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  • MEMRIA CULTURAL E IMAGINRIOPS-COLONIAL: O LUGAR DE LLIA MOMPL

    NA LITERATURA MOAMBICANA

    Anselmo Peres Als*

    Resumo: Na primeira parte deste trabalho,1 realiza-seuma reflexo sobre a questo da memria e doimaginrio ps-colonial no campo dos estudos literriosque se dedicam compreenso das literaturas lusfonas.Busca-se compreender de que maneira tais investigaespodem colaborar para uma descolonizao doimaginrio nas literaturas das ex-colnias portuguesas,dando particular ateno ao caso da literaturamoambicana. Na segunda parte, realiza-se uma leiturainterpretativa do livro Ningum matou Suhura (1988),de autoria da escritora moambicana Llia Mompl, natentativa de rastrear as maneiras e os mecanismosdiscursivos mobilizados pela autora no sentido detransformar as sofridas memrias colonialistas emmaterial para sua composio literria.

    Palavras-chave: Memria e histria; imaginrio ps-colonial; literatura moambicana; Llia Mompl;Ningum matou Suhura.

    * Instituto Superior de Cincias e Tecnologia de Moambique e Instituto Superiorde Comunicao e Imagem de Maputo.1 O presente trabalho um dos resultados parciais do meu projeto deinvestigao, intitulado Narraes do inenarrvel: a questo da identidadenacional nas literaturas brasileira e moambicana (iniciado em fevereiro de2010 e concludo em fevereiro de 2011), desenvolvido sob os auspcios daEmbaixada do Brasil em Maputo e do Instituto Superior de Cincias eTecnologia de Moambique (ISCTEM).

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    O comparatismo e as literaturas lusfonas

    Um vislumbre pela histria da constituio do comparatismocomo campo de investigao nos estudos literrios evidencia suasconexes, desde suas origens at as suas tendncias contemporneas,de seus estreitos vnculos com as polticas da produo cultural.Ao longo das ltimas dcadas, a literatura comparada ramificou-se, ampliando seu campo de forma a dar conta das relaes entreculturas distintas, bem como dos diferentes extratos culturais deuma mesma comunidade discursiva identificada sob a gide dacategoria nao. Nos seus mais recentes desdobramentos, os estudoscomparatistas comeam a questionar as definies hegemnicase historicamente consagradas sobre os limites do campo literrio,sobre a legitimidade dos discursos tericos que tomam a literaturacomo objeto, e sobre o papel do ensino de literatura nasuniversidades. Na esteira dos estudos contemporneos deliteratura comparada, o carter apriorstico do discurso literriovem sendo questionado, uma vez que, se a literatura um discursoresultante de prticas sociais intersubjetivas, sua especificidadeno passa de um jogo de convenes cristalizado em determinadosmomentos histricos. A noo de literatura nacional vem sendoavaliada atualmente em seus estritos vnculos com os processosde instaurao das comunidades imaginadas, termo queBenedict Anderson utilizou para descrever os processos histricosde constituio dos nacionalismos europeus no sculo XVIII emseu livro Nao e conscincia nacional (1989). O valor artsticodos artefatos literrios, por grande tempo considerado umaqualidade intrnseca aos textos, passa a ser visto como o resultadoda interao de fatores intrnsecos e extrnsecos, fatores estes quesempre incluem nuances polticas, refratando os interesseshegemnicos.

    A partir do abalo ssmico produzido pelas diversas correntesdo pensamento contemporneo, a teoria literria passou a questionare historicizar a genealogia de suas prprias categorias de anlise,

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    e a pretenso ao universalismo vem sendo abandonada em nomede uma reflexo sobre as condies histricas e contextuais emque seu prprio discurso formulado. Tais consideraes noimplicam no abandono da especificidade da literatura frente aoutras prticas discursivas, mas em um redimensionamento doseu funcionamento na esfera da cultura, o qual ultrapassa oslimites da fruio esttica. neste contexto que os estudos literriosganham uma relevncia estratgica como campo de conhecimento.Tal como afirma Mary-Louise Pratt,2 fundamental que os estudosde literatura comparada sejam reconfigurados como lugar derenovao e interveno intelectual no estudo da literatura e dacultura. Em tempos de disporas e exlios transnacionais de escalaplanetria, produzidos por um sem-fim de conflitos tnico-raciais,pela intolerncia religiosa e pelos novos fundamentalismos, aliteratura comparada transforma-se em um espao particularmenteprofcuo para o cultivo do multilinguismo, da mediao culturale conscincia planetria, possibilitando a imaginao de novasformas de cidadania em um mundo globalizado.

    Tais reflexes so de particular relevo quando o objeto deestudo em questo so os textos literrios produzidos em Angola,Cabo Verde, Moambique e Timor Leste, pases que at 1975estavam sob o domnio colonial portugus. Enquanto os paseseuropeus constituram suas identidades nacionais em fins dosculo XVII e incios do XIX, e grande parte das naes americanasj havia consolidado seus projetos nacionalistas em fins do sculoXIX, cabe lembrar que em muitas das naes lusfonas o processode constituio de identidades nacionais atravs do discursoliterrio inicia-se apenas ao final do sculo XX. de sintomticaimportncia, por exemplo, o ano de 1999: de um lado, a UnioEuropia adota uma moeda nica, em sintonia com os processosde globalizao da economia e da circulao do capital (inclusivecultural); de outro, o Timor Leste, depois de mais de vinte anos de

    2 PRATT. Comparative literature and global citizenship, p. 58-65.

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    ocupao indonsia, finalmente alcana sua independnciapoltica. Estar-se-ia vivendo um perodo de globalizao doimaginrio, correlativo globalizao do capital econmico e dasrelaes internacionais? Ou ser que a literatura, na contramoda globalizao econmica do planeta, estaria a funcionar comoum processo simblico e discursivo que, a contrapelo dahomogeneizao cultural, insiste no carter irredutvel da diferenacomo capital cultural fundamental na economia das relaeshumanas?

    Dois romances portugueses recentes (publicados em2008, mas que apenas agora comeam a reverberar nas discussesliterrias) merecem ser aqui mencionados. So eles A batalha daslgrimas, de Joana Ruas, e O ltimo ano em Luanda, de TiagoRebelo. No primeiro, a autora escreve um longo romance histricoambientado no Timor Leste, que cobre o perodo entre 1870 e1910, perodo entre os acontecimentos decorrentes do UltimatoBritnico e o fim da Monarquia em Portugal; no segundo, Rebelonarra os acontecimentos que tiveram lugar entre 25 de abril de1974 e o dia da Independncia de Angola (11 de novembro de1975). Enquanto a narrativa de Joana Ruas sensibilizou leitoresportugueses e timorenses em funo da textualizao de umimportante perodo da histria do pas, Tiago Rebelo, por sua vez,despertou a ira dos leitores angolanos (e de alguns portugueses)em funo da perspectiva neo-colonialista que atravessa as pginasdo referido romance.

    Estes fatos colocam em relevo novas e instigantesquestes: se de um lado possvel afirmar que a expresso literrianos pases africanos lusfonos j alcanou uma substanciosaautonomia frente aos postulados estticos eurocntricos, de outrocabe lembrar que alguns escritores portugueses tambm esto arepensar os processos histricos que levaram independnciadas ex-colnias portuguesas. Por fim, exceo dos romances deLus Cardoso e dos poemas de Xanana Gusmo, as letrastimorenses permanecem praticamente desconhecidas do pblicoleitor brasileiro e portugus. Tais fatos levantam pontos fulcrais

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    quando no peremptrios para uma melhor compreenso daproduo literria contempornea nas naes lusfonas. Quaisso os recursos que esto sendo mobilizados na formulao ereformulao das memrias, das imagens e dos smbolos culturais via literatura ligados aos acontecimentos histricos que levaramao fim do colonialismo portugus, por parte dos escritoresangolanos, moambicanos, cabo-verdianos e timorenses? Nosentido inverso, mas igualmente relevante, quais so as memrias,imagens e smbolos que esto sendo articulados no romanceportugus contemporneo face s relaes polticas do passadoentre Portugal e os outrora denominados territrios ultramarinos?Que tipo de mudana no imaginrio social est sendo propostapelo romance contemporneo no que tange s imagens e miragensproduzidas sobre Angola, Moambique, Cabo Verde e Timor Leste?Quais as solues estticas e formais encontradas pelos escritoreslusfonos africanos e asiticos para levar a cabo este processo decarter dialtico entre o prprio e o alheio? Dito de outra maneira,como se cristalizam, nos textos literrios, o resultado do embatecolonial entre o imaginrio europeu e os imaginrios autctones?Haveria alguma espcie de sntese dialtica ou, ao contrrio, estasobras mostrariam uma convivncia violenta com resultadosheterogneos entre cosmovises eurocntricas e autctones?Quais so as constantes imagticas que se mostrariam, ento, comodominantes na estruturao das constelaes simblicaspertencentes ao que poderia ser chamado, provisoriamente, deimaginrio ps-colonial lusfono?

    Resgatar o compromisso da crtica literria e cultural como embate de idias e com a problematizao da cultura prpria eda cultura alheia uma questo estratgica neste sombrio iniciarde sculo, o qual ameaa as culturas minoritrias e/ousubalternizadas com a instrumentalizao do ensino de lnguasestrangeiras. esquecido o fato de que, agregada lngua do outro(e, por extenso, literatura do outro), est uma cultura e umsistema conceitual que no pode ser negligenciado a partir de uma

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    compreenso rasa dos processos de traduo cultural. Sob o mitoda transparncia dos processos de traduo cultural, esconde-seuma lgica perversa que obnubila as diferenas. Se verdade quetodo processo de traduo cultural implica em uma perda e emum ganho, cumpre restituir a importncia de se potencializar osganhos e minimizar as perdas atravs do reconhecimento dasalteridades.

    O escritor moambicano Mia Couto, talvez um dos maisrepresentativos romancistas da frica lusfona contempornea,ao lado de outros como Germano Almeida (Cabo Verde) e Pepetelae Jos Eduardo Agualusa (Angola), reconhecido pela crtica emfuno do talento inventivo que expressa em seus escritos, quevai desde o nvel lexical, com a criao de neologismos inspiradosnos usos populares da lngua portuguesa em Moambique, at afabulao de universos que beiram o realismo mgico, como noromance O ltimo vo do flamingo (2004). Cabe salientar,entretanto, que no apenas o apelo potico dos escritos de MiaCouto que chama a ateno de seus leitores e crticos mundo afora.O poder de subverso cifrada atravs das imagens poticasnarradas nas histrias de Mia Couto extrapola os domnios danorma culta da lngua portuguesa. Por detrs das inmerasmetforas e neologismos, h um profundo senso de intervenopoltica a marcar a obra do escritor moambicano, tal como elemesmo afirma:

    estou a falar e escrever em um momento em que a nossademocracia, que uma conquista de todos ns, est a serposta em causa todos os dias, e est ser posta em causagravemente por ameaas de violncia, por comportamentosprofundamente antidemocrticos.3

    Perdida entre o passado colonial e uma abertura promessa da modernizao que, contudo, nunca chega, Vila

    3 COUTO. Entrevista, p. 1.

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    Cacimba (espao no qual transcorre a ao do romance Venenosde Deus, remdios do diabo, tambm de Mia Couto) passa a serum pouco mais do que o local de convvio de personagens quevivem de suas pequenas mentiras e de seus farrapos de memrias.Vila Cacimba, heterotopia4 narrada pelo autor, um daquelesespaos nos quais as geografias so entrelaadas e as histriassobrepostas, metfora sugerida por Edward Said (em seu livroCultura e imperialismo) para que se compreenda a multiplicidadedo tempo social nas naes ps-coloniais. Entre a amnsiahistrica e as genealogias imaginadas a explicar o presente, talvezno reste mais metafsica para alm dos beijos-da-mulata, as floresbrancas do esquecimento espalhadas pela misteriosa mensageirade vestido cinza a errar entre as nvoas de Vila Cacimba. Metforaambgua, mas inteligvel: o semear das flores do esquecimento,ao final do romance, traduz os riscos do apagamento desta histriade entremeio. Uma histria bastante conhecida por parte daquelesque sobreviveram s violncias colonialistas de Portugal, e que sesentem, neste admirvel mundo novo do terceiro milnio,5 tal qualSidnio Rosa, o protagonista do romance, condenados a um exlioda alma, do qual no h retorno possvel.

    Com esta breve meno a um dos autores moambicanosmais conhecidos fora de seu pas, pode-se observar por que atextualizao da memria e do imaginrio ps-colonial temganhado um papel de destaque na produo literria lusfonacontempornea. Tal como afirma Homi Bhabha:

    o presente no pode mais ser encarado simplesmentecomo uma ruptura ou um vnculo com o passado e o futuro,no mais uma presena sincrnica: nossa autopresenamais imediata, nossa imagem pblica, revelada por suasdescontinuidades, suas desigualdades, suas minorias.6

    4 FOUCAULT. Ditos e escritos, v. III, p. 415.5 SCHMIDT. A literatura comparada nesse admirvel mundo novo, p. 11-33.6 BHABHA. O local da cultura, p. 23.

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    Narratologia, comparatismo e imaginrios ps-coloniais

    O desafio intelectual colocado pelos movimentos histricosde lutas de independncia e de direitos civis na dcada de 60,denunciando a fico emancipatria da modernidade expondo oracismo, o sexismo e o imperialismo subjacentes poltica deedificao da cultura moderna no Ocidente, intensificou avanostericos dentro de um processo que poderia se chamar dedescolonizao do conhecimento.7 Entende-se aqui, porcolonialismo, a permanncia residual de mecanismos coloniaisatravs de ajustes e transformaes que permitem a suareintegrao e efetiva ao em um mundo em transformao. Issosignifica dizer que a continuidade imperial no presente dependeda dinmica de variaes de seu poder significativo como formade atualizar-se e, assim, manter seu domnio. As perspectivas ps-coloniais dirigem o olhar do intelectual rumo a um questionamentodas limitaes geridas pelos consensos culturais e simblicos,forando relativizao e reformulao de categorias-chave dohumanismo, tais como as de progresso e civilizao, particularmentecaras ao pensamento ocidental e s (meta)narrativas da modernidade.

    A compreenso e a produo de conhecimento no sooperaes que podem ser efetivadas a partir de uma performanceexclusivamente instrumental. necessrio um movimentodialtico que articule a reflexo crtica aos conceitos; necessriatambm uma reflexo crtica sobre os prprios conceitos emquesto. Apropriar-se da narratologia de uma forma meramente

    7 Uso aqui esta expresso em analogia ao ttulo do livro Decolonizing the mind(1986), do escritor queniano Ngugi Wa Thiongo, o qual renunciou lnguainglesa, ao cristianismo e ao seu prprio nome civil (James Ngugi),considerando-os um legado advindo das heranas colonialistas em seu pas.Ngugi Wa Thiongo passa ento a escrever em kikuyu, sua lngua materna, eem 1980 publica Caitani mutharaba ini [O diabo sobre a cruz], o primeiroromance moderno publicado em kikuyu, o qual foi, alguns anos depois,traduzido para o ingls.

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    instrumentalista recair na iluso iluminista de que possvel aosujeito da anlise posicionar-se fora daquilo que est sendo estudado.Esta afirmativa no chega a configurar uma novidade dentro dosestudos da narrativa. Tzvetan Todorov, em Estruturalismo e potica,faz a seguinte afirmao: ser necessrio lembrar que, desde Kant,no se ignora mais que o mtodo que cria o objeto, que o objetode uma cincia no est dado na Natureza, mas representa oresultado de uma elaborao?.8 A partir do momento em que secai nessa iluso (a da neutralidade do discurso cientfico), o papeldo intelectual fica restrito a uma descrio baseada em categoriaspr-estabelecidas, o que, em ltima anlise, no produzconhecimento crtico sobre o objeto em questo. Mieke Bal, porsua vez, condena veementemente a utilizao do mtodonarratolgico como um simples classificador de textos, pois acompreenso de um texto narrativo envolve muito mais do que asua classificao em categorias pr-estabelecidas:

    Classifying texts as a method of analysis, therefore, is acircular way of reasoning. There is no direct logicalconnection between classifying and understanding texts.And understanding if taken in a broad sense thatencompasses cognition as well as affective acts, precisely,not distinguished is the point.9

    De acordo com Gilbert Durand, o homem dotado deuma significativa faculdade simbolizadora no que diz respeito vida scio-cultural. Para possibilitar a interpretao dos smbolose as imagens que se emergem das profundezas do inconscientecoletivo, o autor prope uma abrangente classificao taxionmicadas imagens do sistema antropolgico, criando uma espcie deatlas arquetipolgico da imaginao simblica. As basesfundacionais da produo do imaginrio so fundamentais na vida

    8 TODOROV, T. Estruturalismo e potica, p. 18.9 BAL. Narratology, p. 221.

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    social e cultural. Em outras palavras, os regimes de imagens e suasconfiguraes simblicas possuem uma importante funo demediao no que tange percepo humana da realidade social ena estruturao do psiquismo humano. Na esteira da hermenuticaexistencial fenomenolgica, a mitocrtica considera o sujeito umaparte integrante na configurao da realidade, o que significa queesta apreendida pelo sujeito como manifestao. Dito de outramaneira, o homem, atravs da imaginao simblica, tomadocomo um dos elementos estruturantes da realidade que lhe exterior.

    Se o mito j um esboo de racionalizao, dado queutiliza o fio do discurso, no qual os smbolos se resolvem empalavras e os arqutipos em idias,10 cabe salientar que o embatecolonialista no mundo lusfono, ao impor aos povos africanos easiticos a adoo de uma epistme calcada nos primadoseurocntricos e a refutao das cosmogonias autctones, gerouum processo de recalcamento do imaginrio durante o perodocolonialista. Durand ainda salienta que:

    Em cada fase histrica a imaginao encontra-se presenteinteira, numa dupla e antagonista motivao: pedagogiada imitao, do imperialismo das imagens e dos arqutipostolerados pela ambincia social, mas tambm fantasiasadversas da revolta devidas ao recalcamento deste oudaquele regime de imagem pelo meio e o momentohistrico.11

    Logo, de se supor que o advento da independnciapoltica das ex-colnias portuguesas possibilitou a reestruturaoda imaginao simblica desses povos, na medida em que umaespcie de retorno do recalcado torna-se possvel aps o trminoda dominao poltica e simblica exercida pelos portugueses. As

    10 DURAND. As estruturas antropolgicas do imaginrio, p. 63.11 DURAND. As estruturas antropolgicas do imaginrio, p. 390.

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    maneiras de ser no mundo, bem como as de se compreenderquestes tais como a infncia, os significados da masculinidade eda feminilidade, as modalidades de institucionalizao dasidentidades coletivas e as projees metafricas e metonmicas dosmitos e imagens do herosmo e outros valores humanos de sesupor passam por uma profunda re-acomodao, de maneira areestruturar as constelaes simblicas que regem a vida social ea criao literria nestes territrios nacionais.

    Todavia, os estudos ps-coloniais, os quais logram alcanarinstitucionalizao e reconhecimento acadmico nos fins do sculoXX, tm demonstrado que a lgica que permeia a produo, amanuteno e a subverso dos sistemas culturais nos regimescolonialistas e imperialistas mais complexa do que possa parecer primeira vista. Edward Said, em Orientalismo (1995), demonstracomo um campo de conhecimento estrutura uma forma deapreender grandes extenses territoriais, subordinando um atode reducionismo epistemolgico aos interesses de manipulaopoltica e econmica dos grandes imprios europeus sobre oOriente. nas primeiras pginas de Cultura e Imperialismo,entretanto, que o pensamento de Said vem ao encontro dasreflexes que aqui so tecidas, quando afirma que:

    o contato imperial [poder-se-ia ler aqui colonialista]nunca consistiu na relao entre um ativo intrusoocidental contra um nativo no ocidental inerte e passivo;sempre houve algum tipo de resistncia ativa e, namaioria esmagadora dos casos, essa resistncia acaboupreponderando.12

    Cabe, pois, perguntar: de que maneiras, e at que ponto,a narrativa literria cumpre o papel de locus e media de articulaode estratgias de resistncia simblica nas ex-colnias portuguesas?Estariam as literaturas lusfonas da sia e da frica restritas

    12 SAID. Cultura e imperialismo, p. 12; colchetes nossos.

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    reproduo do imaginrio europeu em funo da condio decolonialismo qual estavam submetidas? Ou ser que, em funode certa liberdade inerente atividade artstica (e, particularmente, escrita literria e imaginativa), os escritores puderam expropriaro colonizador e projetar sua prpria identidade a partir deprocessos de dessacralizao e ressacralizao mtica das imagense smbolos estruturados na imaginao literria?

    Um caso pontual: os contos de Llia Mompl

    Llia Maria Clara Carrire Mompl nasceu em 19 de Marode 1935, na mtica Ilha de Moambique, localizada ao norte dopas, na provncia de Nampula. Concluiu seus estudos secundriosna capital da colnia, na cidade de Loureno Marques (hojeMaputo). Na universidade, frequentou durante dois anos o cursode Filologia Germnica, deixando-o para formar-se em ServioSocial no Instituto Superior de Servio Social de Lisboa. Depois deuma temporada na Gr-Bretanha (durante 1964) e de outra noBrasil (de 1968 a 1971), a escritora regressa definitivamente aMoambique no ano de 1972. Encerrados os seus estudos em Lisboa,Llia Mompl trabalhou como funcionria da Secretaria de Estadoda Cultura, como diretora do Fundo para o DesenvolvimentoArtstico e Cultural de Moambique, e como Secretria-Geral daAssociao de Escritores de Moambique (AEMO), durante operodo de 1995 a 2001. De 1997 a 2001, acumulou, juntamentecom a funo de Secretria-Geral da AEMO, a funo de Presidenteda instituio. Durante o perodo em que esteve na presidnciada associao, no mediu esforos para aumentar a visibilidadedas mulheres nas publicaes da instituio. Foi tambmrepresentante do Conselho Executivo da UNESCO, no perodocompreendido entre 2001 e 2005. Apesar de suas colaboraesdispersas na imprensa, Llia Mompl destaca-se no cenrio daliteratura moambicana por seus trs livros: Ningum matou Suhura(contos, 1988), Neighbours (romance, 1996) e Os olhos da cobra

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    verde (contos, 1997). Em 2001, foi agraciada com o Prmio Cainepara Escritores de frica, com o conto O baile de Celina. Alm desteprmio, recebeu tambm o 1 Prmio de Novelstica no ConcursoLiterrio do Centenrio da Cidade de Maputo, com o conto Canio.

    Ningum matou Suhura um livro de contos compostode maneira singular. As cinco narrativas que o compe podem serlidas de maneira independente, mas, ao mesmo tempo, estointerconectadas de maneira temtica, atravs da representao eda denncia da violenta experincia colonial dos povos deMoambique e Angola ao longo do sculo XX. Cada um dos contosretrata um aspecto singular do colonialismo portugus em frica,cobrindo uma linha temporal que se estende de 1935 a 1974.Cada um dos contos inicia com uma data precisa e, exceo deAconteceu em Saua-Saua (narrativa que abre o livro), cada umdeles emerge do universo retratado pela escritora com umademarcao geogrfica precisa, indicando-se a cidade na qual oseventos narrados se desenrolam. Embora seja possvel depreender,pela ambientao deste ltimo conto, que sua referncia espacialseja, supostamente, o regulado13 de Saua-Saua, o fato da indicaono constar no incio da narrativa (mais a impossibilidade de selocalizar este regulado nos mapas contemporneos de Moambique),faz com que a afirmao precisa sobre sua localizao geogrficaseja imprecisa e indeterminvel.

    13 Um regulado uma pequena aldeia tradicional, parte da organizao socialdas coletividades moambicanas no perodo pr-colonial. O nome pelo qualse designa tal povoamento advm de seu lder poltico, o rgulo (significando,literalmente, pequeno rei). Em funo da explorao colonialista emMoambique e da destruio de inmeros regulados durante o perodocolonialista e das guerras civis que se seguiram independncia, praticamenteimpossvel precisar se Saua-Saua um regulado com um referente real ouuma projeo imaginativa que, por metonmia, representaria o modus operandidas relaes travadas entre as administraes colonialistas portuguesas e ascomunidades autctones de Moambique durante as primeiras dcadas deexplorao lusitana no sculo XX.

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    exceo da ltima narrativa, intitulada O ltimo pesadelo,a qual se passa em Luanda, todos os outros contos estoambientados em Loureno Marques (a antiga capital colonial que,aps a independncia moambicana, em 1975, passa a chamar-seMaputo e torna-se a capital do pas) ou na Ilha de Moambique(terra natal da escritora). Em todos os contos, a autora adota umnarrador em terceira pessoa, onisciente, e a focalizao narrativaoscila entre a focalizao interna (na qual a voz narrativa tem acessoaos pensamentos e ao universo interior das personagens) e anarrativa externa (na qual, a partir de um locus exterior ao universodiegtico instaurado pelos eventos narrados, a voz narrativa emiteseus juzos e comentrios acerca dos eventos que vo sendoapresentados ao leitor). mister ressaltar que esta tcnica narrativa uma constante ao longo de todas as obras de Llia Mompl.

    Em Aconteceu em Saua-Saua, narra-se a trgicaexperincia de Mussa Racua, humilde campons recrutado pelaadministrao colonial para cultivar arroz. A administraocolonial, arbitrariamente, demarcava as terras a serem cultivadase distribua as sementes, estabelecendo tambm as metas deprodutividade agrcola. Caso o campons em questo noalcanasse a meta, corria o risco de ser recrutado, em nome dopagamento da dvida, para trabalhar nos campos de sisal. estaa situao na qual se encontra Mussa Racua, que desespera-damente tenta pedir a seus vizinhos dois sacos de arroz paracompletar a sua cota de produo:

    Mas tu j viste, irmo, que vida a nossa? interrompeMussa Racua vem essa gente da Administrao e marca-te um terreno. Do-te sementes que no pediste e dizem:tens que tirar daqui trs ou seis ou sete sacos, conformelhes d na cabea. E se por qualquer razo adoecemos ouno cai chuva ou a semente ruim, e no conseguimosentregar o arroz que eles querem, l vamos ns parar splantaes. E os donos das plantaes ficam contentesporque conseguem uma data de homens para trabalharde graa. E a gente da Administrao fica contente porque

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    recebe dos donos das plantaes um tanto por cabeaque entrega. E ns que vamos rebentando de medo e detrabalho todos os anos. E mal podemos cuidar das nossasmachambas que nem do para comer. 14

    A preocupao de Mussa Racua em cumprir com a cotaestabelecida pela administrao colonial no surge em vo. Ele jexperienciara na prpria pele as agruras do trabalho nasplantaes de sisal. Frente ao desespero, Mussa Racua divide como amigo Abudo as amargas recordaes do trabalho nos campos:

    Escuta! continua Mussa Racua, numa exaltao febril eu nunca te falei daquele sofrimento. Todos os queexperimentaram a plantao no querem mais falardaquilo. A comida sabe a merda! E mesmo assim s osuficiente para um homem agentar o trabalho. E aquelesisal que nunca mais acaba. Aquele sisal tem sangue,irmo, est cheio de sangue! A trabalhar sempre doente.Doente e a apanhar porrada. E depois de tanto tempo, virde l sem nada... Sem nada, irmo!15

    Como se j no fosse suficiente a temporada de trabalhosforados em condies precrias e sem remunerao nenhuma,depois de sua primeira temporada nos campos de sisal Mussa Racua,ao regressar para a aldeia de Saua-Saua, descobre que sua humildepalhota de campons foi saqueada e seus poucos pertencesroubados, assim como os poucos cabritos que possua. A esposatambm o abandona, pois no aguentara a longa ausncia, semnotcias e sem dinheiro.16 Tais recordaes o deixam aflito e oinevitvel medo de perder a segunda esposa em uma novatemporada de trabalhos forados na plantao de sisal leva MussaRacua a uma deciso desesperada: no meio da noite, abandona

    14 MOMPL. Aconteceu em Saua-Saua. In: Ningum matou Suhura, p. 12-13.15 MOMPL. Aconteceu em Saua-Saua. In: Ningum matou Suhura, p. 13.16 MOMPL. Aconteceu em Saua-Saua. In: Ningum matou Suhura, p. 17.

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    sua palhota e suicida-se, enforcando-se com o auxlio de uma corda,em um dos galhos de uma frondosa mangueira beira da estrada.O administrador colonial da aldeia, aps ouvir o relato, contadoem lngua macua por um senhor transeunte ao Lngua (o tradutorlocal do administrador), expressa sua raiva e impacincia: Estesces assim que lhes cheira a trabalho, arranjam sempre chatices.Ou fogem ou suicidam-se. Maldita raa!.17

    A grande ironia do conto est no seu encerramento, o qualdesvela a violncia colonialista e o racismo a ela subjacente, atravsdas palavras do administrador. Aps o relato da trajetria de MussaRacua, a voz narrativa pode isentar-se de manifestar seuposicionamento frente atitude desesperada do protagonista.Desfralda-se assim, a partir do gesto suicida do protagonista, adenncia da experincia colonial, e o leitor conduzido ainterpretar a autodestruio do protagonista como a nica atitudede resistncia possvel. As palavras do administrador, por sua vez,no marcam apenas a indiferena do mesmo com as populaesautctones de Moambique. O gesto de resistncia anti-colonialistade Mussa Racua, ao ser lido e interpretado como preguia eindolncia por parte do administrador, destitudo de seu estatutode resistncia. O administrador vilipendia simbolicamente o cadverdo protagonista, roubando o sentido de seu gesto desesperado:ao invs de marcar o espao simblico como um germe deresistncia, da nica resistncia possvel s arbitrariedades daquelemomento histrico, o significado da ao autodestrutiva de MussaRacua rasurado e apagado pela epistme colonialista.

    O conto Canio traz memria do leitor, j em seu ttulo,as reverberaes dos bairros de canio, aglomerados depequenas palhotas construdas com canio e, por vezes, cobertoscom folhas de coqueiro, nos quais residiam as populaes negrasmais humildes, espoliadas pelo jugo colonialista, e que se localizam,

    17 MOMPL. Aconteceu em Saua-Saua. In: Ningum matou Suhura, p. 21.

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    em grande quantidade, ainda hoje, nos arredores mais distantesda antiga capital colonial, Loureno Marques. Cronologicamentesituado no ano de 1945, a narrativa inicia apresentando a histriada famlia do jovem Naftal, que ainda criana perde o pai, emfuno de uma tuberculose contrada nas profundezas das minasda frica do Sul, onde trabalhava. Com a morte do pai, a situaode pobreza da famlia agrava-se, e Aidinha, a irm mais velha deNaftal, cansada da vida miservel que leva com a famlia no bairrode canio, acaba entregando-se prostituio. A me, ao descobriro destino de Aidinha, tenta resgat-la:

    Vamos para casa, minha filha.Aidinha no lhe disse que est farta da misria e quesendo negra, no tinha outro caminho para se livrar dela.S tornando-se puta. No disse nada disso, mas respondeucom a fria serenidade de quem h muito tinha feito umaopo: No, me, deixe-me viver assim. Para a palhota eu novolto mais. Nunca mais.18

    Para ajudar a famlia, o jovem Naftal comea a trabalharcomo empregado domstico junto a uma famlia de brancos, naparte rica da cidade. Tudo corre bem at o dia em que desapareceo relgio de ouro de sua patroa: Ouve l, Naftal, no viste meurelgio de ouro?.19 Naftal entra em pnico, pois sabe que tipo deacusao est subliminarmente presente nessas palavras. Ao fimdo dia, quando o patro chega, ele e o cozinheiro da casa solevados esquadra policial, e o patro encarrega a polcia colonialde resolver a questo. Quando o patro chega casa, sua esposaj havia resolvido o mistrio: sua filha, Mila, havia encontrado orelgio no banheiro, e decidiu o levar escola, para impressionaras colegas. Todavia, mesmo com o mistrio resolvido, o patro se

    18 MOMPL. Canio. In: Ningum matou Suhura, p. 28.19 MOMPL. Canio. In: Ningum matou Suhura, p. 34.

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    nega a ir at a esquadra para esclarecer o mal-entendido: A queixaj est l, no podemos voltar atrs. Deixa-os l apanhar. pelasvezes que nos roubam e no so descobertos.20 A partir de umacena aparentemente banal, a voz narrativa explicita o clima dedesconfiana e bestializao da populao negra frente ao racismodos colonos portugueses. Naftal, por sua vez, retratado ao longodo conto de maneira a enfatizar sua agonstica existencial: mesmosendo um trabalhador honesto e dedicado, o colonialismo racistacoloca todos os autctones sob a suspeita dos instintos roubadoresdos moambicanos.

    J em O baile de Celina, conto que se passa em 1950,retrata-se a dolorosa experincia de Celina, jovem aluna do LiceuSalazar, que est prestes a se formar. Embora filha de uma famliade poucas posses, Celina tem uma vantagem: sua me modista,o que lhe permitiu no apenas estudar no Liceu dos brancos, comotambm lhe possibilitou ter um vestido vaporoso e elegante paraa celebrao do fim de seus estudos. Entretanto, chegadas asvsperas do baile, Celina chamada pelo diretor da instituio eproibida de participar do baile de finalistas, por ser negra.Indignada com o fato, retorna a casa, senta-se em sua cama e,com uma tesoura, picota o vestido, em meio s lgrimas oriundasda frustrao de no poder participar do baile.21

    Ningum matou Suhura conto que d ttulo ao livro , talvez, o que mais explicitamente denuncie as arbitrariedadesdo colonialismo portugus em terras moambicanas. Na primeiraparte do conto, relata-se o dia do Senhor Administrador, que mantm

    20 MOMPL. Canio. In: Ningum matou Suhura, p. 35.21 Em entrevista recente, retransmitida pelo canal TVM de Moambique emfuno do falecimento do fotgrafo moambicano Ricardo Rangel (figurapblica muito prxima de Llia Mompl), o mesmo afirmou que este conto fortemente autobiogrfico e que a situao enfrentada pela personagem Celinafoi inspirada em uma situao semelhante, vivenciada por Llia Mompl emLoureno Marques.

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    uma garonire em uma regio afastada da cidade, para a qualleva as garotas virgens que frequentemente encontra pelas ruas,no intuito de violent-las. Na segunda parte, conta-se o quotidianode Suhura, uma jovem humilde que mora com a av e que terminasua tarde sendo escolhida pelo Senhor Administrador em dos seuspasseios pelas ruas da Ilha de Moambique, na provncia deNampula, em uma tarde de 1970. Finalmente, na ltima parte doconto, relata-se o estupro de Suhura, seguido de seu assassinatopor parte do Senhor Administrador, e da entrega do corpo deSuhura sua av, que nada pode fazer seno sepultar, em silncio,o corpo da neta assassinada.

    No ltimo conto do livro, intitulado O ltimo pesadeloe ambientado em Luanda, no ano de 1974, so apresentados osrecorrentes pesadelos de Eugnio, um colono portugus que viveudurante algum tempo no Hotel Guaran, na zona da Gabela, ondese encontrava trabalhando como designer para um rico agrimensorlocal. As tenses geradas pelos conflitos internos entre os colonosportugueses e os militantes do MPLA (Movimento Popular pelaLibertao de Angola) fomentam tal grau de desconfiana por partedos portugueses residentes em Gabela que, em uma dada noite,os hspedes do Hotel Guaran renem todos os funcionriosnegros do estabelecimento e os assassinam a pauladas, chutes epontaps. Eugnio, que nunca escondeu sua simpatia pelo MPLA, arrastado pelos outros hspedes do Hotel e obrigado a assistir acarnificina, sendo, em seguida, expulso da Gabela com toda a suafamlia, tendo de se refugiar em Luanda.

    No projeto ficcional de Llia Mompl, torna-se evidente umesforo de vencer a amnsia social, com vistas a manter vivas asrecordaes das violncias e arbitrariedades colonialistas. A belezade seus contos diametralmente proporcional crueza da violnciadescrita ao longo das pginas de Ningum matou Suhura. recorrente, em suas narrativas, a presena de uma melancoliahistrica, provocada pelo apagamento das agruras da luta pelaindependncia das ex-colnias africanas, e um atento olhar para osdesfavorecidos que mais sofreram durante a histria moambicana

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    ao longo do sculo XX. Por trs de personagens como Mussa Racua,Naftal, Aidinha, Celina, Suhura, Eugnio e suas trgicas trajetrias, possvel para o leitor de hoje vislumbrar um pouco da experinciacolonial moambicana atravs da perspectiva dos sujeitos silenciadose subalternizados ao longo da histria recente.

    Redimensionar os regimes de representao dascomunidades humanas, preocupao comum LiteraturaComparada e aos Estudos Culturais neste incio de sculo, oprimeiro passo para que se construam novas possibilidades derelacionamento no campo social. Em outras palavras, o papel docomparatismo no cenrio atual dos estudos literrios e culturaispode ser definido como a consolidao de um campo disciplinare de um saber/poder sobre a diferena cultural. Pleiteia-se, pois, ainsero do objeto literrio no campo mais amplo da antropologia,da histria, da poltica e da geografia, contextualizado como prticatextual e discursiva que legitima, media e muitas vezes subverteos arranjos hegemnicos de poder na esfera cultural.

    Em As mil e uma noites, o rei Shariar, louco por haver sidotrado por sua primeira esposa, decide-se por deflorar uma virgemdiferente todas as noites, assassinado-a na manh seguinte. Sherazadeconsegue escapar a esse destino ao contar histrias fantsticas eimaginativas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Acada amanhecer, Sherazade interrompe seu conto para continu-lona noite seguinte, o que a mantm viva ao longo de vrias noites (Asmil e uma noites do ttulo da obra), ao fim das quais o rei se arrependede seu comportamento e desiste de executar Sherazade. Tal como noclssico da literatura rabe, a literatura produzida nas naeslusfonas que apenas recentemente alcanaram a independnciapoltica evidencia a importncia da modalidade narrativa no seio dacultura: contar histrias (sejam as prprias, sejam as alheias) muitasvezes a nica alternativa para assegurar a sobrevivncia da memrianeste tempo presente, assombrado pelas promessas auspiciosas deuma globalizao que, no campo dos direitos humanos, daigualdade e da solidariedade, raras vezes se cumpre.

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    Resumen: En la primera parte del presente artculo, sehace una investigacin acerca de la cuestin de lamemoria y del imaginario postcolonial en el campo delos estudios literarios dedicados a la comprensin delas literaturas lusfonas. Lo que se busca es lacomprensin del modo por que esas investigacionespuedan colaborar para una descolonizacin delimaginario en las literaturas de las ex-coloniasportuguesas, con particular atencin a la cuestin dela literatura mozambicana. En la segunda parte, se haceuna lectura interpretativa del libro Ningum matouSuhura (1988), de autora de la escritora mozambicanaLlia Mompl, intentando rastrear las maneras y losmecanismos discursivos articulados por la autora en elsentido de hacer de sus sufridas memorias colonialistasel material a ser utilizado en su composicin literaria.

    Palabras-clave: Memoria e historia; imaginariopostcolonial; literatura mozambicana; Llia Mompl;Ningum matou Suhura.

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    Recebido para publicao em 17 de fevereiro de 2011Aprovado em 30 de junho de 2011