malandros, folgados e valentes: aproximações entre noel rosa

9
IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa, Wilson Batista e Marcelo D2 Giovanna Dealtry * RESUMO: O presente artigo tem como objetivo pensar a malandragem como uma estratégia de negociação com a sociedade a partir das composições de Noel Rosa, Wilson Batista e Marcelo D2. Para isso, a malandragem aqui não é vista como um traço de época, preso ao quadro histórico e musical do Rio de Janeiro dos anos 30, mas como um discurso de elementos cambiáveis capaz de contribuir no estabelecimento de identidades erigidas a partir da margem. Palavras-chave: Malandragem. Música. Identidade. Ao longo do século XX, as disciplinas de ciências sociais e humanas consolidaram uma visão do malandro atrelada, em grande parte, ao imaginário da nação brasileira, e, em perspectiva mais recente, procurando compreender a diversidade de representações do malandro, em especial no samba dos anos 30 e 40. Estudos paradigmáticos, como o de Antonio Candido e Roberto DaMatta, estabelecem correlações estreitas entre um modelo de nação brasileira construído a partir de um estado autoritário e a prevalência de um discurso individual que se sobrepõe à universalidade da lei. Paralelamente, a sedução do malandro, compreendido não apenas como sujeito histórico mas como representação e narrativa, estabelece na contemporaneidade uma espécie de contrapartida romantizada frente às representações imagéticas e discursivas de facções criminosas. O problema maior dessa perspectiva é vincular a imagem do malandro a um determinismo historicista e linear, perdendo-se a oportunidade de analisar as diversas imagens da malandragem circulantes na música e na literatura como um jogo lúdico e permutacional que escritores e compositores estabelecem não mais com a nação, mas principalmente na relação entre sujeito e território. Como canta Marcelo D2, em “Malandragem”, Antigamente era seda, hoje a camisa é larga A noite começa em qualquer lugar e acaba é na Lapa O que era calça branca agora virou bermudão Mas continua o anel, a pulseira e o cordão. Se a vestimenta, em parte, se modifica, dando lugar às conhecidas modelagens usadas pelos MCs e rappers americanos, o território da Lapa e os acessórios surgem, respectivamente, como vínculos espaciais e índices temporais de uma continuidade malandra. Interessa, portanto, investigar porque certos elementos da malandragem ainda são validados e traduzidos por Marcelo D2 e de que forma, ao se aproximarem da cultura rap carioca, atualizam a figura do malandro. Para tanto, é preciso compreender que a imagem desse personagem sempre foi alvo de controvérsias, desde a sua fixação pelos sambistas cariocas na década de 30. A mais conhecida dessas polêmicas foi, por certo, a que envolveu Noel Rosa e Wilson Batista e terminou por gerar oito composições.

Upload: vukhanh

Post on 09-Feb-2017

235 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011

Malandros, folgados e valentes:

Aproximações entre Noel Rosa, Wilson Batista e Marcelo D2

Giovanna Dealtry*

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo pensar a malandragem como uma estratégia

de negociação com a sociedade a partir das composições de Noel Rosa, Wilson

Batista e Marcelo D2. Para isso, a malandragem aqui não é vista como um

traço de época, preso ao quadro histórico e musical do Rio de Janeiro dos anos

30, mas como um discurso de elementos cambiáveis capaz de contribuir no

estabelecimento de identidades erigidas a partir da margem.

Palavras-chave: Malandragem. Música. Identidade.

Ao longo do século XX, as disciplinas de ciências sociais e humanas consolidaram uma visão do

malandro atrelada, em grande parte, ao imaginário da nação brasileira, e, em perspectiva mais recente,

procurando compreender a diversidade de representações do malandro, em especial no samba dos

anos 30 e 40. Estudos paradigmáticos, como o de Antonio Candido e Roberto DaMatta, estabelecem

correlações estreitas entre um modelo de nação brasileira construído a partir de um estado autoritário

e a prevalência de um discurso individual que se sobrepõe à universalidade da lei.

Paralelamente, a sedução do malandro, compreendido não apenas como sujeito histórico mas

como representação e narrativa, estabelece na contemporaneidade uma espécie de contrapartida

romantizada frente às representações imagéticas e discursivas de facções criminosas.

O problema maior dessa perspectiva é vincular a imagem do malandro a um determinismo

historicista e linear, perdendo-se a oportunidade de analisar as diversas imagens da malandragem

circulantes na música e na literatura como um jogo lúdico e permutacional que escritores e compositores

estabelecem não mais com a nação, mas principalmente na relação entre sujeito e território. Como

canta Marcelo D2, em “Malandragem”,

Antigamente era seda, hoje a camisa é larga

A noite começa em qualquer lugar e acaba é na Lapa

O que era calça branca agora virou bermudão

Mas continua o anel, a pulseira e o cordão.

Se a vestimenta, em parte, se modifi ca, dando lugar às conhecidas modelagens usadas pelos MCs

e rappers americanos, o território da Lapa e os acessórios surgem, respectivamente, como vínculos

espaciais e índices temporais de uma continuidade malandra.

Interessa, portanto, investigar porque certos elementos da malandragem ainda são validados e

traduzidos por Marcelo D2 e de que forma, ao se aproximarem da cultura rap carioca, atualizam a

fi gura do malandro.

Para tanto, é preciso compreender que a imagem desse personagem sempre foi alvo de controvérsias,

desde a sua fi xação pelos sambistas cariocas na década de 30. A mais conhecida dessas polêmicas foi,

por certo, a que envolveu Noel Rosa e Wilson Batista e terminou por gerar oito composições.

Page 2: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 116

Em 1933, Sílvio Caldas grava “Lenço no Pescoço”, de Wilson Batista. A letra apresenta-se como

uma profi ssão de fé na qual encontramos dispostos os principais índices da malandragem, até hoje

estabelecidos como uma forma de reconhecimento do corpo malandro: o chapéu de lado, o orgulho

da vadiagem, a navalha, a ginga, o horror ao trabalho. Elementos que terminam por formar a imagem

de um sambista que, se provocado, pode tornar-se ameaçador. A explicação para tal constituição do

sujeito parece vir na segunda parte do samba: a condição miserável dos trabalhadores e a vocação inata

para a música, aqui equacionada pelo próprio compositor como o termo vadiagem.

Meu chapéu do lado

Tamanco arrastando

Lenço no pescoço

Navalha no bolso

Eu passo gingando

Provoco e desafi o

Eu tenho orgulho

Em ser tão vadio

Sei que eles falam

Deste meu proceder

Eu vejo quem trabalha

Andar no miserê

Eu sou vadio

Porque tive inclinação

Eu me lembro, era criança

Tirava samba-canção

Comigo não

Eu quero ver quem tem razão

E eles tocam

E você canta

E eu não dou

O samba de Wilson Batista traz consigo uma armadilha. Ao mesmo tempo em que identifica

esse sujeito, afirmando sua identidade em meio à massa de anônimos trabalhadores miseráveis,

ele igualmente ecoa a fala da sociedade que via no sambista sinônimo de malandro. É esse o fio

da navalha pelo qual transita o sambista daquela época. Se por um lado, a identificação entre

malandro e samba assegura visibilidade ao sujeito vindo das camadas populares, sofrendo com

a restrita mobilidade social, por outro lado, a visibilidade que esses compositores alcançam os

torna uma ameaça a um Estado que, mesmo antes de Getúlio Vargas chegar ao poder, tinha

a preocupação de controlar o imaginário circulante entre as classes excluídas do processo de

modernização do país.

É dentro desse quadro que cresce a fi gura do sambista malandro, não apenas cantando o

cotidiano deste tipo, mas ligado a um ideário que rejeita o modelo ao qual pobres e negros estariam

destinados. O “orgulho da vadiagem”, compreendido como uma marca de distinção em meio aos

trabalhadores do “misere”, torna-se igualmente armadilha.

Wilson Batista esquece que a afi rmação desse “eu” composto de elementos invariáveis constrói

uma visão fi xada do sambista, ao mesmo tempo em que oferece munição para a perseguição ofi cial.

O anonimato, o disfarce, a capacidade de mobilidade são aqui suprimidos para colocar em primeiro

plano partes de um corpo malandro literalmente enquadrado pela política varguista de controle à

vadiagem e reconhecível à distância.

Page 3: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 117

O controle da malandragem, [...] o controle e a tutela policiais nas festas

populares, como o carnaval, e a exaltação ao cidadão pacato e à família faziam

parte do cotidiano policial. Segundo os conceitos criminais, a sociedade

voltava-se contra o vadio, indivíduo economicamente passivo, por temor a sua

periculosidade. A explicação era direta: quem não dispunha de uma renda para

manter-se estava automaticamente integrado à categoria de vagabundos, porque

existiria uma tendência a satisfazer suas necessidades pelo “ardil criminoso

e da violência”, por isso a vadiagem era um estado socialmente perigoso por

excelência (CANCELLI, 1993, p.33-4).

Nessa perspectiva, “Rapaz folgado” (1933), samba de Noel Rosa, oferece uma visão amplifi cada

do quadro no qual o malandro estava inserido e aponta habilmente caminhos para a anunciada

crônica do fi m de certos aspectos da malandragem nos moldes defendidos por Batista. A estratégia

aqui é destituir o malandro de seus signos externos, elementos imprescindíveis a quem faz do corpo

um sinônimo de identidade,

Deixa de arrastar o seu tamanco

Pois tamanco nunca foi sandália

E tira do pescoço o lenço branco

Joga fora essa navalha

Que te atrapalha

Porém, a partir do sexto verso apresenta-se uma nova relação entre o narrador e o destinatário

Wilson Batista. A composição toma ares de conselho e aponta os perigos para alguém que faz do corpo

visível por todos lugar de identidade unívoca. O narrador, portanto, não se coloca como alguém de

“fora”, mas como um sujeito que, por possuir um foco móvel, percebe o dilema inerente ao par

malandro-sambista por diferentes ângulos. Ou, como afi rma em outro samba: “É na esquina da vida/

Que assisto à descida/De quem subiu.../Faço o confronto entre o malandro pronto/E o otário/Que

nasceu para milionário” (“Esquina da vida” – Noel Rosa e Francisco Queiroz) É desse lugar, dessa

esquina, que Noel irá, de forma privilegiada, observar, e por vezes se intrometer, nessa delicada relação

entre samba, malandragem e sociedade burguesa:

Com o chapéu de lado deste rata

Da polícia quero que escapes

Fazendo samba-canção

Já te dei papel e lápis

Arruma um amor e um violão. (Segunda parte de “Rapaz Folgado”)

Para Carlos Sandroni (2001), “Rapaz Folgado” aponta para os novos rumos do samba naquele

momento. Mais precisamente, a passagem de uma forma de composição informal, ligada aos

espaços de congraçamento, como às rodas de samba nos quintais das tias baianas e as festas, para a

profi ssionalização do compositor, compreendido aqui como produtor de um “bem” passível de ser

negociável. A possível entrada no mundo da legalidade.

No entanto, nada é tão óbvio quando se trata de Noel Rosa. A parte fi nal do samba evoca um

novo elemento desestabilizador. Noel não se direciona mais somente a Wilson Batista, mas ao “povo

civilizado” da cidade do Rio de Janeiro. Aquele mesmo que via na aproximação entre sambista e

malandro sinônimo de perigo. Ao propor a troca da palavra “malandro” por “rapaz folgado”, o cantor

da Vila esclarece não só seu posicionamento diante do malandro apresentado em “Lenço no Pescoço”,

Page 4: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 118

mas joga igualmente com as outras máscaras da malandragem possíveis de serem absorvidas pelo

restante da “boa sociedade”:

Malandro é palavra derrotista

Que só serve para tirar

Todo o valor do sambista

Proponho ao povo civilizado

Não te chamar de malandro

E sim de rapaz folgado

A troca, na verdade, só se opera na superfície do signo linguístico, mantendo intacto seu

signifi cado. Noel, malandramente, percebe que a lábia, o engano provocado pelo discurso – elemento

sintomaticamente esquecido em “Lenço no pescoço”, preferindo o par malandro-valente – opera

em terras brasileiras de maneira muito mais efi caz do que a navalhada ou a constante de um “eu”

transgressor, insistindo em marcar sua identidade – negra, marginal, avessa ao trabalho – através de

um discurso que atrai sobre si a repressão.

Assim é que “Rapaz Folgado” parece-me também uma proposta de uma nova estratégia

baseada no engano, ou, como resume o compositor em “Cem mil réis”: “Não custa nada preencher

formalidade/tamborim pra batucada/soirée pra sociedade.”

A obra de Noel Rosa, indo além da referida polêmica, revela a importância central do malandro

como fi gura emblemática que, somente pela sua presença, abalava a centralidade do discurso unifi cador

da nação cujas palavras de ordem eram trabalho e progresso. No samba “Se a sorte me ajudar” (Noel Rosa

– Germano Augusto), o narrador, postado em uma esquina, percebe claramente que para a sociedade

o problema não era a existência dos “folgados”. Mas de uma malandragem originária das camadas

populares, difícil de ser controlada pelos valores moralizadores do trabalho defendido pelo Estado:

Quem faz seus versos

E no morro faz visagem

Leva sempre desvantagem

Dorme sempre no distrito

Entretanto, quem é rico

E faz samba na Avenida

Quando abusa da bebida

Todo mundo acha bonito.

A “dica” que Noel oferece a Wilson Batista nasce dessa visão da cidade como um território

dividido, cujo lugar reservado ao sambista, quando aceito, é o de reprodutor do discurso ofi cial. É

a proximidade com a dinâmica da cidade que posiciona Noel Rosa em um local privilegiado, não

somente como observador, mas também como sujeito ativo na produção de sentidos e caminhos para

driblar estas fronteiras. Para ser mais bem compreendida, a polêmica com Wilson Batista não deve,

portanto, ser analisada isoladamente no percurso musical de Noel Rosa. Especialmente, deve-se ter

em conta a consciência apresentada por Noel a respeito das diversas representações de malandros

e malandragens surgidas em suas composições. E de como a escolha do “folgado” em detrimento

do “valente” contribui, na visão do poeta da Vila, para a assimilação do samba, e em consequência

do próprio sambista ao restante da sociedade. Sem, contudo, abrir mão de seu arquivo pessoal de

referências culturais e musicais.

É uma relação similar entre “folgado” e “valente” que vemos ser reencenada na

contemporaneidade. Como fala o pesquisador Frederico Coelho, os anos 90 viram nascer uma

Page 5: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 119

série de bandas independentes, como destaque para O Rappa e o Planet Hemp, esta criada por

Marcelo D2 e Skunk, vindas dos subúrbios ou da Zona Norte do Rio de Janeiro. Para Coelho,

essas bandas

Associaram a atitude musical do “faça-você-mesmo” punk com a

malandragem dos morros e subúrbios do Rio. [...] Reproduzindo alguns

dos “mandamentos” presentes nas canções do sambista – e patrono –

Bezerra da Silva, situam seu trabalho na fronteira da cidade, como uma

nova “malandragem” em constante contato com a intelectualidade e a

contravenção (COELHO, 2008, p.112 ).

Se é fácil encontrar ligações entre as composições do Planet Hemp e a malandragem de Bezerra

da Silva – seja na defesa do consumo de maconha, seja na postura provocadora do par malandro-

valente –, também é possível perceber que nos álbuns solo de D2 o foco passa a ser uma investigação

maior do universo do samba em diálogo com a musicalidade do rap, algo denominado pelo cantor

como “em busca da batida perfeita”.

Assim, no rap “1967”, composição autobiográfi ca presente no álbum “Eu tiro é onda” (1998),

vemos D2 relacionar sua história pessoal a uma produção incessante de memórias geradas a partir do

espaço urbano:

1967, o mundo começou

Pelo menos pra mim

E a minha história reduzida

É mais ou menos assim:

Nascido em São Cristóvão

Morador de Madureira

Desde pequeno acostumado a

subir ladeira

[...]

Padre Miguel sempre 10 na bateria

saudoso Mestre André

sempre soube o que queria

futebol na rua F ou no campo de baixo

Você sabe

Meu tio gentil era um esculacho

Andava pelas ruas vestindo o meu bate bola

Se tu passasse em minha frente

Era melhor tu sair fora

Carnaval de rua perigoso e divertido

Mas passei por tudo isso

Entre mortos e feridos.

A letra conjuga memórias de uma infância e adolescência vivida nas ruas dos subúrbios,

costuradas pelas influências musicais estrangeiras – como Afrika Bambatta e James Brown –, e

a permanência de tradições culturais, como o bate-bola. O resultado final, longe da nostalgia

usual de certo tipo de relato memorialista, traz consigo a ameaça a esse sujeito em constante

trânsito pela cidade longe dos cartões postais: “No Andaraí, Grajaú, o bicho pegava mais/

Page 6: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 120

Quando pichava muro/Sempre tinha um correndo atrás.” A pichação, o skate, a presença

constante da música, tornam-se uma maneira de assegurar identidade, ao mesmo tempo em que

a cidade passa a ser incorporada como uma extensão do próprio sujeito. Nessa perspectiva, o

rapper D2 aproxima-se do valente de Wilson Batista ao desafiar seu interlocutor, como aparece

no refrão de “1967”.

Eu quero ver

Se tu é homem mané

Do jeito que eu fui

E que eu sou

Eu quero ver

Se tu é homem mané

Que nem a parteira falou

A mesma ideia de desafi o, própria não só em D2, mas no rap de uma forma geral, está

presente em “Mocinho da Vila” (1934), resposta de Wilson Batista ao samba “Rapaz Folgado”, de

Noel Rosa:

Você que é mocinho da Vila

Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais

Se não quiser perder o nome

Cuide do seu microfone e deixe

Quem é malandro em paz

Injusto é seu comentário

Fala de malandro quem é otário

Mas malandro não se faz

Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz.

O que vemos aqui é a defesa persistente dos signos do malandro valente. Ao contrário do

“aconselhamento” de Noel, vemos a elaboração de um discurso que se vale, principalmente, da ameaça,

ao mesmo tempo em que destitui de Noel o lugar de sambista, para elegê-lo como “mocinho”, um

burguês que restringe o seu cantar às rádios e gravadoras. Na sequência, o alvo da disputa entre os

dois grandes sambistas, será justamente o bairro de Vila Isabel, colocado no mapa do samba por Noel

Rosa, mas que é ironizado por Batista em “Conversa Fiada” (1934), provocação a “Feitiço da Vila”:

“Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer/e conhecer o berço dos folgados/A lua esta noite demorou

tanto/Assassinaram o samba/veio daí meu pranto.”

Esses exemplos nos mostram que as disputas envolvendo o conceito de malandragem são

verdadeiramente complexos, colocando em jogo questões como identidade, corpo e territórios. Por

trás disso, permanece a pergunta: quem dispõe de autoridade para identifi car-se como ou falar pelo

malandro?

No álbum À procura da batida perfeita (2003), um divisor na carreira de Marcelo D2,

identifi camos no músico esse desejo de estabelecer essa continuidade malandra dentro de um

panorama contemporâneo. Na já mencionada “Malandragem”, D2 explica.

Malandro isso

Malandro aquilo

Page 7: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 121

Vê só quem fala

Se fosse um tempo atrás eu carregava é navalha

A vida tá boa, vai

Mas sem lamento

Agora que a gente tá se acertando no argumento

Então, entramos num acordo, eu e minha consciência

Eu vou no sapatinho, ela tem paciência.

Como se vê, a “navalha”, ao mesmo tempo que sugere um vínculo com o malandro histórico

também indica a aproximação do rapper com o “valente”. No entanto, o confronto é aqui substituído

pelo “argumento”, a lábia malandra capaz de convencer o outro, e até a si mesmo, a ir no sapatinho.

É possível notar por todo o álbum “À procura da batida perfeita”, expressão retirada do próprio

Afrika Bambatta, “Looking for the perfect beat”, uma nova trilha seguida por Marcelo D2. Um ensejo

consciente de promover um hibridismo musical entre a batida do rap e a tradição do samba, ao

mesmo tempo em que elege as fi gurações do malandro como elementos articulatórios de uma

contemporaneidade cultural.

Nesse sentido, ao gravar em 2010 Marcelo D2 canta Bezerra da Silva, o rapper-sambista

fi rma-se na direção de estabelecer uma continuidade, ao mesmo tempo em que insere elementos

contemporâneos ao discurso malandro. Se, por um lado, D2 aproxima-se do “valente”, ao regravar

composições como “Malandro rife” (O malandro de primeira/Sempre foi considerado/Em qualquer

bocada que ele chega/Ele é muito bem chegado/E quando tá caído não reclama/Sofre calado e

não chora/Não bota culpa em ninguém/E nem joga conversa fora – Ary do Cavaco/Otacílio da

Mangueira), por outro, não abre mão da negociação, como ilustra a capa do álbum. No lugar dos

revólveres que Bezerra da Silva empunha na capa do álbum Eu não sou santo (1990) (Fig.1), Marcelo

D2 traz apontado dois microfones, numa clara alusão ao poder da fala do sambista. Sem no entanto,

como Bezerra da Silva, dispensar a fi leira de balas atravessadas no peito (Fig.2).

É na fronteira entre o valente e o folgado que Marcelo D2 vem situando sua perfomance e seu

discurso, lembrando-nos do conselho de Noel Rosa a Wilson Batista e assumindo “o papel e o lápis”

como condição essencial à fi guração do malandro em nossos dias:

Qual é? (trecho)

Malandro que sou

Não vou vacilar

Sou o que sou

E ninguém vai mudar

Porque eu tenho um escudo

Contra o vacilão

Papel e caneta

E um mic na mão.

Page 8: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 122

Fig.1 Fig.2

“Malandros”, wises and bullies: dialogues between Noel Rosa, Wilson Batista and

Marcelo D2

ABSTRACT:Th is article intends to investigate the meanings of the “Malandragem” concept,

present in Noel Rosa, Wilson Batista and Marcelo D2. “Malandragem” is not

limited by the historical and musical contexts of the 1930s in Rio de Janeiro;

it is also viewed as a discourse of interchangeable elements which contribute to

construct identities from the margins.

Keywords: Malandragem. Music. Identity.

Nota explicativa

* Professora do Departamento de Comunicação Social, Centro de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica

de Rio de Janeiro, PUC-RJ.

Referências

CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência – A polícia na Era Vargas. Brasília: UNB, 1993. 227 p.

CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem”. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São

Paulo: 1970, p. 67-90. vol.8.

COELHO, Frederico. “Suingue e agitação: apontamentos sobre a música carioca contemporânea”.

In: GIUMBELLI, E; DINIZ, J.; NAVES, S. (orgs) Leituras sobre música popular – Refl exões sobre

sonoridades e cultura. Rio de Janeiro: 7 letras, UFRJ, PUC-Rio, 2008. 415 p.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia dos dilemas brasileiros. Rio

de Janeiro: Rocco, 1978. 350 p.

Page 9: Malandros, folgados e valentes: Aproximações entre Noel Rosa

IPOTESI, JUIZ DE FORA, v.15, n.2, p. 115-123, jul./dez. 2011 123

DEALTRY, Giovanna. No fi o da navalha – malandragem na literatura e no samba. Rio de Janeiro:

Casa da Palavra, 2009. 207 p.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio

de Janeiro: Zahar, 2001. 271 p.

LP Polêmica Noel Rosa/ Wilson Batista. Odeon, 1956.

Coleção Noel Rosa pela primeira vez. Pesquisa e produção Omar Jubran. Vol 5, 6 e 7. Universal

Music/ MinC/ Funarte, 2000.

Marcelo D2. Eu tiro é onda. Sony Music, 1998.

. À procura da batida perfeita. Sony Music, 2003.

. Marcelo D2 canta Bezerra da Silva. EMI-Music, 2010.

Recebido em: 31 de maio de 2011

Aprovado em: julho de 2011