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LIVRO DE ANAIS SCIENTIARUM HISTORIA III PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E DAS TÉCNICAS E EPISTEMOLOGIA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 2010

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LIVRO DE ANAISSCIENTIARUM HISTORIA III

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E DAS TÉCNICAS E EPISTEMOLOGIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Professor Aloisio TeixeiraReitor

Professora Sylvia da Silveira Mello VargasVice-Reitora

Professora Angela UllerPró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa - PR2

Professor Ricardo Silva KubruslyOrganização e Coordenação

Dandara DantasLogotipo

(Com base na ilustração, Dança de Roda - Estudo para o painel “Paz” ONU, 1955 – Portinari)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e PesquisaAv. Pedro Calmon, 550 – Prédio da Reitoria

8º andar – sala 801, Cidade UniversitáriaCEP 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Caixa Postal 68581 – CEP 21941-72Endereço Eletrônico: www.pr2.ufrj.br

FICHA CATALOGRÁFICA

Congresso Scientiarum Historia III (2010: Rio de Janeiro, RJ) Congresso Scientiarum Historia III: 13 a 15 de outubro de 2010, Rio de Janeiro,

Brasil – 2010328 p.: Il.; 28 cm.Anais do Congresso Scientiarum Historia III promovido pelo Programa de Pós-gra-

duação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia-HCTE / Universidade Federal do Rio de Janeiro /Centro de CiênciasMatemáticas e da Natureza.

ISSN 2176-123X

1 – Epistemologia. 2. História das Ciências. 1. Universidade Federal do Rio de Janei-ro. II. Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza. III. Título.

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Presidente do CongressoRicardo Silva Kubrusly

Membros da Comissão CientíficaCarlos Benevenuto Guisard Koehler – UFRJ

Ivan da Costa Marques – UFRJJosé Carlos Oliveira- UFRJ

Mauro Costa da Silva – Colégio Pedro IIMércio Pereira Gomes – UFRJ

Nadja Paraense dos Santos – UFRJRicardo Silva Kubrusly – UFRJ

Teresa Cristina de Carvalho Piva - UFRJ

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SCIENTIARUM HISTORIA IIIAPRESENTAÇÃO

Os trabalhos que ora seguem a esta apresentação representam parte da produção cien-tífica apresentada no Scientiarum História III que, já em sua terceira edição, abre espaço, mais uma vez, para reflexões multi e interdisciplinares estruturadas pelo viés da História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia. Mantendo, na variedade de assuntos pesqui-sados e na multiplicidade de olhares que aparecem nos artigos desses anais, uma tradição pelo respeito às diferenças na busca do rigor científico, o HCTE/UFRJ se vê, aqui, repre-sentado em toda a sua diversidade intelectual.

Com mais esse livro de trabalhos completos, o Scientiarum História se consolida como fonte geradora de um periódico científico que preenche uma lacuna na cena científica bra-sileira. Avança, no difícil equilíbrio entre a velocidade e a reflexão, em um mundo comple-xo, mas histórico, criando, inventado e descobrindo novos caminhos por métodos tradi-cionais e novos métodos por entre as veredas das ciências consolidadas. Vamos aos textos.

Rio de Janeiro, dezembro de 2010

Ricardo Silva Kubrusly

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Sumário

Três palestras Inspiradoras

A Ciência e o Sortilégio de Clio ............................................................................................... 13Carlos A. L. Filgueiras

“Engenheiros brasileiros nas “Grandes Ecoles” francesas no século XIX: um mapeamento em grande escala” ........................................................................................ 23

Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa

Institucionalização da pesquisa e sua inserção social: da antiguidade aos dias de hoje ... 41Ubiratan D’AmbrosioMikhail Leonidovich Gromov

Trabalhos do congresso

Uma História da Telefonia no Rio de Janeiro (1930-1962) ................................................... 51Ana Christina Saraiva Iachan

Rousseau e o Discurso sobre as Ciências e sobre as Artes: o prelúdio de uma visão crítica da centralidade tecnociêntífica .......................................... 57

Ana Paula Bispo da Silva; Cidoval Morais de Sousa; Vitor Ogiboski

O Museu Nacional e a Diffusão da Chimica – a importância do museu nacional na história da ciência do país ...............................................................................................63

Araci Alves Santos (PG); Nadja Paraense dos Santos (PQ)

Espaços de ciência na cidade do Rio de Janeiro na década de 1920 .................................... 69Araci Alves Santos (PG); Nadja Paraense dos Santos (PQ)

Paraíso Terreal – Influência dos livros nas descrições do Mundo Novo ............................ 75Arnaldo Lyrio Barreto

Descolorindo as Estatísticas Oficiais ....................................................................................... 79Arnaldo Lyrio Barreto

O cuidado de enfermagem e os avanços tecnológicos no tratamento de lesões cutâneas: Uma Arte Secular........................................................................................................................ 85

COSTA, Marcio Martins da; COSTA, Nívea Melo de Souza; PIVA, Teresa Cristina de Carvalho.

Neotomismo e ciência moderna: a Revolução Científica na Península Ibérica ................. 91Beatriz Helena Domingues

Pitágoras de Samos: seu mito e sua herança científico – cultural ........................................ 95Carla Regina Gomes

Sintática e semântica à luz de von Neumann, Wittgenstein e Aristóteles......................... 101Cesar Palmieri Martins Barbosa / Jean Felipe de Assis / Ricardo Silva Kubrusly

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Técnicas na Idade Média, de 1150 a 1200. ............................................................................ 105Erica Colares Rocha

Uma Prova de Consistência. ................................................................................................... 109Felipe Sobreira Abrahão

Tecnologias da Imaginação: Mídias, Sensibilidade e Cognição ......................................... 115Francisco B. Araujo (Doutorando do HCTE); Ricardo Kubrusly (Professor do HCTE)

Os critérios usados na escolha e agrupamento das estrelas náuticas ................................ 121Gil Alves Silva

Teria a escola central contribuido para o desenvolvimento da ciência no Brasil? ........... 127Heloi José Fernandes Moreira – doutorando, HCTE/UFRJ

Luiz Raphael Vieira Souto: um centralista enciclopédico ................................................... 133Prof. Heloi José Fernandes Moreira – doutorando – HCTE/UFRJ

Urna eletrônica e voto nulo como elementos da democracia brasileira ........................... 139Ivan da Costa Marques; Paulo Sérgio Mendes

Em Busca do Observatório Perdido ....................................................................................... 145José Adolfo S. de Campos;, Nadja Paraense Santos

Matéria Escura, Epiciclos e Outras Hipóteses Ad-Hoc ........................................................ 153Leandro Lage - doutorando - HCTE/UFRJ; Carlos Benevenuto G. Koehler - professor - HCTE/UFRJ

(In)finito (In)esperado ............................................................................................................ 159Luciane de Paiva Moura; Ricardo Silva Kubrusly

O que é metafísica da ciência? ................................................................................................ 163Marcos Vinicio Guimarães Giusti

O que é metafísica da ciência? ................................................................................................ 167Marcos Vinicio Guimarães Giusti

Das cartas e atas aos e-mails e periódicos on-line ............................................................... 171Maria Fernanda Marques Fernandes

O que é ciência para o jornalismo científico? ....................................................................... 175Maria Fernanda Marques Fernandes

O eterno retorno da incerteza ................................................................................................. 179Maria Inês Accioly; Ricardo Kubrusly

A Comissão Rondon como inspiração .................................................................................. 185Mariah dos Santos Martins

A Inteligência Empresarial e o desenvolvimento tecnológico ............................................ 191Mauricio Marques de Faria

A Contribuição das Ferrovias na Comunicação no Início da República no Brasil ......... 195Mauro Costa da Silva

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O Sonho de Descartes .............................................................................................................. 201Maira Monteiro Fróes

Ontologias em Devir: confluências entre magia e ciência .................................................. 209Nelson Job

A Polêmica - O Fogo Grego .................................................................................................... 215Nelson Lage da Costa

Alguns fatores determinantes da saúde infantil Iorubá da Nigéria ................................... 221Nelson Lage da Costa; Virginia Maria Almeida de Freitas

Nova hipótese sobre a origem dos manuscritos de Paris .................................................... 225Oscar Toshiaki Matsuura

Bernard Palissy: Um Cientista Francês do Século XVI ..................................................... 231Paulo Cesar Strauch

Topologia e Psicanálise. ........................................................................................................... 237Pedro Beranger & Ricardo Kubrusly

O divulgador de um auxílio periódico .................................................................................. 243Patrícia R. C. Barreto,

A Axiomatização de Tarski para a Geometria ...................................................................... 249Rafael Tavares Juliani

Uma contribuição para a História das Instituições Científicas: o Museu Nacional na Exposição Universal de Paris de 1889 ................................................................................... 253

Regina MMC Dantas; Nadja Paraense dos Santos

Revista de Engenharia da segunda metade do século XIX. ................................................ 259Antonio Claudio Gómez de Sousa; Agamenon de Oliveira; José Carlos de Oliveira

Matéria e Movimento na Física de Aristóteles ..................................................................... 263Ricardo Seara Rabenschlag

Os Experimentos de Michelson-Morley-Miller e a Busca por um Vento de Éter ........... 267Roberto Affonso Pimentel Júnior

Manoel Pereira Reis: a trajetória de um astrônomo baiano ................................................ 271Rundsthen Vasques de Nader; Nadja Paraense Santos

História e métodos experimentais em Linguística e Neurociências da Linguagem ........ 279SAMPAIO, Thiago; COSTA, Marília

“Átomos ou Volumes?” – Uma Questão de Preferência ..................................................... 285Tânia O. Camel (PQ); Carlos B. G. Koehler (PQ); Carlos A. L. Filgueiras (PQ)

Mestre Valentim da Fonseca e Silva: um mestre em ligas metálicas.................................. 291Vagner Pereira de Souza; Teresa Cristina de Carvalho Piva

Perspectivas no estudo da consciência humana ................................................................... 297Valeria Portugal

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Criatividade, aleatoriedade e complexidade: a matemática na vida .................................. 301Virginia M F G Chatin - doutora pelo HCTE; Ricardo S Kubrusly - professor do HCTE

A cosmologia africana e a etnomatemática num modelo de saúde ................................... 307Virginia Maria Almeida de Freitas; Ricardo Silva Kubrusly

Espiritismo: uma forma de racionalidade híbrida que inclui uma dimensão metafísica .......313Virginia MFG Chaitin; Jacilene M Viana; Ricardo S Kubrusly

Certeza do Cogito, Incerteza da Matemática? ....................................................................... 319Zulena dos S. Silva

Hume e a Indicação da Teoria Quântica ............................................................................... 323Zulena dos S. Silva; Luiz Pinguelli Rosa

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Três palestras Inspiradoras

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A Ciência e o Sortilégio de ClioCarlos A. L. Filgueiras

Departamento de Química – ICEx – UFMG31.270-901 Belo Horizonte – MG

[email protected]

A história é a mais importante das ciências. Esta frase do físico César Lattes, base-ando-se no pai da mecânica quântica Erwin Schrödinger, é frequentemente citada1 e dá uma medida perfeita do encantamento mágico que a História nos provoca. O sortilégio da musa Clio é universal, pois não há homem sem história, mas ele se revela particularmente agudo entre homens de ciência. Alguns cientistas há, é verdade, que externam desdém pela História, mas estes poderão sofrer a vingança da musa desdenhada. Já ouvi várias vezes al-guém dizer que um cientista pode desconhecer completamente a História e mesmo assim ser agraciado com o Prêmio Nobel em sua ciência. Assim pode ser, mas a vingança de Clio é que ele passará a fazer parte da História da Ciência e constará proeminentemente de seus livros. A História é inescapável.

Se refletirmos que o número de cientistas vivos é maior que a soma de todos os cien-tistas mortos desde os albores do mundo, temos um dos muitos pontos de partida para iniciar um debate sobre a História e a Ciência, suas relações e a necessidade de desvendá--las. Isto mostra como, com o passar do tempo, mais e mais indivíduos se têm dedicado à ciência. Este é um fenômeno social e histórico de primeira grandeza. Se o homem é um ser político, como queria Aristóteles, ele também é um ser histórico, ou historizante, como poderia ter dito Heródoto. Ele não só protagoniza a História, mas tem uma força inata que o leva a registrar seus feitos em sociedade, desde as culturas mais primitivas às mais desenvolvidas.

Isso posto, o que é História da Ciência? E para que serve?Discorrer sobre a História da Ciência e sua utilidade é um tema apaixonante, que dá

margem a discussões englobando várias linhas de discurso, como meus alunos já presen-ciaram inúmeras vezes. O importante, para começar o debate, é deixar claro que Histó-ria da Ciência não é nenhuma das duas, isto é, nem História nem Ciência apenas. É por isso que muitas vezes um excelente cientista ou um igualmente excelente historiador pode meter-se a fazer o que pensa ser História da Ciência e acaba por desembocar num desastre total, se não estiver munido de uma preparação que lhe permita transitar pelas duas áreas, sobretudo se não tiver a necessária sensibilidade para fazer a ponte entre as duas, repleta de sutilezas e armadilhas. Contudo, uma vez dominado o trânsito pela ponte e pelas duas margens, a recompensa intelectual pode ser copiosa e gratificante.

O fundador de nossa disciplina, o belga-americano George Sarton, propôs-se a escre-ver uma História Geral das Ciências, dentro de uma visão corrente nas primeiras décadas do século XX, quando obras de imensa envergadura, enciclopédicas mesmo, foram escritas

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por diferentes autores. Assim surgiu o grande monumento inacabado de Sarton que é An Introduction to the History of Science2. Após várias décadas, e já sentindo o peso dos anos, concluiu Sarton que devia parar. Não obstante, sua obra mestra cobre a História da Ciência da antiguidade ao século XIV, tanto no Ocidente como no Oriente. Por essa época, isto é, nos anos finais de sua vida, foi-lhe perguntado por um estudante de Harvard porque ele não escrevia da mesma forma fascinante como lecionava. Essa observação do estudante levou-o a produzir outra obra em tom diferente, que é A History of Science3, na qual ele narra este episódio no início do prefácio. Um pouco mais além no mesmo livro, Sarton nos dá uma lição de como se deve ensinar. A História da Ciência, diz ele, é um campo imenso que resultaria impossível cobrir por completo com uma centena ou um milhar de aulas e, na medida do possível, preferi tratar uns poucos temas seletos antes de intentar o impossível ...

Para cada tema escolhido, digamos Homero, não é possível estabelecer todos os feitos nem é necessário fazê-lo. Algumas poucas coisas elementares devem repetir-se, mas o pri-vilégio do espaço deve pertencer a tópicos menos trilhados e também mais importantes.

É o eterno conflito entre o conhecimento e o saber. Os feitos conhecidos, os pormeno-res técnicos, são fundamentais, contudo insuficientes. Devem simplificar-se, simbolizar--se e informar-se com uma compreensão mais profunda do problema que implicam.

À medida que eu envelhecia, minhas aulas se faziam mais simples: eu tratava de di-zer menos coisas, porém mais bem formuladas, com mais humanidade.

A erudição sem pedantismo é tão rara como o próprio saber3.Sarton, contudo, era um gênio isolado, diverso da maioria dos outros humanos. Nele

o domínio do caminho entre a ciência e as humanidades, assim como das duas áreas, era total e manejado com maestria. Nem sempre, porém, as coisas se passam assim.

Em sua famosa conferência intitulada As duas culturas, proferida em 1959 na Univer-sidade de Cambridge e desde então publicada inúmeras vezes, o escritor britânico Charles Percy Snow provocou literatos e cientistas ao dizer que os intelectuais olham com desdém para os cientistas que dizem não ter lido praticamente nada de literatura. Eles os consi-deram especialistas ignorantes. Contudo, a ignorância dos literatos é da mesma ordem. Muitas vezes estive presente em reuniões de pessoas que, pelos padrões da cultura tradi-cional, são consideradas altamente educadas e que expressam com gosto sua increduli-dade do analfabetismo cultural dos cientistas. Mais de uma vez os provoquei perguntan-do-lhes quais deles seriam capazes de descrever o Segundo Princípio da Termodinâmica. A resposta era fria e negativa. Contudo eu estava perguntando o equivalente científico de ‘você já leu alguma obra de Shakespeare?’4

Esta observação de Snow põe em relevo um aspecto importante da cultura do Ocidente a partir do início do século XIX, que se difundiu por todo o mundo. A partição da cultura humana em dois campos estanques e quase sem comunicação criou esse estranhamento entre os chamados intelectuais e os cientistas. Então um cientista não é um intelectual? Ele não vive de propor e resolver problemas científicos com o intelecto? É claro que os cien-tistas lançam mão de arsenais experimentais cada vez mais complexos e avançados, mas isso não significa que o intelecto seja dispensado. Todavia, cientistas não são considerados intelectuais na linguagem corrente.

Transgredir limites epistemológicos é, no meu entender, muito salutar. Em 1893, a en-cíclica Providentissimus Deus, do Papa Leão XIII, incorporava interpretações da Escritura expressas por Galileo Galilei em suas cartas teológicas, como a Carta à Grã-Duquesa5. É claro que Galileo havia sido um notório transgressor epistemológico. Além de dedicar--se à mecânica, à astronomia e à matemática, era também músico, poeta e teólogo. Com

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seu gesto, Leão XIII, talvez inadvertidamente, também cometia notável transgressão ao aliar-se intelectualmente a um hereje tão duramente condenado pelos prepostos de seu antecessor Urbano VIII.

A partição dos saberes, melhor dito, o enclausuramento epistemológico chegou a um extremo tal que causa hoje dificuldades no próprio diálogo diário entre pessoas de campos diferentes, como das ciências da natureza e das humanidades. Acredito que a maioria das pessoas não concordará, pelo menos em tese, que esta seja uma boa situação. Ao contrá-rio, ouço muitos deplorarem este estado de coisas, mas ao mesmo tempo resignarem-se, por acharem que não há nada a fazer. Esta separação é aceita como um fato da vida, um fado inescapável. O enorme progresso tanto das ciências como das humanidades exige que todos se especializem cada vez mais, praticamente impossibilitando um contacto com o outro lado. É inegável que a especialização está para ficar e que não há retorno neste as-pecto. Mas será que é absolutamente inevitável uma separação cada vez maior entre os dois campos? Não será possível estabelecer na atualidade alguma ponte entre eles? No tempo em que Snow abriu a questão, há mais de meio século, não se vislumbrava uma saída para o dilema. De lá até nossos dias houve muito progresso. Hoje a trama das ideias tornou-se mais complexa, resultando numa rica tessitura, mais interessante que aquela então preva-lente. Em nossos dias não só se considera importante criar uma ponte entre as ciências e as humanidades, mas trabalha-se ativamente na consecução desse objetivo.

Como resolver a questão? Eu acredito firmemente que uma das melhores maneiras é pelo cultivo da história da ciência. A primeira dificuldade que surge então é definir o que é história da ciência. A historiografia contemporânea pretende demonstrar, como men-cionei acima, que história da ciência não é nem história apenas, nem tampouco apenas ciência. Esta postura surgiu com o tempo, depois de muitas incompreensões e equívocos. O que torna a história da ciência diferente da história social, cultural, econômica, política? Simplesmente a palavra ciência, que tomo aqui no sentido das ciências da natureza e da matemática. Para fazer história da ciência, um pesquisador tem que conhecer a ciência de que vai tratar. Como falar do aparecimento do conceito de ligação química e estrutura mo-lecular no século XIX sem um conhecimento prévio de química? Por isto o historiador da ciência tem que conhecer bem a ciência de que trata. Isto é uma verdade quase axiomática quando se trata da ciência mais próxima de nós temporalmente, mas é uma necessidade que se ameniza ao tratar de períodos mais recuados. Por outro lado, apenas conhecimento científico não basta. É preciso conhecer bem a história, e ter familiaridade com as formas como o relato histórico se desenvolveu no tempo. O historiador da ciência tem que co-nhecer as correntes filosóficas que influiram na postura dos cientistas. O grande químico sintético francês Marcellin Berthelot, morto em 1907, jamais aceitou a idéia de átomos, porque este conceito não se coadunava com sua filosofia positivista radical. Usando o pos-to de ministro da educação ele combateu implacavelmente a aceitação da teoria atômica na França. O conhecimento da história e das influências do meio e da época sobre cientistas ou sobre historiadores fará com que se possa ler nas entrelinhas muito mais do que está escrito. Da mesma maneira, quando quisermos escrever alguma coisa de natureza históri-ca, precisamos estar cientes de que há contingências temporais, locais e culturais atuando sobre nós que farão com que o relato que fizermos de qualquer assunto histórico, seja de história da ciência ou de história em geral, seja radicalmente diferente do mesmo relato que seria escrito por alguém na Finlândia, por exemplo.

Em termos de declaração de intenções acredito haver uma concordância no desejo de tentar aproximar ciências e humanidades. Contudo, ao se tentar passar da intenção à prática, o mais comum é as coisas emperrarem. Existiria algo inerente, seja à ciência mo-

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derna ou às humanidades e às artes, que as tornariam irreconciliáveis? Ou esta suposta irrreconciliabilidade não será uma construção urdida e solidificada a partir do século XIX, que muitos passaram a aceitar com certa dose de conformismo e inexorabilidade? Quero mencionar o caso de um brasileiro interessantíssimo do século XIX, Pedro Américo de Figueiredo e Melo, cuja vida intelectual é relativamente pouco conhecida. Ele foi um de nossos mais notáveis pintores daquela época, com vastíssima produção que inclui retratos, paisagens, naturezas mortas e, sobretudo, cenas históricas, como O Grito do Ipiranga, em São Paulo, ou a gigantesca Batalha do Avaí, no Rio de Janeiro. Pedro Américo, artista pre-coce, seguiu para Paris em 1859, aos 16 anos, como bolsista do Imperador. Matriculou-se tanto na Escola de Belas Artes como na Sorbonne, onde estudou Filosofia. Seu interesse desde cedo pela ciência é também demonstrado por ele ter sido membro da Sociedade Velosiana de Ciências Naturais do Rio de Janeiro. Mais tarde veio a defender uma tese de doutorado na Universidade de Bruxelas, em 1868, intitulada A Ciência e os Sistemas - Questões de História e Filosofia Natural6. A tese teve excelente acolhida e boa repercus-são em seu tempo, tendo inspirado um ensaio da italiana Carolina Invernizio em 18774, em que a autora enfatiza a postura anti-positivista de Pedro Américo, certamente pouco comum em adeptos da ciência na época. Esta postura está clara em trechos em que ele critica Comte: ...com o pretexto de eliminar as hipóteses do método científico, tidas como criações perigosas para o avanço dos conhecimentos humanos, adotam-se muitas vezes sistemas exclusivos que se caracterizam como negações dogmáticas muito mais perigosas ainda5. A tese de Pedro Américo trata da evolução da filosofia, da arte e da ciência, com bastante conhecimento e familiaridade com todas estas áreas. No caso da ciência, surpre-endentemente para nós modernos, ele demonstra grande facilidade em discorrer sobre matemática, astronomia, física, química e história natural. Além dos cientistas e filósofos do passado, os quais mostra ter lido diretamente, ele cita frequentemente cientistas im-portantes de seu tempo, como William Herschel, Davy, Arago, Liais, Chevreul, Humboldt, Lyell, Claude Bernard, Wurtz. Sua atitude aberta fica patente quando diz: ...se há no mun-do uma situação contraditória do pensamento, um estado inexplicável da consciência, é a do sábio que acredita ser juiz das opiniões dos outros, negando ao mesmo tempo a razão. Nenhuma desarmonia me parece mais completa, nenhuma discórdia mais pro-funda, mais estranha, mais dolorosa6.

Pedro Américo aparece assim como um exemplo já pouco encontradiço na segunda metade do século XIX, um espírito renascentista que busca a universalidade do pensa-mento.

Sempre tive um certo fascínio por aquelas pessoas que conseguem transgredir seus su-postos limites epistemológicos e mostrar competência em áreas distintas. Foi por isso que há alguns anos resolvi estudar a figura e a carreira ímpares do químico e compositor russo Alexandre Borodin. Borodin apresenta uma singularidade, a de ter sido simultaneamente artista e cientista ao longo de toda a vida. Outros foram as duas coisas, mas em épocas distintas de suas vidas. Que eu saiba, ele foi o único em que os dois chamamentos sempre coexistiram e foram cultivados até o fim de sua existência7. É interessante notar que ele foi repreendido tanto por cientistas como por músicos por dedicar-se às duas áreas. Seu pro-fessor de química e mentor na Academia Médico-Cirúrgica de São Petersburgo, Nikolai Zinin, que desde cedo lhe reconheceu o talento como cientista, disse-lhe, ainda em seu tempo de estudante: Senhor Borodin, preocupe-se um pouco menos com canções. Estou pondo todas as minhas esperanças no senhor como meu sucessor, e o senhor só pensa em música; não dá para caçar duas lebres ao mesmo tempo7. Borodin, todavia, caçou as duas lebres com maestria até o fim de sua vida. É curioso, porém, que anos mais tarde seu

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grande amigo, o compositor Nikolai Rimsky-Korsakov, também insistia com ele para que deixasse a química e se dedicasse a sua verdadeira vocação, a música.

A que se deve esse desejo de transgredir? Melhor ainda, por que as trangressões são menos comuns hoje que no passado?

Estou convencido de que na raiz do problema esteja a educação moderna, e não, como muitas vezes se alega, a complexidade de cada área específica do conhecimento. Esta complexidade supostamente não permitiria incursões por outros campos, sob pena de se ficar desatualizado em sua área original, ou tornar-se alvo do desprezo de seus pares, por preocupar-se com devaneios sem importância para sua carreira. Embora a especialização seja importante em todos os campos da vida moderna, não se deve espe-cializar as pessoas desde tenra idade. Antes é preciso incutir-lhes uma visão geral do co-nhecimento, que inclua ciências, humanidades, línguas e artes. Os aspectos qualitativos da educação, que poderiam ser contemplados com um ensino mais abrangente e mais exigente, são rotineiramente postos de lado em favor de certos aspectos quantitativos, como o número de pessoas que se formam, com escassa preocupação com a qualidade de seu conhecimento.

As características peculiares da história da ciência fazem com que ela às vezes seja in-compreendida tanto por cientistas como por historiadores. Quando comecei a trabalhar na área, e já se vão 25 anos, muitos me encaravam com incredulidade, quase como se eu fosse uma aparição fantasmagórica. Várias vezes me perguntaram: mas você é muito jovem para fazer história da ciência; isso é para velhinhos. Pior ainda acontecia por causa de meu grande interesse pela história da ciência no Brasil. A pergunta invariável, em tom de desprezo ou escárnio, era: história da ciência no Brasil? Isso existe? O que as pessoas que-riam dizer era que não acreditavam que tivesse havido ciência no Brasil antes da Segunda Guerra Mundial, com algumas pequenas concessões quanto às primeiras décadas do sé-culo XX. De fato, o que havia era uma enorme ignorância de nosso passado científico, que começou a ser desvendado de forma séria e meticulosa nos últimos trinta anos, e do qual há ainda muito a fazer. Naquela época em que pouco se conhecia do assunto, eu costumava retrucar aos céticos que mesmo que o Brasil não tivesse tido um passado científico, ainda assim este seria um campo válido de estudos, e acrescentava: às vezes uma pausa pode ser tão eloquente na música como uma nota. É claro, contudo, que eu não acreditava na premissa de que não houve ciência no Brasil colonial ou imperial. O que era preciso fazer é que as pessoas se despissem do preconceito de que ciência é só aquilo que se faz em uni-versidades ou em centros de pesquisa. Ora, Descartes, Pascal, Leibniz, Lavoisier, Scheele e Priestley, só para citar alguns nomes, nunca trabalharam em universidades, e ninguém lhes negaria o lugar importante que ocupam na história da ciência. Se deixarmos cair os preconceitos acadêmicos, o panorama que se nos descortina é riquíssimo e pode levar-nos a um entendimento bastante diverso a respeito de nosso próprio país.

Para que serve a História da Ciência? Nós precisamos dela?

Em adição a meu trabalho como químico, também tenho trabalhado há muitos anos com História da Ciência, conforme já disse. Surpreendentemente, a área começou a atrair um número crescente de interessados na última década, algo inexistente há um quarto de século, e este é um fenômeno que já se verifica em todo o país. O curioso é que aparece gente de todas as origens acadêmicas, tanto de áreas científicas como das humanidades. É um grande desafio pôr a dialogar pessoas oriundas de química, física, matemática, biolo-

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gia, astronomia, medicina, economia, psicologia, história, letras, etc. Ao mesmo tempo, é uma tarefa gratificante, em que aprendo mais que ensino.

Mas por que razão pessoas tão diferentes e em número elevado se interessam cada vez mais por esses estudos, aqui e em todo o mundo? Como ponto de partida precisamos con-siderar o desenvolvimento extraordinário da ciência e da tecnologia a partir do século XVI, com um ímpeto cada vez maior à medida que nos aproximamos de nossos dias. Este é um fenômeno histórico ímpar e de grande interesse e complexidade. Antes da aceleração deste processo a vida das pessoas não variava com tanta velocidade e intensidade como ocorreu desde que o fenômeno se intensificou, a partir do último século. Basta refletir sobre as mu-danças ocorridas no período de vida de cada um de nós. Este fenômeno é crescente e irrever-sível. Daí resulta o interesse em conhecê-lo melhor, dada a premissa de que o ser humano é tanto um homo historicus como um historiae narrator. É também uma constante o desejo de estabelecer uma forma de comunicação com o já mencionado outro lado, isto é, o mundo científico por parte dos que se dedicam às humanidades, e o oposto por aqueles oriundos do campo científico. Aparentemente essas pessoas percebem que talvez já exista em muitos seg-mentos da sociedade uma certa saturação com o distanciamento excessivo dos dois campos, e sentem uma necessidade de aproximação. Aliás, isto já se vê hoje em dia na própria maneira como elaboramos nossos projetos de pesquisa na ciência. Eu costumo dizer aos alunos de graduação em química que quando eles estiverem no auge de suas carreiras, cerca de vinte anos depois de formados, a maneira de praticar a química será muito diferente daquela prati-cada por minha geração. Os projetos e trabalhos de pesquisa já começaram a tornar-se cada vez mais interdisciplinares, envolvendo não só mais de uma ciência da natureza, como quí-mica, física e biologia, mas também ciências ambientais, sociologia, economia, ética, direito, etc. Situação semelhante se verifica em outras áreas. Esta tendência dá sinais crescentes de que se acelerará. Em suma, uma preparação para esse desafio do futuro exigirá uma abertura das mentes. A história da ciência poderá ser um dos veículos capazes de auxiliar a construir esta abertura. Ao que parece, muitas pessoas já estão persuadidas disso.

Como se pode estudar história da ciência?

Existem várias maneiras de se estudar história da ciência. Até umas três décadas atrás havia um debate encarniçado entre os chamados historiadores internalistas da ciência e o grupo dos externalistas. O primeiro defendia que a história da ciência deve ser feita ape-nas num contexto interno à própria ciência, isto é, como uma descoberta invalidou uma teoria e como se construiu outra teoria mais abrangente que desse conta tanto daquilo que a teoria antiga explicava como também dos fatos novos. Esta abordagem pressupõe um co-nhecimento íntimo da ciência, e não se interessa muito pelos fatores culturais, sociais, eco-nômicos ou políticos. Já a escola externalista adotava o ponto de vista oposto, isto é, estes últimos fatores são muito mais importantes na construção da ciência que aqueles inerentes a ela própria. Na historiografia contemporânea houve um apaziguamento dessas posições extremas, e hoje prefere-se buscar uma conciliação das duas abordagens, que resulta numa história da ciência muito mais rica. Do ponto de vista de um arcabouço filosófico, até pouco depois da primeira metade do século XX a história da ciência foi dominada pelo positivismo, exemplificado por luminares como o já mencionado George Sarton. Apesar do enorme papel desempenhado por Sarton, a quem devemos um imenso reconhecimen-to, para ele ciência era apenas conhecimento positivo organizado2. Assim escreveu ele: O historiador da ciência não pode devotar muita atenção ao estudo da superstição e da

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magia, isto é, da irracionalidade, pois este estudo não o ajuda muito a compreender o progresso humano. A magia é essencialmente antiprogressista e conservadora; a ciência é essencialmente progressista; a primeira caminha para trás; a segunda para a frente2.

Em decorrência, na História da Química, ao tratar dos dois milênios em que vigorou o paradigma alquímico, só devia interessar ao historiador da ciência aqueles aspectos da alquimia que dissessem respeito à descoberta de novos materiais, operações e processos de laboratório. Teorias alquímicas como a dos quatro elementos ou, sobretudo, tudo que se referisse a misticismo ou magia era indigno da atenção do historiador. Por isso, estudar assuntos como a alquimia de Newton ou os sonhos de Kekulé era pura perda de tempo. Pois justamente alguns itens dessa natureza, percebe-se hoje, são cruciais para se entender a evolução da ciência. O estudo da história dessa ciência marginal ou pseudo-ciência, ou-trora desprezado por não ter relevância, como se lê nas palavras do próprio Sarton, é hoje aceito como um campo legítimo de investigação para os estudiosos da história da ciência, numa postura discordante daquela de décadas passadas. Sua legitimidade pode ser mos-trada na argumentação que se segue.

A prática científica tem pelo menos dois momentos, ambos importantes. O primeiro é o contexto da descoberta, em que o cientista observa, experimenta, tabula resultados, compara, busca estabelecer relações causais, sempre que possível expressas matematica-mente. A consequência é o estabelecimento de generalizações, que são traduzidas em leis, o conjunto das leis originando as teorias. No contexto da descoberta muitos fatores não racionais não só interferem mas podem ter papel importantíssimo. Frequentemente, quan-do alguém inicia sua carreira científica sofre um bombardeio com a idéia de que cientistas são seres racionais, diferentemente do resto da humanidade, e que fazer ciência exclui qualquer subjetividade. Isso não poderia estar mais longe da verdade, e de forma alguma corresponde à realidade. O que nos dizem nos cursos de ciências das universidades, ou pelo menos foi o que ouvi muitas vezes, em mais de um país, é que o cientista observa, ex-perimenta, mede, calcula, usa a indução e a matemática e estabelece relações; a partir daí, por via de deduções, outras conclusões podem ser tiradas, todo o processo transcorrendo de forma absolutamente racional. Ora, todos nós que trabalhamos com ciência sabemos que, de nossas medições experimentais frequentemente escolhemos e aproveitamos aque-las que consideramos melhores, e descartamos o resto. Isto é subjetivo, pois depende de es-colhas pessoais. Não se trata de fraude, em absoluto. Não se imputa nenhuma acusação aos cientistas, apenas se reconhece que seu trabalho também tem um aspecto subjetivo, quei-ram eles ou não. Depois desta digressão, vamos ao segundo momento da prática científica, que é o contexto da justificação. Uma vez formulada uma lei ou teoria, ela será testada em situações novas, inusitadas. Se ela passar neste teste sairá vitoriosa, caso contrário será descartada. Neste segundo momento da prática científica não entram fatores subjetivos. Aqui as teorias são julgadas pela natureza, de forma totalmente impessoal. Se as predições científicas forem corroboradas pela experimentação, a teoria terá passado o teste e será aceita até que se torne incapaz de explicar novas situações.

Nas últimas décadas ocorreu uma mudança do foco historiográfico, distanciando-se das grandes e notáveis sínteses enciclopédicas, como os trabalhos de George Sarton, Lynn Thorndike, Joseph Needham, Charles Gillispie e outros, em direção a uma concentração de estudos em aspectos mais limitados temporalmente, e por isso mesmo mais ricos em pormenores e em profundidade de análise. Esta é uma tendência presente na história con-temporânea em geral, não apenas na história da ciência. O enfoque em estudos de casos e suas múltiplas relações com o desenvolvimento geral da ciência, assim como a impor-tância crescente da integração das outrora separadas e até por vezes antagônicas correntes

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internalista ou externalista conduziu a um debate enriquecedor e a uma abordagem mul-tifacetada das questões, interessante e profícua. Há sessenta anos a postura dominante era distinta. Em seu famoso livro de 1949, The Origins of Modern Science, o historiador bri-tânico Herbert Butterfield chegava ao ponto de negar que a história da ciência fosse uma verdadeira disciplina científica, ao escrever que a história da ciência não foi transformada em história genuína e ainda está em um grau inferior de organização como o trabalho do analista e do cronista8. Esta afirmação negava à própria disciplina da história da ciência o caráter de história no sentido corrente do termo, deixando-a na condição de anais ou crônicas, cujo objeto seriam biografias e casos anedóticos ou pitorescos.

A postura de boa parte dos escritores da primeira metade do século 20, ao descurar ou desprezar os elementos não científicos (teológicos ou metafísicos, no jargão positivista) no surgimento e evolução das idéias e das teorias científicas, foi por largo tempo um empeci-lho ao entendimento pleno do processo de criação da ciência.

Pode-se dizer, a respeito de dois grandes sistematizadores da história da ciência da primeira metade do século 20, Sarton e Thorndike, que o primeiro, fiel a sua herança posi-tivista, não aceitava levar em conta nada que não fosse absolutamente racional, enquanto o segundo buscava justamente os elementos arracionais na história do desenvolvimento das idéias. Thorndike foi de certa forma um precursor da historiografia moderna, procurando ao máximo uma contextualização do fenômeno histórico. Conforme escreveu, referindo--se à Idade Média, por exemplo, nenhum escritor medieval, seja de ciência ou de magia, pode ser entendido por si próprio, mas precisa ser avaliado com respeito a seu ambiente e antecedentes9.

Vivemos, portanto, um momento ímpar da evolução de nossa disciplina. Estamos numa época de enorme liberdade ideológica e historiográfica, como, aliás, sempre fiz questão de insistir com meus alunos. Esta liberdade recém-conquistada é preciosa e necessita ser cultivada. As rígidas amarras historiográficas ruíram, apesar de ainda terem ainda alguns defensores, como às vezes vejo em pareceres anônimos de artigos submetidos à publicação. É como se os defensores resistissem em seus bastiões, protegidos pelo anonimato que lhes permite defender posições que não mais defenderiam publicamente.

Todavia, o preço da liberdade é alto. Ela exige uma enorme erudição e capacidade de análise, que só se conseguem por trabalho árduo e denodado. História da Ciência não é uma disiplina fácil, mas é uma noz com casca para ser comida por quem tiver bons dentes. É necessária muita leitura, perpassando várias áreas do conhecimento, e também o domí-nio de várias habilidades. Entre estas se inclui necessariamente um conhecimento específi-co da ciência em estudo e um bom comando de línguas estrangeiras. O desconhecimento da ciència cuja história se pretende estudar leva a situações das mais ridículas, como já presenciei várias vezes, chegando em alguns casos às raias da caricatura, quando pessoas sem preparo científico discorriam afoitamente sobre assuntos científicos com os quais não tinham a menor familiaridade.

É igualmente inconcebível que alguém queira, como já vi, trabalhar a obra de um cien-tista estrangeiro ou uma corrente de pensamento científico sem ter o domínio da língua ou línguas em que aqueles assuntos foram redigidos. O autor de tais estudos poderá fazer bom trabalho de divulgação científica, de popularização da ciência, mas não fará trabalho de investigação original. Basta imaginar o caso de um estrangeiro que quisesse estudar o Brasil sem saber português, e se poderá avaliar a impossibilidade da situação.

Sem estas salvaguardas ao querermos fazer um trabalho intelectual de bom nível, cai-ríamos numa superficialidade inconsequente. A História da Ciência exige pois muito em termos de preparação e trabalho de seus cultores, mas também retribui imensamente em

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satisfação profissional e deleite intelectual. Partindo do pressuposto de que o desenvolvi-mento da História da Ciência pode ter o dom de ajudar a fazer a ligação entre as culturas científica e humanística, seu cultivo é não só necessário como essencial e urgente num mundo que dá vários indícios de desejar essa aproximação cultural.

É claro que a construção dessa ligação não pode ser levada a cabo apenas de um dos la-dos. A História da Ciência é um dos campos de estudos mais marcadamente interdiscipli-nares, para o qual devem concorrer diferentes especialidades. Isto fica mais claro quando se admite a obsolescência da antiga rivalidade entre as posturas internalista e externalista, e a emergência de uma abordagem múltipla, muito mais rica. Assim, o trabalho do histo-riador da ciência exige também de seu cultor disposição de dialogar com o outro, isto é, com o profissional do lado oposto da ponte.

Enfim, é possível fazer História da Ciência de qualidade, apesar de todas essas dificul-dades? Sim, é, como vejo num número crescente de pessoas que se dedicam com afinco a este trabalho e conseguem produzir obras relevantes e meritórias. Como em todas as áreas do conhecimento, à medida em que ela tende a uma maior consolidação, também aumen-tam as exigências, o que leva a uma depuração entre o que é valioso e o que não é. Vejo com satisfação que a situação existente hoje entre nós está nessa fase, que, assim continuando, poderá levar ao estabelecimento da área de História da Ciência de forma sólida e duradou-ra, como, acredito eu, desejam todos aqueles que a ela se dedicam.

Referências

César Lattes, entrevista concedida a Micheline Nussenzveig e Cássio Leite Vieira, Ciência Hoje, agosto de 1995.

George Sarton, Introduction to the History of Science, 5 vols., Reprint Edition, R. E. Krie-ger Publishing Co., Huntington, N.Y., 1975.

George Sarton, History of Science, 5 vols. Harvard University Press, Cambridge, 1952

Charles Percy Snow, The Two Cultures, Cambridge University Press, Canto Edition, 1993.

Giorgio de Santillana, The Crime of Galileo, The University of Chicago Press, Chicago, 8th impression, 1967.

Pedro Américo de Figueiredo e Melo, A Ciência e os Sistemas– Questões de História e Filosofia Natural, Editora Universitária, Universidade Federal da Paraíba, 4ª edição, João Pessoa, 2001.

Carlos A. L. Filgueiras, Entre a Batuta e o Tubo de Ensaio: a Carreira Admirável de Ale-xandre Borodin, Quím. Nova, 2002, 25, 1040-1049.

Herbert C. Butterfield, The Origins of Modern Science, Bell & Hyman, Londres, 1985.

Lynn Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, 8 vols., Columbia Uni-versity Press, N. York, 1923.

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“Engenheiros brasileiros nas “Grandes Ecoles” francesas no

século XIX: um mapeamento em grande escala”1

Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa

Introdução

No período compreendido entre 1825 e 1903, quase uma centena de estudantes brasi-leiros passou pelas Grandes Écoles francesas de engenharia – a saber, Polytéchnique, Mines e Ponts-et-Chaussées e vieram a constituir uma fração significativa da “comunidade” de enge-nheiros brasileiros. Pretendo aqui apresentar alguns resultados de pesquisa em que busquei mapear esta “comunidade” no tempo e no espaço, a fim de contribuir para a compreensão dos papéis sociais que os engenheiros brasileiros desempenharam e as marcas que imprimi-ram no processo histórico. Mas quem foram estes engenheiros? Para começar, apresentarei os Quadros Gerais, por Escola, com seus nomes e demais informações obtidas nos arquivos.

Apresentar os quadros

Estes quase 90 engenheiros que compõem meu objeto de pesquisa viveram e trabalha-ram no século XIX, reconhecido por muitos autores, das mais diversas correntes historio-gráficas, como aquele do entusiasmo pelo progresso alicerçado na ciência e na tecnolo-gia. Foi a partir do século XVIII e, particularmente, durante o XIX que foram gestadas as condições que conferiram ao grupo sua identidade específica, isto é: sistema de formação, carreira definida, título profissional, 1 Apoio financeiro CNPq Proc. Nº 309538/2006-8 status social. De início, os engenheiros atuaram largamente na esfera militar, na demarcação de fronteiras, na cartografia e na construção de fortificações, assim como nos levantamentos científicos relacionados à História Natural, dada a centralidade estratégica deste campo do conhecimento para a estabilidade econômica e política dos Estados nacionais (Pataca, 2006). Já nas primeiras décadas do século XIX a participação nas obras civis é digna de nota, e crescerá rumo às atividades industriais. Esse vasto leque de atribuições teve como denominador comum os processos de produção de saberes e de objetos técnicos, e de organização e controle do trabalho coletivo em suas várias etapas (Grelon, 2001). Os enge-

1 Apoio financeiro CNPq Proc. Nº 309538/2006-8

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nheiros se mostraram, a um só tempo, não apenas os iniciadores de numerosas mudanças técnicas, mas também os organizadores e administradores dos novos sistemas técnicos, garantindo sua continuidade e correta implantação (Grelon, op.cit.).

Os resultados de minhas análises permitem delimitar com um pouco mais de precisão este quadro geral, bem como inserir este ‘movimento’ de formação de engenheiros no res-pectivo contexto histórico. O quadro geral vigente no século XIX, grosso modo, no Brasil, possui como característica a forte crença nos “melhoramentos” que a ciência e a técnica, conjugadas nos saberes da Engenharia, trariam ao país, como demonstra Maria Inês Tu-razzi (2001, p.148): “a palavra ‘melhoramento’ [é] uma das expressões mais reveladoras das convicções ideológicas que alicerçaram o projeto de construção da nação pela elite brasilei-ra do século XIX (...). Como expressão verbal de uma convicção inabalável no progresso, o substantivo e quase todas as suas adjetivações referiam-se, direta ou indiretamente, às obras públicas e ao trabalho de engenheiros, arquitetos, cientistas e industriais”.

A tabela e o gráfico que ela gera ajudam a identificar três grandes ‘grupos’ ou ‘fases’.

Década Polytechnique Mines Ponts & Chaussées Total

1821 (25) – 1830 7 8 ?? 15

1831 – 1840 6 1 ?? 7

1841 – 1850 1 1 11 é o total das 3 décadas 2

1851 – 1860 10 5 15

1861 – 1870 7 2 9

1871 – 1880 8 5 13

1881 – 1890 3 7 10

1891 – 1900 4 4

1900 – 1910 (03) 1 1 1 3

Tabela 1 – Número de alunos em cada ‘Grande Ecole’ e o total (brasileiros) por década.

Gráfico 1 – Distribuição temporal dos alunos brasileiros nas 3 ‘Grandes Ecoles’ por década.

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O primeiro grupo perceptível concentra-se imediatamente após a Independência – as primeiras matrículas são de 1825 –, com 15 alunos, seguindo-se a atribulada década de 1831-40, em que os três períodos regenciais se sucederam. É digno de nota que o número de estudantes reduz-se à metade, passando de 15 a 7. Na década seguinte, o fluxo pratica-mente se interrompe (2 alunos apenas, em 1842 e 1843), refletindo certamente as turbulên-cias e disputas que se prolongaram após a antecipação da Maioridade, como a guerra entre ‘luzias’ e ‘saquaremas’, a Farroupilha, os Mascates. Nestas três décadas, sabemos ainda que, além dos alunos mencionados nominalmente, que frequentaram a Polytechnique e a Ecole des Mines, mais 11 estudantes, não identificados e não distribuídos com precisão anual, frequentaram a Ecole des

Ponts-et-Chaussées. Vamos deixá-los de fora na contagem específica por década, em virtude da imprecisão do dado.

O segundo grande grupo aparece com o que poderíamos chamar de ‘retomada’ do fluxo de alunos, a partir de 1850 (mais precisamente, em 1853), quando novamente 15 alunos seguem seus cursos em Paris. No entanto, ao contrário do período anterior, quando a concentração se dá na Polytechnique, esta escola estará ausente até findar o século, e as matrículas se distribuem entre a Ecole des Mines e a Ponts-et-Chaussées, com predomi-nância notável da Ecole des Mines até 1880 – somente então se dá a inversão, e as matrí-culas passam a predominar na Ecole des Ponts-et-Chaussées. Nesta inversão marcaríamos nosso terceiro grupo, ou ‘leva’, que vai declinar nas duas décadas seguintes (1891 – 1900 e 1901 – 1910), praticamente desaparecendo dos registros.

Em termos de origem geográfica desses alunos brasileiros, o gráfico a seguir mostra sua distribuição por Província no caso da Ecole des Ponts-et-Chaussées, para a qual os dados estão disponíveis:

Além do Rio de Janeiro (Província e Corte, pois os dados dos arquivos não nos permitem separar com precisão), cujo destaque é compreensível, chama atenção a concentração da antiga região Norte (PA, AL, BA, MA e PE), que totaliza 22 estudantes, superando em mais de 50% os da região Sul-Sudeste (SP, MG), além dos oriundos do RS. Isto pode resultar, de um lado, do poder econômico e político do Norte/Nordeste. De outro, talvez uma maior proximidade da Corte tenha levado os jovens de SP, MG às escolas de ensino superior já lá existentes. E já que mencionamos ‘jovens’, os alunos da Ecole de Mines e da Ecole des Ponts-et--Chaussées, para os quais dispomos dos dados, tinham idade média de 23 ± 2 anos.

De um modo geral, podemos associar estas ‘levas’ com o quadro geral conhecido. As primeiras instituições de ensino militar nas colônias Portuguesas datam do final do século

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XVII, resultantes do contexto político e militar da Restauração portuguesa e de disputas com a Espanha. Nesta época, escolas militares foram fundadas na Bahia (1696), Rio de Janeiro (1698), São Luís do Maranhão (1699) e Recife (1701), assim como em outras regi-ões do Império Português: Goa (1699), Angola (1699) e Viana do Castelo (1701) (Pirassi-nunga, 1958). Durante o reinado de D. João V, o Conselho Ultramarino envolveu-se nas iniciativas de ensino na Academia de Fortificação do Rio de Janeiro a fim de prover os ele-mentos necessários à defesa da costa, face às tensões crescentes entre Portugal e Espanha. A Ordem Régia de 19 de agosto de 1738 tornou a educação militar obrigatória, e nenhum oficial poderia ser promovido sem haver freqüentado a Aula Militar por cinco anos. Nessa época, a ‘Aula do Regimento de Artilharia’ foi estabelecida, sob a direção do conhecido José Fernandes Pinto Alpoim (Telles, 1984).

O Brasil independente acompanhou esse movimento de intensificação do uso das téc-nicas e de demanda pela engenharia. Esta relação, como não poderia deixar de ser, foi permeada de contradições, posto que o desenvolvimento tecnológico ocorreu no apoio à implementação de uma economia agroexportadora, a qual, ao mesmo tempo em que foi estimulante, também delimitou seu alcance. Desde a transferência da Corte, ampliaram-se as instituições formadoras de profissionais da engenharia, em decorrência da percepção, pelos contemporâneos, da considerável defasagem do Império português face à Revolução Industrial em curso. Primeiramente, foi criada a Academia Real Militar (1810), depois transformada em Escola Militar (1839), seguida da Escola Central (1855) – herdeira do ramo civil da engenharia, que então se separava definitivamente da engenharia militar no país –, e transformada em Escola Politécnica do RJ em 1874. Em 1875, surgiu também a Escola de Minas de Ouro Preto, destinada a fomentar a geração de profissionais para a área da mineração, mas que, rapidamente, teve que se adequar às demandas concretas e abrir outras modalidades de cursos (Carvalho, 1978; Figueirôa, op. cit.), além de outras escolas de engenharia que se seguiram. As principais atividades dos engenheiros no último quartel do século XIX no Brasil eram, basicamente, a construção de edifícios, os estudos e proje-tos de portos, e o projeto e construção de estradas de ferro (Vargas, 1994), na Corte ou no interior: “aos poucos, como diz Pedro Marinho o século XIX passava a ser também o século dos engenheiros” (2002, p.18).

Ora, parece-nos claro que o envio do primeiro grupo à França esteja conectado às ne-cessidades de formação de quadros para o novo Estado, ao passo que a segunda ‘leva’ coin-cide, temporalmente, com a época em que o Brasil já teria concluído a fase de consolidação política, podendo assim se dedicar aos investimentos e aperfeiçoamento da infraestrutura – aí incluída a formação de quadros. No nível político e social, a tarefa que se colocava era a construção efetiva do Império, sua consolidação em diferentes planos. No nível da representação, tratava-se de encontrar espaço para a jovem nação dentro da comunidade mundial -ou seja, o ‘mundo civilizado’ ao qual se almejava pertencer, com seus ideais de progresso e de ordem que foram, assim, tomados como referenciais. A compreensão disso é fundamental para se analisar os movimentos e ações que tiveram lugar no período, reco-locando ‘no lugar’ idéias tidas por alguns como ‘fora de lugar’2. No plano geral, José Murilo de Carvalho já demonstrou muito bem, através da análise das Atas do Conselho de Estado, a posição eurocêntrica da elite brasileira da época3. Portanto, a França continuava a ser uma opção relevante, mas não mais a Polytechnique, e sim a Ponts-et-Chaussés passa a ter destaque.

2 A propósito das ‘idéias fora do lugar’, ver: SCHWARZ, R.. Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1977.3 CARVALHO, op. cit., p.14.

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Lembremos também que a separação definitiva dos ramos civil e militar e a diversi-ficação de cursos de engenharia acontecem no Brasil na década de 1870 – a saber, com a criação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1874 (que contava com a modalidade de engenharia de minas) e a Escola de Minas de Ouro Preto, em 1876. Parece plausível, portanto, a inversão na década de 1881-1890 no fluxo para a França, passando a predo-minar a opção pela Ponts-et-Chaussés. Esta ‘fase’ coincide com o final do Império e o tão decantado surto de modernização produzido pelo “bando de idéias novas”. De fato, na transição para o século XX, no nível político, situa-se o apogeu do processo de consolida-ção do Estado oligárquico (Martins, 1976). No nível social, constituía-se uma sociedade predominantemente urbanizada e burguesa, e as classes médias e as elites acreditavam que, por fim, atingiam o que tanto almejavam, isto é, o ‘nível de civilização’ dos países avança-dos, pois se acreditava que, da mesma forma que os seres vivos, as sociedades evoluíam na direção do progresso crescente. A avaliação de uma determinada sociedade, nas suas condições atuais e possibilidades futuras, dava-se no marco da comparação desta com os padrões ocidentais do que se considerava ‘Progresso’ e ‘Civilização’. No Brasil do século XIX, particularmente na segunda metade, havia a percepção de que estas mudanças esta-vam em processo no Ocidente e urgia o ingresso na modernidade. Como indicou Sandra Pesavento (1997, p.62-3), as elites intelectuais brasileiras entendiam o progresso técnico--científico não somente como “algo de que se ouvia falar”, mas sim como um objetivo que o país “deveria perseguir, para atingir o status de moderno”.

Os projetos modernizadores que circularam então nesta transição, implantados total ou parcialmente, requisitaram engenheiros das mais diversas formações, fosse para obras de saneamento, reorganização urbana, construção de novas cidades (como Belo Horizon-te, p.ex.), fosse para intervenções no ambiente natural, como obras contra secas, estradas, levantamentos de recursos naturais (vide os trabalhos das Comissões Geográficas e Geo-lógicas de São Paulo e de Minas Gerais, ou o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil), dentre outros. Engenheiros que bem encarnavam, junto com os médicos, o papel de “mis-sionários do progresso”, como já acertadamente os denominou Simone Kropf (1992, p.70):

“O debate sobre a remodelação da cidade do Rio de Janeiro foi um espaço privilegia-do para que os engenheiros produzissem para si a identidade de grupo social diretamente comprometido com o projeto de modernização nacional (...). Significava acima de tudo um poderoso instrumento para que construíssem e reivindicassem perante a sociedade o papel de agentes legítimos do que consideravam uma nova ordem, tida como representativa dos ideais do progresso e da modernidade.”

Reverberando esse movimento, coube aos engenheiros brasileiros, como aponta Vânia Cury (2001, p.12), “continuar a definir, de maneira cada vez mais clara e objetiva, a legitimi-dade de suas atribuições enquanto corpo destacado de profissionais especializados. Somente através dessa identidade determinada tornou-se-lhes possível reivindicar o reconhecimento social e político para suas aspirações, e garantir a apropriação de seu capital cultural específi-co”. Complementarmente, as conclusões de Josiane Cerasoli (1998, p.21) sustentam que os engenheiros brasileiros, “ávidos por produzir grandes e eficazes transformações direcionadas ao progresso intelectual e material, sustentados por conhecimentos científicos e por suas con-vicções político-ideológicas”, colocaram-se à frente dos grupos concretamente promotores do cientificismo e do progressismo típico deste momento histórico. E continua: “A ‘ilustre e operosa classe’ (...) seria capaz de transformar os conhecimentos matemáticos e físicos em resultados práticos para a sociedade, conquistando o conforto e o bem-estar da população. (...) Parece-nos interessante observar a insistência dos próprios engenheiros em se auto pro-clamarem portadores dos mais elevados conhecimentos da civilização, indispensáveis ao al-

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cance do progresso – discurso recorrente desde as últimas décadas do século XIX no Brasil – e promotores do bem comum para a nação”.

Como síntese do que foi dito, poderíamos reproduzir as palavras de Simone Fadel (2006, p.26) sobre o engenheiro Fábio Hostílio de Moraes Rego – exemplar singular a re-sumir todo um coletivo: “percebe-se que Moraes Rego pauta sua prática profissional pela crença de que o conhecimento científico pode e deve contribuir para o aprimoramento da sociedade. [...] é a trajetória do profissional em busca de caminhos de intervenção na reali-dade através da” racionalidade “conferida pelo saber científico. Essa intervenção “racional”, diferente de outras possíveis, conferia legitimidade à sua prática e às suas propostas”.

Os profissionais engenheiros buscaram ainda, no rastro do surgimento da Politécnica do Rio de Janeiro e do surto de modernização vivido pelo Brasil pós-1870, solidificar sua ação por meio de organizações associativas, profissionais e técnico-científicas, ampliando espaços de atuação e conquistando novos, projetando a categoria em termos de importân-cia social dado seu saber competente. A 11 de setembro de 1862, p. ex., como nos conta Pedro Marinho (op.cit., p.17), foi fundado o Instituto Politécnico Brasileiro (IPB), “no edi-fício da Escola Central do Rio de Janeiro, apregoando, segundo o artigo 1º de seus Estatutos, ter ‘por objeto o estudo e a difusão dos conhecimentos teóricos e práticos dos diferentes ramos de engenharia e das ciências e artes acessórias’. Era uma associação onde se reuniam enge-nheiros e bacharéis em ciências físicas e matemáticas, civis e militares, constituindo-se como a primeira sociedade do gênero no país, desempenhando atividades por cerca de 60 anos”. Em 1880, por sua vez, fundou-se o Clube de Engenharia, bem estudado por Vânia Cury (2000).

Focando em específico a fundação de associações profissionais (Clube de Engenharia) e a publicação de periódicos especializados (Revista do Clube de Engenharia, Revista do Instituto Politécnico), que se inserem neste contexto de passagem da tecnologia para os domínios da ciência, percebe-se que os engenheiros se mostraram, a um só tempo, não apenas os iniciadores de numerosas mudanças técnicas, mas também os organizadores e administradores dos novos sistemas técnicos, garantindo sua continuidade e correta im-plementação. Assim, partindo de um empreendimento modesto de institucionalização da categoria, os engenheiros passaram para um ideal de agentes responsáveis pela transfor-mação de alguns aspectos da realidade brasileira, a fim de se alcançar um ótimo de desen-volvimento que a engenharia e os grupos ligados às áreas exatas do conhecimento ajuda-riam diretamente a alcançar.

Na análise do perfil dos membros (fundadores e sócios em geral) do Clube de Enge-nharia, considerando a distribuição majoritária geográfica das escolas em que cursaram seus respectivos cursos nota-se uma predominância da cidade do Rio de Janeiro, berço das Academia Militar, da Escola Militar do Rio de Janeiro e da Escola da Praia Vermelha, além da Politécnica. Na soma das escolas seguem aqueles que fizeram estudos no exterior, majoritariamente na França, com 22% de participação em suas formações. São Paulo e Ouro Preto alcançam a mesma porcentagem, com 8% do total e, por último, Rio Grande do Sul, com 6%.

O teor do conteúdo dos artigos da Revista do Club de Engenharia, pareceres e discursos publicados, impressiona pelas temáticas encontradas. Nos primeiros anos da publicação os seguintes temas apareceram: obras de saneamento do Rio de Janeiro e reurbanização do centro da capital; obras da estrada da estrada de ferro D. Pedro II “e suas conseqüências para a população das localidades de Mariano e Lafayette” (vol. 3, 1887), drenagem de zo-nas pantanosas e alagadiças do Rio de Janeiro “e o que fazer quanto à população que ali se encontra ocupando tais áreas” (vol. 5, 1888). Percebe-se que, principalmente nos primeiros

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números da revista, o discurso empregado foi menos de tom tecnicista e mais voltado para a exposição das posições de alguns dos membros do Clube quanto a problemáticas sociais que o país passava no final do século XIX e começo do século XX. Com a continuidade das publicações e seu conseqüente aprimoramento do discurso empregado rumo a um padrão específico, a revista deixa de lado as “considerações gerais” e entram em campo “parece-res”, “estudos comparativos”, “cálculos”. Acreditamos que com o crescente conhecimento da publicação entre industriais e empresas das áreas técnicas do Brasil e estrangeiras que aqui atuavam o número de artigos feitos por encomenda ou que mostram o resultado de certa pesquisa encomendada ao Clube por uma indústria crescem substancialmente a partir de 1902. Entre as empresas que encomendaram trabalhos e pareceres dos engenheiros está a São Paulo Light Railway que até o ano de 1929 encomendaria ao todo dez trabalhos para o Clube.

Creio, no entanto, que é possível discriminar ainda melhor este quadro geral e estas fases, na medida em que a riqueza dos dados e a bibliografia o permitirem. Enfocando a primeira fase/leva de estudantes, é importante reter dois pontos, seguindo os passos de pesquisa de Anousheh Karvar (1997), essenciais para pensar o caso brasileiro. Por “Polytéchnique”, no século XIX, compreende-se uma escola de formação de quadros técnicos a serviço do Estado tendo em vista a unificação do território e sua defesa, sua organização espacial e a exploração de seus recursos naturais (Karvar, op.cit., p.19 e 23). E também, no início do século XIX, “a França, com seus corpos de profissionais a serviço do Estado e seu complexo sistema de formação de engenheiros civis e militares, oferecia o melhor exemplo do modelo tecnocrático de recrutamento de funcionários-especialistas baseado nos méritos científicos e técnicos. O perfil civil e militar do engenheiro politécnico, exemplo bem sucedido de integra-ção da ciência nas estruturas de comando do Estado, despertava forte apreço fora da França”.

No caso dos estrangeiros que cursaram ao menos uma parte de sua formação nestas instituições, Karvar mostra em sua tese “La formation des élites scientifiques et techniques étrangères à l’École polytechnique française au 19e et 20e siècles” (op.cit., p.14) que “os alunos estrangeiros não constituíram uma população importante em proporção ao número total de alunos. Entretanto, observam-se grandes variações no fluxo destes alunos”. A análise estatís-tica conduzida por esta autora identificou, além disso, chegadas em grupo, em determina-dos períodos, de estudantes procedentes de um mesmo país ou, ao contrário, a constan-te presença de oriundos de um mesmo país, quando se toma a longa duração (p.14-15). Karvar também constatou que, em dois séculos de existência (1794-1985), a Polytechnique atraiu aproximadamente 1.000 ouvintes e alunos estrangeiros que seguiram parcial ou in-tegralmente seu ensino – apesar do declínio científico real da Escola ao longo da segunda metade do século XIX (pp. 30 e 44).

A partir de 1816 uma ordem governamental suprimiu a categoria de alunos e ouvintes externos, exceção feita aos “estrangeiros admitidos para agradar ao governo de seus países” (Karvar, op.cit., p.36). Dentre estes se encontram os primeiros brasileiros, junto com ou-tros estrangeiros provenientes do México, da Rússia, da Polônia, da Romênia e do Egito – todos eles países que atravessavam fortes mudanças políticas e sociais nesta época (p.37), o que poderia explicar, segundo a autora, a necessidade de formar suas elites em outro local, assim como a colaboração do governo francês. No período de 1816-1830, o Brasil ocupa a 2ª posição junto com a Rússia, os dois países tendo enviado sete estudantes cada um (p.36a). Para o período seguinte (1831-1851), contam-se igualmente sete brasileiros em números absolutos, mas em termos relativos isso corresponde à 8ª posição (p.37a).

Ora, a observação quanto ao motivo da exceção – “para agradar ao governo de seus países” – dá o que pensar e discutir. Esta exceção ao Brasil recém independente reforça os

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interesses franceses nesta região do mundo, à época já bastante convulsionada por movi-mentos de independência e, claro, um mercado potencial relevante para os mais diversos produtos (aí incluída a cultura). No entanto, gostaria de acrescentar uma reflexão que vem da ciência política, que ajuda a dar um sentido ampliado a este fluxo de estudantes, inse-rindo-o num quadro que extrapola, e complementa, o que usualmente tem sido discutido pela história das ciências e da tecnologia, ou pela história do período imperial.

A tese de doutorado de Eduardo Romero de Oliveira, defendida no Depto. de Filosofia da USP em 2003, analisou as cerimônias de coroação de D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II, bem como textos de época, para entender a Política de cada período. Uma tese rica e fascinante, da qual, a despeito da distância temática, extrairemos algumas conclusões para melhor situar nosso objeto e nossa análise. Este autor nos mostra que o cerimonial de D. Pedro I foi iniciado e marcado pelo juramento da observância das leis e defesa do Império. A defesa, e a relevância dos militares neste contexto, são a meu ver um dado bastante sig-nificativo para entender a primeira leva de estudantes, alguns já graduados na Academia Real Militar, que teriam ido se aprimorar na França. Vários deles interrompem a estadia em Paris à época da guerra da Cisplatina, e retornam para não mais voltar. Já o reinado de D. Pedro II é marcado pelas ciências, como se sabe, mas Romero de Oliveira demonstra o quanto este aspecto, longe de ser uma idiossincrasia do imperador, fazia parte da concep-ção de política e de bom governo que vigorava. O envio de estudantes para as duas escolas que formavam profissionais de “aplicação” (para montagem de infra-estrutura e explora-ção de recursos) adquire, assim, um significado de política de Estado – fato esse que se poderia confirmar pelo decréscimo e encerramento do fluxo logo após a República. Neste sentido, é possível concluir que a presença de estudantes brasileiros nas Grandes Ecoles francesas integrou e atendeu a um projeto político mais amplo dos governos imperiais, e sua coincidência temporal quase exata com o I e II Impérios não é mera coincidência. Em termos de eficácia, é possível afirmar que, de modo geral, foi bem sucedida, pois vários destes estudantes tiveram carreiras de destaque e boa inserção, seja no governo, seja no plano concreto de seu engajamento profissional. São exemplo Candido Mª de Azevedo Coutinho, Luis Bellegarde, Cândido Batista de Oliveira, José de Figueiredo Rocha, Giá-como Raja Gabaglia, Honório Bicalho. Claro, há vários sobre os quais não se encontram dados, certamente devido ao fato de não terem tido destaque. É oportuno mencionar, por exemplo, que 2/3 dos alunos da Ecole des Ponts-et-Chaussées se diplomaram, ao passo que 1/3 se desligou, seja alegando motivos pessoais ou por insuficiência de desempenho. Dentre os que se destacaram, um foi mordomo da casa imperial, Paulo Barboza, e arrisco afirmar que pode ter sido uma peça-chave na formulação e condução desta política de formação técnica na França. Outros, como Cândido Batista de Oliveira, foi Ministro, em-baixador e professor de ensino superior, dentre muitas outras funções.

Não tenho dúvidas de que este número significativo de estudantes brasileiros nas es-colas francesas de engenharia foi a ponte firme e constante pela qual as famosas “ideias novas” consagradas na expressão de Silvio Romero penetraram no Brasil, sobretudo o Po-sitivismo, mas não apenas. Entretanto, não como ‘um bando’ que invade repentinamente, mas sim num longo processo que tem a duração de décadas.

Muito já se disse e escreveu sobre o Positivismo no Brasil, seja em geral, seja no que concerne às atividades científicas mais propriamente Interessa-me destacar, nesta discus-são, a aproximação que Claude Nicolet (1982, apud Salgueiro, 1997, p.31, nota 43) estabe-lece entre “cientificismo” e positivismo, para ele sinônimos de “mudanças técnicas e sociais, uma formidável revolução científica e intelectual fundada no progresso das ciências ‘exatas’ de base matemática, física e química, mas logo também na ‘revolução’ evolucionista de Da-

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rwin, que, apoiando-se no método experimental, ousa anexar ao espírito ‘positivo’ o domínio do biológico. Positivismo ou cientificismo definem, assim, num clima de modernidade até mais fortalecido pela condenação que a Igreja faz em 1863, o espírito da época”.

O Positivismo começou a se difundir no Brasil por volta de 1840, mas foi a partir de 1870 que sua influência foi mais notável (cf. Dantes, 1996, p.51). É importante salientar que os primeiros textos de Comte que chegaram ao Brasil são aqueles que discutem suas concep-ções científicas e epistemológicas, especialmente os volumes do Cours de philosophie positive eo Discours sur l’esprit positif. Significaram, para alguns brasileiros, um primeiro portal de entrada para as ciências, como afirma Dantes (op. cit., p.52). Esta autora mostra também a forte presença das orientações positivistas no seio das escolas profissionais de Medicina e de Engenharia, sobretudo nas teses escritas e defendidas pelos alunos para obterem seus diplomas, desde a primeira, em 1844, na Faculdade de Medicina da Bahia. Nas três escolas de engenharia que se sucedem ao longo do século – Escola Militar, Escola Central e Escola Poli-técnica –, um terço das teses defendidas eram manifestamente positivistas, além da presença de famosos professores nitidamente positivistas, como Álvaro de Oliveira, Licínio Cardoso, Benjamin Constant ou o Marechal Trompowsky, como já é bem conhecido.

No entanto, uma análise mais detalhada que fiz das obras de dois dos últimos estudan-tes do período – a saber, os irmãos Luiz e Alberto Betim Paes Leme – trouxe dados inespe-rados em relação à supremacia quase absoluta do Positivismo. Em suas obras, Luiz Betim refere-se diversas vezes a ‘milagre’, empregado numa acepção religiosa e conectado à noção de Providência Divina e ao catolicismo. O cerne dos esforços de Luiz Betim reside na (re)aproximação da Física moderna (que ele denomina ‘física do descontínuo’) e da metafísica, de forma a coneber o ‘milagre’ como uma manifestação perfeitamente plausível e conciliar ciência e fé: “a prova da descontinuidade da matéria, obrigou as ciências físicas e as ciências sociais a se enxertarem num tronco comum: a lei dos grandes números. A previsão dos fenô-menos de qualquer natureza, perdeu o caráter imperativo que lhe atribuía o determinismo kantiano e passou a ser considerada apenas como de alto grau de probabilidade. (...) Estava derrubada a muralha intransponível que os ciclópicos pedreiros da filosofia positiva tinham erguido entre a física e a metafísica”. Uma de suas referências é o francês Claude-Fredéric Bastiat (1801-1850), autor de textos econômicos seminais, considerado um sincero pen-sador católico e famoso também por seu ferrenho combate aos socialistas. Por seu turno, Alberto Betim revela-se seguidor de um destacado cientista católico, Albert de Lapparent, ex-aluno da Ecole des Mines. Os ‘milagres’ de Luiz Betim e as especulações filosóficas de Alberto Betim em suas obras geológicas podem representar mais do que curiosidade his-tórica interessante. Arrisco a hipótese de que ambos fizessem parte (ainda que de modo informal), ou tenham ao menos sido influenciados, pelos movimentos de cientistas, en-genheiros e empresários católicos que vicejaram na França, assim como na Bélgica e em outros países europeus, desde o final do século XIX, depois da publicação em 1891 da encíclica Rerum Novarum, até períodos bem recentes no século XX. Como afirmam André Grelon e Françoise Subileau (1989, p.314 e 316), “os dirigentes e empresários católicos (...) constituem há muito tempo, em razão de sua «centralidade», uma peça estratégica na história social da Igreja: esta não deixou de desenvolver uma pastoral apropriada nesta direção, que se exprimiu, dentre outras maneiras, pela criação de grupos ad hoc. (...) A encíclica oferece[u] aos católicos um corpo de doutrina coerente para pensar e organizar a sociedade civil, (...) de investir o mundo moderno, que se desenvolve fora de qualquer referência, dos ensinamentos do cristianismo”. Dentre estes grupos, os autores analisam mais de perto o ‘Mouvement des Cadres Chrétiens’ (MCC) e a ‘Vie Nouvelle’ (VN). O MCC é tributário, em suas origens, da ‘Union Sociale d’ingénieurs catholiques’ (USIC), fundada em 1905, e que por sua vez

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surgiu a partir de associações católicas de engenheiros criadas desde 1892, com forte atu-ação no entorno das escolas de engenharia, como a ‘École Centrale’ ou as ‘Grandes Écoles’ – ‘Politéchnique’, ‘Ponts et Chaussées’ e ‘École des Mines’ (Grelon e Subileau, op.cit. p.317), onde estudaram Luiz e Alberto nessa época. Forte, a USIC congregava aproximadamente 1.200 engenheiros às vésperas da Primeira Grande Guerra, e seu apogeu ocorreu em 1939, quando 10% dos engenheiros franceses eram filiados a ela (idem ibidem). Curiosamen-te, a divisa da USIC é idêntica à da bandeira brasileira na República: “Ordre et progrès” (idem ibidem). Ordem e progresso, no entanto, de tipo bem diverso do concebido pelos positivistas. Para Grelon (2005, pp.81-82), “numerosos eram os que, na hierarquia católica, preconizavam o estabelecimento de uma sociedade corporativa, promessa de uma harmonia universal e via intermediária entre o capitalismo e o socialismo ateu. (...) [Alguns] militam por uma organização cristã de patrões, com o objetivo de recristianizar o mundo operário”.

Acredito que estes aspectos possam embasar uma nova hipótese de trabalho a ser perse-guida em pesquisas futuras: a defesa e o engajamento em prol do progresso do país não fo-ram tributários, exclusivamente, do Positivismo em suas diversas vertentes – embora eu não questione sua preeminência. Parece-me necessário começar a investigar em outras direções a fim de continuar a compor o quadro das ciências e das tecnologias no Brasil. O catolicismo/cristianismo e uma outra compreensão do que seria “Ordem e Progresso” pode surgir, com até mais força do que vimos suspeitando até hoje. Pois Luiz e Alberto não estavam isolados: dentre as conferências promovidas pela ‘Sociedade Scientifica de São Paulo’, fundada em 10 de junho de 1903 na capital paulista por nomes como Alberto Löfgren, Vital Brazil, Adolpho Lutz, dentre outros, destaca-se a conclusão da 6ª conferência (21/04/1904), proferida por um dos fundadores da associação, o meteorologista da Comissão Geográfica e Geológica, José N. Belfort de Mattos, o qual “ao perorar, salienta a nova orientação dos scientistas no seculo novo, promovendo a subordinação dos conhecimentos humanos, tão deficientes, à idéia da omnipo-tência divina, finalisando assim, a insana lucta entre a sciencia e a fé”.4

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Anexos

Tabela 2 – Ecole Polytechnique [fonte: Archives de l’École polytechnique – Titre VI (Personnel – élèves), Section 2 (élèves), Paragraphe b (auditeurs externes/élèves étrangers), Article 2 (Dossiers Particuliers), Cartons 1 (1795-1845) e 3 (1894 – 1937)]; (responsáveis pelos arquivos – Mme. Claudine Billoux et M. François Brunet)

Ano Nome Origem Outras observações 1825 João Nepomuceno da Motta ? 2ª Tenente de Artilharia 1826 João Nepomuceno da Motta ? 1ª Idem 1826 Baptista ? 2ª (?) Oficial 1827 Vasconcellos ? 2ª (?) Pensionista do governo

Rodrigues Torres ? 2ª (?) Capitão du Génie Branca ? 2ª (?) Pensionário do governo

1829 Candido Mª de Azevedo Coutinho ? 2ª (?) Bacharel pelas Universidades de Coimbra e Paris

Henry Rose Guillion (Guillon) ? 2ª 1832 Candido Mª de Azevedo Coutinho ? 1ª 1833 Henry Rose Guillion (Guillon) ? 2ª 1836 Patricio d’Almeida Silva ? 2ª 1837 Agostinho Roiz Cunha ? 2ª

Antonio João de Campos Bellos ? 2ª Antonio Machado Dias ? 2ª Patricio d’Almeida Silva ? 1ª

1838 Agostinho Roiz Cunha ? 1ª 1839 D’Araújo Pinho ? 2ª 1843 Pedro Pereira d’Andrada ? 2ª 1844 Pedro Pereira d’Andrada ? 1ª 1902 Guilherme Paiva ? 2ª

Total 15 estudantes Auditores externos ou alunos estrangeiros

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Tabela 3 – École des Mines [fonte (biblioteca): Association Amicale des Élèves de l’E.N.S.M.P. Annuaire. Nºs 1-9 (1864 a 1872-73); nºs 10-13 (1873 a 1876-77); nºs 14-18 (1877-78 a 1881-82); nº 15 (1878-79); nºs 19-23 (1882-83 a 1886-87); nºs 24-28 (1887-88 a 1891-92); nºs 29-34 (1892-93 a 1897-98); nºs 39-41 (1903-04 a 1905-06)].

Ano Nome Origem 1825 Luis Bellegarde “ João Nepomuceno da Motta “ João Reinardo de Verna “ Magalhães Coutinho “ Cândido Baptista d’Oliveira “ Paulo Barboza da Silva “ De Mello “ José de Figueiredo Rocha Bahia 1826 Emmanuel Joachim de Barros Penedo (AL) 1830 Pitta de Castro 1833 Rose-Henri Guillon Maranhão 1837 Joachim Carvalho Pernambuco 1842 Lemos 1853 Oliveira 1854 Gabaglia 1856 João Coqueiro 1857 Paulo José d’Oliveira Pernambuco

Antonio Basto Pernambuco 1858 D’Araujo Lima Bahia

D’Azevedo Rio de Janeiro 1860 De Couto Ouro Preto

Queiroga Serro Paes de Andrade Pernambuco

1862 Manuel Jansen Pereira Maranhão Aguiar Silva Maranhão

1863 Vicente de Gama Silva Rio de Janeiro 1864 Francisdo Calaça Mata Branca

Nicolas (sic) Vigneiro 1865 Afranham (sic) Pereira 1866 João Leitão da Rocha Rio Grande (sic) 1872 Da Silva Prado São Paulo

Luis Coelho Pará João Coelho Pará De Oliveira Lacaille Rio de Janeiro Francisco Antônio d’Almeida Rio de Janeiro

1876 Eduardo Gomes Pereira Rio de Janeiro (RJ)

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Ano Nome Origem Cyrilo da Silva Genofre (sic) Cantagalo (RJ)

1879 Hildebrando Teixeira Mendes Maranhão 1882 De Carapebus Rio de Janeiro 1888 De Araújo

Rodrigo Carlos da Camara 1891 Leite Chermont Pará 1903 Alberto Betim [Paes Leme] TOTAL 43 estudantes

Tabela 4 – École Nationale des Ponts et Chaussées [fontes: 1) Biblioteca: MALÉZIEUX, Emile. Les élèves-externes de l’École des ponts et chaussés. Annales des ponts et chaussées, tomo IX, 1875, 1er semestre, pp.5-23 (até 1851 não há detalhes dos aluno); 2) Arquivos: MS 3275 – Registre de matricule des élèves externes de l’École des Ponts et Chaussées: nº1 (1851-79), nº2 (1880-99) e nº3 (1900-21). (arquivista: Mme. Anne Lacourt; auxílio: Dr. Constantinos Chatzis (Laboratoire LATTES)]

Ano Nome Origem Dados pessoais Dados escolares Observações

1825-1850 11 estudantes ?? ?? ?? Fonte:

Malézieux

1853 Araujo Ferreira Jacobina ?? ?? Demissionário

em 5/5/1854

1854 Manuel Joaquim de Souza Brito

?? ?? Demissionário em 23/2/1855

1856 Gervazio Rodrigues Campello

Pernambuco

20/11/1833; pais: Manuel Thomaz Campello e Francisca de Paula Pires Ferreira

Classif. 8 – 12 – 12; 552.9 pts (965-517)

Diploma: 16/6/1859

Joaquim Pires Carneiro Monteiro

Pernambuco

09/8/1833; pais: Florencio José Carneiro Monteiro e Joaquina Bonifácia Pires Ferreira

Classif. 3 -3 – 4; repetiu o 3º ano (57/58)

Afastado: insuficiência de nota

Paulo José d’Oliveira Pernambuco

29/9/1830; pais: Manuel d’Oliveira e Marianna Bernarda

Classif. 10 – 9 – 10

Licença por saúde negada (2/3/1857); afastou-se espontanement e (foi p/ ENMP?)

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Ano Nome Origem Dados pessoais Dados escolares Observações

1859 Cyrille Eloy Pessoa de Barros

Bahia 03/12/1834; pais: (“illisible”)

Demissionário em 19/05/1860

1861 Honório Bicalho Ouro Preto

22/2/1839; pais: Lucas Claudemiro Dias Bicalho e Mª Augusta Leão

Classif. 8 – 4-4; 660.5 pts (965-517)

Diploma: 15/6/1864; tornou-se engenheiro da Estrada de Ferro do Rio de Janeiro

1862 Pedro Barbalho Uchoa Cavalcante

Pernambuco

24/8/1842; pais: Alvaro Barbalho Uchoa Cavalcante e Ritta Mauricia Vanderley LinsCavalcante

Classif. 6 – 6 – 6; repetiu o 1º ano; 618.3 pts(965-517)

Diploma: 01/6/1866

Honório Couto Soares Ouro Preto

17/11/1836; pais: Manoel Soares do Couto e Henriqueta Soares Leão

Repetiu o 2º ano (63-64)

Afastado: insuficiência de nota (veio da ENMP)

1865 Francisco Calaça Mata Branca

28/2/1842; pais: Manuel José Gomes Calaça (planteur) e Izabel Senhorinha Gomes de Sá

Classif. 3 – 2 – 2; 672,3 pts (965-517)

Diploma: 15/6/1868 (veio da ENMP)

1873 Arthur Alvim Rio de Janeiro

14/12/1850; pais: Miguel Cordeiro da Silva Torres Alvim (rentier) e Josepha Alvim

Estudou na Esc. Central; classif. 6–6-5; 2.183,53 pts (3.550-1884,75)

Diploma: 20/01/1877

Luis Felipe Alves de Nóbrega

Pelotas (RS)

09/2/1852; pais: Joaquim Alves da Nóbrega (rentier) e Mª Araujo Pereira

Estudou na Un. Coimbra; classif. 4-5-3; 2.235,965 pts (3.550-1884,75)

Diploma: 20/01/1877

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Ano Nome Origem Dados pessoais Dados escolares Observações

1877 Manuel Vianna Campos

18/1/1856; pais: Manuel Joaquim Pereira Vianna (négotiant; morto) e Luisa da Terra Pereira Vianna

Estudou na Un. Coimbra; curso preparatório (76-77): 1º/11; classif 1-1-1; 2.782,37 pts (3.290-608)

Diploma: 27/3/1880

Francisco van Erven Rio de Janeiro

09/5/1851; pais: Jacques van Erven (ingénieur; morto) e Francisca Seixas.

Estudou na Esc. Central; classif. 12-12-9; 2.255,51 pts (3.290-608)

Diploma: 27/3/1880

1879 José Joaquim da Silva Freire Itaguaí

30/11/1855; pais: Thomaz Joaquim da Silva (rentier) e Mª Carolina de Oliveira Freire

Curso preparatório (78-79): 11º/15; classif. 3-0-5; 2.568,12 pts (3.460-2.300)

Pulou o 2º ano Diploma: 20/8/1881

1883 Candido José de Godoy

Rio Grande do Sul

11/3/1858; pais: José Joaquim de Araújo (propriétaire) e Mª Ignacia (morta)

Estudou na Duvigneau de Lanneau; curso preparatório (82-83): 5º/13; classif. 5-4-3; 3.067, 95 pts (4.030-2.915)

Diploma: 05/7/1886

Luiz Augusto de Souza Bahiana Bahia

15/11/1858; pais: José de Souza Bahiana (agriculteur) e Amelia Augusta de Bettencourt

Estudou na Duvigneau de Lanneau; curso preparatório (82-83): 9º/13; classif. 20-...-...

Licença por saúde. Demissionário em 18/9/1886

1884 Lúcio Freitas de Amaral Pará

28/12/1859; pais: José Narciso de Amaral (rentier) e Anna Rosa da Fonseca (48, Rua do Conselheiro Furtado, Pará)

Curso preparatório (82-83 e 83-84): 3º/12; classif. 5-3-3; 3.144,81 pts (4.030-2.925)

Diploma: 16/7/1887

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Ano Nome Origem Dados pessoais Dados escolares Observações

1886 Augusto Otávio Pinto Pará

06/4/1862; pais: Thiago Pinto (médecin) e Glória Pinto (21, Rua Formosa, Pará)

Estudou Lycée St. Louis; curso preparatório (85-86): 11º; classif. 15-14 14; 2.684,645 pts (4.030-2.324)

Certificado de estudos: 23/07/1889

Charles Henri Dengremont Rio de Janeiro

27/2/1857; pais: Charles Dengremont (rentier) e Eulalie Vierling (69 Rue de Dunkerque (?))

Estudou na Duvigneau de Lanneau; curso preparatório (85-86): 5º; classif. 9-11 11; 2.923,50 pts (4.030-2.324)

Diploma: 23/7/1889

1887Alfredo da Costa Correia Leite

Rio Grande do Sul

27/12/1866; pais: Antonio (commerçant) e Amelia d’Araujo Pereira.

Estudou na Duvigneau de Lanneau; curso preparatório (86-87): 4º; classif. 2-3-4; 3.4092,94 pts (4.030-2.369)

Diploma: 21/07/1890

1890 Victor da Silva Freire

Lisboa (Portugal)

22/10/1869; pais: Victor (propriétaire) e Leopoldina Coimbra (164, Rua da Patua (Patria?) Lisboa)

Estudou na Esc. Politéc. Lisboa; admitido por ser funcionário estrangeiro; classif. 8-910; 4.558,12 pts (6.590-1.680)

Diploma: 15/11/1893

1895 Pedro Osorio Bagé (RS) (sic) Paris (1e arrd)

14/1/1877; pais: Pedro Luiz (docteur) e Elizabeth Amiel (28, Rue Madame Paris)

Estudou no Lycée St. Louis;

Licença p/ assuntos familiares (96-97); Demissionário em 1897

1898Pompílio Franco de Falcarreira (????)

Lisboa

17/11/1874; pais: não informa (203, Rua do Salitre (Lisboa?))

Estudou na Duvigneau de Lanneau

Diploma: 10/7/1901

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Ano Nome Origem Dados pessoais Dados escolares Observações

1900 Luiz Betim Paes Leme Rio de Janeiro

11/3/1881; pais: Pedro Betim Paes Leme (ingénieur) e Margarida Betim Paes Leme (33, rue de Naples Paris)

Estudou no Lycée Condorcet; curso preparatório (99-00): 14º; classif. 14-10 15; 2.774,80 pts (4.110-2.671,50)

Diploma: 31/7/1903

Diogo Dias de Barros São Paulo

15/3/1879; pais: Diogo Antonio de Barros (industriel; morto) e Elise Dias de Barros (São Paulo, Brésil)

Curos preparatório (99-00): 18º; classif. 22-21-21; 2.535,01 (4.110-2.671,50)

Certificado de estudos: 31/7/1903

1901 Edmond Michel ??

07/1/1881; pais: Alfred Michel (industriel) e Rosine Michel (Rio de Janeiro, Brésil)

Curso preparatório do Génie Civil; admitido sem exame

Demissionário

Total 37 (36?) estudantes

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Institucionalização da pesquisa e sua inserção social: da antiguidade

aos dias de hoje1

Ubiratan D’[email protected]

Mikhail Leonidovich Gromov (nascimento 23/12/1943) é Professor do Institute des Hautes Études Scientifiques de

Bûres-sur-Yvette, França e em 2009 recebeu o Prêmio Abel (equivalente a um Prêmio Nobel em Matemática) por “suas contribuições revolucionárias à geometria”. Em

entrevista, Gromov diz:

“A Terra vai ficar sem os recursos básicos, e não podemos prever o que vai acontecer depois disso. Vamos ficar sem água, ar, solo, metais ra-ros, para não falar do petróleo. Tudo vai, essencialmente, chegar ao fim dentro de cinquenta anos. O que vai acontecer depois disso? Estou com medo. Tudo pode ir bem se encontrarmos soluções, mas se não, então tudo pode chegar muito rapidamente ao fim!”2

Esta é uma preocupação real, sentida por todos nós. O pessimismo de Gromov não é uma afirmação leviana, jargão próprio de catastrofistas, nem uma visão apocalíptica, de cunho religioso. Vindo de uma pessoa seu status acadêmico, merece atenção.

A pergunta que naturalmente segue é “O que podemos fazer?” O próprio Gromov co-menta, nessa entrevista:

“Estando em nossa torre de marfim, o que podemos dizer? Estamos nes-ta torre de marfim, e nos sentimos confortáveis nela. Mas, realmente, não podemos dizer muito porque não vemos bem o mundo. Temos que sair, mas isto não é tão fácil”

Há muito tempo tenho utilizado uma metáfora, que chamo de “gaiolas epistemológi-cas”, equivalente à metáfora das torres de marfim, para definir conhecimento tradicional.

1 Palestra em Scientiarum Historia III realizada pelo HCTE no CCMN/UFRJ Centro de Ciências da Matemática e da Natureza da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 13 e 15 de outubro de 20102 Interview of Mikhail Gromov given to M. Raussen and C. Skau. Notices of the AMS, v.57, nº 3, March 2010, pp.391-409.

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A metáfora das gaiolas epistemológicas.

As disciplinas são como conhecimento “engaiolado” na sua fundamentação, nos seus critérios de verdade e de rigor, nos seus métodos específicos para lidar com questões bem definidas e com um código linguístico próprio, inacessível aos não iniciados.

Os detentores desse conhecimento são como pássaros vivendo em uma gaiola: ali-mentam-se do que lá encontram, voam só no espaço da gaiola, comunicam-se numa linguagem só conhecida por eles, procriam e repetem-se, só vendo e sentindo o que as grades permitem, como é comum no mundo acadêmico. O que é mais grave, são man-tidos pelos que possuem as gaiolas para seu entretenimento, como é o caso das artes, ou para seu benefício, como é o caso das ciências e da tecnologia. Obviamente, a crítica interna é limitada e exclui o questionamento da própria existência da gaiola. A crise pro-vocada por Kurt Gödel (1906-1978) é ilustrativa dessa metáfora. Em 1931, ele mostrou que não há qualquer método de prova formal que possa demonstrar todas as verdades da matemática, nem mesmo a teoria dos números naturais.3 O trabalho de Gödel causou enorme desconforto e incertezas entre os matemáticos que tinham sensibilidade para as questões de fundamentos. Certamente pela sua dificuldade, e para conveniência dos guardiões das gaiolas, o trabalho foi ignorado pela maioria dos matemáticos, que con-tinuam tranquilos na sua gaiola, beneficiando-se do suporte dos guardiões da gaiola e baseando seu fazer matemático nos critérios de rigor vigentes. O conceito de verdade matemática e a sua inegável beleza serviram e continuam servindo de argamassa para fazer subir o edifício da pesquisa matemática ... mesmo que o alicerce tenha sido fragi-lizado. Essas observações também se aplicam às demais áreas do conhecimento. Num trabalho anterior discuto outros exemplos, inclusive sobre artes4.

A capacidade de observação e interpretação é subordinada à práticas e metodologias bem definidas. Mas nem mesmo podem saber de que cor a gaiola é pintada por fora. Isso equivale ao que Gromov diz “não podemos dizer muito porque não vemos bem o mundo”, citado acima.

A organização do conhecimento em disciplinas tem suas origens na antiguidade.5 Vai tomando os aspectos das disciplinas típicas de um departamento tradicional das univer-sidades a partir do século XVI e só vai se articular com as características atuais no sécu-lo XIX, particularmente quando se organiza a Universidade de Berlim. A necessidade de multidisciplinas já havia sido apontada por Fontenelle no século XVII e as interdisciplinas começam a ser identificadas no século XIX. Mas nada altera a metáfora. Pode-se identifi-car as multidisciplinas como uma justaposição de gaiolas disciplinares (como é praticada nas chamadas grades curriculares da educação) e as interdisciplinas são, metaforicamente, a passagem de uma gaiola para outra ... eventualmente criando um “viveiro”, na verdade uma gaiola maior.

3 Kurt Gödel: “Über formal unentscheidbase Sätze der Principia Mathematica und verwandter Susteme I”, Monatshefte für Mathematik und Physik, vol.38 (1931), pp.173-198. O trabalho é muito técnico, difícil de ser entendido por não especialistas. Uma versão mais accessível encontra-se em Ernest Nagel and James R. Newman: Gödel’s Proof, New York University Press, New York, 1958. 4 Ubiratan D’Ambrosio Teoria da Relatividade, o Princípio da Incerteza, O Expressionismo, org. J.Guinsburg, Editora Perpectiva, São Paulo, 2002; pp.103-120.5 Ver o livro recente de G. E. R. Lloyd, Disciplines in the Making. Cross-cultural Perspectives on Elites, Learning and Innovation, Oxford: Oxford University Press, 2009.

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Transdisciplinaridade, história e filosofia e a institucionalização.O sistema de conhecimento sobre o qual repousa a ciência moderna tem como suporte

a matemática, que repousa sobre• o determinismo newtoniano• a lógica clássica• os sistemas formais.O tripé tem se mostrado insuficiente. De fato, fenômenos complexos, alguns não reco-

nhecidos e nem mesmo notados previamente, não podem ser explicados pela ciência mo-derna, revelando, assim, a insuficiência do tripé. A ciência moderna não tem conseguido explicar a natureza e o comportamento humano em toda sua complexidade.

Sistemas complexos têm vários elementos internos, todos interagindo localmente e consumindo energia para manter sua estabilidade. Os fenômenos podem apresentar com-portamentos ordenados ou caóticos, alguns redutíveis, outros não, alguns previsíveis, ou-tros não. Muitos revelam não-linearidade, holismo, incerteza, probabilidade. Faz-se neces-sário re-conceituar precisão, rigor, exatidão, em vista do reconhecimento de outros níveis de realidade, de fuzziness e de fractais, de uma lógica do terceiro incluído, e de técnicas de aproximação e de avaliação de possibilidades. Ao entrar na era de megas, gigas, taras … e nanos, a cultura material que possibilitou experimentos, suporte do conhecimento cien-tífico da modernidade, tornam-se insuficientes, quando não inoperantes. A incontrolável mobilidade de pessoas, idéias e conciliábulos fazem com que estados soberanos devam reconceituar prioridades e políticas públicas.

A postura transdisciplinar de conhecimento aparece como uma forte possibilidade de lidar com todas essas mudanças que ocorrem a partir de meados do século XX. Um cami-nho para a transdiciplinaridade é encarar o conhecimento com uma postura mais ampla do que é possível estando nas gaiolas epistemológicas e nas torres de marfim.6

Os três temas maiores propostos por Gromov são:• nesta torre de marfim• temos que sair• o que vai acontecer?

Efetivamente, com esses três temas Gromov nos leva a refletir sobre o passado (as tor-res de marfim são construídas ao longo de uma história), sobre o presente, na forma de uma ação, e sobre o futuro.

Padre Antonio Vieira, no seu monumental História do Futuro, diz:

“Nenhuma coisa se pode prometer à natureza humana mais conforme a seu maior apetite, nem mais superior a toda sua capacidade, que a notí-cia dos tempos e sucessos futuros.... O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo tempo ou o seu saber ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.”

Padre Antônio Vieira (1608-1697),História do Futuro.

O encadeamento PASSADO – PRESENTE – FUTURO caracteriza uma visão de história.Do PASSADO tentamos entender e explicar o que aconteceu, recorrendo à leitura de

tudo que nos é accessível: fósseis, ruínas e monumentos; artefatos, decorações e danças; códigos; escritos, acadêmicos ou não, inclusive ficcionais; mitos e narrativas orais; e vestí-

6 Ubiratan D’Ambrosio: Transdisciplinaridade (2ª edição) Palas Athena, São Paulo, 2009.

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gios em geral, recorrendo à hermenêutica e à semiótica, inevitavelmente dando espaço à imaginação e à fantasia.

No PRESENTE está a ação, cujos objetivos maiores são• a procura de soluções para situações e problemas oriundos das necessidades ( ≈

sobrevivência) e da vontade (≈ transcendência) dos agentes; e• a procura de entender e resolver os conflitos entre os agentes.• O FUTURO inclui e procura antecipar o complexo de fatos e fenômenos naturais,

no qual se insere o homem. Cria-se um cenário de futuro no qual os interesses e desejos, os ideais e a utopia dos agentes, são realizados ou rechaçados.

A história não é neutra e tem sido eminentemente política. As ações no presente, visan-do objetivos no futuro, são apreendidas e “justificadas” no passado. Um excelente exemplo nos é dado pela fábula O Lobo e o Cordeiro, de La Fontaine.

A História tem servido, das mais diversas maneiras, a grupos sociais, desde família, tribos e comunidades, até nações e civilizações. A História tem sido fator de afirmação de identidade e respaldo histórico às ações.

O respaldo histórico das ciências é ancorado na institucionalização, que se identifica com a metáfora das torres de marfim ou das gaiolas epistemológicas.

Desde a antiguidade mais remota até o mundo atual identificamos exemplos.7

SUMÉRIA e EA

A Suméria, no Sul da Mesopotâmia, e os sucessivos impérios Acádio, Assírio e Babilô-nico estavam localizados onde é hoje o Iraque. Suméria, considerada o berço da civilização, floresceu no 6º milênio a.C.. Aos sumérios e aos acádios é atribuída a escrita cuneiforme, em tabletes de argila.

Graças a esses tabletes sabemos das atividades científicas / matemáticas da Mesopotâ-mia, desde o início do 3º milênio a.C., principalmente focalizando aritmética, contabilida-de e soluções de problemas.

No final do 4º e início do 3º milênios, uma classe de sacerdotes burocratas registrava e gerenciava aspectos quantitativos de terreno, agricultura e pecuária e trabalho, não apenas registrando dados, mas, também, aventurando-se em previsão agrícola e pecuária.

O instituto de sacerdotes/escribas era preparado conforme sistemas escolares e mesmo currículo de formação. Era reconhecida a inspiração divina nessa preparação. Em alguns ta-bletes há agradecimentos a Ea, deus da sabedoria, e a Nisaba, deusa dos escribas. Quem é Ea?

Ea é a figura central no episódio do dilúvio sumério, registrado na Epopéia de Gilga-mesh. Na Epopéia de Gilgamesh (3º milênio a.C.), lemos como Ea instruiu Utanapishtin para construir a nau que deveria flutuar e salvar a ele, sua família e serviçais e a um casal de cada espécie animal.

A maneira como Ea deu as instruções a Utanapshtin recorria à linguagem matemática. Ea deu as dimensões específicas para que a nau fosse construída adequadamente para sua missão de salvamento da espécie humana.

A mensagem deste episódio implica temer e reverenciar os deuses, que detém um po-

7 Ubiratan D’Ambrosio: From Ea, through Pythagoras, to Avatar: Different Setting for Mathematics, Mathematics in Different Settings, Pinto, M.M.F.& Kawasaki, T.F.(eds.) Proceedings of the 34th Conference of the International Group for the Psychology of Mathematics Education/PME (4 volumes), Belo Horizonte, MG, Brazil, 2010; vol.1 pp.1-20.

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deroso instrumento (a matemática) e são capazes de destruir ou salvar. Matemática é, assim, vista como um atributo divino, um instrumento no processo de

seleção daqueles que devem sobreviver, enquanto aqueles que não servem adequadamente aos deuses devem ser eliminados.

Essa imagem de matemática como um atributo dos mais dotados, daqueles que se apro-ximam do infalível, prevaleceu. A observação de Paulo Freire, numa entrevista de 1997, é atual:

“na minha geração de brasileiros do Nordeste, quando se falava em ma-temática, nós estávamos falando algo sobre deuses”

Paulo Freire 1997

Antiguidade grega.

A Grécia é vista como fundadora (incubadora?) da civilização ocidental. A Matemática grega é hoje identificada com uma narrativa específica, denominada estilo euclidiano, e que chegou até nós. Este tipo de discurso matemático era comum a uma pequena e restrita elite intelectual, distante de qualquer aplicação prática e de assuntos cotidianos.8

Essa pequena e restrita elite reunia-se em ambientes isolados, fora da visibilidade pú-blica, que identificamos como academias (heka+demos). Preocupavam-se com questões abstratas. O exercício intelectual justificava as especulações. Ex-nihilo? Certamente não. Seriam questões existenciais maiores – não diferente do que chamamos filosofia.

O que se passava fora dessas academias? Como o povo lidava com o dia-a-dia? Quem eram os responsáveis pela produção e forte organização econômica e política, pelas constru-ções e monumentos, que foram responsáveis pela hegemonia grega no Mediterrâneo? Com certeza eles não utilizavam conhecimento no “estilo euclidiano”. Como era o povo grego?

Certamente, os membros da elite intelectual que se reuniam em academias eram parte do povo, participavam da sociedade e tinham trabalhos e funções que permitiam seu sus-tento. Mas então pergunta-se sobre o que movia a elite intelectual a um comportamento distante do dia-a-dia?

Os nomes que ocorrem como “fundadores” da filosofia e da matemática grega são Ta-les, de Mileto (ca 625-547 a.C.) e Pitágoras, de Samos (ca 570-500 a.C.). Pitágoras é repre-sentativo da natureza abstrata e espiritual da matemática teórica da Antiguidade Grega, embora seu nome seja associado a coisas eminentemente práticas. Há também teoremas com aplicações práticas associados ao nome Tales.

A historiografia mais atual descarta Tales e Pitágoras como matemáticos no estilo eu-clidiano, embora nos escritos de filósofos posteriores haja referências a eles. É possível que essas referências tenham sido responsáveis pela recusa Cristã da matemática no estilo euclidiano. Por exemplo, no argumento de Arnobius, no século III, quando diz que a ma-temática, baseada em Tales, que atribuía a origem de todas as coisas a fogo e água, e em Pitágoras, que afirmava que os números governam o que existe e acontece nos céus, era incompatível com o Cristianismo. Santo Agostinho retoma argumentos semelhantes.

Um exemplo interessante sobre o que se passava na Grécia é Arquitas, de Tarento (ca430 - ca350 a.C.), um pioneiro do estilo euclidiano e, provavelmente, o primeiro a dar importância a demonstrações formais e a aplicar a redução ao absurdo. Arquitas é o caso

8 Raviel Netz. The Shaping of Deduction in Greek Mathematics. A Study in Cognitive History, Cambridge University Press, 1999.

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típico de um indivíduo que usava seu tempo livre para a aventura intelectual da matemá-tica acadêmica, enquanto tinha vida social definida (político, religioso, administrador).

As academias tinham, provavelmente, um caráter ritualístico, com acesso restrito. A frase “Não entra aqui quem não conhecer geometria” é indicador de uma forma de ini-ciação, típica das “sociedades secretas”. O resgate de Platão por Arquitas também revela o espírito de solidariedade própria de confrarias.

Assim, a idéia da Torre de Marfim, mencionada por Gromov, está surgindo. Os mosteiros medievais, as universidades, as academias (Accademia dei Lincei, 1603, Royal Society, 1660, Académie des Sciences, 1666 e outras) deram continuidade ao ambiente isolado formado por uma elite intelectual. A Casa de Salomão (Nova Atlândida, 1627, de Francis Bacon) é interes-sante, mostrando um caso de “realimentação” dos sábios por conhecimentos de fora.

As universidades, institutos de pesquisa, sociedades e academias de hoje têm normas e regulamentos estritos, código linguístico próprio e critérios próprios de validação e reco-nhecimento e, embora tenham se tornado acessíveis, mantém critérios e rituais de seleção, admissão e iniciação, subordinados a controle de credenciamento e editoração semelhan-tes ao nihil obstat. A imagem da Torre de Marfim prevalece, o isolamento é operacional nessa situação.

No caso específico da matemática, é o próprio Gromov que revela preocupação. Em 1998, Mikhail Gromov indicou um perigoso desequilíbrio:

“nós matemáticos muitas vezes temos pouca idéia sobre o que está se passando em ciência e engenharia, enquanto os cientistas experimentais e engenheiros muitas vezes não se apercebem das oportunidades ofere-cidas pelo progresso da matemática pura. ⇝⇝ Este é um perigoso desequilíbrio e o equilíbrio pode ser restaurado trazendo mais ciências para a educação dos matemáticos e expondo os futuros cientistas e engenheiros à matemática central. ⇝⇝ Isto requer novos currículos e um grande esforço de parte dos mate-máticos para trazer a uma audiência maior as técnicas e idéias matemá-ticas fundamentais (principalmente aquelas desenvolvidas nas últimas décadas).⇝”9

Como atingir uma audiência maior? É necessário que aquilo que se produz na “Casa de Salomão” (Francis Bacon (1561-1626), Nova Atlântida, 1627) ou na “Ivory Tower” (Mikhail Gromov, entrevista de 2010) seja apropriado pelo povo e transite entre os não-iniciados, servindo e ao mesmo tempo recebendo estímulos. Deve-se aventurar extra-muros, sair da Castália de Hermann Hesse, onde o maior status intelectual era o do mestre no Glasper-lenspiel.10 Para isso é necessário superar a misticidade do código lingüístico próprio.

A narrativa científica especializada utilizando linguagem específica tem como protóti-po a narrativa matemática, com uma linguagem convencionada. Um indicador dessa lin-guagem é a existência de vários dicionários matemáticos. É muito relevante notar que a obra maior Éléments de mathématiques, de Nicolas Bourbaki, tem como primeiro fascículo o Fascicule dês résultats, um elenco de termos e resultados básicos que são essenciais para a leitura da obra. A linguagem e a codificação são a quintessência da mística matemática.

9 Mikhael L. Gromov: Possible Trends in Mathematics in the Coming Decades, Notices of the American Mathematical Society, August 1998, p. 847.10 Hermann Hesse. O Jogo das Contas de Vidro, Editora Record, Rio de Janeriro, 2003.

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Utilizo mística na accepção de Houaiss: “conteúdo de uma idéia, causa, instituição etc., ou a atmosfera ou aura de perfeição, verdade, excelência incontestável que as cerca, desper-tando nas pessoas respeito, adesão apaixonada, devotamento, sectarismo etc.”

A necessidade de se aventurar extra-muros foi sutilmente reconhecida por David Hil-bert (1862-1943), na sua antológica conferência no Congresso Internacional de Matemáti-cos em Paris, 1900, na qual ele formulou 23 problemas abertos que dominariam, como de fato dominaram, a matemática do século XX.11 Na introdução da conferência, Hilbert diz:

“Uma teoria matemática não pode ser considerada completa enquanto não for possível torná-la tão clara a ponto de poder ser explicada ao pri-meiro homem que se encontre na rua.”

A questão da inacessibilidade aos não iniciados é o busilis da questão. Isso foi notado pelo laureado físico Silvanus Thompson, FRS (1851-1916), um dos pioneiros da radiologia. Em um livro publicado em 1910, Calculus Made Easy.12 No Prefácio do livro, Thompson diz:

“Alguns artifícios de cálculo são muito fáceis. Outros são enormemente difíceis. Os tolos que escrevem os livros-texto de matemática avançada – e esses tolos são geralmente talentosos – raramente têm o trabalho de mostrar quão fáceis os cálculos fáceis são. Ao contrário, eles parecem querer dar a impressão de seu enorme talento mostrando isso da manei-ra mais difícil.”

O livro, obviamente, provocou grande controvérsia no ambiente matemático acadêmi-co da época.13

O código linguístico próprio e a institucionalização excludente.

O código linguístico próprio, responsável pela inacessibilidade da matemática, é, pa-radoxalmente, associado aos avanços da matemática, sem preocupação com sua utilidade. Os vários redirecionamentos da matemática ao longo da história têm muito a ver com o enriquecimento da linguagem comum, como bem estudado por Ladislav Kvaz (2008).

À guisa de uma definição, pode-se dizer que narrativa científica é o discurso caracteri-zado pela organização formal, procurando evitar redundâncias e metáforas e, naturalmen-te, fantasias. O protótipo de narrativa científica é a narrativa matemática, que é associada, e de certo modo responsável, ao progresso da matemática. Isso também ocorre com as demais ciências, em menor grau.

A menção a metáforas e fantasias é de muita importância. As metáforas têm sido utili-zadas na pesquisa matemática, porém raras vezes são mencionadas. A fantasia, elemento essencial na criatividade, é explicitamente reconhecida pelo consagrado matemático no-

11 Ver uma versão abreviada, traduzida por Sergio R. Nobre, em David Hilbert. Problemas Matemáticos, Revista Brasileira de História da Matemática, v.3, nº 5, 2003, pp.5-12.12 Silvanus P. Thompspn e Martin Gardner: Calculus Made Easy. New York: St. Martin’s Press, 1998. (que contém a obra original de S.P.Thompson, publicada em 1910, com pseudônimo do autor F.R.S.–Fellow of the Royal Society mais comentários de M. Gardner).13 Gustavo Alexandre de Miranda: Silvanus Phillips Thompson e a Desmistificação do Cálculo: Resgatando uma História Esquecida, Dissertação de Mestrado, EM/PUC, São Paulo, 2004.

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rueguês Sophus Lie (1842-1899), quando ele diz:

“Sem fantasia ninguém pode se tornar um matemático, e o que me ga-rantiu um lugar entre os matemáticos dos nossos dias, apesar de mi-nha falta de conhecimento e de forma (≈palavra), foi a audácia do meu pensamento.”14

A fantasia está presente na narrativa ficcional. A ficção é um estímulo para criar o novo e escapar da mesmice repetitiva que caracteriza muitas supostas inovações científicas. A demanda de energia intelectual e emocional na busca de aprimoramento e detalhes é uma característica do que poderíamos chamar o barroco da ciência moderna, que parece atin-gir sua exaustão. Como diz Richard van Oort,

“a ficção parece criar um mundo ex nihilo, isto é, ela parece desafiar as condições normais de referência que restringem os atos da fala conven-cional a um mundo empírico”15

A partir da modernidade as modalidades de narrativa são discriminadas. Particular-mente a narrativa científica e a narrativa literária-artística, que inclui fantasia e ficção, ocupam universos distintos, como bem ilustrou C.P. Snow ao conceituar duas culturas.16

Sair da torre de marfim implica a superação do distanciamento entre as duas culturas.Como diz G.E.R.Lloyd 17, uma estratégia para superar o distanciamento é o reconheci-

mento da complexidade de explicações e da variedade de modos de explicação de diferen-tes estilos de questionamento que se contempla em grupos culturais distintos. O enfoque da Etnomatemática (Etnociências) realiza essa estratégia.18

Outra estratégia para levar a uma audiência maior os grandes avanços da ciência e ao mesmo tempo alertar para os grandes riscos que corremos é o recurso à ficção. Um exem-plo é discutir, num curso de ciências, o filme Avatar (James Cameron, 2009).

Acredito que o recurso à ficção seja a melhor forma de difusão e de crítica aos avanços da ciência e uma eficiente estratégia para que a institucionalização não seja excludente e para se estabelecer o diálogo benéfico para todos.

14 Arild Stubhaug. The Mathematician Sophus Lie, Springer-Verlag, New York, 2000.15 Richard van Oort. The Anthropology of Speech-Act Literary Criticism: A Review Article, Anthropoetics I, no. 2 (December 1995).16 C.P.Snow: As duas culturas e uma segunda leitura, EDUSP, São Paulo,1995 (orig.1959).17 G.E.R. Lloyd. Cognitive variations: reflections on the unity & diversity of the human mind. Oxford: Clarendon Press, 200718 Ubiratan D’Ambrosio: A Historiographical Proposal for Non-western Mathematics. Mathematics Across Cultures. The History of Non-Western Mathematics, ed.Helaine Selin, Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 2000; pp.79-92.

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trabalhos do congresso

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Uma História da Telefonia no Rio de Janeiro (1930-1962)

Ana Christina Saraiva IachanDoutoranda Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e

Epistemologia (HCTE) – [email protected]

1. A Telefonia no Rio de Janeiro

O ano de 1877 é o marco inicial da telefonia no Brasil, quando foi instalada a primeira linha telefônica na cidade do Rio de Janeiro, logo após sua invenção em 1876. No Bra-sil, até a década de 1930, a evolução tecnológica e do negócio da telefonia foram lentas. As ligações telefônicas eram feitas de maneira totalmente manual, através de telefonistas que manipulavam painéis nas centrais telefônicas manuais. Somente em 1930 a cidade do Rio de Janeiro pôde contar com a sua primeira central automática, possibilitando que os usuários completassem ligações locais sem o auxílio das telefonistas. O aparelho telefôni-co gerava, durante a discagem, pulsos elétricos que possibilitavam o encaminhamento da chamada, passo a passo, pelos seletores eletromecânicos da central telefônica.

A história da telefonia no Rio de Janeiro, durante as primeiras seis décadas do século XX, está intimamente ligada a de uma empresa: a Companhia Telefônica Brasileira. Essa empresa foi o braço de telefonia do grupo canadense Brazilian Traction Light and Power (LIGHT), que operava também os serviços de eletricidade, gás e bondes em grande parte do Sudeste.

2. O Amadurecimento do Setor

Vitoriosa a Revolução de 1930, houve um fortalecimento do Executivo e a transferência para o governo federal de funções antes desempenhadas pelos governos estaduais. A nova concepção do papel do Estado como propulsor do desenvolvimento determinava a sua intervenção na economia, mas a situação na telefonia não foi alterada e o grupo LIGHT, através da Brazilian Telephone Company, permaneceu exercendo seu monopólio na capital federal.

O foco principal da regulamentação criada pelos Decretos nº 20.047 e nº 21.111 de 1931 e 1932, respectivamente, eram as atividades de radiodifusão e não a telefonia (BRA-SIL, 1931, 1932). Desde os primeiros contratos de concessão de exploração de serviços públicos, haviam sido incluídas cláusulas que impunham, nos serviços e produtos ofereci-dos no território brasileiro, o preço internacional e a conversão em moeda estrangeira. O

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Decreto nº 23.501 de 1933 cancelou para todos os contratos a polêmica “cláusula OURO”, impactando, assim, a remuneração das concessionárias estrangeiras (BRASIL, 1933).

A partir de 1931, acompanhando o ritmo de recuperação da economia, começou uma pequena expansão do sistema, visando atender ao segmento de empresas. A Companhia Telefônica Brasileira instalou o primeiro grande PABX (Private Automatic Branch Exchan-ge) em empresa particular, com 40 ramais internos. Todo o equipamento utilizado era importado, assim como o material de reposição. A administração e as atividades técni-cas eram lideradas por profissionais estrangeiros indicados pela matriz canadense (SINO AZUL, 1930).

Na década de 1930, os serviços telefônicos ainda eram usados por uma pequena parce-la da população. Somente em 1935 que o primeiro posto telefônico público entrou em ati-vidade no Rio de Janeiro, instalado na antiga galeria Cruzeiro. Os telefones de uso público foram instalados aos poucos em estabelecimentos comerciais, ampliando, assim, a oferta de serviços telefônicos à população.

Em novembro de 1937, foi instaurado o Estado Novo, o qual estabeleceu um poder for-te e autoritário e reforçou o intervencionismo estatal na economia e na vida social iniciado em 1930. Embora a telefonia não tenha sido afetada diretamente pelas reformas introduzi-das, a expansão e a qualidade dos serviços passaram a ser alvo de atenção governamental. O Decreto nº 5.144 de 1942 demonstra essa atenção, determinando que nenhuma conces-são de serviço devesse ser outorgada sem que fossem seguidas normas que garantissem a qualidade e a continuidade dos serviços (BRASIL, 1942).

3. A Deterioração da Rede e a Falta de Expansão

Em 1939, o Brasil contava com 300 mil telefones, sendo 100 mil do Rio de Janeiro. No mundo, já existiam 41 milhões, com cerca de 50% instalados nos Estados Unidos. Nova Iorque, sozinha, tinha cinco vezes mais telefones que o Brasil inteiro. O número de telefo-nes na cidade do Rio de Janeiro, na década de 1940, cresceu mais de 87,6%, passando de 113 para 212 mil aparelhos (KESTELMAN, 2002: 230). Essa taxa era bem superior à do crescimento de domicílios, que fora de 29,8%. Com isso, o incremento da demanda por telefones superava em muito o crescimento da população.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial afetou a prestação de serviços telefônicos, devi-do à dificuldade de importação de equipamentos.

A Constituição de 1946 restaurou o princípio federalista, estabelecendo a divisão de atribuições entre a União, os estados e os municípios (ABREU, 2001: 1571). A regulação e a exploração dos serviços locais de telefonia permaneceram sob a responsabilidade dos estados, que poderiam repassá-las para os seus municípios.

No segundo Governo Vargas (1951-1954), o discurso de defesa dos interesses na-cionais e de combate à participação estrangeira na esfera econômica, principalmente nos serviços públicos, tornou-se dominante entre as lideranças populares. O serviço te-lefônico na capital federal era falho, insuficiente para atender à demanda, mas ainda assim era o melhor do Brasil. Como sede do governo, a cidade do Rio de Janeiro era naturalmente o alvo prioritário de reclamações (OLIVEIRA, 1992: 32). A degradação dos serviços telefônicos atingiu tal ponto que passou a ser considerada um gargalo ao desenvolvimento econômico do país.

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4. A Crise na Cidade do Rio de Janeiro

Em 1953, a prefeitura do Distrito Federal e a CTB celebraram um novo contrato de concessão com novas regras, obrigações e, inclusive, um cronograma de expansão. (OLI-VEIRA, 1992: 226). O prefeito Negrão de Lima (1956-1958) estabeleceu em 1956 uma co-missão fiscalizadora para averiguar a real situação. O relatório nº 2 da Comissão apontava que a concessionária não estava interessada em obter novos recursos, fosse por aumento de capital social ou pela obtenção de novos empréstimos, e que o Fundo de Encampação, constituído pela contribuição compulsória de 4% sobre a conta mensal dos assinantes, não se configurava como gerador de recursos para a expansão necessária. A Comissão elaborou, em conjunto com a CTB, um plano para a instalação dos novos telefones, con-siderando, inclusive, os custos de importação, pois praticamente inexistia uma indústria nacional de equipamentos. O problema da CTB no Rio de Janeiro era visto, também, em outros serviços públicos de outras localidades.

O Governo Kubitscheck (1956-1961) acompanhou de perto a ação da Prefeitura do Distrito Federal. Para JK, as dificuldades nas comunicações dificultavam o desenvolvi-mento almejado pelo seu Plano de Metas. Em 1956, o Decreto nº 40.439 de 1956 procedeu à nacionalização da CTB, mas o controle acionário continuou com a LIGHT canadense, não alterando a situação de precariedade operacional (BRASIL, 1956). O principal proble-ma apontado na época era a insuficiência das tarifas para cobrir a operação e a expansão da rede. As fontes de financiamento para o setor eram escassas e o Banco Nacional do De-senvolvimento Econômico (BNDE) não possuía linha de crédito para a telefonia.

O Decreto Federal nº 41.800 de 1957 criou uma comissão responsável pelo estudo da expansão dos serviços telefônicos em todo o país (BRASIL, 1957). Os estudos foram enca-minhados ao Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) como subsídio à implantação das comunicações em Brasília (OLIVEIRA, 1992: 39). A Lei nº 3.683 de 1959 que concedeu incentivos à produção de equipamentos de telecomunicações, representou a primeira ini-ciativa para o estabelecimento de uma indústria nacional de equipamentos de telecomuni-cações (BRASIL, 1959).

5. As Disputas Políticas pela Telefonia

Até o início da década de 1960, a CTB ainda conseguiu fazer instalações de novos ter-minais. No entanto, a pressão, gerada não só pela demanda reprimida como pelo surto de crescimento industrial que ocorria no país, causou um impacto na qualidade dos serviços, levando à demora para a obtenção do tom de discar a 30 minutos no centro da cidade do Rio de Janeiro (TELERJ, 1995: 3-37).

A resolução dos problemas que afetavam a capital federal era vista como um indicativo de eficiência da administração e de sua capacidade em resolver os problemas do país. Logo após sua posse como primeiro governador da Guanabara, em dezembro de 1960, Carlos Lacerda (1960-1965) procurou a direção da CTB para solucionar o problema da falta de telefones. Como não obteve sucesso, nomeou uma Comissão de Intervenção a fim de efe-tuar um levantamento técnico-financeiro da empresa.

No Rio Grande do Sul, a situação das telecomunicações também era precária. A con-cessionária local era a Companhia Telefônica Nacional (CTN), controlada pela norte-ame-ricana International Telephone and Telegraph (ITT). O governador Leonel Brizola (1959-1963) também procurou a CTN com o objetivo de resolver a situação da crise na telefonia.

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O presidente Jânio Quadros (1961) foi alertado sobre a possibilidade de Lacerda, caso assumisse o sistema telefônico do Rio de Janeiro, controlar as comunicações de todo o país (OLIVEIRA, 2005; SILVA, 1990: 17). Jânio criou um grupo de trabalho para estudar a situ-ação dos serviços telefônicos em âmbito nacional, o qual elaborou o Plano Nacional de Te-lefonia, que propunha a criação de um órgão central de supervisão. Em maio de 1961, foi criado o Conselho Nacional de Telecomunicações, subordinado ao Presidente da Repúbli-ca, passando esse a centralizar as decisões sobre as telecomunicações em âmbito nacional englobando: telefonia local, interestadual, internacional, integração nacional, formação de indústria no Brasil e geração de mão-de-obra especializada. A Comissão de Intervenção da CTB procurou o grupo para apresentar a solução para a Guanabara, que seria a criação de uma empresa estadual de economia mista. A proposta foi rechaçada, pois o grupo desejava dar uma solução global, e não em separado por estado.

Em dezembro de 1961, o BNDE iniciou negociações com a COBAST, representante brasileira da Brazilian Traction, para a compra da CTB. Em março de 1962, Lacerda con-vocou o presidente da empresa, Antônio Galotti, e propôs-lhe a compra das ações. Galotti recusou, informando que estava negociando com o BNDE a compra de toda a empresa. Em represália, Lacerda ameaçou de desapropriação todos os bens da empresa na Gua-nabara. Em 30 de março de 1962, Lacerda baixou o Decreto nº 940 de 1962, declarando de utilidade pública para fins de desapropriação todos os bens da Companhia Telefônica Brasileira (OLIVEIRA, 2005; SILVA, 1990). No dia seguinte, mediante o Decreto nº 814 de 1962, foi executada a intervenção federal na CTB com o argumento de que os serviços interestaduais dependiam da eficiência dos serviços locais e que estes eram deficientes na área de concessão da companhia (BRASIL, 1962). As disputas entre o governo federal e os governos estaduais para controle das telecomunicações continuaram, sendo levadas, no caso da CTB, à justiça para deliberação sobre a legalidade da intervenção.

Através do Decreto nº. 13.186 de fevereiro de 1962, o governo do Rio Grande do Sul cassou as concessões e desapropriou os bens da CTN (BRASIL, 1962). A desapropriação da CTN criou um problema nas relações entre o governo brasileiro e o norte-americano, pois feria o artigo 6º do Foreign Aid Act dos EUA, já que não houvera garantia de justa com-pensação. Em abril de 1962, Jango viajou a Washington para buscar recursos financeiros e discutir os temas que afetavam as relações entre os dois países, entre eles a nacionalização de empresas norte-americanas. O governo não desejava que o problema causado pela en-campação da CTN se repetisse.

Derrotado na sua luta pelo controle da CTB, Lacerda assinou, em 24 de dezembro de 1962, a Lei estadual nº 263, criando a Companhia Estadual de Telefones - CETEL (OLI-VEIRA, 2005; SILVA, 1990). Em 20 de janeiro de 1963, foi estabelecida a área de concessão da CETEL, cobrindo toda a região que não era atendida pelo serviço automático da CTB, como a Ilha do Governador, Barra da Tijuca, Jacarepaguá e Zona Oeste.

A CTB continuou sob intervenção federal, somente em 1966 foram completadas as negociações para sua compra, ficando a recém criada EMBRATEL (1965) como principal acionista.

6. À Guisa de Conclusão

Percorremos, assim, pouco mais de três décadas da trajetória da telefonia no Rio de Ja-neiro. E vimos como, no início da década de 1960, a telefonia foi alvo de acirradas disputas políticas.

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Rousseau e o Discurso sobre as Ciências e sobre as Artes:

o prelúdio de uma visão crítica da centralidade tecnociêntífica

Ana Paula Bispo da Silva1 Cidoval Morais de Sousa2

Vitor Ogiboski3

Um novo sentido para o enfoque de Rousseau

Recorrer à obra de Rousseau para abordar a crítica a tecnociência é buscar o início de um posicionamento que tem ganhado espaço nos estudos da filosofia e das ciências sociais. O que procura-se investigar é o sentido e o valor da evolução sócio-técnica para a modernidade, refletindo, assim como Rousseau, se elas tem algum tipo de relacionamento com a virtude humana. A preocupação com os efeitos negativos gerados pelo desenvolvi-mento científico passou a ocupar as agendas de pesquisas depois de eventos como as guer-ras biológicas, bombas nucleares e devastação ambiental, ocorridos principalmente depois da segunda grande guerra. O perigo da tecnociência existe e está cada vez mais evidente, porém, como afirma Bazzo, Pinheiro e Silveira (2009), muitos cidadãos ainda tem dificul-dades de compreender seus reais efeitos, que por detrás de grandes promessas de avanços tecnológicos, esconde lucros e interesses das classes dominantes.

Tal realidade parece evidenciar o temor de Rousseau, por isso, parece conveniente re-cuperar seu primeiro escrito, buscando uma leitura contemporânea de suas idéias, afim de retomar um alerta que foi dado há 260 anos atrás, ou seja: o desenvolvimento das artes e ciências é capaz corromper a dignidade humana, afastando o homem de sua humanidade. Quando o autor genebrino exprime que a ciência esconde falsas estradas que levam a ca-minhos mil vezes mais perigosos que a verdade que se busca, (ROUSSEAU, [1749], 2005), mostra que o teor de suas críticas ganham sentido e aplicabilidade atual. De acordo com Santos (1988), é hora de retomarmos os questionamentos sobre as relações entre a ciência e a virtude, nos perguntando se o acúmulo do conhecimento científico tem gerado o enri-

1 Grupo de Pesquisa em História da Ciência e Ensino (GHCEN) - Departamento de Física – Universidade Estadual da Paraíba. ([email protected])2 Professor da Universidade Estadual da Paraíba. Colaborador do Programa de Pós Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos. ([email protected])3 Mestrando do curso de Ciência, Tecnologia e sociedade (CTS) da Universidade Federal de São Carlos. ([email protected])

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quecimento ou o empobrecimento prático das nossas vidas, mas efetivamente, se a ciência e a tecnologia promovem a felicidade humana.

Para que se possa apontar a pertinência das ideias de Rousseau para o contexto da sociedade tecnológica atual, serão utilizados fragmentos das obras de dois autores contem-porâneos: Boaventura de Souza Santos, representando a sociologia da ciência, e Andrew Feenberg, representando a filosofia da ciência. Tais autores foram escolhidos, porque assim como Rousseau, acreditam que a ciência e a tecnologia possuem características capazes de corromper a dignidade humana. A pretensão aqui não é fazer um estudo aprofundado, mas somente demonstrar que o discurso de Rousseau pode ser comparado com a visão pós-moderna crítica da tecnologia.

Rousseau e o Discurso sobre as Ciências e as Artes: uma luz reveladora

Rousseau, no ano de 1749, com 37 anos, era até então pouco conhecido. Certa ocasião estava a caminho de Vincennes, nos arredores de Paris para visitar seu amigo Diderot na prisão, que havia sido detido por conta de algumas publicações consideradas “progres-sistas” pelas autoridades civis. No caminho, leu no Mercure de France, jornal que circu-lava na França em sua época, um anúncio da Academia de Dijon oferecendo um prêmio aquele que fizesse o melhor ensaio sobre o tema: Tem o progresso das artes e das ciências contribuído para a purificação ou para a corrupção da moralidade? Nesse exato momento, foi tomado por uma luz reveladora. “Rousseau ficou petrificado; foi tamanha torrente de novas idéias e visões que o acometeram que desmaiou e viu-se incapaz por algum tempo de prosseguir sua viagem” (DENT, 1996, p.17). Decidiu participar, ganhando o prêmio de destaque nesse concurso acadêmico, que como afirma o próprio autor genebrino na Ad-vertência de sua obra, “tornou conhecido meu nome”. Através de um discurso que lembra a maiêutica socrática, a dúvida suscitada no ensaio convida o leitor a refletir sobre a cor-rupção moral gerada pelas artes e ciências. Como explica Garcia (2005) na apresentação da obra de Rousseau, é apresentando dúvidas e formulando questões que o filósofo iluminista vai extraindo, como num parto, a experiência vivida de seus leitores para que possam com-preender os perigos do desenvolvimento das artes e das ciências.

O Discurso sobre as ciências e as artes representa o início das reflexões do autor sobre a corrupção do homem inserido no ambiente social, tema constante e melhor desenvolvi-do em obras posteriores. Para Freitas (2006), em seu primeiro discurso, Rousseau arma o cenário ideal de questionamento e de crítica aos homens de sua própria realidade em sua forma mais degenerada. A pergunta feita pela academia de Dijon: se o restabelecimento das ciências e das artes contribui para aperfeiçoar os costumes, foi rebatida por Rousseau com uma segunda pergunta: há alguma relação entre a ciência e a virtude? Sua resposta negativa causou furor entre os intelectuais de sua época. Dessa maneira, segundo Roger (2005), ele deixa deliberadamente o contexto histórico imposto pela questão e volta à oposição clás-sica entre a ciência e a virtude.

Uma leitura contemporânea

Boaventura de Souza Santos, em seu ensaio Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pós-moderna, faz referência direta a obra de Rousseau, questionando a validade da sociedade tecnociêntifica. “Estamos de novo regressados à necessidade de per-

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guntar pelas relações entre a ciência e a virtude, [...] e temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobre-cimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade” (SANTOS, 1988, p. 47). O motivo da retomada ao texto iluminista se caracteriza pelo medo confesso de Santos, que no ano de 1988 afirmava que “através de uma reflexão mais rigorosa dos limites científicos combinada com os perigos cada vez mais verossímeis de catástrofes ecológicas ou de guerras nucleares, provocam o temor de que o século XXI termine antes mesmo de começar” (SANTOS, 1988, p. 46). Essa visão de temor sobre o desenvolvimento da ciência também fica claro no discurso de Rousseau, que afirma metaforicamente que “a natureza nos quis preservar da ciência, assim como a mãe que arrebata uma arma perigosa das mãos do seu filho; que todos os segredos que ela vos esconde são tantos males dos quais vos preserva e que a dificuldade que encontrais em vos instruir não é o menor de seus benefícios” (ROUSSEAU, 2005, [1749], p. 22).

Frente a esses perigos gerados pela tecnociência, Feenberg (2003) coloca outro ponto na discussão, que é exatamente o questionamento sobre o sentido da evolução tecnológica. De acordo com o autor, atualmente vive-se numa crise da qual parece não existir fuga: a ciência e a tecnologia dotaram o homem de grande poder instrumental que o faz acreditar que pode alcançar o desenvolvimento, mesmo sem saber o porquê, a direção e o significa-do desse “desenvolvimento. “Mas quando o século XX avança das guerras mundiais para os campos de concentração  e  para catástrofes ambientais, fica mais difícil ignorar a estra-nha falta de sentido da modernidade” (FEENBERG, 2003, p. 145)

Na segunda parte do discurso de Rousseau, encontramos uma referência muito im-portante no que concerne aos perigos da investigação e aplicação científica desenfreada. Rousseau questiona: “Quantos perigos! quantas falsas estradas, na investigação das ciên-cias? Por quantos erros, mil vezes mais perigosos do que a verdade, não será útil, não será preciso passar para alcançá-la?” Mais adiante o autor completa: “Se nossas ciências são vãs no objetivo a que se propõem, são mais perigosas ainda pelos efeitos que produzem” (ROUSSEAU, [1749], 2005, p.26) Nessa linha de pensamento, Feenberg conclui: “O efeito geral desse processo é a destruição do homem e da natureza. Um mundo “estruturado” pela tecnologia é radicalmente alienado e hostil” (FEENBERG, 2003, p. 289).

A sociedade do consumo desenfreado, típica do modelo capitalista desencadeado pelo desenvolvimento tecnológico da revolução industrial também foi retratada por Rousse-au, mesmo antes dela se constituir genuinamente. Ou se referir à corrupção da virtude, o autor afirma: “O que será da virtude, quando for preciso enriquecer a qualquer custo? Os antigos políticos falavam incessantemente de costumes e de virtude; os nossos só falam de comércio e de dinheiro”. (ROUSSEAU, [1749], 2005, p.28) Feenberg afirma: “O “maestro” moderno exemplar da tecnologia é o empreiteiro que focaliza com ideia fixa apenas a pro-dução e o lucro. O empreiteiro é uma plataforma radicalmente descontextualizada para a ação, sem as responsabilidades tradicionais para com as pessoas e lugares envolvidos com a força técnica no passado” (FEENBERG, 2003, p.94).

Outro ponto onde podemos encontrar referências de Rousseau no pensamento da filo-sofia moderna é sobre a postura arrogante do cientista, que se coloca em posição elevada diante daqueles que não tiveram chance de contemplar suas verdades. Nas palavras de Rousseau, “esses declamadores vãos e fúteis andam por toda a parte, armados com seus funestos paradoxos; solapam os fundamentos da lei e aniquilam a virtude. Sorriem com desdém das antigas palavras pátria e religião e consagram seus talentos e sua filosofia a destruir e aviltar tudo quanto há de sagrado entre os homens” (ROUSSEAU, [1749], 2005, p.27). Santos afirma: “Esta preocupação em testemunhar uma ruptura fundante que possi-

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bilita uma e só uma forma de conhecimento verdadeiro está bem patente na atitude mental dos protagonistas, no seu espanto perante as próprias descobertas e a extrema e ao mesmo tempo serena arrogância com que se medem com os seus contemporâneos” (SANTOS, 1988, p. 48).

Assim como Rousseau, que acreditava no valor intrínseco dos costumes rústicos e na-turais, Santos (2005), ao elaborar seu conceito de ecologia dos saberes, propõe uma apro-ximação do conhecimento científico/acadêmico, com o conhecimento popular, muito va-lorizado por Rousseau. Santos afirma que, “a ecologia de saberes é, por assim dizer, uma forma de extensão ao contrário, de fora da universidade para dentro da universidade. Con-siste na promoção de diálogos entre o saber científico ou humanístico, que a universidade produz e, saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses [...] que circulam na sociedade” (SANTOS, 2005, p. 176).

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Referências

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GARCIA, N. J. Apresentação. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. Tradução por Nélson Jahr Garcia. [S.I]: Ridendo Castigat Moraes, [S.d.]. Edição eletrônica. Disponível em http://www.eBooksBrasil.com. Copyrigth: domínio público. p. 6-7.

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___________, J. J. Discurso sobre as ciências e as artes. Tradução por Nélson Jahr Garcia. [S.I]: Ridendo Castigat Moraes, [S.d.]. Edição eletrônica. Disponível em http://www.eBooksBrasil.com. Copyrigth: domínio público.

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O Museu Nacional e a Diffusão da Chimica – a importância do museu nacional na história da

ciência do país*Araci Alves Santos (PG); Nadja Paraense dos Santos (PQ)

Programa Pós Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia - UFRJ *[email protected]

I - Introdução

A Exposição do Centenário da Independência do Brasil realizada na cidade do Rio de Janeiro entre setembro de 1922 à julho de 1923 foi um evento cívico feito para comemorar os cem anos de independência do país. Embora tivesse características comerciais e indus-triais, também evidenciamos um caráter científico presente nas mostras realizadas pelas principais Instituições Científicas nacionais e na participação de intelectuais e cientistas nos diversos eventos atrelados a Exposição.

O certame possibilitou a realização de vários congressos científicos, tais como o Con-gresso de Ensino Secundário e Superior, o Primeiro Congresso Brasileiro de Farmácia, e a produção de inúmeras publicações em diversas áreas do conhecimento, tais como álbuns da capital, do estado e do país; manuais escolares, dicionários geográficos, etc.

A idéia era repensar a Nação sobre vários aspectos, incluindo as contribuições cientí-ficas das Instituições Oficiais. Desta maneira o trabalho intitulado “O Museu Nacional e a diffusão da chimica” escrito pelo Dr. Alfredo Antonio de Andrade1 então diretor do Labo-ratório de Química do Museu Nacional e professor catedrático da Faculdade de Medicina, reflete a intenção do autor de atribuir a Instituição um papel de destaque na História do país. O trabalho em questão foi apresentado no Primeiro Congresso Brasileiro de Química realizado entre os dias 03 a 07 de novembro de 1922 e insere-se no contexto das comemo-rações do Centenário. O objetivo do nosso trabalho é analisa-lo, situando-o historicamen-te no contexto das discussões acerca da idéia de Nação almejada naquele momento.

II- O Laboratório Chímico e a consolidação da Ciência na capital

O trabalho do Dr. Alfredo de Andrade faz um histórico da difusão da Química feita através dos trabalhos do Museu Nacional traçando um panorama geral da Instituição cria-da quatro anos antes da Independência. Assim, no momento em que o Brasil estava come-

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morando o Centenário de Independência fazer um balanço sobre as atividades de difusão científica desenvolvida pelo Museu Nacional através do Laboratório Químico, pretendia contribuir para a inserção dessa Instituição na História do Brasil como portadora de um projeto científico anterior à própria Nação, construindo uma Memória para o Laboratório Químico.

Inicialmente Dr. Alfredo Antonio de Andrade destacou a vinda da arquiduquesa aus-tríaca (depois primeira Imperatriz do Brasil) Dª. Leopoldina como fator determinante para a criação do Museu Real. Destacando o séqüito de “grandes nomes universais” que a acompanharam, como Johann Baptiste von Spix, Carl Friedrich Phillipp von Martius, Johann Emanuel Pohl, dentre outros. Estes cientistas eram vistos pelo autor como incen-tivadores dos estudos sobre Ciências Naturais que levaram a criação do Museu Real, em 6 de junho de 1818.

(...) foi assim este Instituto de começo orientado para a Química, pois nela se integra a Mineralogia, um de seus ramos, aquele que cuida dos corpos e suas combinações, tais se encontram em a Natureza, valendo-se da Física para as noções e leis cristalográficas e da Geologia, ou melhor, da Geografia para estudar a dispersão na Terra dos agrupamentos mo-dos por que os elementos químicos se apresentam (ANDRADE, 1922, pp. 3-4).

A relação entre a vinda de D. Leopoldina e a criação da Instituição pode ser explica-da pelo interesse dela em Ciências Naturais, advindo da formação científica recebida no Palácio Imperial de Schonbrunn, acumulando conhecimentos profundos de Astronomia, Mineralogia e Botânica (LEONTSINIS,1997)

Continuando a narrativa, o autor conta-nos que graças ao empenho do diretor do Mu-seu na época o Dr. João da Silveira Caldeira2 e ao apoio de José Bonifácio de Andrada e Silva, em 1824, foi instalado o primeiro Laboratório Chímico do Brasil para análises visto que: o Laboratório Chimico-Prático, criado em 1812, destinava-se apenas a ligeiros exames de productos pharmacêuticos.3

Segundo ele então, no Laboratório Chimico foram realizadas as primeiras análises de combustíveis nacionais, pois o mesmo recebia amostras de substâncias de todas as provín-cias do país. Mesmo nas direções posteriores, os trabalhos tiveram continuidade, e ocor-reram melhorias, como as promovidas por Frederico Leopoldo Cezar Burlamaque e por Guilherme Schuch Capanema quando assumiram a direção do Museu em 1847.

A partir deste ano, o Laboratório ficou sob o encargo do Dr. Theodoro Peckolt que o reorganizou para continuar analisando os minerais e também outras substâncias desco-nhecidas. Embora seja mencionado no texto que o farmacêutico teria iniciado os estudos sobre as plantas no Museu, o trabalho de Santos (2002) mostra o contrário:

Ao tentarmos refletir sobre a saída de Theodoro Peckolt do Museu Na-cional, podemos inferir que ele não se adaptou em ser um funcionário do museu e exercer funções que não se enquadravam em seu perfil de pesquisador. A década de 1870 foi um período de renovações substan-ciais em termos da cultura científica brasileira, levando a demarcação de especialidades, isto é do campo de atuação dos profissionais de ciên-cias, Peckolt era um especialista nos estudos de fitoquímica de plantas brasileiras e entre suas atribuições como reformador do Museu estava

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também a análise de diversos materiais, prioritariamente minerais, que não eram seu objeto de estudo (p.178).

Como o Museu estava vinculado ao Ministério da Justiça, o Laboratório era utilizado para diversas atividades. Andrade ressaltou o papel do Laboratório nas primeiras perícias toxicológicas, mencionando que o mesmo ficou franqueado às requisições do Chefe de Po-lícia da Corte por ordem do Imperador. E a partir de 1856 também atendia às necessidades do Chefe de Polícia de Niterói para a perícia toxicológica.

Além dessas atividades o Laboratório do Museu também foi utilizado para aulas práti-cas das Instituições de Ensino da Corte:

Em torno dessa modesta instalação, girou delongadamente a Química no Brasil, servindo ela eficazmente ao ensino desta ciência e por igual ao da Física. A coleção mineralógica inicial concorrera à instrução dos alunos da Academia Militar, de que foram lentes seus quatro primeiros diretores.Os aparelhos e utensílios do Laboratório estiveram a serviço das lições da Faculdade de Medicina, para aquelas duas disciplinas, por ordem das Regências em 1833 e 1836 e em conseqüência de solicitações de seu Di-retor, sempre alegando não achar-se o estabelecimento provido de ins-trumentos indispensáveis ao bom desempenho do ensino (ANDRADE 1922, p. 6)

O autor mencionava que o Laboratório Químico do Museu Nacional, além de prestar--se a utilização dos professores oficiais também serviu à Instrucção científica popular, pois era nele que Agostinho Rodrigues da Cunha preparava as experiências para as Exposições de Química Industrial. Além disso, o Laboratório contribuiu para a divulgação impressa dos conhecimentos de Química em publicações como, por exemplo, o “Manual do Ensaia-dor de Vanquelin” e a “Nova Nomenclatura Chimica Portugueza” obra em três volumes, ambas publicadas após a Independência e durante a gestão do segundo diretor do Museu, o Dr. João da Silveira Caldeira.

Outra publicação destacada foi “Lições de Chímica e Mineralogia” obra de 47 páginas, “em que a matéria é tratada sobre a forma de preleções, muito claras, syntéticas, abrangendo mais especialmente o ramo da Chímica convencionalmente apontado por Chímica Geral” (Idem, p.8) de Frei Custódio Alves Serrão, terceiro diretor do Museu.

Na gestão do Dr. Frederico L. C. Burlamaque, o autor chamou atenção ao fato de que a maioria das publicações terem sido em Química Aplicada, destacando as obras: Compen-dio de Montanística, Riquezas minerais do Brasil, Memórias sobre o salitre,a soda e a potas-sa, Manual dos agentes fertilizadores e a Arte de fabricar o vinho. Além disso, ele ressaltou que o diretor do Museu nesse período também escreveu vários artigos de vulgarização de conhecimentos químicos no periódico “Auxiliador da Indústria Nacional”, órgão de divul-gação da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN).

Com a proclamação da República em 1889, o Museu passou por algumas transforma-ções, primeiro foi transferido do Campo de Santana para o Palácio da Quinta da Boa Vis-ta, localizado São Cristóvão, em julho de 1892. Outras mudanças ocorreram também na área administrativa. Até 1910 o Museu esteve subordinado ao Ministério da Justiça quando foi transferido para o recém criado Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Com isso o edifício passou por muitas obras de remodelação e com elas “(...) tiveram installação

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condigna os dois novos laboratórios de Chimica Analytica (Geral) e Chimica Vegetal. Elles fundiram-se no único ora existente – o Laboratório de Chimica_”. (Ibdem, p. 9).

O autor menciona que o Laboratório Químico do Museu serviu aos interesses da União, ajudando na resolução de problemas técnicos e econômicos trazidos pelo Ministério da Agricultura. Além de contribuir em todos os Congressos e Conferências organizados pelo órgão. Ele finalizou seu texto com uma relação de vinte trabalhos realizados por ele e ou-tros pesquisadores no Laboratório do Museu Nacional.

III- Conclusões

A obra em questão, apresentada no Primeiro Congresso Brasileiro de Química traz à tona a história do Museu Nacional sob o viés de um cientista. E desta maneira o Dr. Alfre-do de Andrade situa a Instituição em uma linha do tempo que abrange desde os naturalis-tas vindos com a D. Leopoldina até o período da Primeira República em 1922. Para ele, o Laboratório Químico do Museu foi uma alavanca no desenvolvimento científico da Nação, pois quando a Instituição estava subordinada ao Ministério da Justiça prestava serviços tanto para a Justiça quanto para o Ensino, colocando-se, portanto à disposição da Lei e da Ciência.

Ele também destacou a atuação dos diretores do Museu não só nos aspectos adminis-trativos, mas também na realização e publicação de pesquisas, bem como na vulgarização do saber científico. Mesmo com a mudança de regime político o autor chamou a atenção para o fato para o Laboratório do Museu, continuar servindo ao país através das pesquisas desenvolvidas agora no âmbito do Ministério da Agricultura.

IV - Notas

1. Nasceu na Bahia, em 20/01/1979, e faleceu no Rio de Janeiro em 10/07/1928. Dou-torou-se, em 1889, em Medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia, onde foi livre-do-cente (1911), professor extraordinário de química analítica (1912), e professor catedrático de química analítica (1919) (ANDRADE,1922, p.13).

2. Foi o terceiro diretor do Museu. Atuando de 1823 á 1827. Era formado em Medicina e dedicava-se também aos estudos químicos.

3. Segundo Santos (2004) o Laboratório de 1812 também foi utilizado para outras ati-vidades. Ela destaca por exemplo que o primeiro trabalho do Laboratório foi descobrir produtos que pudessem ser trocados com os chineses, também foram feitas análises em águas do Estado, bem como as experiências com vinho e aguardente.

V - Referências

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COLEÇÃO COMISSÃO EXECUTIVA DA COMMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA. Caixas: 2276, 2277, 2291, 2295, 2297,2323, 2324, 2325, 2332, 2335 à 2341, 2342, 2349, 2368, 1921-1925.

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DANTAS, R. SANTOS. N. P. Um Museu a Serviço das Ciências e do Império: a partici-pação do Museu Nacional na Exposição Universal de Paris em 1889. Livro de anais do Scientiarum História II: Encontro Luso-Brasileiro de História da Ciência, HCTE/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

JORNAL DO BRASIL – junho a novembro de 1922. Rio de Janeiro, 1922.

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NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História (10), dezembro, São Paulo, 1993

PESAVENTO S. J. As Exposições Universais – Espetáculos da Modernidade do Século XIX. Editora HUCITEC, São Paulo, 1997. Dezembro, São Paulo, 1993

RIO DE JANEIRO. O livro de ouro - Comemorativo do Centenário da Independência e da Exposição Internacional de 1922. Anais do Conselho Municipal, Editora Annu-ário do Brasil/Almanak Laemmert, Rio de Janeiro, 1923.

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SANTOS, N. P. dos Theodoro Peckout: Naturalista e Farmacêutico do Brasil Imperial. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002.

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Espaços de ciência na cidade do Rio de Janeiro na década de 1920

*Araci Alves Santos (PG); Nadja Paraense dos Santos (PQ)Programa Pós Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia -

UFRJ *[email protected]

I- Introdução

No ano de 1922, foi realizada na cidade do Rio de Janeiro a Exposição do Centenário da Independência do Brasil. Além de comemorar os cem anos da Nação brasileira, o even-to também foi um importante momento de afirmação da cidade como capital cultural e científica do país. O filme produzido pelo português Silvino Santos1 durante a Exposição do Centenário, “Terra Encantada” revelava uma cidade moderna com amplas avenidas, pessoas elegantes nos restaurantes e nas ruas, automóveis circulando e um animado jogo de football2. O filme também mostrava alguns pavilhões e produtos da Exposição. E assim através da Exposição e do Cinema reafirma-se mais uma vez a representação da cidade do Rio de Janeiro como moderna e civilizada e perfeitamente inserida no contexto de Moder-nidade vigente nos anos 20 do século XX.

A capital também afirmou sua hegemonia cultural e científica através da participação de suas Instituições científicas na Exposição, dentre elas o Jardim Botânico, o Observatório Na-cional, o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, o Museu Nacional e o Instituto Man-guinhos. Mesmo tendo origens que remontam ao período joanino ou imperial elas foram importantes para a consolidação da imagem da capital como portadora de valores modernos, embasados na Ciência. Durante a Exposição foram criados roteiros científicos-culturais ini-ciando-se nos pavilhões erguidos na área da Exposição no centro da cidade e depois seguindo para a Zona Norte com a realização de visitas ao Museu Nacional localizado no bairro de São Cristóvão e ao Instituto Oswaldo Cruz localizado em Manguinhos. Em outro eixo seguia-se para o Jardim Botânico localizado na Zona Sul. As visitas à essas instituições faziam parte dos programas dos congressos e reafirmando o status de capital moderna da cidade. Geralmente esses espaços preparavam-se para receber os congressistas organizando palestras muitas ve-zes dadas pelos diretores da Instituição, como por exemplo, o Dr. Carlos Chagas no Instituto Manguinhos quando recebeu os congressistas do Congresso Nacional dos Práticos. Já no Jar-dim Botânico os congressistas foram recebidos pelo professor Antonio Pacheco Leão.

Com isso pretendemos demonstrar que os espaços institucionais de ciência da cida-de do Rio de Janeiro foram utilizados durante a Exposição do Centenário no intuito de apresentarem para a comunidade científica nacional e internacional uma capital moderna onde se produzia ciência para o progresso da Nação.

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II- Instituições em Exposição

O Museu Nacional presente na vida científica do Brasil desde os tempos coloniais, ain-da como Casa dos Pássaros tinha uma tradição em participar de Exposições, tanto nacio-nais quanto internacionais. Na Exposição do Centenário participou realizando mostras e enviando representantes para os congressos. A Comissão Executiva permitiu que o Museu participasse fazendo sua exposição no próprio palácio na Quinta da Boa Vista (onde o Mu-seu funcionava desde julho de 1892) com entrada gratuita para o público (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E NEGÓCIO INTERIORES, p. 28). Assim durante o ano de 1922 recebeu um público expressivo, sobretudo no mês de setembro (Quadro 1). Além do público em geral foram acrescidas das visitas organizadas pelas comissões dos congressos realizados durante a Exposição, que incluíam o Museu como um atrativo histórico-cultural e também de cunho científico.

Mês PúblicoJaneiro 11.706

Fevereiro 7.935Março 11.815Abril 10.887Maio 11.071Junho 10.654Julho 12.114

Agosto 1.459Setembro 43.979Outubro 10.846

Novembro 11.257Dezembro 11.868

Quadro 1 – Números de visitantes do Museu Nacional em 1922Fonte: Relatório do Ministério da Agricultura, 1922.

O Museu Nacional apresentou uma coleção de mapas murais abrangendo toda a His-tória Natural do país, com o intuito que pudesse servir como material pedagógico para os estabelecimentos de Ensino. Além disso, organizou uma Coleção Didática para servir de modelo ao ensino de História Natural nos cursos secundários. Todas as seções do Museu apresentaram mostras específicas de suas áreas. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E NEGÓ-CIO INTERIORES – 1922-1923, p. 459, 460).

O Jardim Botânico apresentou coleções de plantas vivas e secas, representantes do va-lor econômico das nossas florestas; coleções de madeira de lei mais importantes de cada estado, acompanhadas de quadros demonstrativos; coleções de madeira de eucaliptos e quadros demonstrativos das principais moléstias e pragas da nossa silvicultura e os meios usados para combatê-las (Idem, p. 465.)

O Observatório Nacional foi criado durante o primeiro reinado em 15 de outubro de 1827 pelo Imperador D. Pedro I. Funcionou no torreão da Escola Militar no Largo de São Francisco até o ano de 1845, quando se tornou Imperial Observatório do Rio de Janeiro. Além de reorganizá-lo, o professor francês Eugênio Fernando Soulier de Sauve (? – 1850)

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que foi o primeiro diretor, iniciou a transferência do mesmo para o Morro do Castelo. Em 1910 foram iniciadas as obras da nova sede e em 1922 o Observatório foi transferido para o Morro São Januário no bairro de São Cristóvão.

A participação do Observatório Nacional na Exposição do Centenário reflete o grau de envolvimento da Instituição com pesquisas e divulgação científica ao longo dos anos. Assim é descrita a apresentação da Instituição no Livro de Ouro:

O observatório astronômico Nacional está representado nesta sala por vários gráphicos e instrumentos, dentre os quais se destaca , pelo seu máximo interesse, a grande luneta meridiana construída por Bollond em Londres no anno de 1849, e que serviu até 1921 na determinação da hora na Capital Federal. (RIO DE JANEIRO, 1923, p. 342).

O Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) participou da exposição realizan-do mostras tanto em sua sede em Manguinhos quanto na área da Exposição. A matéria publicada no dia 05 de novembro no Jornal do Commercio, intitulada “A Saúde Pública na Exposição” anuncia e elogia a participação do Departamento que recentemente havia sido reformado pelo Dr. Carlos Chagas. A nota revelava que “Essa propaganda está ao alcance de todos e faz-se por meio de diagramas, graphicos, quadros, photografias e dados estatís-ticos” (JORNAL DO COMMERCIO, 05 de novembro de 1922).

Desta maneira percebemos que a Exposição fora utilizada pelos membros do DNSP para levar conhecimentos e conselhos sanitários para a população, além de expor o resul-tado dos trabalhos realizados. O texto também mencionava que a mostra da Saúde Pública estava distribuída de forma ampla nas galerias do Palácio das Festas e que a parte restante estaria no Instituto Oswaldo Cruz que também inaugurou uma exposição no mesmo dia e horário. Todas as dependências se faziam representar principalmente as seções das Ins-petorias de Profilaxia da Tuberculose, da Lepra e Doenças Venéreas, da Higiene Infantil e a mostra realizada por elas: “prende a attenção do visitante, que, sem sentir, recebe noções do nosso estado sanitário e é obrigado a interessar-se pela questão das moléstias evitáveis, que tanto prejudicam a saúde” (Idem).

Como ressaltamos anteriormente as Instituições científicas realizaram mostras e tam-bém foram exibidas como itens da Exposição. Elas estiveram abertas ao público em geral e a um público específico participante dos Congressos e Conferências realizados no âmbito da Exposição. A maioria dos congressos foi realizada entre os meses de outubro e novem-bro de 1922 e procuraram reunir profissionais dos diversos estados brasileiros. Também tiveram em comum as excursões e visitas feitas às Instituições científicas, consideradas modelo da época, como o Instituto Oswaldo Cruz, o Jardim Botânico e o Museu Nacional. Bem como, visitas aos atrativos naturais e culturais da cidade do Rio de Janeiro como o Pão de Açúcar, o Corcovado e a Ilha Fiscal.

No Congresso de Farmácia, por exemplo, foi realizada uma visita ao Jardim Botânico na manhã do dia 13 de outubro, os congressistas foram recebidos pelo professor e diretor da Instituição, Antonio Pacheco Leão. Durante o passeio foi possível observar as espécies da flora brasileira e mundial. Os participantes também tiveram a oportunidade de conhe-cer o Instituto de Química3 no próprio local.

O Instituto Oswaldo Cruz foi visitado pelos congressistas no dia 16 e três dias depois foi a vez do Museu Nacional. No entanto, esta última visita agendada ficou prejudicada devido à ausência de funcionários superiores para autorizar o acesso às coleções do Museu. Além disso, os congressistas não puderam assinar o livro de registros, visto que o mesmo

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estava na secretaria que se encontrava fechada (CONGRESSO BRASILEIRO DE FARMÁ-CIA, 1922, p. 476).

Ocorreram visitas dos congressistas aos serviços de profilaxia do DNSP e ao Instituto Oswaldo Cruz, onde o Dr. Carlos Chagas realizou a conferencia “Moléstia de Chagas”, apresentando pessoas doentes que foram trazidas de Minas Gerais para documentar a sua exposição (RIO DE JANEIRO,1923).

Também houve visitas à Casa de Santa Ignez, localizada na Gávea - um abrigo fundado pela primeira dama, Mary Pessoa e um grupo de senhoras, com o fim de receber e tratar as moças solteiras com tuberculose (Idem p. 468).

III- Conclusões

Percebemos que as principais Instituições científicas da cidade do Rio de Janeiro, cria-das durante os períodos joanino e imperial, foram utilizadas durante a Exposição do Cen-tenário no intuito de apresentarem para o público em geral e principalmente para a comu-nidade científica nacional e internacional uma capital moderna onde se produzia ciência para o progresso da Nação. Vimos também uma relação entre a realização dos congressos científicos e as visitas à essas Instituições como uma forma de associá-las ao grau de desen-volvimentos nos adquiridos nos cem anos de Nação.

IV- Notas

1. Silvino Simões Santos Silva (1886- 1970) ganhou medalha de ouro na Exposição com o documentário “No paiz das Amazonas” de 1922. http://www.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/ acessado em 10/03/2010

2. Lembrando que o futebol era um esporte de origem inglesa e no início do século XX era um esporte de elite, considerado elegante.

3. Esse Instituto foi criado em janeiro de 1918 a partir da atuação do Dr. Mario Sarai-va que transformou um pequeno posto de análise laboratorial do Laboratório de Fisca-lização da Defesa Manteiga no Instituto. Destinava-se a realização de pesquisas de que interessassem à agricultura, à indústria e à pecuária; b) produção de análises e estudos químicos para fins comerciais, particulares e dos Governos Estaduais e Municipais; c) ensino da química para a formação de técnicos; d) estudo das forragens sob o ponto de vista científico; e) fiscalização da manteiga, fiscalização de adubos, inseticidas e fun-gicidas (http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/cgi-bin/wxis.exe/iah), acessado em 25/10/2010.

V- Referências

ACTAS E TRABALHOS DO CONGRESSO NACIONAL DOS PRÁTICOS. Imprensa Na-cional (Publicações Scientíficas). Rio de Janeiro, 1923.

AZEVEDO, A. N. Da Monarquia à República : um estudo dos conceitos de civilização e progresso na cidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906. Tese de Doutorado. Pon-tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

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BORGES, Maria Eliza Linhares. Representações do Brasil Moderno para ler, ver e ouvir no circuito dos Museus Commerciais europeus, 1906 a 1908. História, Franca, v. 26, n. 2, 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo. Acessado em 20 de março de 2010. 

CONGRESSO BRASILEIRO DE FARMÁCIA. Livro do Primeiro Congresso Brasileiro de Farmácia. O Congresso, Rio de Janeiro, 1923.

DANTAS, R., SANTOS. N. P. Um Museu a Serviço das Ciências e do Império: a partici-pação do Museu Nacional na Exposição Universal de Paris em 1889. Livro de anais do Scientiarum História II: Encontro Luso-Brasileiro de História da Ciência, HCTE/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

JORNAL DO BRASIL – junho a novembro de 1922. Rio de Janeiro, 1922.

JORNAL DO COMMERCIO - junho a novembro de 1922. Rio de Janeiro, 1922.

KESSEL, C. A vitrine e o espelho: o Rio de Janeiro de Carlos Sampaio. Secretaria das Culturas, Departamento geral de Documentação e Informação Cultural/Arquivo Ge-ral da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2001.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E NEGÓCIO INTERIORES. Relatório dos Trabalhos - Ex-posição Internacional do Centenário. Volumes 1 e 2, Rio de Janeiro, 1922-1923.

RIO DE JANEIRO. O livro de ouro - Comemorativo do Centenário da Independência e da Exposição Internacional de 1922. Anais do Conselho Municipal, Editora Annu-ário do Brasil/Almanak Laemmert, Rio de Janeiro, 1923.

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Paraíso Terreal – Influência dos livros nas

descrições do Mundo NovoArnaldo Lyrio Barreto

Pós-doutor em Sociologia, Pesquisador do IBGE / [email protected]

A ideia de um lugar especial, protegido por deuses, onde a vida humana seria farta e livre de sofrimentos, reservada para aos mais crentes e aos bons homens nos acompanha desde há muito. O dito “Paraíso”, com forte influência das religiões abraâmicas, sempre esteve no imaginário de reis a escravos, e, no momento das grandes descobertas, muitos navegadores relataram o Novo Continente como o local dos relatos do livro do Gênesis, das histórias de Marco Polo e mesmo de Dante Alighieri. O objetivo aqui foi, pois, verificar a influência destes textos existentes antes das grandes descobertas e, mais ainda, apresentar aos leitores como os navegadores estavam impressionados e embriagados com a beleza do Novo Continente e a ideia de terem achado o Paraíso com as descobertas.

“No princípio, Deus criou o céu e a terra... Deus disse: Que a terra verdeje de verdura: ervas que deem semente e árvores frutíferas que deem sobre a terra,,, Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra... Deus disse: ´Eu vou dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente.... No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu, não havia ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha crescido, porque Iahweh Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo. Entretanto, um manancial subia a terra e regava toda superfície do solo. ... Iahweh Deus plantou um jardim em Éden, no oriente, e aí colocou o homem que modelara. Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores famosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.... Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim à brisa do dia...” (BÍBLIA, 1999).

O local em que viviam era muitas vezes quase inóspito, com os rigores desérticos, numa imagem em que hoje percebemos o interior árido de regiões hoje conhecidas como a Etiópia (ou Abssínia), o Irã, Iraque, Afeganistão, Israel e adjacências. Era óbvio e natural que o ´paraíso´ fosse um lugar onde a brisa soprava, as muitas árvores davam sombra e frutos, a água era abundante e corrente, onde o homem tinha sua mulher e seus animais,

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onde o esforço não era necessário e, mais ainda, Deus estava presente e caminhava ao lado do descanso humano. Esse era o ´paraíso´ desejado pelos homens daquela época.

Se por um lado a Bíblia está repleta de descrições do Paraíso, os gregos por sua vez também criaram o Hades, no qual Caronte, o barqueiro, levava os falecidos do mundo dos vivos através de um grande rio. Caronte cobrava por seus serviços e era costume no mun-do helênico enterrar os mortos com uma moeda na língua do cadáver. O não pagamento a Caronte poderia implicar no espírito do morto permanecer vagando às margens do rio, em agonia e desejo por estar no Hades. O Hades era o reino dos mortos e sua localização inicial era para o Oeste, depois do horizonte do rio Oceano (Oceano era, até os grandes descobrimentos, o Oceano Atlântico e são muitas as referências ao Mar Oceano nos es-critos dos pilotos das expedições marítimas). O poeta Virgílio (século I a.C.) escrevia que a entrada do Hades deveria ser pelo vulcão Vesúvio, pois de lá saía o cheiro bem forte de enxofre, que ele deduzia ser o cheiro muito ruim das profundezas desse mundo dos mor-tos. No Hades estavam os Campos Elísios, onde os heróis e os justos poderiam ficar por até 1.000 anos num local onde brilhava o sol e havia uma cascata de vinho que por mais que se bebesse dele, ninguém ficava embriagado (depois desses até 1.000 anos, as ´almas´ poderiam reencarnar desde que se esquecessem do que viram na vida na terra e no Hades), e o Tártaro, que era representado como o inferno da tradição judaico-cristã. No Tártaro as Erínias (três deusas da vingança, chamadas Alecto, Megera e Tisífone – consideradas as Fúrias pelos romanos), junto com as Queres (deusas das mortes cruéis, violentas e antes da hora, como Híbride e Poinê), aborreciam os condenados à esse Inferno.

Novamente aqui o Paraíso é ilustrado com elementos desejáveis em uma Grécia antiga, onde os rigores do inverno seriam amenizados pelo sol sempre presente e o vinho, a bebida dos deuses e dos poderosos, era servido sem mensura e sem riscos de embriaguez.

Enfim, por mais de 1.000 anos, paraíso e inferno estiveram mais do que na pauta de eruditos, no imaginário social de centenas de gerações ocidentais. Na Idade Média os teó-logos não duvidavam de que o Paraíso fosse um lugar físico na Terra e não foram poucas as tentativas de se chegar a um mapa ou pelo menos referências geográficas para se chegar lá. São inúmeras também as tentativas de interpretar a Bíbilia na busca dos 4 (quatro) rios que esquadrinhavam o Paraíso: Pison, Ghion, Tigre e Eufrates como sendo, respectiva-mente, o Prata, Amazonas, Madalena e Orenoco, todos estes no Novo Continente. Tomás de Aquino, nascido por volta de 1225, situa o Paraíso no Oriente, seguindo a tradição dos estudos anteriores a ele, afirmando que tal terra deveria estar num lugar muito temperado, ou no equador ou algures.

É fato que os escritos de Marco Polo, nascido em Veneza em 1254 e que foi um dos precur-sores da Rota da Seda, como as obras As Viagens de Marco Polo e A Descrição do Mundo, certa-mente inspiraram muitos navegadores, pois nestes são descritas as visitas aos reinos do oriente, numa belíssima história de riquezas, aventuras, reis e sultões e muita coragem. Ressalto que não somente navegadores foram influenciados por tão interessante leitura mas também teólogos, tanto que julgavam que o Paraíso poderia estar na Ásia quanto na América descoberta estaria Cipangu, como afirmou Colombo (HOLANDA (2010) sugere a corruptela de Cipangu – no Japão de Marco Polo – por Cibao – na República Domenicana de Colombo).

Outro autor certamente conhecido na época dos grandes Descobrimentos é o italiano Dante Alighieri, autor da Divina Comédia nas primeiras décadas do ano de 1300. Mui-tíssimo inspirado pela literatura grega, Dante criou poemas que descreviam o Inferno, o Purgatório e o Paraíso como círculos concêntricos que a cada espiral de cada local desses, as penas aumentavam ou diminuíam, assim como as benesses. Dante é acompanhado a maior parte do tempo em que visita esses três locais pelo poeta Virgílio, o mesmo já citado

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neste trabalho, o que demonstra a admiração de Dante pela cultura grega (e sua influên-cia). O nível mais baixo do Inferno é o nono círculo, onde ficam os traidores e, ao contrá-rio dos círculos anteriores, não há fogo mas somente muito frio. O Paraíso também teria círculos concêntricos, que faziam parte da cosmovisão da Idade Medieval.

Portanto, temos aqui uma visão panorâmica sobre algumas das possíveis leituras de in-teresse dos grandes navegadores: a Bíblia religiosa, os escritos gregos, a leitura aventuresca de Marco Polo e os poemas de Dante Alighieri.

Mas o que pensavam estes navegadores, como Colombo e Cabral? A explicação mais habitual é a da busca do novo caminho para as Índias, numa rota mais direta e mais barata que as habituais da época. A vontade de expansão marítima, buscando terras para colônias também é um fato. Mas a curiosidade, o conhecimento, a fantasia, a aventura, a vontade de ter seus nomes escritos na história, de encontrar o Paraíso Terreal e aumentar os crentes à Igreja de Roma também faziam parte desse impulso ao mar Oceano. Um mix de enrique-cimento financeiro e status social com também um ar de pia credulidade, algo bastante mundano mas também repleto de ideais religiosos.

É surpreendente que Colombo, mesmo tendo certeza de que havia achado o Paraíso, busca incessantemente ouro e outras riquezas na América recém-descoberta, para pilhá-lo ou, pelo menos, levar algumas amostras aos reis de Espanha. Muitíssimo interessante que, ainda que com tais sentimentos díspares mas ao mesmo tempo convergentes, correlaciono as ações de Cristóvão Colombo e de Pedro Álvares Cabral com o mito grego de Prometeu, deus menor que roubou do Olimpo o fogo para dá-lo aos homens.

Enfim, penso que sejam 5 (cinco) as constatações que os grandes navegantes fizeram e que os levaram a concluir que estavam pisando nas terras do Paraíso e trago alguns trechos para comprovar:

1ª) Localização incerta, abaixo da linha do Equador e longe do Velho Continente – a) ”...bem disseram os sagrados teólogos e os sábios filósofos ao afirmar que o Paraíso terrestre está nos confins do Oriente... De modo que as terras, agora descobertas, são os confins do Oriente” (COLOMBO,2010,p.116); b) Creio que, se eu passasse abaixo da li-nha equinocial, ao chegar lá, na parte mais alta, encontraria temperatura muito maior e diferença nas estrelas e nas águas; não porque creia que ali onde a altura seja máxima seja também navegável ou haja água, nem que se possa subir até lá, mas porque creio que ali é o Paraíso terrestre, aonde ninguém consegue chegar, a não ser pela vontade divina (op.cit.,p.158-159); c) “Foi também preciso frisar os valores temporais... foi necessário invocar o conceito e a opinião daqueles que descreveram e situaram o mundo [Marco Polo e Pedro d´Ailly]....Estes são os grandes indícios do Paraíso Terrestre, porque o lugar é conforme ao parecer dos santos e sagrados teólogos, e ainda porque os traços estão em muito de acor-do... (op.cit.,p.159).

2ª) Muito verde; a) Foi uma coisa deslumbrante ver o arvoredo, o frescor das folha-gens, a água cristalina, as aves e a amenidade do clima... parecia-lhe estar encantado....( COLOMBO,2010,p.71); b) Dei a esse lugar o nome de “Jardins”, por ser o que lhe convém... (op.cit.,p.153).

3ª) Clima nem frio e nem quente; a) E asseguro a Vossas Majestades que não me pa-rece que sob a luz do sol possa haver melhores em abundância em matéria de fertilidade, de temperança de frio e calor... (COLOMBO,2010,p.71); b) Nisto, muito ajuda o clima ameníssimo. (op.cit.,p.79).

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4ª) Abundância de água (primavera perene); a) ...de abundância de águas boas e sãs, ao contrário dos rios da Guiné, que são todos pestilentos (COLOMBO,2010,p.71); b) ...que jamais li ou ouvi que tanta quantidade de água doce se encontrasse tão dentro e tão mistu-rada com a salgada. ...; c) ...o entanto, se esta água não provém do Paraíso, então é maior a maravilha, porque não creio que se encontre no mundo um rio tão grande e tão profundo.” (op.cit.,p.79).

5ª) Habitantes terem a morte retardada. a) ...louvado seja Nosso Senhor, até hoje em toda a minha tripulação não teve ninguém que passasse mal da cabeça ou ficasse de cama por doença.” (COLOMBO,2010,p.71); b) “E todos que vi eram jovens, nenhum com mais de trinta anos de idade: muito bem-feitos, de corpos muito bonitos e cara muito boa; os cabelos grossos, quase como o pelo do rabo dos cavalos e curtos... todos, sem exceção, têm pernas bem torneadas, e nenhum tem barriga, a não ser muito bem-feita” (op.cit.,p.47-48); c) “a feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma... porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser” (Caminha,2002).

Bibliografia

ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. São Paulo: Martin Claret, 4ª reimpressão, 2010.

AQUINO, Santo Thomás de. Suma Teológica, Ia, qu. 102, art. (Ed. Do Cerf, 11, p. 281).

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.

CAMINHA, Pero Vaz. Carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Martin Claret, 2002.

COLOMBO, Cristóvão. Diários da Descoberta da América: as quatro viagens e o testa-mento. Porto Alegre: L&PM, 1998.

EPISTEME. Rio Grande do Sul: UFRGS, nº 15, ago./dez. 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: CIA das Letras, 2010.

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Descolorindo as Estatísticas Oficiais

Arnaldo Lyrio BarretoPós-doutor em Sociologia, Pesquisador do IBGE / [email protected]

De fato, o homem tem a capacidade de observar a si mesmo ou imaginar suas imper-feições e limitações, aceitando-as ou, mais comumente, buscando minimizá-las ou exter-miná-las, desejando a perfeição. Começo assim porque os homens, desde sempre, notaram diferenças em seus corpos e costumes, principalmente entre povos. Engana-se quem pensa e diz que os gregos indicaram as raças humanas baseados na cor da pele. Para Platão, a cor da pele era somente “acidente”, assim como ser homem ou mulher, grego ou egípcio... Foi com o médico francês François Bernier (1625-1688) que publicou Nouvelle division de la terre par les différentes espèces ou races qui l’habitent em 1684 que a divisão das raças apa-receu no contexto social-acadêmico-científico.

No Brasil o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – órgão oficial para as estatísticas brasileiras – realiza suas pesquisas sociais e econômicas utilizando o quesito cor/raça com as seguintes opções: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Etimologica-mente os termos que são designados para caracterizar a cor/raça dos que vivem no Brasil são extremamente frágeis pois supõem que todos os brancos seja da cor da neve e assim por diante. Um suplemento da Pesquisa Mensal de Emprego – PME – de 1998, realizada também pelo IBGE, apresenta um leque muito mais variado de cores e raças. A partir de uma pergunta aberta sobre a qual cor / raça a população pertencia, foram encontradas 143 (cento e quarenta e três) autodenominações diferentes, um número realmente expressivo para quem se acostuma com as 5 (cinco) primeiras categorias descritas neste trabalho. Obtivemos, além das usuais utilizadas pelo IBGE, as cores azul/branca, branca escura, bege, encardida, mel, morena mais para amarela, mestiça postiça, roxa, tostada e vermelha, como exemplos da lista divulgada pelo IBGE (PETRUCCELLI,2000). A aglutinação é, no entanto, válida para destas categorias maiores dentro das 5 (cinco) oficiais.

O IBGE, através da pesquisa PME – Pesquisa Mensal de Emprego, a mesma que em 1988 estudou os termos usados para designar raça e cor, realizou, em 2006, uma pesquisa especial realizando cruzamentos de variáveis extremamente oportunos, como escolarida-de, rendimento e raça. Da PME (IBGE, 2006, p.4-5) apresento alguns dados e algumas análises.

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Gráfico 1 – Distribuição da população em idade ativa por raça ou cor

A Tabela 1 representa a distribuição da população em idade ativa, por cor ou raça se-gundo a região metropolitana, e foi colocada somente como ilustração dos quantitativos que o IBGE pesquisou.

Tabela 1 – Tabela da PME sobre número de pessoas em idade ativa por cor ou raça.

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Tabela 2 – Tabela da PME sobre rendimento médio segundo a cor ou raça (em reais)

Entendo, logicamente, a argumentação do IBGE quanto a não considerar pessoas que se classificaram como de cor amarela e indígena, por serem poucas, mas a de unir pre-tos com pardos, convenhamos, é uma perda significativa por manter o dueto antagônico branco-preto. Talvez a escolha tenha se dado justamente pelas discussões sobre políticas afirmativas e outras do gênero. Se o pardo é meio-branco e meio-preto, por que uni-lo a um grupo e não a outro. Se houve a pergunta do IBGE quanto à raça/cor, seria melhor en-tão trabalhar cada um com sua cor e não realizar agrupamentos ou supressões.

No entanto, para uma boa análise penso que não devemos levar em consideração, na Tabela 2, as linhas representativas de 11 anos ou mais de estudos, uma vez que mais de 11 anos significa que os empregos podem ser de escolaridade mínima de ensino médio ou de ensino superior, o que não pode ser percebido com essa classificação. Penso que aqui o IBGE pudesse ser mais preciso e indicar empregos de nível superior e empregos de nível médio, uma vez que é sabido, pela própria pesquisa, que existem mais brancos com nível superior do que pretos e pardos juntos.

Além disso, apesar dessa crítica quanto às linhas de 11 anos ou mais de escolaridade, são inadmissíveis disparidades salariais entre pessoas de cores de pele diferentes com as mesmas quantidades de anos de estudo. O que quero dizer é que a estatística da PME en-seja uma interpretação rápida e equivocada de racismo no Brasil mas não devemos fazer interpretações rápidas, principalmente com assuntos graves como esse, e afirmo que eu efetivamente não concordo com a forma de lidar com os números, pois eles estão longe de representar a realidade como ela é.

Não podemos comparar todas as pessoas que tem, por exemplo, de 8 a 10 anos de es-tudo, ainda que de uma mesma região, pois cada uma teve um tipo de educação diferente, que faz, com certeza, uma diferença significativa no momento da contratação. Se a pessoa tem de 8 a 10 anos de estudos, pressupõe-se que ela tenha concluído o ensino fundamen-tal, de 8 anos de duração no ano da pesquisa. Novamente é um pressuposto, pois não há garantias que todas as pessoas incluídas nesta classe tenham sido aprovadas por bom aproveitamento em todos os anos escolares. Certamente muitos ainda estariam na 4ª ou 5ª série, ao invés de ter concluído a 8ª série. Aí é claro que haverá um desnível salarial entre alguém que concluiu o ensino médio e outro que, apesar de ter ficado de 8 a 10 anos na

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escola, só chegou à 4ª série. Além disso, deve-se ponderar também o uso da linguagem, a capacidade de raciocínio, a capacidade de escrita e de realizar cálculos e uma série de outros fatores. Portanto, quanto maior for a última série cursada, e não o número de anos passados na escola, mais provavelmente a pessoa vai se redefinindo e aumentando a sua empregabilidade e remuneração.

Para o IBGE(2006), a escolaridade dos pretos e pardos é menor que a dos brancos:

Há desigualdade também nos indicadores educacionais. ...Em Salvador, onde os brancos e os pretos e pardos apresentaram as maio-res médias de anos de estudo, observou-se o maior diferencial: 2,4 anos de estudo a mais para os brancos. Em média, os brancos atingiam o ensi-no médio e os pretos e pardos sequer concluíam o fundamental. Ainda em relação à educação, verificou-se que 20,1% dos pretos e par-dos com 10 anos ou mais de idade tinham algum curso de qualificação profissional, enquanto na população branca este percentual subia para 25,3%. (grifo meu)

Tabela 3 – Tabela da PME sobre escolaridade média segundo a cor ou raçaEscolaridade média segundo a cor ou raça - setembro de 2006

FONTE: IBGE,2006.

Já quanto aos rendimentos habituais, segundo a análise do IBGE(2006),

Em relação aos rendimentos habituais, destacou-se que os pretos e par-dos recebiam, em média, R$ 660,45. Esse valor representava 51,1% do rendimento auferido pelos brancos (R$ 1292,19). ..., mas em Salvador as diferenças foram maiores: ali, os pretos e pardos recebiam pouco mais de 1/3 do que recebiam os brancos. Já Porto Alegre registrou a menor diferença nos rendimentos recebidos. (grifo meu)

Tabela 4 – Tabela da PME sobre rendimento médio segundo a cor ou raçaRendimento médio real habitualmente recebido no trabalho principal segundo a

cor ou raça - setembro de 2006

FONTE: IBGE(2006).

Ora, o óbvio saltou aos meus olhos só depois da indignação e da releitura: pessoas com menos escolaridade recebem menos salário. São vários os estudos que afirmam isso, como os de Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE, que creio que tal idéia seja até consen-

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so na população. Não há mistério e nem preconceito racial nisso. Não importa a cor, quem estudou mais muito provavelmente terá um emprego ´melhor´ e uma remuneração mais alta. Dificilmente alguém com poucos estudos consegue ter um bom salário, mais ainda se for empregado de alguma empresa ou pessoa.

Mais do que isso, existem brancos, pardos e pretos morando em favelas, uns ao lado de outros, em condições idênticas e em boa harmonia, mas não vemos amarelos (ou seus “amarelodescendentes”)... Onde estão morando brasileiros que se disseram de cor de pele amarela? Sim, no Brasil o homem de cor amarela tem realmente mais estudo do que os in-dígenas, pardos, pretos ou brancos. Se tem mais anos de estudo, pela lógica que apresentei, tem mais rendimento e tendo mais rendimento, não mora em favelas. E é exatamente isso que acontece. O IBGE deveria mostrar mais claramente isso mas não sei porque não o faz, talvez por achar o número de amarelos insignificante mas sua importância é enorme para esclarecer a questão do racimo.

KAMEL(2006) denuncia uma a tendência metodológica advinda dos Estados Unidos que aportou no Brasil, na década de 50 do século passado, precisamente pelos autores Oracy Nogueira, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Carlos Hasenbalg, pela qual a ciência deveria mostrar a exploração dos negros sobre os brancos racistas.

A idéia que jazia por trás era que a imagem que tínhamos de nós mes-mos acabava por ser maléfica, perversa com os negros. [...] O papel da ciência, “para o bem dos negros”, seria desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e substituindo-a pela realidade do racismo. Esse raciocínio levava, porém, ao paroxismo de permitir a suposição de que um racismo explícito é melhor do que um racismo envergonhado, esquecendo-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo, muitas vezes, deixa de oprimir pelo pudor. [...] Em vez de ver as nossas especificida-des, e diante delas, opor-nos frontalmente à situação americana, Oracy acaba por nos igualar, tornando-nos, como sociedade, tão racistas quan-to os americanos. (Kamel,2006, p.20-21, 23)

Raças humanas não existem uma vez que o Homem tem em torno de 20.000 a 25.000 genes e somente 4 a 6 genes é que caracterizam a cor da pele, o que é muito pouco para designar uma outra raça (PENA,2008,p.29-30).

De maneira alguma sou contra as políticas afirmativas brasileiras para minimizar os efeitos de séculos de exploração de pessoas, quer sejam negros, índios ou mesmo estrangeiros. Acredito que seriam menos preconceituosas e, portanto, mais justas, se fossem adotados os critérios sócio-econômicos como forma de reserva ou de desem-pate em vagas de universidades e de emprego. Melhor ainda se houvesse condições de concorrência idênticas, com escolas públicas de níveis fundamental e médio decentes e em plenas condições de avaliação junto às particulares: este sim seria o mais justo, o mais igualitário.

Apesar de compreender a complexidade das classificações de cor e raça no Brasil atual e ainda que sabendo que existem, sim, a raça como construção social e diferenças na aná-lise final de participação de pessoas de pele escura e de mulheres na renda, na educação e no trabalho, sugiro, ousadamente, o fim do uso do termo raça, não somente pela argumen-tação científica de inexistência de raças humanas diferentes mas também, e talvez princi-palmente, pela vontade de terminar com um possível fosso de separação entre pessoas de cores de pele diferentes. O termo ‘etnia’ sugere algo mais acertado que os termos de raça e

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cor, apesar de os três serem usados, muitas vezes com o mesmo significado. Desejo, sim, evitar para o Brasil disputas segregacionistas.

Nacionalmente, portanto, as estatísticas oficiais de raça e cor perdem acurácia e, con-sequentemente, o seu maior valor, que seria o de uma representação aproximada da reali-dade.

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O cuidado de enfermagem e os avanços tecnológicos no

tratamento de lesões cutâneas: Uma Arte Secular.

COSTA, Marcio Martins da1; COSTA, Nívea Melo de Souza2,

PIVA, Teresa Cristina de Carvalho.3

Introdução

Este trabalho, de cunho teórico-conceitual, tem como objetivo trazer ao debate do campo da saúde e da tecnologia, uma abordagem evolutiva do tratamento das afecções cutâneas e suas relações.

Preliminarmente ao problema que se apresenta na sustentação da relevância do debate proposto, destaca-se que o assunto em tela abarca o conceito de evolução no tratamento das lesões de pele, no campo do cuidado, e o de tecnologia, situado no campo da cicatri-zação. Na defesa de que o processo evolutivo no cuidado à saúde possa estar delimitado como objeto de conhecimento científico. Cabe ressaltar que o empenho inicial se faz no sentido de demonstrar a relevância do empirismo, como delineador da cientificidade.

Desta forma, ao se descrever a evolução do processo de cicatrização das lesões cutâne-as, observa-se uma articulação inerente e promissora entre o empirismo, ora necessário e pautado nas crenças de uma época desprovida de recursos tecnológicos e a produção do conhecimento. Sendo esta segunda, a propulsora no argumento para a construção de um desenho evolutivo à época desconhecido pela humanidade.

De acordo com o supracitado, observa-se uma progressão convergente, que validou a preocupação com o cuidado da pele, pelo seu caráter bio-psico-social-espiritual, instituí-do, porém não descutido.

De acordo com Malagutti et all (2010), desde a Pré-história substâncias distintas são utilizadas no tratamento de lesões cutâneas. Algumas delas, como extratos de plantas, ain-da são aplicadas com o objetivo de cura. Na era de Hipócrates (460 e 377 a.C.) já se realiza-

1 Doutorando do programa de História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia do IQ/UFRJ.2 Gerente de Enfermagem do Hospital Prontocor, unidade Lagoa.3 Doutora pela UFRJ, pelo programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – HCTE.

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va o tratamento de lesões na pele para promover a supuração, remover material necrótico e reduzir a inflamação, sendo registrado o uso de recursos fisioterapêuticos nesse processo.

O desenvolvimento dos conhecimentos das pessoas e dos processos é permeado pelos avanços tecnológicos, que agregam consigo a responsabilidade de demonstrarem através de evidências, os resultados esperados. Sendo estes avanços, muitas vezes os substratos tec-nológicos utilizados, porém não discutidos de forma crítica e científica, como é o caso dos extratos de plantas. Outrora aplicados no tratamento de lesões cutâneas sem embasamento científico, atualmente discutido sob a ótica fitoterápica.

De acordo com Fréz et al (2006), o processo de cicatrização não depende apenas do avanço das tecnologias e sim de um conjunto de fatores históricos que envolvem o proces-so de cuidar e ser cuidado. Desta forma, delimita-se como objetivo deste estudo, apresen-tar o processo de evolução histórica do tratamento de lesões cutâneas.

Abordagem metodológica

Trata-se de um estudo descritivo, que teve como base uma pesquisa bibliográfica, abrangendo os trabalhos publicados nos últimos 10 anos. As fontes utilizadas foram artigos cinetíficos, teses de doutorado e livros sobre a temática: Evolução histórica do tratamento de lesões de pele, pesquisados em bibliotecas virtuais e físicas, quais sejam: Scielo, Bireme e bibliotecas de três universidades públicas situadas no Estado do Rio de Janeiro.

A fonte de pesquisa como descreve Costa (2003), “é um instrumentos de trabalho im-portantíssimo na pesquisa científica, é um inventário sistematicamente organizado, de tex-tos impressos sobre qualquer assunto, para um fim determinado”. Os termos pesquisados foram: Evolução, História, Tratamento e Feridas.

Foram encontrados 252 artigos relacionados à temática, sendo utilizados como critério de inclusão os estudos publicados no período de 2000 a 2010 que abordavam a temática supracitada.

Para análise dos dados foram realizadas leituras, e identificação dos dados relacionados ao objeto de estudo, visando criar novas questões que incorporassem o que já foi produzi-do a respeito dessa temática nas literaturas atuais.

O processo de cuidar de feridas

De acordo com Cardim et al (2004), o tripé, entre a prática, a ciência e a arte, fornece o apoio necessário para a construção de um modelo de cuidado legitimado, pois só fazendo, pensando e criando, será possível avançar no campo da produção do conhecimento.

É possível observar também o que relata Jean Watson (2002), em seus estudos, quando esta autora apresenta a importância do equilíbrio entre a ciência e o cuidar, que é base das profissões da área da saúde.

No cotidiano profissional, constata-se que os problemas relacionados com o exercício do cuidar dos pacientes portadores de lesões de pele, querem sejam eles técnicos ou admi-nistrativos, vão sendo solucionados com relativa naturalidade e com certa tranqüilidade, embora numa situação contínua de estresse. Isso demonstra que há uma incorporação, na maioria das vezes inconsciente, da prática que se utiliza da adaptação para realização do cuidar.

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Ao analisar o cotidiano do cuidar, observa-se que a reprodução de alguns procedimen-tos acontece sem a devida reflexão da prática, acerca dos benefícios e malefícios causados, expondo aos que estão direta ou indiretamente a ela ligados.

No cuidado contemporâneo, o discurso valoriza o cuidado humano, entretanto es-tudos têm apontado para uma prática de cuidar mecanizada, fragmentada e descontex-tualizada.

Desta forma, observa-se a necessidade de se compreender o processo de evolução his-tórica do cuidado de lesões de pele, fundamentado pela cientificidade do pensamento crítico e reflexivo, motivado por um modelo de resolução empirista.

Evolução histórica no tratamento das lesões cutâneas

De acordo com o dicionário etimológico da palavra, o estudo histórico inicia quando os homens encontram os elementos de sua existência nas realizações dos seus antepassados.

O tratamento de lesões de pele não se apresenta de forma diferente, ou seja, com o pas-sar do tempo, com a evolução das civilizações, os processos e os métodos utilizados para o cuidado com lesões cutâneas foram sendo aperfeiçoados, surgindo desta forma o processo de cauterização das feridas com óleos ferventes ou ferro quente, desinfecção com álcool proveniente do vinho, utilização de banha de origem animal, cinzas, incenso, mirra e até mesmo a utilização de emplasto a base de ervas e mel.

Os egípcios, habilidosos no processo de embalsamamento, os gregos e os romanos, através da utilização do conceito de ferida limpa e ocluída, com óleos vegetais, cataplasmas e faixas de algodão, foram precursores no avanço do processo de reparação tecidual.

No período medieval nos monastérios desenvolviam-se cada vez mais estudos das plantas - hoje denominado Fitoterapia - acentuando a importância da manutenção da feri-da limpa e remoção dos corpos estranhos, com exérese do tecido necrótico, e o controle do processo hemorrágico, sendo este componente da fase inicial da cicatrização.

A história reporta-se ao surgimento de fármacos, como por exemplo, a penicilina, no auge da Iª Guerra Mundial, como fator determinante no controle da infecção, até, final-mente, chegar aos conceitos atuais de manutenção do leito da ferida úmido, favorecendo o desencadeamento das demais fases do processo cicatricial, quais sejam: fase intermediária e tardia.

Nesse contexto, o desenvolvimento tecnológico do tratamento de feridas deve estar embasado em princípios científicos, no conceito de aplicabilidade e efetividade, visando não somente a reparação tissular rápida e eficiente e sim o progresso desta área de conhe-cimento.

Os avanços tecnológicos frente ao cuidado de lesões cutâneas

As abordagens tecnológicas fundamentadas em processos dialógicos e participativos aparecem nos estudos analisados, inspirados na evolução desde os tempos antigos, sendo uma das principais preocupações do homem a de manter a sua saúde.

A utilização de tais abordagens se concretiza como um espaço no qual as pessoas são co-participes do processo evolução histórica, auto-geradoras da informação, retroalimen-tando o sistema de informação, que por meio de uma relação horizontal e dialógica com-partilhando novos saberes e novas tomadas de consciência.

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Cabe ressaltar, que a busca por novos modos de fazer também aparece de maneira significativa, tanto pela proposição de tecnologias de concepções como as de modo de conduta.

Sendo assim, observa-se que o princípio empírico de cuidar de lesões de pele, permeou, com grande capacidade de gerar tecnologia, conquistas e avanços científicos, favorecendo gerações futuras.

O enfrentamento contra a doença e seus complicadores, pautado nas realizações ad-vindas de uma consciência social, aliada aos recentes conhecimentos científicos, faz surgir um novo paradigma de saúde, uma nova visão da realidade em que se prima por encontrar novos caminhos na busca de um viver melhor. Por isso é importante entender a comple-xidade do cuidado, para pensar estratégias condizentes com as especificidades de cada situação, de modo a produzir tecnologias de resolução e/ou paliativas para o sofrimento.

Conclusão

A evolução histórica no processo de cuidar dos agravos cutâneos e a utilização de novas tecnologias contribuem para a melhoria da práxis profissional, possibilitando, também, sugestões para a flexibilização de soluções aplicáveis para as políticas de saúde.

A construção de tecnologias requer que os profissionais utilizem as diversas áreas do conhecimento da ciência, de modo que as mesmas apresentem aderência ao contexto e a clientela a que se dirigem.

A proposição de novas tecnologias no cuidado com feridas contribui para a melhoria das práticas, permitindo ao profissional um olhar sistematizado para o cotidiano de seu trabalho, favorecendo a compreensão da realidade e sua problematização, de modo a cons-truir soluções adequadas aos novos cenários e contextos.

O rápido crescimento na área de cuidados com pacientes portadores de lesões de pele permanecerá exigindo que os profissionais estejam cada vez mais preparados para o de-senvolvimento das tecnologias de modo a promover a convergência entre o desenvolvi-mento humano, tecnológico e de cuidado.

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Neotomismo e ciência moderna: a Revolução Científica na

Península Ibérica

Beatriz Helena DominguesUniversidade Federal de Juiz de Fora

[email protected]   

No estudo que fez sobre o pensamento político espanhol no século XVII, Bernice Ha-milton explicou sua fraqueza, para não dizer sua inexistência, ponderando que a Espanha, além de ter sido quase intocada pela Reforma Protestante ou pelo Renascimento em sua forma italiana, não teve tampouco uma Revolução Científica da qual se possa falar (HA-MILTON, 1963, 3). Para além da constatação de que a Ibéria não teve uma Revolução Científica da qual possamos falar, considero mais produtivo discutir a literatura que mos-tra o que ela teve em vez disto: analisar abordagens positivas da “Não-Revolução Científi-ca” na Península Ibérica que investigam o que possivelmente correu lá ao invés de consta-tar o que os ibéricos careciam para serem como os europeus do norte da Europa. As fontes que encontrei foram alguns filósofos e cientistas – preponderantemente jesuítas – que se posicionaram sobre questões decisivas no período: a astronomia copernicana e as reações por ela desencadeadas na Espanha.

Na primeira metade do XVII, enquanto a tradição tomista medieval era substituída pela ciência de Galileu e pela filosofia de Descartes em vários países da Europa ocidental, os países ibéricos deram continuidade à renovação da filosofia tomista iniciada no século XVI. Esse fato, como não poderia deixar de ser, teve repercussões profundas na história da ciência da península. Ela é visível, por exemplo, na pioneira apresentação do trabalho de Copérnico na Espanha pelo agostiniano Diego de Zuñiga.

A precocidade da reforma interna das ordens religiosas na Espanha foi decisiva para desviá-la da Reforma Protestante, pois enfraqueceu o impacto das denúncias contra os abusos do clero. Desde o inicio do século XVI a reforma da tradição aristotélico-tomista deu impulso à vida intelectual espanhola, proporcionando uma notável modernização da tradição medieval, aqui exemplificada pela recepção das ideias de Copérnico. En-contramos nas universidades espanholas nominalistas, tomistas, averroístas e erasmistas antes que, na segunda metade desse mesmo século que o neotomismo firmasse sua hege-monia, reforçando a disposição de reformar, ao invés de descartar, a herança escolástica medieval. Esse processo produziu resultados impressionantes em áreas como metafísica (Suárez), antropologia (Vives, José Acosta) e teoria do direito (Vitória). Mas a renovação desta tradição deparou-se com limites evidentes quando se tratou das ciências físicas e matemáticas. 

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Isso não significa que a Espanha não tenha se interessado pelo desenvolvimento destas ciências. Os trabalhos de importantes historiadores da ciência como López Piñero (1982), Navarro Brótons (1972, 1974) e Vernet-Gines (1973) têm nos mostrado que ciências como a medicina e a química tiveram um notável progresso. Todos eles, entretanto, se referem à dificuldade específica dos ibéricos com as ciências físico -matemáticas. A meu ver, isso cor-responde a tentar entender por que os desenvolvimentos em ramos isolados do saber não culminaram em um método único nem na inversão do critério epistemológico, conforme suposto pelo método científico moderno. A história da ciência na Espanha do século XVII foi uma tentativa de realizar e aceitar inovações em cada um dos ramos do saber sem cons-truir um novo paradigma comum a todas elas, sem romper com a hierarquia do saber me-dieval, sem concordar com a possibilidade de transferir o método de uma disciplina para outra, ou com a possibilidade de que as realidades celeste e terrestre fossem constituídas da mesma matéria e, portanto, sujeitas às mesmas leis.

Apesar de todos os desenvolvimentos conhecidos pelas ciências físicas e naturais desde a Idade Média (em grande parte devido à influência dos árabes e à difusão dos trabalhos de Aristóteles), os ibéricos deram um passo atrás quando se tratou de atribuir a essas ciências, consideradas secundárias na hierarquia medieval do conhecimento, o papel fundador de uma nova epistemologia. Segundo Benjamin Nelson, a ciência moderna transferiu o cri-tério de veracidade (de certeza) da teologia para as ciências físicas e matemáticas e, conse-qüentemente, do raciocínio probabilista para a certeza amparada na prova demonstrativa. Na ciência moderna, a certeza objetiva e a subjetiva (“objective certainty” e “subjective certitude”) tomaram o lugar do pensar ficcionalista e probabilista que havia caracterizado o raciocínio medieval em teologia, filosofia ou ciências naturais.

Foi exatamente essa transformação que não ocorreu nem na história da ciência nem na história da consciência na Ibéria: não houve um rompimento, respectivamente, com o ficcionalismo e com o probabilismo medieval. Ainda que encontremos desenvolvimentos em campos específicos, se vista em seu conjunto a ciência ibérica renovou o legado medie-val ao invés de substituir o ficcionalismo e o probabilismo medievais pela certeza moderna objetiva (da ciência) ou subjetiva (da consciência). Em suma os ibéricos não abraçaram, em todas as suas implicações, a nova concepção de verdade que esteve na base da ciência e filosofia modernas. Explica-se, dessa maneira, porque tiveram a sua própria leitura de Co-pérnico, bem como da interpretação galileana do mesmo. O estudo da recepção das novas idéias astronômicas, seja concordando ou discordando delas, foi a forma que escolhi para ilustrar a relação problemática entre a modernidade ibérica e a ciência moderna.  

Minha hipótese é que a modernidade ibérica assimilou Copérnico no século XVI se-gundo a sugestão do protestante Osiander e, no século XVII, seguiu a recomendação do jesuíta Bellarmino, descartada por Galileu. O livro de Copérnico  De Revolutionibus  foi publicado com um posfácio anônimo recomendando que suas ideias fossem entendidas enquanto hipóteses sem necessária correspondência com a realidade. No século XVII, com a publicação do Decreto de 1616 proibindo os trabalhos de Copérnico, Foscarini e Zuñiga (pioneiros na difusão das ideias de Copérnico) essa sugestão tomou a forma de uma verda-deira estratégia para combater Galileu. Tal atitude aparece de forma clara nos conselhos do cardeal Bellarmino tentando persuadir Galileu a manter o copernicanismo nos limites do raciocínio probabilista, tal qual expressos anteriormente em carta endereçada a Foscarini.

Giordano Bruno, Foscarini, Kepler e Zuñiga forneceram alguns exemplos de interpre-tação do copernicanismo, antes de Galileu, de uma forma considerada perigosa pela Igreja. Giordano Bruno e Kepler inauguraram a atitude assumida posteriormente por Galileu: de não se restringir à abordagem matemática da obra copernicana nem considerar o que

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estava escrito no De Revolutionibus como mera ficção ou hipótese. Pelo contrário, enten-diam o copernicanismo como um sistema filosófico, mas um sistema cuja verdade poderia ser provada experimentalmente. Já os trabalhos de Foscarini e Zuñiga tentaram mostrar a veracidade, ou pelo menos a não-falsidade do copernicanismo, recorrendo à exegese bí-blica. Ele foi o primeiro pensador espanhol, e europeu, a se posicionar favoravelmente às idéias astronômicas de Copérnico, argumentando que não eram, em absoluto, contrárias às Sagradas Escrituras. Nesta mesma ocasião, a Universidade de Salamanca foi a primeira a incluir Copérnico em seus currículos, e a astronomia espanhola conheceu avanços notá-veis, graças aos cálculos matemáticos copernicanos e também às observações de estrelas e cometas, particularmente as realizadas por Jerónimo Muñoz. Esse tipo de assimilação que o copernicanismo teve na Espanha não diferiu daquela no restante da Europa: aceitação dos cálculos matemáticos, mantendo a teoria correspondente como uma hipótese sem a pretensão de oferecer a descrição física do universo. Aparecem na Espanha, como na Eu-ropa, escritos que se propõem a acomodar as novas descobertas com a doutrina católica (grande parte deles eram estudos de exegese bíblica), argumentando que as Sagradas Es-crituras não negam o movimento da terra, a centralidade do sol, etc. Dentre esses escritos, a obra de Zuñiga foi pioneira.

O monge agostiniano Diego de Zuñiga esteve entre os primeiros europeus a declarar--se heliocêntrico. Em obra intitulada Comentário a Jó ele tentou mostrar que as Sagradas Escrituras, se corretamente interpretadas, não negavam a afirmação de Salomão no Ecle-siastes, onde se lê que “A Terra será sempre a mesma”. Para Zuñiga, o que isso significa é que a Terra é sempre a mesma, e não que não se move. O principal argumento é, entretanto, que não há passagem na Bíblia que fale claramente da imobilidade da Terra ou que prove que esta se move. Daí sua conclusão: “o movimento da Terra não é contrário às Escrituras” (conseqüentemente, Copérnico não deve ser acusado de heresia).

Embora não tenha causado nenhum terremoto, o livro de Zuñiga não foi tampou-co ignorado. Três anos depois, Francisco Valla publicou Sacra Philosophia, onde tentava mostrar a perfeita harmonia entre a verdade científica e os textos sagrados, concluindo, todavia, contra Zuñiga. Em 1597, 13 anos após seu primeiro livro, o agostiniano publicou outro, o qual trouxe novas interrogações para os historiadores da ciência e da religião. Em Philosophia Prima ele se propôs a discutir o copernicanismo em seus aspectos filo-sóficos, o que parecia um passo natural em seu pressuposto de que copernicanismo e as Escrituras poderiam ser complementares. Só que sua conclusão foi em sentido oposto: ele considerou que o sistema de Copérnico era fisicamente impossível. O mais intrigante é que tal mudança de posição ocorreu muito antes do seu livro Comentário a Jó ser condenado pela Inquisição em 1616.

Paralelamente a esse episódio, pensadores e cientistas europeus tentavam desvendar o enigma de um novo corpo recém aparecido nos céus europeus. Foi chamada “nova”, e as interpretações se dividiram: estrela ou cometa? Tycho Braye, o astrônomo mais famoso na-quela ocasião, afirmou tratar-se de uma estrela. Já o astrônomo espanhol Jerónimo Muñoz e Galileu concluíram que se tratava de um cometa. Mesmo estando equivocado sobre a verdadeira natureza da “nova” - tratava-se, de fato, de uma estrela - Muñoz reconheceu precoce e corretamente que os movimentos nos céus não eram uniformes e a realidade celeste era, por sua natureza,  corruptível  (como podia ser atestado pelo nascimento de coisas estranhas como os cometas). No Libro del Cometa nos deparamos com uma crítica competente à astronomia e à física de Aristóteles, que fez de Muñoz um nome conhecido e respeitado em toda a Europa. Em uma carta endereçada ao rei Felipe II pouco depois da publicação do livro, Muñoz reclamava do quanto o seu trabalho estava sendo incompre-

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endido na Espanha, atacava aqueles a quem denominava “inimigos do conhecimento” e tornava explícitas as suas críticas a Aristóteles e àqueles que repetiam velhas idéias sobre a incorruptibilidade dos céus, mesmo após ele e outros terem provado o contrário. Seu ataque ao suporte central da cosmologia aristotélica - a heterogeneidade do universo - era baseado em observações com telescópio e em demonstrações matemáticas. Portanto, ain-da que tenha se mantido geocêntrico, Muñoz ajudou a pavimentar o caminho que levaria à demonstração do copernicanismo: pois, além de apontar para a idéia de um universo homogêneo, ele expandiu os limites da astronomia, interpenetrando-a com a matemática e a filosofia.

A existência de pensadores como Zuñiga e Muñoz não muda, por certo, o fato de que a Espanha teve mais problemas que os seus vizinhos europeus em assimilar o heliocen-trismo e suas implicações. Mas ilustra uma história da ciência que, como a da filosofia, está longe de ter sido uniforme e monocórdia. O fato de os autores aqui citados terem-se constituído em exceções na história intelectual ibérica não diminui a sua importância, re-conhecida inclusive em outros países. No que se refere ao século XVII não é mais possível encontrar a pluralidade cultural do XVI, seja na Espanha, em Portugal, ou em qualquer outro país europeu. Na Ibéria a repressão intelectual foi especialmente acentuada no que se referia às áreas consideradas perigosas pelo Concílio de Trento, como era o caso da física e da astronomia. A Universidade de Salamanca, que havia assumido uma posição de van-guarda em relação ao copernicanismo no século XVI, tornou-se um lugar onde, até 1700, foi proibido ensinar Galileu, Descartes, Newton ou Gassendi sob a justificativa de que eles não correspondiam à verdade revelada tal qual o fazia a filosofia aristotélica.  

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Pitágoras de Samos: seu mito e sua herança científico – cultural

Carla Regina GomesUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Campus Nova Iguaçu

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Resumo

Sobre a vida de Pitágoras de Samos não se pode afirmar, ao certo, o que é lenda ou fato, mas todos já devem ter ouvido falar na célebre frase “Em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.” O presente traba-lho tem por objetivo apresentar uma narrativa da vida de Pitágoras e da escola por ele fundada, através dos seus costumes e das suas descobertas, mostrando a sua herança científico-cultural, não só no desenvolvimento e reconhecimento da matemática e da filosofia como ciências, mas também pelo seu misticismo numérico e da relação da ma-temática com a música.

PALAVRAS CHAVE: Pitágoras. Escola Pitagórica. Números Inteiros. Misticismo.

Abstract

About the life of Pythagoras of Samos, one cannot affirm, to the right, what’s legend or fact, but all should already have ear to speak in the famous sentence “In the triangle rec-tangle, the square of the hypotenuse is the same to the sum of the squares of the cathetus.” The present work have goes objective to present a narrative of the life of Pythagoras and of the school goes him founded, through their habits and of their discoveries, showing his scientific-cultural inheritance, not only in the development and recognition of the mathe-matics and of the philosophy the sciences, but also goes his numeric mysticism and of the relationship of the Mathematics with the Music.

KEYWORDS: Pythagoras. Pythagorean School . Integer Numbers. Mysticism.

Introdução

Admite-se que os primeiros passos para o desenvolvimento do misticismo numérico foram dados pelo grego Pitágoras de Samos (EVES, 2004), cuja filosofia baseava-se na suposição de que a causa última, das várias características do homem e da matéria, são os números inteiros.

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O presente trabalho tem por objetivo abordar sobre a vida do matemático grego Pi-tágoras de Samos e da escola por ele fundada - A Escola Pitagórica, apresentando as suas contribuições para o desenvolvimento da Matemática como ciência, o misticismo sobre os números inteiros e as suas relações com a Música, mostrando, desta forma, sua herança científico-cultural, desde a sua época e até os dias atuais.

Este trabalho está organizado da seguinte maneira: inicia-se, na seção 2 com a biografia de Pitágoras, na seção 3 caracteriza-se a Escola Pitagórica, na seção 4 fala-se sobre a religio-sidade pitagórica, na seção 5 sobre o misticismo numérico, na seção 6 sobre a relação entre os números inteiros e a Música e na seção 7 faz-se as considerações finais.

Pitágoras de Samos

Conjectura-se que Pitágoras de Samos, tenha nascido por volta do século VI a.C.(vivendo aprox.de 570 a.C. até 500 a. C.), em Samos, uma das ilhas do litoral grego (perto de Mileto). Devido à expansão do império Persa, que dominou as colônias gregas da Jônia, Pitágoras deixou a ilha e viajou pelo Egito e pela Babilônia, chegando talvez, até a Índia, de onde recebeu as influências destes povos, absorvendo informações matemáticas, astronômicas e religiosas.

Foi contemporâneo a Buda, Confúcio, Lao-Tsé e a Tale de Mileto. Voltando à Grécia, fixou-se em Crotona e com o patrocínio de Milo ( homem mais rico da cidade) fundou a Escola Pitagórica e casou-se com Teano, a filha de Milo, que foi sua discípula na Escola. Acredita-se que ele tenha criado as palavras “filosofia” (amor à sabedoria) e “matemática” (o que é aprendido) para descrever as suas atividades intelectuais. Pitágoras morreu talvez assassinado, na cidade de Metaponto, para onde fugiu após a Escola ter sido destruída pelas forças democráticas do sul da Itália, que se sentiram incomodadas com a sua grande influência, por volta de 500 a.C.

Assim, a aceitação das atribuições feitas a Pitágoras dependerá da nossa confiança na tradição, que pode não ser exata, mas também não é do todo mal orientada (BOYER, 1996). Nossa principal fonte de informações a respeito dos passos iniciais da matemática grega é o chamado Sumário Eudemiano de Proclo, do século V d. C., no qual Pitágoras é mencionado.

A Escola Pitagórica

Por volta de 540 a. C. Pitágoras fundou, na cidade de Crotona, a Escola Pitagórica, tam-bém conhecida como Irmandade Pitagórica, que reuniu muitos discípulos interessados no estudo da aritmética (no sentido da Teoria dos Números), da Geometria, da Astronomia e da Música, que eram um grupo de matérias da Escola e que posteriormente foi chamado de quadrivium.

A Escola era caracterizada por ser uma sociedade secreta, que tinha um código de conduta rigoroso, no qual os seus membros faziam um juramento de não revelar suas descobertas, que eram dedicadas ao seu fundador. Politicamente era conservadora, era comunitária e os seus membros, vegetarianos e, além disso, era uma comunidade religiosa, cujos ídolos eram os números inteiros.

O lema da Escola era “Tudo é número” e para eles a Matemática se relacionava mais com a sabedoria do que com as exigências da vida prática (BOYER, 1996). O símbolo da Irmandade era o pentagrama (insígnia que identificava os pitagóricos), ou seja, um

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pentágono regular estrelado, formado ao se traçar as diagonais da face pentagonal de um dodecaedro regular.

O centro de Crotona foi destruído por um grupo rival político, sendo a maioria dos seus membros morta, o restante dispersou-se pelo mundo grego, levando a sua filosofia e o misticismo dos números.

Dentre os pitagóricos importantes, podemos citar: Filolau de Tarento (morreu em 390 a. C., aprox.), Arquitas de Tarento (428-365 a. C.), Hipasus de Metaponto (viveu por volta de 400 a. C.) e Nicômaco de Gerasa (viveu por volta do ano 100).

A Religiosidade Pitagórica

Pitágoras teria sido antes de tudo, um reformador religioso, pois realizou uma modifi-cação na doutrina órfica, tornando a matemática a “via de salvação” da alma.

A grande novidade, introduzida certamente pelo próprio Pitágoras, na religiosidade órfica foi a transformação do processo de libertação da alma num esforço puramente hu-mano, pois a sua purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura numérica das coisas e torna, assim, a alma semelhante ao cosmo.

Os Números Inteiros

Acreditavam firmemente que a essência de tudo, quer na geometria, quer nas questões práticas e teóricas da vida do homem, podia ser explicada através das propriedades dos números inteiros e/ou das suas razões (números racionais) e, assim, se entendessem as re-lações entre os números, entenderiam os segredos espirituais do Universo, estando assim, mais próximos dos deuses (SINGH, 2000).

Este misticismo fazia-os relacionar os números com a matéria da seguinte forma: o nú-mero “um” era um ponto (o gerador dos números); o número “dois” era uma reta (dois pon-tos); o “três” era uma superfície (três pontos); o “quatro” era um tetraedro (quatro pontos) e desta maneira, o “um”, “dois”, “três” e “quatro” construíam ou geravam tudo e estes números somados são iguais a “dez” (o mais venerado), que era representado por um triângulo, cha-mado de “o triângulo perfeito” e denominado por tetractys (conjunto de quatro elementos), ao qual o próprio Criador havia confiado à alma dos seres, a fonte e a origem da Natureza.

Desta forma, o ponto gera as dimensões; dois pontos determinam uma reta, de dimen-são um; três pontos não alinhados determinam um triângulo, com área de dimensão dois e quatro pontos, não coplanares, determinam um tetraedro com volume e dimensão três e que a soma de todos os números é o dez, representando todas as dimensões. Por isso, podemos dizer que eles deram origem à Numerologia (crença de que os números regem a vida e o destino das pessoas.

No ramo da Teoria dos Números, são atribuídas, aos pitagóricos, a descoberta dos nú-meros amigáveis, i. e., dois números são ditos amigáveis, se cada um deles é igual à soma dos divisores próprios do outro. Por exemplo, 284 e 220 são amigáveis, pois a soma dos divisores próprios de 220 dá 284, ao passo que a soma dos divisores próprios de 284 é 220. Este par de números alcançou um forte misticismo, pois se acreditava que quem possuísse dois talismãs com estes números e os usasse, selaria uma amizade perfeita.

Outra categoria de números por eles definida, são os números perfeitos i. e., um nú-mero é dito perfeito se é igual à soma dos seus divisores próprios, como por exemplo

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o número 6. Além destes, é atribuída também à descoberta dos números figurados, ou seja, números expressos pela quantidade de pontos em certas configurações geométri-cas, como por exemplo, os números triangulares, números quadrados e os números pen-tagonais.

A tradição atribui ao Pitágoras, por unanimidade, a primeira demonstração geral da relação entre os catetos e a hipotenusa de um triângulo retângulo qualquer, que hoje é co-nhecida como o Teorema de Pitágoras:

“Em um triângulo retângulo, a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.”

Ele já era conhecido pelos babilônios, em 1600 a.C., mas nenhum deles, até então, havia conseguido demonstrar que ele era válido para qualquer triângulo retângulo.

Este teorema tornou-se, de forma irônica, uma contribuição para o desmoronamento da teoria de que todas as medidas eram representadas por um número inteiro ou por uma fração de números inteiros, pois ao aplicá-lo a um triângulo retângulo de catetos medindo uma unidade, temos que a hipotenusa terá medida de e, a partir daí, eles descobri-ram a existência dos Números Irracionais (os incomensuráveis), o que os deixou profunda-mente abalados na sua crença.

Matemática e Música

Pitágoras, ao investigar a relação entre o comprimento de uma corda vibrante e o tom musical produzido por ela, buscou relações de comprimentos, i. e., razões de números in-teiros, que produzissem determinados intervalos sonoros.

Por exemplo: uma corda de determinado comprimento daria uma nota; pressionando um ponto situado a 3/4 do seu comprimento, em relação à sua extremidade (o que equivale a reduzi-la 3/4 de seu tamanho original) e tocando-a a seguir, ouvia-se uma quarta acima do tom emitido pela corda inteira; exercida a pressão a 2/3 do tamanho original da corda, ouvia-se uma quinta acima e a 1/2, obtinha-se uma oitava acima do som original. Portanto, se a corda inteira produzir um Dó, 3/4 da corda produzirá um Fá, 2/3 produzirá um Sol e 1/2 produzirá outro Dó. Assim, se o comprimento original da corda for 12 e se a reduzir-mos para 9, ouviremos a quarta, para 8, a quinta, para 6, a oitava.

Através de experiências com sons do monocórdio (instrumento composto por uma úni-ca corda estendida entre dois cavaletes fixos sobre uma prancha ou mesa) ele efetua uma de suas mais belas descobertas, que dá à luz, na época, ao quarto ramo da Matemática: a Música e a partir desta experiência, os intervalos passam a denominar-se “Consonâncias Pitagóricas”.

Considerações Finais

Nunca antes ou depois a Matemática teve um papel tão grande na vida e na religião, como entre os pitagóricos (BOYER, 1996), que contribuíram notavelmente para a História da Civilização, pelo seu interesse pelo estudo da Matemática como uma disciplina racio-nal, fazendo com que a aritmética passasse a ser considerada uma disciplina intelectual, além de uma técnica, sendo também eles os primeiros a produzir demonstrações rigorosas sobre as verdades matemáticas. Assim, em poucas décadas após a fundação da Irmandade Pitagórica, vários centros análogos foram criados e suas idéias e crenças difundidas por toda a Grécia, inspirando os matemáticos das gerações futuras, a dar continuidade aos seus

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trabalhos, pois, por exemplo, atribui-se aos pitagóricos, parte considerável dessa álgebra geométrica, encontrada nos primeiros livros de Os Elementos, de Euclides. Por isso, em-bora Tales de Mileto seja conhecido como o “primeiro matemático”, Pitágoras é conhecido como o “Pai da Matemática” (BOYER, 1996). Referências

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Sintática e semântica à luz de von Neumann, Wittgenstein e

Aristóteles.Cesar Palmieri Martins Barbosa / Jean Felipe de Assis / Ricardo Silva Kubrusly

Programa Pós Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia - UFRJ

[email protected]/[email protected]

Neste espaço, deseja-se compreender a aporia entre a sintática e a semântica. Não há consenso a respeito da definição dos termos em destaque, apesar de sua constante presença no discurso de grandes pensadores, inclusive sendo objeto específico de discussão e aná-lise. Portanto, não há a possibilidade de definição dos mesmos sem discorrer longamente a respeito de suas intrínsecas polissemias e vaguidades. Contudo, a ousadia pretensiosa nestas entrelinhas é lembrar a necessidade de refletir a este respeito, visto que a sintática e a semântica são aspectos sem os quais o próprio pensamento não pode ser expresso, ou ainda existir. Percebe-se a sintática associada ao pensamento ordenado, muitas vezes a modelos mecânicos, independente do sujeito e da subjetividade, sugerindo, portanto, a objetividade. Por outro lado, a semântica ao estar em conexão direta com o significado ou a designação, agrega-se invariavelmente à emoção, à intuição e à imaginação.

A sintática vem da palavra grega su/ntaciv (sýntaksis) que significa pôr em ordem, disposição; ordem de batalha, tropas alinhadas; composição, tratado, obra; sintaxe, contin-gente de guerra; confederação; convênio; contribuição, imposto; salário, pensão. Leve-se em conta ainda a palavra su/ntagma (sýntagma), a qual traz como significado o contin-gente de tropas; composição, obra e doutrina; constituição política; contribuição ou taxa. O verbo sunta/ssw (syntásso) traz arranjar, dispor, organizar; pôr em ordem de batalha; compor uma obra; combinar um plano, uma intriga; mandar. Desta forma, a sintática pode ser entendida como qualquer organização, combinação ou sistematização de partes. Para Crísipo a sintaxe do todo é o destino que governa a ordem do mundo. Do ponto de vista da semiótica, a sintaxe é a possibilidade de combinar signos com base em regras determi-náveis. É a área do conhecimento que estuda as formas gramaticais ou lógicas da lingua-gem, sendo as formas as possibilidades de combinação. Carnap definiu a sintática lógica das linguagens como a teoria das formas linguísticas, a declaração das regras formais que regem a linguagem de modo sistemático. Salienta ainda o significado e os sentidos como desnecessários para o formalismo lógico, pois somente seriam importantes os tipos dos signos e a ordem pela qual as expressões são constituídas. A lógica é sintática e toda a lin-guagem científica deveria estar embasada nesta perspectiva. Contudo, A tradutabilidade da fala para o modo formal constitui a pedra de toque para todas as sentenças filosóficas,

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ou para todas as sentenças que não pertencem à linguagem de nenhuma das ciências empí-ricas. Carnap, ainda, admite os resultados negativos das análises lógicas, diante da total au-sência de significado. Em termos do desenvolvimento dos métodos computacionais, von Neumann chega a resultados parecidos ao descrever as sinapses cerebrais como linguagem de fato ou perspectiva matemática, isto é, há uma diferença entre as linguagens humanas e a estrutura lógica de descrição das mesma. Wittgenstein pondera tais limites em alguns aforismas dos Tractatus – especialmente o terceiro parágrafo e a chamada parte mística da obra – contudo é no livro azul, no livro marrom e, sobretudo, nas Investigações Filosóficas e em trabalhos posteriores que esta perspectiva passa a ser sistematizada. Tais mudanças na concepção de uma sintática perfeita na descrição do mundo, a qual, se levada às últimas atuações, reduziria os problemas científicos e filosóficos a uma analiticidade da linguagem, sofrendo inúmeros abalos epistemológicos. As pessoas não estão acostumadas a olhar as sentenças, mas os fatos. Tal assertiva possui como representante mais significativo Gödel e a prova da incompletude, ao procurar colocar todas as sentenças nas regras aritméticas e encontrar o paradoxo da consistência e da completude.

A respeito da semântica deve-se ponderar sua introdução por Aristóteles a fim de in-dicar a função específica do signo linguístico (shmai/nein /semaínein). O verbo semai/nw (semaíno) diz respeito a assinalar, marcar, selar; fazer senhas, mandar por senhas, dar o sinal; mandar, ordenar, ser chefe; mandar um augúrio, deixar ver um presságio dos deuses; ser um presságio, pressagiar; indicar, explicar, anunciar, predizer, revelar; provar; manifestar-se, marcar para si como seu; conjecturar. O substantivo sh=ma pode ser entendido como sinal, distintivo, marca; presságio, augúrio, prodígio; pisada; aviso; quadro, imagem, retrato; selo; letra, caractere de letra; bandeira; tumba, sepultura, túmulo, cenotáfio; prova. A semântica considera as relações dos signos com os objetos referidos, isto é, permite uma relação de de-signação, também assinalada contemporaneamente por Bréal. Deste modo, a semântica pro-cura estudar e analisar, também pela lógica, a função significativa, os nexos entre os signos e suas significações. O polêmico livro de Korzybski – Science and Sanity – utiliza o termo para uma teoria relativa ao uso da linguagem, mesclando-o às neuroses – entendidas como frutos de um mau uso da linguagem. Os lógicos no início do século XX, em especial os de origem polonesa e particularmente Chwistek, não distinguem de maneira geral entre proposição e enunciado, portanto, entre significado lógico e forma linguística de uma dada proposição. Assim, a semântica passa a indicar a lógica formal de uma maneira geral. Esta perspectiva está de acordo com o ideal de uma sintática perfeita e a possibilidade de uma aritmetização da linguagem. Contudo, após os trabalhos de Morris e Carnap, passa-se a considerar a inse-parabilidade entre o pensamento sintático e semântico, atribuindo objetivos para a lingua-gem em circunstâncias concretas. A sintática, ao procurar abstrair até mesmo o significado, deseja estudar as relações entre os signos e os sistemas neles subjacentes e oriundos. Há uma diferenciação entre a semântica pura que constitui a base a priori de um sistema sintático e a semântica descritiva que se aproxima de uma investigação empírica, mais próxima da lingua-gem. O desejo de uma análise lógica baseada unicamente em condições analíticas, no sentido kantiano, mostra-nos o desejo de um afastamento de perspectivas contingentes, ou, no pensa-mento kantiano, sintéticas. Resta-nos conjecturar a respeito das condições sintéticas a priori, ou seja, o princípio básico de orientação do pensamento kantiano que de uma maneira breve procura sintetizar o pensamento humano racional e sensível. A semântica pura é uma teoria da verdade efetivada por meio de sistemas sintáticos interpretados de modo dedutivo. Des-te modo, são tangenciados nossos exemplos paradigmáticos – Ludwig Wittgenstein e John von Neumann –, pois o desenvolvimento de uma concepção pragmática que tenha como subsídio o contexto e o uso da linguagem ocorre de maneira concomitante ao ideal de uma

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matematização desta para tomadas de decisão. Deve-se ainda pontuar as pesquisas fundamentais em torno destes temas. A respeito

da sintática, Carnap se refere de maneira geral às possíveis ordens seriais compostas de quaisquer elementos. A sintaxe lógica procura estudar sistemas de linguagem despojados de significação, focando suas análises na expressão, na fórmula, no axioma, no teorema, na regra de inferência, na prova. Destacam-se neste ramo os conceitos de consistência, com-pletude e indecidibilidade. A sintática, em suas características, pode ser vista como pura ou descritiva; aritmética e não-aritmética. Neste último caso, os predicados sintáticos podem ser definidos como predicados numéricos, tendo como grande representante Gödel. Per-cebe-se uma tendência à formalidade no que tange ao termo sintaxe e suas variações. Vale ainda perceber o termo em Husserl, sendo associado a proposições apofânticas, as quais influenciariam de maneira significativa Heidegger. Entende-se por proposições apofânti-cas qualquer enunciado verbal passível de ser considerado verdadeiro ou falso, em função de descrever corretamente ou não o mundo real. Dito de outro modo: são enunciados que permitem a revelação da physis, pois evidencia e coloca às claras suas características. Aristóteles considerou a Verdade o objeto a ser estudado pela lógica, em contraste com as manifestações linguísticas, afetivas, desejantes, interrogativas. Estas últimas pertenceriam antes à Retórica e à Poética do que a Lógica.

A semântica como disciplina acadêmica específica tem início na Europa no final do século XIX, especialmente nos trabalhos de Michel Bréal – filólogo francês. Para os norte--americanos Charles Sanders Pierce seria o precursor. Contudo, deve-se ponderar a uni-versalidade deste pensamento, a começar nos antigos, como Platão e Aristóteles no perío-do clássico do pensamento grego, os estóicos, os epicuristas e outras correntes helenísticas; passando pela exegese e hermenêutica Patrística, por Agostinho e Tomás de Aquino, de-sembocando na controvérsia entre o nominalismo e o realismo; e, por fim, nas concepções modernas, em especial o pensamento decorrente de Leibniz e Locke.

O pensamento formalista de von Neumann não carrega consigo o ideal de Hilbert de uma lógica completa e consistente, mas mantém o ideal de mapear todo e qualquer fenômeno pela lógica e, sobretudo, pelos instrumentos matemáticos. Contudo, conforme pode ser atestado epistemologicamente, seu pensar não deseja descobrir as matrizes do universo, mas aplicar dados passíveis de serem coletados a âmbitos utilitaristas. A busca por uma sintática perfeita tem pressupostos em seus princípios metafísicos deterministas, mas com a perspectiva da in-completude almeja um ponto simétrico, um equilíbrio prático entre a ordem e o caos. Desta forma, como sempre procurou refletir sobre problemas centrais de seu tempo, como a fun-damentação lógica da ciência e as novas descobertas quânticas, o resgate da teoria dos jogos, a aplicação na economia a partir da reflexão sobre a tomada de decisão, evidencia a epistemo-logia subjacente: a máxima possibilidade de matematizar o cosmo, vinculada à necessidade, e a presença da incerteza e das múltiplas variações de cada particular, próprios da contingência

Tal discussão aqui caracterizada com os termos sintática e semântica, ganha corpo em inú-meros campos da pesquisa contemporânea, com outras roupagens e nomenclaturas específicas. Contudo, estas procuram realçar justamente aquilo que é passível de ser ordenado e, portanto, dito com segurança objetiva, ao mesmo tempo em que salientam o fundamento do que é dito. A espera por uma solução não apetece, o momento é de uma tensão essencial. Por ora, apela-se ao gênio literário e filosófico de Borges ao narrar o encontro de um sacerdote com o impon-derável na divindade em seu âmbito Infinito e depois ao refutar o tempo: diante da epifania o que nos resta dizer Wittgenstein? Ao refutarmos nossas bases quais jogos linguísticos e teorias resgatar-nos-ão de nós mesmos? A caminho da linguagem somente podemos parafrasear a lei-tura atenta de Heidegger aos poemas de Hölderin: nada seja onde a palavra faltar.

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Técnicas na Idade Média, de 1150 a 1200.

Erica Colares RochaPrograma de Pós-Graduação em História das Ciências Técnicas e Epistemologia – HCTE

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O século XII foi especial, incomum e rico em novos ideais, descobertas e redescobertas, passou por mudanças decisivas na formação do mundo Ocidental. É nele que focar-se-á na confecção deste artigo.

Uma série de fatores ajudou no desenvolvimento do homem medieval. Entre eles: o crescimento demográfico; a relativa pacificação, e a questão da terra - difusão do afolha-mento trienal e o aumento da área cultivável, difusão da charrua e o aumento de superfí-cies cultiváveis, a variedade de produção e a melhora na alimentação.

Desde o século X, viu-se uma expansão demográfica acentuada pelo movimento mi-gratório, pelos arroteamentos e pelo crescimento da população urbana. A Europa Ociden-tal duplicou ou até mesmo triplicou sua população em algumas regiões, fenômeno que não era presenciado desde a revolução neolítica e a invenção da agricultura; além disso, a expectativa de vida tem um aumento inegável. (BASCHET, 2006: 101) Essa elevação de-mográfica se deu pela ausência de epidemias na época, a fartura dos recursos naturais, a questão da guerra ser feita por poucos guerreiros de elite e não por legiões inteiras, a sua-vização do clima e o surgimento de novas técnicas agrícolas. (FRANCO JR., 2006: 23 – 27)

Gimpel também estudou a respeito desse crescimento demográfico e nos trouxe esta-tísticas que afirmam que no século XII, principalmente durante sua segunda metade (foco do trabalho), a população européia (com ênfase na Inglaterra e França) chega a aumentar em 11 milhões de pessoas, ou seja, 22% em 50 anos. Esses números levantados por Gimpel indicam o fervilhar de transformações e, consequentemente, a melhoria na condição de vida daquela sociedade.

Necessitando de ordem, acreditando-se aprimorar as condições do homem medieval, restaurou-se efetivamente o poder real, centralizado nas Monarquias Feudais. A monar-quia feudal deu seus primeiros grandes passos no século XII. Os reis, com essa realidade política, onde havia a necessidade de uma organização, conquistaram cada vez mais força perante seus vassalos, se tornando menos distantes e ausentes no cotidiano feudal.

Com o “Estado” fortalecido, a sociedade medieval atingiu uma melhor estrutura e organi-zação, necessárias para desenvolver-se economicamente. O poder militar se tornou imprescin-dível para a manutenção das conquistas de terras dessas monarquias, uma significante parte dos soldados nesse memento era mercenária, dando espaço e tempo maior para o desenvol-vimento agrário. Houve uma mudança radical no modo de vida, e, a partir desse progresso político, com a prosperidade econômica, culminou-se, num avanço na utilização do dinheiro.

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O sentimento de reforma também permeou o século doze, os padres perpetuavam a idéia de reformulação, atendendo, assim, às pressões disseminadas pela própria sociedade. Uma crescente valorização da pobreza, a descrença de que Deus habitasse a natureza e a motivação de disseminar a Palavra de Deus (como isso, a expansão territorial), foram também fatores de extrema importância para o progresso científico e tecnológico do século XII.

Essa sociedade cristã estava apta, a partir das reformas que vinha sofrendo, a enfrentar grandes mudanças e a ser a gênese de uma mentalidade inovadora. A ciência e as técni-cas foram louvadas numa sociedade que, antes se acreditava ser impróprio trabalhar, pois sentia que o esforço braçal era uma forma de punição de Deus. Com o desenvolvimento de monastérios, os monges pregaram uma nova forma de se encarar a utilização da for-ça de trabalho, e se tornaram exemplos para os fiéis cristãos medievais. Os monastérios incentivaram e promoveram o desenvolvimento de novas tecnologias para facilitar o seu cotidiano de labor. De indigno, o homem que trabalha se torna virtuoso.

“Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes. Por isso vemos mais que eles e mais longe que eles, não porque a nossa vista seja mais aguda ou nossa altura mais elevada, mas porque eles nos carregam no ar e nos elevam a toda a sua gigantesca altura.” (GIM-PEL, 1977, 127) Bernardo de Chartres, mestre da escola episcopal de Chartres (entre 1114-1119), fez essa belíssima metáfora que transparece a sede do homem medieval de buscar o que é novo e enxergar mais longe que os seus antepassados.

Todos esses fatores, vistos até então, foram essenciais para um avanço tecnológico tão notável. Ao modo que as maneiras e a mentalidade se transformavam perante as inovações tecnológicas, Whitney afirma que há “evidências que indicam que as posses de inovações tecnológicas na Idade Média, traziam prestígio para comunidades e indivíduos, demons-trando o comando de recursos, trabalho e experiência.” E que “as atitudes sociais em rela-ção às tecnologias eram complicadas pela coexistência de muitos valores diferentes sobre o trabalho manual, o fazer dinheiro e a relação entre o homem e a natureza”. Além de acres-centar que “os valores religiosos e as instituições estavam atreladas ao desenvolvimento da tecnologia” e às suas representações morais.

Em meados do século XII, Domingo Gundislavo escreveu: “De Divisione Philoso-phiae”. Ele diz nesse livro que: “As artes fabris ou mecânicas eram as que se ocupavam de obter da matéria algo útil para o homem, e a matéria empregada podia preceder ou dos seres vivos, por exemplo, a madeira, a lã, o linho ou ossos, ou de coisas inanimadas, por exemplo, ouro, prata, chumbo, ferro, mármore e pedras preciosas.” (Crombie, 1987: 164) É desse tipo de técnica que ater-se-á nesse artigo.

Muitas das invenções e avanços tecnológicos vividos no século XII foram trazidos para os Ocidentais através de seus contatos com o Oriente (dos árabes que ocupavam a Pe-nínsula Ibérica e dos “infiéis” que ocupavam a Terra Santa), ou eram remanescentes da antiguidade romana. Muitas das técnicas utilizadas foram aperfeiçoadas e adaptas ao novo meio em que eram utilizadas, mas também algumas foram inventadas pelos Ocidentais. Os moinhos d’água, de vento (abundantemente documentados a partir de 1180), a rato-eira (Chrétien de Troyes), a bússola (Alexander Neckam - 1180), o imã –Roman d’Enéas (1160), o sabão em pedra, o papel de linho, o espelho com uma proteção de vidro, alguns exemplos de invenções da época, foram primeiramente documentados da segunda metade do século XII, e, portanto, amplamente conhecidos e utilizados. Marcaram a época, trazen-do conforto e praticidade para a vida do homem e da mulher medieval.

Os moinhos, por exemplo, pode-se dizer que foram de extrema importância econômi-ca. Potencializavam a utilização dos recursos naturais e traziam para a Idade Média melho-ra na qualidade de vida e também o alargamento de uma classe ociosa.

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O pisão, que “substituindo a pisagem de pés humanos pela batida de martelo sobre o tecido”, constituiu-se num grande avanço. A força hidráulica acionava os martelos por meio de um tambor giratório preso ao eixo da roda d’água. A série completa de martelos podia ser colocada em funcionamento com um homem cuidando para que o movimento do tecido nas calhas fosse mantido de maneira correta. Apesar de ainda ter pouca utiliza-ção pelos medievais do século XII e XIII, esta não deixa de ser uma invenção importante para eles. Principalmente na Inglaterra, onde a indústria de lã era fomentada pelos monges que cultivavam as melhores lãs do Ocidente. Tal era a preocupação com a qualidade do tecido fornecido aos compradores que leis na Inglaterra e França foram impostas sobre a confecção e utilização de materiais. A legislação queria, com a implementação de leis, pro-teger a qualidade dos produtos e conferir a segurança necessária ao comprador do tecido.

O vitral era utilizado desde o fim do século doze em igrejas da Inglaterra. Urban encon-tra em Theophilus, “uma descrição completa do processo envolvido. O principal uso do vi-dro era em vitrais. A mistura era de duas partes de pó de madeira de faia para uma de areia fina e limpa. A mistura era colocada em potes em um forno. Quando ela era removida de lá, o soprador de vidro, usando um longo tubo, formava um cilindro assoprando uma bexiga e cortando o topo e fundo. Um ferro branco cortante era empregado nesse cilindro que era armazenado e então reaquecido, cortado, e desenrolado e achatado em uma folha. Em cima disso fazia-se o desenho, para assegurar os designs desejados, e então, esmaltados com a matéria colorante, iam mais uma vez para o forno.”(...) O vidro era usado para (...) para copos, também.” (HOLMES: 1952, 144) Derry acrescenta ainda que a manufatura de vitrais, que tem seu exemplo mais antigo na Inglaterra do anos de 1170 – 80, requeria a adição de minerais específicos na sua confecção. Por exemplo, os verdes e vermelhos eram produzidos pelo uso do cobre, apesar do vermelho mais belo requerer o cloreto de ouro. Os tons marrons e amarelos era feitos com a adição de ferro, o melhor amarelo era o com a prata metálica. E o azul era obtido com a zaffre – uma palavra árabe para a mistura que contém cobalto. (DERRY: 1970, 95) Esses vitrais só puderam ser empregados graças ao novo estilo que nascera, o gótico, onde as paredes eram mais finas, e toda uma nova forma de se fazer arquitetura, baseada na arquitetura romanesca, vigente até então, nascia.

Sua importância, se deu no fato de que os vitrais apresentavam a narrativa da vida de Jesus (e também o cotidiano do homem medieval). Essas belíssimas narrativas pictóricas contavam histórias aos fiéis. Era difícil conseguir interagir e entender sua religiosidade somente por meio das missas, então através dessas imagens dos vitrais o conhecimento era transmitido de forma clara, a história era contada. A sociedade medieval não era toda letrada no Latim ou até mesmo no vernáculo. As missas eram celebradas de costas para o cristão e em Latim. Isso significava que: grande parte das pessoas que assistiam as missas nas catedrais ou igrejas não entendia o que o padre dizia. Com os vitrais e as esculturas das igrejas se contava a história da vida de Cristo que era transmitida oralmente e se regis-trava os fatos importantes para o mundo medieval. Neste contexto, a rosácea também foi implementada.

Os engenheiros europeus desenvolveram um fascínio pelo desenvolvimento de novas máquinas e novas fontes de energia, e eles adotaram e desenvolveram novos métodos para gerá-la e aproveitá-la. De fato, a Europa se tornou a primeira grande civilização a não ser movida essencialmente da força do músculo humano.” (MCCLELLAN; DORN: 1999: 177)

É de extrema importância o estudo das técnicas, elas tiveram grande valor para a so-ciedade medieval.

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Uma Prova de Consistência.

Felipe Sobreira Abrahão1

Resumo

A consistência da aritmética foi demonstrada como sendo indecidível para a teoria formal dos números. Porém, utilizando uma regra não dedutiva é possível construir um sistema lógico completo, no qual se prova sua consistência e a consistência da aritmética. Será discutida tal demonstração juntamente com outras questões de lógica matemática en-volvidas. Por fim, encontram-se alguns questionamentos que decorrem desses resultados.

Palavras-chave: Consistência. Aritmética. Gentzen. Schütte. Regra Infinitária.

Introdução

Demonstradas por Kurt Gödel em 1931, a incompletude da (ou teoria formal dos números ou aritmética) e a indecidibilidade da consistência nos diz, respectivamente, que não é possível sempre demonstrar dentro de que uma fórmula é verdadeira ou que é falsa (isto é, ou que , onde é uma fórmula na linguagem de ), nem que a própria teoria é consistente. O primeiro é o Primeiro Teorema da Incompletude e o seguinte, o Segundo Teorema da Incompletude. É importante lembrar que esses dois teoremas partem da hipótese de que seja consistente. Então, por exemplo, o segun-do teorema da incompletude assevera que se a aritmética for consistente, então ela não consegue demonstrar que ela mesma é consistente. O sistema axiomático usado por Gödel para os números se baseia em regras de inferência dedutivas, das quais é possível definir a própria demonstrabilidade de uma expressão dentro da teoria formal dos números, ou seja, é possível construir uma sentença na linguagem de – chamemos de

- que diz (representa) que uma fórmula é demonstrável pela teoria . Logo, para qualquer fórmula demonstrável em , também demonstra

.Gerhard Gentzen, em 1936, construindo um sistema lógico – vamos chamá-lo de

– para a aritmética mais poderoso que a teoria formal dos números, consegue de-monstrar, dentro de , não só que é consistente e completo, como tam-bém, que a é consistente. No livro Introduction to Mathematical Logic, escrito por Elliott Mendelson, no qual se baseia este presente artigo, pode-se encontrar tal demons-

1 Mestrando, HCTE – UFRJ. E-mail: [email protected]

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tração na versão do Kurt Schütte (1951). Ambas as demonstrações se dão por indução transfinita sobre os ordinais.

A diferença central de para está na infinite induction rule, uma regra de inferência infinitária que nos permite obter uma conclusão a partir de infinitas premis-sas. Com ela, tornamos tal novo sistema lógico para a aritmética não dedutivo, ou seja, que não pode ser reduzido às regras dedutivas clássicas.

Mostraremos a versão do Schütte (1951) sobre a demonstração do Gentzen (1936) da consistência da aritmética. Tanto quanto são sistemas axiomáticos numa lógica de primeira ordem, porém, possuindo regras de inferência e axiomas distintos. Al-guma familiaridade com as noções e definições de lógica de primeira ordem e de matemá-tica talvez seja necessária para o leitor do presente artigo.

Desenvolvimento

Dizemos que uma fórmula atômica fechada é correta se ela for demons-travelmente verdadeira por e, inversamente, dizemos que uma fórmu-la atômica fechada é incorreta se ela for demonstravelmente falsa por . Note que o conjunto

é recursivo, isto é, um computador pode decidir se uma fórmula pertence ou não a esse conjunto. Para isso bastar ter em mente que uma fórmula atômica fechada é sempre da forma , onde e são termos fechados – um termo fechado é aquele composto somente por símbolos constantes, ou seja, sem variáveis livres, e pelas operações usuais de sucessor, soma e produto.

Uma fundamental diferença está nos axiomas de para os de . Estes são compostos por todas as fórmulas atômicas fechadas corretas e a negação de todas as fórmulas atômicas fechadas incorretas. O que nos leva a um sistema com infinitos, em par-ticular, enumeráveis, axiomas. Outro ponto importante, apesar de não necessário para a construção de , é que se toma, por hipótese, a verificação se uma fórmula atômica fechada é correta ou incorreta como sempre possível e definida. De fato, , por exem-plo, sempre pode decidir por processos recursivos (isto é, por demonstrações dedutivas) se uma fórmula atômica fechada é correta ou incorreta – assim como, um computador, como mencionado acima. Mas tal consideração não é necessária para a construção de e dos seus axiomas, pois basta apenas tomarmos tais infinitos axiomas como ponto de par-tida, independentemente de ter algo os verificando ou não.

As regras de inferência de não são iguais às de (estas últimas são as regras dedutivas clássicas que estamos acostumados). No entanto, a menos da infinite in-duction rule (denotada por , o conjunto de regras e axiomas de é equi-valente ao de . Por isso, iremos nos abster de explicar todas elas. O grande ganho que tal novo sistema obtém em cima do sistema dedutivo clássico está na , definida, na notação de Dedução Natural, por:

,

ou, equivalentemente,

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,

onde e são fórmulas na linguagem de . Ou em outros ter-mos, se demonstramos para

, então podemos obter . Por isso, faz sentido também dizer que . Apesar de parecer que essa regra seja sempre válida, não importando que interpretação fizermos de , existem modelos da teoria formal dos números em que essa regra não é verdadeira. Sabe--se, por exemplo, que podemos ter um modelo infinito não-enumerável para os números naturais, se for consistente.2 Neste caso, pode ser verdadeiro para todo

natural (na verdade, para sendo uma constante standard), porém, para alguma cons-tante não-standard , pode ser falso, o que tornaria falso nesse modelo que

. É importante também salientar que todo teorema de é uma sentença, ou

seja, uma fórmula fechada. Pois, todo axioma é uma fórmula atômica fechada e toda regra de inferência de somente leva fórmulas fechadas em fórmulas fechadas. Logo, a equivalência de , mencionada acima, só faz sentido restringindo-se qualquer teorema para que seja uma sentença.

Uma demonstração em é definida por uma árvore. Uma árvore é um Grafo com seus pontos organizados em linhas horizontais, chamados de levels, e com proprieda-des específicas. Deste modo, com as regras de inferência de , uma árvore repre-senta uma derivação de uma fórmula, representada por um ponto no level mais baixo, a partir dos axiomas de , representados por pontos no level mais alto.

Logo, é possível uma árvore com infinitos pontos, no caso de, pelo menos, uma estar presente na prova. Ou seja, num level, podem-se ter infinitos pontos. Mas, apesar de serem possíveis demonstrações de tamanho infinito, isto é, com uma quantidade infinita de regras de inferências e fórmulas, o número de levels é sempre finito. Uma árvore sem-pre tem uma altura finita. Assim como, não se trata de uma lógica infinitária em que possam ocorrer fórmulas de tamanho infinito. Toda fórmula de possui um tamanho finito.

Se tentarmos usar o mesmo processo de atribuição de números de Gödel às demons-trações de - isto quer dizer, definir uma fórmula representando a demonstrabili-dade em -, precisaremos indexar cada ponto da árvore a um número natural de forma a construir um sequência de números que corresponda biunivocamente à árvore. Mas isto nos levará, em certos casos, a construção de uma sequência infinita de números naturais. Logo, tomando também as propriedades de já descritas anteriormente neste artigo, não poderemos construir uma fórmula na linguagem de que repre-sente uma demonstração em . Isto nos leva a impossibilidade de fazer uma de-monstração análoga a do primeiro teorema de incompletude de Gödel. Em certos sistemas com regras de inferência infinitárias não “vale Gödel”.

Outra questão importante é sobre os modelos que satisfazem a teoria de . Uma teoria é o conjunto de fórmulas demonstravelmente verdadeiras a partir do conjunto

2 Teorema de Löwenheim-Skolem-Tarski

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de axiomas e regras de inferência em questão. Por conseguinte, a teoria de é o conjunto de todos os axiomas e teoremas de . É possível provar que os modelos standard de satisfazem os axiomas de , pois estes são compostos somente por constantes standard (isto é, números naturais). A também atua restringindo os possíveis modelos dos teoremas de - ela própria só é satisfeita por modelos standard. Por isso, todo teorema de terá que ser verdadeiro em todo modelo standard de e vice-versa.

Os principais resultados na demonstração do Schütte que estamos discutindo são o Lema A-1, que nos dá a completude de , o Corolário A-4 e a Proposição A-8, que nos dão a consistência de .

Aqui lembramos o argumento usado no segundo teorema de incompletude que diz que toda a prova do primeiro teorema de incompletude pode ser carregada dentro de (Zermelo-Fraenkel-Choice). é uma teoria dos conjuntos - considerada a mais usual. Logo, traduzindo para a linguagem natural, a sentença “Se for consistente, então não prova sua própria consistência” é um teorema de .3

Sabe-se que toda teoria sobre grafos também pode ser carregada dentro de , por isso, usando o mesmo argumento mencionado no início do parágrafo anterior, fica mais fácil ver que toda a prova de consistência da aritmética em pode ser car-regada dentro de . Teremos, então, que a sentença “O sistema lógico prova que é consistente” também será um teorema de . É possível construir uma fórmula em que represente a demonstrabilidade em - por exemplo,

-, pois está numa lógica de primeira ordem, numa linguagem razoável, com um número finito de axiomas e com regras de inferência dedutivas clássicas.

Conclusão

Chegamos, então, ao resultado de que

e

são teoremas de . Não há contradição evidente entre eles e nem com os teoremas de incompletude. E, de fato, como se quer mostrar a consistência do nosso sistema axiomático (no nosso caso,

, mas também vale a mesma coisa para ), o resultado de Gentzen não pode ser considerado com menos crédito, pois sua prova é feita sobre os mesmos argumentos dos teoremas de Gödel (ambas podem ser feitas dentro de ). E vice-versa. Ademais, se for realmente consistente, todos esses resultados não entrarão em contradição nunca.

Mas ainda fica o questionamento: até que ponto uma demonstração, como a descrita neste trabalho, de que é consistente realmente nos prova que seja consisten-

3 Essa sentença também pode ser um teorema de .

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te? O que pudemos provar, se confiarmos em todas essas demonstrações, é que é um sistema suficientemente forte para provar que outro sistema prova que é consisten-te.4 Mas podemos provar a mesma coisa, passo a passo e com igual validade, se for realmente inconsistente. Em outras palavras, todos esses resultados se mantêm provados da mesma forma se vier a chegar numa contradição um dia.

Dessa forma, fica impossível retirar da discussão a formação de um pseudo-problema: a consistência do sistema seria mais importante que a veracidade intuitiva, ou convencio-nada, de seus axiomas?

Agradecimentos ao Prof. Dr. Francisco Antônio Dória.

Referências

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MENDELSON, E. Introduction to Mathematical Logic. 2ª. ed. Princeton, New Jersey: D. VAN NOSTRAND COMPANY, INC., 1964.

4 Analogamente, o mesmo vale para os teoremas de Gödel.

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Tecnologias da Imaginação: Mídias, Sensibilidade e Cognição

Francisco B. Araujo (Doutorando do HCTE) [email protected]

Ricardo Kubrusly (Professor do HCTE) [email protected]

Inrodução

A pesquisa aqui sintetizada foi desenvolvida como parte de um projeto mais amplo que consiste em buscar formas de pensar a economia moderna a partir de suas zonas de exte-rioridades, isto é: (i) considerar as práticas econômicas modernas desde suas inter-relações estruturais com as práticas semiótico-econômicas dos povos para quem a economia não constitui um domínio independente; e (ii) tratar dos signos manejados pela teoria econô-mica desde suas inter-relações com o sistema formado pelo conjunto das ciências e técni-cas modernas. Grosso modo, esta seria uma estratégia para tomar como objeto as relações entre sistema econômico moderno e a produção do saber – os modos pelos quais a nossa sociedade funciona e tenta tornar o mundo, natural ou social, inteligível, tecnicamente controlável e teoricamente explicável. No âmbito da presente pesquisa tratou-se especifi-camente de enfocar determinadas tecnologias de mídia e regimes de códigos como forma de acesso privilegiado à formação da cognição e da sensibilidade, integrantes de diferentes formas de socialidade.

PARTE I – Tecnologias da imaginação e grandes transformações cognitivas

O ser da codificação

Desde os primórdios da humanidade até os dias de hoje os seres humanos têm se en-gajado no mundo e constituído seus modos de vida por um complexo processo de co--evolução com os códigos, as técnicas e as diferentes mídias utilizadas para a comunicação. Dos mais primitivos sistemas gestuais aos modernos códigos computacionais, das pinturas rupestres, passando pela escrita alfabética, até o cinema e a internet, diferentes regimes de signos e ambientes midiáticos projetam e constituem, sem, contudo, determinar, modos de ser de seu usuário, formas de agenciamento do desejo, modos de engajamento com o tempo e mudança e determinados modelo de interação com as normas sociais.

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O gesto e a fala

As belas gravuras que ilustra a edição do livro de “The Expression of Emotions in Man and Animals”, publicado por Charles Darwin em 1872, mostram semelhança entre expres-sões humanas e de animais. Ao apontar a semelhança entre o gesto humano e expressão animal Darwin foi um dos primeiro a indicar algo de fundamental; o gesto não seria, ao menos não apenas, um sistema de códigos ornamental e complementar à fala, sendo tam-bém um fruto de impulso fundamental, anterior e basilar em relação à palavra. É mesmo possível sugerir que no autocontrole dos gestos, que separa o original de sua reprodução socialmente sancionada, tornando o primeiro um referente para o segundo (mas também um “objeto perdido”, para sempre inalcançável em sua integridade), esteja, não apenas a origem da técnica, mas também na origem da comunicação simbólica e do mundo codifi-cado que constitui para o humano uma segunda natureza.

Segundo as pesquisas do neurocientista Terence Deacon o processamento cognitivo dos sons da fala não se centra na análise do som, mas sim na busca de identificar gesto vocal que o produziu. Há estudos que mostram que os movimentos gestuais costumam ser disparados algumas frações de segundos antes do início da fala (CF. Rotman, 2008). Tudo se passa como se a fala refletisse já uma realidade de segunda ordem, mas que, entremeada e em simbiose com gestos e semi-alienada de seu fundamento, pudesse fecundar o “real” (que concerne ao corpo em sua dimensão de gozo pulsional) com o “imaginário” (no que diz respeito à imagem corporal).

O traço

Não há quem olhe as pinturas de 17 mil anos nas paredes da Caverna de Lascaux, no sudoeste da região hoje ocupada pela França, sem emocionar-se. O homem pré-histórico, o artista da caverna, assim como o contemporâneo, era capaz de reduzir o mundo das circunstâncias ao mundo de imagens, congelando os eventos temporais em cenas grava-das sobre superfícies. Doravante, esta tecnologia da imaginação o impelia a abstrair-se das contingências para pensar de fora os eventos. O gesto que faz traços, na parede ou na tela, estabelece uma nova relação entre imaginário implicado nas cenas e o referente das circunstâncias em que cada qual ganha sentido a partir do outro – a relação entre a cena mítica original, atemporal e fixa, e a sua atualização no ritual; ou ainda entre o mapa e o mundo; o projeto e a obra.

Escrita, tempo e forma

Diversos autores atribuem ao surgimento da escrita abstrata, desde os alfabetos silá-bicos como o Hebreu, e o Fenício que lhe dá origem, até o aperfeiçoado alfabeto fonético grego (que ao acrescentar vogais passa a registrar os sons necessários para a fácil decodifi-cação da “fala” transcrita) o surgimento de novos modos de pensamento e de composição, incluindo por um lado a compreensão linear do tempo e o monoteísmo, e por outro a topicalização, o reconhecimento de estruturas semânticas, o desvelamento de categorias lógicas e do pensamento conceitual.

Yawhe, o Deus dos Hebreus, que se revela na TORAH, é um Deus transcendente e abs-trato, cuja voz emana de fora do mundo físico, de dentro da consciência dos Homens ou

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do absoluto. Segundo Rotman, trata-se de um Deus que se identifica aos efeitos da palavra escrita (op. Cit.). Esse Deus que demanda que os Judeus libertem-se das amarras impostas pela natureza, a dependência do Nilo e de seus ciclos, e vagueiem pelo deserto, em nome de um conceito, “liberdade” – estabelecendo uma aliança moral que se realiza na cronolo-gia linear.

O alfabeto fonético grego teria facilitado a escrita e a leitura, possibilitando o espraia-mento da literatura (o contrário de permanecer condicionados à interpretação dos sacer-dotes-escribas em um só corpus, como no caso Hebreu, ou de uma burocracia proto-im-perial em escritos técnico-instrumentais, legais e contabilísticos, como nos caso Fenício), e conseqüente ocorrência do chamado “milagre grego”. Para Eric Havelock, o aparato grego de escrita, por extrair da fala a idéia fundamental da unidade constituída pelos fonemas, em si mesmo a-significantes, e desta forma segmentando o fluxo da fala em uma men-sagem fixa, reprodutível, examinável e livre de contexto, teria criado o enquadramento semiótico e psicológico do pensamento abstrato grego – em que se constituem oposições como: razão e emoção; argumentação racional e encantamento pelas palavras; inteligível e sensível; psyché e soma, logus e muthus etc.

A história do Ocidente costuma ser referida a duas principais matrizes mito-históricas, a judaico-cristã e a greco-romana, cada qual se constituindo a partir de novidades sem precedentes em relação às culturas dos antigos impérios de base agrícola. Não é exagero afirmar que, a despeito das inúmeras influências que recebeu o Ocidente, somos, em certo sentido, descendentes dos Gregos no que tange a racionalidade e cristãos no que diz res-peito aos valores. Pode-se falar de origens mito-históricas, considerando que estas são ori-gens reais na medida mesmo em que são continuamente referidas como estruturas perenes de interpretação do presente. Tanto mais porque os registros escritos que nos foram lega-dos pelas referidas coletivos carregam em si a concepção de uma proto-história, mais ou menos populada pelo imaginário mítico – operando uma passagem contínua entre mito e história. Nas palavras de Villen Flusser: “Com a escrita começa a história não porque a escrita grava os processos, mas porque ela transforma as cenas em processos” (Op. Cit.).

PARTE II – Mídias e contemporaneidade

O capitalismo de produção

Segundo Flusser:

“A invenção da tipografia reduziu os custos dos manuscritos e possibi-litou uma burguesia em ascensão se inserir na consciência histórica da elite. E a Revolução Industrial que arrancou a população ‘pagã’ das pe-quenas aldeias, de sua existência mágica, para concentrá-la como mas-sa em volta das máquinas, programou essa massa com códigos lineares, graças à imprensa e a escola primária. O nível de consciência histórica se torna universal no decorrer do século XIX, nos chamados países ‘desen-volvidos’, pois esse é o momento em que o alfabeto começa a funcionar como código universal.” (CF. Flusser, 2007:134).

Como aponta Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, a revolução industrial se dá a partir do momento em que o Homem passa criar formas eficientes a controlar em larga escala fontes

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naturais de energia: carvão, quedas d’agua, vento, petróleo etc. Desse momento em diante, a principal função do homem é a de exercer a função informacional de controle da máqui-na. Explora-se o homem não pelo seu potencial energético, mas na medida em que ele é o animal mais facilmente adestrável e programável em linguagem de alto nível – algo que é garantido pela educação universal (CF. Sampaio, 1988). Contudo, se a escrita universaliza--se como modo de programação do trabalho, a sua hegemonia não é definitiva. As ima-gens, como veremos, vão assumir uma importância crescente como instrumento de ma-nipulação do desejo – evento prenunciado pelos movimentos totalitários e gradualmente incorporado pelo empreendimento capitalista.

O capitalismo de marketing

Durante o final do século XIX e início do século XX, a teoria econômica era caracterizada por um considerável pluralismo de crenças, teorias e métodos. No entanto, a ênfase dada ao trabalho como fonte de valor pelos teóricos clássicos ingleses do início do século XIX, será desafiada quase simultaneamente por economistas de diferentes tradições nacionais, no que se convencionou chamar de “revolução marginalista de 1870”. As novas teorias que surgiam tinham em comum o fato de passarem enfocar as características do consumidor como avaliador de bens – substituindo a produção pela demanda como objeto central das análises econômicas.

O programa de matematização dos princípios marginalista conquistou credibilidade durante a primeira metade do século XX e, paulatinamente, a teoria formal sobre o comportamento maximizador dos agentes econômicos pode integrar também o problema da produção – finalizando a constituição do chamado pro-grama de pesquisa neoclássico. Datam também do início do século XX as teorias de do russo Nicolai Kon-dratiev sobre os ciclos econômicos longos, que constataram a importância que, por um lado as inovações tecnológicas e, por outro, as expectativas humanas teriam na nos movimentos econômicos.

Com a descoberta do inconsciente pela psicanálise, estava pavimentado o caminho que levaria à constituição de um modelo produtivo que não mais se contentava apenas em con-trolar as mentes e os corpos por meio das mídias e máquinas – transformando os gestos em trabalho, o traço em diagrama, a escrita em programação, o tempo linear em matriz de acumulação e a história em progresso – mas passava a domesticar o próprio vigor desejan-te mobilizado pelo imaginário. A inovação midiática e as técnicas de propaganda lograram produzir uma mais-valia do desejo, extraída pela superabundância de signos que impede a sua decodificação e pelo agenciamento de imagens. Passa-se do marketing de massa ao marketing de segmento, sucedido pelo marketing de nicho, o marketing de escopo e o neuromarketing.

Ocorre a exploração sucessivamente dos efeitos de novas mídias – com o cinema e o rádio, a devolução da narrativa linear à imagem e do texto à voz; com a popularização televisor, a possibilidade de dividir os homens em faixas de audiência; a criação dos PCs, próteses lógicas que passam a exercer funções de controle e das atividades e informações; a criação da internet, que permite compreender os indivíduos como cortes em um fluxo contínuo de informações; e mesmo as tecnologias de escaneamento cerebral, que produ-zem por artifício “o gesto” do sistema nervoso central. A utilização de ferramentas midi-áticas para manutenção dos níveis de desejo e controle das expectativas torna-se cada vez mais fundamental às atividades econômicas e à constituição dos vínculos sociais, anun-ciando uma nova revolução cognitiva e sensível, mas ainda é muito cedo para prever as suas conseqüências.

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Bibliografia:

FLUSSER, Villen (2007). O Mundo Codificado. São Paulo, Cossac&Naify

GOODY, Jack & WATT, Ian. 1968. “The Concequences of Literacy” in: GOODY, Jack. Lit-eracy in Traditional Societies. London – New York – Melburne: Cambridge Universiy Press.

HAVLOCK, Eric. Prologue to Greek Literacy. Cincinnati: University of Cincinnati Press, 1971.

JOHNSON, Paul. História dos Judeus (1987). Imago: Rio de Janeiro, 1995.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Lisboa: Edições 70, 1978.

PORTER, Theodore M. e ROSS, Dorothy (2003) Eds. The Cambridge History of Science, Vol 7, The Modern Social Sciences. Cambridge University Press.

ROTMAN, Brian. Becoming Beside Ourselves: the alphabet, ghosts, and distributed human being. Durban & London: Duke University Press, 2008

SAMPAIO, Luiz Sérgio Coelho de (1988) Lógica e Economia, Rio de Janeiro, Instituto Cul-tura nova.

WEINTRAUB, Roy E.(2002) How Economics Became a Mathematical Science. Durham and London, Duke University Press.

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Os critérios usados na escolha e agrupamento das estrelas náuticas

Gil Alves SilvaDoutorando do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e

Epistemologia – HCTE/[email protected]

Introdução

Embora estejamos em plena era do GPS (Global Positioning System), a tradição náutica ainda exige o ensino da navegação astronômica, modalidade na qual o navegante define a posição de sua embarcação através da observação dos astros (Sol, Lua, planetas e estrelas). Nesse contexto torna-se imprescindível o uso do Almanaque Náutico (AN), publicação da Marinha que contém informações astronômicas utilizadas em navegação. Visando facilitar a vida dos navegantes, o marcador de página do AN (Figura 1) fornece os principais dados de um conjunto de 57 estrelas chamadas estrelas náuticas. À primeira vista essas estrelas parecem arranjadas aleatoriamente, mas um olhar cuidadoso incita uma investigação adi-cional. Este trabalho procura entender quais os critérios usados na escolha e agrupamento destas estrelas.

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O marcador de página do AN apresenta as estrelas náuticas dispostas em ordem de-crescente de ascensão reta versa (ARV – ou SHA em inglês). Além do nome, também estão disponíveis informações acerca de sua “grandeza” - modernamente chamada de magnitu-de (Mag) - que caracteriza o brilho de um astro (quanto menor a grandeza maior o brilho), e sua declinação (Dec) – que junto com a ARV nos permite localizar a estrela na esfera celeste.

Espalhadas por 38 constelações, as estrelas náuticas se caracterizam por serem bri-lhantes e estarem bem distribuídas em declinação (o que facilita sua localização nas mais variadas latitudes). Do ponto de vista de um navegante estas informações seriam mais que suficientes para justificar a escolha, mas não explicariam porque essas estrelas foram agru-padas dessa maneira.

Metodologia

O trabalho está basicamente dividido em duas partes: na primeira vamos analisar os dados contidos no marcador de página do AN e verificar se é possível encontrar alguma espécie de padrão “astronômico” que justifique a escolha e o agrupamento dessas estrelas.

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Na segunda parte buscaremos informações sobre as mesmas estrelas nos manuais de na-vegação oficiais das marinhas americana (The American Practical Navigator, de Nathaniel Bowditch) e brasileira (Navegação: a ciência e a arte – volume II – navegação astronômica e derrota, de Altineu Pires Miguens). Ao longo do trabalho seguiremos a terminologia encontrada nestes manuais e no marcador de página do AN. A relevância dessa segunda etapa está em tentar entender a montagem dessa lista do ponto de vista de quem realmente a utiliza: os navegantes.

Vamos analisar os primeiros quesitos. A eclíptica (trajetória aparente do Sol na esfera celeste) provavelmente não foi a principal referência para a criação da lista, já que não aparecem estrelas de quatro constelações zodiacais (Caranguejo, Capricórnio, Aquário e Peixes). A Via-Láctea também não parece ter sido utilizada como referência.

O próximo quesito é a grandeza dessas estrelas: se apenas ela fosse critério para a esco-lha a estrela Acamar (nº 7 da lista – a mais fraca em brilho) deveria ser a 57ª numa lista das estrelas mais brilhantes do céu (o que não acontece - Acamar é a 151ª em brilho). Desfeito este mito, vamos a partir de agora procurar algum tipo de padrão nas distribuições em ARV (Quadro 1) e declinação (Quadro 2).

Resultados

ARV (º) número da estrela (hemisfério)

0-30 57(N), 56(S), 55(S)

30-60 54(N), 53(N), 52(S)

60-90 51(N), 50(S), 49(N), 48(S)

90-120 47(N), 46(N), 45(S), 44(S), 43(S), 42(S),

120-150 41(N), 40(N), 39(S), 38(S), 37(N), 36(S), 35(S)

150-180 34(N), 33(S), 32(N), 31(S), 30 (S), 29(S)

180-210 28(N), 27(N), 26(N)

210-240 25(S), 24(S), 23(S), 22(S)

240-270 21(N), 20(N), 19(S), 18(S), 17(S)

270-300 16(N), 15(S), 14(N), 13(N), 12(N), 11(S), 10(N)

300-330 9(N), 8(N), 7(S), 6(N)

330-360 5(S), 4(S), 3(N), 2(S), 1(N)

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Dec (º) Norte Sul

0-10 6 3

11-20 6 6

21-30 5 4

31-40 1 4

41-50 4 3

51-60 3 6

61-70 1 4

71-80 1 0

81-90 0 0

Total 27 30

Aparentemente as estrelas náuticas não demonstraram padrões relevantes nesses que-sitos. Dividindo a esfera celeste em 12 gomos de 30º, as estrelas de ambos os hemisfé-rios parecem bem distribuídas em ARV (Quadro 1). Mesmo transformando a notação de 0-360º para 0-24h o máximo observado foi que há pelo menos uma estrela náutica para cada hora em ARV.

Já sabemos que as estrelas náuticas estão bem distribuídas em declinação, ou seja, que em qualquer latitude teremos uma boa amostragem delas. Mesmo dividindo cada hemis-fério em “zonas” de declinação (Quadro 2) notamos um certo equilíbrio, ou seja, não há hemisfério privilegiado.

Na segunda parte desse trabalho procuraremos o que os manuais de navegação supra-citados dizem sobre as estrelas náuticas. Na impossibilidade de reprodução desse conteúdo (texto e cartas celestes), faremos um pequeno resumo das informações neles constantes, conforme Quadro 3 adiante.

Autor Bowditch Miguens

Distribuição das estrelas em grandeza

19 de 1ª38 de 2ª

21 de 1ª30 de 2ª6 de 3ª

Constelações-referência Pégaso, Órion, Ursa Maior e Cisne

Ursa Maior, Órion, Escorpião e Cruzeiro do Sul

Estrelas mencionadas 56 (não menciona a estrela Elnath) 30 (26 diretas + 4 indiretas)

É interessante observar as diferenças entre os dois manuais. A distribuição das estrelas em grandeza (e o próprio número de grandezas) é diferente. As constelações-referência utilizadas por Bowditch são sazonais (texto e cartas celestes para cada estação do ano), en-quanto as de Miguens são baseadas nas declinações das estrelas (elevada declinação norte, equador celeste, sul do equador celeste e elevada declinação sul). É digno de nota que as

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cartas celestes de Miguens são sazonais - embora sua identificação das estrelas no texto não seja.

Bowditch mencionou 56 estrelas no texto, junto com os truques para localizá-las (alinhamentos, triângulos, quadriláteros etc.; as referências bibliográficas podem tra-tar do assunto). O texto de Miguens cita 28 estrelas individualmente, mas duas delas não fazem parte da lista (Polaris e Caph). Às 26 restantes juntam-se Markab, Shaula, Gacrux e Hadar, cujas instruções para localização encontram-se nos textos das estrelas Alpheratz, Antares, Acrux e Rigil Kent, respectivamente. Entretanto, das 30 estrelas mencionadas por Miguens, 16 foram localizadas de forma diferente da utilizada por Bowditch, mostrando que a elaboração destes truques leva em conta o grau de faci-lidade de identificação das estrelas quando muda o aspecto do céu (característica da mudança de latitude).

Em virtude do maior número de estrelas mencionadas, o texto de Bowditch é mais adequado para tentar entender o agrupamento das estrelas náuticas. Se elas estão separa-das no texto de acordo com as constelações-referência, vamos reproduzir esta divisão no marcador de página do AN, conforme Figura 2 adiante.

Parece que a distribuição baseada nas constelações-referência de Bowditch evidencia a sazonalidade. Foram identificadas quatro “regiões” bem definidas dentro da lista: Pégaso (Peg), Órion (Ori), Ursa Maior (UMa) e Cisne (Cyg) – as abreviaturas das constelações são as adotadas oficialmente pela União Astronômica Internacional desde 1922. Segundo

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Bowditch, cada estrela da lista pode ser encontrada se identificarmos essas constelações e seguirmos os truques por ele indicados.

Observamos que as estrelas no começo e no fim da lista pertencem à mesma região da esfera celeste (as adjacências de Pégaso), e sua aparente “distância” no marcador de página é devido à origem do sistema de coordenadas utilizado. Embora cada estação do ano tenha uma espécie de “céu característico”, é fácil observar uma paulatina e contínua interação entre eles. O marcador de página do AN demonstra a superposição dessas características à medida que intercala as constelações-referência na região das estrelas 40 a 43, 52 e 53.

A dificuldade mencionada anteriormente para se localizar determinadas estrelas quan-do variamos a latitude faz com que, dependendo do hemisfério e da época do ano, sejam utilizadas outras constelações-referência. Por exemplo: de março a maio, para um obser-vador no hemisfério sul é mais prático usar o Cruzeiro do Sul do que a Ursa Maior; já de junho a agosto torna-se mais interessante usar o Escorpião do que o Cisne. Já as conste-lações de Pégaso e Órion, por sua proximidade do equador celeste, acabam servindo bem aos dois hemisférios.

Considerações finais

Sumariamente podemos dizer que embora tenham sido ordenadas em ARV, as estrelas náuticas foram agrupadas sazonalmente, de acordo com determinadas constelações-refe-rência. Baseado nos textos e (principalmente) nas cartas celestes dos manuais de navegação consultados, observamos que foram escolhidas constelações-referência para cada estação do ano e empregados artifícios geométricos (alinhamentos, triângulos, quadriláteros etc.) na seleção de estrelas brilhantes (e bem distribuídas) localizadas nas proximidades dessas constelações.

O observador acostumado com a sazonalidade (um navegante, por exemplo) deve no-tar que as artimanhas que funcionam bem num hemisfério podem falhar no outro devido à variação de latitude, que tem influência direta sobre o aspecto do céu. Nesse caso são es-colhidas novas constelações-referência, e criados truques apropriados para este “novo céu”.

Referências bibliográficas

BOWDITCH, N. The American Practical Navigator. Bethesda: National Imagery and Ma-pping Agency, 1995.

BRASIL. Marinha do Brasil. Almanaque Náutico Brasileiro 2005. Rio de Janeiro: DHN, 2004.

MIGUENS, A.P. Navegação: a ciência e a arte – volume II – navegação astronômica e derro-tas. Rio de Janeiro: DHN, 1999.

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Teria a escola central contribuido para o desenvolvimento da ciência

no Brasil?Heloi José Fernandes Moreira – doutorando, HCTE/UFRJ

Profª Drª. Nadja Paraense dos Santos – orientadora, HCTE/[email protected]; [email protected]

OBJETIVOS: Apresentar algumas contribuições da Escola Central para o desenvolvi-mento da ciência no Brasil. Apontar a atuação de seus docentes em instituições científicas do Rio de Janeiro. Mostrar que a Escola Central também teve uma atuação científica ins-titucional, por meio de atividades conjuntas com associações e institutos. Concluir que, apesar de dificuldades, a Escola Central participou da construção da ciência no Brasil do século XIX.

1. A Escola Central e as ciências no Brasil.

A institucionalização dos graus científicos na área da engenharia foi iniciada no Brasil pelo Decreto nº 140 de 1842. Por ele, os alunos aprovados plenamente em todos os anos do curso da Escola Militar recebiam o grau de Doutor em Ciências Matemáticas. A rigor, então, não havia um curso científico e esse grau era, simplesmente, uma distinção. Os assuntos não-militares, como cálculo integral, mecânica racional, química, mineralogia, etc., conhecidos como assuntos científicos, eram estudados, mas não compunham uma estrutura para estudo e desenvolvimento de ciências. E pelo fato de ser uma escola militar, certamente isso não era o mais importante para as autoridades dirigentes. Posteriormen-te, pelo Decreto nº 2.116 de 1858, a Escola Militar da Corte foi transformada em Escola Central. Segundo relatório do General Jeronymo Francisco Coelho, Ministro da Guerra, “A Escola Central hoje acha-se organizada de modo, que constitui uma espécie de centro (...) para o ensino das (...) ciências puramente matemáticas, as ciências físicas e naturais” (CO-ELHO, 1858, 18 e 19).

Embora as idéias de Jerônymo Coelho fossem claras quanto aos objetivos da Escola Central, houve dificuldades para sua implementação. Em primeiro lugar por razões cultu-rais. Durante três séculos o Brasil havia sido uma espécie de celeiro para abastecer Portugal com riquezas naturais. Não houve por parte do Governo Português interesse para que se desenvolvesse conhecimento na colônia. Os poucos ensinamentos de nível mais elevado, como o militar, eram descontínuos. Não havia relacionamento com culturas mais avança-das. Até as ciências náuticas, que os portugueses dominavam, não foram difundidas. Essa

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situação começou a ser modificada com a vinda da Família Real para o Rio de Janeiro, quando foram criadas várias instituições difusoras de conhecimento, dentre elas a Acade-mia Real Militar. Mas, logo após a sua criação, o seu idealizador, o Conde de Linhares, fale-ceu. De qualquer modo o ensino de ciências e engenharia tomou impulso a partir de 1810. A rigor, somente após a abdicação de D. Pedro I é que se pode começar a pensar em criar um estado de fato independente e com cultura própria. Nesse sentido, não havia passados trinta anos quando a Escola Central foi criada. Mais ainda, situada em um local distante dos centros desenvolvidos, havendo uma enorme barreira física criada pelo Atlântico, em uma época em que a comunicação era esparsa e demorada.

Outra razão foi a eclosão da Guerra do Paraguai durante a sua vigência. Segundo Tel-les, nesse período “a Escola esvaziou-se (...) [tal que] de uma média de 400 alunos dos anos anteriores, essa média baixou para 130” (TELLES, 1994, 111). Não se pode esquecer que a Escola Central foi criada no âmbito militar e era responsável por parte da formação dos alunos da Escola Militar. Obviamente que a escassez não foi só de recursos humanos, mas também, como para toda a nação, de recursos financeiros.

Alguns autores atribuem ao positivismo a responsabilidade por uma barreira para o desenvolvimento das ciências no Brasil. Mas, nessa época, esse movimento ainda se ini-ciava e a filosofia positiva era citada timidamente nas teses. Pode-se até dizer que o posi-tivismo teve o mérito de aguçar o estudo e a discussão de temas científicos no âmbito de professores e alunos, embora em algumas teses o autor aparentasse estar mais preocupado em difundir e defender a doutrina positivista do que o objeto da mesma. O positivismo acentuou-se após a época da Central, começando seu declínio em 1898 com o trabalho do Prof. Otto de Alencar, “Alguns erros de Mathematica na Synthese Subjectiva de A. Comte”. Assim, pode-se afirmar que, na vigência da Escola Central, o movimento positivista ainda não era significativo.

Ao ser instituída, a Escola Central apresentava dois cursos: um de matemática e de ciências físicas e naturais e outro de engenharia civil. Em 1860 e em 1863 ocorreram refor-mas, mas, em ambas, conjuntos de cadeiras permitiam aos alunos obter a carta de bacha-rel, ou o seu reconhecimento como engenheiro. Assim, ao longo de toda a sua vigência, a Escola Central apresentou uma estrutura curricular para que o aluno pudesse estudar e obter o respectivo grau científico em matemáticas ou ciências físicas e naturais. Cabe a ela, portanto, o mérito de haver sistematizado os cursos científicos nessas áreas no Brasil.

2. Alguns personagens da Escola Central e suas atuações científicas.

Joaquim Gomes de Souza foi o personagem que se sobressaiu na matemática. Defen-deu sua tese em 1848, intitulada “Observação sobre o modo de indagar novos astros sem auxílio de observações diretas”, motivado pela descoberta de Netuno. Segundo Castro, “ainda que do ponto de vista físico, o trabalho de Gomes de Souza não apresente, talvez, grande interesse, convém observar que a própria maneira com que ele formula o problema, (...) revela os pendores matemáticos do seu brilhante espírito” (CASTRO, 1994, 71). Os ma-temáticos brasileiros são unânimes em reconhecer o valor dos seus trabalhos. A sua obra pode ser considerada o marco inicial da pesquisa matemática no país. Gomes de Souza foi Lente da Escola Central.

Por outro lado, Ribeiro considera que, no ramo da física, Gomes de Souza deve ser destacado, “pois foi aos problemas da física que ele aplicou o seu vasto e profundo domínio do instrumento matemático” (RIBEIRO, 1994, 194). Em 1855, ele apresentou à Academia

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de Ciência de Paris três memórias originais, sendo uma delas sobre a teoria da propaga-ção do som. O nome de Guilherme Schüch Capanema também deve ser citado na física. Capanema realizava experiências em laboratório e ficou conhecida a sua importância para a implementação da telegrafia elétrica no Brasil e suas atividades essencialmente práticas.

O desenvolvimento da Astronomia no Brasil também teve vinculação com a Escola Central. O Observatório Astronômico foi criado em 1827. O estudo de Astronomia fa-zia parte da 1ª cadeira do 4º ano. Além disso, os alunos eram obrigados, durante o ano letivo, a realizarem trabalhos práticos no Observatório e, durante as férias, exercícios de triangulações e de geodesia. Antonio Manuel de Mello, professor da Escola, foi Diretor do Observatório Astronômico. Durante vários anos executou uma série de observações meteorológicas. Escreveu as Ephemérides do Imperial Observatório para os anos de 1853 a 1858. Organizou expedições científicas para observar os eclipses de 1858 e 1865.

Na geologia, Frederico Leopoldo César Burlamaqui se destacou. Lecionou mineralogia por 20 anos. Foi Diretor do Museu Nacional. Atuou na Sociedade Auxiliadora da Indús-tria Nacional. Apoiou fortemente a agricultura. Participou, como fundador, da Sociedade Vellosiana e publicou inúmeros trabalhos dedicados às ciências geológicas. Figueirôa re-trata bem a importância da Escola Central no desenvolvimento da mineralogia. Ela ob-serva que a Escola Central “ampliou a inserção desse conteúdo, (...) os programas (...) se mantinham atualizados em relação à ciência que se fazia na época” (FIGUEIRÔA, 1997, 98). Também nessa ciência Capanema deve ser mencionado. Foi Diretor da Seção Geoló-gica e Mineralógica da Comissão Científica de 1856. Participou, juntamente com Agassiz, das conferências no Museu Nacional. Sua ”lição popular”, “Decomposição dos Penedos no Brasil”, merece ser observada pela “preocupação (...) em se expressar da forma mais popular (...) possível, a fim de ser compreendido também por pessoas que não se têm dado a estudos especiais” (FIGUEIRÔA, 1997, 96).

Cândido de Azeredo Coutinho foi professor de química, tendo publicado artigos no periódico “Minerva Brasiliense”. A Escola Central era provida de um laboratório de quí-mica e os alunos estudavam esse assunto em duas cadeiras: uma de química inorgânica no 3º ano e outra com noções de química orgânica no 4º ano. No entanto, Filgueiras compro-va que o estudo dessa ciência ainda era muito atrasado. Relatando sobre um caderno da Princesa Isabel, Filgueiras aponta que “este documento é um retrato da química da época, onde se vê estampada a confusão reinante entre os conceitos de átomo e molécula, usados indiferentemente, de forma ambígua e imprecisa” (FILGUEIRAS, 2004, 353).

A botânica também era estudada na Escola Central. Teve como professores Francisco Freire Allemão e depois Jose de Saldanha da Gama. Este último foi membro do Instituto Polytechnico Brasileiro, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), da Socei-dade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), da Sociedade Vellosiana, da Sociedade Real de Botânica da Bélgica, da Academia de Ciências da Filadélfia, entre outras. Salda-nha da Gama escreveu dezenas de trabalhos sobre Botânica e as biografias dos botânicos Conceição Velloso, Leandro do Sacramento e Freire Allemão. Escreveu livros para os cur-sos que ministrava na Escola Central. Proferiu conferências no conjunto de palestras que ocorreram no Rio de Janeiro entre 1873 e 1880, conhecidas como Conferências Populares da Glória.

Por meio da atuação dos seus lentes, essa apresentação relata de forma sumária algu-mas relações entre as ciências e a Escola Central. Mas houve também outro tipo de contri-buição. Pode-se considerá-la de caráter “institucional”, na medida em que foram contribui-ções que ocorreram entre a Escola Central e outras instituições científicas. Nesse sentido, pode-se citar:

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1) Na Escola Central eram realizadas as reuniões da Sociedade Palestra Científica do Rio de Janeiro, criada em 1852 e decorrente de divergências entre os membros da Socieda-de Vellosiana. A própria Sociedade Vellosiana foi criada por Freire Allemão, juntamente com Capanema, Burlamaqui e Azeredo Coutinho.

2) O Instituto Polytechnico Brazileiro (IPB) foi criado em 1862 e dedicava-se a di-vulgar as conquistas da ciência pura e suas aplicações. Reivindicava também o reco-nhecimento legal da profissão de engenheiro. No seu estatuto constava que “tem por objeto o estudo e a difusão dos conhecimentos teóricos e práticos dos diferentes ramos da engenharia e das ciências e artes acessórias”. As suas reuniões ocorriam no interior da Escola Central.

3) No prédio da Escola Central foram realizadas as Exposições Nacionais de 1861 e 1873. A realização destes eventos na Escola teve um significado importante, expondo-se no interior da instituição aplicações práticas de teorias que eram ali estudadas, mostrando à sociedade a relação entre o seu ensino e o exercício da profissão.

No corpo social do IPB, da Sociedade Vellosiana, do IHGB, do Observatório Astronô-mico, do Museu Nacional, da SAIN e de outras instituições, encontravam-se os professores da Escola Central. Isto permite que se conclua o quanto o corpo docente da instituição estava envolvido no desenvolvimento e divulgação dos campos da ciência na época.

3. Conclusões:

Não fossem as barreiras apontadas inicialmente, a contribuição da Escola Central para o desenvolvimento da ciência no Brasil poderia ter sido mais significativa. Seus objetivos, seu quadro docente e a sua estrutura curricular permitiam um maior avanço. No entanto, não se pode negar que a maioria dos seus professores era atuante no meio científico bra-sileiro, embora a ciência brasileira estivesse ainda tomando corpo. Não se pode desprezar os trabalhos de Gomes de Souza, Saldanha da Gama, Capanema, Manuel de Mello, Bur-lamaqui e outros, que até hoje, pelas suas atuações à frente e no seio da Escola Central, são considerados referências da época. O fato de conceder o grau de Doutor àqueles que defendessem tese e o seu relacionamento com outras instituições científicas de valor con-ferem à Escola Central o reconhecimento de uma instituição que participou da construção da ciência brasileira.

5. Referências bibliográficas:

CASTRO, F. M. de Oliveira. A Matemática no Brasil, in: As ciências no Brasil. Fernando de Azevedo (org.), 2. ed., Rio de Janeiro:UFRJ, 2ª ed., 1994.

COELHO, Jeronymo Francisco. Relatório do Anno de 1857, apresentado a Assembléia Geral Legislativa na 2ª sessão da 10ª legislatura (publicado em 1858). in: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2202, acessado em 28/10/2010.

FIGUERÔA, Silvia Fernanda de M. As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional, 1875-1934, São Paulo:HUCITEC, 1997.

FILGUEIRAS, Carlos A. L. A química na educação da Princesa Isabel. Química Nova, v. 27, Nº 2, 2004.

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RIBEIRO, J. Costa. A Física no Brasil, in: As ciências no Brasil. Fernando de Azevedo (org.), Rio de Janeiro:UFRJ, 2. ed., 1994.

TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia no Brasil, Séculos XVI a XIX, Rio de Janeiro:Clube de Engenharia, 1994.

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Luiz Raphael Vieira Souto: um centralista enciclopédico

Prof. Heloi José Fernandes Moreira – doutorando – HCTE/UFRJProfª Drª Nadja Paraense dos Santos – orientadora – HCTE/UFRJ

[email protected] ; [email protected]

OBJETIVOS: Apresentar parte das trajetórias acadêmica e profissional de Luiz Rapha-el Vieira Souto, engenheiro formado pela Escola Central. Essas trajetórias dão uma idéia do papel da Escola Central como instituição que criou as bases de sustentação da enge-nharia civil brasileira, formando gerações de engenheiros adaptados às diversas demandas profissionais da época e originando a Escola Polytechnica do Rio de Janeiro.

1. A época de Vieira Souto no Rio de Janeiro.

Luiz Raphael Vieira Souto viveu no Rio de Janeiro entre 1849 e 1922. Quando ele nasceu (BLAKE, 1899), a engenharia brasileira despertava. A Fábrica de Ponta d’Areia iniciava importante trajetória na história da indústria brasileira. Construía navios, cal-deiras, etc. A indústria têxtil crescia, utilizando-se de máquinas a vapor. Mas, faziam--se urgentes melhorias no porto. A canalização de água era insuficiente. As condições sanitárias da cidade eram precárias, dando margem a freqüentes doenças. Iniciava-se o calçamento das ruas. O surgimento dos “caminhos de ferro” deixava a população des-lumbrada com a sua rapidez. Naquela época, a mão de obra não-especializada era escra-va e o ensino da engenharia era realizado pela Escola Militar que funcionava no Largo de São Francisco de Paula.

Quando ele faleceu, a cidade tinha sofrido profundas transformações. O Morro do Senado havia sido arrasado. O Morro do Castelo estava sendo aplainado. A Avenida Cen-tral, então denominada Avenida Rio Branco, era o logradouro mais importante da cidade. Apresentava edifícios novos e comércio sofisticado. O transporte urbano era feito por bon-des elétricos. O centro da cidade conectava-se com a zona sul por meio da Avenida Beira Mar. A estrada de ferro atendia também aos distantes subúrbios, expandindo o número de bairros. Casas tinham abastecimento de água, gás e iluminação elétrica. A obra do Canal do Mangue estava concluída e o seu entorno saneado. O cais do Rio de Janeiro havia sido ampliado. O Município Neutro, antiga sede do Império, havia se transformado em Distric-to Federal, capital da República. A escravidão havia sido abolida e o ensino de engenharia no Rio de Janeiro era feito pela Escola Polytechnica, no mesmo prédio e em continuidade à Escola Militar. Vieira Souto participou dessas transformações. Não só exercendo a enge-nharia, mas também formando inúmeras gerações de estudantes.

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Luiz Raphael era filho de Luiz Honório Vieira Souto e de Francisca de Paula Cunha. Sua esposa, Carlota Souto de Andrada Vandelli, era descendente de Alexandre Vandelli e bisneta de José Bonifácio de Andrada e Silva, personagens da história da ciência no Brasil. Uma das suas filhas, Olga, casou-se com Ignácio Azevedo do Amaral, que foi Diretor da Escola Nacional de Engenharia e Reitor da Universidade do Brasil.

O reconhecimento da importância de Vieira Souto para a cidade do Rio de Janeiro é traduzido hoje pela concessão do seu nome a uma das mais importantes avenidas da zona sul carioca.

2. Luiz Raphael Vieira Souto, um estudante centralista.

Vieira Souto ingressou em 1868 na Escola Central. Adolpho Del-Vechio (DEL-VEC-CHIO, 1914), que nela estudou, disse que os seus colegas eram conhecidos por centralistas. Essa denominação deixava claro à sociedade que eles eram estudantes de uma escola que ensinava engenharia, porém não pertenciam a Escola Militar. Embora estivessem subme-tidos a um regimento militar, eles eram centralistas! Eram estudantes da primeira escola destinada a ensinar, com exclusividade, a engenharia civil. A Escola Central apresentava-se de maneira complexa: era uma escola militar, mas ensinava engenharia civil para paisanos, que estavam sujeitos à disciplina do exército. E mais, fazia a complementação dos estudos dos engenheiros militares. Assim, nada melhor que um tratamento exclusivo e associado ao próprio nome da instituição. Mas certamente isso foi decorrente também da influência francesa que as escolas de engenharia brasileiras sofreram naquela época. Segundo Pardal, “A École Centrale (...) foi criada em 1828, para formar engenheiros civis (...) e seu nome in-fluenciou o de nossa Escola Central, de 1858” (PARDAL, 1985, 82). Por sua vez os alunos da École Centrale de Paris se tratavam por centralien, o que provavelmente inspirou os brasileiros a se considerarem centralistas. A Escola Central era considerada de alto nível. Quando, em 1870, o Ministro Paulino Soares de Souza, apresentou um projeto para Refor-ma da Instrução Pública, assim se pronunciou: “Julgo de grande alcance para o futuro da instrucção superior no Império a creação de uma Universidade (...) Proponho-o, incorporan-do nella (...) a Escola Central, verdadeira faculdade de sciencias” (LOBO, 1966, 182).

O programa de ensino da Central era amplo e diverso. Vieira Souto teve como profes-sores Borja Castro, Paula Freitas, Saldanha da Gama e outros. Foi colega de Aarão Reis, Del-Vecchio e Manoel Pereira Reis. Em 1871 recebeu o grau de Bacharel em Sciencias Mathematicas e Physicas. Em 1872 cursou o 6º ano para ser considerado engenheiro civil. Nesse ano, obteve aprovação plena na cadeira de Economia política, estatística e princípios de direito administrativo. Conforme será observado a seguir, os conhecimentos adquiri-dos nesta cadeira darão ensejo, oito anos depois, a um dos mais importantes capítulos da sua vida docente.

3. Professor Vieira Souto, um centralista na Polytechnica.

Em 1876 Vieira Souto fez parte de um grupo de novos professores empenhados em dar continuidade, na Polytechnica, o espírito acadêmico que vivenciaram na Central.

Participou ativamente dos assuntos acadêmicos da Escola. Foi por muito tempo mem-bro da “Commissão Informante”, encarregada de dar parecer às questões importantes que iam à deliberação da Congregação. Merece destaque o seu concurso para Catedrático de

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Economia Política, Direito Administrativo e Estatística, no qual alcançou a primeira colo-cação.

No âmbito da engenharia, esta cadeira originou-se no decreto 3.083, de 1863, regula-mentando a Escola Central. Quando foi criada, o Visconde do Rio Branco era o seu regente (PARDAL, 1983). Em 13 de março de 1877, já na Polytechnica, Rio Branco solicitou o seu jubilamento, vagando a cátedra. A partir daí, Monteiro de Barros assumiu-a como “Lente ad interim”.

Somente em 1880 foi realizado o concurso para provimento da vaga. Foi um concurso com nove concorrentes. Uma comparação entre as teses dos candidatos, excetuando-se as de Alexandre Barroso e Aarão Reis que não foram encontradas, permite concluir que a de Vieira Souto se sobressaiu em relação às outras.

Na parte inicial da tese, dissertou sobre “Estatisticas moraes e applicações do calculo das probabilidades a este ramo da Estatistica” (SOUTO, 1880, 7). Ressaltou a importância da apli-cação da Estatística para o pleno conhecimento do Estado. Apresentou quadros estatísticos. Vieira Souto teve uma grande preocupação em comprovar, estatísticamente, as suas idéias. Não só discorreu sobre o assunto, mas contabilizou problemas que ocorriam no Brasil.

Na segunda parte, Vieira Souto se sobressaiu tanto pelo número de quesitos respondi-dos quanto pelo desenvolvimento que lhes deu. Respondeu a cinqüenta e sete perguntas, enquanto os outros candidatos, no máximo, trinta e seis. Nessa parte se pode observar o pensamento de Vieira Souto sobre os engenheiros, as escolas que os formam e a necessida-de de se regulamentar a profissão. Assim, considerou: “A existência de uma escola de enge-nharia civil (...) que prepare os alunos uniformemente e de modo particular para os estudos técnicos ulteriores, é a base indispensável de uma boa organização dos corpos daquela espe-cialidade (...) O título de engenheiro civil representa o termo de uma longa série de esforços; estes porém, ficam sem recompensa, se o governo (...) não lhes dá o apreço de que são dignos (...) se torna as promoções dependentes da proteção ou favor e não do merecimento (...) por ultimo, se não garante a independência e o futuro da classe” (SOUTO, 1880, 89 e 90).

Para finalizar a tese, Vieira Souto tomou a liberdade de incluir um item. Nenhum dos outros candidatos teve essa coragem: como apêndice, propôs um programa para a própria cadeira em concurso. Considerou ele que: “Posto não nos seja exigido pelo regulamento (...) apresentamos em seguida o esboço de um programa (...). Nosso fim é apenas consignar à direção o que entendemos dever dar-se ao ensino de Economia Política, Estatística e Direito Administrativo (...) indicar o caminho que percorreríamos; o método que adotaríamos, se nos coubesse a regência desta cadeira”. (SOUTO, 1880, 97).

A partir de 1880 o programa é reformulado e passa a ser, até 1896, o proposto por ele. Uma comparação com o anterior permite concluir o aprofundamento que houve no con-teúdo da cadeira.

Vieira Souto ocupou um espaço acadêmico em substituição a Rio Branco. Isto lhe deu uma posição de destaque no cenário da política econômica brasileira. Para ele, a economia do Brasil deveria estar baseada na industrialização. O Brasil iniciava um processo de cres-cimento industrial e, portanto, deveria adotar uma política protecionista. Publicou críticas no jornal “O Correio da Manhã” em relação as medidas econômicas adotadas pelo Minis-tro Joaquim Murtinho.

Vieira Souto escreveu várias obras que marcaram a sua atuação como economista e catedrático. Para finalizar a sua atuação na economia é interessante citar a expressão usada por Hugon sobre a sua docência, ao observar que Cairu considerava que “O desenvolvi-mento da indústria não é, para uma nação, apenas uma questão econômica, é – acima de tudo – uma questão política”. Assim, Hugon afirma que esta era a “tese que, no fim do século,

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será desenvolvida (...) [e] defendida por Luiz Raphael Vieira Souto, do alto de sua cátedra na Escola Politécnica do Rio de Janeiro” (HUGON, 1994, 347).

4. Engenheiro Vieira Souto, um politécnico enciclopédico.

Na época profissional de Vieira Souto, praticamente todos os engenheiros formados no Brasil eram engenheiros civis. Mas, a necessidade por obras de engenharia era bastante diversificada. Isso exigia deles uma grande capacidade para se adaptar às mais diversas atividades. Aqueles que se destacavam, atuando em ramos distintos, eram considerados como “enciclopédicos”.

Segundo Alves, “a distinção estabelecida entre especialistas e enciclopédicos tem a ver tam-bém com aquele sentimento [politécnico], pois se os politécnicos se definiam pela condição de engenheiros, faziam-no também enquanto capazes de um “poliformismo” pronto a levá-los a diferentes atividades, inclusive no exercício de cargos públicos” (ALVES, 1986, 69). Foi o caso de Vieira Souto, que atuou na iniciativa privada e em cargos públicos, nas mais diferentes atividades: saneamento, urbanismo, moradias populares, obras portuárias, aterros, etc. O en-ciclopedismo de Vieira Souto foi atestado por Getulio das Neves. Ao iniciar o seu necrológio, perguntou: “Professor e scientista, engenheiro e administrador, propagandista e escriptor, em qual destas differentes espheras de actividade foi Vieira Souto maior?” (NEVES, 1922, 3).

Logo no início da sua vida profissional, um fato tornou-se bastante significativo para a sua carreira. O Governo Imperial estava preocupado em realizar melhoramentos no Muni-cípio Neutro. Era urgente embelezar praças, alargar ruas, ligar o centro com novos bairros, arrasar morros, aterrar e sanear áreas, enfim, dar melhor aparência e salubridade à cidade.

Assim, em 1874, o Ministro João Alfredo nomeou uma “Comissão de Melhoramentos” para propor projetos para a cidade. Ela era composta pelos engenheiros Pereira Passos, Mo-raes Jardim e Marcellino Silva. Segundo Rabha, essa comissão deveria elaborar “um plano geral que atue como (...) controle, enfrentando (...) as situações problemáticas de salubridade e circulação e (...) adequando a cidade ao padrão europeu de urbanização, (...) a proposta deve reunir principalmente obras de saneamento e de melhoramentos” (RABHA, 2008, 38).

A comissão apresentou dois relatórios. Ao tomar conhecimento dos seus conteúdos, Vieira Souto fez duras críticas às propostas, publicando quatorze artigos no Jornal do Commercio. A Comissão respondia às críticas, mas Vieira Souto refutavá-as tecnicamente baseando-se em autores estrangeiros. Suas principais restrições se referiam às soluções que seriam adotadas para o Canal do Mangue.

Quanto às soluções apontadas para urbanização, também foi um crítico ferrenho. Suas críticas foram tão severas que os planos da Comissão de Melhoramentos foram abando-nados. Toda essa polêmica acabou dando notabilidade ao ousado engenheiro, que poucos anos antes era um centralista e, até então, um engenheiro não conhecido. Mas que apre-sentou capacidade para questionar tecnicamente os trabalhos de uma comissão composta por experientes engenheiros e nomeada pelo Governo.

Em 1887 Vieira Souto associou-se ao Engenheiro Sampaio e iniciaram o desmonte do Morro do Senado. Já no século XX, Vieira Souto dirigiu a construção da Av. Beira-Mar, a avenida mais importante depois da Av. Central.

Vieira Souto foi Diretor de Obras da Prefeitura. Participou das obras do Morro do Cas-telo e da Exposição do Centenário da Independência. Dedicou também sua atenção para os problemas de habitações populares. Argumentava que os cortiços eram os principais focos de epidemias.

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Participava das entidades relacionadas a engenharia. No Instituto Polytechnico Bra-zileiro teve atuação destacada na campanha para a regulamentação da profissão. Essa foi uma preocupação constante de Vieira Souto, chegando a manifestá-la em uma das respos-tas às proposições do seu concurso: “se o governo (...) vexatoriamente pretere verdadeiros engenheiros (...) por estrangeiros sem carta e habilitações provadas, ou por nacionais em que presume conhecimentos científicos completos” (SOUTO, 1880, 90).

Foi membro da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e do Centro Industrial do Brasil. Fundador do Clube de Engenharia, membro da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e da Sociedade Nacional de Agricultura. Redator da Revista Brasileira de Engenharia. Vieira Souto deixou uma vasta literatura técnica que retrata parte da realidade técnica e política brasileira.

5. Considerações finais.

As trajetórias acadêmica e profissional de Luiz Raphael Vieira Souto permitem que se observe a importância que teve a Escola Central como formadora de quadros técnicos ca-pacitados a desenvolver a engenharia civil brasileira e como indutora da criação da Escola Polytechnica, essa última diplomando engenheiros mais especializados. Mostram também a importância que a personagem teve no ensino e no exercício da engenharia, formando gerações de estudantes e atuando decisivamente nas transformações ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, ao final do século XIX e início do XX.

6. Referências bibliográficas:

ALVES, Isidoro Maria da S. – Modelo Politécnico, Produção de Saberes e a Formação do Campo Científico no Brasil, in: A ciência nas relações Brasil – França (1850 – 1950). Amélia Império Hamburger e outros (org.). – São Paulo:EDUSP, 1986.

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro. v. 5 – Rio de Janeiro:Conselho Federal de Educação, p. 459, 1970.

DEL-VECHIO, Adolpho José. Memórias. (manuscrito; arquivo pessoal), p. H.2, 1914.

HUGON, Paul. A Economia Política no Brasil – in: As ciências no Brasil. – Fernando de Azevedo (org.), v. 2, UFRJ, 1994.

LOBO, Francisco Bruno. Uma Universidade no Rio de Janeiro. v. 1, UFRJ, 1966.

NEVES, Getulio das. Dr. Luiz Raphael Vieira Souto – Revista Brasileira de Engenharia. Anno II, TOMO IV, Nº 1, Julho de 1922.

PARDAL, Paulo. – O Visconde do Rio Branco e a Escola Politécnica. Biblioteca Repro-gráfica Xerox, 1983.

PARDAL, Paulo. – BRASIL 1792: Início do Ensino de Engenharia Civil e da Escola de Engenharia da UFRJ. Rio de Janeiro:Construtora Norberto Odebrecht, 1985.

RABHA, Nina Maria de Carvalho Elias (coord.) e outros. Planos Urbanos, Rio de Janeiro, Século XIX. Rio de Janeiro:IPP, 2008, p. 38.

SOUTO, Luiz Raphael Vieira. These de Concurso – Economia Política – Estatística – Direito Administrativo. 1880.

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Urna eletrônica e voto nulo como elementos da

democracia brasileiraIvan da Costa Marques

Professor Associado / HCTE/UFRJ / [email protected]

Paulo Sérgio MendesDoutor pelo PPGHCTE/UFRJ / [email protected]

Introdução

Pelo catecismo epistemológico das ciências modernas não se deve misturar os conhe-cimentos sobre o mundo das coisas-em-si, tais como o átomo ou o funcionamento dos ar-tefatos tecnológicos, que seriam formas naturais ou técnicas, com os conhecimentos sobre o mundo dos homens-entre-si, tais como a pena de morte, o cidadão, a democracia, que dizem respeito a valores, direitos e deveres, que seriam formas sociais ou pessoais. Por este catecismo os dois tipos de conhecimento seriam essencialmente diferentes e viriam trafe-gando desde os tempos bíblicos aos dias de hoje por duas longas estradas paralelas rumo ao futuro numa série de descobertas que se aproximariam assintoticamente do que está lá, previamente estabelecido e dado, ou seja, as formas da Natureza e da Sociedade.

Esse catecismo prescreve um grande divisor entre o mundo de que tratam as ciências naturais, que se ocupariam de descobrir as formas puras previamente existentes da Natu-reza, e aquele para o qual se voltam as ciências sociais, que descobririam formas também absolutas ou permanentes, previamente presentes na Sociedade. Em outras palavras, as ciências sociais buscariam descobrir a Natureza da Sociedade. E como buscam formas transcendentes, supostamente existentes independentemente do que possam fazer os ho-mens-entre-si, todas as ciências modernas, sejam elas naturais ou sociais, fazem apelo à universalidade, à neutralidade, à representação do mundo tal qual ele é.

Nossa proposta, no entanto, é aderir ao crescente movimento no campo dos estudos CTS (ciência-tecnologia-sociedade), deixando ao lado o catecismo epistemológico moder-nista, para entender as entidades, sejam fatos ou artefatos (átomo, urna eletrônica, cidadão, democracia) como formas historicamente contingentes que acontecem ao fim de justa-posições de elementos heterogêneos provisionais dos ditos mundos das coisas-em-si e dos homens-entre-si; justaposições que logram configurar por estabilização precária uma certa escala em um coletivo suficientemente amplo que lhes dê legitimidade.

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Configuração das entidades urna eletrônica e voto nulo

No nosso caso, aqui extremamente pontual, duas entidades (democracia e urna) se configuram no coletivo de urnas eletrônicas distribuídas pela totalidade dos que aceitam a constituição democrática e tornam-se cidadãos competentes na operação da urna. Ou seja, a vivência ou prática política que propicia a escolha de candidatos no processo elei-toral brasileiro desde 1996 foi aqui entendida como uma dinâmica em que se justapõem elementos de conhecimento das ciências sociais, tais como a democracia, e elementos de conhecimento das ciências e tecnologias, tais como a urna eletrônica. Exemplarmente, os juízes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiram pela não inclusão de uma tecla ex-clusiva para o voto nulo na urna eletrônica (MENDES, 2010:106); os técnicos da Comis-são de Informatização das Eleições Municipais de 1996, constituída pelo TSE elaboraram modificações na redação do Código Eleitoral brasileiro (MENDES, 2010:22-28); o então ministro do TSE, Nelson Jobim, trabalhou junto ao Congresso e ao Governo Fernando Henrique Cardoso para retirar da urna eletrônica a necessidade de imprimir em papel o voto nas eleições. (JAKOBSKIND e MANESCHY, 2002:34-35,58,99,100)

No Brasil, na discussão sobre a impressão do voto, a urna eletrônica reforçou a introje-ção de uma procissão de elementos híbridos tais como segurança, confiabilidade e facili-dade de manuseio na identificação do eleitor e na coleta, totalização e apuração dos votos como elementos técnicos e naturalizáveis com a idéia de progresso científico-tecnológico: “a urna eletrônica é o artefato perfeito naquilo que a tecnologia pode oferecer” Em 2007, o deputado José Genoino, membro da Comissão de Constituição e Justiça afirmou que “[o] TSE tá conduzindo e sempre conduziu esta matéria das eleições de maneira transpa-rente e democrática, e nós temos que aperfeiçoar, mas a impressão do voto, eu acho que é um retrocesso em relação a este avanço tecnológico.” (MENDES, 2010:45) Ainda sobre a impressão do voto, assim se pronunciou o então presidente do TSE, ministro Marco Au-rélio de Mello: “Veja a incoerência, se abandona a ordem natural das coisas, nós vamos ter auditoria do sistema eletrônico pelo sistema ultrapassado que é o sistema da cédula em papel.”(MENDES, 2010:46)

No entanto, em outras democracias mundo afora, retrocesso e ordem natural das coisas adquirem contornos diversos: a Corte Suprema alemã decidiu não utilizar máquinas de votar e manter as eleições através de cédulas de papel e lápis vermelho (MENDES, 2010:15) ; já o projeto de lei do congressista Rush Holt, do Partido Republicano dos EUA, propôs a proibição do voto eletrônico sem extrato em papel em todas as eleições federais ainda para as eleições de 2010. (MENDES, 2010:15-16)

Mas, de modo mais restrito, que opções políticas, classificadas como parte do mundo dos homens-entre-si, estariam presentes/ ausentes na urna eletrônica como coisa-em-si? As respostas a essa pergunta envolvem configurações múltiplas de presenças e ausências em estudos de casos localizados. Rigorosamente, não há artefato tecnológico politicamente neutro. Ciência, tecnologia, sociedade e política são inseparáveis, formam um tecido sem costura. Vive-se não em dois mundos, mas em um mundo múltiplo que constitui uma unidade sociotécnica. Entretanto, abdicando da pretensão a uma resposta completa, mos-traremos a seguir que a urna eletrônica não é um artefato puramente técnico e sim uma entidade híbrida. Embora hegemonicamente apresentada e analisada como coisa-em-si, a urna eletrônica atua nas relações dos homens-entre-si, colocando em cena um viés político na direção de estabilizar uma forma da democracia brasileira na qual o voto nulo (uma expressão apresentada e analisada no mundo dos homens-entre-si) é identificado com voto errado (uma expressão técnica apresentada e analisada no mundo das coisas-em-si).

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Além dos botões para correção e confirmação, a urna eletrônica brasileira tem botões que possibilitam votos em candidatos e legendas e um botão específico para o voto em branco. Mas ela não oferece através de um botão a opção pelo voto nulo.

... a grande maioria da população domina os meios eletrônicos através de uma relação binária simples. Entretanto, quase sempre surgem difi-culdades quando nesta relação é incluída uma interpretação a partir de algumas opções. ... Na urna eletrônica opções por candidatos [ou] le-gendas [...] o eleitor tecla os números, olha o monitor e confirma. [Caso queira votar em branco, o eleitor aperta a tecla “BRANCO” e confirma.] Já no voto nulo, o eleitor tecla um número inexistente, confirma e apa-rece no monitor uma expressão constrangedora “NÚMERO ERRADO”, ou seja, o eleitor não está votando nulo e sim, votando errado, segundo a Justiça Eleitoral. Somente após confirmar mais uma vez, o voto será anu-lado. Portanto, a própria urna eletrônica dificulta o voto nulo. (MEN-DES, 2010:112)

Pode-se dizer então que a urna eletrônica brasileira apresenta resistências diferenciadas para operar duas opções polarizadas de voto: uma delas, o voto em branco pode significar “qualquer candidato satisfaz”, enquanto a outra, e o voto nulo, pode significar “nenhum candidato satisfaz”.

Figura 1 - Teclado do terminal do eleitor.

Mas como esta forma implantou-se e estabilizou-se configurando a urna eletrônica? Três membros da Comissão de Informatização das Eleições Municipais de 1996, Jorge Lheureux de Freitas, Luiz Roberto da Fonseca e Márcio Luiz Guimarães Collaço, ques-tionaram a ausência da tecla NULO no teclado do terminal do eleitor. A ata da Plenária nº. 04 da Comissão, ocorrida em Brasília, em 06 de junho de 1995, atesta que “por maioria presente, fica estabelecida que a solução a ser adotada não deverá conter de forma explícita a opção de voto nulo [...] Fica registrada a não concordância dos membros Jorge Lheu-reux de Freitas, Luiz Roberto da Fonseca e Márcio Luiz Guimarães Collaço com esta de-cisão. A solução deverá conter de forma explícita a opção de voto em branco” (MENDES, 2010:105).

Segundo Osvaldo Catsumi Imamura, integrante do Grupo Técnico instalado pelo TSE em setembro de 1995, “[a] questão da tecla nulo foi resolvida pela Corte do TSE. ... A urna eletrônica é um instrumento de auxílio ao eleitor para a manifestação do seu voto. Assim sendo, foi entendido que a expressão do voto se manifesta na forma de voto no can didato,

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na legenda e em branco. Como o voto nulo também faz parte desta manifes tação, mas não representa o voto propriamente dito (sic) optou-se pela forma de expressão do voto nulo por meio de voto em candidato ou legenda inexistente...” (MENDES, 2010:106)

Segundo o desembargador Jessé Torres Pereira Junior, que presidiu a Comissão Licita-tória para o coletor eletrônico de voto (CEV), sua função no Grupo Técnico era a de “não permitir que as características técnicas da futura urna eletrônica fossem de encontro dos limites do Código Eleitoral Brasileiro.”

Em agosto de 2006, no Programa Roda Viva, da Rede Brasil, o então presidente do TSE, ministro Marco Aurélio de Mello afirmou que “o voto nulo ... não deve ser feito porque é uma fuga”.(MENDES, 2010:110-111)

A lei 4.737 de 15 de julho de 1965, o Código Eleitoral Brasileiro vigente, diz no artigo 224 que “[s]e a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se--ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para a nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.” Mas se for traduzida tecnicamente e naturalizada como sói acontecer com tantas outras entidades que povoam nosso mundo sociotécnico, como analisar a forma estabilizada que a nulidade configurada na lei poderá adquirir?

Figura 2 - Folheto da propaganda oficial nas eleições de 2010

Observações finais

Voltando à introdução, focalizamos as relações entre a urna eletrônica e a democra-cia no Brasil deixando ao lado o catecismo modernista. Não colocamos no coletivo que constitui nossos dispositivos de cognição e análise um divisor determinado a priori entre os chamados mundos das coisas-em-si e os homens-entre-si. Em vez disso optamos por observar e analisar como esse divisor é mobilizado e entra em cena para dar forma tanto à urna eletrônica quanto à democracia no Brasil. Os elementos materiais heterogêneos, ao se justaporem, o fazem de formas diversas e assim situam ou localizam uma democracia e uma urna entre as diversas democracias e urnas mundo afora. Por exemplo, certamente teríamos mais elementos para compreender as semelhanças e diferenças entre as vivências políticas norte-americana, brasileira e da Papua Nova Guiné se comparássemos não só as leis nos três países mas também os artefatos tecnológicos imbricados nas dinâmicas

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que configuram cada um dos três regimes democráticos: práticas de campanha, meios de transporte para comparecer à eleição (obrigatória ou não), proibição de beber, manuseio das urnas, esquemas fiscais, etc.

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Em Busca do Observatório Perdido

José Adolfo S. de Campos1, Nadja Paraense Santos2

Observatório do Valongo, UFRJ, doutorando do HCTE, [email protected] HCTE, UFRJ, [email protected]

Palavras Chave: Astronomia, Barbacena, Escola Politécnica, Observatório do Valongo

Introdução

Em 1874, o Governo do Império do Brasil criou a Escola Politécnica do Rio de Janeiro [1], fato que marca a separação definitiva entre o ensino das engenharias civil e militar. A Politécnica, sucessora da Escola Central, estava agora sob a administração civil do Ministé-rio do Império e o seu regulamento criava os cursos de Ciências Físicas e Naturais, Ciências Físicas e Matemáticas, Engenheiros Geógrafos, Engenharia Civil, Engenharia de Minas e Engenharia de Artes e Manufaturas. Os cursos tinham a duração de cinco anos, sendo dois de um curso geral e mais três do curso especial escolhido pelo aluno, com exceção do curso de Engenheiro Geógrafo, que após o curso geral só necessitava de mais um ano cursando as cadeiras do 2º ano do curso de Ciências Físicas e Matemáticas. O regulamento previa ainda a existência de um observatório astronômico e a realização de observações práticas de astronomia e geodésia tanto na Capital do Império quanto nas províncias.

As práticas de Astronomia e Geodésia eram destinadas aos alunos das cadeiras de Trigo-nometria Esférica e Astronomia, 1ª cadeira do 2º ano do Curso de Ciências Físicas e Matemá-ticas, e Topografia, Geodésia e Hidrografia, 2ª cadeira do 2º ano do mesmo curso. Estas prá-ticas deviam ser feitas no observatório ao longo do ano escolar, que se estendia normalmente entre março de outubro, e durante dois meses nas férias, em localidades fora da Capital.

A Escola Central, antecessora da Escola Politécnica, tinha subordinado o Observatório Imperial do Rio de Janeiro para às atividades práticas de seus alunos e aos da Escola de Marinha. A partir de 1871 [2], entretanto, o Observatório Imperial deixa de ser subordi-nado à direção da Escola Central, mudando a sua orientação com a nomeação do Dr. Em-manuel Liais para diretor do referido observatório. Quando de sua passagem para Escola Politécnica, a Escola Central já estava órfã de um observatório para as práticas da cadeira de Astronomia e Geodésia.

Embora o regulamento de 1874 previsse a existência de um observatório astronômico da Escola para a prática de observações astronômicas, a sua implantação efetiva somente ocorreu em 1881 [3], com a cessão de direitos à Escola Politécnica sobre um pequeno ob-servatório montado pelos Drs. Manoel Pereira Reis e Joaquim Galdino Pimentel - ambos recém aprovados em concurso para lentes das cadeiras de Astronomia e Mecânica Celeste respectivamente.

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Este observatório ficava situado no morro de Santo Antonio, ao lado do Convento, em local que não mais existe devido ao desmonte do referido morro, o que obrigou a transfe-rência do Observatório da Escola Politécnica para o local onde se encontra atualmente, no morro da Conceição.

As práticas de Astronomia e Geodésia eram realizadas, fora da cidade do Rio de Janei-ro, pelos lentes responsáveis com auxilio de instrumentos portáteis, tais como teodolitos astronômicos e lunetas meridianas. No quadro I podem-se ver os professores responsáveis pela condução dos exercícios práticos, discriminados por ano letivo e a indicação de onde ocorreram tais exercícios. Os exercícios práticos ocorriam sempre depois dos exames fi-nais, o que na prática significava que eles se realizavam nos meses de janeiro e fevereiro do ano seguinte.

Quadro I – Professores responsáveis pelos exercícios práticos de Astronomia e Geodésia(fonte: Arquivo Nacional)

Ano Responsável Local dos Exercícios1874 Dr. Antonio de Paula Freitas Petrópolis1875 Dr. Antonio de Paula Freitas Petrópolis1876 Dr. Domingos de Araujo e Silva Petrópolis, Cachoeira Paulista1877 Dr. Domingos de Araujo e Silva Petrópolis, Cachoeira Paulista, São Paulo1878 Dr. Domingos de Araujo e Silva Petrópolis, São Paulo1879 Dr. Domingos de Araujo e Silva Petrópolis1880 Dr. Domingos de Araujo e Silva Petrópolis, Barbacena [4]1881 Dr. Manoel Pereira Reis Petrópolis, Barbacena

A partir de 1881 até 1912, os exercícios práticos de Astronomia foram conduzidos sob a responsabilidade do Dr. Manoel Pereira Reis e sempre incluíam a cidade de Barbacena, no Estado de Minas Gerais. Nesta tarefa, Pereira Reis era auxiliado pelo preparador da ca-deira de Astronomia, inicialmente Saturnino Cardoso Vianna de Barros e depois, a partir de 1894, Orozimbo Lincoln do Nascimento.

Em 1896, a Escola Politécnica aprova um novo estatuto [5] no qual a Astronomia e a Geodésia ficam reunidas na cadeira de Trigonometria Esférica, Astronomia Teórica e Prática e Geodésia, ministrada no 3º ano do Curso Geral, que era obrigatório para todos os cinco cursos especiais, a saber: Engenharia Civil, Engenharia de Minas, Engenharia Industrial, Engenharia Mecânica e Engenharia Agronômica. São mantidas as práticas no Observatório e fora da Capital.

O Observatório em Barbacena

No arquivo de documentos históricos do Observatório do Valongo, sucessor do Obser-vatório da Escola Politécnica, encontrou-se um inventário de instrumentos e bens [6], feito em 1921 para a transferência do Observatório do morro de Santo Antonio para o morro da Conceição. Neste inventário constava que a Escola Politécnica era proprietária de

um terreno doado pelo Dr. Manoel Pereira Reis e de dois pavilhões de alvenaria de tijolo e cimento, sendo um com três trapeiras e tendo res-

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pectivamente 8.0m x 5.0m e 3.0m x 3.0m situados num terreno cercado de arame farpado que fazia parte de um terreno doado ao Governo Fede-ral, para a mudança da Escola de Minas, pela respectiva Municipalidade, mudança que não se efetuou.

Esta informação despertou a curiosidade de um dos autores, mas devido a outras prio-ridades e a ausência de mais documentos com informações adicionais, ficou para ser in-vestigada mais tarde. A oportunidade surgiu meio por acaso quando um dos autores, pes-quisando a documentação existente no Arquivo Nacional sobre o Observatório da Escola Politécnica, encontrou um dossiê sobre o processo de doação do terreno feito pelo Dr. Manoel Pereira Reis à Escola em 1893 [7].

Esta documentação relacionava os procedimentos administrativos iniciados com a car-ta de doação feita por Pereira Reis, translado da escritura de doação e desenhos da área do terreno doado em Barbacena, mas nenhuma indicação objetiva de onde estaria localizado o terreno. A escritura de doação do terreno para a construção de um edifício, pelo Go-verno, contendo uma sala meridiana e dependências destinadas aos exercícios práticos de astronomia geodésica em Barbacena, foi feita em 6 de fevereiro de 1895 [8] e não continha informações de coordenadas que o delimitasse. O terreno era descrito na escritura como:

próximo das obras da fábrica de tecidos do Conselheiro Mayrink, me-dindo cem metros de frente por cento e vinte metros de fundos e que nesta data faz a doação, isentos de foros, de treis mil metros quadrados dos referidos terrenos, ao Governo da República dos Estados Unidos do Brasil, constituindo o terreno doado a quarta parte dos terrenos acima referidos; declarou mais que a parte doada será medida de sorte que abrange o ponto mais alto do terreno deste doador, conforme planta que existe na Secretaria de Justiça e Negócios Interiores apensa ao ofício da Diretoria da Escola Politécnica n. 105 de 1º de agosto de 1894

Examinando-se a planta anexa ao ofício citado (Figura 1), tem-se a indicação que o terreno confrontava terrenos da Câmara Municipal, sendo que em um dos lados estava a Estrada de Ferro Central do Brasil e ao norte as obras da fábrica do Conselheiro Mayrink; havia ainda a indicação do norte magnético. A localização da fábrica de tecidos do Conse-lheiro Mayrink é incerta porque ela nunca chegou a funcionar.

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Figura 1 – Planta do terreno doado por Manoel Pereira Reis(fonte: Arquivo Nacional)

Nos documentos do Arquivo Nacional se encontrava a indicação de que a Câmara Municipal de Barbacena tinha doado um terreno com alicerces para construção da Esco-la Prática de Astronomia. Este terreno e os alicerces de pedra eram parte de um terreno originalmente doado ao Governo Federal para a transferência e construção da Escola de Minas em Barbacena, por escritura de 15 de outubro de 1894. Era preciso pesquisar nos Cartórios de Notas de Barbacena para ver se encontrava a escritura.

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Efetivamente se encontrou a escritura [9] que indicava que o terreno estava “situado a margem direita da Estrada de Ferro Central, entre o Ginásio Mineiro e o Morro do Obser-vatório”. O Ginásio Mineiro de Barbacena, entre 1890 e 1912, ocupou as instalações onde hoje se encontra a Escola Preparatória dos Cadetes do Ar – EPCAR. Embora a escritura não fornecesse as coordenadas do terreno, foi possível delimitar a provável área.

Figura 2 – Imagem parcial da planta de localização da Chácara dos Reis(Fonte: Planta anexa a escritura do 1º Cartório de Notas de Barbacena)

Uma localização mais exata foi possível graças a planta, anexa à escritura de doação de um terreno para a construção da Catedral de São José, feito pelos filhos de Pereira Reis em 8 de novembro de 1948 [10]. Esta planta (Figura 2) indicava a posição da Chácara da família Reis. Na figura vê-se uma parte da Basílica de São José.

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Figura 3 – Provável localização do sítio do Observatório(Fonte: Google Maps)

Ainda estão sendo feitas pesquisas no cadastro municipal da Prefeitura de Barbacena em busca de documentação do terreno que fornecesse as coordenadas precisas de onde se localizava o Observatório, mas os dados já obtidos permitem determinar a localização bastante aproximada (Figura 3). Na figura, a área vermelha indica a posição da Chácara dos Reis, tendo a Basílica ao norte, local da provável localização do Observatório, que foi um importante instrumento para treinamento dos futuros engenheiros nas técnicas de Astronomia e Geodésia durante pelo menos uma década [11].

Notas

[1] Decreto n. 5600 de 25 de abril de 1874. Coleção de Leis do Império do Brasil. Dá novos estatutos à Escola Politécnica.

[2] Decreto n. 4664 de 3 de janeiro de 1871. Coleção op. cit. Cria uma comissão admi-nistrativa no Imperial Observatório do Rio de Janeiro.

[3] Carta de 13 de julho de 1881 do Diretor da escola Politécnica ao Ministro do Im-pério comunicando que a Congregação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro aceitou a oferta na sessão de 5 de julho de 1881. Arquivo Nacional.

[4] O deslocamento dos alunos se dava sempre por via férrea e a ida à Barbacena, no início de 1881 aconteceu provavelmente aconselhada por Pereira Reis, que já era profes-sor de desenho da Escola Politécnica nesta época, e porque a estação da estrada de ferro Central tinha sido inaugurada em 27 de junho de 1880. Pereira Reis em documento datado de 29 de fevereiro de 1896 defende a escolha de Barbacena.

[5] Decreto n. 2221 de 23 de janeiro de 1896. Coleção op. cit. Aprova os estatutos da Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

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[6] Inventário de instrumentos e bens pertencentes ao Observatório da Escola Poli-técnica feito pelo preparador da cadeira de Astronomia em 1921, Orozimbo Lincoln do Nascimento, preparatório para a transferência das instalações para o morro da Conceição em decorrência do processo de desmonte do morro de Santo Antonio. Arquivo do Obser-vatório do Valongo.

[7] Cópia da carta de Manoel Pereira Reis ao Diretor da Escola Politécnica, datada de 30 de junho de 1893, oferecendo um terreno que possuía em Barbacena para que nele fos-se instalada uma edificação para que os alunos pudessem fazer observações astronômicas e geodésicas. Arquivo Nacional.

[8] O livro onde consta a escritura encontra-se extraviado do cartório. A cópia do trans-lado da escritura passada pelo 1º Cartório de Notas de Barbacena encontra-se no Arquivo Nacional.

[9] Escritura passada no 2º Cartório de Notas de Barbacena.[10] Escritura passada no 1º Cartório de Notas de Barbacena.[11] No inventário (Op. cit) aparece a primeira e única fotografia das construções do

observatório, tirada em 1897. A última autorização de passe livre na estrada de ferro para o preparador de Astronomia e Geodésia e responsável pelo Observatório é datada de 22 de maio de 1909 (Diário Oficial da União, 23/05/1909).

Referências Bibliográficas

ARQUIVO NACIONAL. Série Educação. Arquivo de documentos.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br>, acessa-do em 26 de julho de 2010.

IMPÉRIO DO BRASIL. Coleção das Leis do Império. Rio de Janeiro: Tipografia Nacio-nal. Disponível em: < http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/Pesquisa/livre>, acessado em 11 de janeiro de 2010.

OBSERVATÓRIO DO VALONGO. Arquivo histórico de documentos.

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Matéria Escura, Epiciclos e Outras Hipóteses Ad-Hoc

Leandro Lage - doutorando - HCTE/UFRJ, Carlos Benevenuto G. Koehler - professor - HCTE/UFRJ

Muitas vezes a ciência passa por situações em que a observação de um determinado fenômeno parece derrubar, ou mostrar falhas em uma teoria muito bem estabelecida. Al-gumas vezes, a única saída é rever e modificar a teoria, ou substituí-la por outra. Outras vezes, podemos ‘salvar’ a teoria, criando a hipótese de que existe um elemento externo para explicar o tal fenômeno.

Hipóteses desse tipo são chamadas de ad-hoc. Os filósofos e muitos cientistas não gos-tam de hipóteses ad-hoc, porque fornecem uma explicação posterior a observação de um fenômeno. São incompletas do ponto de vista teórico. Mas episódios da História da Astro-nomia e da Física nos mostram que hipóteses ad-hoc podem ter um papel fundamental no progresso do conhecimento científico.

Um dos modelos científicos de maior sucesso da História foi o modelo de universo for-malizado por Ptolomeu(c.90-c.168). Seu modelo tinha a Terra imóvel próxima ao centro do universo, e os planetas girando em torno dela em órbitas circulares. A ideia da Terra no centro do Universo e das órbitas circulares veio do modelo de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C).

Aristóteles acreditava que a natureza tinha um comportamento entre a Terra e a Lua e outro comportamento acima de Lua. O primeiro, um mundo sublunar, onde viviam os homens, era um mundo mutável e onde os movimentos naturais eram em linha reta. O segundo, mundo supralunar, era o mundo onde viviam os deuses, imutável, repleto de objetos esféricos e o movimento natural era o circular. Esferas e círculos eram as formas que melhor refletiam a perfeição divina do mundo supralunar. Assim, Aristóteles criou seu modelo de universo com a Terra no centro, e os planetas presos em esferas cristalinas, todas centradas na Terra e girando em torno dela.

Mas o modelo de Aristóteles não explicava o movimento retrógrado. Se você observar o deslocamento de Marte, por exemplo, verá que, noite após noite ele caminha em um certo sentido. Até que, em uma certa noite ele aparentemente para, e começa a deslocar-se no sentido oposto, noite após noite. Novamente em uma noite ele para, e retoma seu sentido original, desenhando um laço, ou um looping, no céu, como podemos ver na FIGURA 1.

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FIGURA 1 – Composição de 29 fotografias mostrando o movimento retrógrado de Mar-te. Ao fundo, vemos também o movimento de Urano, que não era observado nos tempos

de Ptolomeu (fonte: APOD)

A solução desse problema veio com uma sugestão feita por Apolônio, na Grécia anti-ga, que foi brilhantemente matematizada por Ptolomeu. Em vez de girarem diretamente em torno da Terra, cada planeta descreveria um círculo cujo centro girava em torno da Terra. O círculo descrito pelo planeta chamava-se epiciclo, e o centro do epiciclo descrevia o deferente, que envolvia diretamente a Terra. A combinação das trajetórias ao longo dos epiciclos e dos deferentes explicava a ‘laçada’ observada.

FIGURA 2 – A linha tracejada mostra mostra a combinação do movimento de um plane-ta ao longo de seu epiciclo e do centro deste ao longo do deferente.

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Hoje, nosso modelo de Sistema Solar, formalizado por Jhoanes Kepler (1571-1630), nos diz que os planetas giram ao redor do Sol, não da Terra, e em órbitas elípticas, não circulares. E nos diz, também, que planetas próximos do Sol deslocam-se mais rápido que planetas mais afastados. Desse modo, constantemente a Terra ultrapassa Marte o vemos caminhando para trás. Exatamente como um carro que ultrapassamos na estrada.

Com os epiciclos, Ptolomeu salvou a ideia aristotélica dos movimentos circulares no céu. Era possível fazer a previsão das posições dos planetas com altíssima precisão. E sem-pre com a forma divina dos círculos. O modelo de Ptolomeu, com toda sua complexidade matemática, durou desde o século II até a idade média, sendo, assim, um dos modelos científicos de maior sucesso da História.

Perceba que a ideia dos epiciclos serviu para salvar a premissa dos movimentos circu-lares. Apenas círculos eram permitidos, e todos os movimentos deviam ser explicados com círculos. Ptolomeu conseguiu fazer isso com grande brilhantismo.

Encontramos um exemplo semelhante no desdobramento dos debates a respeito da natureza ondulatória ou corpuscular da luz. Alguns acreditavam que a luz era composta por um feixe de partículas que atravessavam o espaço e chegavam aos nossos olhos. Outros acreditavam que a luz era uma onda. Hoje admitimos uma natureza dual para a luz, sendo ela uma entidade que se comporta como ondas e também como um feixe de partículas.

Quando a natureza ondulatória da luz foi estabelecida, uma questão surgiu. Onda não é um objeto em si, é a perturbação de algum meio. Se a luz é uma onda, qual meio que ela perturba? Esse suposto meio chamou-se éter luminífero, e deveria permear todo espaço, inclusive o espaço que nos separa das estrelas, pois recebemos a luz que vem delas.

Diversas tentativas de verificar a existência do éter foram feitas, e, ao contrário do que se imagina, nenhuma garantiu sua inexistência. A interpretação do éter mudou ao longo da história, mas ele constitui um elemento que nunca foi abandonado por completo. Hoje a propagação da luz é explicada em termos de campo eletromagnético, mas mesmo a rela-tividade geral com o conceito de espaço-tempo instaurou na física moderna um meio, com propriedades físicas, que permeia todo o espaço.

Uma das hipóteses ad-hoc mais importantes para nossa física moderna está nas bases da me-cânica quântica. Sabemos que uma carga acelerada emite radiação eletromagnética. E sabemos que elétrons, partículas com carga elétrica negativa, orbitam em torno do núcleo dos átomos, logo, executam constantemente um movimento acelerado. Esse modelo atômico, conhecido também como modelo planetário, pela semelhança entre os elétrons orbitando em torno do núcleo e os planetas orbitando em torno do Sol, foi proposto por Ernest Rutherford (1871-1937).

Se nesse movimento ao redor do núcleo, o elétron emitisse radiação, ele perderia ener-gia e certamente cairia no núcleo do átomo, aniquilando-se em contato com a carga po-sitiva dos prótons. Entretanto, não é isso que se observa. Os átomo existem, com prótons e com elétrons orbitando o núcleo. A explicação para esse improvável equilíbrio veio no modelo atômico criado por Neils Bohr (1885-1962).

Uma importante característica dos átomos é que eles absorvem e emitem radiação ape-nas em quantidades muito bem determinadas. Em um de seus postulados, Bohr propôs que um elétron simplesmente não emite qualquer radiação em determinadas órbitas. Ele absorve uma certa quantidade de energia que o faz pular para uma órbita mais afastada do núcleo, e emite a mesma quantidade quando volta para sua órbita original. A emissão é feita na troca entre órbitas e não no percurso da órbita.

Dessa forma, com a não emissão de radiação em determinadas órbitas, e com a ab-sorção e emissão na troca entre órbitas, Bohr conciliou o modelo atômico planetário de

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Rutherford com a estabilidade atômica observada.O aspecto epistemológico mais interessante das hipóteses de Bohr, é que sabemos que

ela não promove uma descrição real do que acontece no átomo, mas, ainda assim, é a me-lhor maneira de compreendermos os efeitos observados.

Na Astronomia moderna temos um outro exemplo importante de hipótese ad-hoc, a matéria escura.

Em 1933, o Astrônomo Fritz Zwick (1898-1974) calculou a massa do aglomerado de galáxias de Coma utilizando diferentes métodos. Um relacionava a massa do aglomerado com a quantidade de luz emitida, através da relação massa-luminosidade. Outro método relacionava a massa do aglomerado com o movimento das galáxias através do teorema do virial. O primeiro método utiliza a luz observada, o segundo utiliza a dinâmica do con-junto.

A massa obtida pela luz observada era bem menor que a massa obtida pelo estudo do movimento das galáxias. De imediato, duas coisas podem estar acontecendo: há uma falha em algum dos métodos, ou em ambos, ou, existe mais matéria naquele aglomerado do que podemos observar.

Posteriormente, outras observações astronômicas mostraram discrepâncias entre a massa observada e a massa que deveria haver por conta de fenômenos gravitacionais. Uma das mais belas e interessantes observações desse tipo ficou conhecida como a Cruz de Einstein, que está na FIGURA 3. Nessa fotografia vemos cinco imagens, de apenas duas galáxias que encontram-se alinhadas, na mesma linha de visada. Devido à distorção no espaço provocada pela massa na galáxia que aparece no centro da imagem, ocorre o que chamamos de efeito de lente gravitacional, e a luz proveniente da galáxia de trás é distorci-da e aparece multiplicada nas quatro imagens que observamos.

FIGURA 3 – Cruz de Einstein. Cinco imagens de apenas duas galáxias.

Apenas a massa da galáxia do centro da imagem não seria suficiente para provocar a distorção necessária para observarmos essa lente gravitacional. Deve haver mais matéria

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ali do que podemos observar através da luminosidade.Outra evidência de aparente falta de matéria é obtida quando se mede as velocidades

das estrelas ao redor do centro de algumas galáxias. A curva de rotação mostra que na re-gião conhecida como bojo galáctico, onde há uma alta densidade de objetos, observamos uma rotação de corpo rígido. Saindo do bojo, o esperado seria objetos mais próximos do centro deslocando-se mais rápido e objetos mais afastados deslocando-se mais lentamente. Entretanto, não é o que se observa, como mostra a FIGURA 4.

FIGURA 4 – Forma típica da curva de rotação de uma galáxia espiral. A linha tracejada (A) mostra a variação esperada das velocidades das estrelas ao redor do centro galáctico. As velocidades deveriam diminuir com a distância. A linha inteira (B) mostra a variação

o observada, sem diminuição nas velocidades.

Existem ainda outras observações em que vemos diferença entre a quantidade de ma-téria observada através da luz e a matéria que deveria haver para podermos explicar os efeitos gravitacionais.

Temos duas teorias de gravitação muito bem estabelecidas para explicar o Universo. Uma foi formulada por Isaac Newton (1634-1727) e outra por Albert Einstein (1879-1955). Ambas são teorias de tanto sucesso, que parece mais conveniente pensar na hipótese de existir mais matéria espalhada no Universo do que aquela que conseguimos observar. Essa suposta matéria é chamada matéria escura.

Existe, de fato, matéria que não conseguimos observar através da luminosidade. São planetas extra-solares, estrelas pouco luminosas, anãs brancas que perderam sua energia e outros corpos. Esses objetos compõem um tipo de matéria escura, mas não seriam sufi-cientes para dar conta da quantidade de matéria que está faltando.

A matéria que forma planetas, estrelas, seu computador, ou o papel onde você está lendo os artigos do III Scientiarium Historia, é composta por átomos com núcleos for-mados por bárions. Os bárions mais famosos são os prótons e os neutros. Quando se fala em matéria escura na cosmologia, faz-se, geralmente, referência a um tipo de matéria não formada por bárions. É uma matéria escura não-bariônica, formada por algo de na-tureza completamente desconhecida. Sua única semelhança com a matéria comum seria a gravidade.

A matéria escura não-bariônica surge para salvar nossas teorias de gravitação. Existem

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astrônomos que defendem a tese de que deve estar faltando alguma coisa nas teorias. Pode ser, simplesmente, que não exista nenhum tipo de matéria escura não-bariônica, e a gra-vidade simplesmente pode funcionar de maneira diferente em grandes escalas espaciais.

Os epiciclos de Ptolomeu, o éter luminífero, os elétrons que não emitem radiação em suas órbitas e a matéria escura foram hipóteses de sucesso que salvaram teorias muito bem estabelecidas. Os epiciclos caíram. O conceito do éter foi modificado. O postulado de que elétrons não emitem radiação em suas órbitas continua válido, apesar de não termos um argumento teórico que justifique essa ideia. A matéria escura segue firme ainda que cons-tantemente alvejada pelos que não acreditam em sua existência física.

O tempo e a continuidade dos trabalho científico dizem se uma hipótese ad-hoc foi colocada como um ajuste temporário que escondeu falhas em uma teoria, ou se de fato ela deve permanecer como a explicação última para determinadas observações. Mas lembrar das hipóteses ad-hoc do passado e das que estão hoje em nossa ciência moderna pode nos indicar que, por mais incompletas que sejam do ponto de vista teórico, elas constituem uma saída fundamental para alguns impasses científicos. Ainda que, algumas vezes, uma saída temporária.

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(In)finito (In)esperadoLuciane de Paiva Moura (1) e Ricardo Silva Kubrusly (2)

(1) Doutoranda HCTE/UFRJ (2) Professor HCTE/UFRJ (1) [email protected] (2) [email protected]

A discussão em torno do tema infinito nunca foi fácil. Nem mesmo para os matemá-ticos que se diferenciam dos demais por possuírem o aval para dialogar com o infinito, foram poucos os que se aventuraram no assunto. Talvez porque no íntimo de cada um de nós, matemáticos, já soubéssemos quão inesperado ele se apresentaria. O infinito a que me refiro não é o adjetivo que significa o que não tem fim. Mas sim, o substantivo infinito. O infinito, substantivo, que passa a ser entidade, passa a ser conceito, passa a ser reconhecido como objeto matemático nos apresenta um mundo repleto de resultados que despertam nossa atenção sobre que mundo matemático é esse no qual estamos manipulando. Os re-sultados envolvendo esse infinito contribuem com o belo e com a reflexão filosófica ao mesmo tempo em que convive com resultados que possuem como meta a prática e uma discreta elegância.

Esse objeto traz inúmeras questões que devem ser sempre postas e repostas em dis-cussão. A existência de infinitos de “tamanhos” diferentes é uma delas. A matemática e sua relação com o infinito, permitem desconstruir a visão cristalizada de o todo ser maior que suas partes. Essa audaciosa desconstrução é feita, como podemos observar, por exemplo, na possibilidade de enumeração do conjunto dos números racionais, ou seja, pelo fato de o conjunto dos números racionais poder ser posto em correspondência biunívuca com o conjunto dos números naturais, sendo assim, mostramos um método no qual é possível mostrar a ousadia da parte ser do mesmo “tamanho” do todo. E não é só nesse caso que essa impensável relação ocorre, há inúmeros outros exemplos onde essa construção é possível. Ao continuarmos na mesma teoria dos conjuntos, o infinito absoluto de George Cantor colapsa o sistema. O paradoxo de Cantor, modo como ficou conhecido este resultado, é gerado pela possibilidade de existência de um conjunto de todos os conjuntos. Esse paradoxo ocorre pelo fato do conjunto de todos os números ordinais gerar uma inconsistência que pode ser descrita da seguinte maneira: Sabe-se que toda a boa ordenação corresponde a um único número ordinal. Também se sabe que números ordinais formam uma boa ordenação. Considere, então, a coleção de todos os números ordinais. Esta coleção por sua vez também é uma boa ordenação e, portanto, corresponde a um ordinal A. Logo, A excede todos os ordinais e também excede a si próprio, o que é uma contradição, uma vez que se supôs que havia sido feita uma coleção de todos os ordinais.

Parece que esse objeto matemático faz mesmo questão de não corresponder ao espera-do não só na teoria dos conjuntos, mas em diversos âmbitos. A atualização da potenciali-dade da dízima periódica 0,999... não é nem menos, nem tão próximo, mas sim o próprio

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1. Existem várias maneiras de mostrar esse cálculo. Talvez a mais simples seja a descrita abaixo:

Considere a equação (1), em que nomeamos a dízima 0,999... por a:(1) 0,9999... = aAo multiplicarmos a equação (1) por 10, obtemos o seguinte resultado: 10 x 0,9999... = 10a Efetuando os cálculos, temos a equação (2): (2) 9,999... = 10aEm seguida, ao subtrairmos (2) de (1), temos: 9,999... = 10a - 0,999... = a 9 = 9a

Então, como 9a = 9, temos que: a = 1Assim, se a, por definição, é igual a 0, 9999... e também é igual a 1. Logo, podemos

concluir que 0,999... = 1. Entretanto, esse mesmo infinito que surpreende acaba sendo salvador. Pois é graças

ao mesmo infinito, que a divisão por zero é salva do paradoxo. Vamos entender como o paradoxo se constrói na divisão por zero. Suponha que seja possível dividir um número p e um número q por zero, sendo p diferente de q. Dessa forma, seja a equação válida p. 0 = q. 0, ao dividirmos esta equação por zero, obteríamos como resultado p = q, o que geraria um absurdo, uma vez que consideramos que p é diferente de p. Contudo, esse paradoxo fica amenizado, ao considerarmos a função f(x) = a/x, onde a é um número real, constante e diferente de zero. Ao considerarmos essa função, quando x tende a zero, ou seja, quando a divisão por zero vai se configurando, o limite dessa função vai para infinito, salvando assim, a divisão por zero do absurdo e a levando ao infinito.

Outro aspecto interessante que o infinito nos traz é o teorema de Banach–Tarski, tam-bém conhecido como paradoxo de Banach-Tarski, não por ser contraditório, mas por ser um resultado totalmente contra-intuitivo. Nele, fica estabelecido teoricamente, com a utili-zação do axioma da escolha, que é possível dividir uma esfera sólida tridimensional em um número finito de pedaços e com estes pedaços construir duas esferas, do mesmo tamanho da original. A demonstração prova a existência teórica de uma forma de repartir a esfera com estas características, usando o axioma da escolha. Não há uma prova construtiva que descreva a maneira pela qual a esfera deve ser repartida. Banach e Tarski propuseram este paradoxo com a intenção de evidenciar um resultado para que o axioma da escolha fosse rejeitado, mas os matemáticos em geral continuam a utilizar este axioma arcando com suas consequências contra-intuitivas.

Ao pensamos o infinito, o considerando como conceito e objeto matemático, por ser a matemática, um constructo abstrato humano, não esperávamos nos surpreender tanto com ela nem tão pouco com seus objetos, uma vez que, de certo modo sempre esperamos estar com nossas criações, sob domínio, sob nosso controle.

Mesmo a matemática sendo esse mundo densamente surpreendente, o desenvolvimen-to racional matemático nunca teve seus objetos como preocupação central. A preocupação sempre foi sintática, simbólica e não de conteúdo, de semântica.

Contudo, é preciso um esforço em entender os objetos matemáticos, não com a in-tenção de descrevê-los mas sim, com a intenção de dialogar com seus mistérios. Uma vez que, não podemos nos contentar com um conhecimento que além de não refletir sobre

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seus objetos, não reflita sobre seus sujeitos e não reflita sobre seu próprio futuro. É preciso valorizar os limites do conhecimento formal e quantitativo. E entender que uma teoria matemática não é pura e simplesmente um reflexo das realidades objetivas, mas sim um trabalho em conjunto das estruturas do espírito humano e das condições sociais e culturais do conhecimento.

É necessário que haja uma “iniciação à lucidez” no sentido de Morin “uma iniciação à onipresença do problema do erro”. É necessário entender que conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza. Uma vez que, enquanto a pouca preocupação com a racionalidade leva à ignorância do significado de um fato ou de um acontecimento, o excesso ou até mesmo a exclusiva preocupação com a racionalidade leva a leituras muito distorcidas de significação.

É necessário reconhecer nosso esforço para decifrar o aparentemente inalcançável desafio que o real nos propõe. Precisamos harmonizar de uma vez por todas nosso convívio com nossas ideias e com nossas limitações, mantendo nossos modelos como mediadores e jamais tendo a pretensão de identificá-los com o real. Devemos nos conscientizar de uma vez por todas que o maior ganho do último século foi a constatação em diversos ramos do conhecimento da eterna incerteza do conhecer. É dessa crise, na derrota do progresso ga-rantido, como diz Morin, que temos o ambiente próspero para refletir sobre nossos futuros caminhos enquanto humanidade, através do questionamento da ciência, da técnica e da razão. A matemática enquanto saber não pode ignorar a realidade da complexidade huma-na, não há mais como naturalizar um conhecimento que tem como objetivo a eliminação do sujeito e da subjetividade. Por mais que a técnica continue dando certo temos que ter a consciência da necessidade de reinserção do sujeito na teoria. Há que se mudar o pa-radigma da tentativa insana de um sujeito invisível, cuja existência é negada, assim como não exaltar um sujeito transcendental, que escapa a experiência, que é puro intelecto e não pode ser concebido em suas incertezas. Deve-se resgatar o sujeito das humanidades para que ele possa refletir sobre a matemática que produz. Não podemos continuar a produzir um conhecimento inconsciente.

Referências bibliográficas

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BUNCH, Bryan. Mathematical Fallacies and Paradoxes. New York: Dover Publication, INC, 1982.

COURANT, Richard; JONH, Fritz. Introduction to Calculus and Analysis I. New York: Springer, 1982.

COURANT, Richard; ROBBINS, Herbert. What is Mathematics? New York: Oxford Uni-versity Press, 1996.

CURRY, Haskell B. Outlines of a Formalist Philosophy of Mathematics. Amsterdam: North Holland Publishing Company, 1951.

EVES, Howards. Foundations and Fundamental Concepts of Mathematics. New York: Dover Publication, INC.

JECH, Thomas J.. The axiom of choice. Amsterdam: North Holland Publishing Company, 1973.

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KASNER, Edward; NEWMAN, James. Matemática e Imaginação: O fabuloso mundo da matemática ao alcance de todos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.

LAVIGNE, Shaughan. Understanding the Infinity. Harvard University Press, 1994.

MORIN, Edgard. A Cabeça Bem-Feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

MORIN, Edgard. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

MOSCHOVAKIS, Yiannis N. Notes on Set Theory. Springer, 1994.

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O que é metafísica da ciência?

Marcos Vinicio Guimarães Giusti Instituto Federal Fluminense / HCTE-UFRJ [email protected]

A amistosa relação entre a metafísica e a ciência moderna conheceu suas primeiras animosidades com a crítica de David Hume ao princípio da causalidade. Até então, o me-canicismo materialista que caracterizava a física dos séculos XVII e XVIII encontrava sua justificação metafísica na idéia de substância. Esta, por sua vez, estabelecera-se ao longo dos séculos que se seguiram à noção aristotélica de ὑποκείμενον (hypokeimenon), ou seja, de que há um substrato material que permanece o mesmo em face das transformações que os entes podem sofrer. Durante a Idade Média, graças à presença influente do aristotelismo na Escolástica, a interpretação da resposta divina a Moisés, “Eu sou o que sou”, passa a ser compreendida como se o ser (esse) de Deus se caracterizasse como substância divina, isto é, aquilo que subjaz a toda a criação (ens). Essa compreensão da substância divina encontra ressonâncias no monismo de Spinoza e, também no dualismo de René Descartes, antigo aluno dos jesuítas em La Flèche.

A metafísica cartesiana sustenta-se sobre um tripé bem articulado de diferentes subs-tâncias: Deus, a mente e a matéria. Descartes se aproxima da concepção tomista ao afirmar que a substância é “aquilo que existe de tal modo que não necessita de nenhuma outra coi-sa para existir.” A definição cartesiana da substância como causa sui permite-nos entender que tanto a res cogitans (a mente) como a res extensa (a matéria) derivam da substância divina.

O mundo tal como Descartes o imagina é uma máquina. Mas uma máquina não opera sem que alguém ou algo dê a partida para o seu funcionamento. Isto significa que toda má-quina precisa de uma causa que a faça funcionar. Se um pouco antes, ao falarmos da subs-tância, afirmamos que há certa proximidade entre as concepções tomista e cartesiana, o mesmo não ocorre quando se trata da causa do movimento do mundo físico. Nesse ponto, Descartes afasta-se de qualquer princípio teleológico, bastando-lhe afirmar que o Criador é a causa eficiente do movimento da matéria que segue se movendo ordenadamente devi-do apenas ao seu “concurso geral”. Esse “concurso geral” é descrito pela teoria dos vórtices, segundo a qual a Terra, os planetas e o Sol encontram-se imersos em uma matéria inicial, o éter. Este é forçado a uma determinada quantidade de movimentos por ação divina e cai numa série de remoinhos e vórtices, onde os objetos visíveis são arrastados ou impelidos em direção a certos pontos centrais pelas leis do movimento do vórtice. Este é um universo inteiramente matemático, onde encontramos objetos extensos e movimento passíveis de serem descritos geometricamente. Essa descrição geométrica do mundo físico prescinde da divindade, ancorando-se somente nas idéias matemáticas que a mente humana pode

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apreender. O mundo físico é, então, comparável a um mecanismo cujas engrenagens se-guem um movimento coordenado e contínuo ao qual Boyle, Locke e Leibiniz irão compa-rar a um grande relógio posto em movimento por Deus.

Embora não tenha logrado êxito com a sua explicação cosmológica, a teoria dos vór-tices, Descartes marcou profundamente a metodologia científica ao estabelecer que o co-nhecimento só pode se dar numa relação bilateral entre uma mente inquisidora e ativa e uma natureza material e passiva (o sujeito e o objeto). Essa bilateralidade entre os pólos cognoscitivo e cognoscível torna-se a pedra de toque da ciência moderna. Nós a encontra-mos até mesmo em Newton, para quem os fenômenos físicos eram observáveis dentro da moldura do tempo e do espaço absolutos, estando o observador espacialmente separado daquilo que ele observa.

Sabemos que, enquanto fundamento da ciência, a concepção substancialista da natu-reza evocava uma série de conceitos metafísicos, dentre os quais, um dos mais significa-tivos para a ciência de cunho mecanicista-materialista, era a causalidade. Basta lembrar a terceira lei de Newton que enuncia: “a toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade, ou, as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e di-rigidas a partes opostas.” Portanto, acreditava-se que a causalidade fosse uma lei universal da natureza.

No entanto, como já afirmamos anteriormente, o ceticismo humeano quanto ao prin-cípio da causalidade consumou-se como o primeiro grande golpe contra a metafísica clás-sica e a sua validade como fundamento científico.

(...) uma objeção mais justa e plausível a uma parte considerável dos estudos metafísicos: que eles não são propriamente uma ciência, mas provêm ou dos esforços frustrados da vaidade humana, que desejaria penetrar em assuntos completamente inacessíveis ao entendimento, ou a astúcia das superstições populares que, incapazes de se defender em campo aberto, cultivam essas sarças espinhosas impenetráveis para dar cobertura e proteção a suas fraquezas. (HUME, 2004, p. 26)

Para David Hume a causalidade baseava-se apenas numa crença injustificada de que eventos passados se conectariam com eventos futuros. Essa crença repousaria apenas no hábito que os homens teriam de relacionar um evento a um outro subsequente, sem qual-quer base científica.

Kant foi particularmente tocado por essa crítica de Hume, de maneira que passou a considerar a causalidade como uma categoria do entendimento, isto é, a relaçao de causa e efeito não se encontra na natureza, mas no próprio sujeito. Assim, como um a priori da ra-zão, a causalidade é um conceito metafísico, no sentido de que não provém da experiência, ou seja, da percepção sensível dos fenômenos.

Retirando a causalidade da natureza Kant dá uma nova dimensão a metafísica. Esta remete a tudo o que é a priori na estrutura da razão pura. As formas puras da sensibilidade (tempo e espaço) e as categorias do entendimento necessitam dos dados da percepção sen-sível (experiência) para que a ciência possa se realizar. Se, por um lado, a metafísica jamais poderia se tornar uma ciência, pois lhe faltariam os dados da experiência, por outro lado, a experiência sem os conceitos metafísicos, jamais chegaria a ser ciência, porque lhe faltaria a forma do conhecimento.

Percebe-se, então, que, com Kant, a metafísica transfere-se da natureza para o interior da subjetividade. Abandona-se, assim, a concepção mecanicista-materialista que orientava

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a ciência moderna desde o seu nascedouro. A metafísica clássica encontra-se em risco, uma vez que não importa mais a ordem estabelecida pela substância – esta, para Kant é a incognoscível coisa-em-si – e sim a ordem instituída pela razão.

A filosofia pós-kantiana vai tratar de destruir os últimos laços que poderiam aproximar a metafísica da ciência. O empirismo lógico, no começo do século XX, estava compro-metido com um programa que rejeitasse a metafísica especulativa em prol de uma teoria verificacionista do significado e da descoberta das condições de verdade empírica para as teorias científicas.

A nossa hipótese, sem relevar o positivismo que grassava na ciência do início do século XX, é de que a metafísica entra em crise porque já não mais atendia às necessidades fun-damentais para a nova imagem científica do mundo que começava a ser elaborada a partir da teoria da relatividade e da mecânica quântica. Definimos metafísica como a teoria geral da realidade. Destarte, a metafísica deve articular conceitos e perspectivas ideacionais ca-pazes de nos fornecer um sistema de pensamento que nos permita compreender o mundo à nossa volta, assim como o nosso lugar nesse mundo.

A imagem científica do mundo fornecida pela física clássica era inteiramente intuitiva, condizendo com a compreensão fornecida pela observação direta da natureza. Isto não ocorre quando se trata de criar uma imagem científica do mundo a partir da mecânica quântica, visto que esta é completamente anti-intuitiva. O que significa que a realidade expressa pelo formalismo matemático da mecânica quântica requer novos conceitos de base, os quais não correspondem mais àqueles da mecãnica clássica. Não obstante, os físi-cos continuaram a usar os conceitos da linguagem ordinária, afeitos à descrição clássica.

Entretanto a linguagem comum, ainda que aperfeiçoada pela física clássica, nos reme-te a uma metafísica substancialista onde a ideia de matéria, como constituinte último do mundo físico, vige soberana. Trata-se, portanto, de construir novos conceitos, formulando uma metafísica que se adéque às descrições dos fenômenos quânticos.

Postulamos que essa nova metafísica é aquela que toma os processos e não a substância como o que há de fundamental na natureza. Alfred North Whitehead, em Process and Rea-lity, busca elaborar uma descrição da natureza que esteja em consonância com a ciência do início do século XX. Nela, encontramos novos conceitos metafísicos como os de “entidade real”, “objetos eternos”, “concrescência”, entre outros, que tentam estabelecer um nexo entre os conceitos estreitos da ciência e a generalização do pensamento especulativo.

A metafísica da ciência, como a compreendemos, não cria vínculos de subordinação entre a ciência e a metafísica. Pelo contrário, ela procura construir um rico diálogo entre a necessária especificidade conceptual da ciência e a amplitude das noções metafísicas. Segundo essa perspectiva, haverá vezes em que a ciência ajudará a tornar mais clara uma ideia geral, mostrando como ela se ajusta ao mundo dos eventos físicos, e haverá vezes em que o conceito mais geral da metafísica comunicará uma idéia científica muito específica, trazendo-a para um quadro mais amplo de compreensão do mundo.

Notas

1 DESCARTES, René. Principes de la philosophie.. Paris: Vrin, 1993, p. 77.2 Chamamos de metafísica clássica a metafísica da substância.3 Cf. BOHR, Niels. Física atômica e conhecimento humano. Rio de Janeiro: Contratem-

po, 1995, p. 32.

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Referências Bibliográficas

1. BOHR, Niels. Física atômica e conhecimento humano. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contratempo, 1995.

2. DESCARTES, René. Principes de la philosophie. Paris: Vrin, 1993.

3. HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Tradução: José de Oscar de Almeida Marques. São Paulo. Editora: UNESP, 2004.

4. WHITEHEAD, Alfred North. Process and Reality (Correct Edition). New York: The Free Press, 1985.

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O que é metafísica da ciência?

Marcos Vinicio Guimarães Giusti Instituto Federal Fluminense / HCTE-UFRJ [email protected]

A amistosa relação entre a metafísica e a ciência moderna conheceu suas primeiras animosidades com a crítica de David Hume ao princípio da causalidade. Até então, o me-canicismo materialista que caracterizava a física dos séculos XVII e XVIII encontrava sua justificação metafísica na idéia de substância. Esta, por sua vez, estabelecera-se ao longo dos séculos que se seguiram à noção aristotélica de ὑποκείμενον (hypokeimenon), ou seja, de que há um substrato material que permanece o mesmo em face das transformações que os entes podem sofrer. Durante a Idade Média, graças à presença influente do aristotelismo na Escolástica, a interpretação da resposta divina a Moisés, “Eu sou o que sou”, passa a ser compreendida como se o ser (esse) de Deus se caracterizasse como substância divina, isto é, aquilo que subjaz a toda a criação (ens). Essa compreensão da substância divina encontra ressonâncias no monismo de Spinoza e, também no dualismo de René Descartes, antigo aluno dos jesuítas em La Flèche.

A metafísica cartesiana sustenta-se sobre um tripé bem articulado de diferentes subs-tâncias: Deus, a mente e a matéria. Descartes se aproxima da concepção tomista ao afirmar que a substância é “aquilo que existe de tal modo que não necessita de nenhuma outra coi-sa para existir.”1 A definição cartesiana da substância como causa sui permite-nos entender que tanto a res cogitans (a mente) como a res extensa (a matéria) derivam da substância divina.

O mundo tal como Descartes o imagina é uma máquina. Mas uma máquina não opera sem que alguém ou algo dê a partida para o seu funcionamento. Isto significa que toda má-quina precisa de uma causa que a faça funcionar. Se um pouco antes, ao falarmos da subs-tância, afirmamos que há certa proximidade entre as concepções tomista e cartesiana, o mesmo não ocorre quando se trata da causa do movimento do mundo físico. Nesse ponto, Descartes afasta-se de qualquer princípio teleológico, bastando-lhe afirmar que o Criador é a causa eficiente do movimento da matéria que segue se movendo ordenadamente devi-do apenas ao seu “concurso geral”. Esse “concurso geral” é descrito pela teoria dos vórtices, segundo a qual a Terra, os planetas e o Sol encontram-se imersos em uma matéria inicial, o éter. Este é forçado a uma determinada quantidade de movimentos por ação divina e cai numa série de remoinhos e vórtices, onde os objetos visíveis são arrastados ou impelidos em direção a certos pontos centrais pelas leis do movimento do vórtice. Este é um universo inteiramente matemático, onde encontramos objetos extensos e movimento passíveis de serem descritos geometricamente. Essa descrição geométrica do mundo físico prescinde da divindade, ancorando-se somente nas idéias matemáticas que a mente humana pode

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apreender. O mundo físico é, então, comparável a um mecanismo cujas engrenagens se-guem um movimento coordenado e contínuo ao qual Boyle, Locke e Leibiniz irão compa-rar a um grande relógio posto em movimento por Deus.

Embora não tenha logrado êxito com a sua explicação cosmológica, a teoria dos vór-tices, Descartes marcou profundamente a metodologia científica ao estabelecer que o co-nhecimento só pode se dar numa relação bilateral entre uma mente inquisidora e ativa e uma natureza material e passiva (o sujeito e o objeto). Essa bilateralidade entre os pólos cognoscitivo e cognoscível torna-se a pedra de toque da ciência moderna. Nós a encontra-mos até mesmo em Newton, para quem os fenômenos físicos eram observáveis dentro da moldura do tempo e do espaço absolutos, estando o observador espacialmente separado daquilo que ele observa.

Sabemos que, enquanto fundamento da ciência, a concepção substancialista da natu-reza evocava uma série de conceitos metafísicos, dentre os quais, um dos mais significa-tivos para a ciência de cunho mecanicista-materialista, era a causalidade. Basta lembrar a terceira lei de Newton que enuncia: “a toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade, ou, as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e di-rigidas a partes opostas.” Portanto, acreditava-se que a causalidade fosse uma lei universal da natureza.

No entanto, como já afirmamos anteriormente, o ceticismo humeano quanto ao prin-cípio da causalidade consumou-se como o primeiro grande golpe contra a metafísica clás-sica2 e a sua validade como fundamento científico.

(...) uma objeção mais justa e plausível a uma parte considerável dos estudos metafísicos: que eles não são propriamente uma ciência, mas provêm ou dos esforços frustrados da vaidade humana, que desejaria penetrar em assuntos completamente inacessíveis ao entendimento, ou a astúcia das superstições populares que, incapazes de se defender em campo aberto, cultivam essas sarças espinhosas impenetráveis para dar cobertura e proteção a suas fraquezas. (HUME, 2004, p. 26)

Para David Hume a causalidade baseava-se apenas numa crença injustificada de que eventos passados se conectariam com eventos futuros. Essa crença repousaria apenas no hábito que os homens teriam de relacionar um evento a um outro subsequente, sem qual-quer base científica.

Kant foi particularmente tocado por essa crítica de Hume, de maneira que passou a considerar a causalidade como uma categoria do entendimento, isto é, a relaçao de causa e efeito não se encontra na natureza, mas no próprio sujeito. Assim, como um a priori da ra-zão, a causalidade é um conceito metafísico, no sentido de que não provém da experiência, ou seja, da percepção sensível dos fenômenos.

Retirando a causalidade da natureza Kant dá uma nova dimensão a metafísica. Esta remete a tudo o que é a priori na estrutura da razão pura. As formas puras da sensibilidade (tempo e espaço) e as categorias do entendimento necessitam dos dados da percepção sen-sível (experiência) para que a ciência possa se realizar. Se, por um lado, a metafísica jamais poderia se tornar uma ciência, pois lhe faltariam os dados da experiência, por outro lado, a experiência sem os conceitos metafísicos, jamais chegaria a ser ciência, porque lhe faltaria a forma do conhecimento.

Percebe-se, então, que, com Kant, a metafísica transfere-se da natureza para o interior da subjetividade. Abandona-se, assim, a concepção mecanicista-materialista que orientava

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a ciência moderna desde o seu nascedouro. A metafísica clássica encontra-se em risco, uma vez que não importa mais a ordem estabelecida pela substância – esta, para Kant é a incognoscível coisa-em-si – e sim a ordem instituída pela razão.

A filosofia pós-kantiana vai tratar de destruir os últimos laços que poderiam aproximar a metafísica da ciência. O empirismo lógico, no começo do século XX, estava compro-metido com um programa que rejeitasse a metafísica especulativa em prol de uma teoria verificacionista do significado e da descoberta das condições de verdade empírica para as teorias científicas.

A nossa hipótese, sem relevar o positivismo que grassava na ciência do início do sé-culo XX, é de que a metafísica entra em crise porque já não mais atendia às necessidades fundamentais para a nova imagem científica do mundo que começava a ser elaborada a partir da teoria da relatividade e da mecânica quântica. Definimos metafísica como a te-oria geral da realidade. Destarte, a metafísica deve articular conceitos e perspectivas idea-cionais capazes de nos fornecer um sistema de pensamento que nos permita compreender o mundo à nossa volta, assim como o nosso lugar nesse mundo.

A imagem científica do mundo fornecida pela física clássica era inteiramente intuitiva, condizendo com a compreensão fornecida pela observação direta da natureza. Isto não ocorre quando se trata de criar uma imagem científica do mundo a partir da mecânica quântica, visto que esta é completamente anti-intuitiva. O que significa que a realidade expressa pelo formalismo matemático da mecânica quântica requer novos conceitos de base, os quais não correspondem mais àqueles da mecãnica clássica. Não obstante, os físi-cos continuaram a usar os conceitos da linguagem ordinária, afeitos à descrição clássica3.

Entretanto a linguagem comum, ainda que aperfeiçoada pela física clássica, nos reme-te a uma metafísica substancialista onde a ideia de matéria, como constituinte último do mundo físico, vige soberana. Trata-se, portanto, de construir novos conceitos, formulando uma metafísica que se adéque às descrições dos fenômenos quânticos.

Postulamos que essa nova metafísica é aquela que toma os processos e não a substância como o que há de fundamental na natureza. Alfred North Whitehead, em Process and Rea-lity, busca elaborar uma descrição da natureza que esteja em consonância com a ciência do início do século XX. Nela, encontramos novos conceitos metafísicos como os de “entidade real”, “objetos eternos”, “concrescência”, entre outros, que tentam estabelecer um nexo entre os conceitos estreitos da ciência e a generalização do pensamento especulativo.

A metafísica da ciência, como a compreendemos, não cria vínculos de subordinação entre a ciência e a metafísica. Pelo contrário, ela procura construir um rico diálogo entre a necessária especificidade conceptual da ciência e a amplitude das noções metafísicas. Segundo essa perspectiva, haverá vezes em que a ciência ajudará a tornar mais clara uma ideia geral, mostrando como ela se ajusta ao mundo dos eventos físicos, e haverá vezes em que o conceito mais geral da metafísica comunicará uma idéia científica muito específica, trazendo-a para um quadro mais amplo de compreensão do mundo.

Notas

1 DESCARTES, René. Principes de la philosophie.. Paris: Vrin, 1993, p. 77.2 Chamamos de metafísica clássica a metafísica da substância.3 Cf. BOHR, Niels. Física atômica e conhecimento humano. Rio de Janeiro: Contra-

tempo, 1995, p. 32.

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Referências Bibliográficas

1. BOHR, Niels. Física atômica e conhecimento humano. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contratempo, 1995.

2. DESCARTES, René. Principes de la philosophie.. Paris: Vrin, 1993.

3. HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Tradução: José de Oscar de Almeida Marques. São Paulo. Editora: UNESP, 2004.

4. WHITEHEAD, Alfred North. Process and Reality (Correct Edition). New York: The Free Press, 1985.

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Das cartas e atas aos e-mails e periódicos on-line

Maria Fernanda Marques Fernandes(doutoranda HCTE/UFRJ, [email protected])

Quais fontes seriam utilizadas por um historiador do futuro que se dispusesse a estudar a história da ciência de hoje? Ele precisaria, certamente, se debruçar sobre documentos criados em formato digital e oriundos do ciberespaço. Analisar tal questão é um dos objeti-vos deste trabalho, que visa também apresentar um panorama das transformações sofridas pelas fontes históricas, refletir sobre como estas fontes são impactadas pelas novas tecno-logias, especialmente a internet, e avaliar em que medida o jornalismo poderia auxiliar a história em relação ao uso de novos documentos.

Uma fonte considerada excelente pelos historiadores do passado pode ser rejeitada pe-los historiadores do presente e vice-versa. “Se concluímos que não existe um fato histórico eterno, mas existe um fato que consideramos hoje um fato histórico, é fácil deduzir que o con-ceito de documento siga a mesma lógica. Fato e documento histórico demonstram nossa visão atual do passado, num diálogo entre a visão contemporânea e as fontes pretéritas” (KARNAL e TATSCH, 2009).

Houve um tempo em que o historiador se debruçava somente sobre documentos escri-tos oficiais na busca da verdade. Atualmente, documentos não escritos (como fotografias e testemunhos orais) e até fontes notadamente artísticas e ficcionais (como textos literários e cinema) têm sido levados em conta pelo historiador na construção de uma verdade.

Hoje, corre-se o risco de acreditar que qualquer coisa pode servir de fonte e qualquer versão do fato é válida. Ainda que não exista uma única verdade, ainda que variadas fon-tes falem ao historiador, ainda que subjetividades perpassem qualquer fonte ou atividade humana, ainda que o real seja apreendido de formas diversas, ainda que as obras de ficção revelem muito sobre os modos de agir e pensar da sociedade que as produziu, não se pode simplesmente tomar o falso pelo verdadeiro, igualar fantasia e realidade. “Se a própria distinção entre verdadeiro e falso for abandonada como uma curiosidade insignificante do passado, estaremos, certamente, diante de um perigo mais sutil e corrosivo, pois – no plano mais simples da vida – os mentirosos não terão nada a provar e os defensores da verdade não terão sequer uma causa para questioná-los” (SALIBA, 2009). O historiador não pode abrir mão da confiabilidade e autenticidade de suas fontes; precisa colocar suas fontes “contra a parede”; não deve abdicar de um método com reprodutibilidade. Por isso, fontes históricas emergentes – como e-mails, chats, torpedos de celular, blogs, perfis no Orkut e vídeos do Youtube – terão um difícil caminho pela frente até que sejam incorporadas pela academia.

Historiadores da ciência sempre vão se deparar com novos tipos de fonte. Não há como escapar. Se o modo como os cientistas trabalham, se relacionam e comunicam seus re-

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sultados muda, então os registros e vestígios deixados por eles também mudam. A cor-respondência de cientistas foi, é e continuará sendo valiosa para historiadores da ciência, mas mudam os formatos desta correspondência: desde antes do surgimento das primeiras revistas científicas, no século XVII, cientistas trocavam cartas; hoje, trocam e-mails e estes, portanto, constituem fonte de interesse para o historiador.

SILVA e REGO (2007) perguntaram aos responsáveis por laboratórios de instituições de pesquisa se eles preservavam seus e-mails profissionais. As respostas incluíram catego-rias como “o e-mail é descartado quando contém informações pontuais e imediatas”, “o e--mail é preservado por um tempo, depois é deletado”, “o e-mail não é preservado” e “não há procedimentos”, demonstrando que informações potencialmente importantes para o his-toriador da ciência se perdem. Mesmo nas ocasiões em que os responsáveis pelos laborató-rios disseram preservar determinados e-mails, o modo como estes eram armazenados não garante que a correspondência eletrônica estará disponível para o historiador da ciência.

Os periódicos científicos, principais veículos para a publicação de pesquisas originais, também constituem matéria-prima para o historiador da ciência. Na atualidade, uma ten-dência já se fez notar: a transição dos periódicos do formato impresso para o on-line. Há periódicos que existem exclusivamente no ciberespaço, abandonando de vez o suporte de papel. Eles podem sair do ar, sem deixar vestígios, ou modificar seu conteúdo original, de modo que um artigo lido hoje na tela do computador pode estar diferente amanhã, sem que o leitor seja avisado.

A informática já alterou profundamente a relação do cientista com seu artigo, mesmo quando este se destina a um periódico com versão em papel. O cientista escreve o artigo no computador, usando um programa de edição de textos, e submete o trabalho ao periódico por e-mail ou via formulário eletrônico, disponível no site da revista. Então, os membros dos conselhos editorial e científico do periódico, bem como seus consultores externos, comunicam-se através do computador para avaliar o artigo e é também através do com-putador que notificam o cientista se seu trabalho foi ou não aceito. Se o periódico solicita reparos no artigo – e frequentemente isso acontece –, o cientista modifica o arquivo origi-nal no computador e envia a nova versão eletronicamente, deflagrando um novo ciclo de contatos virtuais. Ao final desses ciclos, se o cientista tem êxito, um artigo – muitas vezes bem diferente do inicialmente proposto – ganha existência em papel. Essa versão final, em papel, fica “para a posteridade”, enquanto as versões intermediárias, bem como a cor-respondência eletrônica entre conselheiros, consultores e autores, podem ser deletadas ou esquecidas num HD – com prejuízo para a história da ciência, que pode perder registros de polêmicas científicas e de embates entre teorias hegemônicas e visões alternativas.

A web mudou não só o modo como os cientistas publicam seus artigos: ela mudou também o modo como eles realizam suas pesquisas. Os hiperlinks fazem com o que o cientista “pule” de um artigo para outro rápida e incessantemente. Dessa forma, o cientista tece uma gigantesca “colcha de retalhos de ideias”, que aponta para o pluralismo de autores por trás de cada pesquisa e para a impossibilidade de identificação de todos eles: a “colcha” jamais poderá ser reconstruída, pois a não-linearidade do hipertexto faz com que cada lei-tura na internet seja única e irreprodutível. Além disso, com a internet, a disseminação dos resultados das pesquisas tornou-se menos dependente dos periódicos, estejam eles on-line ou não. Cientistas podem, por exemplo, publicar seus trabalhos em sites pessoais ou blogs, sem precisar da aprovação de conselheiros e consultores.

A comunicação informal tem importante papel na comunicação científica e a internet pode favorecer a troca de experiências e a colaboração entre cientistas, conferindo maior agilidade às interações, rompendo as barreiras da distância e mesmo dissolvendo hierar-

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quias. As comunidades virtuais de pesquisa – redes eletrônicas de comunicação interativa envolvendo cientistas com interesses comuns – configuram-se como “a nova arena para produção, circulação e apropriação de sentidos” (MACHADO e REIS, 2007). Essas comuni-dades, portanto, constituem mais um grande desafio para historiadores da ciência.

Outro desafio se refere às fontes biográficas, em relação às quais “deve-se atentar para os condicionamentos sociais do biografado, o grupo ou grupos em que atuava, enfim, todas as redes de relações pessoais que constituíam seu dia-a-dia” (BORGES, 2010). Essa lição pode e deve ser levada para o campo da internet e das redes sociais que nela se estabelecem. Se um pesquisador mantém um perfil no Orkut, pode-se investigar as comunidades a que ele pertence, quem são seus “amigos”, as mensagens trocadas etc. Se o pesquisador mantém uma conta no Twitter, pode-se verificar quem ele “segue” e quem são seus “seguidores”, que tipo de informação rápida ele compartilha etc.

A internet pode subverter até a história oral. O ciberespaço possibilita a realização de entrevistas bastante diferenciadas, por exemplo, através de chats. Imagine que um cientista seja convidado a apresentar sua pesquisa num chat. Todos os internautas que “entram” na sala virtual de bate-papo são entrevistadores em potencial. Todos podem “falar” com todos ao mesmo tempo. Eles podem manter diálogos paralelos e fugir da temática inicial-mente proposta. Devido à falta de ordenação, o documento eletrônico resultante de um chat será distante de um diálogo normal e parecerá desprovido de sentido, com muitas lacunas informativas. Mas não se pode negar que os chats exemplificam bem a polifonia característica da internet, em oposição ao antigo monólogo da autoridade. Diferentes vo-zes ganham visibilidade no ciberespaço. Munida de um aparelho de celular com câmera e de um computador com acesso à internet, qualquer pessoa pode gravar um vídeo caseiro e publicá-lo no Youtube.

Historiadores, com freqüência, advertem que uma pesquisa não deve se basear em um único tipo de fonte e que a combinação de diferentes fontes tende a produzir resultados mais consistentes. Essa recomendação certamente também se aplica ao uso das novas fon-tes, mas os historiadores ainda não sabem exatamente como abordá-las e precisam adaptar ou criar metodologias para o estudo dos novos documentos. Tão ou mais urgente do que isso é o desenvolvimento de estratégias que assegurem a preservação desses novos docu-mentos, que têm sido descritos como efêmeros, temporários, mutáveis, voláteis, instáveis etc. Esse problema já começou a ser discutido por entidades como Unesco e Conarq. Além disso, tão importante quanto a preservação é a gestão de eliminação de documentos digi-tais. Arquivos digitais podem ser facilmente deletados, mas também é grande o risco de ficarem guardados sem necessidade, gerando um acúmulo de “lixo” eletrônico.

Considerando-se que as novas tecnologias de informação e comunicação fazem parte do cotidiano das redações jornalísticas, então, talvez, o diálogo com os jornalistas poderia ajudar os historiadores a se aproximarem das novas fontes. O ciberespaço é um lugar onde, além de circularem notícias, os jornalistas fazem levantamento de pautas, pesquisa e apu-ração. “O que a imprensa descobriu é algo que as agências de empregos já descobriram faz tempo: em se tratando de jovens nessa faixa etária [30 e poucos anos], uma busca no Google vale muito mais do que levantar a ficha na Polícia Federal” (ALMEIDA, 2004).

As novas tecnologias afetaram toda a produção jornalística. Com a internet, emergi-ram novas fontes históricas, assim como novas fontes jornalísticas – os repórteres, cada vez mais, não se limitam a ouvir especialistas e fontes oficiais. “A novidade do jornalismo digital reside no fato de que, quando fixa um entorno de arquitetura descentralizada, altera a relação de forças entre os diversos tipos de fontes porque concede a todos os usuários o status de fontes potenciais para os jornalistas” (MACHADO, 2002).

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Entretanto, a rotina acelerada do jornalista traz limitações importantes, como o risco de uso pouco criterioso e superficial das novas fontes, sem contextualizá-las nem cruzá--las com outros documentos. Outro problema é que, com acesso fácil a um leque ampliado de fontes no ciberespaço, o jornalista pode acabar se descuidando e negligenciar as fontes clássicas. Ressalta-se, ainda, que o método do jornalista não necessariamente segue a lógi-ca da reprodutibilidade – se um repórter concorrente tentar produzir matéria similar e não conseguir, por falta de acesso às fontes, isso pode até ser encarado como vantagem. Mesmo assim, guardadas as devidas diferenças e especificidades de cada profissão, um diálogo mais próximo entre jornalistas e historiadores poderia ser proveitoso para ambos.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Alexandre Cruz. A imprensa descobre o Orkut. Observatório da Imprensa, 3/8/2004, http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=288ENO001, acesso 31/10/2010.

BORGES, Vavy Pacheco. Fontes Biográficas: Grandezas e misérias da biografia. IN: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2010.

KARNAL, Leonardo e TATSCH, Flavia Galli. Documentos e História: A memória evanes-cente. IN: PINSKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tania Regina de (orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

MACHADO, Elias. O ciberespaço como fonte para os jornalistas. Biblioteca On-line de Ci-ências da Comunicação, 2002, http://www.bocc.uff.br/pag/machado-elias-ciberespa-co-jornalistas.pdf, acesso 31/10/2010.

MACHADO, Rejane e REIS, Maria Elisa Andries dos. Comunidade virtual de pesquisa: nova arena da comunicação científica. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, jul-dez 2007.

SALIBA, Elias Thomé. Pequena história do documento: Aventuras modernas e desventuras pós-modernas. IN: PINSKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tania Regina de (orgs.). O his-toriador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

SILVA, Maria Celina Soares de Mello e e REGO, Vera Lúcia da Ascenção. Preservação de correspondência: o e-mail em laboratórios científicos e tecnológicos. Arq. & Adm., Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, jan./jun. 2007.

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O que é ciência para o jornalismo científico?

Maria Fernanda Marques Fernandes (doutoranda HCTE/UFRJ, [email protected])

O objetivo principal deste trabalho é identificar, à luz da filosofia, as visões de ciên-cia apresentadas pela revista Ciência Hoje e pelo jornal O Globo. Foram analisadas cinco edições de Ciência Hoje (de janeiro-fevereiro a junho de 2009) e 30 edições da editoria de ciência de O Globo (de 1º a 30 de junho de 2009).

Uma visão indutivista ingênua está presente em várias matérias jornalísticas. “De acordo com o indutivismo ingênuo, a ciência começa com a observação. O observador científico deve ter órgãos sensitivos normais e inalterados e deve registrar fielmente o que puder ver, ouvir etc. em relação ao que está observando, e deve fazê-lo sem preconceitos” (CHALMERS, 1993).

Para exemplificar essa visão, pode-se citar a matéria O melhor negócio do mundo para viver bem, publicada em 21 de junho em O Globo. O texto afirma, baseado no resultado de um experimento dito científico, que praticar 20 minutos de pedalada rende 12 horas de bom humor. O experimento que gerou tal conclusão comparou 24 pessoas que faziam bicicleta ergométrica com 24 pessoas que não praticavam atividade física. Ou seja: a partir do que foi observado para um grupo de 48 pessoas, os cientistas – e também os jornalistas que dão voz para esses cientistas no jornal – preveem que qualquer indivíduo pode ter 12 horas de bom humor se fizer 20 minutos de pedalada.

Karl Popper é um dos críticos do indutivismo. Segundo Popper, não importa quantas corroborações uma teoria científica consiga: ela nunca estará imune à falsificação, sendo sempre logicamente possível que, no futuro, ela não seja confirmada. Por isso, Popper é um falsificacionista. Para ele, na origem, as teorias não precisam ser totalmente racionais e podem envolver certa dose de intuição e especulação. Contudo, devem ser rigorosamente testadas por observação e experimentação. As teorias que não resistem aos testes são eli-minadas por refutação. As que resistem, embora não possam ser consideradas verdadeiras, constituem as melhores explicações disponíveis até aquele momento, mas, posteriormente, podem ser também refutadas e substituídas por teorias melhores. No sentido de Popper, se um enunciado não for falsificável, ele não é científico.

A visão de Popper pode ter uma aproximação com o jornalismo: se um cientista anun-cia resultados que corroboram uma teoria existente, não há interesse jornalístico, pois não há novidade – numa concepção popperiana, corroborações podem ocorrer aos montes e mesmo assim não se poderá dizer que a teoria é absolutamente verdadeira; porém, se um cientista anuncia que refutou uma teoria, há interesse jornalístico, pois há novidade.

A matéria Biodiversidade em sistemas agrícolas, da edição de março de Ciência Hoje, ilustra essa concepção popperiana da ciência. Diz o texto: “Ao contrário do que se pensava,

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a biodiversidade em regiões de cultura agrícola é muito rica. A revelação tem como base uma série de levantamentos realizados [...] na região da bacia do rio Pardo, no nordeste do estado de São Paulo. Foram registradas e identificadas mais de 200 espécies de animais silvestres em áreas que abrangiam estritamente locais de lavoura”. Segundo a matéria, portanto, a hipóte-se de que regiões de cultura agrícola têm uma pobre biodiversidade foi falsificada a partir de observação.

As conjecturas audaciosas também aproximam a visão de Popper e o jornalismo. “Porque a ciência visa teorias com um amplo conteúdo informativo, o falsificacionista dá boas-vindas à proposta de conjecturas audaciosas. Especulações precipitadas devem ser en-corajadas, desde que sejam falsificáveis e desde que sejam rejeitadas quando falsificadas” (CHALMERS, 1993).

Considerando-se que o jornalismo está em busca de novidades, se estas parecerem fan-tásticas ou exóticas, mais atrativas ainda serão – afinal, entreter também é uma função do jornalismo científico. Nesse sentido, pode-se citar a matéria A ressonância de uma paixão revela a bioquímica do amor, publicada em O Globo em 14 de junho: ao destacar o papel decisivo dos hormônios na aproximação de casais e na manutenção de relacionamentos duradouros, lança a conjectura audaciosa de que um exame de sangue pode indicar o par-ceiro ideal.

Exemplo similar é a matéria Ciência do amor. Por que não?, da edição de janeiro-fe-vereiro de Ciência Hoje: ao sugerir o estudo dos processos neurais e genéticos do amor, propõe a conjectura audaciosa de que, no futuro, possam existir drogas que aumentem ou diminuam este sentimento em relação ao próximo.

Distanciando-se da visão de Popper, uma teoria refutada e abandonada pela maioria da comunidade científica pode encontrar adeptos que a mantém viva. Casos como este também têm repercussão no jornalismo científico, conforme ilustra a coluna Sintonia fina da edição de maio de Ciência Hoje. O tema é a fusão nuclear a frio: “Se há um assunto na ciência que se recusa a morrer é a fusão nuclear a frio. Quando se acha que ela recebeu a úl-tima bordoada dos opositores e dos experimentos, renasce vigorosamente da UTI das críticas. [...] No último encontro da Sociedade Norte-americana de Química, em março passado, ei-la de volta – ah, sim! [...]”.

A coluna sobre fusão nuclear a frio se refere a críticas oriundas “dos opositores e dos ex-perimentos”. Em outras palavras, o julgamento de uma teoria se baseia não só nas evidên-cias científicas e na razão, mas também na motivação dos opositores, o que inclui aspectos subjetivos. Essa discussão, de certa forma, remete às ideias de Thomas Kuhn. “A mudança de adesão por parte de cientistas individuais de um paradigma para uma alternativa incom-patível é semelhante, segundo Kuhn, a uma ‘troca gestáltica’ ou a uma ‘conversão religiosa’. Não haverá argumento puramente lógico que demonstre a superioridade de um paradig-ma sobre outro e que force, assim, um cientista racional a fazer a mudança” (CHALMERS, 1993).

Uma definição de paradigma é um conjunto de suposições teóricas gerais, leis, técni-cas, crenças, valores e compromissos compartilhados, em um determinado período, pe-los membros de uma comunidade científica. Estes membros vão articular o paradigma para acomodá-lo aos resultados das experiências e desenvolvê-lo para explicar aspectos do mundo. Enquanto fazem isso, os cientistas realizam o que Kuhn chama de ciência normal. Ao praticarem a ciência normal, os cientistas vão encontrar dificuldades para enquadrar a natureza dentro do paradigma, mas, com uma atitude majoritariamente conservadora, privilegiarão o que fortalece o paradigma e não aquilo que o contraria. No entanto, pode ocorrer de as dificuldades fugirem do controle, gerando uma crise e abalando a confiança

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que os membros da comunidade científica têm no paradigma. A crise é resolvida quando emerge outro paradigma, este atrai um número crescente de adeptos entre os cientistas e passa a ser o novo modelo que norteará o desenvolvimento da ciência normal. Entre um período de ciência normal e o seguinte, ocorre uma fase de ciência extraordinária, uma etapa de transição que Kuhn denomina revolução científica – um momento marcado pela emergência de anomalias e crise no paradigma vigente, culminando com sua ruptura e substituição por um paradigma diferente.

O jornalismo científico costuma divulgar revoluções científicas, mas, no jornal e na revista, estas não têm o mesmo sentido proposto por Kuhn. Na edição de março de Ciên-cia Hoje, um dos artigos afirma: “Apanhe seu lápis favorito e comece a escrever, escrever..., rabisque e não apague. Pegue uma fita adesiva, coloque-a sobre os riscos e remova-a, cuida-dosamente. Grudado nela, estará um material muito valioso e que poderá revolucionar toda a eletrônica: o grafeno, o mais novo membro de uma distinta família que inclui a grafite, os nanotubos de carbono e o famoso e eterno diamante. O grafeno nasce com um currículo res-peitável de aplicações tecnológicas. E, talvez, seja útil em áreas que nem mesmo existam no momento em que este artigo está sendo escrito”. Em O Globo, uma matéria de 15 de junho relata que vários centros nos Estados Unidos estão pesquisando materiais programáveis capazes de assumir qualquer forma – até de seres humanos. De acordo com o texto, os objetos assim produzidos “apontam para um futuro ainda mais revolucionário”.

Se esses eventos, da forma como são descritos nas matérias, constituíssem revoluções na ciência dos materiais, então a comunidade dos cientistas de materiais estaria em cons-tante busca do extraordinário – o que contraria a visão de Kuhn. Embora várias matérias banalizem o conceito de revolução científica, outras se alinham com o pensamento de Kuhn e descrevem os pesquisadores como defensores da ciência normal. No jornalismo, essa defesa aparece, geralmente, sob a forma de uma controvérsia que surge e é resolvida dentro da própria ciência. Um exemplo é o artigo Hipertermia maligna, publicado em ju-nho em Ciência Hoje. A matéria explica que a anestesia – um fruto do desenvolvimento tecnocientífico no âmbito da medicina – pode causar reações adversas e provocar um qua-dro chamado de hipertermia maligna. Contudo, paralelamente, o texto também destaca que já existe um medicamento para controlar o problema, bem como novas drogas estão sendo criadas. Ou seja: em vez de buscarem alternativas radicalmente diferentes para a anestesia (revolução científica), os pesquisadores defendem remédios que controlem as reações adversas (ciência normal).

Paul Feyerabend, por sua vez, defende que “a ciência deveria ser ensinada como uma concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a realidade” (FEYE-RABEND, 2007). O autor, portanto, discordaria de várias matérias que colocam a ciência como “o único caminho para a verdade”. Na edição de janeiro-fevereiro de Ciência Hoje, um artigo examina a astrologia sob o ponto de vista da ciência, com o intuito de demons-trar que é a astronomia que tem as respostas corretas. Diz o texto: “Astrônomos devem se pronunciar sempre que a ocasião for adequada para mostrar as falhas da astrologia sob o ponto de vista científico e encorajar um interesse no cosmo real”.

Embora haja várias matérias que destacam a superioridade da ciência, também não é difícil encontrar exemplos que ressaltam a complementaridade entre os conhecimen-tos científico e popular, como um artigo sobre o guaraná na edição de março de Ciência Hoje. Diz o texto: “A grande importância socioeconômica e medicinal dessa planta atraiu o interesse de pesquisadores, que comprovaram cientificamente, nas últimas décadas, várias propriedades já registradas no conhecimento indígena tradicional, e estudos decifram as ca-racterísticas genéticas da espécie”.

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Existem, ainda, matérias que discutem as limitações e controvérsias da ciência. Na edi-ção de maio de Ciência Hoje, por exemplo, um artigo denuncia a produção de “sementes suicidas”, que são geradas por engenharia genética e dão origem a plantas cujas sementes serão inférteis. O artigo define as sementes suicidas como “coisas escabrosas” e faz um alerta sobre como este produto da tecnociência pode levar à concentração de renda, assim como à perda de autonomia e ao empobrecimento dos agricultores.

As duas posições extremas – a defesa da superioridade da ciência em relação a outras formas de conhecimento e a crítica das limitações e controvérsias científicas – são mais comumente encontradas em Ciência Hoje do que em O Globo. Muitas das matérias do jor-nal, por sua vez, abordam aspectos curiosos da pesquisa científica, o que inclui um estudo que compara o tubarão branco com um serial killer e um trabalho que monitora pinguins a partir de imagens por satélite dos excrementos dos animais. Nestas matérias, a utilidade da pesquisa parece menos relevante do que seus aspectos exóticos.

Foi possível notar que Ciência Hoje e O Globo não apresentam uma única visão ou uma visão uniforme do que seja a ciência, isto é, a concepção de ciência varia de uma matéria para outra, inclusive dentro de um mesmo veículo, o que pode ter impacto sobre os leito-res. Embora seja expressivo o número de brasileiros convencidos de que a ciência é feita por cientistas comprometidos com o bem-estar da humanidade, um grupo não desprezível reconhece que a ciência não é neutra. Se um percentual significativo se interessa por ciên-cia, um percentual similar é atraído por arte e cultura e um percentual maior ainda quer saber sobre religião, mostrando que a sociedade articula diferentes saberes.

Referências Bibliográficas

CHALMERS, Alan F. O que é ciência afinal? São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.

FEYERABEND, Paul K. Contra o método. São Paulo: Editora Unesp, 2007.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

Percepção Pública da Ciência e Tecnologia. MCT, 2007, www.mct.gov.br/upd_blob/0013/13511.pdf.

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O eterno retorno da incerteza

Maria Inês Accioly (doutora em Comunicação pela ECO/UFRJ, [email protected])

Ricardo Kubrusly (professor do HCTE/UFRJ, [email protected])

Nietzsche foi um crítico impiedoso da ciência moderna cujo pensamento, embora des-considerado pelos cientistas do seu tempo, sobreviveu a eles. Isto pode ser interpretado como um indício de que sua filosofia já captava os sinais da quebra de paradigma científico que ocorreria na aurora do século XX. Na segunda metade do século XIX, a configuração epistemológica que respaldava a separação radical entre ciências humanas e ciências da natureza começou a se tornar insustentável, e Nietzsche surgiu como um dos arautos da falência desse projeto.

O presente texto procura situar a “filosofia com martelo” praticada por Nietzsche no contexto da emergência do paradigma da complexidade e simultâneo declínio do para-digma mecanicista dominante na ciência desde Galileu. O mecanicismo e seus modelos simplificados do homem e do mundo, que prometiam o fim dos mistérios da natureza, fo-ram alvos explícitos do bombardeio nietzscheano, como se pode depreender das seguintes digressões:

Profunda aversão a descansar de uma vez por todas em qualquer con-sideração de conjunto sobre o mundo; encanto das maneiras de pen-sar opostas; não deixar que nos tirem o atrativo do caráter enigmático. (NIETZSCHE, 2008, p. 256)O desenvolvimento da ciência dissolve sempre mais o conhecido em um desconhecido. Ela quer, porém, justamente o inverso e parte do instinto de reconduzir o desconhecido ao conhecido. (ibid, p. 314)

Ao contrário do modelo mecanicista, o paradigma da complexidade parece compatível com uma perspectiva trágica do conhecimento (ACCIOLY, 2010). Isto implica acolher a idéia de uma cisão inelutável entre o sensível e o inteligível, e por extensão a idéia da impossibilidade de uma síntese resolutiva e definitiva da experiência. Tal perspectiva está presente em Nietzsche, por exemplo, na dupla afirmação da necessidade e do acaso, ex-pressa na alegoria do jogo de dados, e no elogio da potência do falso como estratégia de ataque à rigidez da lógica clássica e das verdades científicas.

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A complexidade na filosofia trágica

Ao questionar a tradicional atitude da ciência moderna de contrapor a necessidade (ou determinação) ao acaso, Nietzsche contribui para o entendimento das propriedades para-doxais dos sistemas dinâmicos complexos, dentre os quais se destacam os assim chama-dos “sistemas auto-organizadores”. A concepção de Maturana e Varela (2001) da cognição humana como um sistema autopoiético, que explora uma vertente da teoria dos sistemas auto-organizadores, define o nosso aparelho neurofisiológico como operacionalmente fe-chado e estruturalmente aberto. Fechado e autônomo quanto a suas regras de organização, que são internas a ele; aberto e interdependente na sua organização concreta, passível de modificações a partir da interação recursiva com o ambiente, esse sistema, paradoxalmen-te, só pode manter sua autonomia na medida em que se abre e só pode manter uma relação com o meio na medida em que se fecha.

Outra contribuição relevante à construção da teoria da auto-organização, e que tam-bém remete a uma ligação complexa entre determinação e acaso, é a noção de “ruído or-ganizador” de Atlan (1992). Segundo esse autor, um sistema auto-organizador não apenas tem aptidão para reagir a perturbações aleatórias que afetam sua organização, visando a preservar sua integridade, como é capaz de integrá-las modificando a si mesmo num sen-tido que lhe seja benéfico. O sistema auto-organizador joga com o aleatório. Mais do que simplesmente se adaptar ao acaso, ele o deseja. Nas palavras de Dupuy (1993, p. 113), sua autonomia entra em “sinergia com o que pode destruí-la [...] É sempre uma autonomia em risco, dilacerada e distante dela mesma”.

O que o jogo nietzscheano alegorizado na cena do lance de dados nos apresenta é, pre-cisamente, em vez de uma concepção excludente uma perspectiva complexa da relação en-tre necessidade e acaso, entre determinação e indeterminação, entre o ser e o devir. Forças que se entrechocam e se combinam. Os dados lançados afirmam o acaso, e a combinação que formam ao cair afirma a necessidade (o destino, a determinação). Para Nietzsche, a dupla e simultânea afirmação da necessidade e do acaso é que produz o lance vencedor e renova a chance do jogador.

Complexus designa uma conjunção - algo entrelaçado, tramado “junto”. O paradigma científico da complexidade acolhe – ou mais, privilegia - esses emaranhamentos operados a partir de potências irredutivelmente distintas e até antagônicas. Segundo Morin (2007, p.13), a complexidade coloca o paradoxo do uno e do múltiplo: “ela é o tecido de aconteci-mentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mun-do fenomênico”.

Morin sistematizou o pensamento da complexidade em três princípios básicos – o dia-lógico, o da recursividade e o hologramático. Pelo menos os dois primeiros estão inequi-vocamente presentes na filosofia de Nietzsche. O princípio dialógico permite pensar uma relação de complementaridade entre termos antagônicos; e o da recursividade, definida como uma função que se aplica sobre si mesma no decorrer de um processo, permite pen-sar relações de causalidade numa perspectiva não clássica, não linear. Um exemplo típico de recursividade é o próprio processo de auto-organização - simultaneamente efeito e ins-trumento das interações do sistema com o meio.

A interdependência de forças antagônicas que o pensamento complexo permite conce-ber é uma idéia recorrente no pensamento de Nietzsche, a exemplo do seguinte aforismo:

Do objetivo da ciência - Como? O objetivo último da ciência é propor-cionar ao homem o máximo de prazer e o mínimo de desprazer possí-

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veis? E se prazer e desprazer forem de tal modo entrelaçados, que quem desejar o máximo de um tenha de ter igualmente o máximo do outro – que quem quiser aprender a “rejubilar-se até o céu” tenha de preparar-se também para “estar entristecido de morte”? (NIETZSCHE, 2001, p. 63)

As limitações da noção clássica de causalidade, em grande parte responsável pelo rí-gido determinismo da ciência moderna, também não lhe passaram despercebidas, senão vejamos:

Dois estados que se sucedem, um sendo uma causa e o outro um efei-to - é falso. O primeiro estado não tem nada a efetuar, nada efetuou o segundo. Trata-se de uma luta de dois elementos desiguais em poder: alcança-se um novo arranjo das forças, sempre segundo a medida de po-der de cada um. O segundo estado é algo fundamentalmente diverso do primeiro (não seu “efeito”): o essencial é que os fatores que se encontram em luta saem com outras quantidades de poder (id, 2008, p. 323)

A recursividade é um elemento fundamental, também, para o entendimento da noção nietzscheana de “eterno retorno”. Diferente da circularidade, que pressupõe o retorno ao lugar de origem e conseqüentemente a repetição do mesmo, a recursividade compreende simultaneamente as idéias de repetição (ciclo) e mudança (curso). O que se repete num processo recursivo é uma função, e não uma trajetória - assim como no jogo, em que a re-petição está no lance de dados e não na combinação resultante; e onde a determinação da regra se entrelaça com os acasos da sorte (ou azar), produzindo sempre novas surpresas.

[...] jogo de forças e ondas de força, ao mesmo tempo uno e vário [...] um mar em forças tempestuosas e afluentes em si mesmas, sempre se modificando, sempre refluindo [...] com vazante e montante de suas configurações, expelindo das mais simples às mais complexas, do mais calmo, mais inteiriçado, mais frio ao mais incandescente, mais selvagem [...] abençoando a si mesmo como aquilo que há de voltar eternamente, como um devir que não conhece nenhum tornar-se satisfeito, nenhum fastio, nenhum cansaço. (NIETZSCHE, 2008, p. 512

Entre a identidade e a diferença, o indecidível

Nietzsche (2001, p. 15) zombou da pretensa objetividade da verdade científica moder-na, por exemplo na seguinte afirmação: “já não cremos que a verdade continue verdade quando se lhe tira o véu”. Elogiou a potência do falso e da aparência, e postulou que a von-tade de verdade atribuída ao homem moderno é ínfima diante da sua vontade de poder. Mais que isso, Nietzsche questionou o próprio princípio da identidade, constituinte da lógica clássica e indispensável à produção das verdades científicas modernas:

A tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é realmente igual - foi o que criou todo fundamento para a lógica. Do mesmo modo, para que surgisse o concei-to de substância, que é indispensável para a lógica – embora, no sentido

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mais rigoroso, nada lhe corresponda de real – por muito tempo foi pre-ciso que o que há de mutável nas coisas não fosse visto nem sentido; os seres que não viam exatamente tinham vantagem sobre aqueles que viam tudo “em fluxo”. (ibid, p. 139)

Até o final do século XIX a ciência ainda ancorava sua produção inteiramente nos prin-cípios da lógica clássica: identidade, não contradição e terceiro excluído. Mas esse quadro mudou quando o experimentalismo se voltou para os estranhos fenômenos ocorridos na escala espaço-temporal da física quântica, que mudavam conforme a situação do obser-vador e vieram desafiar, um a um, os três princípios sagrados. O primeiro princípio, o da identidade, foi simplesmente posto de lado depois que evidências experimentais da paradoxal dualidade partícula-onda foram assimiladas ao corpo teórico da física, e em decorrência disso os demais princípios tiveram que ser relativizados. No entanto, parado-xalmente, a mecânica quântica refugia-se nos cálculos e teoremas da Análise Funcional e, portanto, na solidez das matemáticas “tradicionais” com seus três princípios inabalá-veis. Inabaláveis? No processo de emergência do paradigma da complexidade, o terreno da lógica se ampliou com o surgimento de lógicas não clássicas equipadas para lidar com a contradição e a indeterminação, respectivamente denominadas paraconsistentes e para-completas.

Sampaio (2001) concebe o intelecto humano dotado de uma lógica da diferença tão fundamental na produção do conhecimento quanto a lógica da identidade, porém mais receptiva à indeterminação e ao paradoxo. Segundo ele, enquanto a estrutura algébrica da lógica da identidade é binária, formada pelo par 1 e 0, aos quais correspondem respecti-vamente os valores de verdade “ser” e “nada”; a lógica da diferença tem uma estrutura ter-nária formada por 1, 0 e -1, onde 1 e -1 correspondem à dualidade simétrica “verdadeiro--falso” e 0 é o indeterminado. “O pensar de que trata a lógica da diferença é um pensar visceralmente cambiante, de modos extremos que se recusam a um compromisso ou a encontrar um ponto de equilíbrio”, afirma Sampaio (ibid, p. 41).

O alargamento do espaço da lógica durante o século XX foi provocado não apenas pelos achados da física experimental, mas também por questões suscitadas no próprio campo da lógica matemática. O teorema da incompletude de Gödel (apud KUBRUSLY, 2003) provou a impossibilidade lógica de um sistema formal suficientemente complexo – um modelo teórico, por exemplo - ser ao mesmo tempo consistente, isto é, livre das con-tradições interditadas pelo segundo princípio da lógica clássica; e completo, portanto livre dos indecidíveis proibidos pelo terceiro princípio. Entre a consistência e a completude, a disjunção é radical. Um modelo só pode garantir sua consistência recorrendo a outro mo-delo para selar sua completude. Assim infinitamente. Com crueza matemática, o teorema de Gödel mostrou, entre outras coisas, que a recursividade é uma condição inescapável da linguagem e temperou o pragmatismo da matemática com um discreto - porém indelével - sabor trágico.

Conclusão

O motor da atividade científica é (ou deveria ser) a pergunta – portanto, a incerteza. A filosofia de Nietzsche contém o germe da maneira de pensar característica do paradigma da complexidade, que infundiu na ciência, após três séculos de busca insaciável de cer-tezas, o interesse pelo incontrolável devir. O pensamento trágico aplicado à ciência não

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somente contribui para a compreensão da articulação complexa entre potências díspares nos seus objetos de estudo como também permite ver traços de complexidade nas próprias forças que movem a produção do conhecimento: entre realismo e idealismo a ciência pode, em última instância, acolher ambos, convertendo a problemática certeza da objetividade no imperativo trágico, inelutável e incessante da objetivação.

Notas

1 A teoria da auto-organização considera o sistema cognitivo humano como um siste-ma auto-organizador, distinto dos sistemas meramente auto-organizados – autômatos, por exemplo – pela sua capacidade intrínseca de criação de ordem.

2 Resumidamente, o princípio da identidade estabelece que uma entidade é idêntica a si mesma – é o que permite afirmar “eu sou eu mesmo”; o da não contradição impede que uma afirmação seja verdadeira e falsa (o paradoxo); e o do terceiro excluído impede que haja uma terceira possibilidade além do verdadeiro e do falso (o indecidível).

3 Refiro-me especialmente ao Princípio da Incerteza de Heisenberg, segundo o qual não se pode medir com precisão, simultaneamente, a velocidade e a posição de uma partícula. A medição precisa de cada uma dessas grandezas implica imprecisão na medição da outra.

Referências

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A Comissão Rondon como inspiração

Mariah dos Santos MartinsVinculação acadêmica: Mestranda HCTE

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Os livros, publicações, cartas e outros diversos tipos de textos têm sido, ao longo de nossa história, materiais primordiais à produção historiográfica. A História da Ciência tem se debruçado também na ampla produção textual científica e filosófica como materiais primeiros a seus estudos. Contudo, nesse trabalho, buscamos além de utilizar a documen-tação textual como fonte primária, compreendê-la, também, como representação de uma prática (CHARTIER, 1988). Dessa maneira entendemos ser o texto a representação (que é uma produção) de uma prática (no caso a escrita), assim como essa prática é também uma prática de representação (CHARTIER, 1988).

Compreendo assim que as categorias utilizadas por teóricos como Roger Chartier, Pierre Bourdieu, e Norbert Elias, são atualmente a melhor maneira de pensar (enquanto um historiador que faz alianças com áreas como a sociologia e antropologia) a história das práticas letradas. Proponho-me assim, a analisar gêneros letrados distintos, produzidos por um mesmo autor, autor esse participante do campo das ciências no Brasil, na busca de compreender a construção dessas letras e o sentido buscado pelo autor para as mesmas, obviamente sem relegar a experiência que as motivou, a Comissão Rondon.

Um zoólogo, de um museu, para uma comissão

A Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTE-MA), que ocorreu durante os anos de 1907 a 1915, chefiada por Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), além de possibilitar um sem número de produções historiográficas tanto sobre suas atividades como sobre seu chefe, também foi assunto de diversas produ-ções, científicas ou não, autobiográficas ou jornalísticas, daqueles que ouviam e também dos que viviam.

É no meandro daqueles que viviam essa experiência que esse estudo vai ganhando es-copo, pois é nesse instante que a figura de Alípio de Miranda Ribeiro (1874-1939), nosso autor, surge. Miranda Ribeiro era zoólogo, funcionário do Museu Nacional da cidade do Rio de Janeiro, sediado desde 1892 no Paço de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista. Na época de seu convite a integrar uma comissão científica da comissão conhecida como Co-missão Rondon, em 1907, ocupava o cargo de secretário do distinto museu. Em algumas

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documentações obtivemos a informação de que Ribeiro foi o chefe dessa “Comissão de História Natural” criada por Rondon para que se dedicassem exclusivamente ao conheci-mento e coleta do material científico existente nas áreas que a Comissão Rondon percorria, apresentando assim mais uma atividade que essa comissão se propôs.

Alípio de Miranda Ribeiro foi o zoólogo da Comissão Rondon durante os anos de 1908 e 1909, retornando ao Rio de Janeiro no início de 1910. Contudo Miranda Ribeiro con-tinuou trabalhando ativamente já que além de indicar nomes para os cargos concernes à comissão de história natural, o Museu Nacional foi depositário dos espécimes coligidos na Comissão, produzindo diversas publicações científicas a cerca do material zoológico em especial.

Entretanto, outras produções desse zoólogo nos chamaram a atenção, e as duas tem a Comissão Rondon como experiência inicial.

Um diário

Alípio de Miranda Ribeiro produz um diário de campo, a partir de sua viagem como zoólogo da Comissão Rondon, intitulado “Ao redor e atravez do Brasil”. Apesar da publica-ção de alguns trechos do diário em periódicos, o mesmo não é publicado de forma integral. O que se tem é um encadernado datilografado compreendendo o início da viagem até os primeiros meses do ano de 1909, além de cadernetas e cadernos de campo manuscritos so-bre o restante da viagem do zoólogo. Compreendemos ser esse diário uma obra pelas claras intenções autorais que contém. O capítulo inicial é chamado “Aos leitores”, apresentando sua intenção em publicá-lo. Seguidamente, os capítulos se dividem pelas áreas que per-correram “Corumbá”, “Excursão à Jacobina”, “Potreiro das Anhumas”, “Tapirapoan” e etc. Buscamos analisar a cima de tudo três aspectos que entendemos estruturar a narrativa de um diário de viagem. São eles: o aspecto iniciático, que se refere ao caráter autobiográfico da narrativa de um diário, as representações sobre aquele corpo que sente as experiências de uma viagem ao interior do Brasil, um interior pouco conhecido e nada explorado; o segundo é o aspecto do inventário, referente à justificativa primeira de sua presença na comissão, o inventário técnico-científico, quando fala dos espécimes que vê, como são, locais de coleta e seus comportamentos; e por último o comentário, aspecto esse bastante encontrado ao longo da obra. Sem muitas limitações o zoólogo faz digressões, trava com-parações, desabafa o cansaço e a indignação, além de expressar os signos mais poéticos de sua narrativa.

Dessa maneira, observamos a estrutura de um diário, uma obra que permite um ho-mem da ciência divagar sobre a sociedade ou sobre a natureza num mesmo espaço, esses três aspectos se misturam durante toda a narrativa, permitindo essa flexibilidade dentro do gênero do diário. Compreendemos primordialmente que o diário de campo é a repre-sentação do Brasil para o zoólogo que trava comparações entre a sociedade brasileira e sociedades sul-americanas, como a argentina, para construir sua representação de Brasil, assim como compara os brasileiros e suas produções à natureza brasileira, que, a seu ver, é o belo do país, digno de poesia, não considerando o mesmo do homem brasileiro.

Miranda Ribeiro utiliza-se ainda dessa produção para construir sua identidade en-quanto naturalista, concretizando a importância de uma viagem como essa a um natu-ralista, sendo o diário a materialização dessa experiência e a sua representação de Brasil.

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Uma publicação

Assim como foi possível compreender a importância da viagem, física e mental, possi-bilitada pela comissão na análise do diário de viagem de Miranda Ribeiro, outro material nos chamou atenção no arquivo do zoólogo: a publicação nº49 da CLTEMA, que se refere à conferência ocorrida no ano de 1916 no Museu Nacional, com o intuito de homenagear o então Coronel Rondon, que acabara de finalizar as atividades de sua comissão. Proposta essa feita por Edgard Roquette-Pinto, antropólogo do Museu Nacional e também da co-missão, a Alípio de Miranda Ribeiro.

O título da publicação é “A Comissão Rondon e o Museu Nacional”, que se estrutura a partir de três conferências. A primeira, “Trabalhos da Comissão Rondon no Campo das Sciencias Naturais”, onde são apresentados os nomes dos participantes, no campo das ci-ências naturais, da Comissão Rondon, durante todos os anos que as atividades científicas aconteceram (1907-1915). Além da análise e estatística acerca do que se publicou até o momento com o material coligido na comissão em cada uma das áreas; botânica, geologia e mineralogia, zoologia e antropologia.

A segunda conferência “O Museu Nacional segundo dados oficiais e oficiosos” apresen-ta-se como um dos tópicos principais dessa publicação, apesar de ter inicialmente a justi-ficativa de uma homenagem, o trabalho é utilizado como meio para um olhar mais atento ao Museu Nacional, o que tem sido feito nele e dele. Interessante é perceber as estratégias utilizadas pelo autor para se falar de assunto tão delicado como a crítica da administração da instituição. Dessa forma, Miranda Ribeiro inicia essa conferência travando a analogia entre as relações de pais e filhos, e a sua com o Museu. Fala do amor entre pais e filhos e do momento conturbado quando o filho cresce e deseja tomar decisão precipitadas, levado pelo impulso juvenil, descartando os conselhos paternos e maternos. Assim, faz sua crítica ao Museu, que tem muito carinho apesar de sua sinceridade rígida, que se faz necessária nesse momento. Segue fazendo um apanhado estatístico dos materiais existentes até o mo-mento em cada uma das seções do Museu Nacional agraciadas pela comissão. Analisa ain-da o histórico da instituição, desde sua constituição, privilegiando as informações acerca dos materiais e coleções adquiridas.

A terceira e última conferência intitulada “O que os governos fazem do museu; - o que ele deve ser, - a lição de Rondon” na qual, também de maneira inusitada, Miranda Ribeiro inicia seu discurso trazendo um poema de Virgílio, Geórgicas, livro II, onde o tema dos cuidados para que uma plantação floresça bem é desenvolvido pelo poeta romano. Segue sua análise sobre o que tem ocorrido com o Museu em termos políticos e administrati-vos, apresentando soluções mais sábias, a seu ver, para a melhoria da instituição, fazendo críticas às novas funções que não são efetivamente cumpridas pela falta de pessoal e or-ganização, como é o caso da inserção do ensino no Museu, bastante criticada por Alípio. Apresenta ainda estatísticas comparativas entre as publicações feitas durante o período anterior à Comissão Rondon e o período posterior a ela, efetivando assim seu discurso em prol do papel de Rondon e de sua comissão para o Museu.

Dessa maneira, Alípio de Miranda se utiliza mais uma vez da experiência na Comissão Rondon para atingir seu objetivo, nesse caso, voltar o olhar para o que estava sendo feito no e do Museu Nacional, fazendo de Rondon um meio às críticas à administração e ao governo. Percebemos que o autor faz uso de subterfúgios lingüísticos interessantes como o poema, a analogia com a relação entre pais e filhos, cita fábulas, produzindo represen-tações, refere-se às “páginas da natureza brasileira”, construindo mais uma vez a natureza como obra, e a Rondon como “uma bandeira”, por ser mais que um homem, ele é um

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movimento, nas palavras de Alípio, que mostrou como se faz ciência brasileira eficiente no Brasil. Apesar das críticas do governo sobre os funcionários do Museu Nacional, as estatísticas mostraram que se forem dadas as condições necessárias para o trabalho, como a Comissão Rondon promoveu, o trabalho é muito bem feito.

Conclusão As representações letradas são importantes materiais no intuito de buscar o conheci-

mento profundo do campo científico que se formava no Brasil, e continua a se formar. Por meio da análise dessas obras distintas é possível perceber a individualidade do homem que produz obras a partir de sua experiência individual, mas também o homem social que busca se consolidar no campo científico. As publicações são representações que constroem representações tornando possível uma certa compreensão histórica do passado por meio desses “pedaços de passado”, às vezes tão incompreensíveis, e outras vezes aparentando obviedade. Alípio de Miranda Ribeiro buscou nas letras uma forma de representar seus estudos para a sociedade, compreendendo que seu trabalho era prático mas também in-telectual. Dessa forma, dedicou-se à escrita de um diário de campo que apresentava suas percepções sociais e políticas, assim como à publicação de conferências em homenagem a Rondon e seu empreendimento, buscando muito mais uma avaliação política da institui-ção científica brasileira que era sua segunda casa. Ser naturalista talvez significasse ir além de seus limites profissionais, pessoais, ou sociais, e sim compreender-se como um “homem natural”, de uma natureza universal.

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A Inteligência Empresarial e o desenvolvimento tecnológico

Mauricio Marques de FariaMestrando do Programa de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ – orientador: Dr. José Carlos de Oliveira

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Em 1776, com a publicação da primeira edição de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, obra que, segundo Carneiro (2004, p.33-37), seria uma referência que viria a re-volucionar o pensamento humano, eram lançados os fundamentos da moderna ciência econômica. Com ela se introduziu o conceito liberal da busca de vantagens pessoais, de-monstrando que tal atividade continha o potencial de geração de benefícios para a so-ciedade em geral. O benefício pessoal viu-se assim compatibilizado com a realização do bem comum. Nos dois séculos seguintes, a teoria e práxis econômica concentraram-se nas condições de obtenção, combinação e eficiência de utilização de três fatores de produção: terra, trabalho e capital. A conquista sucessiva de patamares superiores de eficiência foi auto-destruindo as vantagens decorrentes do simples volume dos fatores tradicionais de produção e a evolução mais significativa dos índices de produtividade deveu-se principal-mente ao progresso técnico.

As empresas e organizações, já na segunda metade do século XX, foram fortemen-te afetadas pela tecnologia de automação e comunicação e, também, principalmente nos países desenvolvidos, por uma transferência nas aspirações sociais da quantidade para a qualidade de vida. Houve uma espécie de “aceleração” nas mudanças do ambiente social, cada vez mais complexo e variado. As grandes empresas são questionadas quanto a suas “práticas imorais de exploração”, sua falta de criatividade, e sua incapacidade de aumentar a eficiência juntamente com seu tamanho. O realinhamento de prioridades sociais focaliza a atenção nos efeitos colaterais negativos do comportamento com fins lucrativos: a polui-ção ambiental, flutuações da atividade econômica, inflação, “manipulação” do consumidor por meio de obsolescência artificial, entre outros.

Devemos lembrar, então, das palavras de Mumford (1979, p.24-41), para quem civi-lização e técnica são resultados de escolhas, pensadas ou inconscientes. A técnica não é isolada ou autônoma e interage com o processo das relações sociais. Pressões de prazo, produção e lucro forçam a adoção de processos não completamente conhecidos, muitas vezes com resultados catastróficos. Aqui também devemos lembrar Elul (1968, p.13;108) registrando que a técnica não pode assegurar um resultado antecipadamente conhecido, ou seja, o homem não pode prever a totalidade das consequências de uma ação técnica. Todo desenvolvimento tecnológico parece trazer um potencial destrutivo, a ser remediado por uma nova técnica, mas “o mal já está feito”.

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Reforçando esta idéia, Fitzgerald (2006, p11-18) cita que a espécie humana tem sido envolvida numa vasta e complicada experiência química, para tentar comprovar a tese de que a ciência moderna pode tornar melhores os alimentos e remédios oferecidos pela natureza. Mas, o desenvolvimento da tecnologia de alimentos e da indústria farmacêutica estaria, na verdade, nos transformando numa das espécies mais poluídas na face da terra.

Porto (2007, p.68) por sua vez ressalta que a aplicação dos princípios do crescimento, da eficiência e da maquinização da produção, aliada ao fetiche do desenvolvimento pro-dutivo e à ideologia do otimismo tecnológico, ajudaram a dissimular os desequilíbrios entre os benefícios e os danos do progresso econômico e tecnológico, ofuscando a dia-lética produção-destruição inerente à noção do progresso. Tal dialética é acentuada em sociedades desiguais que produzem diferenciais importantes entre os que se beneficiam e os que arcam com os ônus do progresso. Assim, os riscos associados ao desenvolvimento econômico e tecnológico podem ser pouco ou muito graves. O maior perigo é o homem e a sociedade não serem capazes de analisá-los e enfrentá-los adequadamente.

Acidentes podem formar uma lista de gigantescas dimensões e de resultados catastró-ficos para as pessoas, a sociedade e meio-ambiente. Nos acidentes com energia nuclear são exemplos contundentes: a Three Mile Island (EUA, 1979) e Chernobyl (Ucrânia, 1986). Nos ligados à exploração petrolífera, sobressaem os derramamentos dos petroleiros Exxon Valdez no Alasca (EUA, 1989) e Prestige (Espanha, 2002), assim como os acidentes com plataformas no golfo do México como Ixtoc-1 (EUA, 1979); Deepwater Horizon (EUA, 2010); também acidentes com dutos, como os da Baía de Guanabara (Rio de Janeiro, 2000) e da Baía de Dalian (China, 2010); contaminações dos mares como a da Baía de Minamata por mercúrio (Japão, 1956), ou do ar, como o vazamento de TCDD (tetraclorodibenzo--p-dioxina) em Seveso (Itália, 1976) e o causado pela Union Carbide em Bhopal (Índia, 1984).

Temos ainda os problemas causados não apenas por acidentes, mas pelo modelo de de-senvolvimento do mundo em que vivemos: a emissão de gases poluentes que contribuem para o chamado “efeito estufa”, que podem levar a temperatura da Terra a uma pequena elevação, mas capaz de alterar todo o clima do planeta, ou a contaminação do solo pelo uso indiscriminado de defensivos agrícolas, o efeito ainda desconhecido da interação de espécies transgênicas na natureza, no longo prazo.

Contra esse quadro catastrófico, Pinto (2005, p.347) coloca que a tecnologia não pode receber um julgamento de valor, ser um mal ou um bem. Não produz efeitos daninhos por seu próprio mecanismo, que não poderia ser alterado. Não há dilema entre humanidade e tecnologia. A evolução das técnicas e das máquinas influencia o processo de consciên-cia social, produzindo transformações revolucionárias que, de forma não linear, desempe-nham um papel libertador do homem.

Na mesma linha, Rossi (1989, p.13), afirma que não se deve cair na tentação de ir con-tra o pensamento moderno em busca de um primitivismo ou da rejeição da técnica e da ciência, e sim da compreensão de que a sociedade industrial moderna é um complicado entrelaçamento de elementos humanos e desumanos, alienações e processo de libertação.

As empresas e o público em geral tomaram nova consciência dos perigos potenciais decorrentes do contínuo progresso tecnológico que a humanidade vem alcançando. A percepção de que conseqüências irreversíveis podem afetar o meio ambiente, que os recursos naturais não são ilimitados e que, do ponto de vista da economia em geral, o di-nheiro nunca pode compensar vidas e valores destruídos, também merecem ser citados neste contexto. Além disso, o aumento de uma atitude critica do consumidor de bens e serviços, com relação ao fabricante ou fornecedor, tem um efeito semelhante. Aqui se

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está exigindo maior responsabilidade dos empresários. Empresas estão sendo forçadas a se responsabilizar por todas as perdas que, de um modo ou de outro, ameaçam seus ob-jetivos: seja conseguir bom nível de lucros, seja manter os negócios em bom andamento ou, até mesmo, garantir a própria existência da organização. Começa, então, a surgir uma mudança no paradigma de fazer negócios, com a demanda por mais responsabi-lidade e prestação de contas por parte das organizações, na busca pela sustentabilidade (preservação da integridade dos sistemas ambientais e sociais, permitindo a continuida-de da existência da “vida como um todo”).

Desta forma as empresas tentam atrelar sua imagem a sustentabilidade e a responsabi-lidade social, dentro da diretriz de maximização do retorno do investimento e iniciaram a busca de processos de suporte para garantir o desenvolvimento tecnológico em harmonia com o meio ambiente e o desenvolvimento econômico e social sustentável. Surge uma necessidade de compreensão e gerenciamento dos riscos, contextualizados às realidades onde seus ciclos de geração-exposição-efeitos se realizam. (Brandão, 2009, p.12-33)

Neste contexto surge a possibilidade da utilização da Inteligência Empresarial com foco na gestão de riscos, que trabalha para identificar ameaças e vulnerabilidades que colocam os negócios, a sociedade e o ambiente em risco, elaborando analises e emitindo alertas que permitam decisões seguras e economicamente viáveis, contribuindo para o desenvolvi-mento nacional e garantindo a implementação segura de políticas de C&T.

Derivada inicialmente da inteligência militar e depois da inteligência de Estado, a In-teligência Empresarial tem estreita relação com a informação seja ela entendida como co-nhecimento comunicado (Capurro apud Tarapanoff, 2006, p.9) ou como algo que reduz a incerteza em determinada situação e busca sinergia entre as relações de diversas discipli-nas como a Teoria das Organizações e a Ciência da Informação para transformar dados, fatos e insights em vantagem nos negócios e, em uma visão mais abrangente, em avanço científico, tecnológico e mercadológico em um projeto nacional de desenvolvimento.

O conceito chave para desenvolver este trabalho é a gestão de risco. O risco acompa-nha o homem e é inerente à sua natureza. É a correlação entre a probabilidade de con-cretização de uma ameaça e os respectivos impactos de sua realização. Também pode ser compreendido como o efeito da incerteza que fatores internos e externos trazem sobre a concretização de objetivos determinados. O risco existe, mesmo que não seja percebido, mas é acompanhado de um potencial de aprendizado e à possibilidade de escolha de novos caminhos de desenvolvimento.

O processo de Gestão de Riscos busca a elaborar critérios e níveis de risco; identificar e analisar o risco; Avaliar o tratamento do risco pelo critério de risco; monitorar o risco e seus controles e elaborar os ajustes necessários no processo. Com isto ele procura identifi-car oportunidades e ameaças aos processos e ao meio ambiente; melhorar a confiança das partes interessadas (clientes, comunidades, investidores, imprensa, poder público, forne-cedores, etc); melhorar o desempenho em saúde, segurança e proteção ao meio ambiente; melhorar prevenção de perdas e gestão de incidentes; e estabelecer uma base confiável para tomada de decisão e planejamento das organizações.

A Inteligência Empresarial, através do uso destes métodos e da contínua análise dos fatores de risco para o desenvolvimento de novos instrumentos e processos, auxilia o sis-tema de Ciência e Tecnologia (C&T) no avanço do conhecimento, do desenvolvimento tecnológico e da inovação. O planejamento de uma política de C&T deve levar em conta a participação ativa das empresas, em investimento e proteção de infraestrutura crítica. Nes-se contexto, a IE desempenha papel importante na proteção de ativos, físicos ou imateriais, fornecendo uma visão global do ambiente e dos riscos associados.

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A proposta de uso da Inteligência Empresarial com foco na Gestão de Riscos é utilizar as técnicas de inteligência e de gestão de riscos buscando garantir a sustentabilidade em seu conceito amplo; interagir com as áreas de SMS e Inteligência Tecnológica em busca de situações de risco nas operações e questionamentos sobre novas tecnologias; acompanhar situações de risco e acidentes ocorridos com concorrentes, realizando análise de falhas; re-alizar análise antecipada de riscos ambientais, sociais e tecnológicos ante o desenvolvimen-to de novos negócios, produtos, ou áreas geográficas de atuação; realizar a monitoração ambiental e social das regiões onde atua; dar suporte as áreas de Responsabilidade Social; elaborar análises sobre questões ambientais e técnicas contemporâneas.

Ao garantir ganhos de desempenho ou evitar perdas, os alertas da Inteligência Empre-sarial aumentam a sensibilidade dos dirigentes para questões que normalmente não são vistas como diretamente relacionadas ao negócio, tais como aquelas de cunho ambiental e social. Por isso, uma das questões mais importantes no início do processo é trabalhar no convencimento da direção superior e das áreas de resultado da empresa da importân-cia de práticas de sustentabilidade, segurança e responsabilidade social. Desta forma, a Inteligência Empresarial com foco na Gestão de Riscos pode auxiliar o desenvolvimento tecnológico em harmonia com o meio ambiente e o desenvolvimento econômico e social sustentável.

Referências

BRANDÃO, Carlos Eduardo Lessa (2009). Sustentabilidade e empresas: uma reflexão crí-tica. Tese de doutorado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Rio de Janeiro: IQ/UFRJ. xv, 133f.

CARNEIRO, Roberto. A Era do conhecimento. (cap.1, p.33-70) In: Silva, Ricardo Vidigal da (org.) Gestão de empresas na era do conhecimento. São Paulo: Serinews, 2004.551p.

ELLUL, J. A técnica e o desafio do século. São Paulo: Paz e Terra. 1968. 445p.

FITZGERALD, Randall. Cem anos de mentira: como proteger-se dos produtos químicos que estão destruindo a sua saúde. São Paulo: Idéia e Ação. 2008. 391p.

MUMFORD, Lewis. Técnica y civilización. Madri: Alianza Editorial. 1979. 505p.

PORTO, Marcelo Firpo de Souza. Uma ecologia política dos riscos: princípios para in-tegrarmos o local e o global na promoção da saúde e da justiça ambiental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. 244p.

PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto. 2005. 1328p.

ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas: 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 183p.

TARAPANOFF. K. Inteligência organizacional e competitiva. Brasília: UnB. 2001. 343p.

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A Contribuição das Ferrovias na Comunicação no Início da

República no BrasilMauro Costa da Silva

Engenheiro, Físico, Doutor pelo programa HCTE-UFRJ – Professor do CPII.

Introdução

Este trabalho apresenta de forma resumida a história das ferrovias e dos telégrafos no Brasil, entre 1850 e 1910. São analisadas semelhanças e singularidades no desenvolvimento dessas duas áreas da engenharia que mais promoveram a integração territorial.

A referida contribuição das ferrovias na comunicação remete ao telégrafo das compa-nhias de estradas de ferro (EF) usado para controle do tráfego de trens, que serviu como meio de comunicação à distância à população das cidadas e lugarejos atravessados pelas ferrovias. O transporte de passageiros e o serviço postal não serão investigados neste estu-do, embora tenham contribuído para a comunicação.

As ferrovias no Brasil

A primeira ferrovia foi inagurada na Inglaterra, em 1825. Dez anos depois, o Regente Feijó assinou o decreto no.101, de 31 de outubro de 1835, que autorizava conceder concessão a qualquer interessado em construir ferrovias entre as Províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. Entretanto, as ferrovias só começaram a ser construí-das a partir de 1852, ano em que o governo passou a garantir o pagamento de juros sob o capital empregado na construção de ferrovias, caso as receitas não atingissem o percentual previsto na concessão1.

A garantia de juros deu o impulso que faltava para o início das obras. O primeiro tre-cho da primeira ferrovia foi inaugurado em 30 de abril de 18542. Durante a década de 1850, foram construídas ferrovias nas Províncias de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Na década seguinte, as ferrovias foram levadas a outras províncias3, mas se desenvolveram principalmente nas Províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais4.

Qual a razão para construção de uma ferrovia? Esta pergunta não tem uma resposta úni-ca, principalmente num país com a extensão territorial do Brasil. Numa visão panorâmica, será destacado os principais fatores que contribuíram para o desenvolvimento das ferrovias brasileiras no período estudado. O café foi certamente um dos principais propulsores, em particular na região sudeste. A proteção às fronteiras no sul serviu de motor para a cons-

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trução de ferrovias na Província do Rio Grande do Sul, além da facilitação do transporte de tropas numa região que lutou para se separar do Brasil. A Guerra do Paraguai (1865-1870) contribuiu para levar as ferrovias à Província do Mato Grosso. A ideia de que estradas e ferro-vias promoveriam a ocupação dos sertões favoreceu a construção em direção à região central do país. A interligação entre províncias que já possuíam EF foi uma consequência natural no processo de expansão. Em alguns casos, foram criadas companhias de EF especificamente para ligação entre províncias, como a EF Vitória-Minas Gerais e a EF São Paulo-Rio Grande do Sul. O último, mas não menos influente propulsor do desenvolvimento das ferrovias, foi a expeculação financeira. O decreto que estabeleceu a garantia de juros favoreceu o surgimen-to de ferrovias sem finalidade que justificasse sua construção; sem possibilidade de retorno econômico, foram construídas quase exclusivamente para atender a fins políticos e obter o retorno financeiro garantido pelo governo [TELLES, 1994].

Para reduzir as despesas públicas, o governo republicano encampou uma série de fer-rovias, entre 1890 e 1910, passando a administrá-las diretamente ou repassando a admi-nistração a companhias privadas. As aquisições e incorporações de ferrovias contribuíram para formação de redes ferroviárias regionais5. Estas, interligaram seus telégrafos e possi-bilitaram a comunicação entre estações ferroviárias que antes pertenciam a companhias de EF diferentes.

Ao final do império, o Brasil possuía pouco mais de 9.000km de ferrovias6; em 1900, já eram 15.316km. Durante a primeira década do século XX, a construção de ferrovias foi inexpressiva, principalmente durante o Governo de Campos Sales (1898-1902), em conse-quência das dificuldades econômicas que o país atravessava. No final da primeira década do século XX, a construção de ferrovias foi retomada com grande vigor. Em 1910, em ape-nas um ano, foram construídas 2.225km de vias férreas [TELLES, 1994].

O telégrafo no Brasil

A primeira linha telegráfica foi instalada entre o Campo da Aclamação (atual Campo de Santana) e o Paço de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, inaugurada em 11 de maio de 1852. Sob o pretexto de combater o tráfico de escravos, que efetivamente já havia terminado, os poucos aparelhos telegráficos comprados na Europa e instalados em repar-tições públicas, quartéis de polícia e bombeiro, tiveram uso bastante limitado. Em 1857, foi instalada uma linha entre a Corte e Petrópolis. Anos se passaram sem que houvesse expansão das linhas telégraficas.

A guerra do Paraguai foi a grande propulsora do telégrafo no Brasil, em particular, por-que pela primeira vez o governo brasileiro utilizou o aparelho como um instrumento de comunicação à distância. Com o evento bélico, uma linha foi extendida da Corte e o front, entre 1865 e 1866. Para se ter uma dimensão do impacto da guerra nos telégrafos, a exten-são das linhas telegráficas passou de 65 km para pouco mais de 2.000km. [SILVA, 2007]

Com o fim da guerra, as linhas telegráficas construídas pela Repartição Geral dos Te-légrafos (RGT) se dirigiram para o norte, para integração das regiões e controle central do governo. Foram inauguradas estações em todas as capitais e principais cidades litorâneas entre a Corte do Rio de Janeiro e Maceió, em 1874; até a Paraíba, em 1875; no Rio Grande do Norte, em 1876; e no Maranhão, em 1884.

Durante o império, todas as capitais do litoral estavam interligadas via telégrafo, apenas as Províncias do Mato Grosso, Goiás e Amazonas não possuíam comunicação telegráfica. [SILVA, 2003]

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A Contribuição

Até o fim do império, os telégrafos das companhias de EF não foram percebidos pelo governo como um potencial corrente. A percepção mudou com o início da república. Com tarifas inferiores a 50% das cobradas pela RGT, os telégrafos das companhias de EF pas-saram a representar uma preocupação para a RGT na disputa pelo tráfego telegráfico no interior do país. Desde 1870, pelo decreto no. 4653, as companhias de EF deveriam ter um fio telegráfico exclusivo para o governo7. Essa determinação nunca fora cumprida com rigor, pela resistência apresentada pelos diretores das EF. Entretanto, há exemplo de cessão de linha feita à RGT, como a linha que ligava a Capital Federal a Queluz (atual Conselheiro Lafaiete), em Minas Gerais, na qual a RGT utilizava um fio da EF DPII para suas transmis-sões. O inconveniente para RGT era que a administração da EF DPII não admitia inter-venção no serviço de fiscalização das linhas. Para BAPTISTA, [1889-90, 33], não se podia garantir um bom serviço nessa linha, em função dessa medida.

Vendo os telegramas seguirem preferencialmente pelas linhas dessas companhias e sem ter como enfrentá-las comercialmente, o governo federal passou a pressionar as com-panhias para assinarem acordos de tráfego mútuo. Estes, foram fechados separadamente entre a RGT e cada uma das companhias de EF, que passava a cobrar os valores estipulados pela RGT8.

O principal objetivo da RGT com os acordos de tráfego mútuo era eliminar a con-corrência. Sem dispêndio para os cofres públicos, o tráfego mútuo permitiu, em 1902, a correspondência telegráfica entre 539 localidades esparsas no interior do Brasil. Finan-ceiramente, o tráfego mútuo era pouco volumoso, representava no início do século XX apenas 2% do tráfego nas linhas da RGT, à época superior a 1.300.000 telegramas. Embora diminutos, os números envolvidos no tráfego mútuo produziram para o Governo e a RGT efeitos significativos. Para o primeiro, garantia um poderoso meio de comunicação sob controle do Estado, e a segunda, atender a um número de localidades muito superior ao que chegavam suas linhas. Em 1906, os acordos de tráfego mútuo atingiam 33 estradas de ferro. [SILVA, 2008] Em 1908, eram 35 estradas de ferro em tráfego mútuo com a RGT, compreendendo 1.342 estações. Nesse ano, havia 16.164 km de linhas telegráficas das com-panhias de EF em tráfego mútuo contra 2.151 km sem tráfego mútuo [tabela 1].

TABELA 1 – Estações telegráficas instaladas no Brasil em 1907 [BRASIL, Memória Histórica, 1907].

Companhia Número de EstaçõesRepartição Geral dos Telégrafos        523Estradas de ferro em tráfego mútuo     1.342Total     1.865

       Com os acordos de tráfego mútuo, algumas estações telegráficas da RGT puderam ser

desativadas por atenderem as mesmas localidades já atendidas pelas companhias de EF. Segundo o relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 1908, “além de facilitar as comunicações telegráficas, veio por a termo a concorrência feita pelas estradas as linhas de União”. [BRASIL, 1908]

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Conclusão

As ferrovias surgiram por interesses econômicos privados, com fins comerciais e inves-timentos estrangeiros. Expandiram-se para o interior em busca das safras de café e, poste-riormente, para desbravar os sertões. Os telégrafos foram construídos pelo governo, com finalidade essencialmente política, instalando-se principalmente no litoral e interligando as capitais. Através dos acordos de tráfego mútuo, as ferrovias deram uma contribuição inextimável à comunicação telegráfica. Possibilitaram alcançar lugares que dificilmente seriam atendidos pelas linhas da RGT, integrando-os a rede telegráfica nacional.

Notas

1 Decreto no. 641, de 26 de junho de 1852.2 A ferrovia construída por Irineu Evangelista de Souza (1813-1889), futuro Visconde

de Mauá, ligava o Porto de Mauá, na Baía de Guanabara, à Raiz da Serra, no caminho para Petrópolis.

3 EF D.Pedro II, construída inicialmente na Província do Rio de Janeiro, se dirigiu para as Províncias de Minas Geriais e São Paulo; EF Recife ao Cabo; EF Bahia ao São Francisco; EF Cantagalo, entre Porto das Caixas e Cantagalo, na Província do RJ. As EF na Província de São Paula são citadas mais adiante.

4 Entre as décadas de 1860 e 1900, as principais ferrovias nessa região foram: São Paulo Railway; EF Mogiana; EF Sorocabana; EF Itauana; Leopoldina Railway; Rede Sul Mineira; EF Oeste, além das já citadas ferrovias na Província do Rio de Janeiro.

5 EF Teresa Cristina – reverteu para o governo em 1902; Great Western of Brazil Rai-lway Co – Em 1896, várias ferrovias no nordeste que recebiam juros foram encampadas pelo governo e arrendada à Great Western; Cie Auxiliaire des Chemins de Fer du Brésil – Em 1899, a companhia francesa incorporou várias ferrovias no Estado do Rio Grande do Sul. Repassou a concessão ao grupo americano Brazil Railway, em 1911; EF Oeste de Minas – foi comprada pelo governo federal em 1903.

6 Cerca de um terço da extensão total de EF brasileiras, em 1890, foram construídas no Estado de São Paulo.

7 Essa obrigatoriedade foi renovada pelo artigo 8 do regulamento de 1891.8 O Decreto Nº 3458, de 23 de outubro de 1899, permitiu que as administrações de to-

das as companhias de estradas ferro equiparassem suas tarifas com as da RGT.

Referências Bibliografias

BAPTISTA, João Nepomuceno. Relatório da Repartição Geral dos Telégrafos dos anos de 1889-1890. In: BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio de Obras Públicas, 1890.

BRASIL, Memória Histórica A Repartição Geral dos Telégrafos. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial, 1907.

SILVA, M.C. da. A Introdução da Telegrafia Elétrica Estatal no Brasil durante o Segundo Império. Dissertação de Mestrado. UFRJ, 2003.

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SILVA, M.C.; MOREIRA, I.C. A Introdução da Telegrafia no Brasil (1852-1870). Revista da SBHC. Rio de Janeiro, 5 (1), p. 47-62, julho de 2007.

SILVA, M.C. A Telegrafia Elétrica Estatal no Brasil de 1852-1914. Tese de doutorado. UFRJ, 2008.

TELLES, P.C. da S., História da Engenharia no Brasil. Clube de Engenharia. 2v. Rio de Ja-neiro: Clavero Editoração, 1984.

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O Sonho de DescartesMaira Monteiro Fróes

Professora do ICB/HCTE/[email protected]

Considerações iniciais

O que é o sonho senão a consciência liberta, em sua mais plena manifestação? O que seria hoje da ciência sem o “Sonho de Descartes”? O que seria hoje do homem sem o sonho na ciência? Nossas sensações estão indiscutivelmente susceptíveis ao nosso bias, as nossas convicções prévias, mas também representam a nossa mais completa experiência do que imaginamos seja a realidade física, o mundo objetivo. Por esta razão, as leituras do mundo objetivo que emergem da transdução de eventos físicos em correlatos sensoriais, em sensa-ções, complementados por camadas de significação lógica, estética e afetiva, ainda que fa-líveis por encerrarem-se em nosso pequeno universo de consciência, representam o único canal através do qual podemos ir além do que as qualidades físicas escrutinizáveis de seus objetos nos instruem diretamente. Se o processamento cognitivo multimodal responde pelo aprofundamento do conhecimento humano, como nossos muitos e variados campos de conhecimento atestam, precisamos rever nossas regras de pensamento e fruição cog-nitiva em ciência. Representando um preâmbulo do eixo de problematização do grupo multidisciplinar Anatomia das Paixões, coordenado pela presente autora, este artigo pre-tende pinçar à discussão algumas razões pelas quais deveríamos considerar, no processo de criação do conhecimento científico, a experimentação de trânsitos cognitivos complexos, como aqueles de conteúdo simbólico, metafórico, inefável, relegados ao sistema de cria-ção artística. Numa contracorrente do pensamento científico vigente, uma análise objetiva mais alargada e profunda do problema científico poderia beneficiar-se da contemplação de base subjetiva, em níveis de inspiração. No exercício de perscrutar ordens impressas para além dos correlatos algorítmicos ora evidenciáveis pelo olhar que privilegia a lógica discursiva em detrimento das demais vivências cognitivas, propomos uma nova conduta racional, numa razão que se abra ao benefício de vivências não racionais, no sentido estrito da palavra. Ainda que preservados os velhos trilhos do método experimental em ciência, o alargamento das possibilidades de formulação de hipóteses e de metodologias de testagem poderia advir do nosso contato com as cargas simbólicas e de equivalência funcional, sis-têmica, que permeiam nossos objetos de interesse científico.

Da criação de arte e da criação de ciência

Pode-se reconhecer na arte um sistema criativo, único, subjetivo, onde suas obras des-

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dobram-se para uma coexistência nos universos individual e objetivo, com forte significa-do de referência mental. Dotada de qualidades estéticas para as quais uma definição beira freqüentemente o inefável, não somente a obra de arte embute ordens estética e emocio-nal-afetivas do artista, como pode mesmo revelar um conteúdo lógico, ainda que sutilmen-te implícito, não destacado. Mais ainda, a obra artística evoca no espectador a percepção nestas mesmas plataformas de ordem, ainda que significadas pelo sujeito espectador.

A arte, assim como o saber criativo utilitário, ou a “ciência primordial”, estão entre as primeiras criações da pré-história humana, antecedendo mesmo o desenvolvimento da linguagem, como possível comunicadora, intencional ou não, de leituras subjetivas do mundo em grupos humanos primitivos. Como recurso de comunicação, a arte garantiria a existência da entidade. Sua valorização de valência positiva, conferindo-lhe carga hedôni-ca, tornaria esta construção de entidade satisfatória. Assim como a linguagem semântica e as redes tecnológicas digitais, a arte é um recurso instrumental de comunicação, na medida em que necessitamos checar a veracidade de nossa realidade simbólica, metafórica interna, diante do mundo e de nossos semelhantes. Neste sentido, idem a ciência, assim como toda e qualquer forma de criação humana, independentemente de seu grau de consensualidade de leitura cognitiva, independentemente de seu nível de representação objetiva.

Antes de configurar-se necessidade, a arte e ciência seriam sistemas de criação e ex-pressão, no mundo objetivo, de valores cognitivos, abstratos, inerentes à formulação do pensamento. Dentro desta linha de desenvolvimento, as criações nos campos da arte e da ciência atenderiam, por um lado, à necessidade ontológica de representação, na qualidade de objetos do plano físico, de nossa única realidade, a realidade produzida pelo cérebro enquanto vivência multimodal (lógica, estética e afetiva); por outro, atenderiam, no cria-dor, ao reconhecimento de sua leitura pelo espectador, ainda que tenhamos no espectador o próprio artista ou o cientista, numa vivência recursiva, reflexa.

A experiência artística é vivida como a imersão num conjunto complexo de elementos onde a estética, o inusitado, a graça, o prazer definem um todo perceptual indissecável. O emprego do termo “experiência”, enquanto implícito seu sentido “experimental”, carrega um caráter subjetivo, exclusivo, único, individual, imperscrutável da plena vivência cog-nitiva em arte. Como arte entende-se um campo de comunicação, em bases simbólicas, de objetos em diferentes plataformas de expressão, do concreto ao imaterial, expressos no mundo físico, cuja significação ultrapassa ou mesmo ignora as plataformas da lógica tradicional, para revestir-se de valores estéticos e afetivos cuja significação se dá, somente, no sujeito. Ainda que reserve um espaço para traduções de consensualidade sobre o teor axial da mensagem do artista, quando presente na obra de forma explícita (não é sempre o caso) o espectador não transita necessariamente pelos motivadores e significadores que teriam inspirado a criação da obra pelo artista, mas assumiria o lugar de ‘re-significador’ do objeto, um significado não demonstrável, não objetivável. Isto equivale a dizer que, para cada obra de arte, existiria um repertório infinito de experiências artísticas vivenciado pelo conjunto e por cada um dos sujeitos espectadores. Ou seja, um objeto de arte multiplicado em suas muitas traduções subjetivas, com significados diferentes.

Ao contrário, a ciência é concebida idealmente, intencionalmente, para que não cai-ba subjetividade que venha a interferir com seu valor objetivo. A ciência se constitui em linguagem comunicadora de consensualidades, uma criação do sujeito para o mundo das vivências objetivas. Uma experiência científica pretende-se tenha o mesmo valor, o mesmo significado em todas as culturas, em todos os homens. O valor científico da comunicação no campo da ciência seria tanto maior quanto mais tendesse à equivalência de significação pelos diferentes sujeitos observadores. A experiência científica acontece no campo da co-

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municação de valor lógico explicitável e consistente, valor este que sobreviveria ao sujeito e sua análise subjetivada, pois a preservação de seus atributos lógicos seria garantida pelo contexto objetivo do problema em ciência.

Da criação perceptual

A consciência é a criadora sensível de um amálgama do mundo representacional com o mundo interno. Ao interpor transdutores no caminho perceptual dos objetos externos, a consciência nos amarra inexoravelmente à condição de criadores que se vestem com suas criações como único elo possível entre o ‘sujeito’ e o ‘mundo’.

Nós não percebemos o mundo como ele é, mas como aproximação mental mais plau-sível. Tomando como referência um indivíduo, segundo Bertrand Russel, reconhecemos dois espaços: um externo, ocupado pelos objetos no mundo físico; o outro, interno e pri-vativo, ao qual incorporamos representações dos objetos do mundo físico na forma de perceptos (Smythies, 2003).

Poderíamos classificar o acervo técnico da consciência, o conhecimento, em ‘sensí-vel’, de referência parcialmente externa, e ‘inato’, intrínseco ao próprio sujeito (“sei que sou”, “sei que deve ser”). O conhecimento sensível apresenta repertório individual único, deflagrado por, e dependente de experiências sensoriais prévias. O conhecimento inato, alternativamente, é entrevisto através da vivência de rotinas de enquadramento - lógico, estético, ético-afetivo - efetuadas por “operadores mentais inatos”, ou pré-arcabouços de consciência. Em nossas experiências sensoriais (perceptuais) ou imaginárias (conceptu-ais), o conhecimento inato estaria sugerido na busca por relações que conduzam à sa-tisfação lógica ou estética, por exemplo. No âmbito da neurobiologia da cognição, o co-nhecimento inato poderia ser visto como um pré-arcabouço lógico de ‘princípios’, uma fôrma consensual e universal, à qual os perceptos do mundo sensível, ou os conceptos do imaginário obrigar-se-iam a ajustes. O conhecimento inato seria, por assim dizer, o campo definido pela lógica formal e suas elaborações, enquanto ainda destituídas de entradas de valor (variáveis ou de contorno), pelas pré-disposições de âmbito lingüístico, definidas por valores gramaticais inatos, ou ainda, por propensões para julgamentos de âmbito estético e/ou ético. Classificam-se, por conseguinte, como conjuntos inatos de pré-disposições cog-nitivas, estas últimas não determinadas por-, mas deflagráveis e treináveis por nossas ex-periências perceptuais. Da fusão do conhecimento inato com os perceptos e/ou conceptos, emergiriam as diferentes linguagens matemática e semântica, o reconhecimento de ordem estética plástica e de harmonia musical, ou o posicionamento de valor ético aplicado à nossa vivência social, à noção do ‘outro’.

Lógica, estética e ética emergiriam, no âmbito formalístico, portanto, como pré-arca-bouços intelectuais. Como rotinas operacionais inatas, autônomas, inteligentes aplicadas aos perceptos e conceptos, os revestiriam com qualidades de conforto lógico, de contorno moral e de beleza. Assim qualificados como ‘conscientes’, evocariam potencialmente res-postas fisiológicas involuntárias, autonômicas, na forma de emoções e comportamentos estereotipados, e/ou na forma de sensações mais complexas como os sentimentos, desen-volvidos no eixo dor-prazer. Poderíamos defender que os estados emocionais seriam pra-zerosos quando de associações harmoniosas entre percepto ou concepto e a rotina intelec-tual e mnemônica subjetiva. Em contrapartida, desconfortáveis, quando em associações não harmônicas. Em síntese, ao emoldurarmos o amálgama percepto/rotinas intelectu-ais com nossas emoções e sentimentos, geraríamos sensações complexas, provavelmente

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na raiz de leituras empáticas, de intenções, de decisões ou, numa coordenação, em níveis cognitivos, entre os motivadores do planejamento neural e os centros de comando motor voluntário. Seria a consciência em sua plena manifestação.

A comprovação para uma boa parte desta tese vem de recentes experimentos na área da neurobiologia da percepção em humanos. Estudos neurocientíficos contemporâneos vêm se desenvolvendo sobre o que consideramos os possíveis correlatos biológicos da psique, quais sejam mapas de atividade de grandes populações neurais no cérebro gerados através de diferentes técnicas não invasivas como registros eletroencefalográficos, imagens por ressonância magnética ou por emissão de pósitrons, entre outras, e que nos permitem estimar grosseiramente os circuitos eletroquímicos provavelmente implicados neste ou na-quele aspecto da percepção de estímulos externos, através de ensaios controlados. Uma vez que conheçamos o papel de áreas cerebrais e circuitos neurais específicos em contex-tos mais simples da experiência perceptual e da ação humana, poderemos rascunhar um repertório de vivências cognitivas que poderiam compor uma vivência mental complexa como as referenciamos na criação e percepção das diferentes formas de arte.

Este conjunto tecnológico é ainda muito limitado para atender a demandas tão sofis-ticadas quanto o entendimento dos processos biológicos da criação humana de âmbito lógico-simbólico, ou simbólico-estético, como representada pela ciência (absolutamente negligenciada como ‘problema’ da neurociência) ou pela arte, respectivamente. Abre-se assim um vasto campo para a neurofilosofia (vide Patricia Churchland, Ramachandran, Daniel Dennett, Steven Pinker, entre outros) alicerçada sobre iniciativas ainda pontuais no âmbito da neurobiologia experimental e da neuroestética em alguns laboratórios inde-pendentes no mundo. Os paradigmas experimentais cobrem, em diferentes níveis de com-plexidade, aspectos da formulação perceptual em algumas de suas bases de valor lógico e estético. No entanto, não nos permitem proclamar ainda a descoberta de uma ordem neu-robiológica ou neurofenomenológica geral para a experiência perceptual complexa lógica ou artística, apesar de esforços elucubrativos concentrados nesta última (Semir Zeki e co-laboradores, VS Ramachandran e colaboradores). Ainda que careçamos, por conseguinte, da solidez de uma “Teoria da Mente” ou mesmo de uma “Teoria Estética” suficientemente argumentadas em suas bases neurobiológicas, conclusões substanciais já podemos extrair a partir de ensaios que avaliam aspectos da percepção humana em geral em resposta a es-tímulos perceptuais mais simples.

Identificamos hoje duas classes de processamento sensorial neurobiológico que atuam de forma coordenada: uma, definida pelas ações de nossos filtros e transformadores bio-lógicos sobre os estímulos físicos (sentidos da visão, da audição e da pressão/temperatura) ou químicos (no caso dos sentidos do paladar e da olfação), de forma a criarmos as cha-madas sensações de luz, som, tato, calor/frio, sabor e odor. Neste tipo de processamento, estas sensações recebem valorização técnica primária, na qualidade de informação. Este processamento é dito “de baixo para cima”, pois acontece no sentido dos órgãos periféricos sensoriais (olhos, ouvidos, pele, etc) para os centros de processamento neurais primários, cumprindo uma primeira rodada de percepção no cérebro. Se não incluirmos neste exem-plo estímulos aversivos/agressivos universais, mas somente aqueles capazes de gerar uma apreciação de deleite, podemos considerar um esquema de processamento cognitivo-emo-cional que se complementa da seguinte forma: os estímulos percebidos e já identificados primariamente como sensações no cérebro acabam deflagrando atividade em diferentes áreas e circuitos distribuídos pelo encéfalo como um todo, o que lhes confere, às sensações primárias originais, camadas de significação complexas, contextualizadoras, que nos per-mitem associações com eventos e dados do acervo de memória individual, identificação de

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padrões, julgamentos. Mais ainda, neste processamento, conferimos valores emocionais--afetivos, bons ou ruins. Diz-se destes mecanismos como atuando de “cima para baixo”, pois modulam nossos níveis de atenção e o modo como projetamos para o mundo externo o que está sendo percebido e elaborado conscientemente sobre o estímulo físico original. São os sistemas de significação e de seleção de importância subjetiva e atencional, que aca-bam agindo sobre o nível mais elementar da informação, plugando-nos conscientemente aos significados que elaboramos, numa espécie de alça reflexa de controle. Em síntese, es-tes dois sistemas de processamento perceptual em humanos, confirmados pela ciência, nos mostram que a percepção é um processo ativo, subjetivo, seletivo-atencional, pois envolve um ‘julgamento’ cerebral também ativo sobre si próprio, modulando a vivência subjetiva da realidade física de forma bastante sofisticada (para uma revisão LeDoux 1998).

Do simbólico, do metafórico e do mental

Tomemos como base a apreciação da arte: a arte emociona, o que podemos acessar por medidas fisiológicas associadas a reações emocionais autonômicas eventualmente im-perceptíveis para o sujeito como discreta sudorese, aceleração dos batimentos cardíacos, a presença de substâncias, como neurohormônios, secretadas na saliva, além do relato individual, subjetivo, claro. Em se tratando de arte não abstrata, a experimentação mostra que os recursos que sublinham, individualizam, e mesmo que caricaturizam os atributos de significado da obra, exagerando-os, precisam estar presentes para que as respostas emo-cionais se desenvolvam. Quer consideremos imagens, quer obras musicais, são os recursos de contraste e destaque, são as possibilidades de combinação e agrupamento, de seleção de módulos ou sistemas, ou de identificação de ordens metafóricas que vêm se revelando fortes enunciadores do êxtase neurocognitivo-emocional atrelado à experiência artísti-ca. O valor simbólico seria proporcional, por definição, à força de significação da obra, e provavelmente não dependeria de sua complexidade técnica. Neste sentido, é importante colocar que ensaios de neuroestética, por exemplo, vêm mostrando que, preservada a sig-nificação de uma obra, a qualificação estética segundo relatos individuais, em ensaios con-trolados, não parece depender dos níveis de complexidade conferidos experimentalmente às imagens de uma mesma obra por modelagem computacional (C. Wallraven and M. Sbert, do Max Plack Inst. Biol. Cybernetics and Univ. Girona, Spain). Tais estudos, forta-lecem a idéia de que a carga estética crítica para a avaliação do observador não estaria nas qualidades primárias da obra em si, nem do quanto ela demandaria a apreciação objetiva do sujeito para ser compreendida - verificável, por exemplo, por medidas de rastreamento de movimento ocular - mas dependeria do quanto a obra seria capaz de evocar significado para o sujeito (Ramachandran e Hirstein 1999, Zeki 1999).

Nossas mentes parecem operar na dependência, ou na razão ainda muito pouco en-tendida pelos diferentes campos da ciência e da filosofia, de um vasto repertório ima-gético, de vivências simbólicas, à semelhança mesma do simbolismo definido por C-G Jung (1994), segundo o qual os símbolos carregariam mais do que a informação técnica presente em seus signos. Um exemplo disso são os sonhos, que começam a ser vistos, hoje, como o acompanhamento mental consciente da imagética dinâmica de processamento de nossas experiências durante a vigília em sua costura com nossos arquivos de memória lógico-estético-afetiva. Nossa mente, dada a subjetivação a que estamos presos em nossa transdução da realidade física para a única realidade a que temos acesso direto, a subjetiva, é uma grande criadora de metáforas. O simbolismo presente na arte identifica-se com o

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mental, na transdução do trânsito simbólico, subjetivo, do indivíduo artista para o mundo do (arte)fatos objetivos. O seu significado como arte se completa por sua incorporação, por sua emolduração no trânsito mental simbólico do sujeito observador/experimentador da obra artística (Zeki 1999).

Na medida em que a expressão de arte não se restringe ou se detém nos objetos pro-priamente ditos e sua aplicação utilitária, mas por encharcá-lo de valor simbólico abstrato pluga o sujeito diretamente à sua significação multimodal, pré-simbólica, por definição acêntrica, atemporal, desterritorializada. Conduz-nos, portanto, ao sistema por detrás da obra, tornando-a acomodável em todas as referidas camadas pré-arcabouçais de consci-ência. Sendo assim, o impacto da valorização de arte é justamente por prover, como ne-nhum outro comunicador do mundo físico, objetivo, um poderoso atalho entre a percep-ção objetiva, técnica e os sistemas neurocognitivos complexos (Lehrer 2007), que atuam nos processamentos neurocognitivos superiores, que desenvolvemos de cima para baixo, mencionados anteriormente, e que fazem a significação em todos os aspectos subjetivos, da experiência do homem com a obra de arte. Os sentimentos que entram em cena na vivência subjetiva mental, após um primeiro processamento perceptual primário, e que respondem pelo acionamento de circuitos neurais relacionados à emoção/afeto e/ou julga-mento de valor, mudam a significação que fazemos dos elementos perceptuais objetivos e de nosso próprio espaço vivencial, aprofundando e alargando nossa percepção do mundo, o que, por si só justificaria o nosso fascínio pelos “objetos” e/ou contextos ambientais ca-pazes de plugar-nos diretamente ao êxtase estético-emocional vivenciado através da arte (Ramachandran e Hirstein 1999, Zeki 1999).

De uma ciência sensível

Afinal, o que esses achados neurocientíficos em humanos nos revelam é que a per-cepção, independentemente da natureza do objeto perceptual, está indissociavelmente de-pendente de camadas de processamento cognitivo que envolvem não somente uma, mas as três plataformas de valor perceptual sugeridas acima, quais sejam representadas pela lógica, pela estética e pela emoção/afeto. Reconhecemos a necessidade de validarmos na lógica experimental nossas versões plausíveis acerca da realidade física perscrutada através do método científico. Passo inequívoco na consolidação de nossas verdades por consistên-cia e consensualidade nos planos objetivo e intersubjetivo. No entanto, impor restrições ao trânsito cognitivo complexo (dito multimodal porquanto englobando para além da ló-gica, vivências de apreciação estética e emocional-afetiva) em nome de uma boa prática científica, não nos parece recomendável, pois que negando o acesso do cientista ao seu próprio trânsito pré-simbólico, de alargamento e aprofundamento perceptual, potencial-mente intuitivo de ordens implícitas não evidenciáveis a partir da estrutura lógica direta, disponível experimentalmente. De fato, amputar a visão multimodal não é cognitivamente possível. No entanto, o discurso, tal qual o concebemos, desencoraja-nos qualquer esforço no sentido de buscarmos significação complexa através dos trânsitos não escrutinizáveis pela lógica formal.

É possível extrair diferentes significantes do objeto de interesse científico ao nos uti-lizar de canais de apreciação/análise de ordem estético/afetiva? O Grupo Anatomia das Paixões vem endereçando esta questão de natureza epistemológica experimentalmente, reunindo um primeiro grupo de evidências recentemente apresentadas em reunião cientí-fica nacional (Ribeiro e colaboradores 2010). Há dois anos atrás surgia o Projeto Arte e Ci-

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ência no Caminho do Som - ou poeticamente, Anatomia das Paixões - como uma proposta de associação acadêmica de arte e ciência em torno da enorme questão representada pela Percepção Humana. Mais especificamente, a questão que nos interessa primordialmente: a percepção, a apreciação e a análise da própria ciência e de seus objetos de valor científico poderia ser beneficiada por uma análise multimodal, possível nas imersões artísticas e filosóficas.

Numa contracorrente à amputação da universalidade intelectual humana, que, em criando campos de conhecimentos artificialmente herméticos, anestesia a sensibilidade no homem de ciência e impõe limites ao homem das artes e da filosofia (Kandel e Mack 2003), pretendemos apresentar ao estudante, ao professor/pesquisador e ao público em geral ins-trumentos transdisciplinares para a construção de uma arte ciente e/ou de uma ciência sensível, afirmando uma concepção contemporânea de saber e criar, capaz de conduzir o homem a si mesmo e aos caminhos que o levam à sua paixão pela arte e pelo saber (Fróes 2009a,b, 2010). Acima de tudo, e essencialmente, pretendemos à provocação do reconhe-cimento de um homem único, indivisível, que justifica e conjuga os universos intelectuais da arte, da ciência e do pensamento filosófico. Por uma nova razão, por uma nova ciência.

Considerações finais

Nossas criações têm todos os valores de lógica atrelados, mobilizam nossas respostas emocionais, nossas ações motoras e nos apresentam as chaves para as nossas sensações mais complexas, os sentimentos. O esforço que entendemos necessário para a compre-ensão da fenomenologia da consciência deve fundamentar-se primariamente no desen-volvimento de questões que passem por atributos lógicos outros, não limitados à pura razão lógico-dedutiva. É possível que possamos desenvolver o pensamento científico para análises lógico-estética e ética argumentadas e, desta forma, encontremos substratos satis-fatórios para o entendimento deste corpo sensível que é a consciência.

Apoio: FAPERJ, CONVÊNIO BANCO DO BRASIL/UFRJ, PIBEX/UFRJ, PIBIC/UFRJ.

palavras-chave: interface arte/ciência, neurofilosofia, percepção, epistemologiae-mail: [email protected]

Referências

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Ontologias em Devir: confluências entre magia e ciência

Nelson Jobdoutorando do HCTE/UFRJ

[email protected]

Vamos apresentar uma (re)visão das passagens da magia à ciência no século XVI e XVII - onde esta foi mais intensa – enfatizando Paracelso, Giordano Bruno, Kepler e Newton - para em seguida, avaliá-las no âmbito da física moderna.

Para entendermos o que é “magia” no sentido da história do pensamento ocidental, nos reportaremos ao hermetismo, para a partir dele, identificarmos aspectos dela em outrem.

Hermetismo

O hermetismo é difícil de situar historicamente, em consequência, se torna complexa a precisão do advento de seus principais conceitos. Segundo o médico britânico, coronel, maçom e um dos fundadores da Ordem Hermética da Aurora Dourada, William Wes-cott (2003) e o terapeuta, secretário do controverso Aleister Crowley e membro da Aurora Dourada, Francis Regardie (2008), o hermetismo surgiu no período helenístico (323-147 a.C.) baseados em preceitos do Antigo Egito, especificamente, os do deus Thoth, uma di-vindade lunar que tem a seu cargo a sabedoria, escrita, aprendizagem, magia, medição do tempo etc. Do hermetismo originaram-se a alquimia e astrologia.

Para a historiadora Frances Yates (1964), os textos herméticos iniciam no século II ou III d.C. e não na remota antiguidade, como os magos da Renascença acreditavam. Dentre estes textos, se destacam as “Enéadas” do filósofo egípcio neoplatônico Plotino.

O hermetismo recebe essa alcunha em função da figura de Hermes Trismegisto. Yates afirma que ele não existiu, já os textos alquímicos medievais colocam o advento de Trisme-gisto no mais tardar em 1800 a.C. no Antigo Egito. Sua figura se confundiria com o deus Toth, ora aparecendo como o próprio, ora como seu principal seguidor e difusor.

Modernamente, organiza-se os princípios básicos do Hermetismo em sete:Mentalismo – Tudo é mente e a matéria é força mental coagulada.Vibração – Tudo está em movimento, tudo se move, tudo vibra.Ritmo – Tudo tem fluxo e refluxo, um movimento para frente e para trás.Polaridade – Tudo tem o seu oposto, o seu duplo, que são diferentes em grau, mas os

mesmos em natureza.Correspondência – O que está em cima é como o que está embaixo, e o que está em-

baixo é como o que está em cima. Existem três grandes planos: o físico (matéria, substância

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etérea e energia), o mental (mineral, elemental, vegetal, animal e hominal) e o espiritual, sendo que os sete princípios se encontram em todos eles.

Causa e Efeito – Toda a causa tem o seu efeito. Os estudiosos do hermetismo conhe-cem os métodos da elevação mental a um plano superior, onde se tornam apenas causado-res, e não efeitos.

Gênero – Tudo tem o seu masculino e o seu feminino.

Magia Hermética e Ciência na Idade Moderna

O hermetismo obteve sua maior popularidade na Idade Média. Apesar do cristianismo ter-se mesclado inicialmente ao hermetismo, na Inquisição, todo tipo de paganismo foi entendido como heresia pela Igreja, sendo seus praticantes convertidos ou condenados. A ciência - que também inicialmente possuía íntimas relações com o hermetismo - com o seu avanço, foi abandonando-o gradativamente.

Theophrastus Paracelsus Bombast von Honenheim (1493-1541) foi um médico alqui-mista suíço, muito crítico da medicina de sua época. Segundo o ex-editor da “Nature”, Philip Ball (2009), a concepção de medicina e filosofia de Paracelso baseava-se nos her-metismo e neoplatonismo. Paracelso estudava a natureza para entender o corpo, o que revelava, com tais relações de micro e macro, a presença do Princípio de Correspondência do hermetismo.

Paracelso acreditava nos arcanos, incorpóreos eternos que tem o poder de transmutar os doentes. Esses arcanos combatiam doenças de calor com calor, frio com frio etc., o que veio, posteriormente, a influenciar os homeopatas, da máxima “similar cura similar”.

Com o advento do oxigênio de Lavoisier e sua química, diminuiu-se a influência de Paracelso. Ball discute o mito que essa “nova” química seria anti-Paracelso. De acordo com o autor, poderíamos supor que ele aplaudiria a descoberta do oxigênio. A grande perda da química é seu afastamento da filosofia, é o fato dela ter se tornado uma disciplina isolada, paradigma comum no Iluminismo. Paracelso ainda influenciaria a sinfilosofia dos Pri-meiros Românticos Alemães, ou seja, contribuiria no advento de uma nova filosofia “siner-gética” que veio posteriormente influenciar o descobrimento do campo eletro-magnético.

Giordano Bruno (1548-1600) foi um polêmico frade dominicano italiano, teólogo, fi-lósofo e astrônomo, morto pela Inquisição. Influenciado pelo hermetismo e pelo neoplato-nismo, era divulgador da arte da memória, uma técnica mágica de memorização.

Bruno (2008) afirmava no “Tratado da Magia”: “mago designa um homem que alia o saber ao poder de agir”. Yates (1964) chama atenção para o fato de que o cálculo e a expe-rimentação diferenciavam os magos renascentistas dos gregos antigos e teólogos da Idade Média e que essa disposição de homens como Bruno foi o germe que tornou a ciência tão poderosa.

Giordano Bruno conceberia filosoficamente um universo mutante, anímico, infinito e descentrado; sendo que as duas últimas características foram sustentadas pouco depois por Galileu Galilei. Esse último possuía diplomacia com a Igreja, diferente de Bruno, pois suas idéias pagãs e suas peças debochadas em relação à Igreja o levaram a fogueira em Roma, depois de um cruel processo de julgamento. O historiador da ciência Alexandre Koyré (1979) escreve: “foi Bruno quem pela primeira vez nos apresentou o delineamento, ou o esboço, da cosmologia que se tornou dominante nos últimos dois séculos”.

Johannes Kepler (1571-1630) foi astrônomo, astrólogo e matemático alemão, que for-mulou leis da mecânica celeste que viriam ser muito importantes para a física newtoniana.

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Segundo o teólogo, ex-padre e especialista em geociência James Connor (2005), Kepler obteve grande fama como matemático imperial e como astrólogo, fazendo certeiras previ-sões, recebendo durante certo tempo a alcunha de profeta. Porém, ele sempre foi ambíguo em relação à astrologia, mas achava-a importante para apurar a astronomia. Sua mecânica foi decisiva para engendrar a de Newton, que tirou a importância da astrologia, relegando--a a guetos.

Kepler obviamente sofreu influência do hermetismo, citando longamente Hermes Tris-megisto em sua “Harmonia do Mundo” (YATES-1964). A concepção kepleriana de harmo-nia era um misto de música, astronomia e, principalmente, geometria. Para ele, a harmonia - uma categoria primária da existência que permitia a experiência do mundo - oferecia acesso à mente de Deus.

Devido à sua peculiar fé luterana, Kepler negou, em sua obra, a concepção de universo infinito de Giordano Bruno e Galileu, utilizando-se de argumentos aristotélicos.

Sua mãe, Katharina – que era dada a costumes pagãos, fazendo poções de curas com ervas, mas não era propriamente uma bruxa – foi condenada e presa pela Inquisição já em idade avançada. Os esforços de Kepler permitiram uma soltura tardia, mas logo após, Katharina faleceu.

Isaac Newton (1643-1727) foi físico, matemático, astrônomo, alquimista e teólogo. Se-gundo a historiadora Betty Dobbs (1984), Newton se dedicou principalmente aos estudos da alquimia que foi a principal inspiração para o seu conceito de “força”. É conhecido o discurso de Keynes (2002) dizendo que Newton não foi o primeiro homem da idade da razão, foi o último dos magos.

Na primeira edição do “Principia”, Newton explicitava a sua crença na transmutação da matéria. Com o advento de sua “Óptica”, ele retirou a afirmação do “Principia”, ficando apenas na primeira, considerada obra menor. Se Koyré acredita que Newton deixou de acreditar na transmutação, Dobbs afirmaria que ela está subentendida na obra-prima de Newton. É importante lembrar que Newton era muito influenciado pelos Rosa-Cruzes, e os mestres alquimistas exigiam segredo das descobertas. Koyré (2002) faria ainda uma crí-tica ao legado de Newton; ele teria posto o “movimento absoluto” no lugar do devir, geran-do uma espécie de mudança sem mudança, separando o mundo em dois: o da quantidade, que seria o mundo da ciência e da qualidade, do nosso mundo percebido e experimentado.

Caberia a questão se Newton seria “newtoniano”: não, se alimentarmos a hipótese que Newton realmente acreditava na transmutação da matéria. Assim, Einstein e sua Teoria da Relatividade - que equivaleria matéria e energia - não apontariam o “erro” de Newton, mas recuperaria e desdobraria o Newton oculto.

Física Moderna

Com a enorme difusão da física “newtoniana”, a magia vai perdendo espaço na so-ciedade. Nos resta aqui, brevemente, elencar as ressonâncias com a magia que a ciência guarda, “ocultamente”. Vale lembrar que “ciência oculta” na Renascença, era a ciência do invisível, como seria hoje, por exemplo, a Mecânica Quântica (BALL-2009): o prêmio No-bel Wolfgang Pauli fez psicoterapia supervisonada pelo médico suíço Carl Jung. Este ficou tão impressionado pelos temas alquímicos nos sonhos de Pauli que seu interesse gerou o primeiro livro de Jung (1991) sobre o tema. A amizade entre ambos gerou uma troca profícua de cartas (PAULI e JUNG – 2001) e um estudo profundo entre física e psicologia, culminando no conceito junguiano de sincronicidade (simultaneidade significativas en-

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tre inconsciente e o mundo), depois veio a ser corroborado em parte com a comprovação em laboratório do emaranhamento quântico (simultaneidade entre partículas distantes), ambos guardando semelhanças com o Princípio de Polaridade no hermetismo.

O Princípio de Correspondência também tem suas ressonâncias modernas em hipóte-ses relacionadas a autossimilaridade dos fractais (CLANTON-1997), tanto na cosmologia de Luciano Petronero (GEFTER-2007), em que todo o universo seria fractal, como na Triangulação Dinâmica Causal de Renate Loll (AMBJORN, JURKIEWICZ e LOLL) em que, no nível micro, quântico, a estrutura da matéria apresentaria características fractais.

A teoria de unificação das Supercordas (GREENE – 2005) - que supõe cordas como a menor partícula do cosmos cujas diferentes vibrações gerariam todas as outras partículas elementares do universo - possui uma imensa semelhança com o Princípio de Vibração.

Correspondências

Esperamos aqui problematizar a dualidade magia-ciência, compondo um saber trans-disciplinar, que pode nos fornecer componentes relevantes para uma maior compreensão da Natureza.

Notas

1 A Golden Dawn – misto de hermetismo, cristianismo, filosofia, ciência e teosofia - , foi fundada na Inglaterra em 1888 por membros da maçonaria, Fraternidade Rosa-Cruz e Sociedade Teosófica (REGARDIE – 2008).

2 Segundo o egiptólogo Eric Iversen (1993), as trocas entre Egito e Grécia se origina-ram entre os séculos VII e VI a.C.

3 O historiador Raphael Patai (2009) afirma que houve vários alquimistas judeus, den-tre eles se destaca Maria, a Judia, que viveu provavelmente no início do século III d.C., criadora do popular processo alquímico banho-maria.

4 Entendemos “newtoniana” aqui como algo adverso do Newton pensador.5 Prigogine e Stengers (1984) diriam: a MQ constrói a ponte entre essa ciência do ser e

o mundo do devir - daí o título estóico deste texto.

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A Polêmica - O Fogo Grego

Uma Especulação Sobre a Alquimia dos Componentes Usados na Preparação da Arma Bizantina

Nelson Lage da CostaMestre em Ensino de Ciências – UNIGRANRIO

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Introdução:

O fogo grego ou fogo bizantino era uma mistura muito viscosa que flutuava e queimava mesmo em contato com a água, e acredita-se que tenha sido inventado em 673 por um re-fugiado arquiteto sírio, chamado Kallinikos de Heliópolis. Foi utilizada como arma quími-ca pelos gregos bizantinos e muito embora não exista uma fórmula exata para o fogo grego, uma das hipóteses mais aceita é de que se tratasse de um composto que continha cal viva (óxido de cálcio), petróleo, nafta, enxofre e salitre (nitrato de potássio), dentre outras subs-tâncias. Era frequentemente armazenado em pequenos vasos de barro e podia ser lançado de muralhas e barcos diretamente sobre o inimigo. Esta pesquisa objetiva especular acerca dos componentes que supostamente eram utilizados para a composição da arma secreta bizantina. Pretende-se ainda buscar as origens alquímicas de cada um dos componentes empregados através dos registros históricos existentes. No entanto, mais do que uma ex-plicação mitológica ou histórica, espera-se dar a esta pesquisa uma explicação conclusiva acerca das combinações e reações atualizadas na formulação que supostamente poderiam ter sido usados na preparação da arma bizantina. Serão buscadas na química orgânica, na química inorgânica e na análise química que se conhece atualmente, as explicações que possam levar ao entendimento de como Kallinikos criou tão temida arma.

 

A mitologia de Prometeu:

O fogo grego tem uma estreita ligação com a figura mitológica de Prometeu. Como expressado nos poemas de Hesíodo, intitulados: Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, Prome-teu, um dos Titãs, devolveu o fogo aos humanos, que dele tinham sido privados por Zeus. Como castigo, por ter beneficiado os humanos na repartição dos lotes de um sacrifício, Prometeu foi preso a um mastro para ser torturado por uma águia, que durante o dia lhe devorava o fígado incessantemente; mas este se regenerava durante a noite. Este deus obs-tinado mostrou uma nobre personalidade, tendo sido posteriormente libertado por Hér-

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cules, que matou a águia. Prometeu teria ensinado os homens a usar o fogo e é assim que através deste mito os Gregos explicam o aparecimento do fogo na terra. Nas Metamorfoses de Ovídio, Prometeu está intimamente ligado ao elemento humano por ter sido o autor da criação do homem à imagem dos deuses a partir de uma porção de lodo. Para além destes poderes, proporcionou o conhecimento do tempo, da aritmética, da navegação, da domesticação de animais e da adivinhação do futuro através da análise das suas entranhas e do fogo sagrado.

  

Origem e uso:

As armas incendiárias e flamejantes já tinham sido usadas nas guerras por séculos an-tes da invenção do fogo grego. A primeira utilização de uma substância química incendia-ria no mar pelos Bizantinos data da época de Anastácio I em 513. Entretanto, credita-se a invenção a Kallinikos, um arquiteto de Heliópolis. Entretanto, o historiador James Parting-ton registra que o fogo grego foi inventado realmente pelos químicos em Constantinopla que tinham herdado as descobertas da escola de química da Alexandria.

Em seus usos mais adiantados foi aplicado nas forças inimigas ateando fogo a uma esfera cheia do líquido envolvida por um pano em chamas. Desenvolvendo as tecnológi-cas mais atrasadas foi possível fazer melhorias à máquina usada. A tecnologia permitiu planejar um mecanismo usando uma bomba que descarregava jatos de líquido em chamas (atirador de chamas). A idéia básica de um lança-chamas é espalhar fogo lançando com-bustível em chamas. Os primeiros lança-chamas, datando mais ou menos do século V a.C., eram longos tubos cheios de material combustível sólido (tais como enxofre ou carvão). Essas armas funcionavam do mesmo modo que uma zarabatana - os guerreiros simples-mente sopravam por um lado do tubo, atirando a matéria em chamas na direção de seus inimigos. Um tipo mais sofisticado de lança-chamas iniciou seu largo emprego no século VII. Nessa época o Império Bizantino acrescentou o fogo grego ao seu arsenal. Para o pes-quisador Cesare Rossi, engenheiro mecânico da Università degli Studi di Napoli, e autor do livro Ancient Engineers Inventions: Precursors of the Present,, é muito provável que na época, Arquimedes tenha usado um canhão a vapor, que lançaria esferas de barro com a mistura incendiária, do fogo grego. Evidências indiretas para o canhão de vapor também vem do historiador Plutarco, que conta a história de um dispositivo que obrigou os solda-dos romanos a fugir em um ponto das muralhas de Siracusa.

É difícil imaginar que o método de criar uma arma tão devastadora como o fogo grego estaria perdido pela passagem do tempo. Mas a receita para esta arma era tão bem guar-dada que em apenas 50 anos de sua invenção, o conhecimento foi perdido até mesmo pelos seus criadores. Enquanto as armas incendiárias tinham sido usadas durante séculos (petróleo e enxofre, ambos tinham sido em uso desde os primórdios dos cristãos), o fogo grego era muito, muito mais potente. Muito semelhante à Bomba de Napalm do mundo moderno.

 

Funcionamento

Estudos recentes dão conta do Fogo Grego como sendo uma mistura viscosa que con-tava com os seguintes ingredientes: petróleo bruto, ou nafta, para que flutuasse sobre a

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água; enxofre, que ao entrar em combustão, emite vapores tóxicos; cal viva (óxido de cál-cio), que reage libertando muito calor ao entrar em contacto com a água (o suficiente para fazer queimar materiais combustíveis); resina, para ativar a combustão dos ingredientes,(a colofonia, também conhecida como peixe de castilla, é uma resina natural de cor ámbar obtida das coníferas por extração dos troncos; gorduras para aglutinar todos os elementos; nitrato de potássio, (salitre), que desprende oxigénio, permitindo desta forma que o fogo continue ardendo sob a água. Em combate, forças bizantinas bombeavam essa substância de um amplo reservatório, através de estreitos tubos de latão. Esses tubos concentravam o líquido pressurizado em um poderoso jorro, da mesma maneira que uma mangueira e o bico concentram a água em um jato estreito. Os soldados acendiam um pavio na saída do tubo de latão para inflamar o jorro de fluido quando esguichava. O jorro do fluido levava o fogo a dezenas de metros pelo ar.

Alguns historiadores ingleses dizem que a Armada Invencível de Felipe II sucumbiu ante Francis Drake, que criou uma fileira de barris de fogo grego incendiados justos na Ba-talha do Canal da Mancha. No entanto, estas explicações afastam-se da verdade, já que esta armada sucumbiu às tormentas mais do que na batalha, além de se tratar de uma época na qual o uso da pólvora fazia que possuíssem armas bem mais destrutivas.

Como não existe praticamente nenhuma documentação da sua utilização pelos bizan-tinos, acredita-se (em parte devido ao fraco desempenho da frota bizantina após esta data), que foi durante esta época que os segredos da criação de fogo grego foram perdidos. Em-bora tenha havido muita especulação envolvendo a preparação do fogo grego, ninguém até agora foi capaz de recriar essa mistura. O mais próximo teria sido o exército da Arábia, que acabou criando sua própria versão (as opiniões divergem quanto exatamente quando isso ocorreu provavelmente em algum momento entre meados do século VII e início do século X), mas a fórmula foi imprecisa e, em comparação com o original bizantino, foi relativa-mente fraco. Mas isso não impediu de ser uma das armas mais devastadoras da época. Os árabes usaram o fogo grego de forma muito eficaz, bem como os bizantinos, eles também utilizaram tubos de bronze a bordo de navios e sobre as paredes dos castelos.

 

Manufatura

Os ingredientes, o processo de manufatura, e o uso eram um segredo militar guardado com muito cuidado. Conta-se que o fogo grego contava com a presença de resinas inflamá-veis extraídas dos pinheiros e determinadas árvores (as coníferas). Estas resinas eram fric-cionadas com o enxofre e depois fundidas. Estas resinas estão relacionadas aos terpenos, com os quais ocorrem nas plantas e dos quais são produtos da oxidação. Os exemplos de ácidos de resina são o ácido abiético (sílvico), C20H30O2, ocorrendo em colofônio, e ácido pimárico, C20H35O2, um componente da “resina gallipot”. O ácido abiético pode ser extraí-do do colofônio por meio do álcool quente e, em oxidação, produzem o ácido trimelítico, ácido isoftálico e ácido terébico.

Como se afirma que a mistura se inflamava espontaneamente no contato com água ou com o ar, é possível que o ingrediente ativo fosse fosfato de cálcio, obtido através do aque-cimento da cal, com ossos, e o carvão de lenha. No contato com água, o fosfato de cálcio libera fosfito, que se inflama espontaneamente através da liberação do “oxigênio nascente” proposto como hipótese. No entanto, a reação de cal viva com água cria também bastante calor necessário para inflamar hidrocarbonetos, especialmente se um oxidante tal como

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o salitre estiver presente. As chamas provocadas por este processo de queima eram quase que impossíveis de ser extintas, exceto com areia, urina ou sal (processo de abafamento).

Determinadas resinas que possivelmente teriam sido usadas no fogo grego, podiamser obtidas em uma condição fossilizada, sendo o âmbar o exemplo mais provável desta classe; O copal do México e a goma kauri da Nova Zelândia, por exemplo, são obtidos também em uma condição semi fossilizada. As resinas que são obtidas de exudações naturais são formados por diferentes ácidos, chamados ácidos da resina, que se dissolvem em solução alcalina formando “sabões de resina”, de que os ácidos de resina são regenerados pelo trata-mento com ácidos. E esta forma resinada era de fácil acesso dos bizantinos, tendo em vista as formas geológicas da região.

  

UMA HIPÓTESE: A reação envolvendo o Oxigênio Nascente

Analisando as reações químicas que possivelmente possam ocorrer com a mistura dos componentes que formam o fogo grego, uma hipótese é a ocorrência da liberação de “oxi-gênio nascente”. É possível uma reação de combustão a partir da instabilidade do oxigê-nio nascente em uma reação que contenha materiais combustíveis. Na verdade, o oxigê-nio nascente é como um átomo de oxigênio livre no sistema que no processo de reação química oxida outras moléculas, neste caso os oxiácidos, íons oxidantes e peróxidos, que possivelmente poderiam estar presentes no salitre e/ou nas resinas. Devido a sua elevada reatividade, é capaz de provocar a combustão instantânea de materiais combustíveis, no caso do fogo grego o petróleo que era colocado na mistura.

Pelo aspecto físico-químico, o fogo grego é uma mistura viscosa que flutua e queima até mesmo em contato com água, o que reforça a hipótese aqui apresentada. E como eram frequentemente armazenada em pequenos vasos de barro e podia ser lançada de muralhas e barcos diretamente sobre o inimigo, supõem-se aqui que os recipientes de barro eram portanto formados por dois compartimentos que, ao quebrar, colocavam em contato duas partes da mistura, dando origem ao processo de ignição a partir da liberação do “oxigênio nascente”.

 

Referências

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CORP, Ernest L. (1994) Letra ao editor, Tecnologia do fogo, Volume 30, número 3/DOI10.1007/BF01038076.

FARIAS, Robson Fernandes de (2007) História da Alquimia, Campinas, SP: Editora Áto-mo.

FARIAS, Robson Fernandes de (2004) História da Química no Brasil, Campinas, SP: Edi-tora Átomo.

JAMES, Riddick Partington (1960, reimpressão 1999). Uma história do fogo grego e da pól-vora. Universidade de Johns Hopkins. ISBN 0-8018-5954-9.

LANÇAS, W.H., Jr. (1969). Fogo grego: A arma secreta, Europa. ISBN 0-9600106-3-7.

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NICOLLE, David (1996), Medieval Warfare Source Book: Christian Europe and its Neigh-bours, Brockhampton Press, ISBN 1860198619.

ROLAND, Alex (1992), “Secrecy, Technology, and War: Greek Fire and the Defense of Byzantium, Technology and Culture”, Technology and Culture 33 (4): 655–679

WATTS, John M. (1993): Tecnologia do fogo, Volume 29, número 3/DOI10.1007/BF01152106

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Alguns fatores determinantes da saúde infantil Iorubá da Nigéria

Nelson Lage da Costa*; Virginia Maria Almeida de Freitas**. *Mestre em Ensino de Ciências – UNIGRANRIO; ** Doutoranda do Programa do HCTE

- UFRJ. Email(s): [email protected]; [email protected]: Determinantes de Saúde, Nigéria, História da Ciência.

Introdução

Estudar e entender os principais determinantes de saúde leva pesquisas e pesquisado-res a promovê-la na população em geral. A visão de mundo da população iorubá tende a determinar sua compreensão da relação saúde / doença, prevenção e tratamentos de enfermidades.

Iorubá é o termo usado para nomear um idioma e um povo da África Ocidental, loca-lizado na Nigéria, em parte do Benin (antigo Daomé), Togo, Gana e Serra Leoa. É, ainda, a língua usada nos ritos daqueles que têm por divindade os Orixás. A população predo-minante iorubá encontra-se na Nigéria, país de idioma oficial inglês e que comemorou em primeiro de outubro de 2010, 50 anos de independência política da Inglaterra. O povo io-rubá é, também, conhecido como nagô – termo este empregado pelos franceses no antigo Daomé (atual Benin) para referir-se aos iorubás de qualquer origem.

A religião dos Orixás tem ligação com a noção de família. Orixá, ancestral divinizado, é um patrimônio de família, transmitido pela linhagem paterna. Mulheres casadas são ape-nas doadoras de filhos; é o Orixá da família de seu marido que será o dos filhos que ela ge-rar. Seguir o culto de outra divindade, conservando o do Orixá familiar, pode ser indicado para um indivíduo, por procedimentos de adivinhação dentro da religião, em decorrência de situações especiais como doença (VERGER, 1992).

Trata-se de uma pesquisa qualiquantitativa que objetiva investigar a existência de fa-tores históricos e religiosos nos determinantes de saúde tais como comportamentos pes-soais; estilos e condições de vida, de trabalho, socioeconômicas e ambientais; influências comunitárias; acesso a serviços de saúde; condições culturais e religiosas que interferem diretamente no diagnóstico e tratamento de doenças infantis da população nigeriana de idioma Iorubá. Analisar os fatores que cercam a má receptividade daquela população aos serviços modernos de saúde e mostrar a visão e definição de saúde e enfermidade, sua percepção de prevenção e de cura poderá contribuir para reduzir suas taxas de morbidade e mortalidade.

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Metodologia

A coleta de dados para o estudo levou em consideração aqueles relativos às diversas comunidades de Akinyele, comunidade iorubá localizada cerca de 15 Km ao norte de Iba-dan, a capital do Estado de Oyo; a intenção foi fornecer uma análise sobre a influência dos fatores sociais e culturais da região (JEGEDE, 2002). Ainda foram consideradas de importância informações coletadas na comunidade de Aiyedire, no Estado de Osun (cuja capital, Osogbo, foi fundada pelos iorubás no século XVII) (JEGEDE et al, 2006) . Dados qualitativos foram obtidos de artigos publicados por organismos com atuação na própria Nigéria que tomaram como relevantes crianças menores de cinco anos de idade e a visão endêmica, na avaliação e interpretação destes dados.

Para entender a realidade do povo nigeriano fizeram-se necessárias análises prelimina-res de alguns indicadores econômicos como os demonstrados na tabela 1:

A tabela 2, abaixo, mostra alguns índices como, por exemplo, o do baixo nível de vaci-nação na Nigéria.

Análises complementares

Analisaram-se biografias de mães, discussões em grupos com mulheres e homens, en-trevistas com informantes relevantes (enfermeiras, homens casados, trabalhadores da área de saúde e líderes comunitários) e estudos de casos. Apesar das políticas de saúde no cui-dado da criança, a alimentação forçada é ainda uma prática generalizada na cultura ioruba.

Os determinantes de saúde podem ser categorizados considerando vários fatores que podem levar ou manter o estado de doença. A mitologia desempenha um papel de destaque nas condições de saúde / doença: boa saúde significa um destino positivo; saúde deficiente é considerada um destino negativo. Prevenção e cura recorrem a procedimento de trata-mento tradicional (incluindo consultas a babalaô); hospitais só são procurados quando todas as outras tentativas falharam; o índice de mortalidade é muito alto (JEGEDE, 2002).

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Outra prática cultural ainda vigente é a da sogra trocar de residência, temporariamente, para cuidar do neto recém nascido (JEGEDE et al., 2006). No processo de socialização da criança para integração na sociedade, esta é influenciada pelos modelos estereotipados existentes e encorajada a empenhar-se no comportamento convencional associado ao gê-nero. A vacinação tem uma cobertura inadequada de rotina e atividade insuficiente suple-mentar o que resulta numa baixa imunização das populações: noventa por cento dos casos de poliomielite na África estão na Nigéria (2008-2009) (NDIHOKUBWAYO, et al., 2010); dados mais recentes de 15 de abril de 2010 informaram sobre o tétano neonatal: Nigéria é a segunda em números naquele continente, só perdendo para a República Democrática do Congo (WHO, 2010).

Conclusão

A aceitação das medidas fornecidas pelo Sistema de Saúde é inadequada e estudos mais aprofundados são necessários a fim de compreender como as pessoas definem saúde e doença. Não são claros os fatores que sustentam esta prática continuada de rejeição a aten-ção à saúde fornecida pela Política de Governo local. Estereótipos de gênero, tradições e influência de sogras, são alguns dos elementos responsáveis pela sua sustentação apesar dos avanços na medicina e na transição da saúde. A educação de qualidade teria um papel fundamental, podendo perpetuar a cultura tradicional iorubá, potenciando semelhanças, respeitando as diferenças, concretização o consagrado na Legislação Internacional.

Referências

JEGEDE, A. S. The Yoruba Cultural Construction of Health and Illness. Nordic Journal of African Studies. 11(3): 322-335 (2002). Disponível em: http://www.njas.helsinki.fi/pdf-files/vol11num3/jegede_02.pdf. Acesso em: 24 out. 2010.

JEGEDE, A. S. et al. Forced Feeding Practice in Yoruba Community of Southwestern Ni-geria: Evidence from Ethnographic Research. Anthropologist. 8(3): 171-179 (2006). Disponível em: http://www.krepublishers.com/02-Journals/T-Anth/Anth-08-0-000-000-2006-Web/Anth-08-3-147-214-2006-Abst-PDF/Anth-08-3-171-179-2006-342-Jegede-A-S/Anth-08-3-171-179-2006-342-Jegede-A-S-Text.pdf. Acesso em: 24 out. 2010.

NDIHOKUBWAYO, J. B. et al. Strengthening Public Health Laboratories in The WHO Africa Region: a critical need for disease control. The African Health Monitor. Issue 12. Apr – Jun 2010. p. 47-52. Disponível em: http://ahm.afro.who.int/issue12/. Acesso em: 24 out. 2010.

VERGER, P. F. Orixás – Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega. 4a Ed., Salvador: Corrupio, 1992. 295 p.

WORLD HEALTH ORGANIZATION – Regional Office for Africa. Communicable Dise-ases Epidemiological Report, 17 February 2010. Neonatal Tetanus in the WHO Afri-can Region: A Call for Intensified Action. The African Health Monitor. Issue 12. Apr – Jun 2010. p. 68 -69. Disponível em: http://ahm.afro.who.int/issue12/. Acesso em: 24 out. 2010.

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Nova hipótese sobre a origem dos manuscritos de Paris

Oscar Toshiaki MatsuuraProfessor colaborador do Programa HCTE/UFRJ e Pesquisador colaborador do MAST/

[email protected]

Introdução

Os Manuscritos de Paris B4 5 (abreviarei MP) depositados na biblioteca do Observató-rio de Paris são o principal documento das atividades astronômicas de Jorge Marcgrave no Brasil Holandês. Eles parecem ter sido preparados objetivando publicação.

Com base neles e outros documentos subsidiários, inclusive uma aquarela da época, e utilizando técnicas de desenhos tridimensionais, fiz uma reconstituição detalhada dos instrumentos e do observatório, este virtualmente posicionado no local preciso do atual bairro de Santo Antônio, em Recife. Equívocos em voga sobre a montagem do quadrante de 5 pés puderam ser refutados e vários pontos duvidosos ou controversos puderam ser esclarecidos.

Segundo os MP Marcgrave fez observações de vários tipos, sem instrumentos antes da construção do observatório e, depois, com instrumentos inclusive uma pequena luneta. A olho nu estimou a distância angular entre planetas e estrelas fixas, observou alinhamentos de astros e o comportamento da luz crepuscular e ainda comparou a substantia das Nuvens de Magalhães com a da Via Láctea. Com a luneta observou ocultações, os satélites de Jú-piter e fases de Mercúrio. Com o quadrante fez observações meridianas do Sol, de estrelas fixas e de planetas superiores (aqueles que orbitam fora da órbita da Terra) e extra-meri-dianas de Mercúrio. Observou todos os eclipses solares e lunares que podiam ser vistos de Recife e arredores, cuja observação valesse à pena. Fiz uma análise dos métodos peculiares de observação que ele utilizou, assim como uma análise quantitativa dos dados observa-cionais registrados nos MP. Essa análise possibilitou, dentre outras coisas, a avaliação dos erros instrumentais e observacionais tanto na medição de ângulos na esfera celeste, quanto da Hora Urbica e da duração de intervalos de tempo.

Como subproduto, a análise sistemática dos MP possibilitou também reelaborar uma linha do tempo mais precisa das atividades realizadas por Marcgrave no Brasil e rastrear com especial cuidado o período favorável para a eventual mudança do observatório para o palácio de Friburgo. A ausência de qualquer menção nos MP me levou a pesquisar a origem das declarações, aceitas ainda hoje, de que o observatório seria numa das torres do palácio de Friburgo. Tais declarações surgiram no início do século 20, por aproximação e combinação de informações fragmentárias anteriores, algumas com potencial de induzir

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em erro, e ganharam credibilidade numa biografia considerada padrão. Tudo indica, po-rém, que o propalado observatório no palácio de Friburgo não passa de um mito.

A análise feita nos Manuscritos de Leiden (ML) das observações feitas por Marcgrave antes dele vir para o Brasil quando era estudante da Universidade de Leiden, revelou que lá ele tinha recebido os conhecimentos e o treinamento para construir em Recife o que pode ser considerado o mais avançado observatório do mundo na época. Os resultados preliminares do trabalho aqui brevemente recapitulado foram apresentados num painel em Scientiarum Historia I (MATSUURA, 2008).

Origem dos Manuscritos

De uma análise caligráfica baseada em documento autógrafo de Marcgrave nos ML pude concluir que os MP definitivamente não eram do próprio punho dele. Certamen-te a primeira publicação baseada nos MP foi Annales Célestes du XVIIe siècle (PINGRÉ, 1901). Nela o autor afirma numa nota que os MP e uma cópia parcial deles feita por Ismael Boulliau (1605-1694) se encontravam no Dépôt de Plans, Cartes et Journaux de la Marine. Cabe lembrar que Pingré começou a elaborar os Annales Célestes em 1756. Nessa mesma nota o editor M. G. Bigourdan (1851-1932) acrescentou: “Aujourd’hui ces manuscrits sont l’un et l’autre à l’Observatoire de Paris.” De fato, em 1795 o acervo do Dépôt passou para o Bureau de Longitudes e, finalmente, parte dele passou para o Observatório de Paris (FEU-ILLEBOIS, 1975).

Pretendendo elaborar uma obra universal de astronomia, Joseph Nicholas Delisle (1688-1768) vinha juntado livros, cartas e registros de observações de várias partes do mundo. Para isso ele mantinha uma intensa correspondência epistolar e, em suas viagens, adquiria obras e manuscritos. Mas, para superar uma crise financeira por que estava pas-sando, por volta de 1750 ele entregou sua rica e volumosa coleção para a marinha francesa, recebendo em troca o título de professor de astronomia da Academia Naval (FEUILLE-BOIS, 1975). Assim é que os MP podem ter ido parar no Dépôt.

Jerôme Lalande (1732-1807), um discípulo de Delisle, afirmou ter visto os MP entre os papéis de seu mestre e que “l’original est resté a Cadix, avec les manuscripts de Louville et beaucoup d’autres que M. Godin y avait emportée et que l’on croit être entre les mains de D. Antonio de Ullôa.” (LALANDE, 1771) Tais originais jamais foram localizados.

Porém, a corrente versão, bastante acreditada, é a de que os MP foram copiados pelo as-trônomo Ismael Boulliau (1605-1694) quando este foi secretário do embaixador da França na Holanda, a partir de 1657 (NORTH, 1979). Mas também constatei que os MP não são autógrafos de Boulliau, além de ter encontrado na biblioteca do Observatório de Paris as anotações parciais dos MP feitas por Boulliau (B5:12-13) que podem ter dado origem a essa versão. Cabe destacar que Pingré tinha sido bem claro ao dizer que a cópia autógrafa de Boulliau era apenas parcial.

A nova hipótese

Durante uma inspeção visual dos MP e outros manuscritos da época numa brevíssima visita à biblioteca do Observatório de Paris em julho de 2009, pude num relance identificar a mesma caligrafia e as mesmas particularidades dos MP numa compilação das observa-ções de Tycho Brahe (B4:15-20). Num pedaço de papel estava uma anotação informando

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que a compilação tinha sido feita por Érasme Bartholin. Esse passou então a ser o nome--chave de uma nova hipótese sobre a origem dos MP.

Enquanto foi professor de matemática da Universidade de Copenhague, Bartholin fez essa compilação a pedido do rei Frederico III da Dinamarca que, o mais tardar em 1662, tinha adquirido os originais das observações de Tycho Brahe (DREYER, 1963). Como Fre-derico III morreu em 1670 e seu filho e sucessor não tinha interesse, a edição ficou suspen-sa. No ano seguinte, em nome da Real Academia de Ciências de Paris, o astrônomo Jean Picard (1620-1682) foi para Copenhague para determinar com precisão as coordenadas geográficas de Uraniborg. Tomando conhecimento do impasse da edição, em 1672 pediu permissão para levar a compilação para Paris onde a edição poderia ser feita sob o patro-cínio de Luís XIV. A impressão chegou a começar em Paris, mas foi suspensa porque as despesas com as guerras escassearam as verbas. Segundo DREYER (1963) a compilação de Bartholin ficou em Paris na Academia de Ciências e encontra-se hoje no Observatório. Ora, os manuscritos que se encontram no Observatório de Paris foram classificados por FEUILLEBOIS (1975) em duas categorias: a dos registros de atividades do próprio Obser-vatório, cujo primeiro documento data de 1671, e a dos aportes externos em que o acervo de Delisle constitui uma parte importante do fundo de arquivos. A que categoria pertence a compilação de Bartholin?

Os trabalhos geodésicos de Picard em Uraniborg foram feitos em parceria com Jean--Dominique Cassini, que fazia as mesmas medições no Observatório de Paris e, em 1673, Picard passou a trabalhar no Observatório de Paris. Por essa proximidade e vínculo ins-titucional, parece razoável supor que a compilação de Bartholin tenha sido diretamente depositada no Observatório de Paris. Nem parece plausível que no século seguinte Delisle tivesse trazido esse item para a sua coleção, entregue ao Dépôt em 1750. Portanto, muito provavelmente a compilação das observações de Tycho Brahe feita por Bartholin nunca es-teve no Dépôt. Corroborando esta idéia, DREYER (1963) diz que Delisle fez uma cópia de toda a compilação, a traduziu ao francês, porém, com freqüentes omissões. Se ele tivesse a compilação, não precisaria fazer a cópia. DREYER (1963) diz ainda que Pingré fez uso ex-tensivo da compilação para elaborar sua Cométographie. Isso ele teria feito não no Dépôt, mas no Observatório de Paris em 1783-1784. Como, no entanto, os MP definitivamente estiveram no Dépôt, sou levado a crer que eles, também compilados por Bartholin, não teriam chegado a Paris pelas mãos de Picard.

A nova hipótese envolvendo Bartholin é corroborada pelo fato de que ele foi estudante de matemática na Universidade de Leiden de 1646 a 1650, época da publicação dos tra-balhos de história natural de Marcgrave no Brasil. Os dados até agora levantados são con-gruentes com a hipótese de que, paralelamente a João de Laet, que recebeu as anotações de história natural, Jacob Gool (1596-1667), professor de astronomia de Marcgrave em Leiden, teria recebido as de astronomia e repassado para Bartholin para fazer a compilação visando posterior publicação. Que Bartholin tinha dotes editoriais é atestado pelo fato de que em 1651 ele editou em Leiden Principia matheseos vniversalis, sev Introductio ad geo-metriae methodum Renati Des Cartes a Bartholino edita, um livro-texto do professor Frans van Schooten (filho) sobre a então recém-criada geometria cartesiana.

Conclusão

Diferentemente dos MP, os ML consistem em papéis de diferentes tamanhos e conteú-dos. De uma forma fragmentária, porém, relativamente abundante, várias das observações

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astronômicas relatadas nos MP reaparecem nos papéis de Leiden. Nestes as anotações são claramente do próprio punho de Marcgrave. São rascunhos escritos apressadamente talvez durante as próprias observações. Mas, inúmeras vezes os MP que, como já disse, parecem ter sido preparados para posterior publicação, trazem mais informações que os ML sobre detalhes, por exemplo, das condições do tempo ou do método de observação, coisas que só o observador poderia saber, mas não o compilador. Isso torna necessária a existência de uma versão intermediária escrita por Marcgrave ou sob a sua supervisão, a partir da qual a compilação teria sido feita.

Se Bartholin é o compilador dos MP, ele deve ter tido em suas mãos essa versão inter-mediária que seriam os originais dos MP levados por Goudin de Paris para Cádiz. Como não é plausível que os MP tenham chegado a Paris através de Picard, a seguinte conjectura pode ser feita com o objetivo de suscitar novos testes da hipótese. Gool faleceu em 1667 e no ano seguinte houve o leilão de seus bens pessoais em Leiden. É possível que entre os seus bens estivessem os MP compilados por Bartholin com os respectivos originais. De al-guma forma, na primeira metade do século 18 esses itens teriam chegado ao colecionador Delisle. Pingré encontrará depois os MP no Dépôt. A cópia parcial que ele também encon-trou pode muito bem ter sido feita por Boulliau em Leiden, quando os MP estavam com Gool. Os originais dos MP teriam sido levados por Goudin de Paris para Cádiz.

Numa breve nota o tipógrafo de PISO (1658) alude en passant a uma nova obra de astronomia que pode bem ser os MP. Porque Gool não publicou permanece um mistério.

Notas

1 Jacques Eugène D’Allonville de Louville (1671-1732), astrônomo e matemático fran-cês.

2 Louis Godin (1704-1760) também foi discípulo de Delisle.3 O Observatório de Cádiz foi fundado em 1753. Em 1798 foi transferido para San

Fernando. Segundo o atual diretor da biblioteca e arquivo histórico em San Fernando, to-dos os documentos anteriores a 1788 podem estar no Archivo General de Simancas. Uma consulta foi recentemente encaminhada para essa instituição.

Referências bibliográficas

DREYER, J. L. E.: Tycho Brahe, A Picture of Scientific Life and Work in the Sixteenth Cen-tury, New York, Dover, 1963, p.374-375

FEUILLEBOIS, G.: Les Manuscrits de la Bibliothèque de l’Observatoire de Paris, Jour-nal for the History of Astronomy, 1975. VI, p. 72-74

LALANDE, J.: Traité d’Astronomie, Paris, 1771. T. 2, p. 160

MATSUURA, O. T.: O pioneirismo de Jorge Marcgrave na astronomia brasileira, Rio de Janeiro: HCTE/UFRJ, 2008. Anais Scientiarum Historia 1º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, 22 e 23/09/2008, p. 310-323

NORTH, J. D.: Georg Markgraf. An Astronomer in the New World, in Johan Maurits van Nassau-Siegen 1604-1679 (E. van den Boogaart, Ed.), The Hague, The Johan Maurits van Nassau Stichting, 1979, p. 397

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PINGRÉ, A.-G.: Annales Célestes du dix-septième siècle, M. G. Bigourdan (Ed.), Paris, Gauthier Villars, 1901

PISO, W.: De Indiae utriusque re naturali et medica, Amsterdã, Lud. et Dan. Elzevirius, 1658

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Bernard Palissy: Um Cientista Francês do Século XVI

Paulo Cesar Strauch D.Sc.-em HCTE

Bernard Palissy (c.1510-c.1590) foi naturalista, ceramista, escritor e conferencista. Sua diversificada atividade científica cobriu uma vasta área do conhecimento, com trabalhos em agricultura, agrimensura, alquimia, botânica, cerâmica, engenharia, fabricação de vi-trais, filosofia, física, geologia, hidrologia, jardinagem, literatura, medicina, metalurgia, meteorologia, mineralogia, paleontologia, pintura, toxicologia e zoologia.

Sabe-se pouco da sua família, bem como da sua infância e juventude. Seu pai era pro-vavelmente um artesão, porque Palissy sabia desenhar e pintar, técnicas que na época eram passadas de pai para filho. Palissy, mais tarde, aprendeu os ofícios de pintura de vitrais, agrimensura e possivelmente fabricação de vidro.

No início da sua mocidade, empreendeu viagens por várias regiões da França, como Guienne, Gascogne, Pyrénées, Savoie, Auvergne, Bourgogne e outras (AUDIAT, L. – 1868, p.25-36), um trajeto que hoje seria melhor descrito como a Tour de France. Sustentou-se o tempo todo com seus conhecimentos de montagem e pintura de vitrais bem como de agrimensura.

Esta viagem por um país que apresenta em seu relativamente pequeno território uma grande diversidade de ambientes geológicos, como a França, permitiu-lhe realizar muitas investigações em história natural. Sua mente captava todas aquelas imagens, ao mesmo tempo que procurava interpretar os fenômenos que observava. Tratava-se de mente bas-tante curiosa; para ele, a natureza constituía um grande livro e “ a ciência se manifesta a quem a procura” (CAP, P.A.G. –1844, p. xxix).

É provável que em 1539 ele tenha terminado a sua viagem exploratória pela França. Naquele ano, casou-se e fixou residência em Saintes, capital da antiga província real de Saintonges; atualmente no departamento Charente-Maritime, no sudoeste da França.

Não se sabe se foi naquela época, ou antes, que ele avistou um objeto que, segundo ele, era “uma taça de barro, torneada e esmaltada com tal beleza que perturbou a minha men-te...” (PALISSY, B. - 1580, p.274). Muitos afirmam que se tratava de uma peça de majólica esmaltada da Itália, o que parece pouco provável. Tudo indica que ele possa ter-se depara-do com uma peça de porcelana chinesa na casa de algum nobre.

Ele tomou a decisão de fabricar peças como aquela. Só que não conhecia nada de esmal-tes, de construção de fornos, da produção do fogo. Seu aprendizado em bases totalmente empíricas, sem nenhum conhecimento teórico prévio, como relatado por ele mesmo no capítulo De L´Art de la Terre do seu conhecido livro Discours admirables demandou-lhe

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bastante tempo e recursos, levando-o e a sua família à penúria. Depois de muitos anos, obteve sucesso e, muito embora não tenha conseguido reproduzir a porcelana chinesa, acabou por produzir uma técnica própria e seus trabalhos passaram a ser bastante valori-zados pela classe nobre.

Palissy, chamou as suas peças de “figulines rustiques” por representarem objetos rús-ticos, de rochedos, de grutas, de árvores, de animais e algumas vezes de pessoas; o todo em relevo ou em uma saliência redonda e revestido(a) por um verniz escuro (CAP P.A.G. – 1844, p.15). A maior parte das peças, todavia, é constituída de pratos, redondos e ovais, que reproduzem o fundo de um lago e decorados com plantas, insetos, crustáceos e rép-teis de argila, trabalhadas em relevo. Várias dessas peças podem ser vistas em importantes museus no mundo.

Estes pequenos animais que parecem vivos, foram obtidos por moldagem em gesso de seus cadáveres realizada cuidadosamente, de modo a não deixar quaisquer indicações de danos provocados em seus delicados tecidos. Por meio desta técnica, podem ser mostrados na cerâmica pequenos detalhes, como escamas de serpentes e peixes e nervuras de folhas, por exemplo. Palissy não fora o primeiro a fazer isso, mas seu trabalho foi especialmente valorizado e ele zelosamente manteve segredo das suas técnicas não deixando detalhes nos seus registros escritos.

As historiadoras de arte francesas Maryvonne Cassan (Musée du Louvre) e Géraldine Vendé-Lobert relatam (CASSAN,M – 2003, p.4) que a cerâmica desenvolvida por Palissy é feita de argila vermelha da região de Saintes e que se desconhece a técnica utilizada por ele para produzir esmaltes coloridos à base de chumbo, por não tê-la divulgado nos seus escritos, comportando-se, neste caso, como muitos artistas de seu tempo.

Ele forneceu, todavia, algumas pistas sobre o tipo de substâncias que utilizava, quando escreveu que:

“Os esmaltes de que me ocupo são feitos de estanho, de chumbo, de fer-ro, de aço, de antimônio, de safira, de cobre, de areia, de salicácea, de cinzas de cascalho, de litargírio, de pedra de Périgord.” ...” (PALISSY, B. - 1580, p.291)

Nesta listagem cabem algumas explicações. A salicácea é uma espécie vegetal cujas cinzas fornecem sódio e entra na fabricação dos esmaltes. O litargírio (PbO) ou óxido de chumbo amarelo é empregado como fundente na fabricação dos esmaltes. O estanho opa-cifica os esmaltes. Os demais materiais constituem óxidos de antimônio para a cor amare-la, de cobre para o verde, a safira ou cobalto para o azul, se bem que ferro possa fornecer as cores azul e verde, sendo frequentemente misturado com outros pigmentos. Quanto à pedra de Périgord, contém óxido de manganês, responsável pela cor marrom ou preta. (CASSAN,M – 2003, p. 19)

Durante toda a sua vida sofreu perseguição religiosa por conta da sua adesão ao protes-tantismo. Foi preso algumas vezes e solto em seguida por interferência do seu patrono, o duque de Montmorency- Anne de Montmorency (1493-1567) e depois, com a morte deste, da própria rainha Catarina de Médici (1519-1589). Com a ajuda dela, ele e sua família escaparam do massacre dos calvinistas perpetrado pelos católicos na célebre noite de 24 de agosto de 1572, conhecida por noite de São Bartolomeu. Mais tarde, realizou pesquisa em história natural fora da França. Retornou a Paris em 1575. A partir de então, pretendeu tornar-se conhecido, não mais como calvinista e ceramista, mas como cientista. (FOSTER, M.L. – 1931, p. 1058)

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No período de 1575 a 1584 realizou palestras públicas em Paris, anunciadas através de cartazes afixados em diversas estradas da França e que não eram gratuitas, mas pagas para que, segundo ele, estivessem presentes apenas “os mais doutos e os mais curiosos” (AUDIAT, L. – 1868, p.350). A intenção de Palissy era que suas ideias fossem divulgadas e submetidas ao escrutínio público de sábios, já que tinham resultado apenas de suas ob-servações e interpretações. (AUDIAT, L. – 1868, p.351). Os frequentadores eram de bom nível (AUDIAT, L. – 1868, p.421-5), como, por exemplo, o célebre cirurgião Ambroise Paré (1510-1590) (AUDIAT, L. – 1868, p. 426)

Por conta dessas palestras, ele tornou-se conhecido como um Filósofo Natural, como eram chamados os cientistas naquela época, apesar de ser, segundo sua próprias palavras, “um homem desprovido de latim” (PALISSY, B. -1580 ,prólogo). Aliás, suas palestras em francês traziam uma contribuição inestimável à disseminação das ciências, o que era muito criticado pela poderosa Universidade de Paris, que defendia que apenas o latim deveria ser usado para a difusão das ideias.

Com todo o seu prestígio, Palissy continuava a sofrer perseguições, até ser preso, em 1587, desta vez de forma definitiva. Sem a proteção da rainha e não aceitando o perdão que lhe fora oferecido desde que abjurasse a sua crença, veio a morrer em data incerta, em 1589 (FOSTER, M.L. – 1931, p. 1050) ou 1590 ((RÉAUME, E. -1877, p. 351)

O trabalho de Palissy, como naturalista, permaneceu desconhecido até o século XVIII, quando ele passou a ser reconhecido por cientistas franceses. Sabe-se que em 1720, em sessão da Académie des Sciences de Paris, seu secretário perpétuo, Bernard de Bouyer de Fontenelle (1657-1757), fez menção aos escritos e descobertas de Palissy em história na-tural; em 1772, George Louis Leclerc (1707-1788), Conde de Buffon, o famoso naturalista francês, em sua Théorie de la Terre deu consistência às conjecturas de Palissy; em 1777, o cientista e engenheiro de minas francês Barthélemy Faujas de Saint –Fond (1741-1819), que lançou os fundamentos da geologia, mandou reimprimir os livros de Palissy. (DELE-CLUZE, E.J.– 1838, p. 61)

Seus dois principais livros foram Recepte Véritable, publicado em 1563 e Discours Ad-mirables, publicado em 1580. Eles foram escritos de forma similar sob a forma de diálogos, entre “Demande “ e Réponse” no primeiro e entre “Théorique” e “Pratique” no segundo. Em “Réponse” e “Pratique” Palissy apresenta suas ideias e conceitos.

No primeiro livro Palissy aborda vários assuntos, incluindo agricultura (no qual pro-põe métodos melhores para a lavoura e o uso de adubos), geologia (no qual teoriza sobre a origem dos sais, fontes, pedras preciosas e formações rochosas), minas e florestas. Neste trecho, pode-se ler, por exemplo, um texto com uma visão ecológica de impressionante atualidade, conforme reproduzido a seguir.

“Não existe arte no mundo para a qual se necessite mais entendimento do que a agricultura e eu lhe asseguro que se esta atividade for reali-zada sem entendimento constituirá uma violação diária da terra. Na verdade, eu imagino que a terra e os produtos não exigem vingança de alguns assassinos, homens ignorantes e mal agradecidos, que, sem nenhuma razão, depredam e destroem árvores e plantas. Ouso também afirmar que se a terra for adequadamente cultivada, cuidadosamente lavrada como deve ser, um diarista produzirá mais do que dois pode-rão com os métodos atuais... Aborrece-me ver os grandes, que deve-riam ser inteligentes, deixar suas fazendas nas mãos de ignorantões...”. (PALISSY, B. - 1563, p. 3)

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Também é apresentada neste livro a descrição de um jardim ideal, muito embora não esteja incluído um desenho do mesmo. Os princípios por ele estabelecidos e descritos aca-barão por governar os projetos de jardins nos séculos XVII e XVIII, tanto na França como em outros países.

Ele também trata da fundação da igreja protestante e perseguição aos calvinistas em Saintes. Neste contexto, é também apresentado um projeto (sem desenhos) para uma for-taleza em espiral, segundo ele inexpugnável e que poderia eventualmente servir de refúgio aos crentes quando perseguidos.

No segundo livro, Discours admirables, como o próprio nome indica, ele parece deixar registradas suas palestras públicas para a posteridade. O livro é dividido em diversos capí-tulos. O primeiro, e também o mais longo, trata da água. Os capítulos seguintes abordam os metais e a sua gênese, remédios, os diferentes tipos de sais e sua natureza, , característi-cas dos minerais e rochas, tanto comuns como preciosas, argila e marga e arte da cerâmica.

Mesmo sem detalhar seus pontos de vista, vale acentuar não só o pioneirismo como a atualidade de muitas das suas ideias. Por exemplo, mesmo sendo desprovido de uma com-preensão moderna da biologia, sua interpretação sobre o processo de fossilização estava bastante à frente dos seus contemporâneos, bem como no reconhecimento da relação entre fósseis e seres vivos e extintos e do processo de petrificação. Esta sua visão deve ter sido muito influenciada pela sua técnica de moldagem em gesso de corpos de animais, bem como por suas explorações naturais pela França, pesquisando seu solo. Para ilustrar suas palestras, ele convidava os assistentes a visitar sua coleção particular de espécimes, onde predominavam fósseis, considerada como o primeiro gabinete de história natural da Fran-ça (CAP, P.A.G. – 1844, p. 18).

Também surpreendente é sua visão sobre o ciclo de água da natureza, sendo reconheci-do hoje como um dos pioneiros no estabelecimento do papel das chuvas no mecanismo de formação das fontes e rios. Ele também discorreu sobre os poços artesianos e sua recarga a partir de rios próximos e o reflorestamento como meio de evitar a erosão do solo. Explicou até mesmo que “ a causa do arco-íris não é senão principalmente que o Sol passa direta-mente através das chuvas que se opõem ao aparecimento do sol” (CAP, P.A.G. – 1844, p. 22)

A partir do século XIX, passou a haver um renovado interesse por Palissy, dos pontos de vista artístico, científico e literário, a ponto terem sido escritas entre 1830 e 1890 pelo menos 70 biografias dele (CASSAN,M – 2003, p. 6). Outros autores apontam a sua in-fluência sobre Francis Bacon (1561-1626). Por exemplo, o físico e historiador de ciência Ferdinand Hoefer (1811-1878) afirma taxativamente que :

“Foi a Bernard Palissy e não a Francis Bacon, que devemos a introdução final do método experimental na ciência. L´Art de Terre do ceramista apareceu antes [1580] do Novum Organum [1620] do cavaleiro da In-glaterra.” (HOEFER, F. – 1873, p.394)

Alguns autores modernos compartilham desta visão. Por exemplo, o químico e histo-riador da ciência norte-americano Hugh Salzberg (n.1921) ressaltou que “[Palissy] enfa-tizava a importância da pesquisa e experimentação independentes e insistia que as teorias deveriam ser sempre comprovadas por observação.” Foi ainda mais longe. Para ele, “as palestras de Palissy tiveram uma influência considerável na geração seguinte de cientistas franceses. Francis Bacon provavelmente assistiu a algumas delas quando em visita a Paris em sua juventude.” (SALZBERG, H.W. –1991, p. 132-133)

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A grande quantidade de assuntos por ele abordados, as interfaces ciência, técnica e arte que existem nos seus escritos e a sua própria vida, tornam Bernard Palissy uma persona-gem fascinante e ao mesmo tempo altamente relevante para investigar aquelas interfaces, bem como aquelas entre diversas ciências e, até mesmo, a interface disso tudo com o social. Esta investigação deverá ser muito facilitada pela existência de abundante literatura, que trata de muitos destes aspectos.

Referências bibliográficas

AUDIAT, L. – Bernard Palissy: Étude sur sa vie et sur ses travaux – Paris: Didier – 1868

CASSAN,M.; Vendé-Lober, G. – Bernard Palissy, ses suiveurs, ses emules – Dossier Péda-gogique – Service Culturel – Musée National Adrien Dubouché – Limoges, 2003 – Disponível em www.musee-adriendubouche.fr/documents/bernardpalissy.pdf

CAP, P.A.G. – Oeuvres complètes de Bernard Palissy – Paris: Béthune et Plon – 1844

DELECLUZE, E.J.– Bernard Palissy – Revue Française, T.10, 3, III-1838

FOSTER, M.L. – Bernard Palissy: Sixteenth-Century Scientist – Jounal of Chemical Edu-cation, Vol.8 No.6 (1931)

HOEFER, F. – Histoire de la Physique et de la Chimie depuis les temps les plus reculés jusqu´a nos jours – Paris: Librairie Hachette – 1873

PALISSY, B. - Recepte véritable, par laquelle tous les hommes de la France pourront ap-prendre à multiplier et augmenter leurs thrésors. Item, ceux que n´ont jamais eu cog-noissance des lettres, pourront apprendre une philosophie nécessaire à tous les habi-tantes de la terre. Item, en ce livre est contenu le dessin d´un jardin autant déletable et d´utile invention, qu´il en fût oncques veu. Item, le dessin et ordonnance d´une ville de fortresse, la plus imprenable qu´homme onyt jamais parler.- La Rochelle – 1563

PALISSY, B. - Discours admirables de la nature des Eaux et Fontaines, tant naturelles qu´artificielles, des métaux, des sels et salines, des pierres, des terres, du feu et des émaux; aux plusieurs autres excellents secrets des choses naturelles. Plus en traité de la Marne, fort utile et nécessaire à ceux qui se mellent de l´agriculture. – Paris: Chez Martin Le Jeune – 1580

RÉAUME, E.; Causade, F. de – Oeuvres Complètes de Théodore Agrippa d ´Aubigné – Tome II – Paris: Alphonse Lemerre- 1877

SALZBERG, H.W. – From Caveman to Chemist: Circumstances and Achievements – Washington, D.C.: American Chemical Society – 1991

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Topologia e Psicanálise.Pedro Beranger & Ricardo Kubrusly

Pedro Beranger - mestrando do Programa de Pós-Graduação em Historia das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – HCTE/UFRJ & Ricardo Kubrusly –

professor do Programa de Pós-Graduação em Historia das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – HCTE/UFRJ

[email protected] & [email protected]

1.1 O interesse científico da psicanálise e o intercâmbio com outros campos.

O intercâmbio com outras disciplinas é tendência presente desde Freud em O Interesse Científico da Psicanálise, 1913. Como não poderia deixa de ser, na mesma direção na obra de Jacques Lacan vemos uma grande aproximação em relação à linguística.

A entrada de Lacan no território psicanalítico parte de um lugar periférico em relação aos fenômenos comumente trabalhados pela psicanálise. Insatisfeito com as hipóteses or-ganicistas e sociológicas com relação à loucura, o então jovem médico encontra na psica-nálise um campo mais rico. Porém, seria preciso, também, descontaminar a psicanálise do biológico/ambientalismo proveniente da psiquiatria e da psicologia.

Com a convicção de que as insuficiências desses saberes não eram meramente concei-tuais e metodológicas, lançou-se à ambição de discutir os fundamentos para, então, di-mensionar e estabelecer a natureza do fenômeno de que trata a psicanálise: o inconsciente e o sujeito. Os quais são redefinidos no sintagma sujeito do inconsciente.

Trata-se, então, de uma derivação epistemológica, não metodológica, posta à psica-nálise. E o terreno epistemológico onde isso se deu foi aquele onde há a articulação da psicanálise com a linguística.

Fazendo notar que qualquer enunciado presume os signos que os expressam, signos que pressupõem uma linguagem estruturada pelo significante, aponta para a anterioridade da linguagem enquanto sistema.

Desta anterioridade da linguagem como sistema que antecede, inclusive, a intenção comunicativa, onde o falante é secundário em relação a ele, Lacan indica que o sujeito é um efeito de linguagem. E, ademais, levanta a hipótese de que o discurso retrata o sujeito, o que se desdobra na famosa fórmula lacaniana: o significante representa o sujeito para outro significante.

Segundo Franklin W. Goldgrub, em A Máquina do Fantasma, 2001, apoiado nessa ante-rioridade da língua relacionando-a à primazia lógica do inconsciente em relação à consci-ência, linguagem e inconsciente passam a ser considerados consubstanciais.

Entretanto, ressaltamos que o que há de instigante na chamada pelo mesmo como fór-mula epistemológica essencial segundo a qual o inconsciente está estruturado como uma

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linguagem é a presença ainda discreta do conceito de estrutura, tão caro ao nosso trabalho. Falar em consubstancialidade, a nosso ver, ofusca a ressalva do inconsciente ser estrutura-do, assim como a linguagem. Além de ser extremamente polêmica a ideia de substanciali-dade do sujeito que por definição é sem substância.

Se esta fórmula se manteve intacta mesmo quando Lacan se transportou, decidido em enfatizar as diferenças entre a linguística e a psicanálise, da linguística para a topo-logia foi por conta da relação que ambas possuem segundo o que podemos denominar de estrutura.

1.2 Terra prometida? Nova estética transcendental?

Para Goldgrub, é possível contestar o distanciamento da psicanálise e linguística. Ar-riscando uma hipótese ele supõe que

“(…) Lacan teria temido a anexação da psicanálise pela linguística, na medida em que esta tem por objeto (...) o fenômeno que fornece a base epistemológica de que a psicanálise precisou para desvincilhar-se da su-serania biológico/cultural (...)” (ibid, 2001, p.16)

Dessa forma, a topologia constituiria um território ideal onde a desfamiliarização com a psicanálise a protegeria de qualquer pretensão de soberania sobre ela.

Por outro lado, para J.-D. Nasio em Topologería, 2007, o recurso à topologia não se trata de uma sofisticação, de um refinamento excessivo. Relaciona-se a “(...) uma nova estética transcendental conforme a experiência, não do sujeito do conhecimento, mas do sujeito do inconsciente.” (Nasio, 2007, p.10)

Ainda com Nasio, ressalta-se que Freud propôs dois mundos reais e ignotos, um exte-rior e outro interior, ou psíquico. E que, apoiando-se em Kant, considerou que, dos dois, só o real interior teria possibilidades de ser cognoscível.

Contudo, uma dupla observação, como nos aponta o autor, complica esta simples visão de mundos. Em primeiro lugar, se alguém pode apreender o real interno faz por intermé-dio de um dispositivo exterior. Este dispositivo não é o conceito, o pensamento ou o co-nhecimento, senão a experiência analítica mesma. Nela, estes dois mundos, aparentemente separados, se interpenetram na forma cruzada de um quiasma.

Por conseguinte, em segundo lugar Freud, no final de sua vida, chegou a conceber de outra maneira a divisão interior-exterior. Admitiu que o aparelho psíquico teria extensão no espaço e que o ele, por sua vez, seria a projeção deste aparato: “O espaço pode ser a pro-jeção da extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. Em vez dos determinantes a priori, de Kant, nosso aparelho psíquico. A psique é estendida; nada sabe a respeito.” (Freud, 1941 [1938], p. 336)

Dessa forma, acreditamos que, longe de ser a terra prometida, a topologia põe em questão a dualidade dos dois reais freudianos para propor um só Real, unívoco, sem di-visão e impossível de representar. “(...) Onde o espaço não tem nada a ver com nenhum espaço da intuição, com nenhum espaço da estética no sentido de Kant.” (Miller, 1987 [1980], p.89)

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1.3 A Topologia no ensino de Lacan.

1.3.1 O sentido mortal e o jogo que justifica a estrutura. Os primórdios.

Com Jacques-Alain Miller em Matemas I, 1987, temos que a topologia de Lacan está presente desde sua referência à função primordial da morte. O símbolo se manifesta pri-meiro como a morte da coisa, é o que nos indica Lacan, a partir de Hegel, para propor que a morte está vinculada com a emergência da ordem simbólica.

Disso, podemos deduzir que o símbolo não acompanha as coisas. Que entre ambos não há simpatia e adequação natural e sim, pelo contrário, antinomia. O símbolo eterniza a coisa, permite perdurar além de sua existência e, por exemplo, permite ao sujeito ser objeto de sua referência mais além dos limites de sua existência.

Esta análise “(...) é muito hegeliana, já que o simbólico não é correlativo ao mundo pleno, senão que opera como um esvaziamento de sua substância e da materialidade desse mundo. A materialidade dos símbolos é uma materialidade suplementar, de substituição.” (ibid, p. 80)

Voltando à questão da primazia do simbólico em relação ao falante, já anunciada no tópico 1.1, aqui ela também é fundamental, pois nos indica a inalcançabilidade do sujeito. Salvo no referente à sua morte, à sua mortificação significante, ele é inalcançável. Ou seja, desde o início, por ser deslocado pelo símbolo, o sujeito sofre uma mortificação que fará dele um sujeito mortificado pelo significante, S.

Porém, como localizar esta morte que pertence ao símbolo e sua relação com o sujei-to? Como vimos, admite-se que este sujeito é mortificado pelo significante. O que, por conseguinte, nos leva a julgar que essa morte não é algo que está mais além da vida, mas que, contudo, é uma função instalada no núcleo da experiência da palavra. Dessa forma, devemos diferenciá-la da morte como se apresenta para o animal. É a partir dessa morte presente no sujeito, a qual ocupa um lugar central na palavra, logo, não é meramente peri-férica, que tudo o que concerne à sua existência adquire seu sentido.

Esta morte é um sentido ao mesmo tempo exterior à linguagem e central no exercício da palavra onde “todos os problemas da topologia de Lacan já estão presentes (...)” (Miller, 1987 [1980], p. 80)

Em outras palavras, há em jogo um paradoxo, um ponto ao mesmo tempo central e exterior, que põe em relevo, estimamos, que a questão do sujeito refere-se ao conceito de estrutura. Nas palavras de Lacan (1978-1979): “Há uma equivalência entre a estrutura e a topologia.” Uma estrutura que funda uma disposição espacial que, longe de ser metafórica, é proposta como tendo o estatuto de real.

Portanto, onde se poderia ver tão somente uma metáfora, Lacan a institui como o que sustenta toda esta questão. Diz que a topologia representa a estrutura até o ponto de propor que é o real mesmo em jogo na experiência.

E mais, o sentido ao mesmo tempo central e exterior da morte também é marca da experiência analítica, onde encontramos em todos os seus níveis essa posição de exclusão interna. Isto surge, sobretudo, na pergunta neurótica, para ilustrar, referida à contingência da existência.

Portanto, a estranha relação entre as palavras e as coisas impulsiona a topologia de Laan. Como vimos no presente tópico, não há mais adequação do que inadequação entre elas. E crer numa tal oposição deixaria supor que haveria dois mundos distintos que mais ou menos coincidiriam.

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1.3.1.1 O círculo e a esfera estão para o animal assim como o anel está para o sujeito do inconsciente.

Em O Aturdito, 1972, trazido à luz por Miller, Lacan nos indica uma diferenciação crucial que nos indica que colocar as relações em jogo segundo o plano e a esfera não bas-tariam. Dessa forma, o círculo e a esfera estariam para o animal assim como o anel para o sujeito do inconsciente:

“Essa estrutura é diferente da espacialização da esfera ou da circunferên-cia na qual alguns se comprazem em esquematizar os limites do ser vivo e de seu meio: responde melhor a esse grupo relacional o que a lógica simbólica designa topologicamente de anel.” (Lacan, apud Miller, 1987 [1980], p. 81)

Um esquematismo segundo o plano e a esfera seriam suficientes para o animal, uma vez que se pode dizer que ele está em posição concêntrica em relação ao seu meio ambien-te, que ele se ajusta perfeitamente ao último. Porém, no que se refere ao sujeito as coisas não acontecem assim. O campo psicanalítico está para outras relações que não as do cam-po psicológico que, tal como nos aponta Lacan em 1960: “(...) é o conjunto das relações do organismo e do meio.”

1.3.2 Topologia do significante.

Diante tudo o que foi dito, fica evidente que o inconsciente põe em questão problemas topológicos e que a tese de Lacan de que o inconsciente está estruturado como uma lingua-gem nos conduz ao significante. Recorrer à estrutura da linguagem nos parece justificado desde quando ela nos mostra que a língua só se sustenta a partir de um jogo de lugares e diferenças.

A topologia aborda o espaço desde um ponto de vista que não é quantitativo ou métri-co. Ela é qualitativa, ou seja, estuda a relação entre diferentes lugares, relações de vizinhan-ça, de continuidade, de fronteira, de separação e de borda. Noções que se impõem parale-las à ideia de estrutura, presentes tanto na psicanálise como na topologia e na lingüística, o que faz mais do que justificado sua assunção.

1.3.3 Os dois capítulos da topologia de Lacan.

A topologia de Lacan é feita de dois capítulos bastante heterogêneos, ainda que tenham alguns pontos de contato. Cada um deles responde a problemas da teoria que não são exa-tamente os mesmos.

1.3.3.1 Os objetos.

Há quatro objetos. Eles se inserem numa topologia que está no domínio da geometria que não a algébrica e das quatro superfícies desta disciplina que se chama classicamente Análisis Situs.

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Tratam-se da Banda de Moebius, do Toro, da Garrafa de Klein e do Cross-cap.

Garrafa De Klein Cross-cap

Toro Banda de Moebius

Fig. 1

1.3.3.2 Os nós.

Em um segundo momento, como um segundo capítulo do ensino de Lacan, estão os nós e, mais precisamente, o Nó Borromeano.

Nó Borromeano Nó de Trébol

Fig. 2

Capítulo de seu ensino muito mais complexo e recente, apoiado em uma matemática não acabada, diferente da anterior, o Nó Borromeano foi introduzido no seminário Mais, ainda, 1972-1973, que se transformou no seminário R.S.I., dos anos 1975-1976.

Dessa forma, “existe uma distinção entre a primeira e a segunda vertente da topolo-gia de Lacan, entre a topologia dos objetos e a topologia do nó borroeano.” (Miller, 1987 [1980], p. 85)

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Matemas II.- 2a. Ed 4a. reimp. .-Buenos Aires: Manatial, 2008.

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O divulgador de um auxílio periódico

Patrícia R. C. Barreto, DSc. em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia, professora do Colégio Militar

do Rio de Janeiro. patrí[email protected]

No Brasil, em particular, no século XIX, presenciou-se no Rio de Janeiro, um aumento significativo das iniciativas de circularização de informações acerca não só da sociedade, da política e da economia, mas também da Ciência. O governo português, procurando ingressar na marcha do progresso europeu, cujo principal artífice era a Ciência, autorizou, a partir da década de 20, a edição de jornais, de revistas e de livros em território brasileiro. Estes se tornaram veículos de comunicação não só das iniciativas políticas e econômicas do governo, mas promotores da vulgarização, divulgação e popularização do conhecimen-to científico, de forma não especializada, para o grande público.

A publicação do Auxiliador da Indústria Nacional insere-se neste contexto de valo-rização das Ciências em solo brasileiro, na perspectiva de promoção do progresso e do desenvolvimento material e humano do Império. A importância e o reconhecimento dado, em suas páginas, aos conhecimentos ditos “úteis” é um desdobramento das aspirações do movimento iluminista luso-brasileiro. Ao contrário dos jornais literários anteriores, não constam em seus números poesias, notícias sobre a família imperial, balancetes institucio-nais, ou qualquer outra sorte de artigos que não estivessem ligados única e exclusivamente ao avanço das técnicas de produção, fundamentalmente, agrícolas. O seu didatismo tinha o objetivo claro de contribuir para o revigoramento do campo, através de uma linguagem muito simplificada sobre novas técnicas e tecnologias que melhorassem quantitativa e qua-litativamente a agricultura, a pecuária e toda indústria auxiliar do setor primário, e que pudessem ser compreendidas e reproduzidas em qualquer parte do país.

O Auxiliador não foi nem um jornal literário nem uma revista científica. Foi, talvez, nos termos do jornalista Wilson da Costa Bueno, o mais importante periódico brasileiro de divulgação das Ciências do século XIX. As páginas da revista da Sociedade Auxilia-dora da Indústria Nacional não estavam marcadas pelo diletantismo, mas pragmatismo. A divulgação da Ciência era justificada pelo seu caráter utilitário para o bem comum. A sua prática deveria suprir a falta de aperfeiçoamento técnico, incorporando não só novos conhecimentos, mas uma nova mentalidade sobre o trabalho no campo.

Sua primeira edição data de 1833, isto é, seis anos após a primeira sessão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Ele estendeu a sua existência até 1892, quando foram cortados os subsídios do Estado para sua publicação. Em 59 anos, nunca deixou de publicar, mensalmente, as notícias mais atuais sobre as Ciências Naturais e os Machinismos. Foram 708 edições, além de 59 cadernos anuais, que reuniram todos os doze números anteriores.

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Como porta-voz de uma associação científica, o periódico estava voltado para a popu-larização da Ciência, não apenas por amor ao conhecimento em si, mas pela utilidade que estas pesquisas e descobertas deveriam ter para a promoção do bem estar e progresso da sociedade brasileira. Assim, em 15 de janeiro de 1833, em seu primeiro número, O Auxi-liador da Industria Nacional inicia as suas atividades com um eloquente discurso de afeição ao novo perfil pragmático do conhecimento moderno, que não se apegava ao diletantismo puro e que propunha conduzir os cidadãos pelo caminho da perfeição.

O seu discurso didático era endereçado a destinatários bem definidos. Num cenário de restrições educacionais, os “auxílios” mensais destinavam-se a promover uma cons-cientização de um público amplo, heterogêneo e não especialista. Fazendeiros, fabricantes, artistas e todas as classes industriosas deveriam ser informadas sobre o atraso e a incapa-cidade de fomento da produção nacional. Assim, artigos e memórias sobre a agricultura ocuparam quase todos os números do periódico, demonstrando os descompassos do setor, em relação às experiências bem-sucedidas em ex-colônias francesas e inglesas. O Auxilia-dor da Indústria Nacional foi uma tentativa de constituir um corpus referencial de textos e experiências sobre a produção no Brasil, de modo a organizar metodicamente os conhe-cimentos estabelecidos pela Ciência em prol da inovação e qualificação técnica através da associação de cientistas, artistas e homens da administração pública.

Caracterizava-se pela divulgação dos conhecimentos para o desenvolvimento do se-tor agrícola e para o melhor aproveitamento das riquezas potenciais do país. A produção não poderia, e nem deveria mais estar baseada apenas nos prodigiosos préstimos da flora brasileira. Civilizar-se determinava, essencialmente, valorizar aquilo que o Brasil tinha de mais vital para sua existência: a Natureza. E isto perpassava pela valorização das Ciências Naturais. Segundo Heloísa Bertol Domingues, o debate sobre o desgaste das técnicas agrí-colas, epicentro das atividades da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e do seu periódico, favoreceu eficazmente, no século XIX no Brasil, os progressos do saber, funda-mentalmente nas instituições que aspiravam ao seu aperfeiçoamento e condicionavam este progresso ao aprofundamento dos conhecimentos científicos nas áreas de Meteorologia, Zoologia, Fisiologia Vegetal e, principalmente, Química e Botânica.

Mais do que uma crítica à estagnação e aos métodos rotineiros, ou simples compilação da produção intelectual estrangeira, a publicação das atas, dos debates das Assembléias Públicas, dos pareceres das Comissões e dos trabalhos dos associados da SAIN, revelava o desejo dos editores de transformar esta realidade, sublimando a Ciência em vista da difusão de uma “nova agricultura”, associada, à Química e à Botânica, adaptada às espe-cificidades da Natureza nacional. Por mais que houvesse descompassos entre o discurso reformador e o latifúndio escravista brasileiro, estes “ilustrados” dispunham-se a produzir uma ferramenta que procurava, através da disseminação e da popularização do conheci-mento científico, incentivar os plantadores e produtores de todo o país a adotarem cada vez mais as inovações disponíveis, além de buscarem, eles mesmos, novas soluções para o desenvolvimento do setor e o incremento da produtividade.

Ao se observar algumas características da estrutura conceitual de um periódico deste perfil, alguns elementos tornam-se essenciais para sua definição. Algumas especificidades o diferem dos jornais e revistas literárias anteriores, ao estender o conhecimento científico para além das fronteiras que cercam a sua construção. São elas: periodicidade, universa-lidade, difusão e atualidade. Na prática, isso significa dizer que o Auxiliador da Indústria Nacional manteve-se num ritmo ininterrupto de publicação. Certamente a velocidade de sua publicação não estava em conformidade com o acelerado desenvolvimento da Ciência, mas o seu compromisso em tentar divulgar as últimas notícias sobre o pensamento cien-

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tífico não deixava que o seu público ficasse alheio a estes avanços por um período maior do que 30 dias. Isto determinava não só a sua atualidade, ocupando-se de fatos (eventos e descobertas), ou pessoas (cientistas, tecnólogos, pesquisadores) que estivessem direta ou indiretamente relacionados com o momento presente das mais diversas áreas das Ciências, mas, a sua longa existência em franca oposição aos demais periódicos do mesmo período.

Por outro lado, um diferencial do Auxiliador, foi a sua universalidade. Não no sentido característico dos jornais e revistas literárias do século XIX, que abrigavam os mais diver-sos assuntos, como já foi dito outrora. O periódico abrigava os diferentes ramos do conhe-cimento científico, desde que estivessem voltados para o desenvolvimento dos processos de produção do setor primário. Como no Brasil este setor era a força produtiva do Império, e havia por parte do Estado o anseio pela sua expansão, diversificação e desenvolvimento em todo o território, não só em função do seu caráter econômico, mas como uma estraté-gia de manutenção da unidade nacional, a sua difusão foi facilitada não só pelo interesse do público, mas pelo próprio incentivo estatal, que fazia suas páginas chegar às principais províncias do Império.

Figura 1: Capa do primeiro número do O Auxiliador da Indústria Nacional, 1833.

A Publicação do Auxiliador da Indústria Nacional deve ser entendida, portanto, como uma atividade de difusão do conhecimento científico e tecnológico produzido no interior de uma comunidade específica, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Esta era uma associação de homens de diversos setores da administração pública e da economia, que mobilizaram recursos e técnicas para a veiculação de informações sobre Ciência e tec-nologia a um público diversificado. Sua revista de divulgação científica tinha um objetivo amplo, comportando uma miríade de características associadas às linguagens, aos recursos textuais e visuais utilizados, aos conteúdos veiculados, ao público alvo, às abordagens e temas, entre outros. Isto estava de acordo com o perfil da associação e da sociedade, com a evolução da própria atividade de debater, divulgar e difundir o pensamento científico no Brasil, e com o desenvolvimento das concepções sobre a Natureza e suas relações com as Ciências, determinadas pelo plano político-ideológico do Império.

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O seu objetivo era o de divulgar o que estes cientistas teriam, através dos seus conheci-mentos e descobertas, contribuído para melhorar a indústria humana, a saúde, a qualidade de vida e o destino dos povos civilizados. Sua tarefa era a de aproximar o homem comum de um tipo de conhecimento do qual ele, historicamente, foi apartado e do qual se foi man-tendo cada vez mais distanciado, à medida que as Ciências se desenvolviam e se especia-lizavam. Seria necessário superar, portanto, uma “ruptura cultural” entre o conhecimento prático e quotidiano e o conhecimento científico, provando os limites e ineficiências do primeiro e desmitificando o segundo, via convergência de interesses: a Natureza, a Agri-cultura e o Progresso.

Auxiliar significava, acima de tudo, transformar em inteligível para muitos a linguagem hermética e difícil de poucos, informando ao seu leitor sobre tudo o que havia, em termos de pesquisa e inovação técnica, que pudesse suprir as limitações das habituais atividades produtivas do campo. Na medida em que não só os seus editores, mas, também, os mem-bros da associação acreditavam na tal “vocação agrícola” do Brasil, as Ciências, em suas páginas, qualificavam-se como “molas propulsoras” da Agricultura e ganhavam um duplo sentido: um caráter concreto e pragmático de aplicação de suas teorias e um caráter sim-bólico de redenção econômica.

Notas

1 Sobre o assunto ver: BUENO, Wilson C.. Jornalismo científico no Brasil, os com-promissos de uma prática dependente. Tese apresentada á Escola de Comunicação e Ar-tes da Universidade de São Paulo, 1984.

2 MORA, A. M. S. A divulgação da ciência como literatura. Rio de Janeiro: Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da UFRJ/ Editora UFRJ, 2003.

3 Sobre o assunto ver: BARRETO, P. R. C. Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacio-nal: o templo carioca de Palas Atena. Tese defendida no Programa de Pós Graduação em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro em novembro de 2009.

4 DOMINGUES, Heloísa Maria Bertol. Ciência: um Caso de Política. As Relações entre as Ciências Naturais e a Agricultura no Brasil - Império. Tese apresentada ao de-partamento de História da FFLCH da Universidade de São Paulo, 1995, p. 155-156.

Bibliografia de referência

ALBAGLI, Sarita. Divulgação científica: informação científica para a cidadania? Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 3, set./dez. 1996.

FREITAS, Maria Helena. Origens do periodismo científico no Brasil. Dissertação apre-sentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Ciência da Pontifícia Univer-sidade Católica de São Paulo, 2005.

____________________. Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos bra-sileiros. Ciência da Informação, Brasília, v. 35, n. 3, set./dez. 2006.

FONSECA, M. R. F. da. Luzes das ciências na corte americana: observações sobre o peri-ódico O Patriota. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 31, 1999.

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GOUVÊA, Maria de Fátima. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822 – 1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e Império no Brasil: O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007.

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A Axiomatização de Tarski para a Geometria

Rafael Tavares Juliani Mestrando do HCTE

[email protected]

A geometria foi o primeiro ramo do saber a ser axiomatizado e tal axiomatização pode ser encontrada nos Elementos de Euclides de Alexandria, o qual foi adotado como padrão de axiomatização para muitos ramos do saber. Em uma axiomatização, as demonstrações dos teoremas são decorrentes de um conjunto finito de definições e primeiros princípios, embora, hoje em dia, existam axiomatizações com um número infinito de primeiros prin-cípios, como é o caso da geometria elementar de Tarski. A obra euclidiana, porém, não ex-plicita claramente a natureza dos objetos matemáticos, nem o caráter de seus enunciados. Os termos “postulados” e “noções comuns” não são, em momento algum, esclarecidos. Tal falta de clareza levou ao surgimento de diferentes versões dos Elementos de Euclides, cada uma segundo a filosofia de seu editor. No entanto, os objetos geométricos eram concebidos da mesma forma. Durante muitos séculos, acreditava-se que a geometria havia alcançado a episteme do espaço (CAVEING, 1990).

A grande mudança foi o surgimento das geometrias não euclidianas, pois objetos geo-métricos como a reta e o plano, por exemplo, passavam a ser concebidos de formas diferen-tes. Essa mudança foi causada pelas descobertas desencadeadas pela tentativa de mostrar que o quinto postulado de Euclides não era um postulado. As novas geometrias eram tidas como um conjunto de enunciados falsos sobre o espaço por muitos, pois tais geometrias alteravam as características dos objetos matemáticos classicamente concebidos. O mapea-mento de tais geometrias dentro da geometria euclidiana, porém, mostrou que se os enun-ciados das novas geometrias fossem falsos, também seriam os enunciados da geometria euclidiana, motivando assim, uma revisão na própria geometria euclidiana, antes nunca questionada e, com isso, encontram-se algumas falhas lógicas (BARKER, 1969).

A partir de diferentes concepções de objetos geométricos clássicos, surgem muitas axiomatizações para a geometria. Quando os objetos geométricos de uma axiomatização são compreendidos da mesma forma que os da geometria euclidiana, ou seja, os objetos possuem as mesmas características, essa geometria é dita euclidiana. Em geral, a diferença entre as axiomatizações da geometria euclidiana é com relação a quais objetos seriam os mais básicos do espaço, isto é, quais seriam os objetos primitivos (objetos sem definição).

Hilbert busca os fundamentos da geometria e apresenta uma axiomatização para a versão geométrica na qual os objetos geométricos têm as mesmas características que os objetos euclidianos (HILBERT, 2005). Hilbert escolhe três objetos geométricos como pri-mitivos: ponto, reta e plano. Além disso, ele escolhe três relações primitivas que vão agir

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sobre os objetos, são elas: incidência, ordem e congruência. Nas axiomatizações, os axio-mas fixam o significado dos objetos primitivos e das relações primitivas, assim, vemos na axiomatização de Hilbert que a reta é uma coleção infinita de pontos. Tal forma de con-ceber a reta é clássica, mas faz com que se use a lógica de segunda ordem, pois se usa um conjunto como variável. Com essa estrutura de Hilbert, também se torna inevitável o uso da lógica de segunda ordem na formulação do axioma arquimediano da continuidade, o último a ser apresentado em sua axiomatização.

O objetivo de Hilbert era provar a consistência da geometria, ou seja, provar que da geometria não é possível obter dois enunciados contraditórios. Para provar essa consis-tência, Hilbert mapeia a geometria na aritmética, assim, sendo a aritmética consisten-te, também será a geometria. A redução de teorias matemáticas à aritmética faz parte da filosofia de Hilbert, que tem semelhanças com o positivismo lógico, o qual afirmava que devemos distinguir entre os termos observacionais e os termos teóricos na ciência. Enquanto os termos observacionais estão ligados diretamente à experiência sensível, os teóricos são postulados para explicar fenômenos da natureza. Segundo Carnap, os termos observacionais não precisavam de justificação, enquanto os teóricos sim. Fazendo um paralelo, pode-se equiparar os termos observacionais e os termos teóricos, respectiva-mente, ao que Hilbert chama de parte real e ideal (MOLINA, 2001, p. 131 e 132). A parte real seria aritmética, da qual ninguém duvida, embora Hilbert mencione partes ideias na aritmética também. Assim, a aritmética deveria ser usada para verificar a consistência de outras teorias e, também, somente os métodos dedutivos da aritmética deveriam ser usados na demonstração das demais teoria, esse é o programa dos métodos finitários de Hilbert. (HILBERT, 1964, p. 191).

A axiomatização de Tarski segue o mesmo caminho da realizada por Hilbert, no entan-to, só apresenta duas relações como primitivas e apenas um objeto geométrico primitivo. As relações são de ordem e de congruência (equidistância) e o objeto geométrico, o ponto.

Tarski começa sua axiomatização no final da década de vinte do século vinte, mas seu trabalho só foi submetido a publicação em 1940, sendo publicado somente em 1967. Ao longo dos anos, esse trabalho de Tarski foi estudado e aprimorado, alguns axiomas que se mostraram dependentes dos demais foram eliminados e outros tiveram sua redação melhorada. Assim, por volta de 1965, com os estudos de Gupta, Szmielew, Schwabhäuser e Tarski, chega-se a uma concisa axiomatização da geometria euclidiana (TARSKI-GI-VANT, 1999, p. 188 a 190), a qual mostrarei abaixo, através dos escritos de Tarski e Givant publicado em “The Bulletin of Symbolic Logic”.

O sistema de Tarski é mais simbólico que o de Hilbert, ao invés de palavras como “existe”, “para todo”, usa-se símbolos lógicos como “ ∃” e “ ∀ ” respectivamente, entre outros. Tarski procura organizar sua geometria somente com o uso da lógica de primeira ordem (LPO), deixando claro uma diferença entre lógica e matemática. A idéia de Tarski é fazer com que nenhuma teoria se sobreponha a outra, por isso, ele busca só usar a lógica de primeira ordem como base para seu sistema. No entanto, ele só consegue isso para uma parte da geometria, a qual chamará de “geometria elementar”, pois o uso de uma lógica de segunda ordem (LSO)1 se mostra necessário. Um outro motivo para uma separação entre o uso das LPO e LSO, em sua geometria, pode ser a vantagem da LPO ser completa, ou seja, para qualquer forma válida da LPO, pode-se verificar se ela é falsa ou verdadeira. Tal resultado foi obtido em 1930 por Gödel em sua tese de doutorado (NAGEL-NEWMAN, 2003). Embora essa descoberta tenha sido feita alguns anos depois de Tarski iniciar sua axiomatização da geometria, ele já tinha alguma intuição sobre o assunto, pois vinha tra-balhando sobre isso e seu aluno, Presburguer, axiomatizou uma aritmética sem a multipli-

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cação e só com uma lógica de primeira ordem, conseguindo assim, mostrar a completude dessa aritmética.

Os axiomas de Tarski para a geometria são:1. Axioma de reflexividade para a relação de equidistância.2. Axioma de transitividade para a relação de equidistância.3. Axioma de identidade para a relação de equidistância.4. Axioma de construção de segmento.5. Axioma dos cinco-segmentos (congruência de triângulo).6. Axioma de identidade para a relação de ordem.7. Axioma de Pasch.8. Axioma dimensional, garantindo aos menos uma dimensão mínima.9. Axioma dimensional, garantindo uma dimensão máxima.10. Axioma de Euclides.11. Axioma da continuidade ou esquema de axioma da continuidade.

Os axiomas de número oito e nove garantem uma dimensão finita e permitem a in-trodução de uma dimensão n, onde n é um número natural. Dessa forma, o sistema de Tarski, diferente do de Hilbert, introduz a dimensão da geometria com axiomas próprios, facilitando assim, o uso de dimensões diferentes apenas substituindo dois axiomas. Apenas alterando o valor de n, gera-se novos axiomas. O décimo axioma é uma versão equivalente ao famoso quinto postulado de Euclides. Já o axioma de número onze, da continuida-de, necessita de uma formulação com uso da lógica de segunda ordem, por isso, Tarski apresenta um esquema de axioma para usar somente a lógica de primeira ordem. Os dez axiomas mais o esquema de axioma da continuidade é o que o Tarski chama de geometria elementar. Esse esquema de axioma da continuidade torna o conjunto de axiomas da geo-metria elementar um conjunto infinito.

Uma das vantagens dessa axiomatização tarskiana é que a complexidade do sistema é mais facilmente verificada que a de Hilbert, pois Tarski só usa em seus axiomas objetos primitivos (não definidos), enquanto que Hilbert, não. A outra vantagem, que sem dúvida é a principal delas, é o fato de Tarski conseguir provar a consistência, a completude e a de-cidibilidade da geometria elementar através da eliminação de quantificadores, mostrando assim, partes da geometria que não são passíveis dos teoremas da incompletude de Gödel.

As vantagens citadas são todos resultados metamatemático, o que mostra que os resul-tados de Tarski são mais vantajosos para um filósofo da matemática. No entanto, axioma-tização hilbertiana parece mais fácil de ser manejada, sendo mais vantajosa no campo da prática matemática.

Notas

1Enquanto a LPO quantifica apenas sobre elementos individuais de um conjunto, a LSO quantifica também conjunto de elementos, os conjuntos são tratados como variáveis. Exemplo, “todo número inteiro possui divisores nos racionais” é um enunciado da LPO, pois trata de elementos de conjuntos. Já o enunciado: “todo país possui uma bandeira”, entendendo-se país como um conjunto de cidades, é um enunciado da LSO. Uma Lógica de segunda ordem mais geral ainda pode quantificar funções.

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Referências Bibliográficas

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NAGEL E., NEWMAN J. R. A Prova de Gödel. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003,

TARSKI, A., GIVANT, S. Tarski’System of Geometry. The Bulletin of Symbolic Logic, vl. 5, n. 2, p. 175-214.

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Uma contribuição para a História das Instituições Científicas: o Museu Nacional na Exposição

Universal de Paris de 1889

Regina MMC Dantas Historiadora e Doutoranda do HCTE/UFRJ – [email protected]

Nadja Paraense dos Santos Professora do HCTE – [email protected]

Introdução

O presente trabalho vem mostrar um recorte da pesquisa de doutoramento realizada no âmbito do Programa de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia/HCTE da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. A tese tem como objetivo apresentar a participação do Museu Nacional na Exposição Universal de Paris de 1889, propondo uma reflexão sobre a presença das ciências no referido evento. Neste propósito, o trabalho em questão visa mostrar a metodologia que está sendo desenvolvida para a apresentação da instituição científica no certame parisiense em 1889.

Diante da intenção de proporcionar a identificação do Museu Nacional no Pavilhão Brasileiro da mostra francesa, será apresentada a forma de como está sendo desenvolvida a identificação dos objetos que foram selecionados para compor a exposição da instituição científica, os documentos que auxiliam nesta fase dos estudos, além de periódicos, dese-nhos e fotografias de arquivos selecionados para a elaboração da pesquisa.

A divulgação das imagens poderá proporcionar uma reflexão sobre a participação da instituição brasileira com o intuito de apresentar os objetos das ciências tropicais. Desse modo, inicialmente, revisitaremos a exposição visando mostrar um recorte da tese que analisa a participação de uma instituição científica no século XIX, na mostra em questão, destacando sua atuação no viés da História das Ciências.

As Exposições Universais

O século XIX é caracterizado pela expansão industrial oriunda de um modelo de cres-cimento capitalista e eurocêntrico que resultou em grandes realizações mecânicas e demais

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invenções. Esses espetáculos tiveram início pela prática francesa de impulsionar, a cada cinco anos, uma exposição nacional a partir de 1798. Outra tradição, iniciada em 1851 na Inglaterra, também irá desencadear as mostras agrupando e disputando premiações, a partir da exposição de atividades humanas – as chamadas exposições universais.

Portanto, ao longo da segunda metade do século XIX, as exposições universais po-dem ser analisadas como o sonho pelo progresso que ocasionou o aumento de prodigiosos eventos, com o objetivo de festejar as conquistas da civilização e arrolar as realizações da indústria humana.

A partir da Exposição de Londres, foram realizados eventos de caráter universal em Pa-ris, 1855; Londres, 1862; Paris, 1867; Viena, 1873; Filadélfia, 1876; Paris 1878, Amsterdan, 1883; Antuérpia, 1885; Paris, 1889; Chicago, 1893 e Paris 1900.

Com intuito de proporcionar uma visão geral das exposições do século XIX, nos apro-priaremos da abordagem de Werner Plum:

(...) O valor pedagógico e a significação ideológica destas mostras espe-taculares na época da incipiente sociedade industrial eram de um nível extraordinariamente elevado. Não por casualidade efetuaram-se, com breves intervalos, numerosas exposições mundiais, precisamente naque-la fase, em que a burguesia industrial estava empenhada em chegar a dominar o mundo e, inclusive, a criar um mundo à sua imagem e seme-lhança. (PLUM, 1979, p, 10).

A opção pela exposição parisiense de 1889 é devido ao evento ter sido idealizado para representar o centenário da Revolução Francesa e contou com a última participação do Brasil monárquico que, na ocasião, estava divulgando o fim da escravidão. A referida ex-posição foi iniciada em maio, mas o Pavilhão Brasileiro foi inaugurado somente um mês depois. Quatro meses depois a monarquia seria deposta.

O Brasil na Exposição Universal de 1889

As exposições científicas da segunda metade do século XIX, a partir de 1980, vêm sendo objeto de pesquisas acadêmicas realizadas no Brasil (HEIZER, 2005, p. 15-38) em distintas análises nas diferentes áreas do conhecimento, no que diz respeito: à indústria, à ideia de progresso, análises arquitetônicas e museográficas, além das artes. Entretanto, com tímida contribuição para a História das Ciências, especificamente, destacando a par-ticipação de uma instituição científica.

Nesta análise, destacamos a preocupação de Maria Amélia Dantes em fortalecer a rele-vância da História das Instituições para a historiografia das ciências no Brasil.

A história institucional, tradicionalmente inserida na linha externalis-ta da História da Ciência tem recebido um destaque especial na nova historiografia, já que as formas organizacionais passaram a ser vistas como indissociáveis dos desenvolvimentos conceituais das ciências. [...] A história institucional brasileira está assim perfeitamente integrada às tendências historiográficas do momento. E as instituições imperiais têm recebido uma atenção especial. (DANTES, 2001, p. 230-231).

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O Brasil se fez representar nestes certames a partir da segunda exposição universal realizada em Londres em 1862 e, durante o Segundo Reinado, a partir de 1861, foram re-alizadas mostras nacionais com vistas a preparar o país para a participação nas exposições universais. (VAINFAS, 2002, p. 252).

Um aspecto emblemático em relação ao tema das Grandes Exposições na segunda me-tade do século XIX, e presente, na maioria das vezes, na historiografia brasileira, é a utili-zação de nomenclaturas glorificadas por autores quando se referem às mostras universais, como por exemplo, “Vitrines do Progresso” (NEVES, 1986), “Festas Didáticas” (KUHL-MANN, 2001), “Espetáculos da Modernidade” (PESAVENTO, 1997) e a “Era do Espe-táculo” (TURAZZI, 1995), aliás, questão bem apresentada por Alda Heizer (2005, p. 15).

O império brasileiro, visando fortalecer a participação do país nestas exposições, pro-porcionava a realização das chamadas Exposições Nacionais, realizadas no ano anterior ao dos esperados certames. Estas exposições de caráter preparatório podem ser analisadas por meio do periódico Auxiliador da Indústria Nacional, que registrou a organização das exposições, a composição e organização de diversas comissões, além dos trabalhos na área da agricultura.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foram coletados e organizados diferentes docu-mentos entre: ofícios, relatórios, atas, catálogos, guias, jornais, revistas etc. Além de foto-grafias, telas, plantas, outros tipos de imagens e alguns dos objetos da coleção científica do Museu Nacional.

O Museu Nacional no Pavilhão Brasileiro

O Pavilhão Brasileiro ficou localizado na parte central da Exposição - no Champ de Mars - ao lado da Torre Eiffel, próximo aos quinze pavilhões dos países americanos. Além da exposição no Pavilhão Brasileiro, o diretor do Museu Nacional, Ladislau Netto (1838-1894), ficou responsável em expor artefatos de índios amazonenses dentro da Casa Inca na Exposição Retrospectiva da Habitação Humana (NETTO, 1889). Quarenta e quatro cons-truções enfileiravam-se à esquerda e à direita das margens do Rio Sena e a última constru-ção era a referente à Casa Inca (BARBUY, 1996).

O período de Ladislau Netto como diretor do Museu Nacional, 1876-1893, é consi-derado como o momento mais fecundo da instituição (criação dos cursos públicos e da revista Archivos do Museu Nacional, entre outros) e reconhecido internacionalmente pela organização da Exposição Anthropológica Brazileira de 1882 realizada no Museu Nacional (LOPES, 1997, p. 158-204), (Figura 1).

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Figura 1 – Exposição Anthropológica Brazileira organizada por Ladislau Netto1

Com vistas aos nossos estudos, as obras específicas sobre o certame em questão (BAR-BUY, 1999; HEIZER, 2005), catálogos, guias da exposição (GUIDE BLEU, 1889) e prin-cipalmente o periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (AUXILIADOR DA INDÚSTRIA NACIONAL, 1888), são as principais referências para a pesquisa. Estas obras estão sendo articuladas à variedade de documentos da Seção de Memória e Arquivo que estão auxiliando na construção da identificação dos objetos do Museu Nacional que participaram da exposição parisiense.

Uma coleção de madeiras e a réplica do meteorito de Bendegó (em madeira) foram identificados a partir do Auxiliador da Indústria Nacional, além das premiações dos ob-jetos que figuraram no Pavilhão Brasileiro. Em relação ao Bendegó, propomos realizar a análise da réplica em madeira do meteorito enfatizando o fenômeno das ilusões já aborda-do por Madeleine Rebérioux (BARBUY, 1999, p. 122-131).

Diante da leitura do catálogo da Exposição Universal (Catalogue de l’Exposicion Uni-verselle de Paris 1889, 1889), encontramos o registro de 190 artefatos indígenas do Museu Nacional (sem muitos detalhes nas especificações) e estão sendo identificados a partir da comparação com o livro de registro de entrada e saída de materiais do Museu Nacional para comporem a referida Exposição (Figura 2).

Figura 2 - Livro de registro de entrada e saída de materiais do Museu Nacional em 18892

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Ao analisarmos o Relatório Ministerial, outra documentação relevante para a pesquisa, destacamos a autorização para o Diretor Geral Ladislau Netto viajar à Europa levando ar-tefatos indígenas para apresentação no VII Congresso Internacional dos Americanistas em Berlim no ano de 1888. Os mesmo artefatos iriam figurar na exposição Universal de Paris no ano seguinte (RELATÓRIO MINISTERIAL, 1888, p. 47),

Outro dado importante, que poderá nos auxiliar na identificação mais precisa dos ob-jetos indígenas que participaram da Exposição de Paris foi apresentado na obra de Heloisa Barbuy (1999). Esta autora releva que os artefatos indígenas que Ladislau levou para Paris em 1889 participaram da Exposição Antropológica organizada por Netto, realizada no Museu Nacional em 1882.

Considerações Parciais

Diante da análise de diferentes documentos, dentre guias, catálogos, relatórios e ofí-cios, será possível identificar os objetos do Museu Nacional que foram enviados para a Exposição Universal de Paris em 1889 visando compor o Pavilhão Brasileiro e a Exposição Retrospectiva da Habitação Humana.

Após a identificação do acervo e a articulação com os estudos realizados na instituição durante o final do século XIX, acreditamos que chegaremos a analise de qual imagem a direção do Museu Nacional queria mostrar sobre suas pesquisas científicas na Exposição Universal de Paris em 1889.

A pesquisa poderá contribuir para a História das Instituições Científicas e acrescentará novas abordagens sobre o desenvolvimento das Ciências no Brasil.

Notas

1 Fotografia extraída do livro de João Baptista de Lacerda (LACERDA, 1095, p. 97).2 Fotografia tirada por Flavio Renato Morgado da Silva, estagiário do Museu Nacional/

UFRJ.

Referências Bibliográficas

AUXILIADOR DA INDÚSTRIA NACIONAL, n. 4, abril de 1889.

BARBUY, Heloisa. A Exposição Universal de 1889 em Paris: visão e representação na socie-dade industrial. São Paulo: História Social/USP - Edições Loyola, 1999.

BARBUY, Heloisa. O Brasil vai à Paris em 1889: um lugar na Exposição Universal. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Série. V. 4. P. 228. Jan/dez. 1996.

Catalogue de l’Exposicion Universelle de Paris 1889. Paris. Imprimiere Chaise, 1889.

GUIDE BLEU DU FIGARO ET DU PETIT JOURNAL. Paris: imp. de Chaix, 1889.

HEIZER, Alda Lucia. Observar o céu e medir a Terra. Instrumentos Científicos e a Participa-ção do Império do Brasil na Exposição de Paris de 1889. Campinas: UNICAMP, 2005. Tese (Doutorado em Ciências) - Instituto de Geociências/ Universidade de Campi-nas.

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KUHLMANN, Moysés. As Grandes Festas Didáticas: a educação brasileira e as Exposições Internacionais (1862-1922). Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francis-co, 2001.

LACERDA, J. B. de. Fastos do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 1905.

LOPES, Maria Margaret. O Brasil Descobre a Pesquisa Científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997, p. 158-204.

NETTO, Ladislau. Le Museum National de Rio de Janeiro et son influence sur les sciences naturelles au Brésil. Paris: Libraire Ch. Delagrave, 1889.

NEVES, Margarida de Souza. As Vitrines do Progresso. O Brasil nas Exposições Internacio-nais. Rio de Janeiro:PUC-RJ/FINEP/CNPq, 1986.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais. Espetáculos da Modernidade do Século XIX. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997.

PLUM, Werner. Exposições Mundiais no Século XIX: Espetáculos da Transformação Sócio--cultural. Bonn: Friedrich-Ebert-Stiftung, 1979.

RELATÓRIO MINISTERIAL. Agricultura, Commércio e Obras, 1888.

TURAZZI, Maria Inez. Poses e Trejeitos (1839-1889): a fotografia e as Exposições na Era do Espetáculo. Rio de Janeiro: FUNARTE; Rocco, 1995.

VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 252.

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Revista de Engenharia da segunda metade do século XIX.

Antonio Claudio Gómez de Sousa, Professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro -EP/UFRJ);

[email protected]

Agamenon de Oliveira, Professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro -EP/UFRJ);

[email protected]

José Carlos de Oliveira, Professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Rio de

Janeiro e Professor do Programa de História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia/UFRJ; [email protected].

O artigo trata, exclusivamente, de uma comunicação de início de pesquisa sobre a Re-vista de Engenharia, onde se procura mostrar a sua importância e dimensão em termos de extensão e conteúdo, para estudos sobre a engenharia brasileira no século XIX. Com ela se pretende anunciar e difundir a existência de fontes não ainda compulsadas para se compor uma história da engenharia no Brasil no século XIX.

Esta história ainda não foi composta como deveria carência de análises sobre fontes primárias que hoje sabemos existentes (e de ser de grande volume) abrigados no Centro de Tecnologia, e algumas particularmente sob a guarda da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Neste último caso trata-se quase de uma centena de atas referentes à Academia Real Militar e de seus desdobramentos principalmente em Escola Central e Escola Politécnica ainda no Império. Por estes documentos se pode ter uma visão clara de toda a movimentação, principalmente administrativa, mas também intelectual da Academia Real Militar desde o tempo joanino. Há que se dar continuidade a esse trabalho por todo o império brasileiro. Urge, portanto, que os pesquisadores se debrucem sobre esse material e produzam monografias, como também, estudos de maior envergadura para esclarecer nossa trajetória no campo da engenharia.

Outro conjunto de fontes inéditas para o pesquisador sobre a História de nossa Enge-nharia é relativo a uma quantidade imensa de documentos que jazem no Centro de Tecno-logia que, igualmente, não foram até hoje objetos de estudos. Estes documentos estão em condições de serem pesquisados materialmente. Só foram descobertos e avaliados recen-temente. Esse segundo conjunto de fontes primárias está sendo objeto de preocupação dos atuais dirigentes da decania no sentido de torná-lo acessível a todos.

Um terceiro segmento refere-se à biblioteca de livros raros do Centro de Tecnologia que abriga uma grande quantidade de obras, textos, memórias, programas de cursos, li-

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vros, revistas, mapas, plantas, iconografias, jornais e periódicos relacionados ao desenvol-vimento da técnica e da engenharia ocorrido durante todo o século XIX.

Quanto a esse terceiro conjunto de fontes, ainda não examinados inteiramente pelos pesquisadores, trata-se de algumas revistas produzidas pela antiga Escola Politécnica e, sobretudo, de um periódico denominado “Revista de Engenharia” que é o foco principal desta comunicação. Há um trabalho se iniciando de estudo e recuperação dessa revista, tanto fisicamente como de apreensão de seu conteúdo. Como os estudos são iniciais não há uma análise conclusiva sobre a dimensão de sua importância historiográfica.

É uma revista admirável pela extensão e pela qualidade de seu conteúdo, que ainda não foi objeto de nenhum estudo até o presente. Através dela pode-se compor parte do caminho seguido pela engenharia brasileira durante o final do segundo Império. Fornece, adicionalmente, materiais sobre outras instituições como o Clube de Engenharia, desde seu início, e o Instituto Politécnico Brasileiro nos anos de 1880 até 1890.

A página inicial da revista tem o aspecto mostrado na figura I. Ela teve cerca de 250 fascículos agregado em 13 volumes anuais. A revista tem sua aparição no ano de 1879. A biblioteca de obras raras do CT/UFRJ não possui os dois primeiros números anuais. Os números anuais são compostos de publicações, inicialmente mensais, de cerca de 20 páginas em média, perfazendo cerca de 250 páginas anuais mas, logo nos primeiros anos, passou a ser quinzenal aumentando o número total de páginas. Com mais fascículos, os números anuais tornaram-se mais volumosos, até o seu final oscilando entre 300 a 400 páginas.

A Revista de Engenharia pode ter seu término em 1891. O último número, na biblio-teca de obras raras, é de setembro do ano mencionado. A Biblioteca de Obras Raras da UFRJ/CT não possui os tomos dos anos de 1879 e 1880, embora possua o índice desse último, pois a revista tinha o hábito de publicar o índice do conjunto de artigos, do ano anterior, juntamente com o índice do ano de sua publicação.

Basicamente a revista é estruturada em quatro segmentos: 1) um extenso material de anúncios de venda de materiais afeitos à engenharia; 2) artigos de fundo técnico e de opi-nião sobre os mais diversos campos de engenharia então existente 3) Atos oficiais: onde se publica todas as medidas de governo: leis, despachos, resoluções, decretos, alvarás, etc. de interesse da engenharia nacional. 4) Notícias sobre as ocorrências no campo da engenharia nacional.

A revista continha muitos anúncios de produtos de engenharia: máquinas e ferramen-tas. Sobressaiam muitos anúncios sobre locomotivas onde se podia ler: “... para toda qua-lidade de serviço e construídos acuradamente segundo diversas bitolas e de modo que as diversas partes de uma locomotiva sirvam perfeitamente para outra da mesma classe. Toda a obra é perfeitamente garantida. Locomotivas para trens de passageiros e carga para Mi-nas, Fazendas de Açúcar, etc. etc”.

Eis como eram seus anúncios: “Locomotivas para Bonds, que não fazem barulho. Estas máquinas andam quase sem bulha: não deitam fumaça quando o combustível é carvão de pedra duro (anthracito) ou coke, nem vapor em atmosfera seca e nas condições ordinárias de serviço. Tem velocidade duas ou três vezes maior do que a de bonds puxados a cavalo e puxam mais carros. Remetem-se a quem pedir catálogos ilustrados e circulares contendo todas as explicações. O. C. James, Agente – Rua de São Pedro n. 8. Fábricas de Locomotivas de Baldwin Burnhan Parry, Williams & Co. Philadelphia, Pa. Estados Unidos.” Tais anún-cios estiveram presentes em quase todos os números, na abertura da revista.

Na parte de artigos de fundo fornecemos, para ilustrar, o trabalho de pesquisas de An-dré Rebouças “Empuxo das Terras”, iniciando-se em 1880. Fascículos posteriores, tomando

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duas ou três páginas da revista, publicam a continuação da matéria. Ou seja, a revista adota um formato de seriação para publicar artigos de fôlego. No caso específico seu trabalho tem início em junho de 1880 e tem continuação no fascículo de 15 de janeiro de 1881 e em vários fascículos dos meses seguintes. Outros artigos de igual tipo, entre centenas, são os seguintes: “O ferro e os Mestres da forja na província de Minas Gerais”; “Exploração geológica do Valle do São Francisco” por Orville A. Derby um famoso geólogo americano; “Fundações” por Jules Gaudard uma obra de Engenharia Civil (artigo técnico com várias iconografias) e “O Gás e a Eletricidade, com algumas observações sobre combustíveis” por R.J. Callander. São exemplos para caracterizar minimamente a revista em termos de conteúdo.

Há artigos históricos sobre a engenharia como o: “Obras Hidráulicas no Egito durante o Império dos Faraós de 4400 até 4332 antes de Cristo”, por Eduardo Schmidt de Darmas-tad. Era um artigo do exterior traduzido por Ludwig Theodor Schreine. Inúmeros são os artigos sobre Estradas de Ferro brasileiras reportando sobre os seus estados e funciona-mentos. Sobre Mineração são também comuns. Muitos artigos técnicos apresentam varia-das formulações matemáticas. Há um artigo sobre a história do telefone que é divulgado em vários números. É um artigo técnico e histórico bastante completo para a época.

A segunda parte da Revista trata de notícias referentes às questões de importância para a engenharia nacional. Há notícias sobre a Escola Politécnica, sobre o Clube de Engenha-ria, sobre das reuniões do Instituto Politécnico Brasileiro, sobre estatutos do Clube de En-genharia e sobre estradas de ferro existentes no Brasil.

Há outros tipos de artigos que de importância para a engenharia: máquinas, turbinas, mecânica, Botânica (i.e. “De uma Breve excursão a S. João d´El Rei, Minas Gerais”, por J. Barbosa Rodrigues), bibliografia de André Rebouças sobre locomotivas, artigos sobre portos. Também se anunciava livros que eram recebidos na redação. Uma comunicação curiosa saiu em um de seus números, em seis línguas, feita pelo observatório do Rio de Janeiro em página central que dizia o seguinte:

“Conforme autorização concedida aos abaixo assinados em 16 de janeiro de 1882 pela Diretoria do Observatório os mesmos tem a honra de levar ao conhecimento dos Srs. Comandantes e Oficiais da Armada e da Mari-nha Mercante. Oficiais do exército, Engenheiros, Professores, Estudantes, etc. que desejarem comunicar com o Imperial Observatório quer para ter a hora exata, regular cronômetros, ou quaisquer outras informações que todos os dias acharão a sua disposição uma comunicação telefônica, para esse fim estabelecido em casa dos mesmos Ferdinand RODDE & C. Agentes dos Telefones ADER, 107, Rua do Ouvidor, Casa AO GRANDE MÁGICO. Ouve-se perfeitamente bater os segundos do regulador do observatório. N.B. Estas comunicações são inteiramente gratuitas.”

Os Atos Oficiais é uma parte constante em todas as revistas ocupando muitas vezes mais que um terço dos fascículos. Nela se publicam todos os decretos do Império a respeito do estabelecimento de linhas férreas (em geral na íntegra), regulamentos sobre o telégrafo, sobre os Engenhos, sobre as Minas, etc.

Eram publicados todos os decretos referentes ao estabelecimento de linhas férreas em todo o país. Saiam regularmente os decretos, atos oficiais, despachos, solicitação de privilé-gios de uso de invenções, concessão de uso de estradas de ferro, regulamentos sobre o uso do telégrafo, sobre concessão de minerações, nomeações e exonerações todos de lavra do Ministério da Agricultura.

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Para ilustrar a diversidade, podemos citar ofícios pedindo:1. Providências para pagamento sobre materiais fornecidos empresa de estrada de

ferro;2. Nomeação de comissões de profissionais para dar parecer sobre o processo de luz e

lâmpada elétrica (de Edison) que se achava na exposição industrial 3. Cortar madeiras de lei no Estado (em geral indeferidos)4. Concessão para construção, uso e gozo durante 80 anos de uma estrada de ferro por

tração a vapor e bitola de um metro entre Sapucaia e freguesia de Aparecida.A Revista divulga as todas as concessões sobre invenções ocorridas nessa década

(1880). São veiculados os pedidos de privilégio, centenas deles, em média uns 10 por fas-cículo. Exemplos:

1. Para evitar desastres nos carros de linhas urbanas;2. Descascar e manipular banana;3. Descascar e limpar o café;4. Cortar o cabelo;5. Melhoramento em uma serra portátil.Ou seja, certamente uma pesquisa completa desta revista, aliado a investigações so-

bre a documentação existente no Museu da Escola Politécnica e adicionada ao estudo das documentações sediadas no protocolo do Centro de Tecnologia da UFRJ enriquecerá a historiografia sobre a História da Engenharia Nacional.

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Matéria e Movimento na Física de Aristóteles

Ricardo Seara RabenschlagProfessor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas

[email protected]

Matéria e movimento na física de Aristóteles

Todo aquele que se arisca à leitura da Física de Aristóteles deve ter o cuidado de nunca tomar os termos que aí aparecem como sendo, de antemão, equivalentes aos seus corre-latos modernos. Ele deve investigar, em especial, se o termo “Episteme” tem, na obra de Aristóteles, o mesmo significado que seu correlato moderno “Scientia” e se a disciplina científica que Aristóteles denominou de “Ta Phusica” pode ser considerada uma teoria física, no sentido moderno do termo. Como se sabe, em ambos os casos, a resposta da esmagadora maioria dos historiadores do pensamento grego antigo é negativa (ACKRILL, 1981). Frente a esse veredicto quase unânime, surge naturalmente a pergunta: qual a rele-vância do estudo da Física de Aristóteles para o historiador da ciência moderna, já que, a rigor, não se trata de uma obra científica?

A resposta padrão a tal questionamento, é que, nos seus primórdios, a ciência se encon-trava misturada a outras formas de conhecimento, dentre eles o filosófico, e que, portanto, a análise das explicações formuladas pelos filósofos antigos sobre temas que modernamen-te classificamos como científicos mostra-se crucial para o entendimento dos estágios ini-ciais da atividade científica. Segundo esta visão muito difundida, não seria mesmo exagero comparar o surgimento da ciência moderna a um longo e doloroso parto em que o conhe-cimento científico, filho pródigo da civilização européia, teria sido extraído a fórceps do corpo da filosofia. Uma das faces mais óbvias desta atitude em relação à física aristotélica é a naturalidade com que alguns adeptos desta interpretação insistem em apresentar Aris-tóteles seja como um empirista seja como um precursor do empirismo (DIJIKSTERHUIS, 1969).

Como se sabe, o empirismo caracteriza-se por condicionar a aceitação de uma teoria científica ao teste experimental das suas conseqüências observacionais. Ora, segundo Aris-tóteles, os princípios de uma ciência se caracterizam, entre outras coisas, por sua anteriori-dade epistêmica. Em outras palavras, pelo fato de ser através do conhecimento da verdade dos princípios que se conhece a verdade das suas conseqüências observacionais e não o contrário. Com efeito, conhecer cientificamente, na acepção aristotélica do termo, é saber a causa de um estado ou evento necessário. Para se ter conhecimento, não basta saber que algo é o caso, é necessário saber por que este algo não poderia deixar de ser o que é: não basta, portanto, sabermos que é verdadeiro o enunciado que expressa o fato que buscamos

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conhecer, é necessário sabermos deduzi-lo a partir de princípios que expressem a natureza das substâncias cujas propriedades buscamos entender. Em outras palavras, para Aristóte-les, ter conhecimento metafísico, físico ou matemático, é ser capaz de demonstrar verdades metafísicas, físicas ou matemáticas, a partir de princípios. Esta concepção dedutivista de conhecimento científico, radicalmente avessa à concepção moderna de ciência natural que vincula à posse de conhecimento ao sucesso experimental, não deve causar estranheza ao leitor da Física, posto que Aristóteles a define como um conhecimento demonstrativo a partir de princípios universais e necessários (ROSS, 1995).

Dito isso, vejamos de que modo a física aristotélica se ajusta a esta caracterização da ciência aristotélica. Como vimos, anteriormente, a ciência para Aristóteles é um conheci-mento demonstrativo que parte de princípios universais e necessários. Conseqüentemente, a ciência do movimento de Aristóteles deve consistir num conhecimento demonstrativo baseado em princípios universais e necessários do movimento. Um movimento que deriva de princípios universais e necessários só pode ser ter uma causa igualmente universal e ne-cessária. Esta causa ou princípio do movimento é o que Aristóteles denomina “phusis”, daí a caracterização da Física de Aristóteles como uma ciência da natureza ou do movimento natural. Com efeito, substâncias naturais, por sua vez, são definidas como aquelas que contêm em si mesmas o princípio do seu movimento, ou seja, substâncias cujo movimento deriva das suas essências ou naturezas.

Na Física aristotélica, os movimentos naturais são classificados em três tipos: geração e corrupção, crescimento e diminuição, e deslocamento ou movimento local. Uma vez que, segundo Aristóteles, tanto a geração e a corrupção como o crescimento e a diminuição pressupõem o contato de duas ou mais substâncias e, por conseguinte, não existiriam caso não existissem movimentos locais, a busca pelos princípios do movimento natural começa pela busca dos princípios do movimento local.

Com base na tese de que o Universo tem a forma de uma esfera em movimento rota-tório1, Aristóteles afirma a existência de dois tipos de movimento local simples: o retilíneo e o circular. Dado que todo movimento natural é simples e que a cada tipo de movimento local simples e ao seu contrário deve corresponder um princípio natural, Aristóteles afirma igualmente a existência de três princípios ou causas naturais responsáveis pelo movimento local: dois responsáveis pelos movimentos retilíneos, visto que o movimento em direção ao centro é contrário ao movimento em direção à periferia, e um responsável pelos movi-mentos circulares, posto que o movimento circular não admite contrário2. No que se refere aos princípios naturais dos movimentos retilíneos, Aristóteles supõe a existência de duas qualidades primárias que são a secura e o calor e seus respectivos opostos que são a umida-de e o frio. Como cada substância natural capaz de movimento retilíneo deve possuir duas destas qualidades, temos quatro substâncias elementares capazes de movimento retilíneo: Fogo (seco e quente) e Ar (úmido e quente), que se movem do centro para a periferia, e Terra (seca e fria) e Água (úmida e fria)3, que se movem da periferia para o centro.

Quanto ao princípio natural do movimento circular, Aristóteles supõe a existência de um quinto elemento, o Éter, uma vez que o movimento circular não comporta oposições. Mas como explicar a existência necessária do movimento circular, requisito essencial, como vimos, para que se possa incluí-lo no domínio dos movimentos naturais? Por certo que não basta apontar para os objetos celestes e “ver” que eles se movem: para Aristóte-les, é essencial que tal movimento não seja acidental e sim a conseqüência necessária da natureza dos objetos celestes. Como se sabe, é na eternidade do Universo que Aristóteles buscará as razões para afirmar a existência necessária do movimento das esferas celestes. Com efeito, se tudo fosse feito da mesma matéria de que são feitos os objetos sublunares, o

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Universo tenderia inexoravelmente ao repouso, o que, para Aristóteles, equivale ao fim do Universo, dada a conexão necessária que ele estabelece entre tempo e movimento. Sendo assim, a tese mais espetacular da cosmologia aristotélica, a saber, a afirmação de que o Céu é composto de uma matéria radicalmente distinta da matéria de que são compostas as substâncias sublunares, longe de ser o reflexo de uma física pré-experimental, fundada na observação ingênua da natureza, é na verdade uma conseqüência necessária de princí-pios que Aristóteles acredita serem válidos para toda e qualquer investigação científica da natureza.

Além dos movimentos naturais, que são simples, Aristóteles admite ainda a existência de movimentos compostos, ditos violentos, já que resultam do contato entre substâncias em movimento. A respeito de tais movimentos, não pode haver conhecimento científico, em razão do seu caráter fortuito, já que resultam do choque entre duas ou mais substân-cias. Isto não impede, contudo, que se tenha deles um conhecimento hipotético, embora não devamos nos esquecer de que tal conhecimento, aos olhos de Aristóteles, não pode ser qualificado como científico, uma vez que por meio dele não se pode expressar relações causais.

Para Aristóteles, a ciência não visa descrever o mundo e sim explicá-lo através da apre-sentação das suas causas primeiras, reveladas pelos princípios: dizer que um princípio da física é verdadeiro significa o mesmo que dizer que ele expressa a causa ou essência das substâncias primeiras mutáveis. É compreensível, portanto, que os aristotélicos tenham vigorosamente rejeitado à nova física matemática dos modernos. Por certo que os filósofos deveriam ter prestado mais atenção às evidências empíricas que os cientistas modernos apresentavam contra as teses aristotélicas, mas daí a aceitar que leis puramente quanti-tativas pudessem servir de princípios para a explicação dos fenômenos naturais há uma enorme diferença!

Por outro lado, a atitude dos precursores da física moderna é perfeitamente coerente, pois, se a exemplo de Galileu compreendermos o conhecimento da natureza, não como desvelamento de causas ocultas, mas como a representação matemática dos fenômenos naturais, conhecer e descrever serão uma e a mesma atividade e, nesse caso, não haverá incoerência alguma na afirmação da tese lógico-metodológica empirista de que estabele-cemos a verdade das leis de uma teoria científica por meio da verificação empírica das suas conseqüências observacionais.

Ao recusar a idéia de que o reconhecimento da verdade dos princípios de uma ciência esteja atrelado à verificação ou corroboração empírica das suas conseqüências observa-cionais, Aristóteles se vê obrigado a supor a existência de uma forma não-científica de conhecimento capaz de dar conta da justificação racional dos princípios das ciências. Em conformidade com a terminologia empregada na Academia, Aristóteles denomina esta forma superior de conhecimento de dialética. Ora, se a dialética deve servir de fundamen-to último da verdade dos princípios de cada uma das ciências, o conhecimento que ela for-nece não pode ser demonstrativo, do contrário, também, em relação à dialética, se imporia à questão acerca da fundamentação dos princípios. Não é, pois, a partir de princípios e sim em direção aos princípios que devemos compreender o sentido da justificação dialética: razão pela qual, ao contrário do que ocorre com a ciência, que parte do que é mais conhe-cido em si para chegar ao que é mais conhecido para nós, a argumentação dialética fará o caminho inverso, partindo do que é particular e contingente e, portanto, mais conhecido para nós, para chegar ao que é universal e necessário e, portanto, mais conhecido em si.

Por conseguinte, não é na ciência e sim na dialética que encontraremos os elementos necessários à compreensão das inúmeras passagens em que Aristóteles faz referência à ob-

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servação como uma parte essencial do empreendimento científico. Com efeito, em relação à fundamentação dialética dos princípios das ciências, é correto afirmar que o conheci-mento dos fenômenos é anterior ao conhecimento das causas dos fenômenos. E isso não porque a aceitação ou a rejeição dos princípios esteja condicionada à verificação ou à refu-tação das suas conseqüências observacionais, como pensariam os empiristas modernos, e sim porque a apreensão dos fenômenos é condição necessária, ainda que não suficiente, à apreensão dos princípios.

Em resumo, a Física de Aristóteles não deve ser vista nem como um dos primeiros estágios de desenvolvimento da ciência moderna, nem como a expressão de uma atitude lógico-metodológica que estaria nas origens da física clássica. Nesse sentido, a menos que uma compreensão adequada das relações entre física e filosofia possa servir de base para uma avaliação positiva das relações entre ciência e dialética, na filosofia natural de Aristó-teles, as raízes históricas da ciência moderna não devem ser buscadas em Aristóteles e sim na tradição empirista que floresceu na Jônia, nos séculos VII e VI AC.

Notas

1 Ao contrário do que se poderia imaginar, a tese aristotélica de que o Universo é uma esfera finita não é fruto da impressão visual que temos de que o céu tem o formato de uma abóbada. Ainda que Aristóteles acreditasse que ao olharmos para as estrelas estamos olhando para os limites do Universo, ele fornece uma demonstração a partir de princípios deste fato que então se reveste de um caráter necessário e independente da observação empírica.

2 É importante frisar que Aristóteles não considera o movimento circular da esquerda para a direita como sendo contrário ao movimento circular da direita para a esquerda. A razão principal para esta recusa está no fato de que na superfície de uma esfera é possível sair de ponto x e chegar a um ponto y movimentando-nos tanto numa direção como na outra.

3 As combinações (seco-úmido) e (quente-frio) estão logicamente excluídas, em razão das relações de oposição.

Referências

ACKRILL, J.L. Aristotle The Philosopher. Oxford: Clarendon Press, 1981. 160p.

ROSS, Sir D. Aristotle. London: Routledge, 1995. 322p.

DIJIKSTERHUIS, E. J. The Mechanization of The World Picture. Oxford: Oxford University Press, 1969. 537p.

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Os Experimentos de Michelson-Morley-Miller e a Busca por um

Vento de ÉterRoberto Affonso Pimentel Júnior

Doutorando do [email protected]

Desde que a Teoria Ondulatória da Luz tornou-se o modelo dominante na Óptica do século XIX, por volta dos anos 1830s, a questão da natureza e estado do meio no qual a luz se propaga como onda voltou à baila. Usualmente este meio era chamado de “éter lu-minífero”, e devido ao efeito de aberração estelar, um fato conhecido desde cerca de 1730, parecia necessário supor que este meio era estático no espaço sideral e que a Terra e os demais corpos celestes se moviam nele (fig. 1).

fig. 1 - Uma pessoa andando rapidamente através de uma chuva pesada em que as gotas de chuva caiam na vertical terá que inclinar seu guarda-chuva ligeiramente para a frente para compensar seu próprio movimento. As setas representam as velocidades de uma gota de chuva percebidas por um observador em repouso em relação ao chão (seta da direita) e pela pessoa andando (seta da esquerda). Da mesma maneira e pela mesma razão um astrônomo solidário a uma Terra que se desloca rapidamente no espaço terá que

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inclinar ligeiramente seu telescópio na direção do movimento da Terra para que a luz da estrela observada caia exatamente no centro do tubo do telescópio. Como resultado deste movimento, a posição aparente de uma estrela normalmente não coincide com sua posi-ção verdadeira. Chamamos este fenômeno de “aberração” da luz. O desvio máximo entre as posições angulares aparente e verdadeira é da ordem de 20 segundos de arco (extraída de <http://everydaybird.blogspot.com/2009/07/wandering-light.html>, acessado em 29 de outubro de 2010).

Assim, em princípio deveria ser possível determinar experimentalmente com que ve-locidade a Terra se movia em relação ao éter, talvez de uma forma semelhante àquela pela qual pode-se estimar a velocidade com que um carro se desloca em relação ao ar pelo vento percebido ao se colocar a cara para fora da janela.

No entanto, detectar o “vento de éter” mostrou-se particularmente complexo. Após a me-tade do século XIX mostrou-se que não seria possível utilizar nenhum experimento óptico cujo resultado dependesse da razão entre a velocidade do móvel e a velocidade da luz para determinar este valor, e o físico escocês James Clerk Maxwell chegou a sugerir que apenas efeitos de segunda ordem (envolvendo a relação entre o quadrado da velocidade do móvel e o quadrado da velocidade da luz, portanto um valor muito menor ainda) poderiam ser detec-tados, mas que esse valor seria tão ínfimo que na prática não seria possível medi-lo.

Durante sua estada na Europa em 1881, e talvez motivado pelo desafio posto pela su-gestão de Maxwell, o físico estadunidense Albert Michelson concebeu um experimento para detectar os efeitos de segunda ordem teoricamente mensuráveis relacionados ao mo-vimento da Terra em relação ao éter luminífero, bem como o instrumento que permitiria um tal experimento. Nascia o interferômetro de Michelson. Nele, a luz projetada por uma fonte era inicialmente dividida em dois feixes perpendiculares através de um semi-espelho (“beam splitter”, ou “divisor de feixe”), e cada um dos feixes percorria um dos “braços” do interferômetro até encontrar um espelho colocado perpendicularmente à direção de pro-pagação da luz, o que portanto fazia com que a luz fosse refletida de volta sobre si mesma. Ao se reencontrarem novamente no semi-espelho, parte de cada feixe passava a viajar de maneira superposta ao longo de uma direção onde se produzia então a interferência dos dois feixes, gerando um padrão observável de franjas claras e escuras (fig. 2).

fig. 2 - Diagrama do interferômetro de Michelson original, utilizado no experimento de Potsdam de 1881 para tentar medir o “vento de éter”. O semi-espelho encontra-se no centro do instrumento. À sua esquerda pode-se ver a lâmpada de Argand utilizada como fonte de luz, o contrapeso necessário para equilibrar o instrumento e a pequena luneta utilizada para discernir as franjas de interferência. Do lado mais à direita da figura pode-se

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ver os dois braços perpendiculares do interferômetro com os espelhos em suas extremida-des (extraída de <http://www.staff.amu.edu.pl/~zbzw/ph/sci/aam.htm>, acessado em 29 de outubro de 2010).

O experimento consistia em girar lenta e suavemente o interferômetro em 90 graus, a partir do que Michelson esperava encontrar um deslocamento sensível do padrão de fran-jas de interferência devido ao efeito do “vento de éter” sobre o tempo de vôo da luz num e noutro braço do interferômetro em cada caso (antes e depois de girar). Tal não ocorreu. Apesar de toda a sensibilidade do instrumento (para se ter uma idéia de quão sensível o instrumento era, basta notar que o experimento seria realizado inicialmente em Berlim, no entanto o tráfego de carruagens nas ruas próximas ao laboratório onde o equipamento estava instalado fazia vibrar o equipamento ao ponto de não se poder perceber as franjas de interferência, e por isso o experimento foi levado para a muito mais pacata Potsdam), Michelson não pôde detectar qualquer variação na posição das franjas de interferência ao girar o aparelho (MICHELSON, 1881).

Começava aí uma longa busca por um resultado positivo para o experimento. O re-sultado nulo obtido por Michelson em Potsdam em 1881 o levou a defender a idéia, já previamente sugerida pelo físico britânico Gabriel Stokes, a partir de outras considerações, de que o éter deveria ser arrastado pela Terra em seu movimento, daí a impossibilidade de se detectar o “vento de éter” numa experiência feita na superfície da Terra. Instado por William Thomson e lorde Rayleigh, Michelson repetiu o experimento em 1887, com o auxílio de seu colega Edward Morley. O objetivo era testar as hipóteses de Fresnel de um éter estacionário e parcialmente arrastado pela matéria em movimento – esta segunda ca-racterística testada e corroborada em 1886 através da repetição do experimento de Fizeau do arrasto do éter pela água em movimento. Michelson e Morley utilizaram um interferô-metro muito aperfeiçoado em relação ao experimento original de Potsdam, ampliando o tamanho dos braços do interferômetro através de reflexões múltiplas num jogo de espe-lhos cuidadosamente posicionado e acomodando a montagem sobre um bloco massivo de arenito que flutuava sobre uma base de mercúrio líquido, permitindo um giro delicado e muito mais suave, mas mesmo assim o resultado obtido ficou dentro da margem de erro de leitura do aparelho, isto é, nulo, para todos os efeitos (MICHELSON e MORLEY, 1887). No entanto, as medições subseqüentes em diferentes épocas do ano, inicialmente previstas como parte importante do experimento, para descartar possíveis combinações do movi-mento de rotação da Terra com o de translação em relação ao éter que pudessem levar a um resultado coincidentemente nulo, nunca chegaram a ser feitas. Estas e outras consi-derações levariam a novas repetições do experimento por Morley e Dayton Miller (1902-04), Dayton Miller (1921, 1923-24, 1924, 1925-26), Tomaschek (1924), Kennedy (1926), Illingworth (1927), Piccard e Stahel (1927), Michelson et. al. (1929) e Joos (1930), e isso a despeito do desenvolvimento e progressiva aceitação da Teoria da Relatividade Restrita pela comunidade dos físicos (SWENSON, 1972).

O resultado nulo do experimento de Michelson-Morley de 1887 não ficou sem ex-plicação à época, no entanto. A maior síntese teórica da época, a “Teoria do Elétron”, de-senvolvida pelo físico batavo Hendrik Lorentz para integrar os fenômenos luminosos e eletromagnéticos a partir da interação entre o éter e a matéria ordinária, buscou incor-porar o resultado percebendo que são justamente as forças intermoleculares, de natureza eletromagnética, que determinam em última instância as dimensões dos braços do interfe-rômetro, e que elas mesmas devem ser afetadas pela direção do movimento relativo do éter. Uma sugestão semelhante havia sido feita também pelo físico irlandês George FitzGerald,

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daí o efeito ter passado a ser conhecido como “contração de Lorentz-FitzGerald”. O arca-bouço matemático daí derivado, e desenvolvido posteriormente por Lorentz, Poincaré e outros, levou à edificação do conceito de tempo próprio, das transformações de Lorentz e da fórmula de composição de velocidades, o que seria reinterpretado em 1905 por Albert Einstein no que ficou conhecido como Teoria da Relatividade Restrita.

A persistência da busca por evidências experimentais de um “vento de éter” mesmo mais de um quarto de século depois do advento da Teoria da Relatividade Restrita, através de experimentos caros e de longa duração, evidencia o quanto a edificação de um novo paradigma é um processo tortuoso e, muitas vezes, demorado. Se é discutível que os resul-tados obtidos por Michelson e Morley em 1887 tiveram um papel na gênese da Teoria da Relatividade Restrita, parece evidente tanto pelo número e a qualidade das repetições que o experimento teve quanto pelo esforço dos diversos partidários da Teoria da Relatividade Restrita em reforçar o papel corroborador do experimento como base empírica do modelo que seu papel na aceitação da Teoria da Relatividade Restrita não pode ser desprezado.

Referências bibliográficas:

SWENSON Jr., L. S. The Ethereal Aether. Austin: University of Texas Press, 1972.

KOSTRO, L. Einstein and the Ether. Montréal: Apeiron, 2000.

MICHELSON, A. A. “The Relative Motion of the Earth and the Luminiferous Ether”. American Journal of Science, 3ª série, 22, pp. 120-129, 1881.

MICHELSON, A. A., MORLEY, E. W. “On the Relative Motion of the Earth and the Lumi-niferous Ether”. American Journal of Science, 3ª série, 34, pp. 333-345, 1887.

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Manoel Pereira Reis: a trajetória de um astrônomo baiano

Rundsthen Vasques de Nader1, Nadja Paraense Santos2

Observatório do Valongo / UFRJ, doutorando do programa HCTE, [email protected] do programa HCTE / UFRJ, [email protected]

Palavras-chave: Astronomia, Escola Politécnica, Observatório do Valongo, Manoel Pereira Reis

Introdução

O que sabemos de Manoel Pereira Reis é pouco até agora, como aliás, de grande parte da história da ciência no Brasil. Nasceu na Bahia, Salvador, em 12 de novembro de 1837. A partir daí temos um hiato até o ano de 1856, onde o encontramos concluindo seus estu-dos secundários no Mosteiro de São Bento e, em 1857, matriculou-se na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Era filho de Joaquim Pereira Reis, livreiro e professor de desenho, pintura e arquitetura, e Ana Bernardina Pereira Sampaio.

Depois de rápida passagem pela Escola de Belas Artes, Reis ingressou , em 1858, como professor adjunto de desenho na Escola Naval, onde lecionou topografia e hidrografia. [1]

Em 1872 vamos reencontrá-lo na Escola Central, instituição criada a partir de 1858, oriunda da antiga Escola Militar. O ensino nessa Escola abrangia três cursos distintos: um curso teórico de Ciências Matemáticas, Físicas e Naturais, um curso de Engenharia e Ciên-cias Militares, e um curso de Engenharia Civil, voltado para as técnicas de construção de estradas, pontes, canais e edifícios, ministrado aos não-militares, ou seja, aos civis que fre-qüentavam as aulas (a palavra civil ainda não era empregada, nem fora mencionado na Carta Régia que instituiu a Academia).[2] Foi neste ambiente, em 1872, que ele concluiu seu curso de Engenharia Civil, onde também se tornou bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas.

Em 1874, a Escola Central transferiu-se do Ministério do Exército para o Ministério do Império, com o nome de Escola Politécnica, atendendo apenas alunos civis.

Pereira Reis vai para o Imperial Observatório Astronômico

Em algum momento entre 1872 e 1876 Pereira Reis tornou-se astrônomo do Imperial Observatório Astronômico (IOA). O primeiro registro que se tem dele no observatório é de 1876, feito pelo então Ministro da Guerra:

“Por aviso de 31 de março [1876], assinado pelo Duque de Caxias, Pre-sidente do Conselho e Ministro da Guerra, foi conferido o título de “As-

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trônomo” ao Adjunto do Imperial Observatório Astronômico, Manoel Pereira Reis, com direito a substituir o Diretor em seus impedimentos e faltas. A distinção foi concedida pelos serviços fora do comum prestados pelo referido Adjunto, “o mais habilitado em prática e teoria” no dizer do próprio Diretor.” [3]

No IOA, em 1876, Reis trabalhou na determinação da posição geográfica de várias localidades da província de São Paulo e da Estrada de Ferro Rio Claro e de seu prolonga-mento. Este trabalho foi elogiado por Emmanuel Liais, então diretor do observatório, com quem viria, posteriormente, travar longa contenda. (Pela qualidade excepcional dos resul-tados obtidos nestas determinações, Reis foi citado no principal anuário de avanços cien-tíficos, o L’Année Scientifique et Industrialle de 1877, tendo sido condecorado por serviços prestados ao Estado por D. Pedro II no mesmo ano como Oficial da Ordem da Rosa. [8])

Em 1875 Liais reivindicou para o IOA as atribuições da Repartição da Carta do Im-pério, a fim de legitimar e assegurar continuidade à astronomia ali praticada. Em carta enviada ao imperador em 09 de julho de 1875, Liais afirmava:

“Ao encarregar o Observatório da Carta, eu creio que se estaria assegu-rando seu futuro e garantindo-o junto à opinião pública, que assim lhe compreenderia melhor a utilidade, de maneira que seu desenvolvimento poderia ser maior”. [4]

Em 1877 Reis determinou a diferença das longitudes entre o IOA e Barra do Piraí, utilizando pela primeira vez no país o telégrafo para este fim, apresentando ao mesmo tempo a publicação Determinação da differenças da latitude e longitude entre o Imperial Observatorio do Rio de Janeiro e Barra do Pirahy (1877). Segundo Liais, em ofício dirigido ao Duque de Caxias, dizia que esta publicação honrava “ao seu autor, Dr. Manoel Pereira Reis, ao Observatório do Brasil e a nova e engenhosa organização de seus instrumentos”. [5]

Figura 1: Página inicial de Determinação da differenças da latitude e longitude entre o Imperial Observatorio do Rio de Janeiro e Barra do Pirahy, publicada por Manoel Pereira Reis em 1877 (Biblioteca de Obras Raras da Escola Politécnica da UFRJ).

Começam as brigas

Liais nomeou, em 1873, Pereira Reis chefe da comissão encarregada da Carta Geral do Império. Porém, em fins de 1878, aparentemente ordens mal interpretadas dadas por Liais provocaram o afastamento dos membros responsáveis pela elaboração da Carta Ge-

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ral, dentre os quais, Pereira Reis. A partir deste incidente desenvolveu-se toda uma longa controvérsia entre Pereira Reis e IOA, que duraram anos. Henrique Morize, diretor do ob-servatório entre 1908 e 1929, descreve Liais como competente, mas impaciente e irascível:

“A extraordinária erudição de Liais, bem como a notável atividade e a poderosa inteligência, davam justa esperança de que sua ação fosse efi-caz para o desenvolvimento do Observatório. Infelizmente, seu gênio impaciente e irascível adquiriu-lhe animosidades, cujos efeitos duraram até época recente, e prejudicaram o progresso do estabelecimento”. [3]

Em 1879, Reis ingressou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, como substituto do professor de desenho do curso de Ciências Físicas e Matemáticas, chegando em 1881 a lente catedrático de astronomia, após ter defendido em concurso a tese Theoria Completa dos Cometas.

Figuras 2 e 3: Páginas iniciais da tese Theoria Completa dos Cometas, defendida por

Manoel Pereira Reis em 1881, para ser tornar lente catedrático de astronomia da Escola Politécnica (Biblioteca de Obras Raras da Escola Politécnica da UFRJ)

Provavelmente o temperamento explosivo de Liais contribuiu para o vulto que essa polê-mica tomou. Apenas o seu gênio, entretanto, não explicaria as inúmeras outras críticas feitas por Pereira Reis e que continuaram a ser dirigidas ao IOA, mesmo após a saída de Liais e se seu retorno à França. A polêmica, iniciada em fins do ano de 1878, ocupou as páginas dos principais jornais da época, com acusações a respeito da incapacidade da instituição em pre-cisar o meridiano absoluto. Estava em questão a capacidade do Observatório em determinar as suas próprias coordenadas através de um método desenvolvido por Liais. Pereira Reis atacava continuamente a instituição e o seu diretor junto às autoridades governamentais, du-vidando da competência científica e da honestidade de Liais. Tal questão alcançou a Câmara dos Deputados, por meio de uma carta de Pereira Reis ao deputado Costa Azevedo, na qual aquele afirmava que o Observatório era uma instituição “inútil” [4].

Membro do Instituto Politécnico Brasileiro, com sede no Rio de Janeiro, Pereira Reis levou suas sérias e pesadas acusações para as sessões de Congregação do Instituto. Devido às ações de Pereira Reis, Liais foi expulso do quadro de sócios dessa agremiação.

“Considerando, que o Sr. Dr. Emmanuel Liais, sócio honorário do Insti-tuto Politécnico Brasileiro, em vários artigos que publicou no Jornal do Commercio de junho do corrente, [...] injuria o Instituto, denominando--o de associação de ignorantes, estouvados e outros epítetos [...]. Propo-nho, que [...] seja eliminado do quadro de sócios honorários do Instituto Politécnico Brasileiro”. [6]

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Nos anos de 1879 e 1880 Liais insistiu na mudança do Observatório, sugerindo o Mor-ro de Santo Antônio para sua localização. Não foi, contudo, atendido em nenhum de seus pedidos e solicitou, sua exoneração, indicando Luís Cruls para substituí-lo e desligando-se oficialmente em março de 1881.

Para Liais esta foi mais uma (a última para ele) tentativa de colocar Pereira Reis no ostracismo.

A criação do Observatório da Escola Politécnica

Em 1871 com o desligamento do IOA da Escola Central, e sua posterior transferência do Ministério da Guerra para o Ministério dos Negócios do Império em 1877, os alunos da Escola Politécnica que tinham aulas da cadeira de Astronomia e Geodésia perderam o local onde eram ensinadas as práticas de Astronomia de Campo e Geodésia.

Em 1879, a Congregação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro aprovou que a cons-trução de um pequeno observatório, necessário à instrução prática dos alunos, fosse feita no edifício da própria Escola, num dos seus terraços. As aulas iniciaram-se, a título pre-cário, em setembro de 1880, tendo como professores, entre outros, Pereira Reis, Galdino Pimentel, Paulo de Frontin e o Barão de Teffé (Antônio Luís Von Hoonholtz). Em julho de 1881 a Congregação da Escola Politécnica recebia a doação de um pequeno observatório, situado no Morro de Santo Antônio, equipado com instrumentos para astronomia meri-diana. Os doadores foram Manoel Pereira Reis, Joaquim Galdino Pimentel e André Gus-tavo Paulo de Frontin. Assim, em outubro de 1881, fundaram o Observatório do Morro de Santo Antônio, ligado à Escola Politécnica, ou Observatório da Escola Politécnica (OEP), que hoje é o Observatório do Valongo da UFRJ. [8]

O observatório dirigido por Pereira Reis foi apoiado financeiramente pela direção da Escola Politécnica, o que lhe propiciou adquirir vários instrumentos e até mesmo verbas para a construção de um anexo em Barbacena (MG) em 1894. [7] Todavia, não foram encontrados ainda quaisquer registros de observações astronômicas com fins científicos feitas no OEP, o que nos faz supor que a astronomia neste observatório era compreendida como capaz de fornecer apenas resultados didáticos, sendo o local onde os alunos daquela escola recebiam os ensinamentos práticos de astronomia e geodésia.

Figura 4: Entrada do Observatório da Escola Politécnica (Biblioteca do Observatório do Valongo, Arquivo Histórico de Documentos).

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Figura 5: Vista aérea do Observatório da Escola Politécnica na época do início do des-monte do Morro do Santo Antônio, em 1922 (Arquivo da Marinha, Divisão de Documen-tos Especiais).

Aos poucos Pereira Reis foi fazendo melhorias no Observatório. Em 1901 esteve em Paris e acertou com L. Pierre Gauthier a compra de instrumentos astronômicos que seriam enviados ainda naquele ano: luneta equatorial, círculo meridiano, astrolábio e outros.

Com Ortiz Monteiro na direção da Escola Politécnica (1905-1913) o OEP teve grande apoio, tendo sido feita uma reforma completa nas instalações entre 1906 e 1907, com di-versas construções novas e a importação e instalação da Grande Equatorial 300/5500 mm, o maior instrumento instalado no Brasil à época, fabricada pela Cooke & Sons. [8] Este instrumento encontra-se atualmente instalado no Observatório do Valongo.

Figura 6: Grande Equatorial 300/5500 mm Cooke & Sons no Observatório do Valongo (arquivo pessoal).

Todavia, em 1921, a Prefeitura do Distrito Federal, necessitando realizar a obra de des-monte do Morro do Santo Antônio para a reurbanização do centro da cidade, propôs a permuta do terreno onde estava o Observatório por outro, localizado no Morro da Con-ceição, na chamada Chácara do Vallongo. Assim, entre 1924 e 1926, foi realizada a transfe-rência do OEP e o observatório passou a ser conhecido, como referência ao local onde fora realocado, como Observatório do Valongo.

Considerações e Conclusões

Pereira Reis é um personagem intrigante da história da Astronomia no Brasil. Tra-balhou como coroinha quando estudava no Mosteiro de São Bento, era artista plástico, trabalhou no Imperial Observatório Astronômico, de onde foi do céu ao inferno meteo-

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ricamente, e de lá saiu para fundar um observatório. Foi professor de Astronomia e Geo-désica na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e de Desenho na Escola Naval. Logo após a Proclamação da República em 1889 Benjamim Constant, ao olhar a nova bandeira do Bra-sil confeccionado pelo líder positivista Raymundo Teixeira Mendes, não gostou da posição das estrelas e mandou chamar Pereira Reis para corrigir as suas posições. Após aposentar--se, trabalhou como membro da comissão responsável pelas obras de reurbanização do centro do Rio de Janeiro na gestão de Pereira Passos. Chegou mesmo a ser eleito deputado federal pelo Rio Grande do Norte.

Pereira Reis é uma figura já muito julgada em trabalhos anteriores, porém há uma boa parte de sua vida que ainda não nos foi dada conhecer. Aparentemente não publicou mui-to, talvez tenha perdido muito tempo em discussões infrutíferas e estéreis. Talvez, como nos conta o almirante Américo Basílio Silvado em artigo no Jornal do Comércio em 12 de novembro de 1932, seja a mágoa de uma paixão platônica. Nas palavras do almirante, antigo aluno de Reis, “Não havendo sido nunca nomeado diretor do Observatório do Rio de Janeiro, pelo qual me disse uma vez com lágrimas nos olhos, que morreria sem deixar um sucessor...”. Pereira Reis morreu em Barbacena, Minas Gerais, em 26 de junho de 1922, no início do desmonte do Morro do Santo Antônio, aos 85 anos.

Resumindo, Pereira Reis fundou um observatório que sobrevive até hoje, formando astrônomos. O que não é pouco. Além disso, em quantas cidades no planeta há um obser-vatório astronômico? Pois, graças a ele, o Rio de Janeiro tem dois.

Figura 7: Manoel Pereira Reis (Museu da Escola Politécnica da UFRJ).

Referências Bibliográficas:

[1] Silvado, Américo Brasílio, “Manoel Pereira Reis: homenagem à memória do ilustre cien-tista; por ocasião da passagem do seu nascimento”, carta ao Jornal do Commercio, 12 de novembro de 1938.

[2] Telles, Pedro Carlos da Silva, História da Engenharia no Brasil - Século XX, Rio de Ja-neiro: Clube de Engenharia, 1993, 1ª Edição.

[3] Morize, Henique, Observatório Astronômico: Um Século de História (1827 – 1927), Rio de Janeiro: Ed. Museu de Astronomia e Ciências Afins: Salamandra, 1987, p. 73.

[4] Oliveira, Januária Teive e Videira, Antonio Augusto Passos, As polêmicas entre Manoel Pereira Reis, Emmanuel Liais e Luiz Cruls na passagem do século XIX para o século XX, Revista da SBHC, no 1, 2003 p. 45.

[5] Moraes, Abrahão de, Astronomia no Brasil, São Paulo: Universidade de São Paulo, Ins-tituto Astronômico e Geofísico, 1984.

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[6] Revista do Instituto Politécnico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 15, 1879.

[7] Oliveira, Januária Teive e Videira, Antonio Augusto Passos, op. cit. p. 46.

[8] Campos, José Adolfo S. de, Os primórdios do ensino da Astronomia no Brasil, in A Astronomia no Brasil: Depoimentos, São Paulo: editado pela Sociedade Astronômica Brasileira, 1994, p. 95.

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História e métodos experimentais em Linguística e Neurociências

da LinguagemSAMPAIO, Thiago

COSTA, Marília

Introdução

A linguagem humana possui um alto grau de complexidade e diversos aspectos pas-síveis de serem estudados. Ao longo da história, o ser humano aprendeu a se comunicar oralmente, em seguida, codificou seus sistemas linguísticos em símbolos e depois letras. Durante esse tempo, as línguas do mundo se transformaram, originando milhares de no-vas línguas. O estudo da linguagem compreende aspectos estruturais (sintáticos, fonoló-gicos), semânticos, históricos, sociais e de registro (falado ou escrito). Mas afinal, será que existe uma ‘essência’ da linguagem humana? Apesar de estarmos longe de uma resposta categórica para essa questão, diversas mudanças de pensamento ocorreram na história dos estudos da linguagem, originando diversas teorias e campos de estudos relativos à Linguís-tica. Este trabalho busca uma revisão destes pensamentos, sempre focando e observando a busca pelas bases biológicas da linguagem humana que levaram este campo das chamadas Ciências Humanas a uma estável comunicação com as Neurociências.

História da Linguística

Antigamente, os estudos em linguagem possuiam o intuito de criar gramáticas ou de estudar a linguagem para fazer Filosofia ou Crítica Literária. No século XIX estes estudos passaram por uma mudança de caráter, definindo as próprias línguas como objeto de estu-do. A descoberta do Sânscrito neste mesmo século fez com que Franz Bopp, a partir de um método comparativo, descobrisse regularidades entre a língua sagrada indiana e as línguas clássicas (latim e grego). A partir de então é inaugurada uma aborgadem histórico com-parativa dos estudos linguísticos, buscando descrever os processos de mudança linguística que originariam tais línguas a partir de línguas mais antigas. Como não havia registros sonoros dos falantes da época, essa abordagem se focou em textos escritos.

No século XX o Estruturalismo do suíço Ferdinand de Saussure inicia uma nova revo-lução nos estudos em Linguagem. Para que a Linguística pudesse ser considerada um mé-todo científico, seria necessário se focar em um sistema estável suficiente para ser estudado por uma abordagem formal. Visando a separação do que é passível a formalização, Saus-

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sure cria a dicotomia entre Langue e Parole. A Parole compreende a semântica, o discurso, a pragmática, dentre outros aspectos da linguagem que seriam muito fluidos para se fazer ciência. Na Langue estaria a estrutura, um sistema estável da língua presente na mente do falante. O Estruturalismo busca descrever o sistema das línguas, se baseando na fala.

Até os anos 50 muitos estudos em Antropologia como os de Franz Boas, e em Psicologia como os de Edward Sapir, influenciados pelo Behaviorismo acabavam por tratar a linguagem humana de forma antimentalista, mostrando que o comportamento linguístico seria resulta-do do meio em que o indivíduo se encontra. Essa visão ambientalista da linguagem começa a ser combatida no início dos anos 60 por Noam Chosmky, especialmente em uma resenha do livro Verbal Behaviour (SKINNER, 1959), onde Chomsky argumenta contundentemente que a linguagem não poderia ser vista como resultado de fatores ambientais.

O divisor de águas que fez os estudos linguísticos começarem a se distanciar das abor-dagens estruturalista e behaviorista e que os lideraria junto à Revolução Cognitiva, foi a publicação de Syntactic Structures (CHOMSKY, 1957). A ideia de Chomsky era a de uma abordagem mentalista dos estudos em linguagem, que se basearia na postulação de um aparato mental predisposto à aquisição e que contraria o método de indução e repetição. O argumento de Chomsky é que a linguagem humana, através do princípio da recursivi-dade e de um conjunto finito de peças, seria capaz de produzir sentenças infinitas. Este será o ponto que, ainda hoje, melhor conecta a linguística aos estudos em Psicologia e em Biologia. A partir de então, os estudos estruturalistas que visavam descrever as línguas do mundo por meio de suas diferenças, deram lugar aos estudos em Gramática Gerativa, que buscavam superar a adequação descritiva atingindo a adequação explicativa, e estabelecer o que há de igual nas línguas do mundo na busca pelos princípios da linguagem, a Gramá-tica Universal, que representaria o aparato inato da linguagem humana.

A Linguística Experimental e a Neurociência da Linguagem

Ao contrário de outras cognições, como a visão de Hubel e Wiesel, a Linguagem é exclusivamente humana, o que impossibilitou a utilização de modelos animais nos anos seguintes à Revolução Cognitiva, resultando um atraso nos estudos em Neurociências da Linguagem. A solução encontrada para testar as hipóteses da Teoria Linguística foi buscar por evidências comportamentais desse processamento através da Psicolinguística.

A Teoria da Complexidade Derivacional (DTC) nasceu com George Miller no início dos anos 1960, sendo praticamente irmã da então recente Gramática Transformacional (antiga Gramática Gerativa). As duas disciplinas eram complementares: enquanto uma teorizava e apresentava evidências sobre a complexidade derivacional da linguagem humana, a outra se encarregava de apresentar experimentalmente para o mundo a realidade psicológica de tais computações, provando através dos tempos de resposta (RTs) dos testes linguísticos, que quanto maior a complexidade computacional, maior seria o esforço cognitivo para processá-la. Infelizmente, a evidência de dissociações entre a complexidade computacional e os tempos de resposta culminaram na crise do DTC que afastou a Linguística da Psico-linguística por pelo menos 20 anos (cf. FRANÇA, 2007). A mudança de pensamento na teoria de Noam Chomsky, em que as transformações deram lugar a estruturas sintáticas geradas na mente do falante, as duas disciplinas voltaram a se comunicar, e essa união vem resultando em grandes avanços tanto na psicolinguística quanto nos estudos em gramática gerativa. Além disso, essa renovada parceria abriu as portas da Linguística para as Neuro-ciências.

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O notável avanço das técnicas em Neurociências neste meio século possibilitou a elabo-ração de métodos não invasivos de extração de dados da atividade cortical, tornando viável a pesquisa em humanos e, por conseguinte, da linguagem. Os exames neurofisiológicos se dividem em basicamente dois grupos: (i) os hemodinâmicos (fMRI, PET) importante para a localização da área cortical ativada durante um estímulo e, (ii) os eletromagnéticos (EEG, MEG), que trabalham na casa dos milissegundos, possibilitando a decodificação mesmo de processos inconscientes, que se extendem até a casa dos 800ms após um estímulo.

Figura 1: Exames Neurofisiológicos

O primeiro ERP linguístico foi encontrado por Kutas & Hillyard (1980). Neste expe-rimento realizado com um EEG, os pesquisadores buscavam efeitos neurofisiológicos da incongruuência semântica entre verbo e objeto direto. Para isso, se utilizaram de sentenças como ‘He ate a’ seguido dos objetos pizza, coke ou phone. Seus resultados demnstraram que a simples concatenação verbo+objeto é marcada com uma onda negativa de menor am-plitude 400ms após a apresentação do estímmulo. Já a incongruência é representada pela amplitude aumentada – de forma intermediária para o complemento coke que, apesar da incongruência, compartilha a propriedade de ser um alimento, e de forma expressiva para phone (cf. Figura 2). O N400, como foi batizado, foi largamente replicado em experimentos nas mais diferentes línguas do mundo, inclusive no Português do Brasil (FRANÇA, 2002).

Figura 2: N400, incongruência Verbo+Objeto

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Angela Friederici dividirá o processamento linguístico em quatro fases, de acordo com os ERPs já encontrados: N100, relativo ao processamento fonológico; ELAN, relativo à construção da estrutura sintagmatica; N400/LAN, relativo às relações semânticas entre os argumentos de uma frase e; P600: relativo ao ajuste sintático.

Este novo campo da linguística vem se expandindo a largos passos, inspirando os di-versos laboratórios em todo o mundo. No Brasil ainda são poucos pesquisadores que se aventuraram nesse campo. Um dos mais recentes achados da Neurociência da Linguagem no Brasil foi o da Direcionalidade Semântica (GOMES e FRANÇA, 2008; GOMES 2010) que contrasta com as expectativas conexionistas de campo semântico. Em resumo, o Efeito Cloze propõe que a facilitação no acesso a uma palavra em um teste de priming semântico seria resultado de uma mera relação semântica entre elas, explicada pela teoria dos campos semânticos. Assim, uma palavra como panela facilitaria a ativação de qualquer palavra que possua um sentido relacionado a cozinha ou a alimentos. Gomes e França (2008) testam a hipótese de que o relacionamento semântico seja mediado não a partir de um campo semântico, mas sim através de uma estrutura sintática entre nomes os nomes e que, ao inverter essa ordem, o efeito de facilitação desapareceria.

O experimento de Gomes e França (2008) mostrou que os pares de palavras escolhidos para se relacionarem através de estrutura sintática BANANA – casca (banana [com] casca) apresentavam um resultado facilitador, ao contrário do par palavra/não-palavra como em BANANA – parobo, dos pares controle como em BANANA – tombo e em BANANA – sigla; e também do par invertido como em CASCA-banana (cf. Figura 3).

Figura 3: Latência das ondas relacionadas ao Acesso lexical

Conclusão

Podemos observar que o percurso feito pela linguística apresenta diversas mudanças no seu conceito de cientificidade, diversas perspectivas de estudo, além de grandes desa-fios futuros, já que os modelos teóricos desenvolvidos encontram eco em outras disciplinas e assim pode-se profitar de uma profusão de novos estudos que pretendem integrar essas áreas de pesquisa. A Neurociência da Linguagem ainda se trata de um campo de estudos relativamente recente, pouco conhecido e que aos poucos vai se instituindo nas atividades acadêmicas das cadeiras de Letras nas universidades do Brasil. Podemos perceber também que há um grande esforço dos pesquisadores em avançar apesar de ainda haver poucos laboratórios engajados nesse propósito. Porém, com a formação de novos pesquisadores a expectativa é de que área se desenvolva por todo o país.

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Para conhecer mais sobre a Neurociência da Linguagem visite a página do Laboratório de Acesso Sintático - ACESIN-UFRJ: www.acesin.letras.ufrj.br

Referências

BORGES NETO, J. Ensaios de Filosofia da Lingüística. São Paulo: Parábola, 2004COSTA, M.U.C.L.M, Explicitando a modularidade na teoria da mente: um teste ToM sobre

ToM, Dissertação de Mestrado em Linguística, UFRJ, Rio de Janeiro, 2010

HAUSER, M.D., CHOMSKY, Noam, FITCH, W.T. The Faculty of Language: What it it, who has it, and how did we evolve? Science, 298: 1569-79, 2002

FRANÇA, A.I. Concatenações lingüísticas: estudo de diferentes módulos cognitivos na aquisição e no córtex. Tese de Doutorado em Lingüística, UFRJ, 2002

FRANÇA, A.I.; LEMLE, M; GESUALDI, A.; CAGY, M.; INFANTOSI, A.F.C. A neurofi-siologia do acesso lexical: palavras em português. Revista Veredas UFJF, Juiz de Fora, 2008

FRIERICI, A.D. Event-related brain potentials and aphasia. In R.S. Berndt (Ed.), Language and Aphasia. Handbook of Neuropsychology, 2nd Edition, Vol. 3, Amsterdam: Elsevier. 2001

GOMES, Juliana; FRANCA, A.I.  A direcionalidade no relacionamento semântico: um estudo de potênciais bioelétricos relacionados a eventos lingüísticos (ERP) – Revista Veredas UFJF, Juiz de Fora, 2008

Kutas, M. and Hillyard, S.A. Reading between the Lines: Event-Related Brain Potentials during Natural Sentence Processing, Brain and Language, 1980

SAMPAIO, T.O.M, Coerção Aspectual: Um Subproduto da Computação por Fases, Disser-tação de Mestrado em Linguística, UFRJ, Rio de Janeiro, 2010

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“Átomos ou Volumes?” – Uma Questão de Preferência

Tânia O. Camel (PQ); Carlos B. G. Koehler (PQ); Carlos A. L. Filgueiras (PQ) História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – IQ/UFRJ – Rio de Janeiro.

[email protected]

Introdução

A Química de Plantas e Animais do final do século XVIII e do início do século XIX, ou Química Orgânica, como era algumas vezes denominada, foi um campo científico especia-lizado da Química, amplamente direcionada para aplicações práticas e tinha uma relação singular com a farmácia. Teorias químicas fundamentais influenciadas pela filosofia natu-ral, como a teoria atômica newtoniana da afinidade, foram de muito pouca aplicação nesse campo. Além do mais, as investigações experimentais das reações químicas, que eram um tipo de experimento dominante na Química Inorgânica, foram extremamente raras no início da Química Orgânica.

Consequentemente, a classificação das substâncias se apoiou nos critérios da História Natural e não no conhecimento sobre a constituição e a composição destas substâncias, obtido pelo estudo das reações químicas. As primeiras tentativas neste sentido foram ba-seadas inteiramente em analogias químicas e não incluíam nenhum aspecto quantitativo. Elas eram muito semelhantes àquelas feitas pelos historiadores naturais.

Durante o decorrer do século XVIII, certos aspectos da experimentação na Química de Plantas e Animais tinham se transformado lentamente. Em particular, o método para se ob-ter substâncias de plantas e animais havia mudado de destilação para extração com solventes, tendo sido este último aprimorado durante esse período. Thomas Thomson referiu-se ao papel desempenhado pelos farmacêuticos no desenvolvimento das novas técnicas:

Os químicos antigos confinavam suas análises inteiramente à destilação destrutiva. Eles obtinham por este processo quase sempre os mesmos produtos para cada vegetal, pois cada planta quando destilada produzia água, óleo, ácido, carbureto de hidrogênio e gás ácido carbônico, enquanto um resíduo de carbono permanecia na retorta. Quanto à apresentação dos solventes, estamos em débito com os boticários. 1

As análises químicas do último terço do século XVIII, em especial aquelas de Lavoisier, mostraram que as substâncias extraídas de plantas consistiam, sem exceção, nos mesmos três elementos: carbono, hidrogênio e oxigênio. Esse fato suscitou a seguinte questão: como várias substâncias podiam ser formadas apenas por estes três constituintes? (KLEIN, 2003, p. 46) Fourcroy e alguns outros químicos pensavam que as diferenças nas propriedades destas substâncias poderiam estar baseadas nas diferentes proporções destes elementos. (KLEIN, 2003, p. 257, nota 46).

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A identificação das substâncias de plantas e animais consistia na especificação da espé-cie de planta ou animal, a partir da qual a substância podia ser obtida, na observação das propriedades imediatamente perceptíveis e, então, na verificação das suas propriedades químicas. A expressão propriedades químicas referia-se ao comportamento da substância em contato com outra, denominada de reagente, e incluía, por exemplo, sua solubilidade em água ou álcool, sua habilidade para liberar gás ou precipitar após a adição do reagente.

Em relação à natureza do conhecimento envolvido, o conceito de propriedade expli-cava os fenômenos experimentais observados, não como o resultado das interações entre duas substâncias, mas, ao contrário, como um sinal de uma propriedade de uma das subs-tâncias. O reagente, nesta concepção, não é um participante da reação, mas um instru-mento que revela as propriedades da substância em teste. Um exemplo que expressa essa concepção claramente é o termo indicador, utilizado para reagentes que identificam ácidos ou bases. No teste das propriedades químicas, o estágio final, portanto, correspondia a uma inscrição de um efeito observável a olho nu.

Diferentemente da Química Inorgânica da época e da Química Orgânica, após 1840, a Química Orgânica do século XVIII e do início do século XIX diz respeito, quase que ex-clusivamente, às substâncias descobertas na natureza, isto é, fora do laboratório. O termo substâncias orgânicas refere-se a materiais produzidos nos órgãos de plantas e animais. Nesse sentido, as substâncias orgânicas tinham um caráter dual: químico e histórico-na-tural. Seu caráter químico era baseado principalmente no fato de que as substâncias eram obtidas de tecidos de animais e de plantas por meio de operações químicas. Da perspectiva da História Natural, estes materiais eram os menores componentes dos corpos de animais e plantas e o seu conhecimento fazia parte do estudo dos reinos vegetal e animal.

Na taxonomia das substâncias inorgânicas, elaborada por Lavoisier e seus colaboradores, espécies diferentes de substâncias eram agrupadas em gêneros e esses eram agrupados em classes. A classe dos sais, por exemplo, foi dividida em múltiplos gêneros, tais como o dos sais do ácido sulfúrico. A espécie sulfato ferroso pertencia a esta classe. A espécie era sempre expressa no singular, pois não fazia sentido falar dos sulfatos ferrosos nesse sistema.

Em contraste, na Química de Animais e Plantas, os químicos usavam nomes no plu-ral tanto para gêneros quanto para espécies e nomes no singular também para gêneros. Em muitos casos, eles aplicavam os nomes ao gênero, o que representou um problema taxonômico grave. A classificação das substâncias de plantas e animais, semelhante à iden-tificação, também se baseava na sua origem natural e nas propriedades observáveis das substâncias, e estes critérios eram ambíguos.

Desenvolvimento

No decorrer dos anos 1810, Berzelius se convenceu de que devia ser possível, traçar níti-das diferenças entre os gêneros orgânicos, bem como entre as espécies, apoiado na diferença de composição das substâncias orgânicas. Berzelius associou a sua Teoria das Proporções Quí-micas com o mais antigo princípio químico, de que diferenças nas propriedades são provoca-das por diferenças na composição qualitativa e quantitativa no artigo Essai sur les proportions determinées dans lesquelles se trouvent réunis les éléments de la nature organique, em 1814.

As fórmulas químicas tornaram-se, nesse momento, uma excelente ferramenta para traçar os limites taxonômicos, por exemplo, os dois gêneros goma e açúcar eram clara-mente distinguidos pelas duas fórmulas, respectivamente: 12 O + 13 C + 24 H e 10 O + 12 C + 21 H.2

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Para representar os compostos orgânicos, os químicos usaram as fórmulas de Berzelius na construção de modelos de constituição e de reação. Essas fórmulas tornaram-se os no-vos rótulos dos compostos orgânicos e os identificavam e distinguiam.

A notação “berzeliana” foi introduzida em 1813 e adotada em toda a comunidade quí-mica européia a partir de 1827, inclusive pelos químicos que não compartilhavam o com-prometimento teórico de Berzelius com uma versão do atomismo químico. (KLEIN, 2003, p. 88).

A partir da sua Teoria das Proporções Químicas, Berzelius obtinha as fórmulas dos com-postos usando os dados fornecidos pela tabela de densidade de vapor elaborada por Gay Lussac (Figura 1), como se pode observar no exemplo do ácido acético.

De acordo com Berzelius, o ácido acético apresentava a seguinte composição percentu-al em massa: C = 47,54; H = 5,82 e O = 46,54. (BERZELIUS, 1835, p. 129). Com esses dados analíticos, Berzelius obteve a seguinte fórmula para o referido composto: H6C4O3. Essa fórmula foi denominada de fórmula empírica, podendo ser interpretada em número de átomos ou número de volumes de cada elemento constituinte. Um cálculo bastante simples permite obter o número de volumes de cada elemento constituinte, a partir da densidade 3 e da composição percentual, como se segue:

C = 47,54/ 0,8 = 56 56 /42 = 1,33 x 3 = 4 H = 5,82/ 0,07 = 83 83/42 = 2 x 3 = 6 O = 46,64/1,1= 42 42/42 = 1 x 3 =3 O mesmo resultado era obtido ao se considerar os referidos pesos atômicos dos ele-

mentos, como demonstrado abaixo: C = 47,54/12 = 3,96 = 4 H = 5,82/1 = 5,82 = 6 O = 46,64/16 = 2,9 = 3 Dumas foi um dos primeiros químicos a se distanciar da definição tradicional de subs-

tâncias orgânicas segundo a História Natural. Seus três critérios de identificação envolviam os seguintes experimentos: análise quantitativa, determinação da densidade para obter o peso atômico e estudo de uma série de reações químicas para estabelecer a constituição de uma substância orgânica. Além disto, os dados analíticos eram transformados na fórmula empírica de Berzelius e essa posteriormente era transformada em modelo de fórmula de constituição.

A primeira série coerente de investigação experimental das reações orgânicas foi reali-zada com o álcool e seus derivados e no decorrer dessa investigação, de Saussure, em 1811, determinou a composição do gás elefiante. Ele investigou novamente, em 1814, a reação do álcool comum com ácido sulfúrico para a produção do éter sulfúrico (etoxi-etano) e a sua análise, sobre os constituintes do álcool, permitiu-lhe inferir que o álcool podia ser representado por 38, 87% de água e 61,13% de gás olefiante em peso, ou 100 partes de gás olefiante para 63,58 partes de água. (SAUSSURE, 1814). Repetiu o procedimento adotado com o álcool para o éter comum obtendo 80,05% de gás olefiante e 19,95% de água.

Gay-Lussac converteu as porcentagens em peso de de Saussure em volumes, usando as respectivas densidades: 0,978 para o gás olefiante e 0,625 para o vapor d’água e expressou a constituição do álcool em volumes como sendo: 102,5 de gás olefiante e 101,7 de água, isto é, 1 volume de gás olefiante : 1 volume de água. O mesmo foi feito com o éter comum e o resultado obtido sobre a sua constituição em volumes foi de 1volume de gás olefiante : ½ volume de água.4

Dumas e Boullay confirmaram os resultados anteriores e expressaram a composição do éter em um modelo de constituição binária como 2 volumes de gás olefiante : ½ volume

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de água. No final do artigo de 1827, Mémoire sur la formation de l’ether sulfurique, Dumas e Boullay (1827, p. 309) ao representarem a reação correspondente a formação do éter, ao invés do álcool, mostraram apenas seu constituinte imediato C2H2, como se pode observar na figura 1. 5

Figura 1 – Resultados das análises do álcool e do éter por Dumas, 1827. (DUMAS e

BOULLAY, 827, p. 309) Dumas e Boullay analisaram o éter do ácido acético 6 e obtiveram 54,82% de Carbono,

36,425% de Oxigênio e 8,755% de Hidrogênio. Adotando o mesmo procedimento descrito para o ácido acético, eles representaram a composição do éter do ácido acético pelo mode-lo de fórmula de constituição como: H10C8O + H6C8O3, como se pode observar no texto original de 1828.

A fórmula berzeliana para o éter comum era H10C8O, que no modelo de constituição binária era escrita como H8C8 + H2O. A fórmula H10C8O + H6C8O3 era então transfor-mada em H8C8 + H2O + H6C8O3. Dumas e Boullay interpretavam a fórmula parcial H2O como um símbolo para água de cristalização como se pode apreender de sua notação. Finalmente, a fórmula de quatro volumes H8C8devia ser convertida para 4C2H2 e conse-quentemente o modelo de fórmula de constituição em termos de gás olefiante C2H2 para o éter do ácido acético seria: 4 C2H2 + H6C8O3 + H2O.

A afirmativa de Dumas e Boullay de que os éteres eram compostos binários contendo o radical hidrogênio bicarburetado - C2H2 - está apoiada, sobretudo, na Química no papel. O ato de modelar a constituição dos compostos orgânicos permitiu a sua posterior classi-ficação.

Em 1827, Dumas e Boullay sugeriram um novo modo de classificar as espécies orgânicas, no qual as substâncias naturais e os compostos orgânicos produzidos “artificialmente” eram classificados em uma única classe de substâncias. Como critério de classificação, eles esco-lheram a composição e a “constituição binária” comum dos compostos que tinham investi-gado experimentalmente e representado com modelos de fórmula, como no exemplo citado.

Conclusão

Quando se considera a construção de modelos de constituição e de reação química, a primeira fórmula diz respeito a expressar a porcentagem em peso dos elementos consti-tuintes da substância, obtida através da análise quantitativa. A fórmula empírica de Ber-zelius representa, então, a segunda fórmula, que preserva o significado e a referência da primeira, mas se associa à Teoria das Proporções Químicas. De acordo com essa teoria, a fórmula significa que os componentes elementares observáveis - Carbono, Hidrogênio e Oxigênio - pela análise quantitativa consistem em porções invisíveis, de quantidades inde-pendentes, com um peso relativo de combinação invariante e característico, ou “peso atô-mico”. Na etapa final, a fórmula ganha mais um significado que corresponde à constituição binária do composto em questão e também estipula a razão em peso dos dois constituintes imediatos em termos dos seus invariáveis pesos teóricos de combinação.

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As fórmulas “berzelianas” foram usadas por químicos atomistas e não-atomistas, pois expressavam proporção em volumes ou em átomos e se difundiram mais ampla-mente por não representarem, como as fórmulas de Dalton, um compromisso com a teoria atômica. Elas permitiram a produção da primeira classificação dos compostos orgânicos através das fórmulas de constituição binária. Essa classificação foi estabelecida por Dumas e Boullay, em 1828, a partir da sua Teoria do Éter apoiada nos artigos de 1827 e 1828. Outras teorias de classificação surgiram apoiadas nas fórmulas de constituição.

Notas

1 Thomson, T., 1804, citado por Klein (2003, p. 59). 2 Berzelius, 1815, citado por Klein, (2003, p. 56). 3 As densidades do hidrogênio e do oxigênio foram obtidas da tabela de densidade

de vapor de Gay-Lussac, sendo respectivamente 0,07 e 1,1. A densidade do carbono foi obtida em Partington, (1964, p. 343) sendo 0,41 para C = 6. A tabela se encontra no artigo de 1808, Sur la combinaison des substances gazeuses, les unes avec les autres, p.252-53.

4 Gay-Lussac, 1815 citado por Klein (2003, p. 114). 5 Dumas expressou a composição do álcool em fórmula de dois volumes, pois a fórmula

H2O é a fórmula da água no sistema de dois volumes, e a de C2H2 se encontra no sistema de um volume, de acordo, portanto, com a análise de Gay-Lussac de um volume de gás olefiante : 1 volume de água. A fórmula de constituição do éter também foi representada no sistema de dois volumes, e de acordo com Gay-Lussac de 1 volume de gás olefiante : ½ volume de água.

6 Éter do ácido acético refere-se ao éster etanoato de etila, cuja fórmula atual é C4H8O2. O nome geral éter foi introduzido em 1787, por Guyton de Morveau para compostos resul-tantes da reação de alcoóis com ácidos. O nome éster foi adotado por L. Gmelin (1848) e Schlossberger (1850). (PARTINGTON, 1964, p. 342).

Referências bibliográficas

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Mestre Valentim da Fonseca e Silva: um mestre em ligas

metálicasVagner Pereira de Souza

Bacharel e Licenciado em História pela Universidade do Estado do Rio de JaneiroProf. do Curso de Pós-Graduação em Saúde Pública do Centro Universitário Celso Lisboa.

Prof. de História Militar do curso Adsumus

Teresa Cristina de Carvalho PivaDoutora em História das Ciência. Professora do HCTE- UFRJ.

Introdução

Valentim da Fonseca e Silva, ou melhor, Mestre Valentim (1745-1813), se notabilizou como um dos principais artistas plástico e arquiteto no Brasil na segunda metade do século XVIII. Esta fama foi decorrente de seus trabalhos nas áreas de escultura, torêutica, arquitetura, pai-sagismo, urbanismo, prataria, ourivesaria, bronzagem e desenho. Uma das características do Mestre Valentim foi a utilização do estilo rococó, um movimento artístico originário da França, que se utiliza de tonalidades claras, apresentando alegorias, texturas suaves e decorativas.

O objetivo desta pesquisa foi investigar a vida e a obra de um artista que trabalhou com ligas metálicas na segunda metade do século XVIII.

A obra de Valentim é extensa, composta de igrejas e capelas do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, bem como decorações em praças e espaços públicos. Credita-se a Mestre Valentim a realização das primeiras esculturas em metal do Brasil – as estátuas da Ninfa Eco e do Caça-dor Narciso feitas para o Chafariz “das Marrecas”. (MAGALHAES CORRÊA, 1935)

Fig.1- Chafariz das MarrecasFonte: Chafariz das Marrecas, Magalhães Corrêa, Terra Carioca - Fontes e Chafarizes, 1935.

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A obra de Mestre Valentim acumula diversas representações. Presa ao exclusivo colo-nial brasileiro, a produção de obras artísticas no Brasil colonial sofreu pela falta de artistas que se propusessem a transmitir seus conhecimentos além da dificuldade em se obter ma-teriais para confecção. (ESTRADA, 1913)

Valentim teve uma influência da expressão artística utilizada em Portugal, e das novi-dades européias influenciadas pelo Iluminismo do Século XVIII. Mestre Valentim mudou--se para o Rio de Janeiro e, em 1778. Quando D. Luís de Vasconcelos e Sousa (1792-1809) assumiu como Vice-Rei do Brasil, Valentim passou a ser o principal responsável pelas obras de urbanização da capital colonial brasileira. É inegável a participação de Mestre Valentim no início das transformações arquitetônicas do Brasil Colonial e no desenvolvimento da produção artística brasileira, um período tão importante que até influenciou os hábitos e costumes do Rio de Janeiro.

As Origens de Mestre Valentim

Nascido provavelmente em Cerro, Minas Gerais, em 1745, Valentim da Fonseca e Silva era filho de uma negra escrava e de um contratador de diamantes português. Mestiço, Va-lentim teria poucas oportunidades no Brasil colonial e escravista do século XVIII, por tal motivo, foi levado para Portugal quando seu pai retornou àquele país em 1748. (PORTO ALEGRE, 1856)

São parcas as informações sobre a vida de Valentim em Portugal. Um artigo escrito em 1856, por Manuel de Araujo Porto Alegre, o Barão de Santo Ângelo, para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, constitui uma das fontes de informação sobre a vida e a obra de Mestre Valentim. Neste artigo, Araújo Porto Alegre reconhece que muitas de suas informações foram coletadas com Simeão José de Nazareth, um dos discípulos de Mestre Valentim, não tendo sido possível se conhecerem dados sobre o período em que Valentim esteve em Portugal. Sabe-se, porém, que a maior parte de sua instrução na arte da torêutica ele aprendeu quando retornou ao Brasil em 1770. (PORTO ALEGRE, 1856)

Ao chegar ao Brasil, Mestre Valentim entrou para a Irmandade dos Pardos de Nossa Se-nhora do Rosário e de São Benedito, e passou a trabalhar em 1772 com o entalhador Luiz da Fonseca Rosa nas obras do interior da igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo, na antiga Rua Direita, atualmente Rua Primeiro de Março, no centro do Rio de Janeiro.

Seu trabalho logo foi reconhecido por todos e em especial por D. Luis de Vasconcelos e Sousa, Vice-Rei do Brasil de 1778 a 1790. A mando do Vice-Rei, mestre Valentim executou algumas das mais expressivas obras públicas da cidade do Rio de Janeiro, resolvendo pro-blemas de saneamento, distribuição de água, embelezamento e urbanização. (PALMEIRA, 1969)

As Obras de Mestre Valentim

Entre 1773 e 1800, o nome de Mestre Valentim apareceu nos livros de receita e despesas da Ordem do Carmo, deixando diversos registros de trabalhos para a edificação do inte-rior daquela igreja. Ao longo deste período, por várias vezes Mestre Valentim foi chamado para a realização de outras obras, sendo algumas públicas, como o Passeio Público do Rio

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de Janeiro, e outras solicitações particulares, como a Fonte das Saracuras, para o Convento da Ajuda.

No período de 1781 a 1783 ele realizou obras de entalhe para o Mosteiro de São Bento e a Irmandade de Santa Rita, sendo o responsável pelos moldes dos lampadários daquelas igrejas. (CARVALHO, 1999)

Em 1783 edificou o Passeio Público do Rio de Janeiro, talvez sua obra mais emblemática. O Passeio Público representou para a cidade um avanço significativo em prol da modernidade, tendo em vista ter sido o primeiro espaço público do Brasil, e talvez das Américas, destinado ao lazer, criando com isso a primeira área de segregação urbana da cidade, mesmo que ape-nas para uma diminuta parcela dos cariocas. Com a construção daquele parque foi resolvido também o problema da Lagoa do Boqueirão da Ajuda, uma área alagadiça que servia apenas para estagnação de sujeira e dejetos dos moradores. A planificação do Morro das Mangueiras, de onde se tirou o aterro para cobrir a lagoa, ampliou a área urbana central da cidade. E final-mente, a utilização de presos e desocupados como trabalhadores para as obras de edificação do parque deu ocupação a esse grupo de pessoas que, por suas próprias condições de desem-pregados e presidiários, eram desclassificados socialmente. (CARVALHO, 1999)

Fig.2- Lagoa do Boqueirão com o Aqueduto da Carioca ao fundo, 1780. Óleo sobre tela, de Leandro Joaquim (c. 1738-1798), final do século XVIII. Museu Histórico Nacio-nal,  Rio de Janeiro.

A Fonte ou Chafariz das Marrecas, construído em 1785, trouxe a oportunidade de abastecimento de águas aos moradores do centro da cidade. Esta obra em particular foi agraciada por duas estátuas de bronze já mencionadas, provavelmente as primeiras obras de fundição realizadas no Brasil. Estas obras hoje estão depositadas no Jardim Botânico.

Além dessas estátuas existiam cinco marrequinhas também esculpidas em bronze, e dos bicos dos pássaros vertia a água para dentro dos tanques de abastecimento das pessoas e dos animais. Infelizmente três destas peças foram perdidas após a demolição do chafariz, estando duas hoje aos cuidados do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. A rua que liga atualmente o Passeio Público à Rua Evaristo da Veiga é denominada de Rua das Marrecas em virtude da fonte construída por Mestre Valentim, apesar de ela ter tido outros nomes oficiais – quando a rua ficou pronta o próprio Mestre Valentim a batizou de Rua das Be-las Noites, porém a população nunca a chamou por outro nome. As estátuas de Mestre Valentim figuram seres vivos na natureza nativa e pagã, plantas e animais tropicais entre divindades mitológicas harmonizadas por formas geométricas e abstratas com riqueza de detalhes feitas apenas por grandes mestres.

No ano de 1789 Mestre Valentim deu início a duas grandes obras. A reconstrução da Igreja do Recolhimento do Parto, que havia sido destruída por um incêndio, e a edificação

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do Chafariz da Pirâmide, na atual praça XV de Novembro. Este chafariz além de abastecer na época as pessoas que moravam na região dava aguada aos navios que estavam no porto do Rio de Janeiro, auxiliando o desenvolvimento do comércio, pois facilitava a operação das embarcações junto ao porto.

Não menor em importância artística, mas muito importante do ponto de vista social, Valentim executou a obra da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte no ano de 1790. O trabalho representou a união da Irmandade de Nossa Senho-ra da Conceição dos Homens Pardos com a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, trazendo paz a essas duas ordens religiosas que por anos estavam em litígio. Mestre Valen-tim foi o responsável pela recuperação no interior da igreja, criando argumentos artísticos que fossem comuns às Ordens e representassem um elo de fraternidade entre as mesmas. (CARVALHO, 1999)

Em 1795, no Convento de N. Sra da Conceição, conhecido pelo nome de Convento da Ajuda, uma obra cujo risco e edificação ficaram a cargo do Brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim (1700 - 1765), construída em 1750. Esta edificação era localizada na área do centro do Rio de Janeiro, conhecida atualmente como Cinelândia, Mestre Valentim erigiu a pedido das irmãs do convento o Chafariz das Saracuras, feito em peças de ferro fundido. Após a demolição do prédio, ocorrida em 1911, para permitir o “progresso” da região, a fonte foi desmontada e recolocada na Praça Serzedelo Correia em Copacabana. Atual-mente esta obra se encontra na Praça General Ozório, em Ipanema. (PIVA, 2007)

Entre 1801 e 1802 Mestre Valentim esteve à frente da obra da Venerável Irmandade Prín-cipe dos Apóstolos São Pedro, igreja demolida em 1944 por ordem do Governador Henrique de Toledo Dodsworth, para o alargamento das vias entre a área ferroviária, a estação central D. Pedro II, e a confluência da Rua Rio Branco. Esta via foi denominada de Avenida Presidente Vargas, em homenagem ao presidente da República da época, Getúlio Vargas. (BRASIL, 2000)

O nome de Mestre Valentim ainda aparece nos registros dos livros de receita e despesas das irmandades da Santa Cruz dos Militares e da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula. Nestas igrejas ele foi responsável por obras interiores e de fa-chada das edificações.

Mestre Valentim faleceu em 1813, aos 68 anos de idade, tendo sido enterrado na Igre-ja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, localizada na atual Rua Uruguaiana, no centro do Rio de Janeiro. No interior da igreja existe uma placa de bronze confeccionada pelo artista Adalberto de Barros em homenagem ao grande mestre e colocada em 1913, em alusão ao centenário de sua morte.

O Reconhecimento de Mestre Valentim

É do escritor Manuel de Araujo Porto Alegre (1806-1879) o registro mais antigo que se encontrou sobre as obras de Mestre Valentim. Em meados do século XIX, a socieda-de brasileira ainda clamava pelos feitos de brasileiros a fim de se afirmar a identidade nacional. O Instituto Histórico e Geográfico do Brasil incentivava que fossem escritos artigos, textos e livros sobre a história do Brasil e de seus personagens e, em 1856, foi editado um artigo na revista daquele instituto que visava, principalmente, tecer conside-rações sobre a necessidade de manutenção da memória pública e sobre os valores sociais da cidadania.

Porto Alegre narrou a trajetória de Mestre Valentim e registrou a seguinte observação, seguindo a grafia da época:

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“O Barroquismo condemnado há 15 annos como um delirio do espirito humano, está ou-tra vez em voga.” (...) “Os nossos melhores templos foram começados quando a arte barromi-mica triunphava na metrolpole da America portugueza...” (...) “Os produtos da arte toreutica na actualidade são inferiores aos d’aqueles tempos..”. (PORTO ALEGRE, 1856)

Porto Alegre acrescenta ainda que Mestre Valentim aprendeu a arte do entalhamento com o Mestre Luiz da Fonseca Rosa, no período em que trabalharam juntos nas obras da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, entre 1772 e 1880, no Rio de Janeiro. As influências européias estão muito marcadas nas obras de Mestre Valentim, talvez aprendidas durante sua passagem por Portugal, e, mesmo que apenas tenha aprendido o entalhe no Brasil, muitos artistas buscaram Mestre Valentim para obterem informações, moldes, tudo que demandava “luxo e gosto”. (PORTO ALEGRE, 1856)

Na biografia de Mestre Valentim escrita por Porto Alegre aparecem comparações com obras de outros artistas contemporâneos ao escritor. Ele afirmou serem as obras erigidas na segunda metade do século XIX inferiores em todos os aspectos às do século XVIII, que os “atuais artistas” apesar de terem “belleza e asseio” não resistiriam ao espírito mercantil do século XIX.

Um grande reconhecimento da obra de Mestre Valentim se encontra também no rela-tório de D. Luiz de Vasconcelos e Sousa quando passou o Vice-Reino do Brasil ao Conde de Resende, D. José Luis de Castro, em 1790. D. Luis de Vasconcelos relatou todas as me-lhorias criadas no Rio de Janeiro, benfeitorias essas que além de embelezar e urbanizar a cidade do Rio de Janeiro contemplou em outros progressos como o de planificar terrenos, drenar pântanos, sanear áreas, transformando a cidade e tornando-a mais civilizada. Foi um legado de Mestre Valentim a introdução de técnicas e materiais, como o bronze, que favoreceram aquelas melhorias.

Conclusões

“Sou útil ainda brincando”. A frase escrita na placa do Chafariz dos Jacarés, conhecido popularmente como Fonte dos Amores, localizada no Passeio Público do Rio de Janeiro, explica a marca mais importante das obras de Mestre Valentim: ser uma obra de arte com utilidade e emprego para as pessoas. Para uma cidade colonial presa ao rígido Pacto Co-lonial Português, a vinda de Valentim da Fonseca e Silva ao Rio de Janeiro trouxe as novi-dades européias no emprego de materiais e na execução de obras de arte e de fundição. As fundições que Mestre Valentim fez foram realizadas na Casa do Trem, construção erguida no ano de 1762, por ordem do Governador Gomes Freire de Andrade (1685- 1763), 1º Conde de Bobadela, localizada ao lado do Forte de Santiago, destinada à guarda dos ar-mamentos, o chamado trem de artilharia. A Casa do Trem era o único local na época que permitia com eficiência trabalhar com metais, com equipamentos e materiais necessários para essa atividade. Mestre Valentim introduziu novas técnicas na fundição e novas ligas metálicas, muitas de suas obras resistem até hoje, e se encontram ao tempo mantendo imponência e vivacidade. Com uma visão futurista, Mestre Valentim utilizou o estilo “Ro-cocó”, face mais liberal do Iluminismo, e o ao mesmo tempo se valeu do passado, marcado pelas características do estilo clássico, considerado por muitos autores os mais perfeitos e equilibrados da cultura Greco-Romana. A importância de Mestre Valentim está figurada historicamente nos livros e textos que descrevem sua trajetória e se encontra viva no coti-diano da cidade do Rio de Janeiro.

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PALMEIRA, L. C. Mestre Valentim e Mestre Luiz da Fonseca Rosa. Boletim do Serviço dos Museus do Estado da Guanabara, ano II, n.3, 1969.

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PORTO ALEGRE, M. A. Iconografia Brasileira. Revista do IHGB, Tomo XIX, 1856.

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SOUZA, D. L. de V. e. Relatório do Vice-Rei do Estado do Brasil Luis de Vasconcellos ao Entregar o Governo ao seu Sucessor o Conde de Resende. Revista do IHGB, Tomo XXIII, 1860.

WINZ, Antonio Pimentel. A Casa do Trem e os Serviços Públicos. Cap. VII, in: A Histó-ria da Casa do Trem. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1962.

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Perspectivas no estudo da consciência humana

Valeria PortugalMestre pelo HCTE/UFRJ, candidata ao programa de doutorado

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Introdução

Dadas as dificuldades encontradas nas investigações da consciência humana, busca-se entendê-la sob diversos aspectos. Cada perspectiva de pesquisa utiliza seu próprio viés de definição e mensuração. O objetivo deste trabalho consiste em apontar que, dependendo do entendimento conferido ao termo, se utiliza uma metodologia específica de investi-gação, e ponderar as dificuldades de mensuração de aspectos abstratos, como é o caso dos estados subjetivos associados à consciência e, portanto, de validação das metodologias utilizadas. Uma das abordagens examina os processos mentais como sendo constituídos por uma substância ontologicamente distinta, com existência própria, que pode ou não ser medida. Outro grupo considera que a consciência pode ser explicada por determinados fenômenos físicos que acontecem no cérebro e sua mensuração estaria diretamente rela-cionada a eles. Outro viés considera a relação da consciência com fenômenos físicos, mas sem a possibilidade de sua redução a eles. Na abordagem fisicalista os métodos de terceira pessoa são privilegiado para seu estudo. Estes métodos operam com um observador exter-no ao experimento e utilizam aparelhos específicos para medir os fenômenos naturais. Ao se ponderar que a consciência não seja redutível aos fenômenos físicos e inserindo-se os aspectos subjetivos da experiência humana como fator relevante para seu entendimento, o uso de métodos de primeira pessoa pode agregar valor ao uso dos métodos convencio-nais de terceira pessoa. No entanto permanece o desafio de validar os dados subjetivos oriundos da perspectiva de primeira pessoa e confrontá-los com as informações objetivas decorrentes da mensuração dos processos físicos. Este trabalho busca correlacionar essas diferentes perspectivas através da análise do posicionamento de autores frente ao assunto.

Discussão

Lidar com a consciência como objeto de estudo supõe uma determinada conceituação do termo e uma metodologia de investigação conforme o viés da pesquisa, sendo que este assunto comporta abordagens paralelas. Uma delas visa a compreensão da mente, da cons-ciência e da inteligência humana amparando-se em investigações nas áreas da biologia, da psicologia, da neurologia e da filosofia da mente. Outra abordagem se refere ao desenvolvi-

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mento dos computadores e às perspectivas da inteligência artificial, especialmente quanto à possibilidade de robôs adquirirem consciência. Considerando os diferentes contextos, pode-se conceituar o termo como sendo uma faculdade que permite ao ser humano re-conhecer a sua existência e a sua relação com o ambiente e que abrange qualidades como memória, cognição, percepção dos estímulos sensoriais, entre outras.

Quanto às abordagens que buscam a compreensão da mente, existe tanto a possibili-dade de definir consciência como uma propriedade da natureza, ou seja, um atributo com existência própria, independente de qualquer conexão física, quanto a proposta de explicá--la em termos puramente físicos, até mesmo tentando reduzi-la ao funcionamento bioló-gico. A primeira perspectiva encontra a dificuldade de prover meios testáveis que possam avalizar a definição proposta, pois, por se tratar de um conceito abstrato, não existe a possi-bilidade de medir os aspectos mentais diretamente com a tecnologia disponível. Os méto-dos utilizados para explicar a mente, nesse nível, se baseiam em argumentações filosóficas ou averiguação do comportamento sem relacioná-lo à atividade cerebral. A segunda, no outro extremo, não comprova o nível funcional de diversos aspectos mentais, dentre eles a consciência. Por esse viés reducionista considera-se que o estado mental esteja identifica-do com o biológico, sendo indiferenciado um do outro. Os métodos privilegiados para a investigação dessa abordagem são de terceira pessoa e desconsideram ou consideram em escala de pouca importância os aspectos subjetivos do comportamento humano.

As teorias físicas da consciência propõem explicá-la em termos de eventos neurais que ocorrem no cérebro, seja a nível biológico, seja pelo estudo dos circuitos neurais, ou até mesmo a nível quântico. Como exemplo de teoria física para explicar os aspectos mentais, o físico Roger Penrose trabalha com pesquisas no nível quântico para explicar a dinâmica dos processos cerebrais responsáveis pela produção da consciência. Para ele, no entanto, falta um ingrediente na descrição do mundo pela ciência atual, pois não há teoria física nem biológica que explique a consciência ou a inteligência humana. Apesar de utilizar a mecânica quântica para propor a não computabilidade da mente humana, ele argumenta que a teoria ainda é incompleta, por isso propõe sua junção com a teoria geral da gravita-ção para uma possível explicação para o aparecimento da consciência a partir de intera-ções quânticas nos microtúbulos neuronais (HAMEROFF e PENROSE, 1996).

Na área da computação a questão se um computador poderia ter uma mente como a humana encontra respostas divergentes. A Inteligência Artificial Forte, que prega que o pensamento pode ser reduzido à computação e a consciência pode ser produzida através da computação apropriada, encontra partidários como o filósofo Daniel Dennett. Penrose descarta essa possibilidade e considera que as atividades físicas do cérebro que produ-zem a consciência não podem ser simuladas, pois não são algorítmicas. O filósofo John Searle (1997), com sua filosofia do naturalismo biológico, afirma que a mente não pode ser reduzida às atividades de um computador (Inteligência Artificial Fraca). Ele define consciência como uma característica biológica de cérebros de seres humanos causada por processos neurobiológicos, sendo parte da ordem biológica natural tanto quanto a diges-tão, mas não sabe como os cérebros causam consciência e admite que ainda não existe uma teoria adequada da neurofisiologia da consciência. Ao se considerar a consciência causada por fenômenos biológicos, seria possível produzi-la através da reprodução das capacidades causais do cérebro. De acordo com essa visão, o cérebro causa e sustenta a consciência e é suficiente, mas também necessário, para produzi-la. Para haver a emergência da consciên-cia humana, todas as particularidades das relações e interações biofísicas do cérebro são fundamentais, não bastando uma simulação incompleta dessas relações artificialmente, não sendo possível um computador criar consciência ao simular o cérebro, pois não possui

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a mesma estrutura biológica e física dele. Sua conclusão também se baseia no fato de pro-gramas de computador serem apenas sintáticos (lidam com símbolos e regras) enquanto a mente tem uma capacidade semântica (atribui valores e significado aos símbolos). Ou seja, cada sujeito atribui seu próprio significado e valor à experiência de perceber uma sensação. Ao se focar a atenção nesses aspectos que diferenciam uma experiência da ou-tra se percebe os aspectos qualitativos de acesso subjetivo das experiências. Este aspecto qualitativo das experiências humanas é conhecido nos estudos da filosofia da mente sob o conceito de qualia.

O termo “hard problem” da consciência, formulado por David Chalmers, se refere ao difícil problema de explicar por que as pessoas têm experiências fenomenológicas qualita-tivas, ou qualia, como as sensações corporais, como a dor, ou os sentimentos, como alegria e tristeza, ou ainda os humores, estar deprimido ou de mau-humor. Por outro lado, a ex-plicação da habilidade de discriminação, de integração de informações, relato de estados mentais, foco de atenção e outros são considerados como “easy problems”, ou problemas fáceis, cuja solução consiste em especificar um mecanismo que possa realizar a função. Ou seja, as soluções propostas, independentes de sua complexidade, são consistentes com a concepção materialista de fenômenos mentais, e podem ser relacionadas diretamente com funções neurofisiológicas. Já o problema difícil não se trata de um problema relacionado com a realização de uma função. Os problemas difíceis são distintos porque eles “persistem mesmo quando o funcionamento de todas as funções relevantes foi explicado” (CHAL-MERS, 1995). Para Chalmers existe uma lacuna explicativa entre função e experiência, pois permanece a questão do porquê a realização de funções cognitivas é acompanhada pela experiência, isto é, mesmo que se entenda neurofisiologicamente como um estímulo doloroso é processado, permanece a questão de se entender porque existe o sentimento de dor, o que corresponde à consciência central definida por Damásio (DAMASIO, 200).

Divergindo da posição de Searle, do reducionismo biológico e do viés dualista de se con-siderar a consciência como propriedade da natureza, pesquisadores na área de neurofenome-nologia consideram que a consciência seja uma propriedade emergente da fisiologia cerebral, mas que não existe um substrato neural mínimo que possa explicá-la (VARELA e SHEAR, 2002). Uma explanação não reducionista traz o novo desafio de estabelecer previsões testá-veis entre a experiência no nível da consciência e os processos físicos no sistema biológico cerebral. Nesse contexto torna-se necessário um método que considere o acesso aos aspectos subjetivos da vida mental pela perspectiva de primeira pessoa, já que um observador externo não pode ter acesso aos estados mentais de outro sujeito, e correlacione os dados subjetivos com aqueles obtidos pelos métodos de terceira pessoa que investigam os aspectos neurais. Para que esses dados subjetivos possam ser validados é importante sua verificação intersub-jetiva e, a exemplo do viés fenomenológico, também atribuir a emergência da consciência às inter-relações dinâmicas entre um sujeito e outro, não a confinando aos circuitos cerebrais. Neste aspecto as experiências do indivíduo ganham destaque para operar as transformações sobre si mesmo e sobre o ambiente, e elas trazem como atributos indissociáveis as qualidades subjetivas que as acompanham. O uso de um método de primeira pessoa, por essa perspec-tiva, parece ser interessante para valorizar os relatos subjetivos provenientes da experiência humana, complementando os métodos de terceira pessoa que utilizam aparelhos de medida para verificar os aspectos neurais. Assim busca-se estabelecer as relações entre aspectos sub-jetivos e neurais, sem entender a consciência como uma propriedade independente e nem considerá-la passível de ser reduzida aos substratos físicos.

O entendimento de mente como uma substância natural independente de fatores físi-cos, como considera o dualismo ortodoxo, apresenta dificuldades de comprovação e vali-

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dação frente a dados objetivos, fazendo com que a discussão permaneça no terreno refle-xivo e filosófico. O reducionismo biológico, que considera que os estados mentais sejam indiferenciados dos fenômenos físicos que os causam, acredita que os avanços dos estudos neurocientíficos possam trazer o entendimento de consciência. Os métodos de primeira pessoa podem complementar os métodos de terceira pessoa no estudo científico da cons-ciência humana considerando-se que os estados mentais sejam uma emergência dos fenô-menos físicos, mas que estes não são suficientes para gerá-los nem para explicá-los. Falta, portanto, o acesso ao ingrediente que se refere aos aspectos subjetivos qualitativos destes estados mentais, que surgem como decorrência da experiência do indivíduo. O acesso aos estados subjetivos ocorre por uma perspectiva de primeira pessoa e, para torná-lo válido num estudo científico, torna-se preciso fazer sua verificação intersubjetiva, ou seja, mos-trar sua correspondência perante outros sujeitos, e compará-lo aos dados objetivos.

Conclusão

Assim como o conhecimento é uma interseção entre verdades e crenças que sejam jus-tificadas, o entendimento de consciência deve passar tanto pela sua conceituação quanto por um meio de verificação. A definição do termo e a forma escolhida para investigá--lo originam grupos que pesquisam a consciência através de procedimentos próprios que apresentam semelhanças e controvérsias entre si. Um grupo entende a consciência como uma propriedade da natureza, sem o interesse pela sua medição direta. Outro grupo supõe que os aspectos mentais possam ser explicados pelos fenômenos físicos que acontecem no cérebro e que a mensuração destes processos seria suficiente para defini-los. Ainda uma outra abordagem considera a emergência dos aspectos mentais a partir de processos físicos, ampliando, no entanto, o entendimento de consciência para o de uma qualidade decorrente do processo evolutivo dos seres vivos. Assim existiria sua correlação direta com a experiência, ou seja, com a interação do indivíduo com o ambiente e com o modo como ela influi sobre o sujeito constituindo-o e construindo o mundo à sua volta. Por essa abor-dagem, torna-se essencial considerar os aspectos subjetivos da experiência e utilizar um método de primeira pessoa para complementar a investigação científica da consciência.

Referências bibliográficas

CHALMERS, David. Facing Up to the Problem of Consciousness. Journal of Conscious-ness Studies. Vol. 2, n. 3, pp. 200-19, 1995.

damasio, antónio. o mistério da consciência. Rio de Janeiro: Companhia das Le-tras, 2000.

HameRoff, stuart, PenRose Roger. Orchestrated reduction of quantum coherence in brain microtubules: A model for consciousness. mathematics and Computers in simulation. Vol. 40, No. 3-4, pp. 453-480, 1996.

SEARLE, John. A Redescoberta da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

VARELA, F., SHEAR, J. The view from within. Thorverton: Imprint Academic, 2002.

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Criatividade, aleatoriedade e complexidade:

a matemática na vidaVirginia M F G Chatin - doutora pelo HCTE

Ricardo S Kubrusly - professor do HCTE

O que se pode entender quando Chaitin afirma que “a metabiologia é uma área paralela à biologia e que lida com a evolução aleatória de software artificial - algoritmos ou progra-mas de computador - ao invés de software natural (ADN).” ? (CHAITIN, G. J., 2009)

Explicitamente transdisciplinar, a metabiologia assim proposta desdobra a já ampla-mente divulgada analogia entre o ADN e uma linguagem de software, recontextualizando e articulando uma rede de conceitos oriundos da biologia e da teoria algorítmica da infor-mação (TAI) na metabiologia para falar de criatividade e vida.

Sobre a migração de redes conceituais da biologia e da TAI para a metabiologia, empre-garemos o olhar da migração mimética de conceitos (CHAITIN, V.M.F.G., 2009) porque este olhar tem sua atenção especialmente voltada para o processo de resignificação envolvido numa migração conceitual. Este processo não se resume a uma simples transposição de um dado conceito de uma para outra área, ou seja, o conceito migrado não é isomorfo ao conceito original e tampouco está isento de interações com as vizinhanças conceituais nas duas pon-tas da migração. Assim sendo, o acompanhamento de uma migração conceitual enquanto uma migração mimética parte das analogias iniciais, que geralmente envolvem uma pequena quantidade de conceitos (neste caso ADN e software), e continua acompanhando o processo de migração que se estende às vizinhanças dos conceitos envolvidos nas analogias iniciais.

Neste enfoque à migração de conceitos, dizemos que há fertilidade numa dada migração mimética quando os conceitos vizinhos aos envolvidos nas analogias iniciais em cada área de origem também fazem sentido na nova rede mimetizada. Ainda outro nível de fertilida-de da migração se manifesta quando a aplicação de métodos ou técnicas de uma das áreas envolvidas na migração gera resultados que também fazem sentido numa das outras áreas envolvidas na migração, ou ainda, numa outra área relacionada. É por este motivo que a migração mimética diz bastante respeito à pesquisa transdisciplinar, ajudando a explicitar a fertilização cruzada de idéias, conceitos, métodos e técnicas entre diferentes disciplinas.

E no caso especifico da metabiologia? Por ser uma área de estudo recentemente ima-ginada e em movimento no presente, a metabiologia se apresenta muito interessante para o acompanhamento das analogias tanto dos processos de migrações miméticas que propõe explicitamente quanto dos que suscita indiretamente quando mescla um vocabulário da teoria da informação e da biologia, gerando um novo vocabulário metabiológico.

Explorando a fertilidade da analogia ADN-software, abre-se o caminho para pensar-

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mos em outros desdobramentos, como, por exemplo: Em que a metabiologia pode fertili-zar a matemática, a teoria da computação, a epistemologia e especialmente a própria bio-logia? Especialmente, caberá o questionamento sobre a maneira em que os novos conceitos metabiológicos poderão trazer novas interpretações para o entendimento do que sejam a evolução, mutações aleatórias, seleção natural por competição e adaptação, e do que seja a vida concebida como resultado de mutações aleatórias sujeitas à seleção natural? Qual seria o papel da aleatoriedade e da criatividade nessa evolução? Haveria algum impacto na caracterização do homo sapiens no contexto conceitual metabiológico se o compararmos com o contexto conceitual biológico darwinista? Vejamos, então, o que diz a metabiologia.

A motivação da metabiologia tem sabor pitagórico, uma vez que resulta da convicção de que a matemática é a linguagem do universo e, portanto, de que a linguagem matemáti-ca também pode dizer a vida. Seguindo este raciocínio, se a teoria da evolução de Darwin for mesmo a teoria da vida, deve haver uma prova matemática que a confirme, pelo menos em seus princípios mais gerais. O objetivo da metabiologia, portanto, não é de modelar ou simular sistemas vivos e sim de expressar e provar matematicamente os princípios de sua evolução. E qual seria a formulação dos princípios teóricos mais gerais da biologia que a metabiologia retrata matematicamente? A evolução da vida – a criatividade biológica – ocorre por mutações aleatórias frente a um desafio.

Partindo dessa formulação simplificada mas que contém as mesmas bases da teoria da evolução biológica, a matemática a ser empregada nesse esforço precisa ser capaz de falar com total desembaraço da aleatoriedade, da criatividade e da complexidade que se expres-sa na imensa diversidade da biosfera, ou seja, uma linguagem matemática capaz de falar de um processo não teleológico e aberto. Em que sentido usamos a expressão “processo aberto”? Consideramos aberto um processo que não esteja submetido a um método geral pré-estabelecido, que não ocorra de forma mecânica sendo, portanto, não-computável. Por este motivo, a matemática da metabiologia terá que ser uma matemática que conviva bem com a ausência de um método geral e com a não-computabilidade.

A inexistência de um método geral para a condução de determinados processos ou para a obtenção de soluções para certos problemas já faz parte de pelo menos três áreas do conhe-cimento científico. Nas ciências empíricas, filósofos “contra o método” e a favor da “oportu-nista criatividade” como Paul Feyerabend (FEYERABEND, 1975 e 1993), chamaram a aten-ção para a inexistência de um método cientifico único, de um conjunto de regras fechado e pré-determinado para se fazer ciências e para distinguir as ciências de outras atividades humanas. Este resultado da filosofia da ciência tem sua expressão tanto na matemática, na forma do Teorema de Gödel quanto na teoria da computação, na forma do Problema da Parada de Turing (CHAITIN, G. J., 2009b). Do primeiro caso, a inexistência de método para gerar as verdades científicas se mimetiza na impossibilidade de gerar todas as verdades de um sistema axiomático formal empregando somente os seus axiomas e regras de inferência, ou seja, na sua incompletude. Do segundo caso, a incompletude se traduz na inexistência de um algoritmo que verifique se um dado programa vai ou não terminar a sua execução em tempo finito. Para resumir, não há uma forma mecânica para se obter os seguintes tipos de resultados: conhecimento científico, todas as verdades de um sistema axiomático formal e a resposta para a pergunta se um dado programa vai gerar uma saída em tempo finito ou não.

Nesses três casos, é necessário acrescentar algo externo, criar para além dos princípios, regras ou procedimentos que aparentemente definem cada um dos três contextos. E isto se repete também na metabiologia, que caracteriza a sua não-computbilidade pelo uso de um oráculo para o Problema da Parada no caminho da prova matemática que a evolução por mutações aleatórias sujeitas a um desafio efetivamente ocorre no contexto metabiológico.

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Falemos agora um pouco mais desse contexto.Como já dissemos, a vida metabiológica não é a mesma vida biológica; um conceito

migrado mimeticamente não é isomorfo ao conceito inicial e se transforma, se mimetiza quando da sua resignificação no novo contexto. Entre outras inúmeras diferenças entre biologia e metabiologia, destacamos que a ênfase na teoria de Darwin tornou-se a compe-tição entre os organismos, o desafio à sobrevivência que privilegia a mutação mais forte, mais capaz, levando a uma reificação da idéia da “sobrevivência por competição e adap-tação” que, por sua vez, se desdobra no conceito de “gene egoísta” (DAWKINS, 1976) e na empobrecida auto-imagem do ser humano como vencedor ou perdedor nessa competi-ção (MIDGELEY, 2001). Na metabiologia, a ênfase está no desafio da criatividade exigida para a solução do problema não-computável de nomear números cada vez maiores. Sem direcionamento prévio, os métodos da TAI acabaram por gerar seres metabiológicos que possuem um traço inesperadamente humano: a contínua busca de superação dos limites de seus conhecimentos.

Como mencionamos acima, aqui vemos uma possibilidade de fertilização de outras áreas pela metabiologia. Imaginaemos uma alternativa ao darwinismo social, a “metabio-logia social”, onde a pulsão principal do ser metabiológico não é de uma sobrevivência do mais apto para transmissão de seus genes à próxima geração mas de uma sobrevivência do mais criativo, uma sobrevivência em busca de transcendência pela superação do conheci-mento matemático alcançado pela geração anterior.

Para chegar a essa caracterização do ser metabiológico, partiremos de um raio conciso das mímeses que tecem a metabiologia nas vizinhanças conceituais em torno da analogia ADN-software, apresentados na seguinte tabela:

Tabela 1 – Vizinhanças conceituais da analogia ADN-softwareBiologia Teoria Algorítmica

da InformaçãoMetabiologia

bases AGTCDNA-RNA: software naturalorganismo vivo é o que resulta dos processos biológicos a partir do DNA-RNApopulação: diversos organismos por geração medidas de aptidão: dadas pela competição e adaptação dos organismos desafio: sobreviver por competição e adaptação ao meio ambiente variável e passar seus genes à próxima geração sobrevivência que gera organismos mais capazes que seus competidores e melhor adaptados ao meio ambiente criatividade biológica: processo que gera novos genes e novos tipos de organismos mais complexos, aptos e adaptadosteoria empírica

alfabetos das língua-gens de programação software artificialsaída do algoritmo é o que resulta da sua execução

alfabeto de 2 caracteres: 0’s e 1’s

software metabiológicoorganismo metabiológico é o próprio algoritmo

população: 1 organismo-algoritmo por geração medida de aptidão: dada pelo tamanho do número inteiro calculado pelo organismo-algoritmo

desafio: sobreviver por nomear um numero maior que o nomeado pela mutação (geração) anteriorsobrevivência que gera organismos com um conhecimento matemático novo, cuja obtenção não pode ser realizada por um método geralcriatividade metabiológica: processo que gera organismos-algoritmos com aptidão crescente de modo mais rápido que qualquer função computávelteoremas demonstrados

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Como se pode ver, o organismo-algoritmo metabiológico é solitário; existe apenas um por cada geração. Este organismo é gerado aleatoriamente e sua medida de aptidão é um número que corresponde à sua saída, enquanto programa que é. A próxima geração surge por uma mutação aleatória e a saída deste novo organismo-algoritmo mutante será com-parada com a saída do anterior. Se for maior, o organismo-algoritmo mutante é um orga-nismo válido e seu programa será submetido a uma nova mutação para gerar a próxima geração. Caso contrario, o organismo-algoritmo mutante será descartado e vai ser gerada uma nova mutação até que esta calcule um numero maior que o organismo-algoritmo da geração anterior. Desta forma, a seqüência de mutações resulta numa evolução cumulati-va, tal como na biologia, porém não há estagnação do processo evolutivo por adaptação ao meio-ambiente, pois os organismos metabiológicos não almejam adaptação e o meio--ambiente matemático contém o desafio constante de nomear concisamente números in-teiros cada vez maiores.

Este desafio pode parecer simples e totalmente desvinculado da vida biológica. Contu-do, trata-se de um problema cujas soluções não são deriváveis mecanicamente, tal como parece ser o desafio de sobreviver por competição e adaptação ao meio-ambiente e suas variações imprevisíveis ou incontroláveis. Surpreendentemente, a não-computabilidade e a exigência de criatividade ilimitada vinculam a matemática à vida.

Note-se que o foco da metabiologia está menos na compreensão dos detalhes do fun-cionamento biológico e mais na verificação e busca de prova se o processo de geração de mutações aleatórias em seqüências genéticas, ou nos organismos-algoritmos, resulta numa evolução criativa movida pelo incremento de aptidão. Neste contexto, um processo é criativo quando a velocidade com que sua aptidão cresce é mais alta do que a de qualquer função computável que obteria os mesmos resultados.

Embora estejam fora do escopo deste trabalho os detalhes mais técnicos da vida meta-biológica os últimos teoremas demonstrados nesse novo campo de pesquisa permitem a comparação das velocidades de evolução em três configurações metabiológicas distintas:

a. Desenho inteligente: escolha deliberada e otimizada das mutações b. Evolução por busca exaustivac. Evolução por mutações aleatórias cumulativas sujeitas a um desafio

A quantidade de mutações necessárias para se obter um dado nível de criatividade nos três casos cresce: linearmente (a), exponencialmente (b) e quadraticamente (c). Que as mutações aleatórias cumulativas sujeitas a um desafio (c) estejam mais próximas ao desenho inteligente (a) que à busca exaustiva (b) é um resultado matemático surpre-endente e fundamental porque indica que este processo de evolução (c) é efetivamente criativo.

A prova matemática de que mutações aleatórias submetidas a condições específicas de dificuldade crescente comprovadamente evoluem em sua medida de aptidão e com velocidade maior que qualquer função computável, ou seja, exibindo criatividade, sugere que talvez possa realmente haver um fundamento matemático para a teoria da evolução de Darwin. Mais que isso, sugere também que a vida talvez seja mesmo um caminho aberto no sentido de nunca acabado e imprevisível, impregnado de aleatório, complexo e criativo.

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Notas

1 As idéias de “pulsão de sobrevivência” e “pulsão de transcendência” têm como refe-rência a palestra proferida pelo Professor Dr. Ubiratan D’Ambrósio (USP) neste Scientia-rum III, no dia 15/10/2010.

2 Para uma explanação técnica completa da metabiologia, por gentileza referir-se a: www.umcs.maine.edu/~chaitin/darwin.pdf

Referências bibliográficas

CHAITIN, G. J., Evolution of mutating software, Bulletin of the European Association for Theoretical Computer Science, v. 97, feb/2009, pp. 157-164.

________ , MetaMat!: em busca do ômega, São Paulo: Perspectiva, 2009b

________ , www.umcs.maine.edu/~chaitin/lafalda.pdf , postado em 2010

________ , www.umcs.maine.edu/~chaitin/darwin.pdf , postado em 2010

CHAITIN, V. M. F. G., Redes conceituais em mímesis na história das idéias: uma proposta de epistemologia pluralista, Tese, Doutoramento em História das Ciências e das Téc-nicas e Epistemologia, 179p., Rio de Janeiro, UFRJ, 2009

DAWKINS, R., The Selfish Gene, New York City: Oxford University Press, 1976

FEYERABEND, P. K., Against Method, London, UK: New Left Books, 1975

___________, Against Method, 3a. ed., London, UK: Verso, 1993

MIDGELEY, M., Science and Poetry, London and New York: Routledge, 2001

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A cosmologia africana e a etnomatemática num

modelo de saúdeVirginia Maria Almeida de Freitas *; Ricardo Silva Kubrusly **.

*Doutoranda do Programa do HCTE - UFRJ; ** Prof. Dr. do HCTE – UFRJ. Email(s): [email protected]; [email protected].

Descritores: Etnomatemática; Saúde; Afro-brasileira; História da Ciência; Candomblé; Cosmologia.

Introdução

A dignidade do indivíduo é violentada pela exclusão social, (...). Mas também por fazer, dos trajes tradicionais dos povos marginalizados, fantasias, por considerar folclore seus mitos e religiões, por crimina-lizar suas práticas médicas. E por fazer, de suas práticas tradicionais e de sua matemática, mera curiosidade, quando não motivo de chacota (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 9).

Para qualificar uma pesquisa em Ciência é primordial a consciência do formalismo e do rigor da metodologia científica. Adequar tais critérios em alguma área do conhecimen-to humano nem sempre é fácil. Assim, está por ser estudada em profundidade a relação saúde-doença entre os fiéis aos Orixás vindos da África.

É difícil estabelecer com exatidão o ponto do conhecimento grego, a partir do qual a mente de Tales, Anaximandro e Anaxímenes moldaram o estudo da natureza dispen-sando os deuses. Foi num período de tempo. A experiência humana separava a razão das emoções, desejos e ritos. Tornava-se real uma nova análise da origem, substância básica, estrutura e funcionamento de tudo o que existia. Nascia a filosofia grega. Colonizadores portugueses e de outras bandeiras incorporaram a grega-cultura à nativa brasileira, simul-taneamente, a hábitos e costumes euros-cristãos. Outra filosofia, a africana, chegou ao solo brasileiro pelos tumbeiros paralelamente ao conhecimento e à cultura iorubana entre outras etnoculturas da África.

Os milesianos sequer representavam a totalidade do pensamento científico grego primitivo. A tradição médica por métodos experimentais constituiu um conjunto de co-nhecimentos sistemáticos, com base em observações repetidas, hostis às afirmações mais dogmáticas dos filósofos; os milésios não apresentavam qualquer interesse pela estrutura, composição e funcionamento do corpo humano. A arte da Medicina não teria despertado a atenção daqueles primeiros cientistas e ela só entraria em contato com a filosofia natural

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ou física por volta do começo do século V – já aí o modelo da cosmologia estava estabeleci-do e fidelizado, independente das influências, controvérsias e teses médicas (CORNFORD, 1989).

A cultura africana classicamente foi transmitida pela dinâmica de escuta e respeito entre as gerações. Foi produzida por seres humanos frente à necessidade de respostas a problemas e situações subordinados a um distinto e particular contexto de ambiente natu-ral e social. Sua tradição médica, conduzida pelos sacerdotes (Babaláwo) iniciados para tal função, constitui parte do conjunto de conhecimentos adequados à sobrevivência. A Arte da Medicina Africana, o cuidar e o prevenir enfermidades, encontra-se ligada ao cultural, social e religioso – o doente era, e ainda é, visto de forma holística, corpo e alma. No Brasil, seguiram-se à cultura africana as de crioulos e as de afro-descendentes, na manutenção co-letiva do saber e preservação de tradições e religião. Da África, diferentes Nações, que sob o ponto de vista africano tem os limites de especialíssimas afinidades com um determinado grupo e seu sistema de representações coletivas, perpetuaram cada qual seu costume nessa Terra de Exílio, onde um possível resumo para estudo pode ser encontrado no candomblé.

Forma de sobrevivência africana no Brasil, o candomblé até a algumas décadas foi identificado como originado na África. O compõem elementos de muitas Nações com par-ticulares tradições em toques do tambor, músicas, rituais, vestuários, idiomas dos cânticos e nomes das divindades: o Ioruba (ou Nagô), com seus Òrìsà “domina sem contestação” (BASTIDE, 1961). É culto verde-amarelo de origem, existência e assimilação: uma síntese de elementos africanos num Terreiro, espaço autônomo, com uma autoridade máxima, um Pai ou uma Mãe de Santo, que orienta seguidores de todas as cores, atualmente já não mais só negros. O vocábulo é banto - família lingüística dos escravos trazidos, em sua maioria, da atual Angola – e substituiu, ao final do século XVIII, Calundu, que designava os rituais religiosos africanos em geral. Termo onomatopaico candomblé originalmente significava dança e instrumento de música e se estendeu, na Bahia, à designação da cerimônia reli-giosa dos negros (BASTIDE, 1961). O mais antigo documento conhecido com o termo candomblé refere-se ao escravo angola Antônio, sacerdote, adivinho e curandeiro, descrito como “presidente do terreiro dos candombléis” por um capitão de milícias, em 1807; ou-tra novidade, neste documento é a associação dos vocábulos: terreiro e candomblé (REIS, 2005).

O objetivo deste trabalho é apresentar a Etnomatemática como uma dinâmica que possa ligar candomblé Nagô, a presença no cosmo daquele povo do sacerdote Babalawo, cuidador dos diagnósticos em geral. Pesquisou-se na Biblioteca do Museu Imperial – Pe-trópolis, RJ, entre 07/02/2008 e 17/04/2008. Consultaram-se os bancos de dados Scielo, Lilacs e Medline / Pubmed para revisão da literatura. Usaram-se os descritores: “etnoma-temática” e “ethno mathematics“; “afro- brasileira” e “afrobrazilian”; “História da Ciência”; “História da Ciência e saúde e afro-brasileira”; “afro Brazilian and health and history of science”. Localizou-se 119 artigos. No Scielo “afro-brasileira” direcionou a pesquisa para “afro-descendente” e revelou 01 artigo.

Realizou-se leitura dos títulos e resumos dos estudos encontrados. Para discussão fo-ram selecionados aqueles que apresentavam algum tipo de relação entre saúde, religião afro-brasileira, história da ciência, etnomatemática. Tomaram-se como relevantes à pes-quisa informações de livros e revistas que discutiam a afro-cultura e registros que a auto-ra fez com iniciados, seguidores e consulentes de templos religiosos daquela religião. Há poucos estudos nacionais ou internacionais disponíveis sobre o tema de saúde, religião afro-brasileira, candomblé e Etnomatemática.

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Discussão

Pode-se não ter a mesma opinião, pode-se negá-la e provar sua inexa-tidão, mas, é impossível julgar uma doutrina sem haver penetrado no conceito do qual ela deriva (LEON TOLSTOI, O reino de Deus está em vós – 1893).

A sociedade africana, incluindo a sacerdotal, que aqui chegou possuía cosmo de estru-tura quádrupla: natureza, deuses, homens e mortos. Possuíam, por exemplo, uma semana de quatro dias, cada um deles ligado a um ponto cardeal. O africano postula e fundamenta, de forma rica e complexa, uma filosofia do universo e uma concepção de homem, úteis para a saúde mental e a adaptação do ser humano na sociedade a que pertence. Bastide su-gere iniciar o estudo das tradições africanas pelo do sacerdócio que o africanólogo classifi-ca por função e, a cada uma delas, associa uma estrutura do cosmo quádruplo afro-baiano:

Babalóòrìsà (ou a Ìyálóòrìsà) preside ao culto aos Òrìsà - deuses;Babaláwo ou Olúwo preside ao culto de Ifá - homens;Olóòsonyìn preside ao culto de Òsányìn - deusa das folhas;Babaòjè preside ao culto dos Egúngún - mortos (BASTIDE, 1961).

Dentro destes quatro compartimentos do cosmo – obra e zelo do único Deus Supremo, Olórun ou Olódùmarè - o cuidado nos diagnósticos medicamentosos e na relação saúde e doença é presidido por um Babaláwo ou Olúwo, qualidade de sacerdote que esteve sumido do cenário religioso e atualmente vem sendo resgatado no Brasil. Sua função sempre foi desempenhada pelo Babalóòrìsà (ou pela Ìyálóòrìsà).

O Babaláwo, sacerdote da divindade iorubana denominada Ifá ou Òrúnmìlà (deus nagô da adivinhação), é o pai e senhor do mistério, aquele que consegue conhecer o desti-no de pessoas e coisas usando um jogo de ikin (caroços de dendê de quatro furos) ou Òpèlè Ifá (colar de Ifá). O destino de cada humano torna-se conhecido através do odu (caminho), a predestinação de cada pessoa e que poderá ser alterado. Existem 16 Odus principais cada um deles tendo representação no jogo. Na tradição não se inicia nada sem antes consultar o oráculo - um instrumento de intermediar os conselhos divinos para situações que, na prática, serão confirmadas à realização ou a reversão. Os diversos òrìsà respondem no jogo, posicionam-se e influenciam nas respostas. Revela-se pelo jogo o òrìsà da pessoa em estudo. E, só se toma ou se administra remédios a doentes quando o oráculo prescreve.

Na Bahia, pertencente à estrutura organizacional do candomblé (BASTIDE, 1961), o Babaláwo, nome de origem nagô, fora usado pelos seus dotes de adivinho - as mães de san-to os consultavam prévio às cerimônias de iniciação ou após calamidades que se abatessem sobre a Casa. Era tão importante quanto à mãe de santo e residiam fora do terreiro. A Bahia conheceu como últimos Babaláwo Martiniano Irineu do Bonfim e Felisberto Sowzer.

O século XVIII viu um rápido aumento na aplicação dos métodos matemáticos e a in-clusão de botânicos entre os quantificadores (HEILBRON, 1990). Através daquele século, estudiosos da morfogênese perpetuavam ignorância ou resistência ao uso de métodos e símbolos matemáticos; a teoria da gênese, como eles a entendiam, era observacional, qua-litativa e finalista; o núcleo da tradição conceitual ainda era aristotélico e a “depreciação da matemática de Aristóteles” (LARSON, 1990, página 268), irreconciliável com o estudo das causas finais, uma parte da ciência que naturalistas não precisavam justificar suas resistên-cias para medir e contar. Esta depreciação Aristotélica da Matemática pode contrastar com

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o valor dado a esta Ciência na história da África - achado arqueológico, Ossos de aproxi-madamente 37 000 e 27 000 anos de idade, Lebombo e Ishango, respectivamente, colocam aquele continente na vanguarda do uso dos números (WILLIAMS, 1997).

A Etnomatemática, inclusa recente na literatura, é uma possibilidade de enriquecimen-to de experiências e observações de um dado grupo humano sobre um determinado tema; pode estruturar uma teoria sobre diagnóstico medicamentoso na cultura e religião africa-nas. O topólogo Raymond Louis Wilder foi, possivelmente, o primeiro a fazer uma relação clara entre a matemática e a cultura, em 1950, nos Estados Unidos e, pioneiro no estudo da história da matemática sob um ponto de vista antropológico. Quando a ênfase é pesquisa, Etnomatemática é uma das tendências em Educação Matemática: “uma reflexão embasada no princípio de que todos podem produzir Matemática, nas suas diferentes expressões de contexto e de construção simbólica” (D’AMBRÓSIO, 2002). Etnomatemática é, no mo-mento, uma subárea da História e da Educação Matemática relacionadas à Antropologia, Ciências da Cognição e Política. É praticada por grupos culturais que se identificam por objetivos e tradições comuns (comunidades urbanas e rurais, classes profissionais e de trabalhadores, crianças de determinada faixa etária, sociedades indígenas).

Matemática, disciplina originada e desenvolvida na Europa, com contribuição das ci-vilizações indiana e islâmica, apresentando o formato adquirido nos séculos XVI e XVII, hoje universal, é uma Etnomatemática. Como a Matemática, as ciências, religiões, téc-nicas e artes são construções do ser humano ao longo de sua trajetória civilizatória para contextualizar-se em cada realidade natural e cultural – sensível e perceptível - e transcen-dências. Etnomatemática é composta por três raízes: tica, matema e etno, considerando haver “várias maneiras, técnicas, habilidades (ticas) de explicar, de entender, de lidar e de conviver com (matema) distintos contextos naturais e socioeconômicos da realidade (et-nos)” (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 70).

A operação com os dezesseis sinais de Ifá é um exemplo do uso da matemática por um grupo étnico definido; a habilidade técnica (ticas) dos “especialistas tradicionais” (SERRA et al., 2002) lida, entende, explica (matema) o sagrado, o terapêutico - “saúde é um dos cami-nhos que mais levam o Povo de Santo, para dentro do Egbé“ (MONTEIRO, 2006) - contex-tualizando a realidade natural e socioeconômica daquela determinada comunidade (etnos).

Conclusões

Na literatura especializada, incluindo na História das Ciências, detecta-se a ausência de contribuições para a formulação de modelo de saúde com gênese no pensamento reli-gioso iorubá-nagô; há uma lacuna quanto a estudos referentes ao sacerdote Babaláwo e à metodologia diagnóstica que usa ao atender enfermidades. O sistema filosófico africano tem muito a ser estudado. A História das Ciências precisa ser sensível a questões culturais e a outros saberes que serviram de marca para o pensamento humano. A etnomatemática é uma possibilidade de enriquecimento. Nesta pesquisa os autores problematizam o caráter sagrado dos Babaláwo sacerdotes cuidadores dos diagnósticos em geral.

Referências bibliográficas

BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia Editora Na-cional. 1961. 370 p.

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CORNFORD, Francis Macdonald. Principium Sapientiae – As Origens do Pensamento Filosófico Grego. 3a Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1989. 266 p.

D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática – elo entre as tradições e a modernidade. 2a Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 112 p. (Coleção Tendências em Educação Matemá-tica, 1). HEILBRON, J. L. Introductory Essay. In: FRÄNGSMYR, Tore, HEILBRON, J. L. e RIDER, Robin E. (Editores) The Quantifying Spirit in the Eighteenth Cen-tury. Berkeley: University of California Press, 1990. p. 1 – 23.

LARSON, James. The Most Confused Knot in the Doctrine of Reproduction. In:

FRÄNGSMYR, Tore, HEILBRON, J. L. e RIDER, Robin E., The Quantifying Spirit in the Eighteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1990. p. 267 – 289.

MONTEIRO, Celso. (2006). ”Quarto de Santo: o nascer e morrer pela barriga do candom-blé nos quintais do Brasil”. Tempo e Presença, n. 345, ano 28, pp. 23 – 27.

REIS, João José. Bahia de todas as Áfricas. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 6, dezembro 2005. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=847&pagina=1. Acesso em: 06 set. 2010.

SERRA, Ordep et al. (Organizadores) O Mundo das Folhas. Feira de Santana: UEFS; Sal-vador: UFB, 2002. 237 p.

TOLSTOI, Leon. O reino de Deus está em vós. 2ª Ed. Tradução de Ceuna Porto-carrero. Editora Rosados Tempos, 1893. Disponível em: http://www.mediafire.com/?ujmniwe5n4a . Acesso em: 30/08/2010.

WILLIAMS, Scott W. Mathematicians of the African Diaspora. Mathematics Department of the University of New York at Buffalo, May 25, 1997. Disponível em: http://www.math.buffalo.edu/mad/Ancient-Africa/ishango.html. Acesso em: 30/08/2010.

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Espiritismo: uma forma de racionalidade híbrida que inclui

uma dimensão metafísica Virginia MFG Chaitin, Jacilene M Viana e Ricardo S Kubrusly

Nossa motivação para falar sobre o espiritismo resultou da crescente discussão sobre o tema tanto na sociedade quanto na academia. Entendemos que o contexto dessa discussão decorre da crescente busca, curiosidade e conseqüente interesse em pesquisas científicas que eventualmente apoiem a existência ou não de um nível de realidade imaterial, trans-cendente ou metafísica.

O questionamento sobre a existência ou não de uma substancia imaterial e sobre a sua possível agencia sobre corpos materiais vem sendo discutida nas ciências naturais desde os seus primórdios, quando ainda se denominava filosofa mecânica. Um caso exemplar está na obra de Joseph Glanvill (1636-1680), escritor, filósofo, clérigo, membro da Royal Society (1664) e amigo pessoal de Roberto Boyle (1627-1691). Em sua obra Saducismus triumphatus, publicada post mortem em 1681, Glanvill expressa sua preocupação com a crescente desqua-lificação da imaterialidade pela filosofia mecânica, em especial com as hipóteses atomistas, e suas decorrências para o entendimento do que seja o universo e o ser humano.

Se a Noção de Espírito deve ser considerada absurda, como pretendido, a de um Deus e de uma Alma distintos da Matéria e imortais também são Absurdo; ademais, que o Mundo foi aglomerado nesse tecido ele-gante e ordeiro por mero Acaso, e que nossas Almas são apenas Partes de Matéria que se juntaram, não sabemos quando nem como, e que em breve seremos dissolvidos nesses Átomos soltos que as compõem; que todos os nossos pensamentos são nada além do roçar de uma Parte de Matéria contra outra; e que as Idéias em nossas Mentes são meros, cegos Movimentos causais. Estas, e mais um Milhar dessas grosseiras Impos-sibilidades e Absurdos (Conseqüências da Proposição: que a Noção de Espírito é absurda) serão tristes certezas e Demonstrações. (GLANVILL, J., Sadducismus Triumphatus, pp. 4-5 em PRIOR, M. E., 1932, p. 177, minha tradução )

Em 1998, exatos 317 anos depois, Richard Dawkins anuncia que:

O organismo individual... não é fundamental para a vida, mas algo que emerge quando genes, que no inicio da evolução eram separados, enti-

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dades em conflito, se bandeiam em grupos cooperativos enquanto “coo-peradores egoístas”. [...] Talvez o “eu” subjetivo, a pessoa que eu sinto que sou, seja o mesmo tipo de semi-ilusão... A sensação subjetiva de “alguém aqui dentro” pode ser uma semi-ilusão, uma montagem feita às pressas, emergente, análoga ao corpo individual que emerge da evolução que re-sulta da desconfortável cooperação entre genes [egoístas]. (DAWKINS, R., Unweaving the Rainbow, 1998, pp. 308-9 em MIDGELEY, M., 2001, p. 3, minha tradução )

Conforme Glavill previa, a ontologia mecanicista e materialista da filosofia natural dos século XVII e seguintes tornou-se o paradigma das ciências e da concepção de ser huma-no. Espíritos ou almas não participam desse contexto.

Apesar disso, o imaterial continua “rondando” as ciências, mesmo que “disfarçado” ou redefinido em outras redes conceituais. Os exemplos clássicos na física são: a “ação à distância” da gravidade na “mecânica” newtoniana; os campos de forças gravitacional e eletromagnético; e a dualidade partícula-onda na física quântica. Como exemplo transdis-ciplinar lembramos a questão ainda sem resposta sobre o que é a consciência, simultanea-mente sujeito e objeto de estudo de áreas como a psicologia, psiquiatria, filosofia da mente e neurologia.

Neste cenário, pesquisamos textos que empregassem estudos científicos para explicar os fenômenos espíritas. Verificamos que, em sua maioria, as publicações destes estudos encontra-se restrita a revistas especificamente espíritas, mesmo quando assinadas por pes-quisadores académicos (médicos, neurocientistas, psiquiatras) que lecionam em institui-ções reconhecidas.

Diante desse “cisma” entre pesquisas e saberes que contemplam a imaterialidade e a tradi-cional pesquisa científica materialista, este trabalho propõe uma exploração epistemológica da Doutrina Espírita (DE) empregando a abordagem da epistemologia pluralista e perme-ável (CHAITIN, V. M. F. G., 2009). Sob este enfoque, estudou-se a DE como uma forma de saber particular, constituída numa racionalidade híbrida que traz elementos das racionalida-des filosófica, religiosa monoteísta cristã e das ciências empíricas, buscando estabelecer bases para um conhecimento possível sobre o mundo natural (material e imaterial) e sobre o ser humano imerso nestes mundos. O desafio, portanto, não é de argumentar pela verdade ou falsidade da DE, nem de dizer que o espiritismo é exclusivamente científico, mas de pensar a sua constituição híbrida enquanto um saber que dá suporte a uma visão de mundo.

Quando se fala em espiritismo ou cardecismo, o usual é referir-se à “religião espírita”. Contudo, os estudiosos do espiritismo discordam dessa classificação. O termo Doutrina Espírita foi cunhado por Hyppolite L. D. Rivail (1804 – 1869), cujo pseudónimo é Alan Kardec, nascido na França de uma família que se distinguiu na magistratura e na advoca-cia. Intelectual poliglota, membro de diversas sociedades científicas e educador destacado na sociedade de sua época, teve seu “Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública” adotado pelo governo Francês em 1828. Empregou o termo espiritismo pela primeira vez em sua obra Livre des Espirits, publicada em 1857. Para situar esta obra na historia das idéias, citamos a Teoria da Evolução das Espécies de Darwin (1859); a Teoria Termodinâ-mica dos Gases (1865); e a Teoria Dinâmica do Campo Eletromagnético (1864).

Naqueles meados do século XIX, havia um interesse por fenômenos “sobrenaturais”, tais como as “mesas girantes e falantes”, das quais Hyppolite Rivail toma conhecimento em 1854. Inicialmente cético, foi convencido pela constância e recorrência do fenômeno espírita, que consistia de manifestações e comunicações de entidades invisíveis em lugares

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distintos e por sujeitos de diferentes níveis culturais e intelectuais. Convencido de que esta característica credenciava o fenômeno espírita de credibilidade empírica, fazia a sua vinculação com as pesquisas em magnetismo:

“O Magnetismo preparou o caminho do Espiritismo, e o rápido progres-so desta última doutrina se deve, incontestavelmente, à vulgarização das idéias sobre a primeira. Dos fenômenos magnéticos, do sonambulismo e do êxtase às manifestações espíritas não há mais que um passo; tal é a sua conexão que, por assim dizer, torna-se impossível falar de um sem falar do outro. [...] Se tivéssemos que ficar fora da ciência magnética, nosso quadro seria incompleto e poderíamos ser comparados a um pro-fessor de física que se abstivesse de falar da luz. Todavia, como entre nós o magnetismo já possui órgãos especiais justamente acreditados, [...]; a ele, pois, não nos referiremos senão acessoriamente, mas de maneira su-ficiente para mostrar as relações íntimas entre essas duas ciências que, a bem da verdade, não passam de uma.” (Revista Espírita – Ano 1, 1858, pág. 149)

Contudo, Kardec não chegou a provar que os fenômenos espíritas eram exatamente os mesmos fenômenos estudados pelos cientistas da época. O que fez foi “tomar empresta-do” do vocabulário científico alguns conceitos ao usar, por exemplo, o termo “fluidos” em analogia àquilo que se acreditava existir na eletricidade e no magnetismo. Propôs, também inspirado por estes conceitos, teorias de uma ontologia espírita para a constituição íntima da substância imaterial que comporia o perispírito.

Neste caso, é importante mencionar que Kardec não teve como verificar esta proposta experimentalmente ou através da observação de fatos espontâneos. Hoje este tópico da DE é estudado nos relatos de experiências de quase-morte (EQM) por médicos, psiquia-tras e neurofisiologistas no âmbito psico-somático. São estudos que permeabilizam a rede conceitual espírita com a da medicina por meio de experiências que remontam inclusive à reencarnação.

A ciência médica avança nos estudos acerca do funcionamento da epífise [...] Acredito que as visões da EQM, bem como as transformações ocor-ridas com os experientes têm a participação direta da glândula pineal que, nas manifestações da EQM, tem ascendência sobre o lobo temporal e sistema límbico. É interessante ressaltar que alguns pesquisadores en-contraram sobreviventes de EQM cujos enredos, do outro lado, envol-veram uma retrospectiva de vidas passadas. Muitos desses sobreviventes passam a aceitar a reencarnação como um fato normal da vida.OLIVEIRA, Sérgio Felipe de. Glândula Pineal: Ciência e Mito. Boletim Médico-Espírita 11. AME-SP, 1997.

De que maneira, então, se aproxima e se distancia o espiritismo das ciências? Em nos-sa perspectiva pluralista e permeável, destacamos os seguintes aspectos que caracterizam uma forma de racionalidade, que constituem as suas regras de legitimação e justificação de validade para o respectivo saber (CHATIN, V.M.F.G., 2009, p. 155):

• Princípios gerais que assumem características do nível ontológico e que implicam em limites e possibilidades de inteligibilidade;

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• O tipo de causalidade admitido;• O tipo ou os tipos de lógica que se admite para fazer as associações, combinações e

ordenamentos;• Métodos ou técnicas para observação e experimentação;• A posição do sujeito diante do nível ontológico e do conhecimento; e• Diferentes processos de verdade instaurados pelo sujeito.

Um estudo completo do espiritismo permitiria um detalhamento de todos esses as-pectos, o que foge ao escopo deste trabalho. Contudo, esta caracterização nos permite dar partida à proposta de estudar o espiritismo em sua constituição híbrida.

Em primeiro lugar, no tocante aos métodos e técnicas da racionalidade espírita, des-tacamos a busca de comprovação empírica dos fenômenos, bem como a sua repetição em observações independentes, que envolvem sujeitos que não se conhecem mas que se comportam da mesma maneira e cujas informações trazem o mesmo conteúdo, o que aproxima e experiência espírita à científica. Por outro lado, há um distanciamento mar-cante quando se trata da comunicação com espíritos que resulta numa mensagem verbal ou psicografada. O método básico de transmissão de conhecimentos espíritas implica na existência e na comunicação com espíritos imateriais, e isto foge totalmente aos princí-pios gerais ontológicos das ciências contemporâneas. No que diz respeito ao tipo de cau-salidade admitido, nas ciências há ainda questões em aberto, uma vez que nem todos os fenômenos científicos obedecem a uma causalidade por contato mecânico, classicamen-te desejada, ou mesmo ao limite máximo da velocidade da luz para uma conexão causal. Citamos como exemplo o emaranhamento quântico de partículas que ocorre instanta-neamente e à distância. Já a causalidade espírita admite agência da substancia imaterial e instantânea sobre a matéria. Neste ponto, ciências e espiritismo ainda têm uma possível aproximação a explorar.

Outro aspecto importante a considerar é a possibilidade de inteligibilidade na racio-nalidade cientifica. Nas ciências, o ser humano é capaz de conhecer todo o universo, não há “mistério” que não possa ser desvendado. Na racionalidade espírita, há conheci-mentos que só os espíritos conseguem alcançar. Este caráter doutrinário do espiritismo, resulta de um processo de verdade instaurado por sujeitos que crêem numa verdade pré--existente e acabada, acessível e revelada em sua totalidade apenas por espíritos, como dissemos. No caso da racionalidade cientifica, também se assume tradicionalmente que a verdade seja única, pré-existente e acabada, e que os cientistas estariam “descobrindo” essas verdades, o que aproxima ciências de espiritismo. A divergência se dá na suposi-ção de que o conhecimento cientifico ocorre por aproximações sucessivas pelo uso do método científico que resulta nas suas teorias. Em ciências, por princípio, não existem doutrinas que não estejam sujeitas à reformulação ou ao descarte no futuro, embora na sua pratica paradigmas científicos sejam bastante doutrinários.

Recorrendo à relativa fluidez das ciências, abre-se um perspectiva interessante: esta-ria no seu futuro o conhecimento que vai trazer a explicação dos fenômenos espíritas? Seriam estas as ciências que acolheriam o mistério? Ou haveria um espiritismo futuro que, tornando-se menos dogmático, acolheria a participação no mistério pelo homem encarnado? São possibilidades abertas na plasticidade dos saberes e na permeabilidade de suas regras.

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Bibliografia

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DAWKINS, R., Unweaving the Rainbow, New York: Houghton Mifflin Harcourt,1998.

GLANVILL, J., Saducismus triumphatus, presume-se editado por Henry More, publicado postumamente em1681, e re-impresso com acréscimos e variações de grafia do título em 1689, 1700 e1726.

KARDEC, A., Livre des Espirits, Paris: Editora Dentu, 1857

___________, A Gênese, Tradução de Guillon Ribeiro da 5a. edição francesa, La Genèse, Le Miracles, Le Prédicion Selon le Spiritisme, Brasília: Editora Federação Espírita Bra-sileira, 1944

MIDGELEY, M., Science and Poetry, London and New York: Routledge, 2001

OLIVEIRA, Sérgio Felipe de. Glândula Pineal: Ciência e Mito. Boletim Médico-Espírita 11. AME-SP, 1997.

PRIOR, M. E., Joseph Glanvill, Witchcraft, and Seventeenth-Century Science, em Modern Philology, Vol. 30, No. 2 (Nov., 1932), pp. 167-193.

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Certeza do Cogito, Incerteza da Matemática?

Zulena dos S. SilvaDoutoranda doHCTE

[email protected]

O presente artigo pretende mostrar a diferença entre a certeza da Matemática e a do cogito, na obra Meditações Metafísicas.1

O problema de Descartes nas Meditações...

Em vista da demonstração da possibilidade do conhecimento, correspondência entre pen-samento e mundo externo, Descartes inicialmente põe em questão pressupostos da tradição acadêmica a respeito da origem ou natureza do conhecimento; ele afirma não ser necessário analisar todos os conhecimentos adquiridos, pois seria tarefa infindável, bastando então in-vestigar a legitimidade de fundamentos do conhecimento tomados como certos pela opinião corrente da tradição; e assim lança a dúvida como método de suas meditações acerca daque-la possibilidade. Tais fundamentos dizem respeito a idéias como a de que o conhecimento baseia-se na experiência empírica, pelas sensações, e a de que a Matemática é modelo de cer-teza_ neste último caso, sabemos o quanto esta exprime certeza em contraste à contingência do mundo sensível, segundo Platão, e que tal visão a respeito da Matemática é recobrada no Renascimento e Modernidade, haja vista o valor operacional de linguagem inambígua na des-crição objetiva dos fenômenos físicos que tal ciência representa a partir de Galileu.

Na Primeira Meditação, Descartes expõe três graus da dúvida: o primeiro põe em ques-tão a aquisição de conhecimento por meio dos sentidos, estes podem ser imprecisos, nos enganar, nos confundir sobre o que realmente ocorre no mundo; ele admite que nem sem-pre os sentidos enganam, daí reforça a dúvida elevando-a ao segundo grau, denominado “Argumento do Sonho”, o qual sugere que se um sonho pode parecer tão real, o critério para demarcar o sonho, a ficção da realidade seria incerto pelos sentidos, uma vez que estes são (como que) revividos também em sonho_ ou seja, não vale dizer que sabemos diferenciar um e outro estado porque acordamos, não é implausível acordarmos em um sonho_ ou seja, não vale dizer que sabemos diferenciar um e outro estado porque acorda-mos, não é implausível acordarmos em um sonho, e, sobretudo, os sentidos podem mesmo nos confundir sobre tal demarcação.

1 Agradecimento a Felipe S. Abrahão pelas questões que permitiram relevantes reflexões sobre o cogito, a serem exploradas em novo artigo.

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A Matemática fica incólume a tais argumentos porque é uma ciência que não se baseia nos sentidos_ consideração, ao menos, conforme a compreensão platônica da mesma e que é retomada no período em que vivem Galileu e Descartes_, seu procedimento abstrato não é atingido pelos primeiro e segundo graus da dúvida. Descartes reconhece isso, mas apresenta uma nova dúvida, mais profunda, de caráter metafísico que ele denomina “Deus Enganador” (DE) ou “Genio Maligno” (GM), a qual consiste em admitir a possibilidade de um ser que pode me enganar sem que eu tenha consciência disso, induzindo-me ao erro.

Descartes já alertara que adotar a dúvida como método significa que tudo o que for atingido pela dúvida não pode valer como base para o conhecimento, o que for dubitável fica em suspenso e admitido como falso. Ora, se os sentidos e a Matemática não seriam fundamentos que legitimam a possibilidade do conhecimento, uma vez atingidos pela dú-vida, então o conhecimento não seria possível? Com essa conclusão implícita na pergunta, Descartes abre a Segunda Meditação, afirmando que talvez não haja nada no mundo de certo, a não ser este enunciado.

Daí que ele, na Segunda Meditação, encontra a primeira certeza, “eu sou, eu existo”: um ser que se engana, que é enganado, que duvida, existe, i.e. “eu sou” o sujeito que du-vida, que se engana, medita, pensa. Esta res subjacente ao fato de ser enganado, ao ato de duvidar, meditar, é por natureza pensante, é um ser que é enquanto pensa. Descobrir que se é com uma natureza pensante, é a segunda certeza a que Descartes alcança. Assim ele prossegue as Meditações..., seguindo a ordem das razões, ou seja, considerando como certo apenas aquilo que, decorrente do alcance da primeira certeza, mostre-se indubitável, claro e distinto.

Não entrarei nos problemas acerca do prosseguimento das Meditações... em vista à de-monstração da possibilidade do conhecimento. Mas é preciso ressaltar que Descartes lança o problema da correspondência entre pensamento e realidade física, indicando o quanto o paralelismo psicofísico é problemático...

A Matemática e o Terceiro Grau da Dúvida

Mediante as dúvidas lançadas por Descartes, como então ficaria o “lugar” da Matemá-tica frente ao “eu sou” na ordem das razões que Descartes vislumbra; atingida pela dúvida metafísica, ela não ocupa a vez de uma Ontologia, como “linguagem do Universo” ou re-velação do essencial da realidade.

Lembremos que o terceiro grau da dúvida põe em questão a Matemática como modelo de certeza para fundamentar o conhecimento sobre o mundo físico, bem como atinge seu próprio escopo como conhecimento por si certo, inambíguo, uma vez que vale ter dúvida sobre se seu próprio procedimento é enganoso, passível de erro e em questão, portanto, o critério para avaliação da certeza matemática.

Reportamos aqui a como Descartes, em Meditações..., problematiza a ideia de a Mate-mática ser um instrumento que possa garantir descrição objetiva do fenômeno físico, com o experimento de pensamento, por assim dizer, denominado DE/GM, o qual refere-se à possibilidade de engano no cálculo, quanto ao acerto ser expressão de certeza, ou melhor, o que está em questão para Descartes é o critério de verdade; o problema do critério da ver-dade diz respeito ao problema: como sei que sei algo e com certeza e acerto? Este remonta a Platão, em Menon, assim: como sei que sei algo, se antes de saber, ao buscar sabe-lo não sabia o que era? Se eu não sabia, como sei que passei a saber aquilo de que não sabia? Qual critério me permite saber que sei algo? (PLATÃO, 80d)

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A força da dúvida radical consiste em pôr os sentidos, bem como a Matemática em sus-penso na pretensão de acesso objetivo ao mundo externo à mente, as duas possibilidades de acesso mostram-se dubitáveis: DE/GM poderia estar nos enganando sistematicamente, sem que o soubéssemos, sem que tivéssemos consciência disso.

Notemos que no caso do argumento lançado por Descartes, de maneira consciente pela dúvida (esta como um método), se está refletindo sobre uma possibilidade em tese, não está sendo tomado como real, mas sim como plausível para o pensamento em busca da certeza do conhecimento; em última análise, Descartes está comprometido com o proble-ma da justificação da possibilidade do conhecimento.

O Cogito e a Matemática

Vemos que nas Meditações..., ao introduzir o terceiro grau da dúvida, dúvida radical ou universal, estabelece-se uma diferença entre a evidência da Matemática e a do cogito (eu pensante). É preciso observar que a ordem das razões em busca da possibilidade do conhe-cimento seguro, questão filosófica motivadora de Descartes, inicia-se com o cogito e não com a Matemática. Com os três graus da dúvida como método problematiza-se a possibili-dade do conhecimento; a partir da primeira certeza, “eu sou, eu existo”, começa-se a ordem de razões em vista da demonstração daquela possibilidade. Aqui não nos dedicaremos ao prosseguimento desta ordem de razões na tentativa de demonstrar que o conhecimento é possível, nos deteremos na extensão em que se mostra pertinente o ceticismo e mais espe-cificamente à distinção entre a certeza do cogito e a incerteza da Matemática.

O cogito estabelece um ponto firme no centro da duvida universal, não se abalando mediante ela; ele interrompe a cadeia de incertezas, daquilo que pode ser falso.

O cogito é uma evidencia própria a uma verdade indubitável, podendo-se com ele, ou por ele, então considerar certo o que possuir evidencia comparável, resistente à dúvida radical como ele, ainda que ele não permita fundar propriamente outra certeza e verdade, uma vez que deixa em aberto a dúvida de direito. Quer dizer, o cogito é exceção à dúvida universal porque não está na esfera que ela circunscreve. Mas a dúvida do DE/GM atinge aquilo que o “eu” afirma como verdade pretendida como existente e assegurada fora do cogito, ou seja, o cogito é exceção à dúvida, mas esta subsiste.

A evidência do cogito consiste em que ele afirma a si próprio. Isso não vale para as pro-posições matemáticas, elas são atingidas pela dúvida universal.

Os conteúdos matemáticos existem no pensamento. Na ordem das razões, o cogito é condição das proposições matemáticas_ o que não significa que seja condição de fato da Matemática, mas de direito, ou melhor, é ratio cognoscendi dela, aquilo pelo que ela é co-nhecida, embora não necessariamente sua ratio essendi, o seu fundamento e constituição.

E enquanto a Matemática se dirige para conteúdos, sendo condição ou elemento de coisas possíveis, as quais, contudo, são dubitáveis, podendo não ter valor objetivo, não serem reais independentes do campo do cogito, com este se dá o contrário: “...m’éleve à la condition ultime de la possibilite de toutes mês représentation et non aux conditions de possi-bilite du contenu de ces représentations.” (GUEROULT, pp.52-53)

Quanto à Matemática, podemos imaginar que ela comporte entidades reais mentais, opere relações com eles, sem que correspondam a algo fora da mente. Em outras palavras, que a Matemática seja legítima na esfera mental, cuja consecução independa de qualquer outro dado postulado como externo à mente, tornando assim a vida interior mental mais interessante, cogitável em diversas possibilidades axiomáticas, é toda a sua Beleza como

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conhecimento. A Matemática sendo um objeto na mente_ ainda que não saibamos se fruto desta_ , que pode ser um conhecimento possível_ portanto, não apenas como conheci-mento para a Física operar com linguagem inambígua; mas isso não garante que seu do-mínio de operação resguarde-se do engano sem saber que tal ocorra, pois o DE/GM pode atuar; é preciso lembrar que a competência instrumental matemática não está garantida, pois que ela possa descrever o mundo externo precisamente tal como ele se manifesta está em questão, bem pode ser que este mundo externo não possa ser conhecido e não exista para além da esfera mental do “eu sou”, e que possa ser conhecido com objetividade, rigor matemático também em questão, uma vez a possibilidade da dúvida metafísica.

E se pode reforçar a diferença entre a evidência das proposições matemáticas e a do co-gito, percebendo que: “... alors qu’on peut faire abstraction de tous lês contenus de la pensée, il est imposible de faire abstraction de ma pensée, qui doit subsister comme condition de la représentation em general, quel que’em soit lê contenu.” (GUEROULT, p.53)

Conclusão:

Ficam as seguintes questões:i) Tendo em vista que a Matemática, na ordem das razões, expressa um conteúdo de

pensamento_ e, ao que tais meditações indicam, um conteúdo do pensamento solipsista, i.e. relativo à compreensão de que a “minha” mente ou pensamento é a única coisa existente _, sua validade reduziria-se às elaborações do pensamento? A Matemática reduziria-se à ima-ginação de um único pensamento genial? Se o pensamento é redutível ao solipsismo, o qual não elimina a dúvida radical, em que se sustenta a objetividade pretendida pela Matemática?

ii) A consciência pensante não poderia ser, em última análise, proposicional, expressão de linguagem?

Ora, se a consciência existe como linguagem, qual seria então a justificativa para que se entenda a mesma como primeira certeza e com precedência em relação à Matemática, também linguagem, mediante o confronto com a dúvida radical e sendo mais resistente a esta do que a Matemática?

Reduzindo o “eu sou” ou o “eu sou enquanto penso” à linguagem, dispensamos a ordem das razões, e daí a Matemática como linguagem também estar no mesmo patamar que o cogito, e concorre com ele pela representação inambígua da realidade, quer dizer: a) ou a descrição objetiva é capacidade do cogito e este usa consequentemente a Matemática para tal propósito, quer dizer, a Matemática só se faz inambígua por causa do raciocínio do “eu sou”, b) ou o cogito depende da Matemática para alcançar objetividade e conhecimento preciso da realidade;

iii) Vemos com as dúvidas cartesianas como o paralelismo psicofísico é problemático, configurando-se ceticismo suas primeiras e talvez insolúveis meditações.

Bibliografia:

-DESCARTES.Meditações Metafísicas. In: “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural. 1983.

- GUEROULT, M. Descartes selon L’Ordre dês Raisons. Vol. I . Paris: Aubier - Éditions Mon-taigne, 1968.

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Hume e a Indicação da Teoria Quântica

Zulena dos S. Silva, doutoranda do HCTE

Luiz Pinguelli Rosa, professor do HCTE/COPPE/UFRJ

No presente escrito abordamos a crítica de Hume à noção de causalidade na obra Investigação sobre o Entendimento Humano, o que desdobra-se na apresentação do propósito e conseqüência do pensamento de Hume e na breve exposição de seus argu-mentos; também apresentamos uma questão sobre o tempo que se vislumbra a partir daquela crítica; ao final, apontaremos, em linhas gerais, como algumas das idéias deste filósofo dão sustentação à compreensão do fenômeno físico conforme parâmetro da Te-oria Quântica.1

Propósito e Conseqüência do Pensamento de Hume

A concepção de Hume apresenta o “empirismo” com uma nuance inquietante: que o pensamento parta de impressões dos sentidos não implica alcance de idéias ou princípios objetivos, conhecimento. Se o pensamento, em última análise, parte das impressões, aonde ele chega? Ele encontra conhecimento sobre a natureza? O que é possível pensar e conhe-cer? O conhecimento pode ser vislumbrado pela mente humana?

Percebemos então que seu “empirismo” é peculiar, à primeira vista estranho: a relação entre experiência, campo das impressões e domínio de conhecimento objetivo, idéia ou leis físicas correspondentes ao observado é uma ligação controversa.

A questão proposta por Hume que examinaremos aqui é quanto a saber em que se fun-da o processo do intelecto que liga uma ocorrência à outra em experiências semelhantes, recorrentes. Em que se funda a conclusão de que há conexão entre um fato e outro, como se causa e efeito fossem? Parece que não se encontra tal fundamento pela observação dos fenômenos, nem por raciocínio a priori, de modo que por esse se sustente a conjugação da conexão causa-efeito à contigüidade e à regularidade dos acontecimentos. Hume compre-ende que tal conjugação resulta do hábito.

1 Agradecimento: Prof. Dr. C. Koehler, Gastão Galvão, Roberto Pimentel, cujas questões propiciaram reflexões importantes sobre o tema.

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Breve exposição dos argumentos de Hume

Na obra Investigação sobre o Entendimento Humano, seção II, em que reflete sobre a origem das idéias, Hume afirma que “o mais vivo pensamento é ainda inferior à mais em-botada das sensações.” (§11) Hume distingue as percepções da mente como pensamentos ou idéias e as impressões ou sensações (cf. §12).

Precisamos insistir que a compreensão de Hume de que as impressões são mais fortes, vívidas e que o pensamento não o seja, e que este se desenvolve a partir daquelas, parece indicar a possibilidade de conhecimento claro a partir das sensações ou apenas no âmbito destas; mas não podemos perder de vista que este seria um “conhecimento peculiar, estra-nho”, uma vez que tornando-se pensamento perderia a clareza. E ainda temos que reconhe-cer que as sensações nos apresentam um dado aqui e agora, particular e contingente, não percebemos por sensações o universal e necessário, o princípio que se considera regente dos fenômenos. Sendo assim, a possibilidade de conhecimento parece implausível... Veja-mos o curso de sua argumentação.

Hume observa que o intelecto conecta idéias com “certo grau de método e regularidade”(Seção III,§18), seja no raciocínio mais sério ou nos devaneios da imaginação ou nos sonhos, não sendo o encadeamento de idéias apenas por acaso.

Um dos princípios de conexão de idéias pelo entendimento, aquele com que nos ocu-paremos aqui por ser crucial para a reflexão sobre a natureza e possibilidade do conheci-mento, é o de causa e efeito.

O princípio de causalidade reflete a pretensão do pensamento “tomar o lugar ou a vez” das impressões, associando as idéias de “causa” e de “efeito” ao que é observado na conti-nuidade e regularidade dos fenômenos naturais e constitui experiência. Mas observando um fato pela primeira vez não temos a sensação da conexão entre causa e efeito; a rigor, o princípio da não contradição sustenta as questões de fato, mas o princípio de causalidade ainda que não contraditório não garante que a conexão de idéias corresponda aos fatos.

Vale notar que mesmo que “nossa ignorância natural” em um primeiro momento de contato com uma ocorrência ou efeito não possa vislumbrar sua causa, e portanto preci-semos de experiência regular e repetida da ocorrência para supor a causa, isto não implica que uma teoria sobre o observado apresente alguma variável escondida correspondente a “um complicado mecanismo ou estrutura secreta das partes” do fenômeno ainda desco-nhecido, não compreendido ou não descrito com clareza pela teoria. Ainda que alguma “estrutura secreta” seja desconhecida e seja possível a regência de um princípio objetivo no fenômeno natural, isto não significa que a possibilidade de ocorrência contrária à determi-nada pelo princípio seja implausível, pois não contraditória, como também afirmado por Hume. Por outras palavras, vale a questão: ainda que passemos a conhecer a explicação de uma teoria sobre a variável escondida, revelando assim a estrutura do fenômeno, por que não plausível ou admissível a possibilidade contrária no próprio fato?

Vemos com Hume que “conexão necessária” é uma idéia controversa; segundo ele, cos-tumamos estabelecer implicação entre eventos por força do hábito, o que chama atenção com os seguintes argumentos: a) apesar da repetição de um evento acontecer até o presente ou a continuidade entre ocorrências distintas, regularmente, não há contradição em dizer que no momento seguinte ele não ocorrerá ou que a continuidade entre eventos distintos não é necessária; b) ou mesmo pode ser notado que na primeira percepção de um evento não temos como recorrer à causalidade como uma lei necessária e universal que já nos orientaria nesta primeira experiência, p.ex.: não pôr a mão no fogo porque ele queima; neste caso a própria experiência presente inicial não é conhecida com precisão ou exatidão.

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O máximo que podemos admitir ao designar “empirista” o pensamento de Hume é que enuncia um empirismo tênue, fraco. Ele pretende retirar as camadas de idéias justapostas à compreensão que se tem de “sensações” ou “impressões”, e isso para percebermos a rea-lidade empírica tal como é; e deste domínio último da realidade não se pode obter conhe-cimento, ao menos com as pretensões de necessidade e universalidade como contraponto à contingência ou transformação dos fenômenos da natureza. Podemos ter impressões de regularidades neste estado de coisas, mas disso não se pode depreender um “porque” necessário e universal como se pretende com a noção de “causalidade”, esta apenas uma camada que encobre a natureza tal como se manifesta.

Curiosas questões sobre o Tempo e a Causalidade conforme problematizada por Hume

Destituindo-se a causalidade de sentido, apontando-a como resultante do hábito, o tempo se mantém ou não? Se não temos mais a noção de “causa”, ainda faz sentido a noção de “tempo”? Se perdemos a noção de precedência e procedência implicadas na de “causa” como se ocorressem por conexão necessária, mantém-se pertinente a de “tempo”?

Notemos que ainda que a contigüidade ou sucessão de um evento em relação a outro ocorra em realidade, aparecendo em um sistema, isso não implica que o tempo seja fatal-mente linear. Extraímos da noção de contigüidade ou sucessão uma noção de “linearida-de” que pode não ser suficiente para a compreensão do tempo, este pode ser de tal forma “desordenado”, não linear, a ponto de ser plausível sua reversibilidade (e por que não sua descontinuidade?), desordenada ou mesmo linear, i.e. “de trás para frente”. Tal reformu-lação da compreensão do tempo pode ser extraída da problematização feita por Hume à causalidade: uma vez que não temos impressão da causalidade, a noção de tempo pode ser alterada, se se presume que ele não esteja associado àquela, pressupondo-se linearidade nas ocorrências, de modo a se conectar precedência e conseqüência dos acontecimentos; mas a contigüidade e a irreversibilidade não são as únicas indicações da possibilidade temporal.

Correspondência do pensamento de Hume com parâmetros da Teoria Quântica (TQ):

Podemos ressaltar aqui, quanto à TQ, ao menos dois aspectos: 1º) os valores de um estado de uma partícula em um sistema quântico não são definíveis conjugadamente de modo que a descrição de um valor permita descrever ou determinar o outro, antes há inde-terminação, sabendo-se de um se sabe de outro por probabilidade: pode-se p.ex. saber da localização, mas não da velocidade_ aqui as ocorrências não se conformam à determina-ção que se possa supor na evolução dos estados, de modo que se suponha que conhecendo--se a massa de uma partícula e as forças agentes sobre ela possa-se determinar o seu estado no passado ou no futuro; 2º) a interferência constituindo o sistema físico investigado.

Quanto a estabelecermos relação entre o pensamento de Hume e a TQ, há que se con-siderar dois pontos significativos: i) a análise de Hume sobre o que podemos apreender dos fenômenos percebidos, eliminando resquícios metafísicos, excedentes da observação, retirando tais camadas para apresentar precisamente o conteúdo real das sensações; ii) e que a “causalidade” é uma tal noção excedente, sem legitimidade, sem haver o que sustente sua aplicação sobre os fenômenos observados, a não ser o hábito ou costume.

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A partir do pensamento de Hume e considerando a TQ_ a qual, entendo, é como se uma “aplicação” do pensamento de Hume, sendo uma descrição da realidade física que propõe uma nova forma de pensar os fenômenos que se revelam cada vez mais complexos, com que certas noções excedentes ficam dispensadas, requerendo-se que nosso pensa-mento desvencilhe-se delas_ vemos que Probabilidade parece ser o termo mais afeito à nossa observação do mundo empírico do que Causalidade.

É preciso ressaltar que estamos lidando aqui com um domínio de eventos distinto do de nossas percepções cotidianas da natureza; esse domínio mostra-se por probabilidade, mas ainda plausível a previsão acerca das ocorrências. Notemos que a “previsibilidade de probabilidades” faz sentido pelo seguinte: o por que da previsibilidade concerne à per-cepção de alguma regularidade e contigüidade dos valores distintos de uma partícula até um certo limite_ daí que plausível a idéia de que a definição simultânea de valores, como posição e velocidade p.ex., neste caso ser incerta.; e a probabilidade tem sua razão na pecu-liaridade de que regularidade e contigüidade não podem ser afirmadas e garantidas como constitutivas de um sistema de dados observados, são manifestações possíveis daquele e que se pode engendrar neste novas possibilidades a partir de alguma interferência.

Além disso, vale dizer que regularidade, contigüidade não implicam causalidade, i.e. não se pode conferir alguma “conexão necessária” entre os dados, não se pode afirmar determinação entre eles, ou seja, que um evento afete outro como se fosse sua causa ou que uma variável sobre um dado permita definir outra do mesmo como se alguma relação intrínseca houvesse. É provável que sim, mas tal dimensão não se revela como pretendem nossas expectativas de costume. A interferência sobre um dado do sistema revela ocor-rência contígua de outro e previsível regularidade desse evento até certo limite, mas não se destaca o por que de assim ser_ a cada vez que se tenta captar alguma informação, tal procedimento de apreensão já interfere na informação original, esta escapa.

E como vemos pelo pensamento de Hume que causalidade não se encontra no domínio ontológico, podemos considerar que a especificação do estado quântico de uma partícula p.ex. não implica que se identifique uma posição bem definida da mesma considerando-se a sua velocidade p.ex., isso porque registra-se sua deslocalização ou não-localidade, o que corresponde à probabilidade de sua distribuição no estado quântico; assim identifica-se os valores da partícula, mas não de modo que um necessariamente seja dependente do outro e com isso tenhamos precisa e garantida a identificação associada de ambos; embora, a interferência sobre um dos valores da partícula revele a alteração do outro, isso não sig-nifica que tenhamos garantida a causalidade na relação de interferência ou haver conexão necessária entre as alterações simultâneas. A interdependência entre os dados afetados se revela pela interferência no estado quântico, mas não implica que estejam necessariamente conjugados, novas possibilidades no sistema observado podem ser engendradas a partir de certo limite. Lembremos que contigüidade e regularidade não significam causalidade.

Bibliografia:

HUME. David. Investigação sobre o entendimento humano. Col. “Os Pensadores”. Trad.: Leonel Valandro. São Paulo: Ed. Abril, 1973. 1ª edição.

TOLEDO PIZA, A. F. R. de. “Mecânica Quântica”, in: Física Hoje; uma aventura pela na-tureza: dos átomos ao universo. Orgs.: Ivan S. Oliveira e Cássio L. Vieira. Instituto Ciência Hoje. CBPF, 2007.

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