso da pintura, e como o faz Umberto Eco, de um cdigo fraco38. Em conseqncia dessafaltaoufraqueza,linguagemverbalelinguagemvisualnopodemser analisadascomosistemasrealmenteisomrficos.Alinguagempictricano, pois,umavariantedalinguagemverbale,portanto,todaprocuradasrelaes entre linguagem verbal e linguagem visual deve, antes, sempre ter como ponto de partidaoestabelecimentodaespecificidadedessesdoisdomnios.mile Benveniste formula, a esse respeito, o princpio da no-redundncia, que exclui a 36 GOODMAN, Nelson. Languages of art. Cambridge: Hackett, 1976, pp. 68-69. 37 DUFRENNE, Mikel. A arte linguagem?. In. Esttica e filosofia. So Paulo: Perspectiva, 2002, pp. 103-149, aqui, p. 125. 38 Cf. ECO, Umberto. A Estrutura ausente. So Paulo: Perspectiva, 1976, pp. 122-126. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 121possibilidadedesinonmiaentresistemassemiticos:Ohomemnodispede vrios sistemas distintos para a MESMA relao de significao39.Seaunificaodaslinguagensvisualeverbaldopontodevistaformal aparececomoproblemtica,nomenosdifcilacomparaodarecepoda pintura e da poesia. Aqui tambm existem diferenas irredutveis. A esse respeito MilanKunderanota,acercadasartes,queporumaportadiferentequecada umadelaschegaaomundo40.Defato,deumcertopontodevista,pinturae poesia aparecem at como caminhos opostos, pois, na leitura de um poema, passa-sedalinguagemverbalaimagens,enquantovendoumquadro,percorre-seum caminhoinverso,odaexperinciavisualparaareflexosobreela,ouseja, linguagem verbal.Nalinhadessecontrasteentrelinguagemvisualelinguagemverbal,Henri Bergson e os pensadores que o seguiram das mais diversas maneiras, estabelecem umahierarquiaentreovisualeoverbal,valorizandoapinturaporseumaior afastamento de todo convencionalismo na comunicao. Nesse sentido, fala-se do carterdiretoouimediatodapintura,formuladoalisjporLeonardodaVinci, quedefendiaapinturacontraapoesiaevocandocomoargumentoprincipalsua maiorproximidadedanatureza41.Essaimediaticidadetorna-separaBergsona garantiademaiorcapacidadedalinguagempictricaderesistirao convencionalismo inevitvel da linguagem verbal: (...) no vemos as coisas mesmas; limitamo-nos, no mais das vezes, a ler etiquetas coladas sobre elas. Essa tendncia, oriunda da necessidade, acentuou-se ainda mais sob a influncia da linguagem. Pois as palavras (com exceo dos nomes prprios) designamgneros.Apalavra,quesanotadacoisaasuafunomaiscomume seuaspectobanal,insinua-seentreelaens,emascarariasuaformaparanossos olhos se essa forma no se dissimulasse j por trs das necessidades que criaram a prpria palavra42. Aessacomparaohierrquicaentrearecepodaslinguagensverbale visual acrescenta-se ainda a diferena entre duas temporalidades, uma que aponta paraodomniodoimediatoeoutraenvolvidanumasriedemediaes 39 BENVENISTE, mile. Problemas de lingstica geral, v. 2, Campinas: Pontes, 1989, p. 54.40 KUNDERA, Milan. A Cortina. So Paulo: Companhia Das Letras, 2006, pp. 60-61. 41 Cf. DA VINCI, Leonardo. Codex Urbinas. In. FARAGO, J. Claire (org.). Leonardo da Vincis Paragone. A Critical Interpretation with a New Edition of the text in the Codex Urbinas. Leiden: Brill, 1992, p.179 e seguinte.42 BERGSON, Henri. O Riso. Ensaio sobre a Significao da Comicidade.So Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 114. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 122perniciosas. A recepo de um quadro assim associada a um olhar imediato, uma percepo direta e global de um todo, enquanto na recepo de um texto destaca-seseucarterlinear,mediadoporumtempodeleituraeportodoum envolvimentopragmticodalinguagemquefazcomque,emvezdeseveras coisas, se leia as etiquetas sobre elas coladas. Sem dvida, como notou Michel Foucault, as linguagens verbal e visual so irredutveis. Ver as duas recepes, a da pintura e a da poesia, sob o signo de um simplescontrastesignificarianoentantocolocarentreparntesestodoaquele grandeericodilogoentreelas,semoqualsuahistriacomcertezateriasido muitodiferente.Nessesentido,todososprotestoscontraasupostaverbalizao logocntricadapintura,quenososenoafirmaesdaprimaziaabsolutado visvelsobreodizvel,remetemadebatesfilosficosacercadaprimaziada experincia,daqualalinguagemtenta(e,namaioriadoscasos,semgrande sucesso)darconta.Emdesacordocomestesprotestos,muitomaisinteressante admitirquefalarouescreversobreumquadroumatodeenriquecimentoda experinciavisual.Noquesepretendaquenessaverbalizaoaexperincia visualseesgote,maseladeveriaperdertodasuadimensonegativaeservista, antes,comoumapossvelfontedequestionamentofrutferoacercadasduas linguagens. Pois falar ou escrever sobre umquadropodesertambmvistocomo um convite ao enriquecimento da prpria linguagem verbal. Almdisso,deumacertamaneira,ousodalinguagemverbalnarecepo dapinturaaparecesimplesmentecomoinevitvel.impossvelretomaraquio grandedebateentreosdefensoresdaprimaziadaexperinciaedomitodoolho inocente, como por exemplo o j evocado Bergson, e os defensores da primazia da linguagemedapercepoinevitavelmentedependentedosprocessoscognitivos, como por exemplo Nelson Goodman43. No entanto, parece bvio que sem o falar sobreosquadrosahistriadapinturaocidental,senoataprpriapintura ocidental,talveznemteriamsidopossveis.Ocomentriodapinturaedeseu lugarnomundodoespritodependedaprosaquedelafala,notaJ.A. Giannotti44. Nesse sentido, o espectador nunca est realmente sozinho na frente de 43 Cf. GOODMAN, Nelson. Langages de lart. Une approche de la thorie des symboles. Paris: Jacqueline Chambon, 1990. 44 Cf. GIANNOTTI, Jos Arthur. O jogo do belo e do feio. So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 10. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 123uma pintura, pois o discurso sobre outros quadros e sobre a arte em geral sempre o acompanha: Unosecreeamenudoasolasconlaobraqueadmira.Y,enelmomentoenque descubro esta obra que me colma, me parece nacer por primeira vez. Pero se trata aqu de ilusiones. Entre la obra y yo, hay siempre une presencia: las otras obras y mi idea del arte45. Assim,nosetratadeconfundiraquialinguagemdapinturacoma linguagem sobre a pintura, mas de admitir que falar sobre ela, tentando traduzir a experinciavisualemlinguagemverbal,fazasuahistria.ComonotaYves Bonnefoy, colocando a aspirao da pintura experincia imediata sob um signo dedesejoenostalgia,ataprpriatentativadeseoporlinguagemverbal constituiapenasumaprovaamaisdequeestaencontra-seinevitavelmente implicada j no trabalho do pintor: Ilnyapasdimmdiatetauxcommencementsdupeintre,etilnyenapas davantagelosarechercheaboutit.Lesdchiffrementsconventionnels,illesa refuss, bien sr, et remplacs, mais il les maintient aussi du seul fait quil cherche lesvaincre,etilnefaitpourfinirquajouterauxintricationsdutravaildusigne sur ltre, doublant la langue commune de celle de son gnie46. Da mesma maneira, ver a pintura, contra o que pretendia Leonardo da Vinci defendendo sua naturalidade, no um gesto natural, mas, antes, cultural. De fato, necessrio aprender a ver a pintura, um processo comparvel aprendizagem da leitura de poemas. Nesse sentido, possvel usar da metfora da leitura quando se trata da recepo de um quadro. Assim, luz da concepo da recepo da pintura e da poesia como prticas culturais,comocertosjogosdelinguagemligadosaumaformadevida especfica47,asaber,atodoumcontextodaculturaocidentaldaqualaarte participa,ocontrasteentreessasduasrecepesencontra-seconsideravelmente enfraquecido.Parece,assim,possvelentenderanoodalinguagempictrica 45 PICON, Gatan. El escritor y su sombra. Buenos Aires: Nueva Visin, 1957, p. 56. 46 BONNEFOY, Ives. Peinture, posie: vertige, paix. In. Le Nuage Rouge. Paris: Mercure de France, 1992, pp. 339-346, aqui p. 343. 47 O sentido do uso da linguagem aqui prximo da noo de uso em teoria de jogos de linguagem de Wittgenstein. Deve-se insistir aqui sobretudo na importncia dada por Wittgenstein noo de forma de vida, ou seja todo um contexto cultural que cria contextos particulares e torna possvel todo tipo de comunicao, tambm a arte. Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaes filosficas. So Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores).PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 124como um uso esttico da linguagem visual, em analogia com a linguagem potica queseriaumusoestticodalinguagemverbal.Ousoesttico,porsuavez,em analogia com a noo de funo potica da linguagem proposta por Jakobson48 e com a noo de recepo ficcional proposta por Stierle49, uma recepo dirigida forma da obra, ou, dito de outra maneira, uma recepo que visa a descoberta de uma certa auto-reflexividade da obra. Nesse tipo de recepo, cujo alvo a forma da obra, o leitor ou o espectador deve deixar de ser apenas um usurio para tornar-se um fruidor. Tantonarecepodapoesiaquantonadapintura,oesforointerpretativo do fruidor remete noo de lugares vazios, que correspondem a silncios, a tudo aquilo que aparece a seus olhos como no-dito ou no-visualizado e que necessita deumabuscaporpreenchimento.Podeparecersurpreendente,masanoode lugares vazios, formulada no mbito do estudo da literatura, revela-se muito mais literaljustamentenocontextodarecepodapintura,ondedefatosetratade lugares, de partes do espao pictrico.Apossibilidadedoestabelecimentodeumparalelometodolgicoentrea recepodapoesiaeadapinturaevidencia-senapluridimensionalidadedesses dois tipos de recepo. De fato, as trs modalidades da recepo de texto literrio propostasporStierle50,asaber,recepopragmtica,quasepragmticae ficcional, parecem ser vlidas tambm para a descrio da recepo de um quadro. recepopragmticacorrespondeumareceponaqualperde-se completamenteadistinoentreaimagemeacoisa.Existeumhbitode linguagem: o que este desenho? um bezerro, um quadrado, uma flor, nota MichelFoucaultdescrevendoessaetapanaqualaimagemdeixaaparecersem equvocoaquiloquerepresenta51.Issoacontecesobretudoquandoaimagem assume a funo puramente instrumental e funcionacomo um substituto da coisa, tal como, por exemplo, uma ilustrao num livro de anatomia. Um exemplo mais prximoemaispatentedecomosetomaimagempelacoisaahojeemdia freqenteprticadeseescolherumamercadoriaatravsdesuafotonainternet. 48 JAKOBSON, Roman. Lingstica e Potica, in. Lingstica e Comunicao. So Paulo: Cultrix, 1995, pp. 118-162.49 Cf. STIERLE, op. cit. 50 Cf. STIERLE, op. cit. 51 FOUCAULT, Michel. Isto no um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 20. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 125Talimagem,confundindo-secomacoisa,orienta-sesempreparaalmdesi mesma e , nesse sentido, centrfuga.A etapa seguinte da recepo, segundo a terminologia de Stierle, a recepo quasepragmtica,jlida,porsuavez,comasobrasdearte,mastendeainda confundir a imagem com a coisa. Stierle nota a esse respeito: Humamaneiradevero quadro,que, incapazdedescobriraimagemnapintura, v no quadro da extrapictoricidade ilusria, que, em verdade, no passa da imagem efetivadoreceptor,aunificarossignosdoquadroemesteretiposdapercepo. Aindaaquiaprpriapinturapodecontarcomaforacentrfugadailusoquea ultrapassa e ser assim apenas uma base para o salto na iluso autoprovocada, o que, como no texto banal, exige o emprego de poucos meios tcnicos52. Umbomexemplodapinturaproduzidaexpressamenteparatalrecepo, que procura sempre e apenas a iluso extra-pictrica, funciona de acordo com os esteretipos da percepo e perde, com isso, toda a eficcia de uma linguagem da arte, a pintura acadmica do sculo XIX, pintura pompier, a qual a gerao de Czanneopunha-secomtantaveemncia.significativoqueseuscrticosda pocadenominavam-nademaneiradepreciativadeimagensdecartespara luvasoudecromosdecaixasdebalas53oudemivresphotographiesen couleurs54,fazendoatravsdessasdenominaesumaaproximaodapintura acadmicacomasimagensutilitriasdemercadorias.Emobrasacadmicas,a linguagem da pintura chegou de fato a um tal ponto de normatizao que, em sua recepo,elaprpriapareciatransparente,ouseja,nocrivanenhumobstculo paraaviso.Comisso,apinturaacadmica,quesimulavaumapossibilidadede umavisoimediata,ouseja,escondiatodamediaodosmeiosplsticos, estimulava com vigor uma recepo quase pragmtica. A terceira modalidade de recepo, a recepo dirigida fico, segundo a terminologia de Stierle, a mais elevada e no entanto sempre contagiada por uma buscainevitvelderefernciasextra-pictricas,correspondeaousoestticoda linguagemvisual,sendoumarecepoqueseesforaporultrapassarailusoe concentrar-se na auto-referencialidade, ou seja, na autonomia (sempre relativa) da linguagempictrica.Nessamodalidadedarecepo,aquestoextra-pictricao 52 Cf. STIERLE, op.cit., p. 135. 53 Trata-se de Zola e Huysmans citados em LEBENSTEJN, Jean-Claude. tudes czanniennes. Paris: Flammarion, 2006, p. 55. 54 In. DORAN, op. cit., p. 168. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 126que?tendeaperdersuaprepondernciaedeslocar-separaaquestocomo?. Nesse caso, a linguagem da pintura perde muito de sua transparncia e tende a se manifestar antes como um obstculo para a viso do que como uma simples via de acesso. Assim, ela fora o espectador a uma negociao pela viso. ArepartiodastrsmodalidadesderecepopropostaporStierlepossui uminteressanteparalelonateoriadoGrupoque,numimportante desenvolvimentodasteoriassemiticas,properenunciarconcepogerale limitadora do signo visual e ver em seu lugar, antes, um desdobramento: o signo icnicoeosignoplstico55.Oprimeirointeiramentecentradonafuno referencial,enquantoosegundoremeteavaloresplsticos,taiscomoformas, cores, texturas. O mais importante desse desdobramento no entanto que, para os autoresdoTraitdusignevisuel,adiferenaentreosdoissignos,icnicoe plstico,freqentementemuitofluidaedependedamaneiradeolh-los.Esta falta de uma diferena rgida e a importncia da inteno do espectador que, num atodefruiopodepassardoseuaspectoicnicoparaseuaspectoplstico, aproximamateoriadoGrupodamodalidadedarecepoquasepragmtica formulada por Stierle. Com efeito, como no caso de um texto literrio, tambm no caso da pintura as recepes quase pragmtica e ficcional, ou esttica, que oscilam entre o aspecto icnicoeplsticodosignovisual,nosonemexcludentesnemimpermeveis. Todofruidornumprimeiromomento,inevitavelmente,umusurioda linguagememquesto.Assim,arecepoquasepragmticafuncionacomoum passonecessrio,umaetapaquevinculaalinguagemvisualrealidade permitindoadescobertadeimagens,nocasodapinturafigurativa,edecorese formas,nocasodapinturano-figurativa.Apartirdaarecepopodetornar-se maiscomplexa,dirigindo-seaosprpriosvalorespictricosemsuaauto-reflexividade. luz dessa complexidade do prprio ato de recepo, ainda que sem dvida especficas e no redutveis, as duas recepes, a da pintura e a da poesia, deixam deaparecercomoopostas.Torna-se,pois,evidenteque,aocontrriodoque afirmamosdefensoresdocarterno-mediadodapintura,umsimplesato perceptivo imediato no corresponde sua recepo, ou seja, ao seu uso esttico. 55 GROUPE . Trait du signe visuel. Pour une rhtorique de limage. Paris: Seuil, 1992. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 127Dessa maneira no-mediada pode-se ver apenas um objeto chamado quadro ou, no melhordoscasosatingirailusoextra-pictrica,oreconhecimentodeformas, coreseobjetos,quecorresponderecepoquasepragmtica.Arecepoque noseesgotanailusoequepodecoincidircomaexperinciaesttica,ao contrrio,inevitavelmentemediadaportodaumahistoriadapintura,por reminiscnciasdeoutrosquadros,pelosabersobreaformadevidaligadasua criao e sobre a distncia que existe entre ela e o contexto atual. Numapalavra,longedeserumatoimediatoesimples,arecepoesttica deumquadroumprocessocomplexo,quesemdvidaenvolvetodoum percursodeolhar,comseuritmoespecfico,suasidasevoltas,suadistinode partesedetodos.Comisso,arecepodoquadronecessitadetempo.Todasas teoriasdapercepoadmitemhojeemdia,alis,queapercepodaforma,ou seja,porexemploadiscriminaodafiguraedofundooudasrelaesdecores norealmenteseparveldonvelcognitivodareceponoqualsepercebe sempre algo como algo, ou seja, da construo de representao. A recepo de um poema, por sua vez, no corresponde a uma leitura linear. A prpria forma do poema, originalmente baseada no verso, convida a uma leitura de vrias outras relaes, ritmos e analogias. Como o sugere a etimologia latina do versus, que significava o movimento de retorno56, o verso faz com que o poema se dobresobresimesmoequejustamentecoloqueemquestoalinearidadeda linguagem.NoexigiaRimbaudqueselesseseuspoemasliteralmenteeem todosossentidos?MallarmporsuavezousounoUncoupdedsjamais naboliralehasardvriosjogostipogrficosquetornaramaleituralinear simplesmenteimpossvel,investindooprprioespaodapginadeumacerta atividade e tornando as palavras visveis e no apenas legveis. Percebe-se dessa maneira que a similaridade entre a recepo da poesia e da pinturabaseia-sesobretudonanecessidadedeumesforointerpretativo, inevitavelmenteligadoaumanegociaoconceitual.Arecepo,tantodeum quadroquantodeumpoema,consiste,pois,numacolocaonumcontexto,ou, antes,numacriaodeumcontextoparatalquadroetalpoema.Semessa situao, o poema e o quadro permanecem estranhos. A formulao mais explcita 56 Trata-se do movimento que faz virar o arado que chegava ao final do terreno. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 128dessa similaridade entre um quadro e um livro, do fato de que ambos precisam da recepo, provm de um pintor, Henri Matisse: Commelelivresurlerayondunebibliothque,nemontrantquunecourte inscription qui le designe, a besoin, pour livrer ses richesses, de laction du lecteur quidoitleprendreetsisoleravecluipareillementletableauencercldansson cadreetformantavecdautrestableauxunensemblesurlemurdunappartement ou dun muse, ne peut tre pntr sans que lattention du spectateur se concentre spcialement sur lui57. Essacomparaoentreumlivronumaestanteeumquadropenduradona parede enfatiza o fato de que os dois so, em primeiro lugar objetos, entre outros objetosequenecessitamserescolhidospeloleitoreespectador.Estedeve penetr-los com sua ateno, retir-los daquele estado de meros objetos atravs doesforoderecepo.Apenasassimelespodemrealmentesetornarlivroe quadroenquantoexperincias.AcomparaodeMatissetambminteressante em sua formulao: Como o livro (...) de maneira parecida o quadro. Trata-se semdvidadeumareformulaodofamosoutpicturapoesisapartirda perspectiva da inteno interpretativa do fruidor. Quantolinguagemverbal,tantonocasodapoesiaquantonodapintura, ela,emgrandemedida,mediadoradesseprocessodeescolherumlivroouum quadroparaseisolarcomeleecriar-lheumnovocontexto.Emrelao pintura, seu papel no consiste em realmente ultrapassar ou negar a distncia entre o verbal e o visual: Nohvisosempensamento.Masnobastapensarparaver:avisoum pensamentocondicionado;nasceporocasiodaquiloquesucedenocorpo, excitadaapensarporele.(...)Opensamentodavisofuncionasegundoum programaeumaleiqueelenosedeu;noestdepossedesuasprprias premissas;nopensamentotodopresente,todoatual;hemseucentroum mistrio de passividade58. Querer ultrapassar a distncia entre o verbal e o visual significaria, afinal, a negaodaexistncia,naordemdovisual,docorpoquenosrelacionaao inominvel e ao indescritvel, o que. por sua vez, de uma certa maneira, tornaria a pinturaprescindvel.Empintura,oquesedeixaverbalizarencontra-sesempre penetrado pela materialidade da obra, sua corporeidade, que atinge o espectador 57 MATISSE, Henri. crits et propos sur lart. Paris: Hermann, 1972, p. 148. PUC-Rio - Certificao Digital N 0410555/CA 129de uma maneira afetiva e inefvel. Em conseqncia, o discurso sobre a pintura inevitavelmentedescontinuo,fortementemarcadoportenses,precrio.Nesse sentido, a distncia entre o visvel e o dizvel deve ser vista, de acordo com a bela frmuladeMichelFoucault,comoumarelaoinfinita,comoumameta,por definioinatingvel,mas,aomesmotempoimprescindvel,enquantoalvoda recepo. A relao entre o discurso e a pintura , portanto, um ir na direo e no um chegar. 58 MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o esprito, op. cit., p. 288. 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