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LICENCIATURA EM MATEMÁTICA: UMA EXPERIÊNCIA REALISTA DE MUDANÇA DE PARADIGMA Edna Maura Zuffi – ICMX/USP INTRODUÇÃO A partir das discussões promovidas desde o ano de 2000 e das novas propostas do MEC para os cursos de formação de professores (Resolução CNE/CP 1/2002), um amplo debate nacional se abriu com relação às Licenciaturas. Em particular, com relação às Licenciaturas em Matemática, o recente processo de confecção de Diretrizes Curriculares para esses cursos suscitou opiniões dicotômicas sobre a formação de professores do Ensino Básico, entre os matemáticos acadêmicos e os educadores matemáticos. Muitos dos primeiros fazem críticas à formação inicial proporcionada nas licenciaturas, alegando que os jovens não saem preparados nas matérias de matemática que vão ensinar. Por outro lado, educadores também levantam o temor de que tudo o que ensinam e debatem, durante essa formação, seja “varrido pelo conservadorismo da prática de ensino” (Ponte, 2002, p. 3-4). Os jovens professores criticam essa formação, questionando se ela lhes serviu de alguma coisa, na maior parte das vezes, levando adiante uma concepção de que só a prática de sala de aula realmente importa. Com todas essas críticas grassando pela atual conjuntura educacional do país, torna-se difícil a organização curricular da formação inicial dos professores,

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Page 1: Licenciatura em Matemática: a experiência do ICMCendipe.pro.br/.../13/paineis/paineis_autor/T2580-1.doc · Web viewA partir das discussões promovidas desde o ano de 2000 e das

LICENCIATURA EM MATEMÁTICA: UMA EXPERIÊNCIA REALISTA DE MUDANÇA DE PARADIGMA

Edna Maura Zuffi – ICMX/USP

INTRODUÇÃO

A partir das discussões promovidas desde o ano de 2000 e das novas propostas do

MEC para os cursos de formação de professores (Resolução CNE/CP 1/2002), um

amplo debate nacional se abriu com relação às Licenciaturas. Em particular, com

relação às Licenciaturas em Matemática, o recente processo de confecção de Diretrizes

Curriculares para esses cursos suscitou opiniões dicotômicas sobre a formação de

professores do Ensino Básico, entre os matemáticos acadêmicos e os educadores

matemáticos. Muitos dos primeiros fazem críticas à formação inicial proporcionada nas

licenciaturas, alegando que os jovens não saem preparados nas matérias de matemática

que vão ensinar. Por outro lado, educadores também levantam o temor de que tudo o

que ensinam e debatem, durante essa formação, seja “varrido pelo conservadorismo da

prática de ensino” (Ponte, 2002, p. 3-4). Os jovens professores criticam essa formação,

questionando se ela lhes serviu de alguma coisa, na maior parte das vezes, levando

adiante uma concepção de que só a prática de sala de aula realmente importa.

Com todas essas críticas grassando pela atual conjuntura educacional do país,

torna-se difícil a organização curricular da formação inicial dos professores, de modo a

oferecer um preparo profissional de qualidade. Na verdade, essa preocupação não se

limita ao Brasil.

No cenário internacional, Lambert e Ball (1998, apud Ponte, 2002, p.5), em suas

pesquisas como educadoras matemáticas norte-americanas, já traçavam um diagnóstico

problemático da formação inicial de professores, resultantes de alguns fatores por elas

levantados: (i) a pouca atenção dada, nessa formação, às crenças, concepções e

conhecimentos que os futuros professores trazem para o curso de formação inicial; (ii) o

fato desses cursos geralmente darem a impressão de que é preciso pouco além do senso

comum para ensinar, isto é, não mostrarem a necessidade de um conhecimento

profissional; (iii) não darem a decida atenção ao conhecimento didático; (iv) separar

teoria e prática, tanto temporal quanto conceitualmente; (v) dar reduzida importância à

prática profissional.

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Sztajn (2002) também levanta o fato de que esta temática vem sendo amplamente

discutida desde os anos 1990 pelos educadores matemáticos, principalmente nos

Estados Unidos, desde que Schulman (1986, 1987) propôs um elo entre os saberes

pedagógicos e aqueles do conteúdo específico, através do que chamou de “saber

pedagógico disciplinar” (ou “conhecimento da didática do conteúdo”, ou ainda,

“conhecimento pedagógico do conteúdo”, como preferem algumas traduções em

Português). Para Sztajn, as pesquisas depois de Schulman provocaram uma revisão no

que significa dizer que “um professor sabe matemática” e a pergunta sobre o que precisa

saber um professor de Matemática passou a inquietar formadores de professores, não

estando ainda definitivamente respondida. Segundo essa autora, responder “o que”

depende de localizarmos “onde”, “quando” e “por que” se dá essa formação.

Assim, neste cenário efervescente da Educação Matemática mundial, somam-se

ainda as contingências locais em que esses cursos de licenciatura se desenvolvem e a

necessidade de adequar as propostas formais feitas pelos acadêmicos e pelas políticas

públicas de educação a um projeto pedagógico realista, que leve em conta essas

contingências e as reais necessidades dos alunos (futuros professores) e das instituições

existentes (sejam estas as instâncias de ensino superior, onde ocorre a formação inicial

desses professores, ou aquelas em que eles vão atuar, no Ensino Básico).

Neste artigo, vamos, então, apresentar uma proposta de curso de formação inicial

que procura levar em conta as mudanças de paradigmas que estão sendo discutidas para

a formação profissional de professores de Matemática, mas também que considere as

contingências locais, a fim de construirmos uma proposta pedagógica que seja factível e

bem localizada no tempo e espaço em que se desenvolve.

Falamos, aqui, do Curso de Licenciatura em Matemática, do Instituto de

Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo, em São Carlos,

SP. Este foi criado em 1990 e tem passado por uma série de reformulações desde então.

Embora não se possa dizer que ele, desde sua criação, tivesse características do modelo

“3+1” (três anos de disciplinas de Bacharelado e mais um ano de disciplinas

pedagógicas), o curso ainda não estava completamente ajustado ao Programa de

Formação de Professores da USP (USP, 2004) e às novas normas para os cursos de

formação de professores do MEC (Resolução CNE/CP 1/2002).

Segundo Valente (2002, p.88), as origens do modelo “3+1” remontam a 1939,

com a organização da Faculdade Nacional de Filosofia, quando ficou especificamente

consagrado o termos “licenciatura” no Brasil. Àquela época, os concluintes dos cursos

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tinham o diploma de “bacharel” e aqueles que concluíssem também o “curso de

Didática” – composto, então, de seis disciplinas – recebiam o diploma de “licenciado”.

Apesar de toda a legislação posterior ter buscado as especificidades de uma formação

para as licenciaturas, sem pensá-las como um bacharelado somado a uma formação

pedagógica aligeirada, o modelo criado, segundo esse autor, de uma forma ou de outra,

ainda hoje permanece.

Para fugir a esse modelo e atendermos às novas propostas do MEC (Resolução

CNE/CP 1/2002) e da Universidade de São Paulo (USP, 2004), já no ano de 2004

realizamos uma série de alterações na estrutura curricular dessa licenciatura, procurando

adaptá-la às novas sugestões que vinham sendo discutidas junto à Comissão Permanente

de Licenciaturas da USP, que depois vieram a se consolidar no referido Programa,

aprovado pelo Conselho Universitário em 2005.

A nossa Licenciatura em Matemática tem por objetivos gerais: a formação

profissional inicial de professores de Matemática para o 3o e 4o ciclos do Ensino

Fundamental e para o Ensino Médio; proporcionar ao futuro professor uma visão ampla

do conhecimento matemático e pedagógico, para que este possa especializar-se depois,

em sua formação continuada e/ou em nível de pós-graduação, em uma das áreas afins,

como a Educação, a Educação Matemática, a Administração Escolar, etc.; desenvolver

valores junto a esse profissional, como a busca constante pelo saber, o bom

relacionamento pessoal e nos trabalhos em equipe, o aprimoramento de habilidades de

comunicação, organização e planejamento de atividades.

Para atingir estes objetivos, procuramos articulá-los a atividades e disciplinas, em

um Projeto Pedagógico que levasse em conta a realidade local, no que diz respeito ao

corpo docente da instituição proponente, às vocações da comunidade acadêmica

envolvida e às demandas por profissionais e ofertas de formação locais, além das

recomendações contidas nos documentos anteriormente citados. As contingências

impostas por esses fatores, em alguns casos, limitaram possibilidades nesse Projeto

Pedagógico, entretanto, elas não significam uma simples submissão à organização

institucional, mas tratam de delinear um projeto que, a nosso ver, seja factível e real,

incorporando mudanças possíveis.

O PROJETO PEDAGÓGICO

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Com os objetivos anteriores em mente, procuramos elaborar um projeto

pedagógico que seja capaz de integrar todas essas metas em um conjunto articulado, não

apenas de disciplinas, mas também de atividades de estágio e atividades acadêmico-

científico-culturais.

Como proposto nos documentos oficiais para a formação de professores (Res.

CNE/CP 1/2002 e USP, 2004), procuramos articular estas metas no desenvolvimento de

competências (Pires, 2002), mais do que focar as disciplinas em questão. Entendemos

que o simples oferecimento das mesmas não garante que o futuro professor alcance tais

competências. Por isso, um forte estímulo ao questionamento e às reflexões sobre o

desenvolvimento das mesmas, em situações e experimentações relativas à prática, é

salientado no Projeto Pedagógico, principalmente para aquelas disciplinas e atividades

da formação específicas para a licenciatura.

O ingresso dos alunos em nosso curso, mesmo após as recentes mudanças,

continua articulando as opções para o Bacharelado e a Licenciatura, pois acreditamos

que os alunos iniciantes não têm informações suficientes e maturidade, no período do

Ensino Médio, para fazer esta opção logo no momento do vestibular. Ponte (2002)

também relata, em sua experiência com o curso da Faculdade de Ciências, em Lisboa,

que os três primeiros anos deste também são muito semelhantes ao bacharelado, o que

permite a permuta dos alunos entre um curso e outro. Desse modo, em nossa

licenciatura, estas duas habilitações permanecem com semestres comuns, podendo o

aluno optar por uma ou outra, ao final do 3o período letivo. Após concluir uma das

opções, o aluno tem o direito de complementar sua formação, caso deseje, para obter

um segundo diploma na outra. Este é um fator interessante, pois leva em conta as

especificidades das demandas locais de mercado de trabalho. Temos notado que, muitas

vezes, o licenciado se vê às voltas com ofertas de trabalho de cunho tecnológico e, por

sua vez, o bacharel se vê forçado a trabalhar com o ensino em escolas básicas, o que

demanda uma complementação na formação do profissional.

Um outro diferencial interessante é que, durante seu 1o semestre letivo, todos os

alunos que fizerem opção pela carreira “Matemática” no ICMC

(Bacharelado/Licenciatura em Matemática e Bel. Em Matemática Aplicada e

Computação Científica) devem cursar uma disciplina comum: Matemática do Ensino

Básico: abordagem crítica, que faz parte do Bloco II de disciplinas introdutórias à

temática educacional do Programa de Formação de Professores da USP (USP, 2004,

p.18). Esta é uma primeira disciplina que liga a problemática do Ensino Básico ao

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conteúdo específico de Matemática, através da promoção de reflexões críticas sobre

como esse conteúdo é geralmente ensinado naquele nível de ensino e como podemos

aprofundá-lo no ensino superior, para a formação de matemáticos ou professores de

matemática.

No 2o semestre, os alunos cursam uma outra disciplina comum: Introdução aos

Estudos da Educação, agora dirigida apenas ao Bacharelado/Licenciatura em

Matemática. Esta tem por objetivo, fornecer uma visão atual dos problemas da educação

brasileira e das ações para, ou ausências de, projetos para uma educação cidadã e que

promova valores e aptidões mais amplos, para a real inserção dos jovens na sociedade,

através de uma participação consciente, crítica e reflexiva. Acreditamos que esta seja de

grande importância também para os bacharelandos, pois mesmo em sua atuação como

futuros pesquisadores e acadêmicos em Matemática, sua atividade não deixa de passar

pelas questões do ensino e dos problemas educacionais do país.

AS DISCIPLINAS DE NATUREZA CIENTÍFICA E FORMAÇÃO ESPECÍFICA

Neste conjunto, nomeado como Bloco I no Programa de Formação de

Professores da USP (p. 18), o aluno da Licenciatura em Matemática cursa 1.830h em

disciplinas organizadas nos seguintes núcleos:

1. Núcleo de Formação em Matemática:

É constituído de doze disciplinas obrigatórias, tais como as de Cálculo, Geometria,

Álgebra, Equações Diferenciais Ordinárias, Análise, Elementos de Matemática, etc.

Neste núcleo, o aluno pode escolher uma ou duas optativas, entre um rol de quatorze

disciplinas, tais como: Introdução à Topologia, Matemática Aplicada, etc.

2. Núcleo de Formação em Física:

É constituído de três disciplinas obrigatórias em Física Básica (Mecânica e

Eletricidade), que procuram se articular com os conhecimentos matemáticos de nível

superior, adquiridos pelos licenciandos, e com algumas de suas aplicações na Física.

Disciplinas optativas desse núcleo podem ser incluídas pelos alunos em seu currículo,

por solicitação à Comissão de Graduação, como é o que acontece com freqüência para a

disciplina de “Astronomia”. Embora esta não seja aconselhada fortemente como

disciplina optativa eletiva, pode ser incluída, não ultrapassando 20% de créditos das

optativas.

3. Núcleo de Formação em Computação/ Cálculo Numérico/Probabilidade:

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Este é formado por duas disciplinas básicas de programação de computadores e

algoritmos, duas de Cálculo Numérico e uma de Introdução à Teoria das Probabilidades,

totalizando cinco disciplinas obrigatórias. O aluno pode cursar também, como optativas,

Inferência Estatística e Programação Matemática, além de outras complementares em

programação e estruturas de dados (máximo de 20% dos créditos de optativas).

4. Núcleo de Formação em Educação Matemática:

Uma disciplina obrigatória (Prática de Ensino de Geometria e Desenho

Geométrico) e mais 4 optativas podem ser escolhidas aí (Filosofia da Matemática,

Filosofia da Educação Matemática, Ensino de Matemática por Múltiplas Mídias,

História da Matemática).

Este bloco de disciplinas está ligado fortemente às competências que o futuro

professor deverá desenvolver, a partir do conhecimento e domínio dos conteúdos

básicos relacionados à área de Matemática e algumas áreas afins, de modo a poder

compartilhar saberes docentes de diferentes áreas/disciplinas e articulá-los em seu

trabalho. Envolve habilidades específicas de um professor de matemática, como por

exemplo, conceber que a validade de uma afirmação está relacionada com a

consistência da argumentação; comunicar-se matematicamente por meio de diferentes

linguagens; analisar diferentes definições, erros e estratégias alternativas em

Matemática, com uso de diferentes algoritmos, propriedades e instrumentos

tecnológicos; apreciar a estrutura abstrata que está presente na Matemática.

Também, algumas delas oferecem subsídios para que o futuro professor possa

fazer uso dos recursos da tecnologia da informação e da comunicação, de forma a

aumentar as possibilidades de aprendizagem de seus alunos, como é o caso da disciplina

Ensino de Matemática por Múltiplas Mídias. Nela, o licenciando trabalha com softwares

educacionais específicos para a Matemática, com os recursos de TV e vídeo, jornais e

revistas e a WWW (Word Wide Web), visando o ensino através de propostas

alternativas e uma aprendizagem significativa (Solé & Coll, 2003, p.20). Esta se torna

também, um momento privilegiado para a discussão a respeito dos temas transversais e

interdisciplinares dos currículos do Ensino Básico.

Ainda, a disciplina de História da Matemática procura levar ao futuro professor,

não apenas informações históricas sobre o desenvolvimento do conhecimento

matemático, mas reflexões sobre aspectos de seu dinamismo e sobre a natureza desse

conhecimento, em relação às diferentes épocas e culturas. Isto pode facilitar, ao futuro

professor, conhecer outros modos de representação de um determinado conteúdo,

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ampliar suas concepções sobre os mesmos e as concepções de seus alunos. Dizemos

“pode facilitar”, porque acreditamos que o oferecimento da disciplina, por si só, não é

capaz disso, se estas discussões aí promovidas não forem articuladas com as demais

disciplinas pedagógicas, facilitando assim, a ponte ao que Schulman chamou de

desenvolvimento do “conhecimento pedagógico do conteúdo” (Schulman, 1986, 1987).

Note-se que uma atenção especial é dada aos conteúdos de Geometria do Ensino

Básico e a algumas abordagens metodológicas para o seu ensino, devido às grandes

lacunas constatadas na formação dos professores e dos alunos e brasileiros, em relação

à sua valorização no ensino e na aprendizagem (Pavanello & Andrade, 2002).

AS PRÁTICAS COMO COMPONENTES CURRICULARES

Na Licenciatura em Matemática do ICMC, os alunos devem cumprir 405h em

atividades designadas “práticas como componentes curriculares”. Estas se inserem no

Bloco III do Programa de Formação de Professores (P.F.P.) da USP, englobando

fundamentos teóricos e práticos da Educação, mas que sempre procuram se articular

com as questões relacionadas às vivências e práticas de um professor de Matemática. Da

carga total desse conjunto de disciplinas (480h), apenas 75h é destinada à teorização.

Portanto, este é um fator diferencial em nosso curso, uma vez que estas disciplinas têm

um caráter reflexivo, porém sempre articulado com pesquisas e situações que envolvem

as práticas docentes e suas relações com os alunos, a escola, as organizações

institucionais e a comunidade.

Estas disciplinas são: Análise Crítica de Livros Didáticos (4 c.a.+ 2 c.t.)1,

Psicologia da Educação (4 c.a.+ 2 c.t.), Estrutura e Funcionamento dos Ensinos

Fundamental e Médio (4 c.a.+ 2 c.t.) e Didática (4 c.a.+ 2 c.t.). Elas também

apresentam em seus programas, a propostas de articulação desses conhecimentos

através de Projetos Integrados, nos quais os alunos devem aproximar-se da realidade

escolar em diversos momentos e focalizando questões de naturezas diversas. Tais

Projetos devem ser supervisionados em conjunto, pelos docentes responsáveis pelas

disciplinas em questão, e que ultrapassem o âmbito das mesmas, buscando aproximar as

diversas dimensões dos saberes teórico-práticos tratados em cada uma. Assim, por

exemplo, um aluno que opte por um projeto dentro da temática: “Educação Matemática

e Cidadania”, poderá analisar, dentro da disciplina de Análise Crítica de Livros

1 c.a = crédito-aula e c.t.= crédito-trabalho

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Didáticos, como esta dimensão está caracterizada através dos livros-textos e da sua

utilização nas escolas. Na disciplina Estrutura e Funcionamento do Ensino

Fundamental e Médio, poderá observar aspectos desta temática inserida nos contextos

legais e estruturais das escolas. Em Didática, poderá analisar a temática sob os pontos

de vista: i) do planejamento, organização e orientação do processo de ensino e as

conseqüências na aprendizagem: ii) da avaliação da aprendizagem; iii) do plano

curricular da escola. Já nas disciplinas do tipo “Práticas de Ensino”, a temática

“Cidadania” ficaria voltada para se analisar suas implicações e relações nas/com as

metodologias específicas do ensino de Matemática, através relações professor-aluno-

matemática. Na Psicologia da Educação, poderá analisar a temática sob os pontos de

vista: i) das relações na escola, entre seus membros (aluno-aluno, professor-aluno,

professor-professor); ii) da motivação; iii) da ética.

Nestas disciplinas estão centradas as competências de ordem prática, com as quais

o professor deve ser capaz de construir soluções adequadas para os diversos aspectos de

sua ação profissional. Também elas favorecem atitudes de análise crítica, inovação e

investigação pedagógica, de modo que a formação do professor seja capaz de contribuir

para mudanças no sistema educativo, e não apenas integrá-lo nesse sistema (Ponte,

2002). Por exemplo, a disciplina Análise Crítica de Livros Didáticos visa levar o futuro

professor a compreender, além do momento atual dos livros didáticos e paradidáticos de

Matemática, a história da matemática ensinada nas escolas do Ensino Básico. Nela, os

alunos têm contato com uma coletânea de compêndios e livros, editados do final do

século XIX ao final do século XX, nos quais analisam a trajetória de ensino de

conteúdos específicos e as influências de reformas e movimentos educacionais sobre os

modos de apresentar tais conteúdos, nesses materiais. (Esta é uma possibilidade

facilitada pela biblioteca local, que possui um acervo de livros didáticos antigos e

também pelo Laboratório de Ensino de Matemática- LEM, o qual tem um acervo de

livros didáticos e paradidáticos mais recentes).

OS ESTÁGIOS SUPERVISIONADOS

Os estágios obrigatórios são desenvolvidos nas disciplinas por nós designadas

como “Práticas de Ensino” (num total de 420h). Estas envolvem discussões de ordem

teórico-metodológica e se propõem a integrar os futuros professores à realidade escolar

atual, através dos convênios firmados com várias escolas da cidade de São Carlos.

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Nessas ocasiões, os alunos têm a oportunidade, não somente de observar e analisar

criticamente as práticas de professores em serviço, mas também de atuar em algumas

situações de ensino.

Nelas, há uma parte (120 horas) que têm o papel de trazer à sala de aula, a fim de

socializá-las com todo o grupo participante, as discussões sobre as práticas observadas

ou executadas pelos futuros professores, visando a troca de experiências e a análise

dessas situações, à luz das teorias educacionais estudadas nas disciplinas do núcleo de

formação pedagógica geral.

São elas: Prática de Ensino de Matemática I (2c.a + 4c.t.), Prática de Ensino de

Matemática II (2c.a + 4c.t.) e Prática de Ensino de Geometria e Desenho Geométrico

(1c.a + 2 c.a. + 4 c.t.). Esta última tem um de seus créditos computados para a

formalização de conteúdos da Geometria e do Desenho Geométrico, contados no

BlocoI.

Tais disciplinas, classificadas dentro do Bloco IV do P.F.P. (USP, 2004), também

são articuladas com as demais. Nos momentos de estágio supervisionado, os alunos

poderão agregar suas ações aos Projetos Integrados já iniciados nas quatro disciplinas

do Bloco III, que são anteriores a elas na estrutura curricular, fechando, assim, um ciclo

de reflexões, geradas em diversos âmbitos e momentos de sua vivência como futuro

profissional do ensino e educador matemático.

Elas visam promover a análise, a crítica e a intervenção, auxiliando o futuro

professor na concretização de suas ações pedagógicas, através da consideração de

alternativas e tomada de decisões relativamente aos processos de ensino-aprendizagem.

Aqui, o licenciando é levado a propor planos de ensino, após a discussão sobre a

natureza do conhecimento matemático, de aspectos de caráter curricular e

especificidades de materiais de ensino, os quais já foram abordados em disciplinas

anteriores e são aí complementados. Elas envolvem observação e análise de ações

pedagógicas, propostas pelo futuro professor ou por professores mais experientes em

serviço, com participações individuais ou em grupos.

Entendemos que a relação entre saber Matemática e o ensino da mesma (Sztajn,

2002, p. 22) não é linear. No momento de ensinar, todos esses saberes interagem com

as visões do professor sobre o processo de ensino-aprendizagem, sobre os alunos e o

contexto da sala de aula. Desse modo, entendemos que, embora aqui organizadas em

blocos separados, essas disciplinas não têm uma fronteira rígida e os Projetos

Integrados, nelas propostos, são as pontes de ultrapassagem dessas fronteiras, exigindo

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grande preparo também por parte dos formadores de professores de Matemática. Neste

quesito, mais uma especificidade local traz concretude à proposta desses projetos, pois

os docentes da Instituição, que trabalham com essas disciplinas da área pedagógica e da

Educação Matemática, são formados, em boa parte, também na área de Matemática, e

isto tem facilitado o trânsito das reflexões entre as diversas instâncias da formação desse

professor.

AS ATIVIDADES ACADÊMICO-CIENTÍFICO-CULTURAIS

Os alunos de Licenciatura deverão, ainda, complementar sua formação com 200

horas de atividades acadêmico-científico-culturais, totalizando uma carga-horária de

2.855 horas de dedicação, em período integral, durante 4 anos. Estas atividades podem

ser contadas dentro das opções: Iniciação Científica, monitorias, bolsas-trabalho,

participação em Congressos de Matemática, Educação ou Educação Matemática,

Participação em palestras locais e atividades de extensão - com comprovantes. Também

estudamos a possibilidade de incorporar nesse quesito, futuramente, as visitas científicas

monitoradas.

Estas opções estão de acordo com a realidade local, uma vez que o ICMC-USP

oferece facilidades para que os alunos tenham acesso a bolsas de iniciação científica, de

monitoria, ou bolsas-trabalho. Também oferece regularmente o “Simpósio de

Matemática para a Graduação – SiM” e outros, nos quais os licenciandos podem

apresentar seus projetos de pesquisa. A Universidade de São Paulo (e em particular o

campus de São Carlos), também realizam um evento que reúne todos os alunos de

iniciação científica de cada ano, favorecendo, assim, um ambiente que valoriza as

posturas investigativas do futuro professor.

Para que possamos dar corpo a estas mudanças curriculares e implementá-las com

qualidade, algumas ações conjuntas também têm sido buscadas nos cursos do ICMC.

Temos promovido um e

sforço constante das coordenações para a diminuição dos índices de evasão e

acreditamos que estas mudanças curriculares para a licenciatura contribuirão para evitar

ainda mais as evasões, uma vez que, já no início do curso, mesmo sem saber se irá

tornar-se ou não um professor dos Ensinos Fundamental e Médio, o graduando toma

contato com essa possibilidade de maneira bastante crítica e reflexiva.

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Page 11: Licenciatura em Matemática: a experiência do ICMCendipe.pro.br/.../13/paineis/paineis_autor/T2580-1.doc · Web viewA partir das discussões promovidas desde o ano de 2000 e das

Também temos buscado promover contínuas melhorias nos Laboratórios de

Ensino de Matemática e de Educação Matemática, no ICMC, que são os espaços em que

o futuro professor pode dar vazão às suas propostas, planejamentos, projetos e criações

para o ensino de Matemática, contando com todo o material de apoio para isso. Além

disso, temos incentivado a participação dos nossos alunos em Projetos de Extensão que

visem a atuação prática do futuro professor, junto ao CDCC- Centro de Divulgação

Científica e Cultural da USP, em São Carlos, e a Projetos de Melhoria do Ensino

Público – FAPESP - existentes no campus.

Por esses motivos, nossa estrutura curricular apresenta uma carga horária dentro

das exigências mínimas do MEC (Res. CNE/CP 1/2002), uma vez que é nosso objetivo

fornecer todas as condições para que o futuro professor de Matemática tenha

flexibilidade para buscar novas formas e fontes de aprendizagem, que não apenas as da

sala de aula, gerenciando o próprio desenvolvimento profissional, através de projetos

pessoais de estudos (Pires, 2002).

CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS

Observamos que a idéia trazida por Ponte (2002) para os estágios, com a

Licenciatura em Matemática da Faculdade de Ciências de Lisboa, é algo muito

interessante e frutífero, a ser pensado para nossos cursos de Licenciatura, futuramente.

Lá, o aluno tem em sua estrutura curricular, um quinto ano de estudos, quando se liga a

um estágio supervisionado, assumindo a regência de duas turmas e, nesse momento,

torna-se professor, porém ainda não está desvinculado de sua formação inicial, levando

intervenções para a mesma, e dela para a prática. Acreditamos que esta idéia ainda não

tenha possibilidades para a realidade local, uma vez que constatamos grande

desarticulação das políticas governamentais de formação inicial e continuada de

professores, com os aspectos técnico-organizacionais das escolas, no Brasil. Além disso,

o campus de São Carlos não possui um departamento de Educação e número suficiente

de docentes que possam dar conta desse tipo de formação (os docentes da área

pedagógica, no campus da USP em São Carlos, são alocados em Departamentos de

Matemática, Física e Química).

Outra questão local, referente a essa escassez de docentes da área pedagógica, ou

com formação específica em Educação Matemática, é que, embora os futuros

professores desenvolvam projetos de investigação, poucas são as pesquisas mais amplas

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e sistematizadas nessas áreas, e que envolvem as dimensões teórico-práticas ligadas ao

ensino de Matemática e à Educação, em geral.

Concluímos este relato, com a convicção de que as reformas para as Licenciaturas

se constituem em processos dinâmicos e devem ser alvo de constantes reflexões e novas

propostas. Portanto, o Projeto do ICMC não está acabado, mas um significativo passo

foi dado na valorização da formação de professores de Matemática, que sejam capazes

de reconstruir saberes, propor novas perguntas e paradigmas para a educação brasileira,

com todas as peculiaridades e dificuldades que a envolvem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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