livro - cfm

111
Ryskalla Fanfiction Nyah! Fanfiction publication Original • Fantasy • Tragedy As Cores da Liberdade por Ryskalla Fantasia • Drama • Amizade Heterossexualidade • Violência Cedric sempre foi uma criança cheia de vida, até que sofreu suas duas maiores perdas: sua capacidade de andar e Charles, uma pessoa muito especial em sua vida. Desde então, seu coração tornou-se revoltado e fechado.

Upload: fanychan

Post on 05-Dec-2015

217 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

Fanfic de Fullmetal Alchemist

TRANSCRIPT

Page 1: Livro - CFM

Ryskalla Fanfiction

Nyah! Fanfiction publication

Original • Fantasy • Tragedy

As Cores da Liberdade

por Ryskalla

Fantasia • Drama • Amizade

Heterossexualidade • Violência

Cedric sempre foi uma criança cheia de vida, até que sofreu suas duas maiores perdas: sua capacidade de andar e Charles, uma pessoa muito especial em sua vida. Desde então, seu coração tornou-se revoltado e fechado. Entretanto, com a vinda dessas perdas, uma nova e estranha amizade fora feita. Hexabelle, uma garota perfeita em muitos sentidos, mas que possui um problema que poderá por em risco a amizade dos dois. Poderiam eles superar a morte de

Page 2: Livro - CFM

2 C A R E S F O R M E

Hexabelle e manter uma amizade que por muitos seria considerada incorreta?

Page 3: Livro - CFM

sumário

Copyright © 2013 Ryskalla

Editores: Sua fã

1ª edição em fevereiro de 2013

CIP-BRASIL: CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

______________________________________________________________________________________________________________

RYSKALLA, 1993-

As Cores da Liberdade / Ryskalla – 1ed. – Rio de Janeiro: Nyah! Fanfiction, 2013.

ISBN 280456. 333124

1. Livros e leitura – Ficção. 2. Deficiência – Fantasia - Amizade – 2013 – Ficção. 3. Ficção brasileira.

______________________________________________________________________________________________________________

[2013]

Nyah! Fanfiction

www.fanfiction.com.br

Page 4: Livro - CFM

4 C A R E S F O R M E

SumárioDezembro.............................................................5

Mágoas...............................................................13

Três batidas e uma resposta..............................24

Teus olhos dourados..........................................33

Testando limites.................................................43

Progressão e retrocesso.....................................56

Presença indesejada..........................................69

Page 5: Livro - CFM

C A R E S F O R M E

Personagens* pertencem à Diva Suprema Hiromu Arakawa * O uso de personagens, no meu caso, implica apenas em fazer uso de seus nomes. A mudança de personalidade é constante, uma vez que eu tenho sempre criar o meu próprio universo. Sabe aquelas fanfics que te fazem escolher somente o nome dos personagens, mas as personalidades pertencem à autora? Então, sou daquela época. rs É uma coisa óbvia de se dizer, mas leia apenas se sentir à vontade.

M.

Page 6: Livro - CFM

CAPÍTULO I

DezembroDe repente, eu me vi diante de uma situação que seria um pecado para mim. Para mim e para todo o resto da sociedade. Resolvi guardar esses segredos obscuros dentro do meu coração, mas sabia que uma hora ele iria explodir feito uma bomba.

Meu nome é Winry Rockbell e sou filha de um casal de advogados. Tenho mais dois irmãos que estão, atualmente, estudando no leste dos EUA, Ed de 18 anos e Alfonse de 15. Na verdade, eu fui encontrada ainda pequena na porta de casa, mas nunca fui tratada como se fosse parte extra da família. Pelo contrário, são poucas as vezes em que me lembro que meu sangue é diferente dos demais. Não tenho do que reclamar a respeito disso. Tenho 16 anos e depois de passar uma temporada fora estou voltando para casa, com muita bagagem e lembranças na mala.

Era o dia 23 de dezembro, e eu estava voltando para casa para passar o natal com a família reunida como de costume. Trouxe bastante agasalhos novos comigo, a temporada de inverno no Japão é bastante rigorosa, tanto que algumas pessoas que viajam de países tropicais em épocas de frio optam pelo Japão ao invés dos EUA, Pólo Norte e Canadá. Eu particularmente adorava fazer bonecos de neve no quintal de casal quando mais criança.

Page 7: Livro - CFM

dezembro 7

Não era comum passarmos o resto do ano reunidos desde o último aniversário de Alfonse. Quando ficamos mais velhos as responsabilidades aumentam. Meus pais sempre presaram pelos bons estudos, nossa carreira profissional, e meus irmãos optaram por estudar fora, assim como eu. No começo eu não aceitava essa ideia de bom grado, mas me vi diante de uma oportunidade única. Alfonse foi estudar música aliado ao ensino médio, por conta de sua pouca idade. Ed já havia terminado o colegial e estava cursando biogenética e buscava ser um cientista, estudando a linha de raciocínio das propriedades do corpo humano.

Diante de todos esses anos eu não pude estabelecer muito contato com ele, estava sempre e somente na companhia de Al (ou Alfonse), em quem mais confiança. Eu fiquei triste durante os primeiros anos, pensava que ele me rejeitava por eu não ser uma integrante propriamente dita em sua família. Cheguei a pensar ser uma intrusa. Diante de tal situação, eu comecei a praticar bullying com ele, mesmo sendo mais nova. Ele era muito mais baixo do que eu, e eu andei lendo em alguns livros sobre uma doença genética chamada de Acondroplasia. O afetado tinha um fenótipo idêntico ao de alguém conhecido vulgarmente como anão. Não era o seu caso, ele só era um pouco mais baixo, mas eu me aproveitei muito disso. Anos mais tardes eu soube que Ed era autista e que provavelmente nunca me dirigiria a palavra, porque não confiava em mim. Foi difícil para os meus pais me contarem a respeito do seu diagnótisco. Eu fiquei chateada, excluída, mas acabei aceitando. Ainda me pergunto, entretanto, porque esconderam de mim

Page 8: Livro - CFM

8 C A R E S F O R M E

por tanto tempo a doença, se é que podemos chamar assim, de Edward.

— Papai, mamãe, estou de volta! — anunciei assim que pus meus pés em casa, sacudindo a neve que estava implantada no agasalho. Sacudi um pouco e acabei derrubando neve em Gaiden, nosso cachorro. O cheiro de café que vinha da cozinha era tão bom!

— Querida! — mamãe apareceu de súbito com uma fatia de bolo de milho nas mãos. — Seja bem vinda de volta. Seu pai e eu estávamos com muita saudade de você.

— Ed e Al virão para casa esse ano? — perguntei animada. A alegria de estar de volta a sua casa é muito aconchegante.

— Al terá um concerto muito importante, ele está se saindo tão bem, querida! É uma pena que não poderemos apreciar. Todos os vôos para os EUA estão esgotados — ela suspirou. — Mas ele tocará e ouviremos pelo celular. Nos prometeu!

— E quanto a Ed?

Ela estremeceu diante da minha pergunta.

— Ele virá para casa esse ano, querida — ela falou em um tom de voz consideravelmente baixo. — Virá sim — sua voz desapareceu.

— Muito trabalho? — perguntei para espantar o silêncio constrangedor. Eu queria perguntar por que meus pais ficavam assim toda vez que eu tocava no

Page 9: Livro - CFM

dezembro 9

nome de Ed, mas não queria estragar o clima natalino. Até porque, se fosse uma coisa a ser dita eles já teriam me falado há muito tempo. Todo esse mistério eu teria que descobrir sozinha.

— O de sempre — ela respondeu dessa vez um pouco mais animada. — Você quer um pedaço de bolo? Acabou de sair do forno.

— Quero sim.

Tirei as sandálias e segui mamãe até a cozinha. O cheiro de café era muito mais gostoso e intenso naquele cômodo, e me fez sentir definitivamente em casa.

Eu achava incríveis as pessoas que davam novas possibilidades e escolhas de vida a outras. Desde cedo meus pais tentaram nos encaminhar a países onde poderíamos desenvolver nossas futuras habilidades precocemente. Eu queria ser uma engenheira, mas uma engenheira um tanto quanto... diferente.

Gaiden não tinha uma de suas patinhas, ele foi atropelado por um caminhão de produtos alimentícios, mas por pura sorte permaneceu vivo, perdendo unicamente uma de suas patas traseiras. Gaiden era muito brincalhão. Corria muito! Eu quis veemente velo novamente como ele era antes. Eu não havia pensado antes nisso, mas cachorro também entra em depressão. E fiquei surpresa! Gaiden estava entrando em uma. Nós decidimos levá-lo ao veterinário e ele deu de volta uma nova escolha a Gaiden: uma prótese com rodinhas.

Page 10: Livro - CFM

10 C A R E S F O R M E

Eu fiquei maravilhada ao ver como Gaiden voltou a ser como era antes. Claro que demorou um pouco para ele aceitar e se acostumar à nova pata, mas o importante foi que tudo deu certo no final das contas. Por mais bons advogados que fossem meus pais, não conseguiriam processar o motorista do caminhão. O culpado não era ele. O culpado fui eu, que deixei a porta da frente aberta. A partir daquele dia eu prometi a Gaiden, um cachorro, que trabalharia o resto de minha vida desenhando próteses para pessoas desmembradas, assim como animais. Com essa perspectiva, fui estudar na Alemanha, que exportava cerca de 35% da produção mundial de próteses para todas as partes do mundo. Claro que ainda cursava o segundo ano do colegial, mas estava um pouco mais próxima de realizar o meu sonho.

— Como foi de viagem? — mamãe perguntou quando terminou de me servir um pedaço de bolo. — Como está Riza?

— A viagem foi um pouco cansativa, mesmo que eu tenha dormido durante todo o percurso — rimos juntas. — Riza está bem, e está noiva!

— Noiva? — mamãe pareceu surpresa. — Mas quem diria, hein! E quem é o felizardo? É um homem de boa índole?

— Certamente — falei com a boca cheira de farelos. Não tinha bons modos quando estava a comer em casa. — Ele é um cientista do exército alemão.

— Cientista? — ela se surpreendeu. Não sei se pelo fato de esse ser o sonho de Ed ou se ela pensou que

Page 11: Livro - CFM

dezembro 11

Roy, noivo de Riza, realizava experimentos com os prisioneiros do exército alemão.

— Calma — ri da sua cara um pouco. — Ele é uma boa pessoa, e trabalha buscando novas fontes de conhecimento a respeito do desenvolvimento do bem estar e conforto dos prisioneiros. Não é uma contradição? É como se ele trabalhasse do lado oposto, contra o governo. Mas na verdade, a ciência diz que com boas condições de vida eles podem se tornar boas pessoas. Riza tem visitado muito ele no setor de trabalho e me contou que lá chega a ser um ambiente bastante agradável. Os reeducandos, como são chamados os prisioneiros, fazem artesanatos. Roy tem feito um bom trabalho.

— Muito curioso — ela tentou absorver a informação.

— Quando eu era menor pensava no termo cientista ligado a vidraçaria e explosões de laboratório. É incrível como até uma cozinheira pode ser uma cientista, se estiver buscando conhecimento em dados empíricos.

— O homem não consegue se conformar com o que tem, ele sempre vai buscar novos conhecimentos — mamãe sorriu um sorriso gostoso.

Riza era a irmã caçula da minha mãe, e eu não poderia contar que ela está noiva de um general do exército. Ela sabia muito bem como alguns deles poderiam ser bem violentos e temia pela irmã. Roy era um cara legal, mas seria difícil explicar a mamãe. A própria Riza pediu para que eu inventasse algo, que

Page 12: Livro - CFM

12 C A R E S F O R M E

não contasse nada ainda. Queria se casar primeiro, para que ninguém pudesse intervir depois.

— Querida!

— Papai! — eu corri para o seu abraço. — Papai, morri de saudades de você.

— Papai também sentiu muita saudade de você — ele retribuiu o abraço, apertando-me muito forte contra ele. — Olha só como você cresceu! Já está uma mocinha.

Ele me soltou e fez com que eu desse uma volta para ele.

— Não está namorando, está? — perguntou desconfiando, cerrando os olhos. — Eu tenho que ficar de olho nos marmanjos.

Eu estava saindo com um cara, mas não contaria nada para o meu pai. Ele sempre foi muito paranóico e dizia que eu só me casaria aos 30 anos.

— Não — afirmei com convicção. — Não estou saindo com ninguém.

— Daqui a trinta minutos estou indo buscar Ed na estação, não quer ir com o papai? Aposto que ele também deve estar com saudades de você.

Mamãe parou de imediato os seus afazeres. No momento, ela enchia uma xícara com café, e esta se espatifou no chão. Ed e Winry em uma mesma frase não combinavam. Se por um lado ela tentava manter

Page 13: Livro - CFM

dezembro 13

uma certa distância entre nós dois, papai teimava em nos aproximar.

— Não sei... — tentei desvencilhar-me ao máximo, mas não queria ser rude com o papai. — Eu estou um pouco cansada.

— Talvez não seja uma boa ideia, querido — mamãe enfatizou na última palavra. — Winry deve estar querendo tomar um banho.

— Não podemos deixar esses dois separados para sempre.

— Você sabe que Ed não gosta de Winry! Por que insiste? Quer piorar o estado do meu bebê? — ela praticamente gritou. Mas depois pareceu se arrepender do que disse. — Winry, eu...

— Eu estou mesmo cansada, papai — forcei um sorriso. — Vou subir, tomar um banho e dormir um pouco, ok?

— Não, Winry! — ele me puxou pelo braço. — Você vai comigo!

Eu não sabia de muita coisa. Sabia que Ed não falava comigo, e que mamãe tentava nos manter afastados justamente por esse motivo. Talvez ele tenha dito para ela o quanto me odeia. O motivo, entretanto, eu não sabia. Chamava ele constantemente de baixinho, mas isso faz tanto tempo. A última vez que nos vimos ele já estava até um pouco mais alto. E como disse, fazia isso unicamente porque ele parecia não gostar de mim. Hoje acho que eu queria chamar a sua atenção

Page 14: Livro - CFM

14 C A R E S F O R M E

de alguma forma, eu queria que ele gostasse de mim, e essa foi a única maneira que encontrei para solucionar o meu problema. Mas parece que acabou nos afastando ainda mais.

— Sua mãe é meio paranóica — papai disse no meio do caminho, quando ainda estávamos dentro do carro. — Ela acha que você pode machucar o Ed de alguma maneira. Nós sofremos muito com aquela criança, Winry. Eu espero que você a perdoe algum dia, ela só está tentando proteger o Ed, mas não percebe que está te machucando também — ele pareceu triste. — Mas não se preocupe, ela também te ama. E muito! Acho que isso tudo faz parte da armadura quem montou para ela, sabe? Foi uma surpresa e tanto quando soubemos que Ed era autista. Nós desconfiávamos, mas não quisemos acreditar. Foi duro aceitar a doença. Nunca é fácil.

— Não se preocupe, papai — eu abaixei a cabeça, refletindo. — Eu entendo. Só não entendo porque Ed me odeia tanto.

— Não é que ele te odeie — ele tentou se explicar, e pareceu meio embaraçado. Percebi que ele não queria tocar nessa parte do assunto e tentei desvencilhar, mas foi em vão. — Ed é uma criança autista, ele mal consegue se comunicar com todas as pessoas da família. Eu acho que o fato de você ser... — ele hesitou por um momento, mas prosseguiu — adotada ajudou um pouco. Acho que ele te vê como se não fosse da família, mas não é como se ele te odiasse por isso.

— Entendo.

Page 15: Livro - CFM

dezembro 15

Permanecemos em silêncio durante o resto do percurso.

— Veja! — ele desligou o carro e apontou assim que chegamos à estação. — Ali está Ed.

Page 16: Livro - CFM

CAPÍTULO II

MágoasNossos risos levitavam até a copa das árvores naquela manhã de domingo. Fechei os olhos e escutei o canto dos pássaros.

– Eu pensei em sanduíche de pasta de amendoim, espero que não se importe, Winry. Você não gosta muito, mas o Ed...

– Não se preocupe, Al.

– Você está tentando agradá-lo? Para ele começar a falar com você?

– Talvez...

Meu pai se virou com atenção dividida para abrir a porta do carro. Seus olhos pousavam em mim e Ed, a aflição em seu rosto. Ele estava tão nervoso quanto eu. Espiando a reação de Ed ao me ver pelo canto dos olhos. Em algum lugar do seu coração, ele queria que seu primogênito me aceitasse como da família. Ele estava fazendo de tudo por isso.

— Ed! Como foi de viagem? Está cansado? — papai não hesitou em pegar suas duas malas pousadas em

Page 17: Livro - CFM

mágoas 17

casa lado de seu corpo. Ed não respondeu. — Eu imagino que esteja cansado. Vamos para casa, sua mãe estava pensando em torta de limão para a sobremesa. Ela sabe que você adora.

Ed prosseguia em silêncio, acompanhando a mim e a papai de uma distância de sete passos em direção ao carro estacionado poucos metros da estação. Sempre foi muito calado e não falava com o papai ou a mamãe perto de pessoas que fossem uma ameaça para si. Eu entendia que o autismo era uma alteração no comportamento, na comunicação e na capacidade de socialização. Só não entendia porque eu era considerada uma ameaça para ele.

Papai colocou as malas na parte traseira do automóvel e voltou para o acento do motorista. Ed era sempre muito reservado e sentou no Banco de trás, enquanto eu me sentei ao lado do papai.

— Coloque o sinto de segurança, Ed — ele o olhou rapidamente pelo espelho do retrovisor. — Você também, Winry.

— Ah! — eu estava encarando Ed por um bom tempo, esqueci das medidas preventivas de acidente de trânsito. — Desculpe.

Ele estava diferente das outras vezes. Não havia mudado muito, mas estava diferente. Era o mesmo Ed se sempre, mas em um corpo de dezoito anos. Deixou os cabelos loiros crescerem e chegarem à altura de sua clavícula. Seus olhos prosseguiam com o seu dourado reluzente habitual e a cor de sua pele estava mais intensa, seu corpo mais robusto. Uns tempos fora

Page 18: Livro - CFM

18 C A R E S F O R M E

de Japão foram bons para ele, fisicamente e esteticamente falando.

Outra coisa que notei foi a forma como se desligou do mundo: com fones de ouvido. Eu nunca o vi escutando música desde a última vez em que fomos a um concerto de Alfonse.

— A mãe de vocês e eu estávamos pensando em viajarmos depois do natal. Umas férias de ano novo cairiam bem. Que tal Havaí? — ele perguntou depois de um tempo em silêncio constrangedor pairando, sempre com a atenção na estrada. — O Japão tem estado tão frio nesse ano. Outro dia tive dificuldades para tirar o carro para fora.

Ed encarava os blocos glaciais de gelo encontrados na estrada, através do vidro do carro. Os fones de ouvido também não ajudavam muito, ele não estava prestando atenção na conversa que se desenrolava. Nem parecia estar interessado.

— Parece ótimo — respondi para não deixar papai constrangido. — É uma pena que Al não poderá ir conosco. Será que não temos como contatá-lo e implorar um pouquinho? — sorri baixinho, sendo simpática.

— Nós podemos tentar — ele sorriu de volta. — Nos primeiros dias do mês de janeiro sempre há eventos em que a academia é convidada a se apresentar. Não quero que sejamos egoístas para Al. Ele não deve perder as oportunidades, mas talvez haja alguma vaga na sua agenda. Por que não?

Page 19: Livro - CFM

mágoas 19

— Legal — eu me afundei no banco e prosseguimos em silêncio por mais uns três ou quatro minutos.

Papai cortava os carros a nossa frente com muita habilidade, mas nem sempre foi assim. Quando eu tinha quatro anos de idade ele perdeu o controle e colidiu o carro com uma árvore quando viajávamos para a casa da vovó, no interior do Japão. Ela cultivava cerejeiras e laranjas e eu sempre adorei bolo, sucos e tortas que usassem a fruta no seu preparo. Al bateu a cabeça em uma superfície plana no banco traseiro e ficou três dias inconsciente. Papai tem trauma desde aquele dia e pára o carro a cada meia hora de viagem para verificar o motor.

Eu pensava que a sua paranóia tinha se intensificado quando ele parou subitamente o carro no posto de gasolina.

— Fiquem aqui, crianças. Eu vou até aloja de conveniência e não me demoro muito. A mãe de vocês me pediu algumas coisas e as filas dos supermercados devem estar enormes — ele saiu fechando a porta e me dando um olhar cúmplice para cuidar de Ed enquanto estivesse fora. Parece que só naquele momento Ed pareceu voltar para a realidade e abandonar por um momento os fones.

Todavia, ele voltou rapidamente ao seu novo vício. A música estava tão alta que eu poderia ouvir que era algum tipo de rock ou metal pesado. O mesmo gesto tomou conta de seus dedos das mãos. Sempre que ficava nervoso ele começava a brincar e entrelaçar os indicadores, e eu era claramente o motivo do seu constrangimento. Mamãe não nos disse nada sobre

Page 20: Livro - CFM

20 C A R E S F O R M E

precisar de alguma coisa, papai estava nos dando um momento de privacidade. Ele sabia que quando chegássemos em casa mamãe não deixaria eu me aproximar muito de Ed. Por mais que eu soubesse que ela me amava, Ed era seu filho legítimo e que precisava de cuidados... especiais.

O seu IPod caiu no chão.

— Deixa que eu pego- — de repente ele estava tão perto de mim que eu engasguei. Eu me abaixei para pegar seu novo brinquedinho, mas nossas cabeças colidiram em um choque rápido e ele se afastou de mim como um gatinho assustado que fugia de um Rottweiler. — Desculpe, não foi minha intenção te assustar.

Enviei-lhe um sorriso rápido e afetuoso.

Ele não estendeu a mão para pegar o IPod, então o deixei perto dele. No porta objetos do carro do papai eu encontrei um livro que certamente seria da mamãe. Comecei a folhear algumas páginas, mas não consegui deter a minha atenção nas linhas por muito tempo. O clima estava tão tenso ali dentro! E papai estava demorando demais para voltar, mais do que eu pude imaginar que demoraria.

— Eu vou verificar porque a demora do papai e- — eu tentei abrir a porta do carro, mas a mão de Ed circundou o meu punho esquerdo, impedindo-me. A mão dele era grande. — Você não quer ficar sozinho? — ele não respondeu, não se mexeu, não fez nada. Apenas continuou me impedindo com a sua força, que, aliás, era muita. Quando foi que ele ficou tão forte? Ele

Page 21: Livro - CFM

mágoas 21

sempre foi tão magro e fraco. — Tudo bem, ele voltará logo. Eu vou permanecer aqui.

Eu me enrolei em volta de mim mesma, braços firmemente em torno de minhas pernas. Era uma postura puramente defensiva de uma criança, mas eu não conseguia me conter. O espaço era pequeno para a demonstração do meu gesto infantil, e se papai me pegasse com os tênis sujos sobre o tecido limpo de seu automóvel, eu receberia uma bronca nada gentil. Só que com aquele gesto talvez eu conseguisse mostrar a Ed como eu imaginava que ele se sentia perto de mim, ou talvez passasse a mensagem de que eu também não estava confortável com a sua presença.

— Faz tempo que não nos vemos. Você mudou um pouco, Ed — eu não esperei por uma resposta, escondi o rosto na franja bagunçada e nos braços entrelaçados na altura da patela. Assim eu conseguiria conversar um pouco com ele e o meu olhar não o deixaria intimidado. — Eu me diverti enquanto estive fora, aconteceu o mesmo com você? Como vão suas pesquisas? Eu espero que tudo esteja dando certo. Sabe... Papai está tentando forçadamente que nos demos bem, mas você não precisa se pressionar. Eu não vou forçar a barra, invadir o seu território... Apenas me dê um sinal e eu vou fingir diante dele. Com a mamãe está tudo ok, ela não me quer junto de você. Eu já lhe pedi perdão pela nossa infância e eu não sei se você aceitou, mas desculpe.

Papai bateu no vidro do carro me puxando para fora do meu transe. Encarei Ed por um curto intervalo de

Page 22: Livro - CFM

22 C A R E S F O R M E

tempo e lá estava ele de volta ao seu mundinho particular. Provavelmente os fieis fones de ouvido não permitiram ele ouvir uma reles palavra e foi melhor assim.

— Demorei muito, crianças? — ele trouxe consigo alguns enlatados. Identifiquei calda de cereja, cookies e cobertura para sorvete. Desde quando vende esse tipo de coisas em uma loja de conveniência?

—xxx—

Eu subi as escadas que me levavam para o meu quarto com a apreensão me enchendo em partes iguais. Mamãe enchia Ed de beijos na cozinha. Ele endureceu na primeira tentativa, talvez por conta da minha presença no espaço. Resolvi abandonar a cena de demonstração de carinho por esse motivo. Papai veio no meu encalço e eu dei-lhe a desculpa de que queria tomar um banho quente e descansar. Desceria para o almoço apenas, tendo a ciência de que seria um momento silencioso e tenso. Só de pensar nisso meu estômago embrulhava e eu perdia totalmente algum vestígio de fome que pudesse me acometer.

Tirei os calçados quando abri a porta maciça de cor rósea. Tudo estava exatamente como eu havia deixado da última vez em que estive aqui, só que bem conservado, limpo e móveis polidos. Até mesmo os travesseiros estavam postos como eu gostava de posicioná-los, com alguns bichinhos de pelúcia que eu gostava de colecionar. Alguns eram até de países distantes, como o México, que fica no pedaço central do continente americano.

Page 23: Livro - CFM

mágoas 23

Eu estava cansada, resignada com a ideia de que seria rejeitada ou afastada do grupo familiar enquanto Ed também estivesse ocupando a casa. Eu até pensei em tirar férias em um período diferente, mas minhas tentativas de suborno aos professores foram em vão. Se quisesse ver meus pais teria que ser no período natalino. E eu até gostava da ideia, mas não gostava de ter Ed por perto. Ou melhor dizendo, de ter Ed me rejeitando por perto. Não era Ed que me incomodava, mas a sua rejeição e as investidas da mamãe em nos manter separados.

Cruzei as pernas e me posicionei no centro da cama com o notebook aberto em meu colo em um ângulo de noventa graus. Alguns emails e spam na caixa de entrada não me chamaram muito a atenção, mas um deles era um tanto quanto... inesperado.

– - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

De: [email protected]

Para: [email protected]

Assunto: Espero que não se incomode, mas consegui seu email

_____________________________________________________

Há 1 min

Oi

Desculpe por hoje. Eu estou em um processo que eu gosto de chamar de blocoterapia. Eu consigo me

Page 24: Livro - CFM

24 C A R E S F O R M E

comunicar por meio de palavras escritas com as pessoas. Vi que estava desesperada em manter um contato comigo, resolvi te dar uma chance. Não que eu te odeie, mas queria te pedir que não abusasse.

– - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

—xxx—

— Winry, querida. O almoço está posto na mesa, não vai comer?

— Já estou indo, mãe. Vou escovar os dentes e desço em pouco menos de cinco minutos.

Estava tirando um cochilo quando mamãe atravessou os limites que a porta do quarto propunha. Ela era o tipo de mãe que não pedia licença ou batia na porta antes de entrar, ela simplesmente entrava sem qualquer ressentimento. O email de Ed me deixou um pouco confusa e agitada, e ele não me deu uma resposta quando lhe mandei um segundo. Ele estava tentando brincar comigo ou foi tudo um sonho? Chequei mais uma vez rapidamente e o monitor do celular disse que sim, aquilo fazia parte da minha realidade. Bastava eu aceitar ou ignorar.

— O que vai fazer hoje? — mamãe perguntou.

— Não sei... — um sorriso torto. — Tem algo em mente, dona Nana?

Page 25: Livro - CFM

mágoas 25

— Vou sair e a casa... Bem... — ela pareceu ficar um pouco encabulada. — Vamos almoçar. Esqueça, querida.

Eu sabia bem o significado oculto naquelas palavras incompletas. Papai iria trabalhar, ela iria sair e se preocupava em deixar Ed e a mim sozinhos naquela casa enorme. Era como deixar um lobo e um cordeiro convivendo juntos sem o pastor para observar o seu rebanho. Eu, o lobo. Ed, o cordeiro.

Escovei os dentes pensando no paraíso que era estar de volta ao seu aconchegante lar e ver dias alegres se transformarem em um inferno onde você era o demônio com direito a chifrinhos na cabeça. Não que o meu cabelo fosse um bagaço, mas os fios que se arrepiaram enquanto eu dormia formavam um emaranhado muito estranho no topo da minha cabeça, lembrando pequenos chifres. Achei minha paranóia muito doente, mas não pude deixar de sorrir com os meus pensamentos irônicos e cômicos.

Na mesa, um silêncio constrangedor se seguiu. Os sons dos talheres batendo na louça eram ensurdecedores e o pacato bairro onde vivíamos de uma hora para outra passou a ser muito movimentado com carros com roncos abruptos de motores ligando.

Papai abriu a boca para fazer um comentário, mas pensou duas vezes e continuou calado.

— Brócolis, querido? — mamãe perguntou gentilmente a Ed.

Page 26: Livro - CFM

26 C A R E S F O R M E

Eu pude ver seus lábios se mexerem e ele sibilar baixinho alguma coisa que eu não pude identificar o que era. Se notasse que alguém dava muita atenção ao que dizia, sua voz sumia.

— Cada vez mais, cientistas que pesquisam o cérebro humano descobrem que a genética exerce um papel muito maior no comportamento do que se pensava — eu dizia enquanto colocava um pouco de purê de batata no prato. — Você é cientista, não Ed? Talvez você pudesse seguir essa linha de pesquisa.

— Winry, por favor — mamãe pediu pacientemente. — Não na hora do almoço, não depois de tanto tempo...

— Não implicar com Ed? — completei sugestivamente. — Não é isso que estou fazendo. Estou só tentando... me enturmar. Tentando manter uma conversa, um diálogo. Não sei se percebem, mas me afastar do vínculo familiar também me machuca. Não é só o Ed que se machuca por algo nessa família.

— E eu também, quando tenta ser uma filha inconveniente — mamãe começou a chorar, mas as suas lágrimas tinham um leve toque de falsidade. Cheguei a me questionar se ela realmente me amava, e se tinha alguém que nutria por mim um sentimento dentro daquela casa. Claro, com exceção do papai, que tentava com esforço me socializar dentro da família dona do meu sobrenome.

— Vamos apenas comer em silêncio, sim? — papai sugeriu, aplacando mamãe com um tapinha leve nas costas. — O almoço está uma delícia. Não vamos

Page 27: Livro - CFM

mágoas 27

estragar esse momento em família. Onde está o espírito natalino?

— Momento em família? Talvez eu deva me retirar da mesa, então. Eu não pertenço a essa família — eu me levantei bruscamente da mesa, deixando um prato ainda repleto de ervilhas e arroz.

— Winry, sente-se — disse meu pai com um tom autoritário de voz. — Você já não é mais uma criança. Entenda.

— É claro que eu entendo. É por entender que eu estou voltando para onde não deveria ter saído. Esqueça a história de espírito natalino e tente se lembrar quando foi que alguém me mostrou o espírito materno.

— Pelo amor de Deus! — mamãe me mostrou olhos intensamente vermelhos. Ed começou a enrolar os dedos na mesma atitude nervosa de antes.

— Winry, volte. — Dei um passo atrás, sem entender, magoada por papai estar gritando comigo numa hora como aquela. Eu estava machucada, e nem ele parecia perceber mais isso.

— Eu queria saber o que dizer, mas não sei. Nem tenho certeza do por que da minha vinda até aqui.

O problema era que eu estava disposta a me manifestar contra a forma que fui criada e tratada durante toda a minha infância e adolescência, e foi assim que fui o motivo da primeira grande briga em

Page 28: Livro - CFM

28 C A R E S F O R M E

família. O significado dessa palavra, família, estava perdendo o sentido para mim.

Eu corri através das escadas e cheguei ao quarto procurando pelos meus pertences espalhados. A mala estava debaixo da cama e não foi difícil achá-la de imediato. Joguei alguns conjuntos de roupas em questão de pouco tempo dentro de seu espaço; o suficiente apenas para ficar em um hotel durante os dias até o próximo vôo de volta para a casa de Riza.

— O que está fazendo, Winry? — meu pai adentrou o quarto colocando as mãos no topo da cabeça, balançando em negação. — O que está acontecendo?

— Cansei de fingir. Apenas isso.

— Fingir o quê?

— Que somos uma família feliz e unida. Eu sou um estorvo para vocês, não me diga que não. Mamãe disse, não disse? Eu não sou mais uma criança. Então, tenho como identificar onde sou bem vinda. O que é verdade e o que é mentira no olhar das pessoas. Aqui, papai... Eu não serei bem vinda.

— Você está imaginando coisas. Você está de cabeça quente. Volte lá para baixo e termine o seu almoço.

— Eu posso comer algo por aí — enxuguei com as costas das mãos algumas lágrimas tímidas que pingavam do canto de meus olhos. — Eu vou ficar bem.

Page 29: Livro - CFM

29

CAPÍTULO III

Três batidas e uma respostaOuvi papai descer os degraus da escada para ter uma conversa com mamãe lá embaixo. Meu coração se apertou, como se não pudesse comportar tanto sangue para bombardear para o corpo. Eu chorava baixinho enquanto os ouvia discutir por minha causa e Ed, e a vontade de ir embora só aumentou.

Os anos passados não foram muito diferentes, mas os cenários se modificaram. Agora, podíamos incluir brigas nos nossos futuros natais, quando Ed e eu voltássemos para casa depois de um ano inteiro de muito estudo. Tudo por conta do meu mau comportamento. Eu não vejo a situação assim, mas eu tento entender que é assim que mamãe vê, mesmo que para mim, isso seja apenas o estopim dos anos que eu pude aguentar.

Quando você cresce, você passa a ver o mundo por outras perspectivas. Você muda de opiniões. O que você achava belo quando criança, pode não ser mais tão belo na adolescência e pode se tornar horrível na vida adulta e terrível na velhice. Até mesmo as nuvens do céu mudam a sua conformação, então conosco,

Page 30: Livro - CFM

30 C A R E S F O R M E

que somos uma fábrica metabólica, a coisa não seria muito diferente.

Agora, estava eu chegando à conclusão de que não quero mais ser tratada como se fosse a ovelha negra da família, eu quero mudanças, eu quero mais amor, eu quero a minha inserção, eu quero compartilhar dos segredos do meu irmão, eu quero almoçar com o papai e a mamãe. Mas tudo parece ser apenas um mar de “queres” e uma gota muito rala e frígida de “você não pode”. E tudo isso vai me definhando aos pouquinhos.

Então, você olha para um lado tentando buscar novos caminhos que te levem aos velhos destinos. Caminhos mais floridos, dessa vez. Que tenha o cântico dos pássaros, porque você cansou do lobo mau. Saber que eu não consigo achar o caminho que me leva ao centro do coração da família Rockbell me asfixia de tal forma que me sinto presa em um elevador velho e quebrado, que não me leva para a superfície, que não me deixa respirar.

Papai voltou depois de muitos tons altos de voz lá embaixo.

– Você não precisa voltar – ele começou a mexer nos cabelos bagunçados no topo de sua cabeça freneticamente. Lembra até um pouco o Ed quando está nervoso. – Vamos passar o natal em família, como todos os anos.

– Eu sei o quanto quer nos ver unidos. Você tem lutado muito por isso.

Page 31: Livro - CFM

três batidas e uma resposta

31

– Se sabe, Winry, não nos deixe – ele me encarou com olhos pidões. – Sua mãe tem uma concepção forte, tente relevar só dessa vez. Vamos mudá-la aos pouquinhos... juntos. O que você me diz?

– Digo que estou cansada, por isso o surto na hora do almoço – bufei largando um caderno de anotações ao meu lado. Estava rabiscando coisas. – Eu queria me desculpar pelos transtornos. Mas também queria pedir que tente enxergar a realidade.

– Você está magoada. O seu coração está te mostrando as coisas que lhe convém – ele se sentou na beira da cama, para conversamos. – Deixe eu ser a sua razão. Essa casa também é sua, essa família é sua, e a mãe também é sua.

– Eu não tenho motivos para reclamar da mamãe. Ela sempre me deu amor e nunca me tratou como se não fosse sua filha. Mas a sua negligência em me distanciar de Ed me abala. Às vezes acho que ele nunca se aproximou de mim por ela ter nos deixado afastados por muito tempo.

– Eu acho que você era muito pequena para lembrar, mas nem sempre foi assim – ele passou as mãos alisando os meus cabelos, todo compreensivo. Papai me mima tanto que penso que ele sempre quis uma filha. Agradeço por isso.

– Você poderia refrescar a minha memória – sorri. Estava puxando lembranças da minha infância e sempre acaba da mesma forma: do meu pai

Page 32: Livro - CFM

32 C A R E S F O R M E

lembrando-se do quanto nós éramos travessos e acabávamos estragando o frango na ceia de natal.

– Ed sempre foi um pouco mais fechado para você. A sua mãe apenas achou que ele se sentia mal em te ter por perto. Ela já me confessou isso algumas vezes. Então você passou a agir de uma forma egoísta com ele, e ela teve a sua certeza.

Ah, claro... O bullying.

– Eu era mesmo crianção. Mas eu já sou grandinha – murmurei fazendo bico.

– É sim – papai me abraçou. – É a mocinha do papai. Vamos rechear o frango esse ano? Vamos abrir os presentes antes da noite de natal? Vamos juntos encarar os problemas familiares de frente e tentar nos unir?

– Vamos sim – disse sorrindo, porque eu amava aquele homem. Ele era, definitivamente, o melhor pai do mundo.

—xxx—

Eu me sentei em frente ao meu laptop e passei a procurar maneiras que me ajudassem nesse fim de ano. Visitei páginas de relacionamento e busquei por depoimentos de pessoas que se relacionaram com autistas. Se uma pessoa conseguia manter uma relação amorosa com um portador da síndrome, não seria muito difícil me aproximar de Ed com intenções de amizade. Tanto que ele mesmo o fez, mas eu queria saber como reagir diante da sua blocoterapia.

Page 33: Livro - CFM

três batidas e uma resposta

33

Se eu mostrasse a mamãe que nós conseguiríamos nos dar bem, talvez ela deixasse a paranóia de nos manter afastados de lado. Lamento por ter feito isso apenas depois de muitos anos convivendo da mesma forma e com os mesmos problemas.

Pus a palavra blocoterapia no Google e encontrei vários resultados.

Alguns muitos satisfatórios, outros nem tanto. Os que falavam sobre o autismo eram algo muito amador e visto por um ponto muito biológico e psíquico sem explicações coerentes. Assim como também vi preconceito disseminado por muitas páginas que acessei, matérias falando, por exemplo, que autistas não têm sentimentos. O maior mito de todos os tempos. Independente da patologia ou distúrbio, o ser humano tem sentimentos, sejam eles bons ou não. Acontece que os autistas não expressarem da mesma forma que uma pessoa normal, mas não significa que não sintam nada como um afeto. Eles querem ter uma pessoa de confiança por perto, mas não gostam de demonstração de afeto como beijos e abraços. Complicado, mas com a convivência, você acaba se acostumando.

De todos esses anos que passei com Ed e conhecendo sobre o mundo dos autistas, eu nunca ouvi falar em nada parecido com blocoterapia. A primeira vez que ouvi essa palavra foi exatamente hoje, por um email. Mas achei muito interessante o que diziam sobre essa terapia na internet. Os autistas têm dificuldade na comunicação e interação social, a técnica consistia em fazer eles se comunicarem através da escrita,

Page 34: Livro - CFM

34 C A R E S F O R M E

geralmente em um bloco de papel, que consistiria o meio de comunicação. Fiquei um pouco orgulhosa quando vi que a ideia surgiu de um centro de atendimento ao portador de autismo e que o criador da técnica foi Edward Elric Rockbell, um portador da Síndrome de Asperger.

A Síndrome de Asperger é uma forma mais branda do autismo. Ela se diferencia das outras formas por não afetar a capacidade cognitiva e intelectual do portador. Sua capacidade de falar e de entender ficam preservadas, todavia, o portador ainda apresenta a dificuldade de interagir com outras pessoas. Algumas pessoas confundem esses portadores com pessoas essencialmente tímidas. Muito deles são, inclusive, muito inteligentes, com QI muito alto. E adivinha? A maioria segue as áreas exatas ou biológicas, sendo cientistas. Eles têm interesses muitos específicos e intensos. Alguns estudiosos afirmam que grandes personalidades da História possuíam fortes traços da síndrome de Asperger, como os físicos Isaac Newton e Albert Einstein.

Eu passei um pedaço da tarde ainda procurando por pessoas na internet que conseguiram consolidar um relacionamento com autistas. Eu era criança demais para fazer isso antes, mas agora que já estou com alguns anos, posso tentar, e a internet é um livro aberto. Há muita coisa incerta também, mas você pode encontrar coisas muito boas e que irão te ajudar muito.

Eu encontrei depoimentos em um site de relacionamento de mulheres que diziam ter um

Page 35: Livro - CFM

três batidas e uma resposta

35

relacionamento normal com homens autistas — o distúrbio atinge o sexo masculino em sua maioria —, porém não com a mesma intensidade e paixão. Essa parte não me interessava, mas eu queria saber se era possível algo assim com um autista que você conheceu há poucos meses. Geralmente eles se dão bem com pessoas que o acompanham desde o berço. Tem de se ter muitos anos para ganhar a sua confiança. Se elas conseguiram isso em pouco tempo, eu também conseguiria firmar com Ed uma amizade. Eu não passei a vida toda me dando bem com ele, então seria como se conhecêssemos há meses. Usar a mesma tática talvez funcionasse bem, e eu resolvi tentar.

Deixando a internet um pouco de lado, eu procurei por um bloco de papel na gaveta da minha cômoda e decidi escrever alguma coisa.

“Oi. Então... isso aqui funciona mesmo?”

A casa jazia um silêncio apaziguador e eu tive a certeza que, depois de muita briga, papai convenceu a mamãe para deixar a casa comigo e Ed. Eu caminhei pelos corredores do primeiro andar e parei em frente ao quarto de Ed, que ficava logo ao lado do quarto do papai e da mamãe. Dobrei a página arrancada do bloco e dobrei em quatro partes e passei por debaixo da porta. Dei três batidas e sentei no chão esperando por uma resposta. Depois de algum tempo, ouvi mais três batidas e o papel sendo empurrado de volta para mim com a resposta que eu tanto ansiava.

“Funciona. Oi.”

Page 36: Livro - CFM

36 C A R E S F O R M E

Eu fiquei muito inquieta com a resposta e o meu corpo se encheu de ansiedade, que tomou todas as partes. Eu nunca tinha estado em qualquer coisa próxima de uma situação como esta. Ed estava falando comigo! Não da maneira que eu gostaria que fosse, mas depois de todos esses anos, estávamos estabelecendo um contato. Eu fiquei muito eufórica e feliz, a vontade era de abraçá-lo e sei lá... pedir desculpas por todos esses anos. Eu vi nisso uma oportunidade de me reintegrar à minha família que tanto amo.

“Eu não sei bem o que dizer aqui, mas estou feliz que tenha decidido falar comigo.”

Eu dei mais novas três batidas e fiquei esperando por uma resposta ainda mais nervosa do que há poucos segundos atrás. Ela logo veio.

“Isso também é novo para mim.”

A coisa era nova para ele, mesmo tendo sido ele que teve a ideia. Acho que ele se referiu à novidade de interagir comigo. Essa última frase que ele escreveu me encheu de inseguranças, mas também de expectativas. E expectativas boas! Mesmo receoso, decidiu falar comigo e isso é um enorme passo para um autista. Confesso que lágrimas quiseram brotar em meus olhos. Ed estava me dando uma oportunidade, mas mamãe não. O pensamento me deixou triste, mas impulsionada a dar com precisão esse novo passo. Iria mostrar que conseguiria mudar ao ponto de até mesmo Ed notar a diferença.

Page 37: Livro - CFM

três batidas e uma resposta

37

“Me desculpe por hoje. A mamãe e o papai brigaram por teimosia minha e você ficou nervoso.”

Três batidas e poucos segundos depois:

“Eu não quero falar sobre isso. E sobre a blocoterapia... Eu não consigo ficar nela por muito tempo, então é melhor você ir embora. Entenda que não estou te expulsando, Winry.”

Eu entendi de imediato. Por ter um irmão austista, mesmo que você tenha pouca ou até mesmo nenhuma interação com ele, você está sempre ciente das limitações de um portador. Com a resposta, eu me despedi e voltei para o quarto prenha de esperanças.

“Obrigada pela oportunidade, Ed. Estou muito feliz! Até uma próxima vez.”

—xxx—

Eu passei o restante da tarde navegando nas redes sociais com um bendito sorriso estampado no rosto que não me largava. Eu falei com Riza pelo facebook e ela ficou feliz pelas novidades.

Quando o relógio indicou dezoito horas eu tomei um banho e me aprontei para o jantar. Hoje quem ficou responsável pelo trabalho foi Nana, uma amiga da família que era paga para fazer alguns serviços domésticos de vez em quando. Eu a recebi com um beijo na bochecha e ela me cumprimentou cariosa, dizendo o quanto eu tinha crescido desde a última vez em que estive aqui.

Page 38: Livro - CFM

38 C A R E S F O R M E

– Nana, o que você fará para o jantar? Quer alguma ajuda? – perguntei me encostando à fruteira ao lado da pia, mordicando uma maçã suculenta e vermelha.

– Obrigada, menina Winry. Não precisa – ela deu o seu sorriso simpático em resposta, cortando alguns legumes em uma tábua. – Farei um ensopado. Espero que ainda goste.

– Está brincado?! Eu adoro! Tudo o que você faz fica bom, Nana. Ainda mais ensopado.

– Você está tão radiante! Aconteceu alguma coisa? – ela expressou um olhar malicioso e eu sorri corando. Era algo muito inusitado ter uma senhora de seus cinquenta quase sessenta anos sorrindo de uma forma maliciosa. – É algum gatinho da escola?

– Nana! – repreendi e ela começou a gargalhar baixinho. Nisso, mamãe entrou na cozinha com algumas sacolas:

– Nana, oi – ela cumprimentou Nana e não olhou para mim, como se eu fosse um deslumbre de um fantasma que não poderia ser visto. – O cheiro aqui está muito bom. Eu vou subir e tomar um banho, já desço.

– Está acontecendo alguma coisa? – Nana perguntou preocupada quando mamãe ultrapassou os limites da escada para o primeiro andar.

– Você reparou? Ela está me evitando – dei de ombros sentindo uma dor interior... na alma, no coração. Eu não sabia bem onde, só que doía.

Page 39: Livro - CFM

39

CAPÍTULO IV

Teus olhos douradosAs folhas das árvores enfeitavam as praças e campos no outono. O vasto tapete colorido deveria deixar as coisas mais amenas e alegres, mas aquele mês estava aparentemente muito morno. Os raios solares eram escassos e atravessam as altas nuvens timidamente, como um garoto com medo de tocar o rosto da sua namorada; do seu primeiro amor. Calmamente, ia surgindo. As donas de casa passeavam de mãos atadas com seus filhos pelas ruas jogando ‘bom dia’ para todos os lados e os sorrisos barulhentos delas poderiam ser ouvidos da próxima esquina do quarteirão. Talvez de algum modo, a época estivesse sendo mais alegre do que a primavera passada.

Em um dia qualquer do outono, a Senhora Rockbell, Trisha, aprontava seus três filhos para despachá-los para o colégio. Todo dia era o mesmo ritual, ela mesma gostava de vestir as suas crianças de quase mesma idade; todos menos de dez anos. O mais velho, Edward, de sete anos; a mais velha, Winry, de cinco anos. E não podemos esquecer-nos do simpático

Page 40: Livro - CFM

40 C A R E S F O R M E

Alfonse, que apesar de contar com apenas quatro anos, é muito inteligente. Aprendeu a ler aos três anos.

Trisha apertou as calças de Ed que chegavam até um umbigo e laçou seus sapatos organizadamente. — Prontinho.

Os outros dois já estavam prontos e portando as suas lancheiras, esperando pelo irmão no carro com o Sr. Rockbell, Hohenheim, que os levaria para o colégio. Quando o mais velho se juntou ao grupo, no banco traseiro, a criança do meio se deslocou um pouco para conversar com o ele, que se deslocou em resposta, indo para longe. Seu olhar era vago demais para uma criança. Ele era diferente. Ou talvez fosse apenas... especial.

—xxx—

Jantamos em completo silêncio e eu preferi ficar afastada, sentando na outra ponta e me sentindo muito desconfortável durante todos os minutos que passavam vagarosamente. O tilintar dos talheres de aço nos pratos de porcelana produziam um som menos barulhento do que os ponteiros do relógio de parede da cozinha, que estava roubando toda a minha atenção aguçada. Quando passados cinco minutos desde o início do jantar, eu já poderia dar uma desculpa dizendo que não estava com fome e subiria de volta para o quarto; mesmo que o ensopado de Nana estivesse mais delicioso do que o costume. Não sei se pelo ano que se passou ou por conta das suas habilidades na cozinha, que sempre eram afiadas e

Page 41: Livro - CFM

teus olhos dourados 41

dedicadas. Ou talvez porque eu estivesse realmente faminta, e por isso, me apressei em comer tudo o quanto fosse possível, sem me deter muito nas expressões de mamãe e de Ed. “Ok, eu não estou mais com fome. Não vou repetir o prato.” A desculpa seria essa.

—xxx—

Pela manhã, o dia começou muito melhor do que o anterior e me deu esperanças de que o Natal até que poderia ser agradável, por conta do vasto lençol branco e gélido de neve depositada na minha varanda. Estava nevando... Graciosamente.

Não pensei duas vezes quando procurei por roupas mais quentes na última mala, que ainda não havia sido desfeita. O frio estava bastante rigoroso desde ontem, mas só hoje pude ver a neve cair de forma tão nostálgica... Levando o meu pensamento para vagar a uns anos atrás, quando fazer boneco de neve ainda era divertido. Depois de muito bem agasalhada, eu pensei em passear lá fora antes do café da manhã. Ainda era cedo e talvez até Nana ainda estivesse em sua casa. Quase seis da manhã. Nós tomávamos café tarde, quase perto das oito. Em dezembro, estávamos de férias e mamãe e papai chegavam a hora que queriam em seu local de trabalho, que era uma agência coordenada pelos dois. Aposentados e pensionistas do INSS.

Eu peguei um punhado de neve quando pus meus pés para fora. O calor da emoção de voltar a ser criança por um momento quase fez a neve derreter em minhas mãos, se não estivessem com luvas de couro

Page 42: Livro - CFM

42 C A R E S F O R M E

grossas e espessas. Além de antitérmicas; então a temperatura de seu interior contrastava muito bem com o lado de fora, que estava em contato com o frio e o gelo. Eu me agachei por alguns segundos e fiz um desenho com um graveto que encontrei ali. Merry Christimas...

Mais alguns passos e eu me virei para ver minhas pegadas precisas no colchão de neve. Sorri com o efeito. Fiquei ali observando o espaço por um bom tempo. O jornaleiro teve dificuldades em voltar para casa, o vi passar com a bicicleta no topo dos ombros e acenei sorrindo.

— Bom dia! — Disse esbanjando alegria. — E boa sorte.

— Obrigado, Winry! — Ele acenou de volta. — Quando chegou?

— Ontem!

Eu pensei veemente em ficar ali por mais tempo, só observando... E tenho a certeza de que congelaria logo ou pegaria um resfriado — algo que eu gostaria muito de evitar —, então voltei para dentro e voltei com uma xícara de café fumegante, para espantar um pouco o frio e me manter aquecida. Nossa casa tinha uma espécie de piso de madeira muito alto, quase como um alpendre, que a neve não conseguia cobrir. Sentei-me ali.

Devaneios se perdiam com cada floco que caía e se misturava aos demais, era como uma terapia. O espaço era branco e eu gostaria que minha mente

Page 43: Livro - CFM

teus olhos dourados 43

estivesse em mesma sintonia, mas os fantasmas do passado, da minha infância, voltavam a me assustar sempre na mesma geada. Aquele natal onde Ed ficou coberto de neve e congelando no frio da noite, perdido por minha causa, ainda me assustava mesmo depois de passados dez anos. Depois de tudo, o incidente foi esquecido e eu fui consolada e perdoada depois de chorar muito, mas só hoje sinto o peso do que aquele dia realmente significou na minha vida. Foi muita coisa. “Ed, você está tremendo!”

Nós costumávamos sempre nessa mesma época do ano ir passar o mês inteiro na casa do lago, que congelava. Eu saí para brincar na neve, por entre as árvores, ainda era dia. Mamãe disse: cuide de Ed. Ele era autista, eu não imaginaria que ele estaria me seguindo. Ele sempre estava em seu mundo, nunca perto das pessoas e, especialmente, de mim. Os irmãos mais velhos sempre cuidam dos irmãos mais novos, eu culpei minha mãe por uma vida por ter colocado aquele peso nas minhas costas. Hoje eu não tenho responsabilidade alguma sobre ele, me foi tirado tudo. Eu não sei se isso foi bom ou ruim, mas sei que dói. Se eu tivesse cuidado de Ed naquela noite, talvez as coisas não estivessem como estão.

Tudo teria sido evitado se eu houvesse feito as coisas de um modo diferente. Eu só queria poder voltar no tempo e pegar alguns caminhos, ou até mesmo, estradas diferentes que me levariam a um destino muito diferente. O ideal seria recomeçar do zero, excluindo apenas os erros, e somente eles.

Page 44: Livro - CFM

44 C A R E S F O R M E

Mas, será que alguém consegue viver sem errar ao menos uma vez?

Qualquer irmã frustrada o consideraria como um peso inútil que só serviu para atrapalhar a minha vida, mas eu não consigo vê-lo assim. Eu não consigo nutrir um ódio pelo Ed. Eu consigo ver mudanças onde ninguém mais viu, e costumo acreditar nessas mudanças.

Ed!

Minha respiração saiu dos meus pulmões em uma corrida.

Ele estava ali o tempo todo, sentado na varanda, e eu só pude vê-lo depois de muito tempo. Dizem que quando a gente pensa muito em algo, deseja muito algo, esse algo acaba acontecendo ou aparecendo. Eu não me dei conta do quanto eu estava querendo vê-lo, mesmo que ele estivesse mesmo rondando e sondando terreno nos meus pensamentos. E de perceber que ele estava ali tão pertinho, poucos metros, fez meu coração disparar.

Automaticamente pensei nas frases trocadas na blocoterapia e me enchi de vontade de fazer aquilo outra vez. Falar com meu irmão depois de tantos anos e pela primeira vez era como estar em uma montanha russa onde eu desconhecia as curvas, mas adorava o brinquedo.

Antecipação e medo era um sentimento palpável atravessando o meu corpo, mas eu não desisti.

Page 45: Livro - CFM

teus olhos dourados 45

Me enchi de coragem e tentei olhá-lo de soslaio, percebi que seu olhar estava vago como sempre e ele o detinha em um ponto específico no chão. E mesmo assim, mesmo com o seu olhar escondido na franja bagunçada... Ele tinha um brilho diferente. Aqueles pontos brilhantes em sua íris dourada me encheram de coragem de tentar novamente. Corri para dentro e voltei acompanhada do meu bloco de notas.

“Bom dia, Ed.”

Foi a primeira frase escrita. Talvez ele não me respondesse... Talvez ele precisasse de privacidade para se libertar e escrever, mas eu precisava tentar. E teria que ser agora! Entreguei o bloco; empurrando e fazendo-o tocar na lateral do seu tênis.

“Bom dia.”

Ele escreveu depois de muito tempo, e o lápis contornava as letras bem lentamente, ele não tinha pressa alguma. Coisas realmente difíceis levam um tempo para se transformar em palavras. Ou talvez ele estivesse testando a si próprio. Ed era muito inteligente, ele não tinha nenhum déficit a nível de intelectualidade; mas a minha presença parecia restringi-lo bruscamente. Eu não gostava da ideia, mas aceitava e conseguia respeitar e me adaptar.

“Essa manhã está tão bonita. É possível ter algo mais bonito do que raios solares e os cânticos dos pássaros. A neve é serena.”

Ele respondeu:

Page 46: Livro - CFM

46 C A R E S F O R M E

“Eu consigo gostar bastante dessa época do ano.”

A sua resposta um pouco mais rápida do que a anterior me surpreendeu. Primeiro, porque ele estava começando a se adaptar. Mesmo que ele não me olhasse nos olhos, mesmo que ele fizesse de conta de que eu não estava ali e que ele estava apenas escrevendo em um bloco. Segundo, porque ele disse que consegue gostar bastante dessa época do ano e, consequentemente, da neve. Eu esperava que ele tivesse grandes traumas por conta da noite em que se perdeu, mas parece que a única amedrontada aqui sou eu... Ou talvez seja o medo de ele me rejeitar depois de ter acontecido aquilo.

“Você não tem medo da neve?”

Aquela pergunta poderia afastar Ed de mim para sempre, mas eu precisava tirar as dúvidas. Elas estavam entaladas na minha garganta e me impedindo de prosseguir.

“A neve é serena.”

Ele repetiu o mesmo que eu havia dito/escrito anteriormente e, eu poderia estar ficando louca ou iludida demais, mas pareci ver um deslumbre de um sorriso tímido em seus lábios. Aquela linha da boca se mexeu e eu sei disso! Pode não ter sido um sorriso, entretanto; mas ela se mexeu.

Ok, já eram três respostas. Será que a conta diária que ele conseguia suportar com a blocoterapia já tinha se

Page 47: Livro - CFM

teus olhos dourados 47

esgotado? Decidi descobrir. Não importava o quanto eu tinha, eu ainda me sentia carente de respostas.

“Quantas perguntas e respostas ou frases nós podemos trocar com a blocoterapia?”

Ele demorou um pouco para responder. Seus olhos estavam impossíveis de serem vistos, a sua franja estava muito grande. Eu pensei que tinha obtido minha resposta através do seu silêncio antes de ele escrever algo e empurrar o bloco de notas em minha direção com a ponta do pé.

“Vamos aumentando uma rodada gradativamente com o passar dos dias. Ah! Extrapolamos com essa. rs”

Entendi. Então eu não tinha direito a mais nenhuma, mas...

“Essa foi a nossa última rodada? Quer dizer que não poderemos mais nos falar durante o resto do dia?”

Ele não demorou tanto para responder. Eu contei vinte segundos na minha mente.

“Você pode escolher fazer todas as rodadas de uma só vez, ou então fazê-las em intervalos de tempo que ache melhor. Eu tentarei não me incomodar, mesmo que isso seja difícil. Extrapolamos de novo.”

Ele vai tentar. Ele está tentando. Nós estamos mudando juntos. Ele também quer isso, tanto quanto eu. Eu não estou sozinha nessa. Ele está trabalhando

Page 48: Livro - CFM

48 C A R E S F O R M E

nisso, ele realmente está. Ele está enfrentando isso e lidando com a situação, e ele não está fugindo, como prometeu que faria.

“Obrigada, Ed. De verdade, você não sabe o quanto isso é importante pra mim! Estão tão feliz...”

Eu só pude perceber que estava chorando em silêncio quando as lágrimas quentes produziram um choque término de impacto desprezível com a minha pele fria. Tão pouco tempo fazia que estava de volta à casa e já havia chorando tanto. Mas desta vez era diferente, as lágrimas eram de esperança, como se enchessem um recipiente que estava vazio há muito tempo.

Ed olhou pra mim, os seus olhos estavam bonitos. Havia uma mistura de sentimentos em seus olhos. Deus, eu quase morri! Ele estava fazendo contato visual comigo. Meus olhos estavam desfocados e eu perdi a minha linha de pensamento. Ele saiu correndo depois disso, muito velozmente desaparecendo da minha vista, mas deixando impregnados nos meus pensamentos aqueles olhos dourados e faceiros.

— Winry! Você estava mesmo aqui — Nana apareceu com uma bandeja de panquecas. — Eu cheguei há um tempo pela porta dos fundos. Venha, o café está na mesa.

— Sim, estou indo — limpei as lágrimas com as costas das mãos.

Page 49: Livro - CFM

teus olhos dourados 49

— Você estava chorando? — Uma expressão de preocupação tomou conta dela. Procurei acalmá-la rapidamente.

— Não. — Eu sorri, mais uma vez surpreendentemente não sentindo nada, exceto o conforto em saber que aquele tempo de dor era um passado distante. — Apenas vi um par de olhos lindos.

— Você está brilhando agora. As coisas estão indo bem?

— Apenas tenho medo de estar sonhando. Sim, as coisas estão indo bem.

—xxx—

A criança mais velha, porém mais retraída, passou todo o tempo na mesma posição, sem se mexer muito. A sua irmã de cabelos dourados até a altura dos ombros olhava para ele curiosa, tocava-o com a pontinha do dedo fino. Ela pensava que ele estava morto? Não, estava só testando o seu toque. Por que ele não fazia nenhum efeito? Ela era uma criança curiosa, e procurava por respostas. Respostas que os seus bichinhos de pelúcia, com quem costumava conservar, não lhe davam mais. O ursinho Teddy parecia não ser mais tão sábio. Mas quem, então, lhe daria aquelas respostas? Aquela menina procura por

Page 50: Livro - CFM

50 C A R E S F O R M E

respostas até hoje. Quem sabe um dia, de tanto procurar, ela as encontre.

Page 51: Livro - CFM

51

CAPÍTULO V

Testando limites— Eu fiquei um pouco triste ontem, sabe? — Nana disse enquanto enxugava uma pequena pilha de louças. — Você sempre repete o prato de ensopado. Pensei que estivesse ruim, e estava? Talvez eu precise rever os meus temperos... Andei fazendo uma nova mistura e é isso! Talvez não tenha dado em algo bom. Você achou muito picante? Eu coloquei umas porções de pimenta.

— Fala sério, Nana! — Minha boca era só migalhas de panqueca conflitando. — Não há nada que você não saiba fazer. Você cozinha divinamente! Eu só estava um pouco chateada...

— A senhora Rockbell? — Ela notou no meu olhar.

— Eu não sei... Talvez comigo mesma. Eu ainda estou revendo conceitos.

Apesar do rumo que a conversa estava tomando, o clima permanecia agradável na cozinha. Os flocos de neve continuavam a cair lá fora e a se chocarem com o vidro da janela, deixando o ambiente dentro de casa mais escuro e nostálgico. Eu me sentia tão bem em assim! Era como se todos os natais trouxessem consigo um clima de renovação que cobria os fantasmas do passado. Eles amedrontavam, porém não por muito tempo. Eu sempre pensei ter dentro de

Page 52: Livro - CFM

52 C A R E S F O R M E

mim o clima natalino e eu não iria deixá-lo morrer, principalmente em um ano onde eu gostaria de concretizar as renovações que o tempo propunha.

— Estou querendo ir às compras, quer ir junto? — Nana perguntou sugestivamente. Eu sabia o significado daquela pergunta. E, consequentemente, a minha resposta que estava quase saltando da ponta da língua. — Compras natalinas.

— Você ainda pergunta? — Eu terminei de limpar o prato, não deixando ali uma mísera migalha de trigo e ovos. — Só me deixe escovar os dentes e eu estarei pronta em três minutos. Há uns efeitos novos nos EUA que eu quero testar aqui no Japão. Eu tenho certeza que exportaram para cá aqueles pedacinhos do céu.

— Pedacinhos do céu? — Ela pareceu não entender, então eu expliquei:

— Sim! — Levantei da mesa saltitante, retornando à infância em algum lugar do meu coração aquecido. — São efeitos de natal. Esse ano eu quero enfeitar a árvore com Ed! E o papai... e... a mamãe, talvez.

— Mas você não participa da montagem todos os anos?

— Sim, eu começo de baixo, sempre da base — eu dei de ombros. — Mas esse ano eu gostaria de por a estrela no topo. Acima das nuvens.

— Ah! Os enfeites são nuvens? Nuvens em uma árvore de Natal? Isso para mim é novidade — ela sorria com a minha animação.

Page 53: Livro - CFM

testando l imites 53

— Estrelas e nuvens se complementam no céu infinito. A nossa árvore esse ano será a mais linda do bairro, e vamos fazê-la no primeiro pinheiro do jardim. Aquele de quase dois metros!

— Você está tão animada! — Ela me deu um sorriso faceiro. — Vamos, ande logo.

— Eu desço logo! — E corri para o banheiro do meu quarto, fazer minha higiene oral, quase tropeçando nas escadas quando subi; mas me reerguendo... Sempre... Como sempre tenho feito!

—xxx—

Rapidamente eu procurei pela escova de dente e pelo creme dental no armário do banheiro e me pus a escovar os dentes. Eu realmente não sabia o tipo de sentimento que estava me invadindo, porque até mesmo uma tarefa chata e rotineira como escovar os dentes eu a fiz cantarolando. Cantarolando e brincando com o meu bafo espirrado no espelho, fazendo desenhos. Coisa tipicamente de criança e eu estranhamente estava me sentindo uma desde que despreguei os olhos, quando acordei. Só que ser criança é uma coisa boa, também. Ter o espírito de uma criança. Não que eu seja velha, eu ainda tenho 16 anos, mas eu estou no auge da adolescência. Pedir biscoitos de chocolate e leite quente para deixar exposto na janela para quando o Papai Noel chegar não é coisa que uma pessoa da minha idade possa mais fazer. Quer dizer, pode; mas é estranho.

Antes que eu perdesse mais tempo, enxuguei os utensílios que usei — fio dental e escova e... cara, o

Page 54: Livro - CFM

54 C A R E S F O R M E

que se pode mais usar em uma tarefa tão simples? — e fechei a porta do banheiro indo em direção à saída do quarto. Fiquei estática quando notei que minha mãe estava me esperando ali.

— Oi...

— Oi — eu disse simplesmente, com uma confusão de sentimentos ríspidos dentro de mim. — Eu estou de saída, então-

— Eu acho que precisamos conversar, mas isso não precisa ser agora. Pode passar — ela deu passagem, saindo dos limites da porta. Ela estava com uma expressão triste atravessando o seu rosto e se instalando ali.

— Quando, então? — Eu voltei para ela antes de pisar no primeiro degrau.

— À noite.

— Ok — e fui embora. Descendo em uma velocidade agitada, encontrando Nana muito agasalhada.

— Em ponto! — Ela conferiu no seu relógio de pulso a abriu a porta para nós.

— Qual é! Eu sou pontual, sabia? — Eu dei um empurrãozinho de lado nela.

Nana já era idosa e não sabia dirigir, então fomos a pé mesmo. Eu gostava de passear pela cidade ao seu lado, principalmente porque ela parecia conhecer todo mundo, e eu adorava conhecer novas pessoas. As pessoas parecem ter sempre algo a passar, um

Page 55: Livro - CFM

testando l imites 55

conhecimento novo. Interações sociais são sempre caixas de surpresa que eu teimosamente abro sem pudor.

A primeira coisa que fizemos quando entramos no shopping fomos nos dirigir a lojas de decoração. Nana gostava de pintar nas horas vagas e ela comprou algumas telas, tecidos e tintas de diversas cores. Eu a ajudei a escolher as cores mais intensas e bonitas com a certeza de que um dia ela iria me ensinar a pintar tão bem quanto ela. E talvez ainda nesse natal! O que me encheu de ânimo e prestação.

Eu fiquei passeando pelas prateleiras de porcelanato enquanto ela conversava com a sua atendente predileta, que era sempre muito sincera com opiniões e muito prestativa quando o assunto era diminuir os preços e conseguir um desconto de 10%, já que Nana era cliente assídua do estabelecimento. Ainda nas prateleiras, eu me deparei com uma miniatura de Albert Einsten trabalhando com um microscópio, acredito eu, eletrônico. Microscópio óptico é coisa de gente comum, não de pessoas especiais e de um QI digno de um gênio. Automaticamente pensei em Ed, porque ele era cientista naquilo que fazia. Mesmo que em silêncio, eu sempre muito fã dele, porque eu acho incrível que as pessoas continuem a buscar conhecimento mesmo depois de tanta evolução tecnológica. Alguns apostam que isso é a destruição da humanidade, mas se a ética for respeitada de modo sábio, acho que os homens ainda podem quebrar mais barreiras. Eles sempre podem. A curiosidade humana tem esse aspecto xereta.

Page 56: Livro - CFM

56 C A R E S F O R M E

— Moça, quanto custa? — Perguntei. Acho que um presente não fará mal a ninguém, certo? Eu darei a ele indiretamente. Não quero pressioná-lo.

Ela me respondeu e eu decidi levá-lo. Depois que ela embrulhou o utensílio para presente, eu e Nana partimos para uma loja seguinte, porque as nuvens para enfeitar o pinheiro do jardim ainda não tinham chegado àquela loja.

Abri um largo sorriso de canto quando eu vi um amontoado dos objetos felpudos que eu estava procurando. Enchi uma cestinha só com eles.

— Calma, Winry. Vamos levar outras coisas também, uns papais noel, quem sabe...

— Eu quero montar um céu na árvore de natal. Umas aeronaves e planetas será uma melhor escolha. Veja aqueles! — Eu apontei para outros objetos do tipo e enchi uma segunda cesta. Eu não estava levando coisas demais, as cestas é que eram pequenas.

— Que menina estranha, um céu?

— O céu é o limite, Nana!

— São bonitos, não são? — Perguntou um garoto de cabelos intensamente negros e lisos que desciam até o mediado do pescoço. Seus olhos eram de um azul oceano. Aparentemente, ele só estaria dando o seu sorriso simpático de vendedor, se ele não tivesse praticamente a mesma idade que eu e, eu não notasse quando um garoto está me cantando. Aquele

Page 57: Livro - CFM

testando l imites 57

sorrisinho sacana de 'Oi, gata. Qual o seu nome?" — Oi, gata. Qual o seu nome?

— Meu nome é não te interessa. Quanto custa? — Rápida e precisa.

— Mulheres bonitas não pagam, mas também não levam — ele sorriu mostrando apenas metade da arcada dentária. Ok, ele era gato e charmoso. Mas o tipo atrevido não é o meu preferido. — Meu nome é Augusto.

— Ok, Augusto. Quem é o seu chefe? Ele sabe que você fica cantando as clientes?

— Não envolve o meu pai nessa — ele cochichou tapando a boca com as costas da mão lateralizada. — Eu estou de castigo nesse natal. Eu ganho minha liberdade através de comissões. E aí? Quantos vai querer?

— Você ainda não me disse quanto custa.

— Pois é, eu também não sei — ele deu de ombros como se isso não fosse nada demais. — Mas você tem cara de quem vai levar isso custe o que custar, então, de que importa quanto custa?

— Cara, você é chato! — Suspirei entediada. — O que você fez para seu pai te prender aqui? Pichou a escola?

— Então, algo assim — ele coçou a cabeça e se posicionou como se orgulhasse do feito. — Eu estava bebendo e fumando no banheiro da escola. Qual é! Isso é normal entre adolescentes. Se fosse drogas, ao

Page 58: Livro - CFM

58 C A R E S F O R M E

menos... eu entendo, mas não era. O que são algumas garrafas de Vodka e uns cigarrinhos inofensivos?

— Espere até ver como é o pulmão de um fumante e você vai ver que essa história de cigarrinhos inofensivos não está com nada.

Ele gargalhou alto, como se o meu humor o divertisse.

— Você é legal. Quer sair comigo? Leva os planetas de brinde! — Ele se referiu aos enfeites da árvore de natal. — E ainda dou um jeito de você sair sem pagar. Aí depois você me paga com o corpo.

— Nem rola! — Eu bati na mão dele que estava brincando e enrolando uma mecha solta de meu cabelo loiro. — Sai da frente.

— Mulheres ácidas... Que delícia! Limonada é amarga, mas é uma delícia, sabe? Vou te chamar assim, de limonada.

— Odeio limonada! — Gritei do balcão, enquanto despejava as compras para a moça do caixa analisar com a maquininha leitora de códigos de barra.

— Quem é? — Nana surgiu com um sorriso malicioso.

— Apenas um cara idiota.

Pagamos a conta e voltamos para casa conversando sobre o que ela faria para o almoço. Odiei saber que o Augusto tinha escrito o seu número na nota fiscal e rasguei-la em muitos pedaços.

—xxx—

Page 59: Livro - CFM

testando l imites 59

Depois do almoço, eu me sentei no sofá da sala para assistir a um filme. Filmes combinam muito com tarde chuvosa, então por que não com uma tarde em nevasca? Daria no mesmo. O sentimento, a impressão e a nostalgia, também.

Titanic era um filme clássico e que de praxe todos os habitantes do planeta Terra já viram; até mesmo as crianças de pouca idade irão ver um dia. E ainda assim, foi o meu escolhido, por motivos que eu não sei. Coloquei o DVD e dei player, esperando iludida que Nana me preparasse um chocolate quente. Só que quando ela estava no seu tricô, nem mesmo se a casa estivesse pegando fogo — Ok, isso é meio que impossível de acontecer em um inverno tão rigoroso — ela levantaria da cadeira de balanço e abandonaria a tarefa para fazer qualquer outra que fosse. De toda forma, eu não achava ruim, porque ela já me fez três casacos super quentinhos.

O filme começou e ele até que estava interessante nos primeiros trinta minutos.

Mas eu acabei adormecendo na metade do filme e acordei somente nos minutos finais. Ouvi alguém tropeçar em um móvel da casa e verifiquei quem era, dando de cara com Ed, que estava sentado na base da escada que dava acesso ao cômodo em que eu me encontrava. Novamente, meu coração quis saltar do peito. Eu não tinha ideia de quanto tempo ele estava ali como uma estátua.

Ele estava em praticamente todos os lugares que eu estava. Ele, que um dia, me evitou como se eu fosse a pessoa mais odiável do mundo. Por que ele estava

Page 60: Livro - CFM

60 C A R E S F O R M E

fazendo tanta questão para que tudo desse certo? Fiz uma nota mental para um dia, quando estivermos mais à vontade, perguntar. Ele começou a teclar em seu notebook e eu escutei sem fazer nenhum comentário. Queria saber, apenas, porque aquele som parecia me transportar para um lugar diferente. O som dos dedos batendo nas teclas incessantemente parecia irritar as pessoas, que se lembravam de um escritório cheio e muito trabalho e estresse. Mas para mim, aquele som, foi muito mais bonito do que uma melodia suave de uma música calma e de notas bem elaboradas por mestres.

Mamãe entrou em casa — eu até então não sabia que ela estava fora, ainda no trabalho — e seus olhos saltaram quando nos viu separados por poucos metros de distância. Ela deu um suspiro longo. Era um suspiro resignado e seu rosto estava perturbado quando ela olhou para mim. Todavia, ela não fez mais nada, a não ser tirar os saltos 13 e subir as escadas com eles pendurados na mão; não se esquecendo de beijar o topo da cabeça de Ed no percurso. Quanto a mim? Não ganhei um simples oi, mas não deixei que isso me afetasse. Mais tarde discutiríamos o que tanto estava nos incomodando.

O filme acabou, e quando virei os olhos em direção à escada, Ed não estava mais ali.

Eu queria dizer alguma coisa, queria pedir a ele que não fosse embora e que aparecesse mais vezes nos locais onde eu estava. Ele se foi antes que eu pudesse fazer isso, e talvez eu não fizesse mesmo. O medo de afastá-lo sempre acaba vencendo a minha súbita

Page 61: Livro - CFM

testando l imites 61

coragem. E ele também nunca diria nada. As coisas raramente saem da boca dele, a menos que ele realmente queira dizer algo, e é sempre à mamãe ou ao papai; até mesmo com Alfonse ele só troca olhares. Contudo, olhares em que eles parecem se entender muito bem.

Subi para o quarto e me aprontei para o jantar.

Mas antes, dei uma olhada nas redes sociais, como sempre costumava fazer durante aquele horário. Surpreendi-me quando vi uma solicitação de amizade de alguém que eu menos esperava: Augusto. Quer dizer, levando em consideração em como ele foi persistente em apenas poucos minutos depois que nos conhecermos de uma forma não tão agradável, não seria inusitado se ele arranjasse formas de descobrir o meu nome e vasculhar a internet inteira atrás de um perfil que fosse meu. Sorri imaginando a sua cara de quem sabia que eu nunca ligaria para ele e que, provavelmente, a nota fiscal das compras de mais cedo teriam ido parar no lixo antes do imaginado.

–-----------------------------------------------------

Atendente na empresa Art&Decor

Estuda no Colégio Susan

Mora em Tokyo

De Hokkaido

Solteiro

Seguido por 116 pessoas

Page 62: Livro - CFM

62 C A R E S F O R M E

–-----------------------------------------------------

Eu fiquei rindo por um bom tempo em silêncio em cima do muro da dúvida. Aceitar ou não? Eu acabei aceitando e bisbilhotando por um bom tempo o seu perfil. Aparentemente, ele era um garoto problemático. Suas marcações nas fotos dos amigos sempre o traziam em posições inusitadas, em cima de uma mesa de bebidas nas baladas fazendo concurso de quem bebe mais. Sempre em festas e acompanhado de muitas pessoas; principalmente, garotas de cabelos longos e seios fartos. Não que eu fosse uma tábua, mas por que ele estaria sendo tão persistente em relação a mim se poderia se envolver com a líder de torcida da escola? Por uma questão mais de curiosidade mesmo foi que aceitei aquele convite.

Antes de desligar o note, eu chequei de quem era o segundo convite: Ed.

–-----------------------------------------------------

Pesquisador em Harvard University

Estuda Biogenética na instituição de ensino Harvard University

Mora em Cambridge, Massachusetts

De Tokyo

Seguido por 35 pessoas

–-----------------------------------------------------

Page 63: Livro - CFM

testando l imites 63

Eu fiquei impressionada em primeira instância porque jamais imaginaria que Ed teria um perfil em redes sociais como o facebook. Não que um autista não pudesse ter uma vida normal, principalmente para ele, que era portador da forma mais branda do autismo, mas eles normalmente estavam sempre evitando a comunicação com outras pessoas, e o facebook ou qualquer outra rede social que a internet oferece tinha como intuito aproximar as pessoas que estão longe. Mas se ele antigamente não queria nem as pessoas mais próximas perto de si, como...? Eram coisas demais para uma pessoa como eu entender, resolvi que mesmo depois de muito tempo, eu ainda era muito leiga sobre o autismo, e eu entendi que eu sempre iria ser. Eu e qualquer outra pessoa que não possuísse o distúrbio genético. E quem sabe até mesmo Ed não conseguisse compreender tanto sobre si. Era uma incógnita.

— O que está fazendo? — Papai me perguntou quando notei sua presença na porta do meu quarto, observando-me. — Esse é o perfil de Ed?

Meu pai se aproximou mais de mim e observou a tela do computador sobre o meu ombro. — Ele é incrível, não é? Conquistou tanta coisa com tão pouca idade.

— Seus filhos são incríveis, Sr. Rockbell — corrigi. — Em pouco tempo teremos Alfonse estudando música como um profissional categorizado em Harvard ou na Universidade de Tokyo. Boa genética!

— Não fale como se você não fosse minha filha — ele afagou meus cabelos, bagunçando por completo a

Page 64: Livro - CFM

64 C A R E S F O R M E

maioria dos fios. — Você também alcançará seus sonhos se desejar com força.

— Claro — eu beijei a ponta do seu nariz e o abracei. — O que tem para o jantar? Aposto que Nana fez algo delicioso!

— Frango indiano ao Curry e Rosbife ao forno com batatas.

Apenas o próprio nome das refeições fez o meu estômago roncar, então decidi descer junto com o meu pai para jantar; na ânsia de que esse momento seria um pouco mais tranquilo do que a noite anterior.

E foi.

O jantar foi tranquilo e Ed estava menos agitado, voltando a agir como sempre era quando nos reunimos durante as refeições. O que me deixou surpresa foi o olhar que ele me lançou quando foi o primeiro a se retirar da mesa. Mamãe, como era muito observadora, notou.

— Winry...?

Eu me levantei em seguida, tentando fugir apenas por aquele instante da sua avalanche de perguntas que provavelmente me sufocariam e que não me deixariam terminar o jantar em paz.

— Estou subindo. Quando quiser conversar, estarei no quarto.

Page 65: Livro - CFM

65

CAPÍTULO VI

Progressão e retrocessoEu não estava chateada com ela, ou aturdida com o modo que olhou para mim, é só que... Ela percebeu a forma como Ed e eu nos entreolhamos, e isso me deixou com vergonha. Por quê? Eu ainda não sei.

Ainda na base da escada, nos primeiros degraus, eu me perdi em devaneios, pensando em todas essas questões. E que a forma como nos olhamos (Ed e eu) seria foco de conversa em questões de poucos minutos, assim que ela terminasse de jantar. Balancei a cabeça e tentei voltar a minha normalidade, tomando uma lufada de ar e enchendo os meus pulmões de confiança e coragem. Vamos lá, Winry! Você consegue.

Eu conseguiria, certo?

Me assustei quando choquei com as costas de alguém. Eu ainda estava perdida demais em um mundo que só existia dentro de mim, e as escadas pareciam não estar ocupadas àquela hora, uma vez que todo o restante de minha família estava reunida na sala de jantar, exceto por... Ed! Recompus-me e percebi que aquelas costas eram mesmo dele, que estava estático, como uma estátua. Instantaneamente, preocupação

Page 66: Livro - CFM

66 C A R E S F O R M E

tomou conta de mim e se espalhou pelo meu corpo inteiro.

— Ed? — Perguntei com voz trêmula. Mais nervosa por estar tão próxima a ele do que realmente preocupada com seu estado de saúde que, fora o distúrbio de seu comportamento, era forte como um touro. Raramente costumava pegar um resfriado, que acometia com facilidade as outras pessoas em épocas de temperatura baixa. — Aconteceu alguma coisa?

Era óbvio que ele não me responderia, mas não custava perguntar.

Eu estava sentindo, mesmo que não pudesse ver, minhas bochechas assumirem um tom escarlate tão rapidamente que por um momento pensei que o autismo fosse contagioso e que eu estava começando a ser infectada por ele aos pouquinhos. Claro que isso era uma mentira, mais provável seria que eu estivesse ficando louca ou muito obcecada em fazer as coisas de um modo diferente nesse último natal.

Sem me responder, como eu imaginei que seria, Ed logo tomou seu caminho. E eu ainda fiquei ali, com cara de boba por alguns instantes.

Minha mente estava entorpecida. Entorpecida naquela reviravolta estranha de eventos. Sabendo que logo mamãe estaria lá em cima, eu não demorei mais em subir de volta ao quarto, escovando os dentes e permanecendo com o notebook no colo até a sua chegada.

—xxx—

Page 67: Livro - CFM

progressão e retrocesso

67

Estava distraída com uma matéria de um portal de notícias quando ela bateu na porta de forma cadente e suave, no entanto, forte o suficiente para que eu pudesse escutar.

— Oi, filha — ela começou muito doce. — Posso entrar?

— Claro — disse simplesmente e me sentei à beira da cama, puxando uma cadeira que ficava anexada à mesa do computador para que ela pudesse se sentar. — Oi, mãe.

Eu queria dizer alguma coisa que desse início ao assunto que nos levou até isso, mas um sorriso morno e torto foi a única coisa que consegui expressar naquele momento, mesmo com ela a minha frente, disposta a ter uma conversa realmente séria depois de tanto tempo. Eu soube imediatamente que este seria um daqueles momentos raros em que o meu cérebro não estaria controlando a conversa.

— Quanto tempo, né? — Ela se referiu provavelmente ao tempo em que não conversamos a sós. — Como vamos começar?

— Basta falar claramente tudo o que pensa — eu estava mais fria do que um mármore agora, e não era bem esse o efeito que eu queria produzir, mas foi o que saiu. — Vamos logo à parte onde você acha que eu sou uma ameaça para o Ed?

— Querida... — Ela tomou um choque, como se não esperasse por isso tão cedo.

Page 68: Livro - CFM

68 C A R E S F O R M E

Eu costumava me dar muito bem com minha mãe. Não era como se ela nunca tivesse me dito que me ama, por isso eu sabia que ela sentia um carinho especial por mim. Costumávamos rir quando estávamos sozinhas na cozinha e ela estava fazendo cookies. Era sempre uma paz, desde que eu não tocasse no nome de Ed ou que ele aparecesse no cômodo. Claro, ele nunca aparecia. A questão que estava em jogo não era o seu amor maternal por mim ou o modo como me tratava, mas a sua preocupação de ter Ed próximo a mim. Ok, isso influenciava no modo como me tratava, mas só quando estava perto de Ed mesmo. Por isso eu nunca estava. Mas convenhamos, quanto tempo isso iria durar? Para sempre é que não seria.

— Desculpa. Eu só não quero mais rodeios. Estamos evitando esse assunto durante muito tempo, e chega uma hora que sufoca.

Eu tentei ao máximo não ser grossa ou trazer em minha voz indícios de irritação, porque nesses momentos você perde toda a capacidade de ser civilizada, ou mesmo formar um pensamento coerente. Em segundo, porque não precisava agir de forma desrespeitosa com uma pessoa que me manteve em sua casa por tanto tempo, me chamando de filha e trabalhando pra me alimentar.

— Eu entendo como se sente, mas-

— Você não entende!

— Entendo-

Page 69: Livro - CFM

progressão e retrocesso

69

— Não — afirmei apertando o tecido do vestido que trajava, pedindo a ele para aguentar firme comigo. — Você não entende.

A conversa estava tomando um rumo que eu não queria nunca, e em tão pouco tempo! (E por minha causa, que passei de controlada à grosseira) Mas era inevitável. Eu estava magoada e resignada com a ideia de não poder me aproximar do meu próprio irmão. Cansada de não passar mais os natais na casa do lago.

— O Ed olhou pra você hoje.

Havia uma pergunta em sua voz.

Mas eu preferi não responder, e deixar que ela tirasse suas próprias conclusões. Quem sabe assim, ela se desse conta de que eu não era a única machucada, que talvez ela estivesse machucando também alguém que insistia em proteger com todo o seu vigor e comprometimento.

— Você não entende o que é ser privada de estar perto do seu próprio irmão. Ser privada de natais mais alegres.

Eu fiquei esperando que ela dissesse “Ele não é seu irmão”, mas ela só abaixou a cabeça, refletindo. — Te manter a uma distância segura era mais fácil do que dizer palavras tão duras como “eu não te quero perto do meu filho”.

— Seu filho... — Eu digeri aquelas palavras como se fosse um ácido corrosivo. Ela estava sempre querendo

Page 70: Livro - CFM

70 C A R E S F O R M E

dizer aquilo para mim? — Desculpe por causar todos aqueles transtornos ao seu filho — dei ênfase na palavra —, mas ele também parece querer algumas mudanças por aqui. Já perguntou o que ele acha disso tudo? Ele se comunica mais abertamente com você.

Ok, agora eu estava muito mais chateada do que antes, porque as minhas suspeitas foram confirmadas. Ela estava sempre me tratando bem quando ele estava longe, e mesmo sentindo um carinho terno por mim, ela ainda me distinguia de seus filhos legítimos. Talvez eu estivesse mais para sobrinha do que para filha, mesmo que eu só me desse conta disso tarde demais para questionar. Ou não.

— Eu sei o que é melhor para ele. Você está deixando-o confuso. Agitando a cabeça dele — as suas ‘verdades’ estavam cada vez mais corrosivas, e agora ela estava cuspinho aquelas palavras sem ânsia alguma. — Eu estou com muito mais medo agora do que antes. É por isso que estamos tendo essa conversa, porque você parece um fantasma que volta para assombrar de tempos em tempos. Porque mesmo não querendo, você machuca ele, e eu não suporto mais todo esse sofrimento. Ser mãe de uma criança especial não é nada fácil, e lidar com as responsabilidades é um peso enorme que eu tenho aturando durante anos, porque eu amo a minha família.

— Ed não é mais uma criança, mãe! — Quase gritei, mas meu tom saiu em apenas uma advertência. — Ele não é um doente mental! Ele não precisa ser protegido das garras do mal por você! Ele sabe a distinção.

Page 71: Livro - CFM

progressão e retrocesso

71

De repente, minha vista estava embaçada com gotículas de lágrimas; porque estava retendo-as ali, impedindo que elas caíssem e banhassem o meu rosto de desespero. Eu queria ser mais madura. Eu queria mostrar que tinha crescido. E de prontidão, senti que aquilo estava se tornando uma competição, da escolha da melhor pessoa que poderia lidar com Ed, que poderia entendê-lo. O tremor fez a minha bile aumentar de tamanho na garganta. Determinação corria pelas minhas veias.

Ela me encarou com olhos semi-serrados.

— Você está me dizendo como devo agir? — Sua voz tinha uma pitada nítida de incredulidade. — Winry Rockebell, eu sou sua mãe! Você não deve me dizer o que fazer ou não.

— Por isso mesmo, mãe! Você é a mãe, então não aja como se fosse a filha.

Ela começou a chorar, mas em silêncio. As suas lágrimas se arrastavam pela extensão do rosto até a mandíbula lentamente e de forma a retroceder; pareciam gostas de uma chuva passageira. Ela não era frígida. Eu sabia que só estava preocupada demais com o Ed e que, no fundo, gostaria que ele fosse normal como eu e Alfonse. Ela tentava buscar culpados. Não estava pronta para lidar com a situação mesmo depois de dezoito anos. E parece que nunca vai estar, porque a coisa não é assim tão fácil. A negação não exige tempo ou intelectualidade, só um coração frágil.

Page 72: Livro - CFM

72 C A R E S F O R M E

— Faça o que quiser — ela enxugou as lágrimas com a ponta da sua camiseta. — Mas se você machucar meu filho, nunca mais me chame de mãe.

— Mãe... — eu senti tanto desespero naquela voz cálida. — Eu te amo.

Ela se virou para mim antes de deixar o quarto. — Eu também te amo. E amo a nossa família. Então não tente estragar as coisas novamente, porque essa não é a Winry que eu quis chamar de filha independente de ter saído de dentro de mim ou não.

Aquela conversa terminou antes do esperado, com ameaças e ‘eu te amo’s confusos.

Mamãe saiu e deixou a porta aberta. Estava frio e eu não gostada de deixar a porta do quarto aberta, porque estava sempre só de sutiã e calcinha na hora de dormir. Caminhei em direção a ela e, antes de chocá-la contra as estruturas que a mantinham impregnada na parede, observei mamãe abraçar Ed no corredor. Ele estava escutando a conversa.

—xxx—

Pela manhã, acordei mais disposta, mesmo que tenha perdido alguns longos minutos (perdida em devaneios) antes de fechar os olhos e dormir.

Estava somente eu e Nana na cozinha. Papai e mamãe já tinham tomado o seu café da manhã e Ed estava no quarto. Eu enchia o prato com cereais e leite pela segunda vez quando Nana chamou minha atenção

Page 73: Livro - CFM

progressão e retrocesso

73

para a TV que estava sintonizada em um canal de notícias.

— Veja isso, Winry! — Ela parou de secar a louça para prestar atenção.

O homem do tempo disse que o dia seria de nevasca intensa. Mas não foi isso que chamou a sua atenção. Na vinheta, o jornalista do noticiário pincelou as notícias do dia muito vagamente antes de dar início ao jornal e focar mais profundamente na primeira, que era sobre um cachorrinho da raça Husky Siberiano, maltratado e abandonado pelos seus donos em uma estação de trem. Ele estava muito ferido, mas estava recebendo os cuidados necessários em uma clínica veterinária e logo seria posto para doação. A notícia focava mais nos maltratos que os seus antigos donos cometeram — barbaridades horrendas que preferi não repetir —, mas o que chamou a atenção de Nana e a minha também era que eu sempre quis um filhote dessa raça, mas o apartamento em que eu e Riza morávamos era muito pequeno.

— Eu sinceramente não sei até onde pode chegar a maldade humana — ela comentou, voltando ao seus afazeres domésticos.

— Muito longe... — Lamentei. — Ela pode chegar muito longe. Você já parou para pensar que às vezes parecemos que somos os verdadeiros animais irracionais, Nana?

— Oi, querida.

Page 74: Livro - CFM

74 C A R E S F O R M E

— Veja os animais silvestres — eu parei de comer por instantes para aprofundar o assunto. — Eles caçam, matam e comem; mas mesmo assim estão sempre contribuindo para manter o equilíbrio do mundo. A cadeia e a teia alimentar são muito precisas. Além do mais, quando matam, os animais silvestres o fazem para a sua própria subsistência. Sempre dando algo em troca também à mãe natureza. Eles não poluem os rios ou desmatam florestas, eles têm consciência do quanto o seu habitat é importante.

Nana me deu um sorriso reconfortante. Eu continuei: — Os homens, não. Eles poluem rios, desmatam florestas, caçam animais em extinção, poluem a atmosfera com gases tóxicos e matam animais silvestres e animais de sua própria espécie (outros homens) só por maldade. E ao fazer isso, os homens estão se autodestruindo. Vê? Nós é que somos os verdadeiros animais irracionais.

— Você tem um coração bom.

— Não tenho, não — falei. — É que as pessoas não chegam à conclusão mais óbvia. São todas grandes idiotas.

—xxx—

Por volta das dez da manhã, eu estava no meu quarto dobrando algumas roupas e as colocando de volta no lugar. Estavam todas passadas e cheirosas. Nana fazia questão de cuidar delas. Segunda ela, nenhuma lavanderia poderia fazer uma tarefa tão boa quanto mãos experientes.

Page 75: Livro - CFM

progressão e retrocesso

75

Eu concordava.

Acima da minha cama ficava uma prateleira sobrecarregada de livros, porta-retratos, objetos de decoração e o meu microsistem. Sintonizei em uma estação de rádio e fiquei ali entretida enquanto terminava os meus próprios afazeres; aquele quarto estava precisando de algumas mudanças, também. Trocar alguns móveis de lugar, quem sabe...

Foi quando ouvi o começo de uma super promoção que me pendurei no telefone do quarto.

— Você está sintonizado na Tokyo FM 76,3. E começa agora a super promoção do programa do Sr. Takahama show! Os dez primeiros ouvintes a dizerem corretamente o nome da música que está tocando ganha dois ingressos para o show de amanhã da Yui. Vamos lá, você não pode perder!

Parecia que o locutor estava falando diretamente comigo, porque eu não poderia mesmo perder. Yui era simplesmente uma das minhas cantoras japonesas top 10.

— Ouvinte número dez, alô!

Outra garota começou a gritar histericamente no programa. A voz dela era estridente e irritante, então desliguei e continuei a dobrar as roupas em silêncio. Mesmo não tendo ganhado aqueles ingressos, eu daria um jeito de ir ao show de qualquer jeito mesmo. Quando terminei a tarefa, ouvi algumas batidas na porta. Eram suaves e ao mesmo tempo, fortes.

Page 76: Livro - CFM

76 C A R E S F O R M E

Presumi ser Nana e gritei um ‘entre, a porta está aberta’, mas ninguém respondeu.

Quem será?, pensei.

Caminhei em direção a ela e antes que chegasse muito próximo da maçaneta e girasse, me dei conta de que havia algo no chão, como uma carta. Já suando, abri. Era apenas Ed. Quer dizer, não era apenas Ed. Era o Ed! Ele estava querendo falar comigo! Praticamente, surtei pouco tempo depois.

“Bom dia, Winry. Desculpe por ontem. Acho que você percebeu que eu estava escutando a conversa entre você e a mamãe. Eu só não queria que vocês brigassem por minha causa.”

Ele deveria ter escutado o barulho que vinha do meu quarto e aproveitou. Não demorei a lhe responder. Dei três batidas e passei o bilhete por debaixo da porta.

“Oi, Ed. Como está? Não se desculpe por isso. É apenas a mamãe que não entende. Ela acha que eu posso te machucar de alguma forma e te ama demais pra entender que minhas intenções são as melhores.”

Ele demorou um pouco para responder, e a ansiedade passou pelos meus olhos. Cada vez o coração batendo latente dentro do peito. Falar com ele era como uma sensação semelhante a estar em uma montanha russa de muitas curvas.

“Estou bem. Só não quero que vocês briguem.”

Page 77: Livro - CFM

progressão e retrocesso

77

Ele respondeu unicamente em uma frase. As nossas chances eram poucas, e ele estava se dando uma chance de aumentar um câmbio por dia. Ao todo, poderíamos trocar hoje seis notas. Eu acabava sempre mandando uma a mais, mas não era correspondida. Desse modo, aproveitei a oportunidade de fazer uma nota muito maior a cada vez que escrevia e passava o bilhete por debaixo da porta.

“Nós não vamos mais brigar, Ed. Eu achava que nunca chegamos mais próximas de uma solução como ontem. Ela só me disse que não poderia chamá-la mais de mãe se eu te machucasse. Mas isso não irá acontecer, não é? Então podemos mostrar a ela que vamos conseguir nos dar bem. Claro, quando você tiver uma confiança maior em mim.”

Esperei ansiosa pela resposta.

“Eu confio em você, é só que eu não consigo me aproximar mais do que isso. Eu não te acho um monstro. Longe disso. Você é bem... bonita!”

Ele me acha bonita? Ok, estou começando a delirar. E coração, você não precisa bater tão forte.

“Você me acha bonita? Obrigada. Mas nem sou tanto assim. Meu rosto é estranho e eu acho que o meu olho esquerdo é maior do que o direito. Mas, voltando ao assunto... Acho que você não consegue se aproximar de mim porque no fundo ainda vê aquela irmã que te deixou morrer de frio ou aquela criança que quebrava os seus

Page 78: Livro - CFM

78 C A R E S F O R M E

brinquedos. Eu queria muito que esse episódio não tivesse acontecido. Eu sinto muito, Ed.”

Ele demorou a responder dessa vez, me deixando mais ansiosa a cada pequeno barulho que o ponteiro do relógio fazia para percorrer os segundos.

“Eu nunca vi seus olhos. Mas se eles forem mesmo diferentes, com um maior do que o outro, vai ser legal. Porque o que é comum é muito chato. É por isso que eu sou um cientista, para estudar o diferente.”

O diferente é bonito. Já ouvi isso em algum lugar.

“Eu tenho um presente pra você. Não é grande coisa, mas pensei automaticamente em você quando vi. Eu vou deixar na mesa da cozinha. Por favor, só não pense que estou querendo comprar a sua confiança. É só que... Bem, espero que goste.”

Ele respondeu rápido dessa vez.

“Obrigado!”

“Eu estou amando essa coisa de blocoterapia, É tão legal!”

“É, não é? (risos)”

Ele havia mesmo sorrido. E ele tinha uma risada tão gostosa de ouvir, como se fosse um acorde de anjos. Suave e descontraída.

“Obrigada, Ed. Também.”

Page 79: Livro - CFM

progressão e retrocesso

79

Éramos uma sintonia perfeita e o rumo da nossa conversa, diferente da que tive com mamãe na noite de ontem, estava nos levando a rir, mesmo que separados por aquela porta de madeira. Eu estava me dando muito bem com um irmão que comecei a lidar verdadeiramente há poucos dias, e muito mal com uma mãe que me conhecia e se comunicava comigo há dezesseis anos. Um contraste doloroso e, ao mesmo tempo, delicioso.

Now, don't hang on

Nothing lasts forever

But the earth and sky

It slips away

And all your money

Won't another minute buy ♪

Tradução: Agora, não fique esperando. Nada dura para sempre. Apenas o céu e a terra... Isto escapa, e todo o seu dinheiro não comprará outro minuto.

Page 80: Livro - CFM

80

CAPÍTULO VII

Presença indesejadaNo dia seguinte, eu acordei mais disposta novamente.

Estava uma nevasca intensa lá fora, mas mesmo assim, a casa permanecia em um aquecido agradável; mesmo sem o uso de um aquecedor. Conferi que não fosse muito tarde mirando o monitor do telefone celular e voltei a deitar na cama, retornando algumas chamadas não atendidas de Riza.

—Winry — ela atendeu prontamente no outro lado da linha. — Está acordando agora, se eu puder apostar. Está tudo bem por aí?

— Em cheio! — Concordei. — Ok, são nove da manhã e há algumas ligações aqui de duas horas atrás. Eu tenho um sono pesado mesmo! Por aqui está tudo bem, como está por aí?

— Tudo em ordem — ela respondeu animada. — Só eu sei o quanto seu sono é pesado. Mas pensei que já estivesse acostumada com a rotina e acordasse por volta das sete, por isso que liguei.

A rotina a qual Riza se referia consistia na minha vida escolar e em como eu a recebia de braços fechados.

Page 81: Livro - CFM

presença indesejada 81

Não que eu fosse má aluna, as minhas notas sempre estavam em uma aceitável média que deixasse quaisquer pais orgulhosos, mas acordar cedo são para pessoas que gostam do dia, e eu preferia mais a noite. O jeito como Riza costumava me acordar era outra história, também. Ou com um copo de café quente encostando levemente no meu rosto (com riscos de queimadura, ela é meio louca e não se importa) ou com um copo de água gelada. Não tínhamos um aquecedor no banheiro, o ritual para tomar banho era extenso e intrigante. Assustador.

— Eu nunca vou me acostumar à sua intrínseca maneira de me dar bom dia. Sabe como é legal estar longe de você e poder acordar um pouco mais tarde? Olha que eu posso me acostumar a isso, hein.

— Áspera e insensível, também te amo, piveta.

— Eu sei que sim, sou um ser muito amável.

Não que eu fosse convencida, eu não era. Mas o modo como Riza e eu nos tratávamos era uma eterna relação de amor e ódio. Como se ela fosse minha irmã mais velha e não a minha tia.

— Está comendo o quê? Não está enganando a Nana e comendo biscoito recheado no café da manhã, está?

— Ah, eu tenho comido umas coisas que dá câncer. Biscoito de chocolate com refrigerante.

— E aos 25 anos você terá pedras nos rins e não achará isso mais tão engraçado.

Page 82: Livro - CFM

82 C A R E S F O R M E

Eu comecei a me contorcer de tanto que tentei controlar o riso. Riza apesar da pouca idade conseguia ser bem careta às vezes, como se certificar se eu estava comendo frutas e verduras, ou se não dormiria muito tarde. Seus vinte e dois anos eram expressos com exatidão em sua face, mas tinha costume de trinta e pouco. Éramos como irmãs, mas às vezes ela estava mais para uma mãe. Eu gostava desse lado, contudo. Eu amava Riza.

— Como é que está Trisha?

— A mamãe está sendo... — hesitei — a mamãe. Tudo ok.

Suspirei pesadamente.

— Eu sei que não — ela disse.

— Tudo bem, tem um tempo?

— Estou ouvindo.

Então eu contei tudo a ela e fiquei ouvindo sua opinião logo após em silêncio. Ela estava me dando conselhos. Eu pensei nesse momento que eu talvez fosse mais feliz se ela tivesse me adotado. Eu estava feliz desde que não estivesse em Tóquio, mas toda vez em que retornava para casa, estava tudo mau. E eu não poderia simplesmente não voltar.

Por mim, pelo papai. E por Ed, agora.

—xxx—

O resto do dia seguiu um ritmo lento.

Page 83: Livro - CFM

presença indesejada 83

Eu não vi Ed durante todo o dia e achei estranho que ele não estivesse em casa na hora do almoço, mas não perguntei sobre o seu paradeiro a ninguém.

Fiquei surpresa quando papai me procurou no quarto mais tarde, por volta das quatro da tarde, e disse que tinha alguém muito especial esperando por mim lá fora. Eu nem imaginei quem fosse, porque toda a minha vida tinha sido construída fora de Tóquio e, com exceção dos vizinhos e dos amigos da família, eu não pensava em ninguém que estivesse ansioso para me ver. Nem mesmo um amigo de infância.

Calmamente eu desci as escadas e deixei papai vindo logo atrás de mim a seu ritmo. Atravessei os limites da porta e me deparei com um ser felpudo amarrado a uma das hastes da varanda pela corrente em seu pescoço. Ele deu alguns latidos e eu me virei para trás para agradecer, ainda sem acreditar.

— Papai! — Eu abri um sorriso de canto.

— Espero que goste, porque parece que ele já gostou de você.

Eu corri para abraçar o meu novo amigo. Um amigo pelo qual esperei por longos anos.

— Eu adorei!

Eu acariciei seu pelo e fiz carinho em sua cabeça. Ele era lindo e extremamente dócil. Seu pelo branco com manchados cinza e olhos de um intenso turquesa. Ainda era bem pequeno e pelos tipos de curativos e enfaixados característicos, eu reconheci que se

Page 84: Livro - CFM

84 C A R E S F O R M E

tratava do mesmo cachorro que havia aparecido na TV na manhã do dia anterior. O mesmo que foi violentado pelos seus antigos donos.

Apesar de ter sido maltratado, ele não estava assustado com uma aproximação abrupta como a minha; o que seria super normal. Ou estava assumindo uma agressividade de um animal espancado em cárcere por um tempo. Animais têm uma capacidade incrível de perdoar os humanos, e eles não deveriam.

— Ele é lindo.

— Já pensa em um nome?

Eu olhei para a neve que dançava no ar antes de se juntar às outras no chão. Em como era delicada e graciosa.

— Floquinho.

—xxx—

Logo mais à noite, eu escolhi uma combinação de roupa que trouxera na mala. Escolhi uma calça jeans e justa que deixava minha pele sufocada e ao mesmo tempo confortável enquanto se adaptava ao tecido, conjuntamente com uma bota de cano baixo e uma camiseta com algumas lantejoulas que formavam o nome Guns N’ Roses no centro. Por cima, uma jaqueta de couro beje deu aolook um charme descontraído. Eu não consegui os ingressos para o show da Yui, mas eu iria de qualquer jeito.

Page 85: Livro - CFM

presença indesejada 85

O cabelo eu preferi deixar solto, e assim que fiz isso, eu fui até a cozinha para avisar a Nana que estava de saída e colocar comida na tigela de Floquinho para a noite inteira.

— Oi, Nana — passei por ela e a cumprimentei, indo em direção à parte de baixo do armário, procurando pela ração comprada mais cedo no supermercado por mim e pelo papai.

— Está linda, para onde vai desse jeito? — Ela parou de cortar algumas cenouras e perguntou curiosa. — Seus pais sabem que você está de saída?

— Não — disse simplesmente. — E você não vai contar. Quando perguntarem por mim, diga que eu preferi jantar no quarto, porque estava cansada e dormiria cedo.

— Menina... O que está fazendo?

— Nada de mais — eu acariciei Floquinho que se aproximava da tigela e derramei ração para ele. — Apenas estou indo assistir o show da Yui em Hokkaido. Vai ser seguro, eu vou pegar o próximo trem das seis. Mas se eu contar para os meus pais, talvez eles me impeçam. Sabe como é que é. Para os pais, sempre seremos crianças que não sabemos nos cuidar sozinhas.

— Você vai sozinha assistir a um show em outra cidade, com esta nevasca intensa e à noite — ela refletiu analisando a situação. — Não é questão de ser criança ou não, mas do perigo.

Page 86: Livro - CFM

86 C A R E S F O R M E

— Eu sei me cuidar sozinha, ok? Eu vim sozinha para cá, você sabia?

— Mas não abandonou o avião e o metrô durante o percurso exceto para trocar de meio de transporte. Estava de dia e acompanhada de pessoas com os mesmos destinos e intenções.

— Como é que você sabe? Osama Bin Laden estava dentro de um avião quando atacou as torres gêmeas.

— Você não vai me enganar, espertinha. Eu não posso participar desse crime.

— Não estou tentando enganar ninguém, não é verdade o que eu disse? — Ela estreitou os olhos desconfiando de minhas artimanhas. — Eu apenas preciso que você colabore uma única vez com uma mentira pequena. Eu quero muito ir. E você sabe como os meus pais são caretas!

Ela continuou me olhando com olhos semi-cerrados. — Eu não sei.

— Vamos lá, Nana. Só dessa vez! — Eu cheguei perto e comecei a distribuir beijos inúmeros em sua bochecha. — Diz que sim, vai. Eu prometo me cuidar. O máximo que eu posso chegar tarde é 11 da noite. O que há de mais nisso?

— Ligue para o seu pai e diga a ele, pelo menos.

Eu me lembrei que naquela noite ele chegaria tarde em casa porque estaria em uma cidade vizinha acertando umas papeladas de um cliente, de um caso

Page 87: Livro - CFM

presença indesejada 87

muito importante e que ainda estava correndo na justiça. — Eu vou ligar. Você venceu.

Eu não iria ligar. Feio, eu sei. Mas...

— Fico mais tranquila assim.

— Nana, você sabe por onde andou Ed? — Perguntei depois de um tempo. — Não vi ele o dia todo.

— Ele viajou com o Sra. Rockbell.

— Ah... entendi.

Eu subi para o quarto, fingi estar fazendo uma ligação e depois saí dizendo a Nana que estava tudo bem. Mesmo que eu mentisse, não aconteceria nada de mais, então estaria tudo bem mentir só dessa vez e envolvê-la em minhas questões.

Quando cheguei à estação, ela estava bastante movimentada.

Havia um amontoado de pessoas bem agasalhadas em torno dos trilhos, esperando o próximo metrô chegar. Alguns com malas enormes, outros com as mãos unicamente dentro dos bolsos. Eu estava igual aos últimos.

Conferi o horário do meu telefone celular com as placas eletrônicas espalhadas por ali, indicando que era pouco mais de seis horas. O meu metrô estava marcado para as seis e quarenta, então eu me sentei em um banco próximo e tomei uma soda comprada antes em uma máquina de refrigerantes. Riza me

Page 88: Livro - CFM

88 C A R E S F O R M E

daria uma bronca se me visse tomando aquilo. Eram 500 mL por dia, muito mais que o permitido.

18:40 h o meu metrô chegou e, ansiosa, eu fui uma das primeiras a entrar. Sentei em um lugar vazio e coloquei os fones do ouvido porque a viagem seria relativamente longa. Hokkaido não ficava tão longe, para falar a verdade, mas viagens sempre me deixavam entediada. E com a noite e a neve intensa, o ambiente escuro lá fora não tinha muito de interessante para me mostrar, mesmo que eu estivesse sentada no banco da janela.

Eu desliguei a mente momentaneamente, embalada na canção.

Depois de um tempo, um pouco antes de o metrô partir, alguém sentou ao meu lado, mas eu não me deti muito naquela pessoa. Eu nem sequer verifiquei quem era. Estava envolvida demais naquela melodia reproduzida pelo meu celular e com os olhos fechados. Até que começamos a viagem, e eu percebi que se tratava de um garoto, quando falou comigo. — Oi.

Eu abri um único olho para verificar. A música não estava alta o suficiente para impedir que eu escutasse o seu chamando. Eu não costumava manter conversa com a pessoa que sentava ao meu lado, a não ser que fosse descontraída e com um diálogo legal.

— Você?! — Eu abri os dois olhos, abandonei os fones e me ajeitei no meu assento para encará-lo e rir zombeteira. — O que está fazendo aqui?

Page 89: Livro - CFM

presença indesejada 89

— Sabe... Estamos em um local público. Quer dizer, privado. Mas público a parti do momento em que se compra uma passagem. Essa pergunta foi bastante ofensiva, Winry Rockbell.

— Você é chato — coloquei de volta os fones e afundei na poltrona, fechando os olhos.

— É uma pena — ele tirou o fone e sussurrou no meu ouvido. — Porque terá que me aguentar por algumas horas.

Definitivamente, Augusto era um pé no saco.