luiz guilherme dos santos - uma revisão crítica da poesía marginal brasileira

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Londrina, Volume 12, p. 217-228, jan. 2014 UMA REVISÃO CRÍTICA DA POESIA MARGINAL BRASILEIRA Luiz Guilherme dos Santos Júnior (UFPA) 1 Resumo: Realiza-se uma possível revisão crítica da Poesia Marginal, colocando em debate como essa produção ficou à margem das editoras e não recebeu grande evidência da crítica literária brasileira. Além disso, pretendemos evidenciar os trabalhos mais significativos sobre a Poesia Marginal e de que forma esses estudos contribuíram para a divulgação da produção literária dos poetas marginais. A presente análise parte das considerações teóricas de Compagnon (2006), Mattoso (2001), Lajolo (2001), Zilberman (1989) e Hollanda (1982). Palavras-chave: poesia marginal; crítica literária; revisão crítica. Poesia Marginal e a “decepção” crítica Inicialmente, pode-se afirmar que a crítica literária é marcada, no decorrer da história da literatura, por grandes controvérsias e mudanças de horizontes. Como exemplo, pode-se recorrer ao “caso” Gregório de Matos Guerra problematizado por Haroldo de Campos em O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira. Antes visto como um poeta “plagiador” dos espanhóis, Gregório de Matos, a partir de novos horizontes da crítica, tornou-se, na visão haroldiana, o primeiro poeta “antropófago” da literatura brasileira, o que redimensionou, de certa forma, na atualidade, a produção poética do autor baiano. O caso de Gregório não é diferente da situação de outros poetas que, por muito tempo, foram interpretados de forma limitada pela crítica. Sousândrade e Pedro Kilkerry são exemplos claros desse processo de quase abandono e análises que se basearam somente na historiografia literária nacional. Nesse sentido, ao se referir à importância da crítica literária, Compagnon (2006: 21) afirma que ela é “um discurso sobre as obras literárias que acentua a 1 Professor de Literatura brasileira do Campus do Marajó-Breves (Universidade Federal do Pará). Mestre em Teoria Literária. E-mail: [email protected] .

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Luiz Guilherme Dos Santos - Uma Revisão Crítica Da Poesía Marginal Brasileira

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  • Londrina, Volume 12, p. 217-228, jan. 2014

    UMA REVISO CRTICA DA POESIA MARGINAL BRASILEIRA

    Luiz Guilherme dos Santos Jnior (UFPA)1

    Resumo: Realiza-se uma possvel reviso crtica da Poesia Marginal, colocando em debate como essa produo ficou margem das editoras e no recebeu grande evidncia da crtica literria brasileira. Alm disso, pretendemos evidenciar os trabalhos mais significativos sobre a Poesia Marginal e de que forma esses estudos contriburam para a divulgao da produo literria dos poetas marginais. A presente anlise parte das consideraes tericas de Compagnon (2006), Mattoso (2001), Lajolo (2001), Zilberman (1989) e Hollanda (1982). Palavras-chave: poesia marginal; crtica literria; reviso crtica.

    Poesia Marginal e a decepo crtica

    Inicialmente, pode-se afirmar que a crtica literria marcada, no decorrer da

    histria da literatura, por grandes controvrsias e mudanas de horizontes. Como exemplo, pode-se recorrer ao caso Gregrio de Matos Guerra problematizado por Haroldo de Campos em O sequestro do Barroco na formao da literatura brasileira. Antes visto como um poeta plagiador dos espanhis, Gregrio de Matos, a partir de novos horizontes da crtica, tornou-se, na viso haroldiana, o primeiro poeta antropfago da literatura brasileira, o que redimensionou, de certa forma, na atualidade, a produo potica do autor baiano. O caso de Gregrio no diferente da situao de outros poetas que, por muito tempo, foram interpretados de forma limitada pela crtica. Sousndrade e Pedro Kilkerry so exemplos claros desse processo de quase abandono e anlises que se basearam somente na historiografia literria nacional.

    Nesse sentido, ao se referir importncia da crtica literria, Compagnon (2006: 21) afirma que ela um discurso sobre as obras literrias que acentua a

    1 Professor de Literatura brasileira do Campus do Maraj-Breves (Universidade Federal do Par). Mestre em Teoria Literria. E-mail: [email protected].

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    experincia de leitura, que descreve, interpreta, avalia o efeito que as obras exercem sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores no necessariamente cultos nem profissionais. Por outro lado, nem sempre a interpretao das produes literrias, feita por essa crtica, representa uma palavra definitiva sobre o valor esttico dos textos. Desse modo, a tradio literria est em constante mudana, isto , sendo reinterpretada por leitores em diferentes pocas. Talvez essa mutao possa explicar, em parte, o que aconteceu com os poetas relegados pela crtica, e resgatados pelos irmos Haroldo e Augusto de Campos.

    No tocante recepo crtica da Poesia Marginal da dcada de 70, podemos afirmar que existe uma problemtica central: nota-se que na maioria dos estudos acadmicos que analisou essa produo, fica a impresso de que poucos deles se aprofundaram teoricamente para entender o fenmeno potico da marginlia. Alm disso, pelo fato da Poesia Marginal apresentar uma produo esttica bastante variada, somente alguns aspectos foram analisados pelos estudiosos, deixando certas questes estticas em segundo plano. No entanto, estudos comparatistas sobre a Poesia Marginal foram de grande valia para o incio de uma nova reviso crtica dessa poesia.

    Primeiramente, fica evidente que a Poesia Marginal apresenta particularidades estticas de retomadas contnuas do chamado cnone literrio nacional, a partir de elementos intertextuais que evidenciam o intuito de parodiar e se apropriar constantemente de signos diversos, como, por exemplo, a deglutio de poetas da gerao modernista de 1922 e de outras poticas subsequentes como o Concretismo e o Poema Processo. Nessa esteira literria, outros elementos foram anexados aos poemas, como, por exemplo, propagandas e outros cones, sobretudo da Pop Arte americana, o que demonstra uma sintonia esttica no tocante s diversas mudanas conceituais, lingusticas e visuais que a poesia estava passando naquele momento. Contudo, a proposta esttica da marginlia, ainda encarada como um tipo de poesia que no merece destaque no mbito dos estudos desenvolvidos sobre as manifestaes literrias, mantendo-se, apenas, como ilustrao nos manuais literrios, que registraram esse momento da poesia brasileira como um mero acidente no contexto da dcada de 70, ou a rotulam como uma poesia menor e sem acabamento estrutural e potico.

    Para se entender como a crtica literria traou suas impresses sobre o modo de expresso potica dos autores marginais, apresentam-se alguns estudos que tentam definir uma interpretao sobre os poetas dessa gerao. Na verdade, nos levantamentos bibliogrficos realizados durante a pesquisa sobre o tema, constata-se a presena de lacunas interpretativas que esto ligadas no somente a fatores literrios, mas tambm a fatores histrico-culturais, j que nesse perodo, em que surge a gerao mimegrafo, a ditadura militar dominava o aparelho estatal, censurando a inteligncia brasileira universitria e os prprios crticos de arte. Alm disso, a elitizao do pensamento acadmico firmava-se como um paradigma, em que se admitia muito mais aquilo que estava dentro dos padres do cnone, do que propriamente margeava os muros das academias literrias. Como a Poesia Marginal surge nesse contexto, trazendo muitas vezes algumas crticas cidas sobre o regime ditatorial e sobre a escrita bem formada da gerao de Drummond e Joo Cabral de

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    Melo Neto, delimitou-se a ideia de que era uma poesia somente contestatria e engajada, sem atribuies e contribuies estticas.

    Alm do mais, o horizonte instaurado sobre a produo marginal acabou por situ-la num ambiente que a julgava inferior s produes anteriores, a partir de comparaes com a potica dos modernistas da chamada terceira gerao. Por outro lado, o discurso colonial de dependncia e originalidade ainda pairava sobre as produes literrias, colocando o artista brasileiro em segundo plano em relao ao cnone universal. Haroldo de Campos, baseado na teoria da desconstruo de Jacques Derrida, ir se contrapor aos discursos de dependncia cultural e literria, no j referido O Sequestro do Barroco, como uma provocao ao discurso logocntrico de Antonio Candido (1979: 352), quando este afirma que as nossas literaturas latino-americanas (como tambm as da Amrica do Norte) so, basicamente, galhos das metropolitanas.

    Mesmo atualmente, essa viso ainda se mantm nos crculos universitrios, que louvam a paralisia do pensamento crtico inerte e repetitivo, como se a literatura brasileira fosse uma sombra constante da tradio. Dessa maneira, concorda-se com Santiago (1978: 27-28) quando ele afirma que

    a literatura latino-americana de hoje nos prope um texto e ao mesmo tempo abre o campo terico onde preciso se inspirar durante a elaborao do discurso crtico de que ela ser o objeto. O campo terico contradiz os princpios de certa crtica universitria que s se interessa pela parte invisvel do texto, pelas dvidas contradas pelo escritor, ao mesmo tempo que ele rejeita o discurso de uma crtica pseudo-marxista que prega uma prtica primria do texto, observando que sua eficcia seria consequncia de uma leitura fcil. Estes tericos esquecem que a eficcia de uma crtica no pode ser medida pela preguia que ela inspira; pelo contrrio, ela deve descondicionar o leitor, tornar impossvel sua vida no interior da sociedade burguesa e de consumo.

    Iniciando a reviso bibliogrfica, destaca-se, primeiramente, o livro de Pereira

    (1981) intitulado Retrato de poca: poesia marginal anos 70. Nesse estudo, de cunho antropolgico, o autor busca compreender a Poesia Marginal de acordo com o contexto poltico-cultural em que surge essa produo alternativa.

    o fenmeno que eu tinha diante de mim, enquanto objeto emprico, era um fenmeno literrio pelo menos, era assim que estava sendo socialmente definido. No entanto, pelos prprios objetivos da pesquisa, o tratamento dado a este fenmeno no foi literrio. Minha preocupao central era trat-lo enquanto fenmeno cultural num sentido amplo. A literatura me interessava, no enquanto fenmeno especificamente literrio, mas sim enquanto uma determinada faceta do fenmeno cultural (Pereira 1981: 14).

    Com isso, identifica-se que a abordagem do autor no buscou compreender os

    elementos que esto relacionados ao carter potico, ou a forma pela qual os poetas

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    enveredaram pela criao literria. Contudo, sua anlise tem um carter fundador e representa um registro importante no tocante produo literria dos diversos poetas da gerao mimegrafo, ao analisar a poesia marginal como um fenmeno culturalmente influente.

    O segundo trabalho que marcou poca 26 poetas hoje, de Helosa Buarque de Hollanda. Essa antologia potica colocou em evidncia a produo marginal, ao trazer para cena literria autores diversos, com o intuito de demonstrar a luta dos poetas contra a indstria editorial brasileira.

    H uma poesia que desce agora da torre do prestgio literrio e aparece com uma atuao que, restabelecendo o elo entre poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e pblico. Dentro da precariedade de seu alcance, esta poesia chega na rua, opondo-se poltica cultural que sempre dificultou o acesso do pblico ao livro de literatura e ao sistema editorial que barra a veiculao de manifestaes no legitimadas pela crtica oficial (Hollanda 1988: 10).

    A seleo potica contida no livro representa, segundo a autora, a tentativa de

    mostrar o que h de inovao potica na contemporaneidade. No entanto, a autora no deixa de ressaltar a diluio potica e um modismo que atravessa a produo potica marginal, em que, segundo ela, perde-se a qualidade engajada e esttica das obras, nem sempre forjada atravs de uma conscincia artstico-literria. Por outro lado, o livro no apresenta possveis leituras ou anlises literrias, apenas rene poetas marginais e algumas produes de poca, o que no invalida a proposta do livro, mas que no aprofunda um debate sobre o alcance lingustico dessas poesias.

    Outro trabalho importante intitula-se Um modo de Midas - Estudo Sobre Poesia Marginal, de Fernanda Teixeira de Medeiros. Este estudo busca demonstrar um possvel valor esttico da Poesia Marginal, alm de avaliar os estudos que haviam sido apresentados por alguns crticos que se dispuseram, anteriormente, a instaurar reflexes acerca de tal produo. Segundo Medeiros (1998: 59),

    A leitura de muitos dos artigos crticos sobre poesia marginal faz pensar em Cabral como interlocutor imaginrio de alguns dos nossos autores, e a pena a ser infringida aos poetas e sua poesia: lixeratura (Affonso Romano); miserabilidade (Benedito Nunes); viagem egoltrica (Costa Lima); veemente sentimento de desliteralizao (Dantas/Simon); no exatamente literatura, mais intimidade, confisso (Flora Sssekind) uma sentena taxativa, declarando a culpabilidade de no serem como Cabral meu bem, meu mal.

    O que a estudiosa menciona est relacionado recepo da Poesia Marginal em sua prpria poca, mostrando que tais estudiosos se precipitaram em avaliar essa poesia, partindo do modelo de construo cabralina, que tanto primava pelo acabamento esttico, despertando, por parte da crtica, uma averso constante diante da poesia jovem do perodo.

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    Esses mesmos conceitos entram em consonncia com os estudos traados por Glauco Mattoso (1981) em sua obra O que Poesia Marginal, tambm um livro raro em termos de anlise da gerao mimegrafo. Em alguns momentos de seu breve estudo, Mattoso chega a afirmar a existncia de uma falta de perspectiva esttica dos marginais, pois, segundo ele, quem realmente estava informada do passado literrio nacional e universal era a poesia concreta e o poema processo. O que interessante notar, entretanto, o fato de que Mattoso coloca a poesia marginal na continuidade dos movimentos culturais de ruptura ligada revoluo tropicalista, que veio para demolir com a ideia de uma pureza cultural brasileira, misturando, a partir dos preceitos da antropofagia oswaldiana, elementos dspares em relao msica e s letras escritas por Caetano Veloso, Torquato Neto, Gilberto Gil, Tom Z, dentre outros.

    talo Moriconi (1998: 15), importante estudioso da gerao de Silviano Santiago, tambm desenvolveu pesquisas relacionadas Poesia Marginal. Segundo ele,o apego ao corpo a nica coisa que sobra no contexto de ceticismo - e at de cinismo- generalizado entre os poetas e intelectuais mais tpicos dos anos 70. Apesar de sua relevncia no contexto literrio nacional, a tentativa de generalizar o cenrio desta produo, atravs do comportamento desviante, no justifica o que de fato a gerao mimegrafo pretendia, muito menos equivale julg-los por meio de uma postura ortodoxa. Ressalta-se que esse cenrio relembra o desempenho criado pelos poetas durante os episdios de protesto, ou eventos em que eles atiravam suas poesias dos altos dos edifcios, estampavam seus poemas em muros, vendiam seus livros pessoalmente.

    Diante disso, verifica-se que a concepo de fazer uma poesia transgressora no estava apenas restringida ao ideal de permanecer margem por meio da atividade de mimeografar seus livros, mas pretendia realizar uma aproximao com o pblico leitor, ou se contrapor ao momento poltico do Brasil na dcada de 70. Nesse contexto, a Esttica da recepo oportuna para estabelecermos um horizonte de leitura no tocante Poesia Marginal.

    Fundada pelo alemo Hans Robert Jauss, no ano de 1967, a Esttica da recepo coloca a figura do leitor em evidncia. Segundo Zilberman (1989: 17),

    seu objetivo estudar o pblico enquanto fator ativo do processo literrio, j que as mudanas de gosto e preferncias interferem no apenas na circulao, e portanto na fama, dos textos, mas tambm em sua produo. Conforme explica, os criadores por muito tempo sofreram a influncia dos interesses e dos grupos no poder que os sustentavam financeiramente.

    Partindo dessa afirmao da estudiosa brasileira, pode-se reelaborar a crtica em relao Poesia Marginal, instalando, assim, um novo olhar sobre as obras da marginlia da dcada de 70, com recursos poticos desconstrutores como a pardia e a apropriao. Partindo dessa nova crtica de recepo, Tereza Cabaas (2005: 5-6), em seu artigo A poesia marginal brasileira uma experincia da diferena, anota que

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    o grau de indiferenciao que passa a operar entre os extremos arte-vida parece, ento, constituir tanto a base da originalidade destas poticas como o principal motivo de sobressalto para a crtica literria, o que se mostrar ainda mais problemtico naqueles momentos em que se pretende estabelecer um prognstico de suas possveis derivaes e consequncias. As reservas que sobre o assunto ir colocar um dos nomes mais ligados produo potica do momento mostra bem a atmosfera de inadequao que passa a afetar os parmetros tradicionais de apreciao esttica. o que poderia definir como a evidncia de uma crise hermenutica, instante em que os instrumentos do conhecer, sejam esses analticos, interpretativos ou de avaliao, no conseguem mais dar conta plena das maneiras sensveis de uma poca, revelando nisso toda a riqueza da conjuntura, pois que ela se conforma como momento de ecloso de elementos antes inexistentes ou sufocados, trazendo novas exigncias.

    Para a autora, a experincia da diferena instaurada a partir da escrita dos

    jovens poetas estaria ligada crise enfrentada pela Poesia Marginal diante dos paradigmas institudos pela crtica, pois, a linguagem dos poetas no estava de acordo com o padro. Nesse sentido, o cdigo potico dos marginais estava ligado ausncia de embelezamento semntico de suas produes, mesmo que parecesse que eles lanavam mo de poucos recursos estilsticos para sua poesia.

    A diferena, segundo Cabaas, relaciona-se ao que Santiago (1978: 26), baseado nos estudos de Derrida (2002), intitula como entre-lugar e/ou diferena; ou seja, uma escritura que caminha margem dos modelos concebidos pelo cnone. Foi essa tentativa de rompimento por meio do novo que fomentou o surgimento de jovens escritores na busca de experincias poticas, que os levou ao cerne do campo da intertextualidade e suas mltiplas possibilidades de uso. De acordo ainda com Cabaas (2005: 21),

    ser possvel ver no descompromisso com a racionalidade do discurso letrado no a barbarizao da esttica mas uma forma de mostrar como esse discurso impositivo. Na sua ludicidade, gratuidade, zombaria e brincadeira, no a desqualificao da poesia como via para tambm realizar a crtica do seu tempo, mas recursos que lhe permitem implementar a "arte da dissimulao", maneiras ardilosas de enfrentar o poder hegemnico arbitrrio e discriminador e reapropriar-se de certos ndices de autonomia. No uso da gria, no comodismo e desleixo, seno a diversidade lingustica, a convocao da pluralidade que desarticula o discurso homogeneizador e mostra a existncia do outro nas suas diferenas e particularidades. Na pardia e no pastiche, no a canibalizao dos estilos, mas a no-dissoluo das diferenas, o no-apagamento das oposies, o direito do outro se expressar por si.

    Essa forma de chacota potica uma das grandes marcas da poesia

    marginal, capaz de descentralizar os discursos poticos e acadmicos, na tentativa de

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    reativar a pardia e a apropriao no contexto dos anos 70, a partir do momento de censura e ecletismo artstico repleto de misturas estticas e vanguardistas. Nota-se, sem dvida, a influncia marcante dos estudos comparatistas, ou seja, foi necessrio colocar em dilogo produes de momentos diferentes para compreender como a Poesia Marginal retoma a tradio modernista. Mas, como entende Compagnon (1996: 10) que o termo moderno justaposto tradio evoca sobretudo a traio, traio da tradio, mas tambm repdio incansvel de si mesmo.

    Assim, pode-se afirmar que os poetas marginais intencionaram reatualizar a tcnica oswaldiana da colagem pardica e, ao mesmo tempo, aproximar a poesia do cotidiano, que foi uma das bases primordiais da poesia modernista de 1922. Nessa retomada de rastros do modernismo da primeira gerao, a gerao de 70 provoca uma ruptura com a tradio literria brasileira, sem, no entanto, negar essa possvel influncia. Poeta Marginal em tempos de maturao esttica

    O surgimento da Poesia Marginal foi o resultado de uma maturao esttica que tem sua origem no Modernismo de 22 encabeado por Oswald de Andrade e sua produo contnua de poemas curtos, pardicos e coloquiais, concomitante com a sobrevivncia da anarquia esttica do dadasmo avassalador de Marcel Duchamp. Essa produo potica no teve o apoio das editoras, pois os poetas que na poca se intitulavam marginais se negavam em negociar seus livros para as editoras, tanto pelo motivo da produo independente aliada s novas tecnologias provenientes da revoluo industrial, quanto pela mentalidade arraigada no modelo de produo que ia de encontro ao sistema capitalista. Segundo Mattoso (1981: 20),

    [...] os tericos classificam ou no de marginal em funo de fatores diversos: culturais (os autores assumem postura contestatria ou tematizam a contracultura), comerciais (so desconhecidos do grande pblico, e produzem e vinculam suas obras por conta prpria, com recursos ora precrios, ora artesanais, ora tcnicos, mas sempre fora do mercado editorial), estticos (praticam estilos de linguagem pouco literrios ou dedicam-se ao experimentalismo de vanguarda), ou puramente polticos (abordam temtica francamente engajada e adotam linguagem panfletria).

    Na poca, muitos desses jovens poetas tinham um comportamento rebelde e

    com a inteno de no aderir ao padro poltico e ideolgico que o sistema scio-cultural impunha. Mattoso (1981: 61) cita um grupo de poetas que escreviam poemas com temticas que envolviam sobretudo a poltica, destacando-se, entre eles, Ulisses Tavares, Leila Mccolis, Brulio Tavares e Eduardo Kac.

    Essa ligao da poesia marginal com a poltica libertria acabou colocando a produo da poca muito mais como um grito contra o sistema do que propriamente como o advento de uma nova forma de encarar a criao potica. A consequncia

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    disso foi um descaso da crtica literria do perodo, ainda muito ligada aos ditames do Estruturalismo e do Formalismo.

    Tal fato evidente se for levado em considerao que somente no ano de 1981 surge o primeiro trabalho de flego sobre o tema: Retrato de poca: poesia marginal anos 70, de Carlos Alberto Messeder Pereira. Anos antes, Helosa Buarque de Hollanda lana uma obra antolgica que rene vrios poetas dessa gerao marginal: 26 poetas hoje, obra que serve como primeira grande referncia para professores de literatura e crticos de arte. possvel encontrar um farto material para pesquisa nas revistas e peridicos que circularam nos anos 70, entre elas, a ESCRITA, com depoimentos de autores importantes como Paulo Leminski, Assis Brasil, Affonso Romano de SantAnna e Wlademir Dias-Pino. Em manuais mais concisos, encontram-se estudos menos pretensiosos, como o de Samira Campedelli (Poesia Marginal dos anos 70), uma edio da Literatura Comentada: poesia jovem anos 70; o pequeno livro de Glauco Mattoso (O que Poesia Marginal) e No quero prosa, livro em que o poeta Cacaso (1997) discute os princpios estticos da Poesia Marginal.

    No entanto, diante dessa problemtica, os artistas da dcada de 70 encontraram no mimegrafo outro meio para fabricao de suas obras. Assim, seus livros eram confeccionados e divulgados de forma alternativa. A circulao desses livros comeava, de preferncia, em lugares pblicos, bares, teatros, praas, entre outros ambientes.

    Nota-se no poeta marginal uma constante vontade de estar em contato com seu pblico leitor, da que a linguagem, resultante desta potica, utiliza-se cada vez mais do coloquial e do cotidiano das pessoas. Para aproximar esta poesia de protesto da realidade, alguns poetas utilizam as ruas para estampar e divulgar suas produes. Campedelli (1995: 31) menciona que

    [...] a opo de ser marginal isto , por estar fora dos circuitos comerciais do livro, por circular de mo em mo, por estar pichada nos muros, por estar impressa em folhetos jogados do alto dos edifcios faz dessa poesia um trabalho coloquial e ldico que se volta para a realidade mais imediata.

    Outro fator responsvel pela falta de publicao atravs dos meios editoriais

    diz respeito fiscalizao intensiva dos rgos de censura no perodo da ditadura militar brasileira. Entretanto, note-se que a ideia de uma literatura marginal est presente nessa atitude de no utilizar os meios editoriais para a divulgao de suas poesias. Contudo, a produo marginal, dentro dessa perspectiva, organiza-se como possibilidade de desarticular os discursos do poder que dominavam os anos de chumbo, assim como acabavam negando a elitizao da poesia, ao socializ-la com o leitor.

    Desse modo, pode-se afirmar que a Poesia Marginal tem como um de seus compromissos decisivos concorrer para a abertura de um espao de crtica social, a partir dos livros que circulavam nas ruas e da prpria vivncia dos autores.

    De acordo com Hollanda (1982: 54),

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    essa volta primeira pessoa, a escrita da paixo e do medo enquanto resposta crtica, mostra-se um caminho eficaz no sentido de romper o silncio e a perplexidade que tomaram de assalto a produo cultural no incio da dcada. Assim, o foco da crtica social passa do plano das idias para o interior da vivncia cotidiana sentida na riqueza de sua dimenso poltica. O sentimento da asfixia experimentado no dia-a-dia trabalhada com amor e humor.

    A censura imposta em relao Poesia Marginal um dado importante que

    demonstra como essa produo artstica incomodava os rgos de represso que exerciam uma vigilncia constante no tocante aos produtos advindos dos artistas, sejam msicos, poetas ou pensadores livres.

    J vimos que a poesia da dcada de 70 no apenas se utilizou de uma crtica social para questionar o sistema poltico ditatorial do pas, mas, acima de tudo, recheou sua poesia com fenmenos que vo alm do mbito ideolgico. Dessa maneira, os signos provenientes da linguagem verbal e da linguagem no verbal caminham nos interstcios do aspecto grfico visual da produo dos artistas marginais. Por outro lado, existem crticos que associam a imagem do poeta marginal a um comportamento extravagante ou desarticulado diante do regime militar, esquecendo que estava em jogo nessa produo um trabalho marcante com a palavra influenciado pelos modernistas de 22. Nesse contexto, possvel afirmar que esses jovens escritores estiveram atentos s novas linguagens da tradio potica anterior ao movimento. Essa poesia j se encontrava permeada de novos cdigos lingusticos, ou seja, j estava fundida com a linguagem das ruas, da publicidade, dos jornais e das histrias em quadrinhos. Esse fato explica as particularidades de uma poesia que vai alm do discurso grfico, aportando, assim, naquilo que Marisa Lajolo (2001: 114) mencionou em sua obra Literatura: leitores e leitura.

    A cidade moderna funciona como um gigantesco livro, coletivamente escrito e coletivamente lido. Nela, as mais variadas linguagens e cdigos se cruzam se fecundam mutuamente. A lngua escrita invade a placa com o nome das ruas, os anncios de lojas, os luminosos, os letreiros dos nibus. Outras linguagens enovelam-se nesta: os cdigos e cores de sinais de trnsito, os logotipos. Nessa babel de linguagens, o transeunte da cidade passeia entre signos e smbolos que o advertem: ou me decifras ou te devoro!

    necessrio conceber que o circuito literrio pelo qual esta poesia perpassava

    j era um cenrio em que a prpria Literatura caminhava mergulhada em novos cdigos artsticos. Desse modo, a Poesia Marginal nasce nas reminiscncias revolucionrias instauradas pelas poticas da ps-modernidade. Por tudo isso, no se esperava um declnio dessa poesia, uma vez que sua maneira de compor era apropriar-se de tudo aquilo que estivesse ao seu alcance para possveis reelaboraes estticas.

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    Dentro da perspectiva de fuso e modificao para a qual esses novos poetas estavam se dirigindo, ressaltamos que eles estavam amparados pelas novas criaes artsticas que nasciam no bero da sociedade contempornea. Nessa poca os avanos tecnolgicos caminhavam lado a lado com os processos artsticos, os livros ganhavam novas dimenses e os poemas podiam ser tocados e digitalizados.

    Por meio da computao grfica os poetas foram alm dos trmites do papel. Por isso, no de se estranhar que os jovens poetas da dcada de 70, vidos diante de tanta inovao, ficassem alheios a essas mudanas. O poeta Nicolas Behr, nessa poca, comeou a estampar suas poesias em telhas, alegando que poderia fazer o que lhe desse na telha. Surgem livros artesanais, folhetos, lbuns, grafites em muros.

    Segundo Lajolo (2001: 116), [...] com os recursos tcnicos da indstria grfica e com os recursos financeiros que dispe a indstria do livro, a literatura se derrama por uma incrvel diversidade de formas, livros de capa dura e livros de capa mole, que cabem no bolso ou que precisam de suporte para serem lidos. Objeto que se puxa, que se dobra, que se corta, que se cola, que se arranha, que se vira, que se empurra, que se gira, que se equilibra, que se desmancha, que se remonta, que l de ponta- cabea e de baixo para cima.

    A passionalidade de um sistema ditador no impediu que todos os poetas que

    estavam margem sassem s ruas para atirar poesias do alto dos edifcios; que se confrontassem com as tropas de choque do exrcito; que estampassem suas poesias em muros, na esperana de melhorar o pas. Essa resistncia deixou a cabea de muitos intelectuais confusa, medida que, dia aps dia, este movimento ganhava mais adeptos.

    O que ainda no estava claro era o fato de insistirem numa esttica que embarcava numa outra maneira de fazer poesia. Os marginais se aproveitavam de todo tipo de recurso visual e verbal; nasceram em meio a acontecimentos artsticos que lhes permitiam misturar poesia marginal com poesia concreta, poema-processo e tudo que lhes servisse como instrumento de apropriao. Percebemos que a astcia de deglutir elementos alheios era um dos princpios primordiais da antropofagia. Os poetas marginais foram se apossando de novas linguagens, para, assim, fundarem uma poesia que no era apenas de cunho social, mas herdeira da tradio potica dadasta e oswaldiana. Breves consideraes finais

    Como foi visto no decorrer dessa breve reviso crtica sobre a poesia marginal brasileira, ainda pairam algumas controvrsias sobre o sentido de valor esttico dessa produo, e um embate de opinies que evidenciam a ideia de que ainda sero necessrios outros estudos e abordagens para um maior aprofundamento do tema. Se por um lado a crtica comparativista busca influncias de vanguarda e do modernismo brasileiro na escrita dos poetas da dcada de 70, dando assim uma

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    UMA REVISO CRTICA DA POESIA MARGINAL BRASILEIRA 227

    Londrina, Volume 12, p. 217-228, jan. 2014

    visibilidade ao projeto realizado por essa gerao marginal, outros pontos de vista se direcionam para uma avaliao mais fria, em que diversos aspectos da potica construtivista e formalista se sobrepem ao que a gerao mimegrafo realizou esteticamente, o que tornaria essa poesia carente de um acabamento lingustico e longe dos princpios da literariedade proposta pelo formalismo russo. Apesar desse embate, outros enfoques podero dar essa possvel legitimidade poesia marginal, colocando-a, definitivamente, nos roteiros de estudos sobre a poesia contempornea brasileira. A CRITICAL REVIEW OF THE BRAZILIAN MARGINAL POETRY Abstract: This article presents a possible critical review of Poesia Marginal (Marginal Poetry), putting in debate how this production was on the sidelines of big publishers and did not receive attention from Brazilian literary criticism. Furthermore, we intend to evidence the most significant studies about Poesia Marginal and how these studies have contributed to the dissemination of the literary works from marginal poets. This analysis is based on theories from Compagnon (2006), Mattoso (2001), Lajolo (2001) and Holland (1982). Keywords: marginal poetry; literary criticism; critical review. REFERNCIAS CABAAS, Teresa. A poesia marginal brasileira: uma experincia da diferena (on line). Disponvel em: , acesso em 29 set 2013. CAMPEDELLI, Samira Youssef. Poesia Marginal dos Anos 70. So Paulo: Scipione, 1995. CAMPOS, Haroldo de. O sequestro do Barroco na formao da Literatura Brasileira: o caso Gregrio de Mattos. Salvador: FCJA, 1989. COMPAGNON, Antoine. O demnio da teoria. Traduo: Cleonice P. B. Mouro e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 2006. ________. Os Cinco Paradoxos da Modernidade. Traduo: Cleonice P. B. Mouro et al. Belo Horizonte: UFMG, 1996. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: Amrica Latina em sua Literatura. So Paulo: Perspectiva, 1979.

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    Luiz Guilherme dos Santos Jnior (UFPA)

    UMA REVISO CRTICA DA POESIA MARGINAL BRASILEIRA 228

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    ARTIGO RECEBIDO EM 30/09/2013 E APROVADO EM 16/10/2013