livres nas pautas, algemados a convenções: análise do jornalismo literário do correio repórter

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 EDUARDO VIEIRA KATHERINE FUNKE YARA VASKU LIVRES NAS PAUTAS, ALGEMADOS A CONVENÇÕES Análise do jornalismo literário do C orr e i o R e p órte r   Monografia de conclusão do curso de pós-graduação  Jornalismo contemporâneo: desafios nas redações do  século 21, promovido pelas Faculdades Jorge Amado  ORIENTAÇÃO: LEANDRO COLLING SALVADOR, FEVEREIRO/ 2008

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RESUMO. A partir da observação de doze recursos do jornalismo literário, pertinentes da produção da pauta à edição do texto, o presente trabalho analisa o grau de presença do jornalismo literário no caderno dominical “Correio Repórter”, do jornal Correio da Bahia, de Salvador (BA). Parte-se do pressuposto de que as reportagens da publicação possuem possibilidades de se enquadrar no gênero por suas condições de produção. A análise recebe o auxílio de uma ampla revisão teórica que define o conceito de jornalismo literário e detalha os recursos em questão, baseados na categorização feita por Tom Wolfe e por Edvaldo Pereira Lima. Como resultado, temos que a publicação apresenta graus bastante variáveis de aplicação dos recursos observados. ABSTRACT. From a review of the 12 features of literary journalism relating to text editing and story brief, the present paper analyses the level of presence of literary journalism in the Sunday supplement 'Correio Reporter' of the newspaper Correio da Bahia from Salvador (BA). It is assumed that the articles in this publication can be classed in this genre given the manner in which they are written. The analysis was aided by a wide theoretical review of literature which defines the concept of literary journalism and details the resources involved using Tom Wolfe and Edvaldo Pereira Lima's classification. The conclusion reached was that this publication demonstrates quite variable degrees of application of the resources observed.

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  • EDUARDO VIEIRA

    KATHERINE FUNKE

    YARA VASKU

    LIVRES NAS PAUTAS, ALGEMADOS A CONVENES

    Anlise do jornalismo literrio do Correio Reprter

    Monografia de concluso

    do curso de ps-graduao

    Jornalismo contemporneo:

    desafios nas redaes do

    sculo 21, promovido pelas

    Faculdades Jorge Amado

    ORIENTAO: LEANDRO COLLING

    SALVADOR, FEVEREIRO/ 2008

  • 2

    EDUARDO VIEIRA

    KATHERINE FUNKE

    YARA VASKU

    LIVRES NAS PAUTAS, ALGEMADOS EM CONVENES

    Anlise do jornalismo literrio do Correio Reprter

    ORIENTAO: LEANDRO COLLING

  • 3

    APROVAO

    O presente trabalho foi aprovado pelos examinadores em fevereiro de 2008. Declaro,

    portanto, aprovados no curso de ps-graduao Jornalismo contemporneo os alunos

    Eduardo Vieira, Katherine Funke e Yara Vasku.

    LEANDRO COLLING

    Professor ORIENTADOR

    NADJA VLADI CARDOSO GUMES

    Professora COORDENADORA

  • 4

    DEDICATRIA

    Dedicamos este trabalho a

    Leandro Colling,

    por ter sido o professor que causou

    as mais profundas transformaes

    em nossa maneira de enfrentar o desafio

    de ser jornalista no sculo 21.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Eduardo Vieira agradece

    famlia e aos grandes

    amigos pelo apoio de sempre.

    Katherine Funke agradece

    todo o apoio que recebeu,

    especialmente de sua me.

    Yara Vasku agradece a

    oportunidade de estudar e conviver

    com pessoas muito especiais. Um

    agradecimento especial ao filho,

    Joo Pedro, pelo apoio e compreenso.

  • 6

    E, no entanto, no comeo dos anos 60, uma curiosa idia nova,

    quente o bastante para inflamar o ego, comeou a se insinuar nos

    estreitos limites da statusfera das reportagens especiais. Tinha

    um ar de descoberta. Essa descoberta, de incio modesta, na

    verdade, reverencial, poderamos dizer, era que talvez fosse

    possvel escrever jornalismo para ser... lido como um romance.

    Como um romance, se que me entendem. Era a mais sincera

    forma de homenagear a O Romance e queles grandes, os

    romancistas, claro. Nem mesmo os jornalistas pioneiros nessa

    direo duvidariam sequer por um momento de que o romancista

    era o artista literrio dominante, agora e sempre. Tudo o que

    pediam era o privilgio de se vestir como ele... Eram

    sonhadores, claro, mas uma coisa eles nunca sonharam. Nunca

    sonharam com a ironia que vinha vindo. Nunca desconfiaram

    nem por um minuto que o trabalho que fariam ao longo dos dez

    anos seguintes, como jornalistas, roubariam do romance o lugar

    de principal acontecimento da literatura. (Wolfe, Radical Chique

    e o Novo Jornalismo, pg 19)

  • 7

    RESUMO. A partir da observao de doze recursos do jornalismo literrio, pertinentes

    da produo da pauta edio do texto, o presente trabalho analisa o grau de presena do

    jornalismo literrio no caderno dominical Correio Reprter, do jornal Correio da Bahia, de Salvador (BA). Parte-se do pressuposto de que as reportagens da publicao

    possuem possibilidades de se enquadrar no gnero por suas condies de produo. A

    anlise recebe o auxlio de uma ampla reviso terica que define o conceito de jornalismo

    literrio e detalha os recursos em questo, baseados na categorizao feita por Tom

    Wolfe e por Edvaldo Pereira Lima. Como resultado, temos que a publicao apresenta

    graus bastante variveis de aplicao dos recursos observados.

    ABSTRACT. From a review of the 12 features of literary journalism relating to text

    editing and story brief, the present paper analyses the level of presence of literary

    journalism in the Sunday supplement 'Correio Reporter' of the newspaper Correio da

    Bahia from Salvador (BA). It is assumed that the articles in this publication can be

    classed in this genre given the manner in which they are written. The analysis was aided

    by a wide theoretical review of literature which defines the concept of literary journalism

    and details the resources involved using Tom Wolfe and Edvaldo Pereira Lima's

    classification. The conclusion reached was that this publication demonstrates quite

    variable degrees of application of the resources observed.

  • 8

    SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................................10

    1. O JORNALISMO LITERRIO:

    UMA REVISO HISTRICA E TERICA.............................................................. 14

    1.1. No Brasil.................................................................................................................... 17

    1.2. Nos Estados Unidos .................................................................................................. 22

    1.3. Relevncia para o campo do jornalismo ................................................................... 24

    1.4. Principais contribuies acadmicas.......................................................................... 29

    1.5. Caractersticas intrnsecas do jornalismo literrio..................................................... 32

    1.5.1. A extenso pela pauta............................................................................................. 33

    1.5.2. Captao dos dados................................................................................................ 37

    1.5.3. A fruio pelo texto................................................................................................. 43

    1.5.4. Construo cena a cena.......................................................................................... 47

    1.5.5. Dilogos.................................................................................................................. 47

    1.5.6. Variao de pontos de vista................................................................................... 48

    1.5.7. Autpsia social.........................................................................................................49

    1.6. Crticas e limites do jornalismo literrio.....................................................................50

    2. HISTRICO E ANLISES....................................................................................... 54

    2.1 O Correio da Bahia .....................................................................................................54

    2.2 O caderno Correio Reprter ........................................................................................55

    2.3 Anlises........................................................................................................................57

    2.3.1. Edio 3/6/2007 Black in Bahia ......................................................................57

    2.3.2 Edio 10/06/2007 Palcio da arte ...............................................................60

    2.3.3 - Edio 17/06/2007 Ch sagrado ...................................................................62

    2.2.4. Edio 24/06/2007 Quadriltero do pretrito ................................................66

  • 9

    2.2.5. Edio 01/07/2007 Herona esquecida ...........................................................71

    2.2.6 Edio 08/07/2007 Guerreiras annimas ........................................................76

    2.2.7 Edio 15/07 Relquia franciscana ..................................................................80

    2.2.8. Edio 29/07/2007 Estigma cruel ...................................................................91

    CONCLUSO..................................................................................................................97

    BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................106

  • 10

    INTRODUO

    Essa anlise das reportagens do caderno Correio Reprter, publicado

    semanalmente aos domingos no jornal Correio da Bahia, em Salvador (BA), tem o

    objetivo de identificar o possvel uso de tcnicas de jornalismo literrio nas etapas de

    produo das pautas, captao dos dados, escrita e edio da reportagem de capa.

    Entendemos por jornalismo literrio o tipo de jornalismo que se caracteriza pelo

    uso de tcnicas de literatura na captao, redao e edio de textos sobre a vida real

    (LIMA, S/D). Trata-se, portanto, de um modo de fazer jornalismo que no se prende a

    tcnicas que encerram o real em frmulas pr-concebidas, como o caso do lead - o

    pargrafo inicial de notcias que deve responder a cinco perguntas bsicas: como, onde,

    quem, por que e quando -, tcnica utilizada como padro nos textos noticiosos.

    O jornalismo literrio tambm conhecido por Novo Jornalismo, nome do

    movimento norte-americano dos anos 60. Segundo Lima (S/D), o jornalista Gay Talese,

    um dos expoentes desse New Journalism, atualmente denomina o que faz de literatura

    da realidade. Lima tambm aponta que no circuito universitrio dos EUA a

    denominao em voga literatura criativa de no-fico1.

    Este trabalho vai investigar se o jornalismo praticado no caderno Correio

    Reprter foge de frmulas como o lead e adere literatura de no-fico. A escolha desse

    produto jornalstico para a anlise tem motivos: em Salvador, entre os trs jornais de

    circulao diria, o Correio da Bahia o nico que mantm um caderno dominical de

    reportagens especiais, o Correio Reprter. A publicao sempre contm uma

    reportagem de capa, com nada menos que cinco pginas de texto, no formato standart,

    padro mais utilizado entre os jornais do Brasil.

    Justamente por causa desse caderno de domingo, o Correio da Bahia tambm o

    nico jornal que disponibiliza, regularmente, um jornalista para passar 30 dias dedicando-

    se apenas a uma grande reportagem, dando-lhe a oportunidade de mergulhar no assunto,

    1 Neste trabalho, adotamos as diferentes denominaes, porque consideramos para a anlise a ser

    realizada recursos do New Journalism, ou do jornalismo literrio, apontadas por um de seus expoentes,

    Tom Wolfe, e ampliadas pelo pesquisador brasileiro Edvaldo Pereira Lima.

  • 11

    trazendo informaes sobre diferentes facetas do tema. Aqui, queremos diagnosticar se

    esse mergulho tambm resulta em uma forma diferenciada de texto.

    Para ns, mais provvel que o Correio da Bahia adote um maior nmero de

    tcnicas de jornalismo literrio do que as duas outras publicaes, A Tarde e Tribuna da

    Bahia, embora este projeto no exclua, de forma alguma, a possibilidade dos outros dois

    peridicos tambm adotarem o jornalismo literrio em suas reportagens.

    A histria do desenvolvimento das indstrias jornalsticas na Bahia, no Brasil e

    em outros lugares do mundo, como Estados Unidos, nos mostra que o mercado tem

    passado por uma contnua acelerao do processo de produo e difuso industrial de

    notcias, passando pela valorizao da notcia, sofrendo os impactos da linguagem visual

    da televiso e da Internet nas formas escritas de notcias, com uma gradual diminuio do

    nmero de profissionais nas redaes e reduo generalizada do investimento em

    reportagens investigativas ou de aprofundamento.

    Contribui para esse cenrio o fato de que, para enfrentar o mercado altamente

    competitivo e buscar parcerias no campo tecnolgico, as antigas empresas

    exclusivamente jornalsticas tm se aliado ou simplesmente tem sido vendidas a grandes

    conglomerados. Essas ligaes com o poder econmico se refletem no contedo e na

    abordagem do noticirio. Na Europa, j no incio do sculo 20, os jornais foram

    comprados por indstrias siderrgicas e qumicas, o que influenciou o posicionamento da

    imprensa sobre o fascismo.

    o que se passa agora nos Estados Unidos, onde a indstria do entretenimento e do

    comrcio on line tm comprado as empresas jornalsticas. O jornalismo passa a ser

    apenas uma porcentagem menor, muito menor, de lucro dentro do grande negcio de

    oferecer informao e entretenimento ao pblico. Se no d lucro, tambm no merece

    investimentos; alm disso, no interessante para os grandes empresrios financiar

    reportagens investigativas ou de aprofundamento, que podem esclarecer leitores sobre

    suas prprias falcatruas (Kovach e Rosenstiel, 2003).

    As conseqncias desses fenmenos da industrializao do processo de produo

    de notcias para o aumento da superficialidade do trabalho jornalstica do ponto de vista

    da contextualizao, da abrangncia, do tempo dedicado captao da reportagem e do

    cuidado com a escrita do texto j foram analisadas em outros trabalhos por diversos

  • 12

    pesquisadores do campo. Entre eles, especialmente Cremilda Medina (1988; 2003) tem

    pontuado o distanciamento existente entre o jornalismo convencional da complexidade e

    a pluralidade de vozes da vida real. Tambm Edvaldo Pereira Lima (1995) aponta a

    incapacidade do jornalismo cotidiano comumente praticado nos jornais dirios em

    abarcar as demandas da sociedade contempornea.

    Todos esses fatores contribuem para que o jornalismo literrio passasse a ser

    entendido como gnero2 mais aplicvel a livros-reportagem ou a raros cadernos e

    reportagens especiais dos peridicos impressos. Nesses ltimos casos, contam

    positivamente projetos editoriais dos prprios jornais, sua estrutura e sua meta em relao

    ao tipo de pblico que desejam alcanar.

    Para analisarmos a presena de tcnicas de jornalismo literrio no texto do

    caderno Correio Reprter, esta pesquisa recorrer especialmente retomada terica do

    movimento conhecido como New Journalism o jornalismo literrio praticado nos

    Estados Unidos dos anos 60 - feita por um de seus mais conhecidos integrantes, Tom

    Wolfe, no prefcio ao livro Radical chique e o novo jornalismo (2005), assim como as

    contribuies feitas posteriormente pelo pesquisador brasileiro Edvaldo Pereira Lima

    (1995), no livro Pginas ampliadas: o livro-reportagem como extenso do jornalismo e

    da literatura3.

    A anlise levar em considerao doze recursos, categorizados nas etapas de

    construo da pauta, captao dos dados, escrita e edio do texto. Quanto pauta,

    analisaremos as trs liberdades elencadas por Edvaldo Pereira Lima (temtica, temporal e

    2 Considerar o jornalismo literrio como gnero no unanimidade entre os pesquisadores. Aqui,

    adotamos a classificao de Fernando Resende (2002), que admite a formao de uma nova configurao

    discursiva, ou seja, de um novo gnero, a partir do cruzamento entre a literatura e o jornalismo, cada qual

    compreendido igualmente como gnero isolado, na perspectiva de Tzvetan Todorov, autor adotado por

    Resende. Outros autores, como Raymond Williams, possuem conceitos ainda mais ampliados. Williams

    liga os gneros a condies contextuais scio-histricas, como os folhetins no final do sculo XIX e incio

    do sculo XX. No Brasil, diferentes vises do jornalismo como gnero e dos gneros jornalsticos tm

    marcado as pesquisas no campo. Enquanto Jos Marques de Melo considera a existncia de trs gneros

    jornalsticos informativo, opinativo e interpretativo -, Lus Beltro acrescenta ainda a existncia do gnero diversional, ligado diverso. 3 Lima volta sua preocupao, neste livro, a mostrar quais as tcnicas do New Journalism podem

    ser aplicadas ao formato de publicao atualmente mais comum para o jornalismo literrio: o livro-

    reportagem. Compreendemos, entretanto, que o mesmo conjunto de tcnicas pode estar presente em outros

    formatos, posto que originalmente o movimento de jornalistas norte-americanos era publicado em jornais

    impressos. Para Lima, a questo que se levanta, ento, de potencialidade do jornalismo de prestar um servio mais refinado.

  • 13

    de angulao). Essas trs liberdades tambm so categorias criadas por Lima para

    possibilitar a avaliao de produes de jornalismo literrio.

    Lima tambm categorizou tipos de captao de dados possveis, dentre os quais

    estaremos atentos tcnica da observao participante, durante a anlise do Correio

    Reprter.

    Quanto ao texto, sero observadas oito tcnicas apontadas por Tom Wolfe e

    Edvaldo Pereira Lima. Wolfe categoriza quatro recursos emprestados do romance realista

    que caracterizam o texto do jornalismo literrio. So eles: construo cena a cena,

    dilogos completos, alternncia de ponto de vista e autpsia social.

    J Pereira Lima nos apresenta, em termos de edio do texto: lies de cinema

    (cortes de tempo e espao no lugar da maneira tradicional de construo do texto); lies

    de abertura (aquecer os momentos iniciais para prender o leitor, atravs da escolha de

    algum elemento da narrativa ou a apresentao do assunto do geral para o particular);

    lies de passagem (quebra de ritmo, juno de sequncias, conexo de conflitos em

    evoluo); lies de trmino e retorno (finalizar com desfecho em forma de obra aberta,

    ou seja, deixar algumas perguntas ou possibilidades no ar).

    Buscaremos o uso desses recursos em oito edies Correio Reprter, publicadas

    nos meses de junho e julho de 2007. A escolha de oito edies consecutivas, nos dois

    meses relatados, ocorreu no ms de agosto do mesmo ano, de forma absolutamente

    aleatria. No levou em considerao qualquer indicao dos autores ou editores da

    publicao, que tampouco sabiam estar sendo avaliados.

    Dessa forma, a seleo assim realizada contribui para que possamos verificar a

    presena de recursos do jornalismo literrio nas reportagens escritas atualmente pela

    equipe do caderno. A anlise de oito edies leva como princpio de que preciso um

    conjunto consecutivo e expressivo de publicaes para conseguirmos pontuar

    caractersticas comuns ou contraditrias das reportagens.

  • 14

    1. O JORNALISMO LITERRIO: UMA REVISO HISTRICA E TERICA

    A origem da relao existente entre o jornalismo e a literatura, muitas vezes,

    associada ao surgimento do famoso New Journalism, corrente que passou a ganhar

    espao em jornais e, aos poucos, no meio literrio norte-americano no ano de 1962,

    quando o romance ainda reinava como gnero maior, sinnimo de prestgio para os

    romancistas. Neste perodo, uma nova corrente de escritores comeou a preencher as

    redaes jornalsticas com o intuito de tornar a narrativa destes peridicos mais viva,

    pulsante. A idia era revolucionar a forma de se escrever, que era julgada como objetiva

    ao extremo e sem atrativos para o pblico leitor, que j estaria cansado da mesmice.

    Paralelamente, estes novos escritores tambm tinham o interesse de retirar o

    prestgio exacerbado dos romancistas. Eles queriam reconhecimento para a ento nova

    forma narrativa. Entre os nomes mais consagrados do perodo, esto: Tom Wolfe, Jimmy

    Breslin, Gay Talese, Truman Capote, entre muitos outros.

    Mas o incio desse intercmbio entre jornalismo e literatura remonta de muito

    antes e no est diretamente associado ao estabelecimento do New Journalism. Para Ciro

    Marcondes Filho, em Comunicao e jornalismo: a saga dos ces perdidos, como traz o

    autor Felipe Pena (2006), em Jornalismo literrio, a influncia da literatura na imprensa

    est presente nos chamados primeiro e segundo jornalismos. O primeiro momento diz

    respeito pr-histria do jornalismo, entre 1631 e 1789. A fase pode ser classificada

    como de economia elementar, produo artesanal, com peridicos semelhantes ao livro.

    J o segundo momento denominado de primeiro jornalismo, que compreende o perodo

    entre 1789 e 1830. A fase traz contedo literrio e poltico para a imprensa. As notcias

    surgem mais crticas e so elaboradas, principalmente, por escritores.

    Trata-se do sculo XVIII e XIX, quando escritores com prestgio reconhecido

    passaram a chegar s redaes. Eles no somente escreviam, como ocupavam os mais

    variados cargos dentro dos veculos. Nesse perodo, o folhetim um dos elementos mais

    importantes, que vai estreitar o dilogo do jornalismo com a literatura. Anteriormente, o

    termo era utilizado para denominar os suplementos destinados a temticas diversas, como

    a crtica literria. Mas, posteriormente, ele assumiu a caracterstica do romance realista.

    Os mais variados escritores passaram a publicar folhetins nos jornais, aumentando, dessa

  • 15

    forma, popularidade e rendimentos. Alm disso, tambm ganhava espao a crnica e os

    contos.

    Cabe uma explicao sobre os termos folhetim e crnica. No sculo XIX, esses dois termos so usados indistintamente para

    designar o que hoje classificamos de crnica. Jos de Alencar

    refere-se s crnicas semanais para o Correio Mercantil, que

    abordam a vida poltica e cultural na Corte, como o seu folhetim da semana. O termo folhetim designa, tambm, a seo do jornal que vem ao p da pgina, separado do corpo das matrias,

    contendo assuntos diversos, crnicas e folhetins propriamente

    ditos isto , os romances feitos especificamente para serem publicados em captulos. (ARNT, 2001, pgs. 16 e 17)

    Os romances publicados por partes faziam sucesso no somente entre os leitores,

    mas tambm com os empresrios da comunicao, que viam suas vendas crescerem com

    a utilizao sistemtica do recurso. O folhetim pode ser classificado como herdeiro do

    romance realista, apenas com uma nova forma de veiculao. Mas o recurso guardava

    algumas caractersticas especficas, como aponta Felipe Pena (2006). O folhetim era

    dirigido para um grande e bem diversificado pblico. Diante dessa caracterstica,

    precisava de uma linguagem simples e acessvel. A ao era sempre interrompida em um

    momento de grande importncia da narrativa, com o intuito de chamar a ateno do leitor

    para a nova edio.

    Tambm era comum a utilizao do recurso da repetio, para deixar o pblico

    sempre por dentro de todos os acontecimentos. Ainda nesse contexto, a trama poderia ser

    ampliada ou reduzida, dependendo do interesse do leitor. Caractersticas bem comuns s

    telenovelas, que bebem das estratgias do folhetim. Mas os elementos citados no

    significavam, necessariamente, baixa qualidade dos textos. A narrativa costumava ser

    muito bem construda, assim como os seus personagens.

    A presena dos escritores deixou o jornal, alm de informativo, mais atraente. A

    ateno destes profissionais estava voltada para problemas do cotidiano e tenses sociais.

    Grandes nomes da literatura comearam a ganhar as pginas dos peridicos, como

    Charles Dickens, na Inglaterra, Honor de Balzac, na Frana, Machado de Assis e Jos de

    Alencar, no Brasil, entre outros, que sero detalhados em tpicos seguintes. Dickens, que

    tem como obras emblemticas Oliver Twist (1838) e David Copperfield (1849), um dos

    atores mais engajados em crticas sociais. A misria do proletariado ingls marca em

  • 16

    suas obras, assim como toda a problemtica social inglesa que assolava o pas naquele

    perodo.

    Os escritores, no af de retratarem a vida como ela pelo enfoque literrio realista , no procediam assim em nome do dogmatismo do movimento, mas por serem observadores de uma

    realidade social que eles, na condio de jornalistas, tinham por

    funo registrar e o que observaram era o lastro de misria de um lado e, de outro, a dissoluo dos costumes deixados no

    rastro do progresso da Revoluo Industrial. (ARNT, 2001, p.

    13)

    Como aponta Hris Arnt, na obra A influncia da literatura no jornalismo: o

    folhetim e a crnica, a migrao desses escritores para jornais possibilitou, tambm, a

    democratizao da cultura letrada. Uma grande parcela de leitores no tinha como

    comprar livros caros. Eles encontraram, no jornal ou revista, uma forma de ter contato

    com a obra desses autores.

    nesse momento histrico que se estreita a relao entre jornalismo e literatura.

    Esse fazer jornalstico est relacionado ao desenvolvimento da cultura de massa no sculo

    XIX, com uma sociedade vida por informao. Assim como foi, tambm, o surgimento

    do prprio jornalismo, que surge da grande necessidade pela informao. Alguns autores,

    como Bill Kovach e Tom Rosenstiel, segundo Felipe Pena (2006), classificam os relatos

    orais como uma forma de pr-jornalismo. Perodo este muito relacionado democracia

    grega, quando a oratria reinava.

    O fato que os relatos orais so a primeira grande mdia da

    humanidade. O historiador Peter Burke classifica-os como um

    meio de comunicao especfico e importante, mas que tm

    recebido pouca ateno da historiografia oficial, apesar da vasta

    literatura sobre a oralidade... Segundo Burke, as possibilidades do meio oral eram conscientemente exploradas pelos mestres do

    que era conhecido no sculo XVI como a retrica eclesistica.

    (PENA, 2006. Pgs. 26 e 27)

    A mudana da cultura oral para a escrita acontece justamente com a inveno dos

    tipos impressos, uma das bases do jornalismo moderno. A primeira fase, como j foi

    observada, vai aparecer a partir do ano de 1631. Os primeiros jornais, que contavam com

  • 17

    periodicidade, surgiram na Alemanha, nos Pases Baixos e na Inglaterra. Aqueles mais

    antigos so datados de 1609, em Augsbourg e Strasbourg.

    O jornalismo e a literatura faziam a ponte entre a informao e a opinio. Naquele

    perodo, os escritores introduziram pilares do jornalismo moderno. Estavam presentes nas

    pginas de notcia, opinio, divertimento e cultura. No sculo XIX, a dualidade entre

    jornalismo e literatura estava cada vez mais visvel.

    1.1. No Brasil

    A relao entre jornalismo e literatura no Brasil surgiu a partir do ingresso de

    escritores como Jos de Alencar e Machado de Assis nos veculos de comunicao. Mas

    o contexto histrico era bastante diferenciado do que acontecia na Europa no mesmo

    perodo. No velho continente, os escritores buscavam mudanas na estrutura social, o que

    no acontecia no Brasil. A poltica de escravido e dos latifundirios cortou o Pas at o

    sculo XX, impedindo a industrializao.

    Jos de Alencar aborda os temas da ambio, do amor ao

    dinheiro, da ganncia semelhante ao escritor francs. S que, em

    Balzac, estes temas so tratados com a veemncia de quem vivia

    as contradies do sistema capitalista. Alencar no poderia

    conceber personagens com a mesma fora, vivendo num Rio de

    Janeiro onde sequer o dinheiro era moeda corrente. Seus

    personagens no poderiam ser considerados fracos, comparados

    aos de Balzac; eles retratavam a realidade social em que estavam

    inseridos. (ARNT, 2001, p. 48)

    Jos de Alencar iniciou a carreira de jornalista em 1850 como colaborador do

    Jornal do Commercio e do Correio Mercantil, quando assinou a famosa coluna Ao correr

    da pena, produzindo narrativas sobre o Rio de Janeiro. Quanto ao contedo, os folhetins

    de Jos de Alencar se assemelhavam aos textos que atualmente so chamados de

    crnicas. Em 1885, assumiu o cargo de editor-chefe no Dirio de Notcias, do Rio de

    Janeiro. Foi neste veculo que publicou o primeiro romance: Cinco minutos.

    Posteriormente, lanou A viuvinha, nos mesmos moldes. Comeou a se dedicar poltica

    e literatura e passou a escrever peas teatrais. O autor tambm conta com obras ligadas a

  • 18

    temas indgenas. Entre outros clssicos de Alencar, esto os muito famosos O guarani,

    lanado em 1857, Lucola, em 1862, e Iracema, publicado em 1865.

    Um outro marco da dualidade pode ser considerado a publicao, em folhetim, de

    Memrias de um sargento de milcias, de Manuel Antnio de Almeida, no Correio

    Mercantil. O texto esteve nas pginas do jornal entre 27 de junho de 1852 e 31 de julho

    de 1853. Esta forma de se fazer jornalismo perdurou at o ano de 1907.

    Outro escritor de extrema importncia para o perodo foi Machado de Assis. O

    autor observava os interesses pessoais e mesquinhos da sociedade brasileira e apontado

    como aquele que levou o gnero a um amadurecimento no pas.

    Com sua ironia, talvez tenha sido o nico brasileiro que

    conseguiu examinar a sociedade sem paixes. Seu humor

    destacava-se mais nas crnicas do que nos romances, conferindo

    um tom grave a acontecimentos leves, s coisas do dia-a-dia,

    brincando com as coisas srias. Colocou seu olhar lcido e

    melanclico em tudo que escreveu. (ARNT, 2001, p. 71)

    Machado de Assis, como jornalista, fazia a cobertura do Senado brasileiro, alm

    de escrever para peridicos. Em 1881, o escritor abandonou o romantismo da primeira

    fase de sua obra ao publicar Memrias pstumas de Brs Cubas, considerado o incio do

    romance realista no Brasil. Entre as muitas obras, se destacam Quincas Borba, em 1892,

    Dom Casmurro, em 1900, Esa e Jac, em 1904, e Helena, lanado anteriormente, em

    1876, entre muitos outros livros.

    A evoluo do jornalismo literrio brasileiro prossegue na virada do sculo XIX

    para o XX, mas j em uma nova era. nesse perodo que a narrativa jornalstica, na

    forma de reportagem, busca um caminho prprio, no demasiadamente ligado literatura.

    A narrativa jornalstica vai comear a parar, tambm, nas pginas dos livros. Um

    exemplo caracterstico dessa transformao pode ser encontrado na clssica obra Os

    sertes, do autor Euclides da Cunha, que foi lanada em 1902.

    Euclides da Cunha esteve situado na linha entre fico e realidade para compor a

    sua obra. Ele bebe de conhecimentos vindos do sculo anterior, mas j traz no seu texto o

    potencial que a reportagem ganharia no formato de livro. A sua narrativa pendia, nesse

    momento, mais para a literatura do que para o jornalismo propriamente dito.

  • 19

    Rara combinao de inteligncia aguada, erudio e capacidade

    de coleta de campo, Euclides vai cobrir o confronto de Canudos,

    para O Estado de S. Paulo, em agosto de 1897, levando na

    bagagem uma qualidade que o diferencia essencialmente dos

    demais correspondentes: a habilidade para situar um evento no

    contexto que o cerca, demonstrando para o leitor o sentido mais

    profundo do que retrata... Mas a tica do autor alarga-se tambm

    em torno dos espaos e das condies imediatas que cercam o

    conflito, revelando um cuidado de documentao que seria tpico

    aos bons reprteres de profundidade do futuro. (LIMA, 2004.

    Pg. 213)

    A cobertura de O Estado de S. Paulo foi considerada como grande diferencial em

    relao aos outros veculos que tambm enviaram correspondentes. A inteno era a de

    transcender a notcia bsica, fugindo dos comunicados oficiais e de tudo o que deixasse o

    tema raso. Um encontro visceral com a realidade foi evidenciado nessa cobertura.

    Um outro marco a narrativa de Joo do Rio, pseudnimo de Joo Paulo Alberto

    Coelho Barreto. O texto do autor caracterizado pela reportagem de campo no espao

    urbano, entre 1900 e 1920. Em uma srie de reportagens na Gazeta de Notcias,

    evidenciava temas como: o uso do automvel, a chegada do cinema, o fim da boemia e a

    imprensa em seu novo carter industrial. Mas, como aponta Edvaldo Pereira Lima, a

    contribuio do autor no foi suficiente para marcar uma forma jornalstica. Ainda assim,

    o pioneirismo dele, marcado por uma ampla observao da realidade, de grande

    importncia.

    Aps a dcada de 20, a evoluo da reportagem fica, de certa forma, estagnada

    at o fim da Segunda Guerra Mundial. Essa renovao passa a acontecer no perodo entre

    66 e 68. Anteriormente, na dcada de 30, a produo ficcional na linha do realismo social

    inibiu o surgimento de uma corrente de jornalismo voltada para a profundidade.

    Ao contrrio dos Estados Unidos dos anos 60, quando a

    literatura vacilou em retratar a cirurgia plstica que no plano dos

    costumes remodela a face da nao, deixando espao para uma

    ambiciosa gerao de jornalistas em busca de ruptura de limites,

    aqui, antes da Guerra, a instituio literria coibira qualquer

    iniciativa. (LIMA, 2004. Pg. 221)

    Um outro fator que apontado como inibidor da reportagem a ditadura do

    Estado Novo, responsvel por censurar os meios de comunicao. Ao mesmo tempo,

  • 20

    questiona-se o motivo que levou essas obras a no vencer a barreira da censura, como

    aconteceu com muitos livros de fico. Aps a queda do Estado Novo, contudo, a

    imprensa passou por uma grande revoluo. Um dos marcos foi o auge alcanado pela

    revista O Cruzeiro, em 1950. Alm disso, cresceu, de forma considervel, a quantidade

    de reprteres que investiam em livro-reportagem, como David Nasser, Joel Silveira e

    Edmar Morel.

    Mas foi em 1966 que surgiu um produto que revolucionou o mercado editorial

    brasileiro. A revista Realidade, publicao mensal pioneira da Editora Abril, fez muito

    sucesso diante de sua cobertura ambiciosa. As temticas abordadas por Realidade eram

    as mais variadas e no ficavam presas aos fatos do cotidiano. Os acontecimentos eram

    sempre ultrapassados por linguagens mais universais. Mas os recursos tambm contavam

    com suas limitaes e no apareciam de forma to revolucionria como os responsveis

    pela base do New Journalism.

    Realidade primou pelo texto solto que rompia com as frmulas

    tradicionais do jornalismo no Brasil. No chegou a atingir o grau

    de experimentalismo ousado que alcanou o New Journalism,

    mas sem dvida veiculou um texto de ruptura para com o

    prprio texto do jornal e da revista. No encontramos nas

    edies at 1968, propostas to radicais quanto o fluxo de

    conscincia, por exemplo. Geralmente, tambm no havia

    alternncia entre vrios pontos de vista numa mesma matria.

    (LIMA, 2004, p. 230)

    Uma outra caracterstica que faz Realidade se distanciar de tais caractersticas o

    fato de englobar uma gama variada de assuntos em uma mesma edio, fato que dificulta

    o aprofundamento das temticas. Em um livro-reportagem, um determinado assunto vai

    contar com um grau de detalhamento muito maior, fazendo com que, dessa forma, ele

    rompa ainda mais com o que costumava ser publicado na grande imprensa.

    Assim como Realidade chegou com uma proposta inovadora, em 1966, o mercado

    editorial brasileiro de hoje conta com publicaes especializadas voltadas para o

    chamado jornalismo literrio, que bebe em muitos dos recursos do New Journalism. No

    Brasil, como aponta Felipe Pena (2006), o jornalismo literrio pode ser classificado de

    diversas maneiras. Alguns autores defendem que essa modalidade de jornalismo refere-

    se, simplesmente, ao momento em que escritores assumiram funes dentro das redaes.

  • 21

    Outros autores consideram que pode ser relacionada queles profissionais que faziam

    crticas literrias nos peridicos. Uma outra corrente defende que o conceito est,

    justamente, na modalidade do New Journalism. Existem, ainda, aqueles que creditam o

    jornalismo literrio aos romances-reportagens e fico-jornalstica.

    O brasileiro Joel Silveira considerado, por alguns autores, como o pioneiro na

    utilizao do estilo conhecido como jornalismo literrio no pas. Como aponta o autor

    Felipe Pena (2006), ele defendia a idia de que a grande reportagem era uma espcie de

    porta voz para a ditadura do Estado Novo, que preenche a histria nacional de 1937 a

    1945.

    No mercado brasileiro atual, o jornalismo literrio tem espao definido.

    Publicaes noticiosas como a revista Piau e alguns textos publicados na edio

    brasileira da Rolling Stone so alguns dos exemplos de publicaes que seguem essa

    linha. A Rolling Stone completou um ano no mercado no ms de outubro de 2007. Alm

    de reproduzir textos da verso norte-americana, a revista conta com uma redao fixa no

    Brasil. Alguns dos textos apresentados conseguem fugir da lgica padronizada tanto

    criticada pelos jornalistas literrios. J a Piau conta com uma proposta mais ampla, com

    uma estrutura ainda mais voltada para a prtica e exerccio do jornalismo literrio.

    Antes da existncia dessas publicaes, contudo, o mercado de livros-reportagem

    j apresentava ttulos que investiam na temtica, como Abusado, de Caco Barcelos,

    publicado em 2003. O livro figurou nas listas dos mais vendidos e trazia relatos sobre os

    bastidores da formao de uma quadrilha. Outros autores, como Ruy Castro e Fernando

    Morais, estreitaram ainda mais a relao jornalismo e literatura ao apresentarem textos

    claramente inspirados na rea literria. Castro conta com biografias e grandes textos que

    se transformaram em livros-reportagem, como Chega de saudade: a histria e as

    histrias da Bossa Nova (1990), O anjo pornogrfico: a vida de Nelson Rodrigues

    (1992), Flamengo: vermelho e negro (2004), Carmen: uma biografia (2005), entre

    outros. Fernando Morais assinou o famoso Olga (1985), alm de Chat, o rei do Brasil

    (1994), Coraes sujos (2000), entre outros.

    Uma outra evidncia do interesse do mercado editorial brasileiro pelo jornalismo

    literrio est no fato da Companhia das Letras, uma das maiores editoras do Brasil,

    dedicar uma coleo exclusivamente temtica. O selo Jornalismo Literrio chegou ao

  • 22

    mercado para reeditar grandes reportagens do sculo XX, entre elas: Hiroshima, de John

    Hersey, A sangue frio, de Truman Capote, Chico Mendes - crime e castigo, de Zuenir

    Ventura, e Radical chique e o novo jornalismo, de Tom Wolfe, que traz um texto

    considerado como o manifesto do New Journalism.

    Alm das publicaes especficas, existem aqueles jornalistas que, mesmo com

    todas as dificuldades impostas pelas rotinas produtivas, conseguem elaborar textos

    diferenciados, com um mergulho maior no tema, em seus personagens, com outras

    perspectivas. o caso da jornalista Eliane Brum, que escreve para a revista semanal

    poca. Eliane traz perfis e textos mais elaborados para a publicao, alm de ter editado

    o livro A vida que ningum v, uma narrativa voltada para personagens annimos para o

    grande pblico.

    Uma outra evidncia importante no cenrio nacional o surgimento da Academia

    Brasileira de Jornalismo Literrio, uma iniciativa dos jornalistas-professores Edvaldo

    Pereira Lima, Srgio Vilas Boas, Celso Falaschi e Rodrigo Stucchi, que tambm criaram

    e coordenam o portal Texto Vivo, Narrativas da Vida Real. Com sede em So Paulo, a

    academia ministra cursos de especializao em jornalismo literrio, alm de trazer textos

    e reflexes no portal Texto Vivo. Neste ano, os professores colocaram no mercado o livro

    Jornalistas Literrios narrativas da vida real por novos autores brasileiros.

    Organizado por Sergio Vilas Boas, a obra conta com 16 narrativas de alunos que

    participaram do curso de ps-graduao da academia, entre o final de 2005 e o incio de

    2007.

    1.2 Nos Estados Unidos

    Muito do que se relaciona ao jornalismo literrio produzido hoje est em sintonia

    com os preceitos e com os recursos do New Journalism, modalidade jornalstica surgida

    em 1962, como aponta Tom Wolfe em Radical chique e o novo jornalismo. O livro, alm

    de trazer trs narrativas do autor, apresenta o chamado manifesto do gnero, escrito em

    1973. Wolfe comeou a freqentar a redao do New York Herald Tribune em 1962,

    quando os romancistas eram as grandes estrelas dos jornais. A idia era assegurar para o

    novo jornalismo o lugar de destaque ocupado pelo romance.

  • 23

    Mas a ligao moderna entre jornalismo e literatura, considerada a prvia do New

    Journalism, est relacionada com a proximidade da produo literria com o engajamento

    poltico de escritores como Upton Sinclair e Jack London, como aponta Carlos Rgis

    Ferreira em Literatura e jornalismo, prticas polticas (2003). Estes autores promoviam

    palestras para proletrios e intelectuais norte-americanos. O termo jornalismo literrio,

    inclusive, foi utilizado pela primeira vez em 1887 nos Estados Unidos por Matthew

    Arnold para descrever o estilo do autor Pall Mall Gazette, considerado como atrevido,

    vvido, pessoal e reformista, entre outras caractersticas apresentadas (FERREIRA, 2003,

    p.289).

    Para alguns historiadores, Daniel Defoe pode ser considerado como o primeiro

    jornalista literrio moderno. Ele escrevia, no comeo do sculo XVIII, ensaios e crnicas

    na revista Review e ficou reconhecido, principalmente, pelos romances Robinson Cruso

    (1719) e Moll Flanders, como aponta Felipe Pena (2006).

    Mas com base nas propostas e nas idias de Tom Wolfe e seus contemporneos

    que a idia de novo jornalismo ganha fora atualmente. A iniciativa que povoou os anos

    60 tinha como objetivo fazer jornalismo para ser lido como romance, deixando os textos

    menos beges e com uma quantidade muito maior de atrativos para o leitor.

    O que me interessava no era simplesmente a descoberta da

    possibilidade de escrever no-fico apurada com tcnicas em

    geral associadas ao romance e ao conto. Era isso e mais. Era a

    descoberta de que possvel na no-fico, no jornalismo, usar

    qualquer recurso literrio, dos dialogismos tradicionais do ensaio

    ao fluxo de conscincia, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo

    tempo, ou dentro de um espao relativamente curto... para

    excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor.

    (WOLFE, 2005, p. 28)

    A nova modalidade que surgia contava com grande mudana na rotina dos

    profissionais que estavam dispostos a seguir com as propostas. A nova reportagem era

    mais detalhista, ambiciosa e, sobretudo, intensa. No contava com regras sacerdotais. O

    jornalista passava dias ou meses para apurar um determinado fato. A relao com as

    fontes eram amplificadas ao mximo, para que os relatos ficassem com diversos detalhes

    e da maneira mais rica possvel para o futuro texto. Mas Wolfe considera que o novo

  • 24

    jornalismo no poderia ser considerado como um movimento, j que no contava com

    agremiaes e associaes.

    A partir de 1966, o New Journalism passou a ganhar ainda mais fora,

    principalmente depois que a vida norte-americana se transformou no perodo que envolve

    o ps-guerra. Segundo ele, os romancistas no deram a devida importncia aos

    acontecimentos, o que gerou uma lacuna no mercado norte-americano, espao

    ligeiramente preenchido pelo novo jornalismo.

    Antes do manifesto de Wolfe, escritores j colaboravam muito com o novo

    jornalismo. Em 1946, John Hersey publicou o aclamado Hiroshima, que trazia uma

    narrativa com toques de romance para contar a tragdia com a bomba atmica na cidade

    japonesa. A idia do escritor foi a de apresentar a histria a partir do relato de seis

    sobreviventes. Dezenove anos mais tarde, a estratgia foi repetida com o tambm clebre

    A sangue frio, de Truman Capote. Para o escritor, o livro no era jornalismo, mas um

    romance de no-fico. A sangue frio traz tona a histria de dois bandidos que

    assassinaram uma famlia na cidade de Kansas, nos Estados Unidos.

    Para Wolfe, a ttica de Truman Capote em classificar a obra como um romance de

    no-fico nada mais era do que dar ao trabalho a chancela do gnero literrio que era

    dominante no perodo. Mas o que vai motivar esses novos escritores em suas obras ,

    como foi abordado anteriormente, uma insatisfao com as diversas regras de

    objetividade que reinavam nas redaes. O lead era um dos elementos mais combatidos

    por esses autores.

    Outro nome muito marcante no perodo o de Gay Talese, com obras importantes

    como Fama e anonimato, A mulher do prximo e O reino e o poder.

    1.3 Relevncia para o campo do jornalismo

    A adoo de tcnicas da literatura pelo jornalismo, com a criao de uma nova

    configurao discursiva aqui chamada de jornalismo literrio ou literatura de no-fico,

    tem trazido contribuies bastante relevantes para o campo do jornalismo. Tanto em

    termos de prticas cotidianas quanto na produo de reflexes e pesquisas sobre a

    ampliao do alcance das suas funes sociais, especialmente as de ferramenta para o

  • 25

    conhecimento do mundo real e de instrumento para a transformao de hbitos humanos

    j incompatveis com o nvel de desigualdade de renda e o grau de estafa do meio

    ambiente do planeta.

    Uma das contribuies mais palpveis, do ponto de vista do texto concreto, o

    aumento do prazer da leitura, provocado pelo apuro do texto jornalstico desenvolvido

    com apoio da arte da literatura. O uso de formatos geralmente utilizados para descrever

    situaes imaginrias tornam as reportagens mais prazerosas, mais saborosas e, com isso,

    e o leitor fica mais preso ao texto.

    Justamente por identificar esse potencial, Tom Wolfe - um dos principais nomes

    do New Journalism - estabeleceu como meta principal, ao modificar sua maneira de

    escrever as reportagens, usar tcnicas da literatura para excitar tanto intelectual como

    emocionalmente o leitor (2005, p.28). E, assim, prender leitores, dialogar com eles,

    mostrando o quanto a prpria realidade pode ser fustigante, incrvel e fantstica quando

    reportada com o uso de uma linguagem mais prxima da literatura.

    Resgatar o prazer da leitura era para Wolfe uma questo de honra quando ele

    comeou a escrever literatura de no-fico para a editoria de cidade e para o suplemento

    dominical New York do jornal Herald Tribune ou a revista Esquire. Especialmente no

    caso do New York, Wolfe sentia necessidade de dar aos leitores algo mais interesse para

    ler aos domingos, em lugar de entendi-los com caramelos mentais (2005, p.30), textos

    sem qualquer atrativo escritos na mesma poca:

    Os leitores no sentiam nenhuma culpa em deix-los de lado,

    jog-los fora ou nem olhar para eles. Nunca hesitei em

    experimentar qualquer recurso concebvel capaz de reter de

    algum modo o leitor por mais alguns segundos. Eu tentava berrar

    no ouvido dele: Fique aqui!... (WOLFE, 2005, p.30).

    O uso de tcnicas da literatura diferenciava o jornalismo de Tom Wolfe e seus

    colegas contemporneos de New Journalism dos demais textos jornalsticos na dcada de

    60 do sculo passado, que utilizavam uma linguagem resultante do processo de

    neutralizao, objetivizao, apagamento das marcas do autor e enxugamento do texto

    iniciado no final do sculo 19 e incio do sculo 20.

    Foi naquela poca que a notcia passou a ser um produto a venda, como explica

    Cremilda Medina (1988). Os jornais impressos consolidavam-se ento como negcio

  • 26

    comercial e no mais tanto como expresso de posicionamentos polticos de seus donos.

    No lugar das reportagens, dos folhetins, das crnicas e do jornalismo de opinio, nascia a

    notcia como baliza da informao pura, a informao apresentada de forma direta e

    supostamente objetiva e imparcial.

    A inveno do lead pelos jornalistas dos Estados Unidos trouxe impactos

    fortssimos para a forma de escrita de uma notcia. A resposta s seis perguntas bsicas (o

    que, quem, quando, como, onde e por que) logo no primeiro pargrafo do texto informava

    o leitor em poucos segundos sobre o que se tratava a histria. A notcia deveria ento

    seguir em tom neutro e objetivo, onde o autor se apaga como sujeito que compartilha o

    mesmo tempo e espao que os fatos noticiados e se torna mero intermediador de

    informaes.

    No h, assim, lugar para o jornalista que gosta de contar a realidade com a ajuda

    de tcnicas da literatura. A conseqncia a criao de uma iluso de autonomia do

    referente, ou seja, do fato reportado, com o ocultamento do processo social que

    possibilitou a notcia e a gerao de um efeito de objetividade (SATO, 2002, p.31).

    Com o tempo, esse tipo de jornalismo transformou o reprter em difusor de

    declaraes, acontecimentos e documentos oficiais, isto , matria-prima noticiosa que as

    estruturas de governo e as grandes empresas oferecem para a imprensa como notcia. A

    consolidao das assessorias de imprensa como servios produtores de press releases faz

    parte do mesmo sistema de indstria informativa voltada a difundir o discurso oficial

    (MEDINA, 1988).

    Somadas reduo do nmero de profissionais nas redaes, ao investimento

    cada vez mais raro em reportagem e prpria dinmica mercadolgica do jornalismo

    como negcio pouco lucrativo de um pool de empresas conglomeradas, frmulas como o

    lead acabaram substituindo a reportagem de rua pelo jornalismo de redao, em que toda

    a etapa de apurao ou captao de dados realizada dentro do prdio da empresa onde

    trabalha.

    Assim, a alma encantadora das ruas, to importante para reprteres como Joo

    do Rio (criador da expresso), foi sendo gradualmente substituda por um jornalismo

    menos preocupado com reportar a realidade com todos os seus detalhes e contradies. A

    valorizao da notcia em detrimento da reportagem culmina, no final do sculo 20 e

  • 27

    incio do sculo 21, em textos noticiosos escritos sem que o reprter ao menos pise na

    rua, bastando usar o telefonema e a Internet para elaborar leads tecnicamente perfeitos

    (MEDINA, 2003, p.79).

    Com a reduo do nmero de profissionais nas redaes e da estrutura disponvel

    e o crescente domnio do mercado por um nmero menor de empresas de comunicao

    (muitas vezes, ligadas a negcios milionrios de outros ramos, como telefonia e

    entretenimento, como j ocorre predominantemente nos Estados Unidos), a eficincia tem

    sido geralmente medida pela produtividade de notcias, ainda que superficiais e

    preliminares, e no tanto pelo aprofundamento de cada fenmeno social.

    A capacidade do jornalismo de tornar-se ferramenta para o conhecimento do

    mundo, ou de representar a complexidade do real, reduz-se na notcia resposta s

    perguntas mais imediatas do receptor da mensagem. A fragmentao dos fatos em

    notcias isoladas e superficiais, corroborada pela compartimentao dos jornais impressos

    em editoriais, no ajuda o leitor a compreender o mundo e realizar articulaes entre

    diferentes temas direta ou indiretamente interligados, como decises polticas e vida

    cotidiana, incentivos agricultura e a favelizao das periferias urbanas etc.

    Se esse tipo de jornalismo deixa os reprteres mais sensveis com os

    acontecimentos extra-muros da redao muitas vezes frustrados, como bem registra

    Cremilda Medina (2003, p.99), os leitores tambm j passam a exigir produtos melhores,

    ao menos no que tange ao jornalismo impresso, que sofre o impacto do deslocamento das

    notcias para veculos como maior capacidade de inform-las em tempo real, como a

    Internet, o rdio e a televiso.

    Em 1993, a pesquisa Truths to tell - Youth and Newspaper, realizada nos Estados

    Unidos pela ASNE Literacy Comitee Report4, mostrou que a pior forma de atrair leitores

    a notcia escrita e organizada de maneira convencional e que os leitores ficam mais

    tempo em pginas com notcias escritas com auxlio das tcnicas literrias. O estudo

    mostrou tambm que os textos que fazem algum esforo para explicar motivos, contextos

    e histricos de um fato tm atrado leitores jovens e menos instrudos.

    4 Disponvel em http://www.asne.org/index.cfm?id=2476

  • 28

    Tambm nos EUA, o Impact Study do Readership Institute5 (2001) deixou claro

    que, embora concorrentes da TV, da Internet e do rdio, os jornais impressos esto em

    boa posio no mercado e podem ganhar leitores se atenderem as suas expectativas. Para

    isso precisam, entre outros fatores, investir no contedo e na forma narrativa que o leitor

    preferir. No topo da lista dos dez contedos que mais interessam ao leitor dos EUA est a

    informao local aprofundada, especialmente sobre fatos ordinrios da cidade e a vida (e

    morte) das pessoas comuns. Neste caso, as matrias escritas com aprofundamento

    narrativo so mais lidas do que as escritas da maneira tradicional. A pesquisa comprovou

    que esse estilo de narrativa, marcadamente de jornalismo literrio, aumenta a satisfao

    do leitor e atribui valor marca do jornal.

    Baseado na prpria demanda comercial, o jornalismo chamado de literrio

    ressurge ao final dos anos 90, nos EUA, como mtodo para garantir a subsistncia dos

    peridicos impressos. O prazer do texto, ao mesmo tempo em que atrai leitores, d vazo

    ampliao do conhecimento sobre o mundo real, uma necessidade humana cada vez

    mais urgente em tempos de efeitos digitais e produes poltico-miditicas capazes de

    maquiar ou construir realidades.

    Assim, o jornalismo literrio resgata a funo primordial do campo como

    produtor de conhecimento e mais, apresenta-o como potencial motor de transformao de

    culturas e hbitos cotidianos. Isso ocorre porque, aliada fruio do texto, a principal

    contribuio das tcnicas de narrativa literria para o campo do jornalismo a retomada

    da capacidade de reportar a complexidade do real o abrir os olhos para o mundo como

    ele , no mais como um conjunto de dados estticos encaixveis em leads.

    A prpria funo social do reprter se modifica: no jornalismo literrio, no vale

    nada uma atuao supostamente neutra como mero intermediador de informaes

    oficiais; o que vale o jornalismo com marcas de autor, em que o conjunto de decises,

    escolhas, apuraes, observaes, angulaes e edies praticados pelo profissional do

    texto informativo se torna crucial para que o leitor possa compreender, em profundidade,

    o tema em tela.

    O desafio enxergar alm do cotidiano, que tem efeito de catarata, provocado

    pela iluso das certezas. O reprter tem que duvidar de suas certezas. O reprter mais

    5 Disponvel em http://www.readership.org/reports.asp

  • 29

    perigoso o que acha que j viu tudo, diz Eliane Brum6, documentarista e reprter

    especial da revista poca, ganhadora de mais de 30 prmios nacionais, entre eles um

    Esso por uma srie de matrias intitulada A vida que ningum v, publicada no dirio

    gacho Zero Hora, em 1999.

    Para Eliane, enxergar alm da iluso das certezas quer dizer voltar s ruas para

    ousar o confronto com o desconhecido, na tentativa de esclarecer questionamentos que a

    agenda dominante da mdia procura abafar. Interessante que ponto comum entre

    defensores do jornalismo literrio, ou mesmo do dito bom jornalismo, que o gnero

    tem uma funo revolucionria, de modificar hbitos e culturas, especialmente de ampliar

    a viso do leitor sobre o mundo.

    Encontra-se essa declarao, de formas diferenciadas, em Tom Wolfe, Gabriel

    Garca Mrquez, Cremilda Medina, Cludio Jlio Tognolli, Srgio Villas Boas e Edvaldo

    Pereira Lima, entre outros. J nos anos 70, quando os ecos do New Journalism no Brasil

    faziam da grande reportagem a meta da maioria dos jornalistas, as pesquisas sobre

    tcnicas de jornalismo literrio eram vistas pelo governo como tentativas de burlar o

    sistema, relata Cremilda Medina (2003, p. 129).

    Para alm de uma funo poltica ou ideolgica, entretanto, o jornalismo literrio

    tambm evoca uma mensagem de que possvel acrescentar criatividade, intuio e arte

    ao pragmatismo imposto pelas rotinas industriais dos peridicos impressos.

    O investimento de mais tempo no processo de captao e a prpria imerso nos

    fenmenos, prticas exigidas para a melhor concretizao da proposta, denotam a

    realizao de um trabalho quase artesanal na busca de articulao entre dados reais que

    possam colaborar para a compreenso do mundo.

    1.4. Principais contribuies acadmicas

    As fronteiras entre jornalismo e literatura, as diferenas entre o real e a fico, as

    marcas de autor versus a neutralidade do narrador, a formao literria dos jornalistas, o

    6 Declarao colhida por Katherine Funke durante palestra de Eliane Brum no Seminrio Brasileiro

    de Jornalismo Literrio, em So Paulo, em 23 de outubro de 2007.

  • 30

    prazer do texto com formato literrio so algumas das problemticas que tm marcado a

    produo acadmica sobre o campo do jornalismo literrio.

    Um dos primeiros estudos que j versava sobre as contribuies da literatura para

    as reportagens foi publicado em 1972, de forma artesanal, pelos pesquisadores Cremilda

    Medina e Paulo Roberto Leandro, em A arte de tecer o presente. Em 2003, Cremilda

    atualiza os dados e lana uma obra homnima onde relata a experincia de ensino e

    pesquisa de tessitura do real, como ela chama a narrativa do tipo jornalismo literrio. A

    pesquisadora lana propostas relevantes ao campo por incluir a discusso sobre as marcas

    do autor, o que abrange a incluso da intuio, da criatividade, da cidadania e at da

    solidariedade no trabalho pragmtico da reportagem.

    Simultaneamente e tambm logo depois de Cremilda Medina, outros

    pesquisadores contriburam para a discusso. Em 1993, Edvaldo Pereira Lima lana

    Pginas Ampliadas, resultado de sua tese de doutoramento, uma das obras mais utilizadas

    em cursos de graduao em jornalismo como incentivo grande reportagem, praticada

    em formato de livro, com tcnicas de jornalismo literrio.

    Em seu livro, Lima traz a hiptese que o livro-reportagem (uma das

    classificaes por ele proposta) estende a funo informativa e orientativa do jornalismo

    impresso cotidiano uma vez que cobre os vazios deixados pela imprensa, e amplia, para o

    leitor, a compreenso da realidade (LIMA, 1993, p.61).

    Para conseguir este objetivo, o livro-reportagem se utiliza das prticas inerentes

    do jornalismo, mas estas so ampliadas e at mesmo modificadas. Assim, o livro-

    reportagem ganha caractersticas especficas e, de acordo com Lima, fica no patamar de

    novo gnero. Tom Wolfe, segundo Lima, chegou a reivindicar o nvel de gnero

    literrio.

    Lima foi um dos fundadores de um grupo de pesquisa chamado Texto Vivo

    (www.textovivo.com.br), que desde a virada do milnio oferece, em parceria com

    universidades, cursos de ps-graduao em jornalismo literrio com turmas de alunos em

    So Paulo, Rio de Janeiro, Goinia e Porto Alegre. Assim, a produo de pesquisas sobre

    o campo tende a crescer nos prximos anos, ao lado da prpria prtica do jornalismo

    literrio.

  • 31

    Independente do Texto Vivo, contudo, a pesquisa sobre o jornalismo literrio tem

    sido realizada de forma crescente no Brasil. Por exemplo, o pesquisador Fernando

    Resende (2002) aprofunda-se nos limites e contribuies entre literatura e jornalismo na

    anlise da obra de Tom Wolfe. Ele rediscute caractersticas bsicas do jornalismo

    (atualidade, objetividade e realidade) a partir das luzes lanadas por Wolfe em Radical

    Chique para concluir que as tcnicas do jornalismo literrio melhoram o jornalismo.

    J pesquisadora Cristiane Costa (2005) lana Pena de aluguel, um estudo que

    entrelaa os campos do jornalismo e literatura do ponto de vista de quem os pratica no

    mercado. Ela pesquisou a fundo as caractersticas isoladas e entrelaadas dos dois

    campos (jornalismo e literatura) no incio de 1900 e 2000, para comparar o resultado da

    enquete realizada por Joao do Rio em 1904.

    A enquete de Joo do Rio buscava saber se o jornalismo era atividade que

    atrapalhava ou ajudava no desenvolvimento da literatura. O resultado, um empate entre

    considerar o reprter um escritor prostitudo e o jornalismo como fonte digna de renda

    para escritores, intrigou Cristiane Costa. Entre as concluses da pesquisa da autora, que

    bastante ampla, est o fato de que a literatura de no-fico tem conquistado o mercado

    literrio, especialmente no formato de livros-reportagens.

    A discusso j suscitou uma srie de outros estudos, como a coletnea de artigos

    Jornalismo e literatura a seduo da palavra, organizada por Gustavo de Castro e Alex

    de Galeno, alm de publicaes especficas sobre o uso de tcnicas de literatura na

    construo de perfis e biografias, como fez Srgio Vilas Boas.

    O pesquisador Carlos Rog Ferreira ampliou a discusso com a tese de doutorado,

    que resultou no livro Literatura e jornalismo, prticas polticas, onde examina algumas

    relaes existentes entre contradiscursos (um discurso emancipador de esquerda e

    narrativas literrio-jornalsticas). Ferreira analisou treze obras escolhidas por serem

    modelos com caractersticas das relaes mencionadas. Entre as obras, o pesquisador

    analisou Miami e o cerco de Chicago, de Norman Mailer; Os honrados mafiosos, de Gay

    Talese; Lvio Flvio, o passageiro da agonia, de Jos Louzeiro; Rota 66, de Caco

    Barcellos. Ferreira defende que as produes jornalsticas e literrias sejam entendidas

    como lugares importantes de descoberta e afirmao dos indivduos e das coletividades,

    ligadas, entre outras, s questes das prticas transformadoras.

  • 32

    1.5. Caractersticas intrnsecas do jornalismo literrio

    O estudioso Edvaldo Pereira Lima diz que as tcnicas do jornalismo literrio

    podem ser aplicadas em livros-reportagem, gnero7 mais conhecido no Brasil. Para ele, o

    livro-reportagem persegue o objetivo de ampliar a compreenso da realidade pelos

    leitores. Para isso, o livro-reportagem maximiza os recursos operativos inerentes prtica

    jornalstica e ganha caractersticas individualizadas.

    Atravs do acompanhamento das etapas de elaborao da reportagem pauta,

    captao e redao (incluindo aqui a edio), Lima sustenta que possvel evidenciar as

    limitaes da imprensa regular. Para ele essas limitaes podem ser ultrapassadas no

    livro, no qual a primeira marca caracterstica, muitas vezes, a liberdade do autor.

    Assim, o jornalista pode fugir dos ditames convencionais que restringem sua tarefa de

    construtor de mensagens na imprensa cotidiana.

    O pesquisador Edvaldo Pereira Lima apresenta trs momentos bem definidos da

    produo de uma mensagem jornalstica: a extenso pela pauta, a complementao pela

    captao e a fruio pelo texto. A cada um desses momentos, o autor detalha as

    caractersticas que diferenciam o jornalismo literrio do jornalismo cotidiano,

    factualizado e limitado pelo foco nos acontecimentos do dia. Estas caractersticas sero

    melhor aprofundadas nos prximos itens.

    J o jornalista norte-americano Tom Wolfe apresenta quatro caractersticas

    fundamentais: construo cena-a-cena, dilogos completos, observao participante e

    autpsia social. No momento da escrita do texto, h uma clara aproximao com as

    formas narrativas da literatura, como identifica o prprio Tom Wolfe e tambm Lima e

    Resende. Para Wolfe, o objetivo do uso dos recursos literrios em textos de no-fico

    era o de excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor.

    Porm, Srgio Vilas Boas, em seu livro O estilo magazine: o texto em revista, diz

    que no a supra-realidade8 que interessa ao jornalismo.

    7 Os autores Muniz Sodr e Maria Helena Ferrari, em Tcnica de reportagem: notas sobre a

    narrativa jornalstica colocam o livro-reportagem como gnero. O norte-americano Tom Wolfe tambm

    reivindicou o nvel de gnero literrio para a modalidade. 8 Vilas Boas aqui se refere diferena entre o redator, para quem a linguagem puro instrumento

    do pensamento, um meio de transmitir realidades, e o escritor que, ao contrrio, tem a linguagem como um

    lugar dialtico que permite a traduo de diferentes matizes do real.

  • 33

    O que interessa a preciso, pois tudo que se escreve em

    jornalismo dever ser verificvel, comprovado na realidade

    imediata. A realidade do jornalismo se aproxima, ento, de uma

    literatura no exatamente ficcional. Mas isto no impede o

    contrrio: que a literatura de fico, no conceito clssico, se

    utilize da realidade imediata e comprovvel. (VILAS BOAS,

    1996, p. 59)

    E o estudioso Vilas Boas vai alm na tentativa de esclarecer a ligao jornalismo e

    literatura e diz que a reportagem narrativa um dos gneros mais importantes em

    jornalismo e, provavelmente, o que mais aproxima o jornalismo da literatura. Para ele, o

    jornalismo uma das categorias da literatura. Em outras palavras, literatura de massa.

    1.5.1. A extenso pela pauta

    No primeiro momento, da extenso pela pauta, segundo Edvaldo Pereira Lima,

    existem algumas liberdades em relao imposio da atualidade do jornalismo dirio,

    como a da presentificao.

    Naturalmente que, para o leitor, muitas mensagens no

    necessitam ultrapassar o mbito do efmero. Mas quando se trata

    da reportagem, cujo objetivo o aprofundamento, a definio da

    pauta pelo critrio de atualidade pode revelar-se incua, uma vez

    que muitos fenmenos que nos afetam escapam de uma

    conformao atual, no sentido restrito, tendo muito mais a ver

    com uma concepo um pouco mais dilatada de tempo presente.

    (LIMA, 1995, p.64)

    A liberdade temporal avana para o relato da contemporaneidade, resgatando no

    tempo algo mais distante do atual, mas que segue causando efeitos. Assim, h uma

    liberdade de eixo de abordagem, que desobriga o texto a girar em torno do acontecimento

    factual, o que cria uma liberdade temtica. A reportagem de jornalismo literrio fica,

    portanto, livre para tratar de assuntos ausentes da agenda dominante da mdia naquele

    momento, assim como a liberdade de fontes, j que fontes de diferentes tipos, no apenas

    as usuais, podem ser ouvidas para a construo do texto.

    Segundo Lima, a periodicidade impe padres de rotina ao jornalismo e, ao

    mesmo tempo, alia-se a outros dois fatores nocivos para uma comunicao alm do

  • 34

    carter informativo. So eles: construo da mensagem pela frmula mais rpida, porm

    menos criativa, do texto pasteurizado das caractersticas impostas ao jornalismo (o que,

    quem, quando, onde, como e nem sempre porqu) e a recorrncia apenas a fontes

    legitimadas, ou seja, institucionalizadas como tais. Assim, o jornalista recorre sempre as

    mesmas fontes, que so mais fceis de localizar do que procurar vrias pessoas no

    legitimadas ou pouco distantes do assunto. E Lima explica como, de sbito, Dr. X

    guinado posio de grande especialista em determinado assunto e sempre procurado

    para falar, em detrimento de outros especialistas que tambm podem falar sobre o

    assunto, em respeito quebra de rotina para o leitor.

    A presso padronizadora e legitimadora favorece uma definio viciada das

    realidades sociais selecionadas para o relato jornalstico e deixa escapar muitos fatos que

    por este vis - no apresentam relevncia social. Muitos desses fatores no se encaixam

    s definies prvias, ou no se ajustam aos prazos de fechamento ou da narrativa

    conhecida, e ficam simplesmente de fora. Com isso, as reportagens ficam presas ao

    factual e no abordam as questes contundentes que conformam os acontecimentos.

    Lima apresenta outro agravante desse procedimento operacional viciado: a

    manipulao ideolgica ou de comprometimento atrelado a interesses mercadolgicos.

    Ou seja, estratgias para conquistar, a qualquer preo, o leitor, que perde a chance de

    captar o sentido mais profundo da contemporaneidade. Muito mais ainda quando entra

    em campo um certo emocionalismo, tpico do latino, distorcendo a leitura do real

    (LIMA, 1995, p.67).

    Tudo isso contribui para a m qualidade da reportagem que, conforme colocou

    Lima, nasce na pauta, a primeira etapa do processo de produo da mensagem

    jornalstica.

    A pauta a definio de rumos, o estabelecimento de diretrizes

    que, quando mal-administrada, conduz a matria a terrenos

    pouco frteis (). Caso as coordenadas sejam viciadas, naturalmente a navegao ser pobre, menos eficiente, podendo

    hipoteticamente chegar, em condies extremas, a se desviar

    totalmente do destino previsto. (LIMA, 1995, p.68)

    A estudiosa Cremilda Medina acrescenta que, nas rotinas de redao, as pautas

    pecam pela falta de domnio tcnico-profissional e, muitas vezes, por falta de

  • 35

    imaginao, um veculo pauta o outro. Medina tambm identifica problemas na

    angulao da pauta (perspectiva bsica sob a qual a reportagem ser desenvolvida) que

    resolve-se pelas relaes entre os nveis grupal, massa e pessoal da comunicao

    (MEDINA, 1982, p. 143 e 145).

    Para Cremilda, o nvel grupal identifica-se com a caracterizao da empresa

    jornalstica onde essa pauta vai ser transmitida. A empresa, uma vez conectada a um

    grupo econmico e poltico, conduz o comportamento da mensagem da captao do real

    sua formulao estilstica. Medina acrescenta que este nvel mais evidente nas pginas

    editoriais, mas pode ser detectado mais sutilmente em toda a codificao de jornalismo

    informativo.

    H tambm a angulao pelo nvel massa como elemento limitador da pauta diria

    do jornalismo convencional. Essa angulao seria a preocupao em corresponder a um

    gosto mdio ou, dito de outra forma, o uso de tcnicas que apresentam a informao

    com certos ingredientes de consumo. Por fim, Medina fala do nvel pessoal da angulao

    que oferece maior grau de autonomia ao autor do texto. A estudiosa, porm, faz a

    ressalva que essa autonomia se dilui bastante numa criao cada vez mais annima nas

    redaes. Alm disso, um profissional prestigiado, por seu toque pessoal de qualidade na

    produo de matrias, segue tendncias do consumo de massa e no vai contra o nvel-

    empresa porque seno seria dispensado.

    Outro aspecto apresentado por Lima a busca pela apreenso mltipla de aspectos

    da realidade. Para isso, prev a localizao dos conflitos relativos questo que ser tema

    da reportagem. Os conflitos, ou embates entre foras e/ou entre personagens, devem ser

    compreendidos e transcendidos para permitir a identificao de causas, efeitos e foras

    protagonistas da reportagem. Lima diz que esse processo deve ser feito na elaborao da

    pauta, uma leitura sistemtica do assunto que vai ser trabalhado.

    Analisar, decompor, o sistema visado em sua estrutura bsica e

    encontrar, como ponto de partida, os conflitos resultantes dos

    estrangulamentos sistmicos, o que facilita, num segundo passo,

    interpretar causas e consequncias. Se queremos produzir um

    material sobre a queda do servio hospitalar pblico no pas, a

    abordagem sistmica com certeza auxilia a encontrar os pontos

    nevrlgicos da questo, nos seus aspectos contextuais,

    processuais e temporais. (LIMA, 1995, p. 78)

  • 36

    Feita esta anlise da elaborao da pauta, em busca da captao do real, Lima nos

    apresenta um conjunto de liberdades disponveis que privilegiam o livro-reportagem:

    liberdade temtica, liberdade de angulao, liberdade de fontes, liberdade temporal,

    liberdade de eixo de abordagem e liberdade de propsito.

    Partindo do pressuposto que o livro-reportagem tem a possibilidade da

    diversidade temtica, Lima acrescenta que este gnero abraa temas que no foram alvo

    de abordagem pela imprensa ou foram de forma superficial ou no tiveram o mesmo

    enfoque dado pelo livro.

    Esta liberdade temtica pode ser ilustrada por uma srie de livros-reportagem e

    at mesmo de grandes reportagens veiculadas em jornais e revistas, j que, como j foi

    dito, Lima escolhe o livro-reportagem para a sua anlise, mas as caractersticas so de

    jornalismo literrio e, estas, podem ser aplicadas em outros formatos de produtos

    jornalsticos.

    Na liberdade de angulao, Lima defende que o livro-reportagem uma obra do

    autor e, assim sendo, desvinculado, pelo menos em tese, do comprometimento com o

    nvel grupal, de massa e com o pessoal. () seu nico compromisso com a sua prpria

    cosmoviso e com o esforo de estabelecer uma ligao estimuladora com seu leitor,

    valendo-se, para isso, dos recursos que achar mais convenientes, escapando das frmulas

    institucionalizadas nas redaes (LIMA, 1995, p. 83). Podemos, aqui, dar como

    exemplo o livro A sangue frio, de Truman Capote, lanado em 1966 nos Estados Unidos.

    No livro, Capote apresenta o caso de uma famlia rural do Kansas que foi assassinada.

    Para faz-lo, o autor passou cinco anos entrevistando fontes, especialmente os dois

    assassinos. Ficou claro na obra-prima de Capote que ele teve plena liberdade de

    angulao, pois revelou como autor seu apreo pelos bandidos (alguns at diziam que ele

    teria se apaixonado por um deles), o que contraria o consenso geral da poca nos EUA,

    legitimado pela legislao daquele pas, de condenao sumria dos assassinos.

    Da mesma forma, no estando atrelado ao ritmo compulsivo de produo das

    redaes, Lima apresenta a liberdade de fontes, quando o jornalista pode fugir do estreito

    crculo de fontes legitimadas e usar um nmero variado de entrevistados. Um bom

    exemplo Hiroshima, de John Hersey, lanado em 1946. O livro reconstitui o dia da

  • 37

    exploso da bomba atmica a partir dos depoimentos dos seis sobreviventes e, para

    completar o trabalho, Hersey voltou cidade 40 anos depois.

    Lima, para exemplificar outra liberdade, a temporal, cita do exemplo do livro

    1968, o ano que no terminou, de Zuenir Ventura. No livro, segundo Lima, Ventura

    recupera um importante momento histrico do Brasil, trazendo vrios atores que so

    personalidades atuantes na atualidade. Esta liberdade possibilita a fuga da presentificao

    restrita e avana para o relato da contemporaneidade, resgatando no tempo mais distante

    do de hoje, mas que segue causando efeitos neste (LIMA, 1995, p.85).

    A liberdade do eixo de abordagem tambm permitida no livro-reportagem, de

    acordo com Lima. Dessa forma, o livro-reportagem no precisa ficar preso na

    factualidade, no acontecimento, mas pode vislumbrar um horizonte mais amplo atravs

    do fato e tambm descortinar questes mais duradouras que compem as linhas de fora

    que determinam os acontecimentos. Com esta flexibilidade de mergulho em situaes e

    questes, o autor pode encontrar, de forma mais satisfatria, o mago dos conflitos. Foi o

    que ocorreu em O teste do cido do refresco eltrico, onde Tom Wolfe conta a histria de

    um grupo de precursores do cido lisrgico, aproveitando os fatos para analisar os efeitos

    do uso da droga, associando-os a toda uma srie de contextos da poca e interesses

    humanos universais, e atemporais, pelo que h alm da realidade concreta.

    Para Lima, estas liberdades j apresentadas possibilitam que o livro-reportagem

    tenha propsitos mais elevados que a reportagem comum, j que confunde, mistura

    dados. A liberdade de propsito pode ser exemplificada no livro O segredo de Joe Gould,

    de Joseph Mitchell, de 1942. O livro nos apresenta um bomio culto, excntrico e pobre

    que guarda um segredo, mas tambm nos revela o esprito de Nova Iorque naquela poca.

    Mitchell ficou famoso por revelar personalidades comuns, gostava sempre de evitar os

    famosos. Costumava dizer: eles so to grandes quanto voc, seja voc quem for.

    1.5.2. Captao dos dados

    J o segundo momento categorizado por Lima, o da captao dos dados, mantm,

    muitas vezes, as limitaes e as inadequaes do jornalismo cotidiano. Com uma pauta

    bem elaborada, o jornalista tem as diretrizes para a coleta, via pesquisa de material

  • 38

    registrado livros, sonoras, documentos, outras matrias etc -, de entrevistas, pesquisas

    de tipo sociomtrico e observaes.

    Lima defende que uma reportagem de profundidade exige um bom trabalho de

    documentao, ou seja, o estabelecimento de relaes entre fatos isolados e situaes

    globais, de interpretao dos significados da contemporaneidade para o leitor. Para ele,

    no entanto, isso est longe de acontecer e diz que os jornalistas sofrem de uma

    cosmoviso desatualizada, uma atrofia de viso. Em funo disso, o jornalista limita-se

    simplificao do real, ao conceito de certo e errado.

    Um dos mais importantes instrumentos de captao, a entrevista, comea assim a

    receber crticas no meio acadmico que discute os mtodos e novos rumos para sua

    eficcia no processo de compreenso do real. Estas crticas, partindo especialmente de

    Cremilda Medina, se baseiam no fato de que a compreenso do real, no seu aspecto de

    humanizao, pressupe um dilogo interativo entre o entrevistador e o entrevistado, ou

    seja, o jornalista e a fonte. Com isso, cria-se uma interao humana entre o receptor e o

    personagem dos acontecimentos e das situaes, atravs do jornalista, que um

    representante do pblico.

    Lima acrescenta que o papel do jornalista, quando bem-sucedido, o de tanto

    criar identificao e projeo quanto o de estabelecer um distanciamento crtico

    consciente, vvido. A misso do jornalista, nesse caso, estimular uma conexo entre

    entrevistado e receptor. auxiliar a compreenso do real, mas tambm colocar a dose

    adequada de emoo, sem a qual nenhum ato comunica na dimenso humana o que o

    jornalismo pretende (1995, p.90). Cremilda vai alm.

    Enquanto insistirmos na competncia do fazer, despojada de

    significado humano, pouco se avanar no dilogo possvel

    numa sociedade em que impera a diviso, a grupalidade, a

    solido. Se os meios so de comunicao, que se encare ento o

    que comunicar, interligar. O maior obstculo o dirigismo

    com que se executam as tarefas de comunicao social. Na

    maior parte das circunstncias, o jornalista imprime o ritmo de

    sua pauta e at mesmo preestabelece as respostas; o interlocutor

    conduzido a tais resultados. () O que menos interessa o modo de ser e o modo de dizer daquela pessoa. O que

    efetivamente interessa cumprir a pauta que a redao de

    determinado veculo decidiu. (MEDINA, 1986, p. 07)

  • 39

    Mesmo com essas crticas, Medina acredita no potencial da entrevista para ser um

    dilogo democrtico, o que ela denomina de plurlogo. A pesquisadora classifica as

    entrevistas em dois grandes grupos: as de espetacularizao (caricatura das possibilidades

    humanas) e as de compreenso (busca o aprofundamento).

    Nas entrevistas de espetacularizao, Medina (1986, p. 15) define quarto

    subgneros: o perfil do pitoresco (foco em traos sensacionalistas); o perfil do inusitado

    (aspectos exticos do entrevistado); o perfil da condenao (colocando o entrevistado de

    forma simplista na condio de ru ou vilo) e o perfil da ironia (tambm realiza um

    julgamento aprioristicamente condenatrio do entrevistado, mas num nvel superior de

    sutileza).

    No segundo grupo da compreenso, Medina aponta cinco subgneros: a entrevista

    conceitual (na qual o reprter versa sobre diferentes temas, com especialistas em cada

    rea); a entrevista/enquete (em que um nico tema privilegiado pela pauta ou por

    questionrios bsicos aplicados fontes escolhidas aleatoriamente); a entrevista

    investigativa (coleta de informaes em off e em on e que ajuda matrias investigativas e

    de denncia); a confrontao-polemizao (mesa-redonda, debate, simpsio, painel ou

    seminrio, quando fontes antagnicas so simultaneamente entrevistadas) e o perfil

    humanizado (proposta de compreenso ampla do entrevistado). E acrescenta que:

    tcnica de obteno de informaes que recorre ao particular, a

    entrevista vale-se de fontes individualizadas e lhe d crdito,

    sem preocupaes cientficas. Isso no invalida o aleatrio na

    seleo de fontes porque qualquer pessoa procurada no

    anonimato tem alguma coisa importante a dizer. (MEDINA,

    1986, p. 19)

    Saindo do campo da entrevista, Lima apresenta a importncia da observao no

    momento de captao para a elaborao de um texto (ou matria jornalstica). Introduz a

    idia da observao participante, que quando o observador estabelece um grau de

    interaes dentro dos grupos observados de modo a reduzir estranhezas mtuas. E

    apresenta tcnicas: o da pesquisa participante (tcnica de observao participante) e o de

    pesquisa-ao (supe uma participao dos interessados na prpria pesquisa organizada

    em torno de determinada ao).

  • 40

    Essa etapa no processo de produo no jornalismo, segundo Lima, tambm

    encontra problemas por conta do esquema regular da imprensa cotidiana. Para ele, a

    grande reportagem deve fugir desse esquema e ater-se a observao intensa, demorada.

    Tudo isso para recuperar a arte da narrao que envolve uma finalidade que ultrapassa o

    meramente informar. Medina completa:

    ao lidar com o perfil humanizado, consciente ou

    inconscientemente, faz-se presente o imaginrio, a subjetividade.

    Como enquadrar nos limites de um questionrio fechado, de uma

    cronologia rgida, de uma presentificao radical, uma

    personagem que ultrapassa estes ditames? O dilogo possvel, se

    acontecer, j encontraria esta frmula. O entrevistado passeia em

    atalhos, mergulha e aflora, finge e , sonha e traduz seu sonho,

    avana e recua, perde-se no tempo e no espao. (MEDINA,

    1986, p. 43)

    E, aqui, mais uma vez aparece a questo da subjetividade na mensagem

    jornalstica, especificamente na etapa de captao. Lima defende que no se trata mais de

    elementos pouco produtivos de evaso e de fantasias gratuitas e, sim, perceber uma viso

    mais completa da realidade. Alm disso, propor ao leitor uma leitura abrangente dos

    acontecimentos, das situaes e dos personagens que esto imersos num universo

    complexo em que o real concreto e imaginrio interpretem-se, combinam-se.

    A captao, alm da entrevista e da observao, encontra na documentao

    (coleta, exame, classificao e uso de dados disponveis na sociedade, em seus mais

    diversos meios), outra ferramenta indispensvel que, de acordo com Lima, alcanou um

    nvel bom nas grandes empresas produtoras. Este nvel o resultado das criaes dos

    departamentos de pesquisa que mantm um respeitvel volume de informaes

    diversificadas. Mas, somente isso, no garante um bom uso delas. O aproveitamento de

    toda essa informao no garante qualidade na produo jornalstica. Segundo Lima,

    existe uma grande produo, mas dada pouca importncia pesquisa e interpretao

    dos fatos.

    Para isso, preciso sensibilidade do profissional e condies de trabalho, para que

    seja possvel a ampliao de cada vez mais realidades das que se justapem na ordem

    hierrquica estabelecida sistemicamente e uma abertura para a incorporao de novas

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    lentes (criadas pela cincia, pelas artes) disponveis pela prpria sociedade em busca de

    conhecimento prprio e sobre o mundo.

    Feita essa anlise do campo da captao, Lima apresenta os instrumentos que o

    livro-reportagem se utiliza (ou poderia utilizar), uma vez estando de fora das rotinas

    aprisionantes e repetitivas do jornalismo cotidiano.

    O primeiro instrumento apresentado o de entrevistas de compreenso. Segundo

    Lima, em sua pesquisa, somente encontrou entrevistas de compreenso nos livros-

    reportagem. Num mesmo livro, vrias entrevistas aparecem e, a depender do momento,

    apresentada dentro de um dos seus subgneros. Ou mesmo uma grande entrevista que

    apresentada, num momento, dentro de um e depois de outro subgnero. Porm, Lima

    sustenta que a entrevista desponta como uma forma de expresso em si, dotada de

    individualidade, fora, tenso, drama, esclarecimento, emoo, razo, beleza.

    Nasce da o dilogo possvel, o crescimento do contato humano

    entre entrevistador e entrevistado, que s acontece porque no h

    pauta fechada castrando a criatividade. Em muitas ocasies,

    surge o painel de multivozes e o reprter, o autor, apenas um

    sutil maestro que costura os depoimentos, interliga vises de

    mundo com tal talento que parece natural tal arranjo, como se

    surgisse ali espontaneamente, perfeito. Nessas ocasies, o

    jornalista-escritor atinge uma situao mxima de excelncia no

    domnio da entrevista: a de tecedor invisvel da realidade.

    (LIMA, 1995, p. 107)

    Histrias de vida tambm so utilizadas pelo livro-reportagem, seja em forma

    clssica de entrevista (reproduo do dilogo) ou como depoimento direto. Acontece

    tambm uma mescla dessas duas modalidades com narrativa em primeira ou terceira

    pessoa. Lima ainda apresenta as divises dessa modalidade apresentada por Dulcdia

    Buitoni (em Texto-documentrio: espaos e sentidos. Livre-Docncia. ECA-USP, 1986):

    autobiografia (o ator fala por si s); entrevistas biogrficas (o entrevistador serve apenas

    como ouvinte ou tambm interfere na estrutura do relato); fonte complementar de

    pesquisa (as histrias de vida como um meio complementar de coleta de dados) e o

    suporte de pesquisa (as histrias so o principal suporte elucidador da rede de relaes

    sociais).

    Mas a observao participante talvez seja a contribuio mais forte do New

    Journalism s tcnicas de captao, pois envolve uma situao quase impossvel no

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    jornalismo cotidiano: a do reprter que mergulha no universo estudado (s vezes sem se

    identificar como reprter ou sem anunciar que escrever sobre aquilo que vive) de modo

    a retratar a realidade com a maior fidelidade possvel, tendo acesso aos dados de

    maneiras muitas vezes informais, mas autnticas.

    Um bom exemplo (entre tantos outros) o de Hunter Thompson, que fez parte da

    turma dos Hells Angels por 18 meses para poder escrever o livro Hells Angels - medo e

    delrio sobre duas rodas. O captulo final conta o espancamento de Thompson pelo

    grupo.

    Outra ferramenta de captao o resgate de memria, a busca de riquezas

    psicolgicas e sociais. Pela reconstruo ultrapassado o limite da informao concreta

    nua, chegando-se a uma dimenso superior de compreenso tanto dos atores sociais como

    da prpria realidade maior em que se insere a situao examinada.

    Na captao de dados, usa-se tambm a documentao, que consiste em recolher

    dados em fontes reconhecidas para lig-los a fatos aparentemente isolados. Isso porque o

    jornalismo literrio foca mais na questo do que no fato, ou seja, a partir do fato pode-se

    ampliar a compreenso do universo tratado. Mas, apesar do recurso ser usado pelo

    jornalismo cotidiano, no livro-reportagem que os autores se preocupam com pesquisas

    docum