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ENSINO DE CIÊNCIAS EM CLASSES MULTISSERIADAS: UM ESTUDO DE CASO NUMA ESCOLA RIBEIRINHA
Maria Nastalina Mendes Freitas – SEMEC/Belém
PALAVRAS INICIAIS: DO CONTEXTO À QUESTÃO DA PESQUISA.
O Estado do Pará, com uma área de 1.253.164 km2, corresponde a 14% do
território brasileiro e a 24% da área que forma a Região Amazônica1. Concentra
também em seu espaço o convívio com a diversidade de sujeitos, com seus costumes,
suas histórias, suas culturas, mas ao mesmo tempo com a precariedade de qualidade de
vida, de trabalho, de saúde e de educação.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais do
Ministério da Educação, no país, 99% das escolas com classes multisseriadas estão no
campo. No tocante às séries iniciais do ensino fundamental, de 1ª a 4ª séries, 64%
dessas escolas são exclusivamente multisseriadas. Elas atendem 1.751.201 alunos. Na
Região Amazônica, esse percentual é da ordem de 71,7%, ou seja, 394.948 alunos
(46,6%) (INEP/MEC, 2002).
Esses dados são indicadores da precariedade e das dificuldades da realização da
educação para as populações do campo, o que, sem dúvida, compromete a qualidade do
processo de ensino e de aprendizagem de professores e de alunos. Por outro lado, a
alternativa encontrada para que o problema não se torne ainda maior é a adoção de
classes multisseriadas, onde o mesmo professor atende todos os estudantes das séries
iniciais, em um mesmo espaço e horário, independente da idade dos alunos. Longe de
diminuir, essa realidade tem ampliado ao longo do tempo, conforme diz Freire (2004, p.
2):
O crescimento de 3,4% de classes multisseriadas no período de
1984 a 1997 no Brasil totalizando 124.990 classes é uma das
facetas que expressa a envergadura do desafio educacional no
meio rural no país. O cenário dessas classes na região amazônica
evidencia mais ainda o desafio : a região Norte dispõe de 22.936
classes multisseriadas e o Estado do Pará contemplam mais de
1A Amazônia é uma ampla concentração de natureza, que se distribui em 5.217.423 km2, correspondendo a 61% do território brasileiro.
50% dessas classes, totalizando 11.882 turmas que contemplam
prioritariamente as séries iniciais do ensino fundamental e
abrangem 141 dos 143 municípios do Estado, inclusive a capital,
que dispõe de seis classes distribuídas em três ilhas situadas em
Belém/PA.
Nesse cenário, trazemos algumas questões pertinentes para suscitar o debate:
como acontece o ensino de Ciências numa sala de aula multisseriada? De onde são os
alunos? Como vivem? O que sabem? Consideramos a pertinência destas questões e
compartilhamos com Osowski (1999, p.67) ao enfatizar:
A escola estava ali, emudecendo quem era sábio de histórias, de
lendas, de fatos e de dados presentes no dia-a-dia, mas que agora
parecia desconhecer a geografia do lugar e a história de seu
povo. (...) A escola estava ali, silenciando saberes e negando
culturas: dos indígenas e do cabloco, do nortista e do povo
ribeirinho, da criança e do jovem, da mulher e do homem (...)
Tantas culturas negadas, tantas culturas silenciadas.
Ancorados nesta visão, afirmamos a necessidade de ensinarmos ciências nas
séries iniciais e na área rural, valorizando o contexto social onde os sujeitos estão
inseridos, uma vez que os alunos precisam compreender que falar sobre e fazer ciências
não requer um talento especial nem uma inteligência diferenciada. Weissmann ( 1998,
p. 18) sustenta que:
(...) quando ensinamos Ciências às crianças nas primeiras idades
não estamos somente formando “futuros cidadãos”; elas enquanto
integrantes do corpo social atual podem ser hoje também
responsáveis pelo cuidado do meio ambiente, podem agir hoje
conscientes e solidárias em relação a temas vinculados ao bem –
estar da sociedade da qual fazem parte.
Investigar a dinâmica do processo educativo no que se refere ao ensino de
ciências no ensino fundamental, em uma classe multisseriada, nos faz, antes de qualquer
2
coisa, aprendizes da professora que vai nos ensinar a compreender como ela é capaz de
lidar com tantas diferenças em uma só classe e como os alunos, tão diversos, interagem
entre si, na perspectiva da aprendizagem de novos conhecimentos. Neste artigo,
certamente não se esgota o esforço para a reflexão sobre a prática docente (SCHÖN,
1992) da professora dessa classe, mas temos certeza de que é uma realidade que merece
ser estudada.
Centramos nossa atenção nas práticas desenvolvidas pela professora e nas
interações em aula, com vistas à construção do conhecimento pelo aluno. A perspectiva
que assumimos nesta investigação, vem ao encontro do que Aragão (2000: p. 84)
afirma:
(...) compreender a relação professor, aluno, conhecimento... Em
termos interativos passa a ter sentido – sobremaneira no âmbito
do ensino que se pratica – principalmente quando se põe em
perspectiva a reflexão para redimensão da ação de ensinar.
Compreender a relação professor-aluno-conhecimento...Termos
interativos... Implica uma reflexão sobre a prática pedagógica do
professor e da professora, sua prática efetiva de ensino que gera
aprendizagem, em qualquer nível de escolaridade e, sendo
assim, tem-se em vista a melhoria da qualidade do processo de
ensino e de aprendizagem em qualquer área do conhecimento ou
curso de formação.
A TRAJETÓRIA DA PESQUISA.
Este estudo foi realizado em uma escola da zona rural de um município do
Estado do Pará distante de Belém 45 min de barco. É parte de uma pesquisa mais ampla
a respeito da realidade de classes multisseriadas. O trabalho de campo teve a duração de
um ano, com freqüência semanal.. Para o presente estudo, fazemos um recorte sobre o
material de pesquisa como um todo, situando nossa análise em uma temática estudada
em aula: o corpo humano.
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Foram realizadas, e gravadas em áudio, entrevistas com a professora Lívia. As
aulas assistidas também foram gravadas em fitas de áudio. Foram tiradas fotografias de
várias situações e realizado diário de campo, retratando observações e
sentimentos/impressões naquele local.
Os dados aqui apresentados dizem respeito a um episódio que faz parte do
conteúdo do ensino de ciências: o Corpo Humano; escolhido por se tratar de um assunto
que emerge da vida cotidiana e por estar inserido no currículo escolar.
É importante destacar que nos dois primeiros meses de observação na escola as aulas
eram ministradas de forma mecânica e havia a separação dos alunos por séries. Este tipo
de organização pedagógica não permitia dinamicidade no envolvimento total da turma.
CLASSES MULTISSERIADAS: AS INTERAÇÕES DISCURSIVAS NO ENSINO
DE CIÊNCIAS
É necessário compreendermos que a ciência escolar não é a ciência dos
cientistas. O que queremos é que o professor ao ensinar ciências encontre práticas de
trabalho que possam ajudar as crianças e jovens das classes multisseriadas a apropriar-
se de conteúdos, construindo conceitos, procedimentos e atitudes científicos valorizando
seus saberes, a memória coletiva e seus significados.
Assim, trazemos para este trabalho as interações discursivas suscitadas em um
episódio em sala de aula sobre as temáticas Água e o Corpo Humano.
Os moradores dessas comunidades pesquisadas sobrevivem do marisco do
camarão, da pesca e da agricultura. Atualmente, o marisco do camarão, da pesca e da
extração de palmito, em decorrência, especialmente, dos impactos ambientais
provocados pela Usina Hidrelética de Tucurui, a extração desenfreada do palmito do
açaí, entre outras ações, como bem denuncia o morador: “ antes da barragem tinha
peixe, camarão (...) A gente conseguia, mas depois da barragem ficou difícil.
Antigamente, tinha caça. Agora, tem pouco,e o pouco que tem, é muito difícil de
conseguir”. Sobrevivem, principalmente,da cultura da mandioca, da priprioca, do açaí e
do pescado.
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Esses moradores são detentores de um vasto manancial de saberes das plantas
medicinais. Os seus saberes etnocientíficos são contados oralmente pelos mais velhos
aos mais novos, como são construídos imersos às suas práticas culturais. São exímios na
pesca e na caça de animais silvestres. Consideramos que, diante das imposturas do
poder público executivo, essas sociedades tradicionais do/no campo, conseguem
sobreviver “... graças aos saberes acumulados sobre território e as diferentes formas
pelas quais o trabalho é realizado, que depende da mobilização e do domínio de
técnicas: de caça, de pesca, de plantio, de identificação na mata de recursos que
alimentam seu sistema de preservação da saúde, de curas, de manejo de espécies, de
defesa dos membros do grupo, etc.” ( CASTRO, l998,p. 03).
Estes saberes são evidenciados, como prática social, histórica e cultural, às
relações que, cotidianamente, constróem, com a terra, com a água e com a mata. Não é
à toa que alguns pesquisadores franceses, ingleses, norte americanos, entre outros, como
se fossem vampiros e piratas, se aproveitam desses saberes, historicamente, construídos
pela populações tradicionais amazônidas, fazendo-lhes, falsamente, um deles. Eles
ouvem, observam e registram cuidadosamente tudo; tiram amostras de espécies para
serem estudadas. Manipulam, sistematizam e patenteiam os saberes e os benefícios
destes, e, ao mesmo tempo, se dizem autênticos donos das etnociências tradicionais. Os
moradores dessas localidades constroem com a natureza, inéditos conhecimentos, ou
seja:
“A natureza apresenta-se imediatamente ao conhecimento
desses grupos como um olhar de permanente observação,
pesquisa e reprodução de saberes. A capacidade de classificar
segundo categorias os objetos reais importa numa construção de
significados para o processo de comunicação. Os sistemas
classificatórios dessas populações fazem parte do patrimônio
cultural. As relações desses povos ‘tradicionais’ com a natureza
manifestam-se no seu próprio vocabulário e nos termos que
usam para traduzir sua vivência e adaptação aos ecossistemas”
(CASTRO, l998, p.04).
As suas falas são impregnadas de significados e dos sentidos das vivências
simbólicas, míticas, técnicas, tecendo as teias de saberes encharcados das relações com
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o ecossistema. Narram as histórias de sua cultura, evidenciando os rituais que envolvem
as suas práticas sociais emancipatórias. As falas são construídas nas interações
discursivas não-autoritárias, críticas e problematizadoras dos conflitos e das tensões
referentes as ações predatórias da biodiversidade do território das populações
tradicionais. No entanto, são raríssimas as instituições que não desprezam e silenciam as
suas vivências. Os saberes das populações tradicionais existem. Suas falas, cheias de
palavras, que, por sua vez, são contaminadas de significados e de sentido existenciais,
constituem as tecituras das veias e das teias do discurso dentro e fora de sala de aula.
Ao narrar, fazem conexões às suas memórias, e, como também, revelam o
processo de construção da identidade individual e coletiva do grupo social a que
pertencem. As reentrâncias da permanente construção da relação identidade, saberes e
memória nas sociedades tradicionais, como os liames em que se encontram os
moradores das comunidades pesquisadas todos os dias, fazendo relações com o seu
processo identitário e com a sua memória étnico-sócio-cultural. Por isso:
“Longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a
memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-los, vigilante, à
espreita.
A memória prática é regulada pelo jogo múltiplo da alteração,
não só por se constituir apenas pelo fato de ser marcada pelos
encontros externos e colecionar esses brasões sucessivos e
tatuagens do outro, mas também porque essas escrituras
invisíveis só são claramente ‘lembradas’ por novas
circunstâncias. O modo da rememoração é conforme ao modo
da inscrição. Talvez a memória seja aliás apenas essa
‘rememoração’ ou chamamento pelo outro, cuja impressão se
traçaria como em sobrecarga sobre um corpo há muito tempo
alterado já mais sem o saber. Essa escritura originária e secreta
‘sairia’ aos poucos, onde fosse atingida pelos toques. Seja como
for, a memória é tocada pelas circunstâncias, como o piano que
‘produz’ sons ao toque das mãos. Ela é sentido do outro”
(CERTEAU, 2003, p. l63).
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As interações discursivas, no ensino de ciências, no contexto de sala de aula, é a
fonte da perene construção de conceitos cotidianos e científicos, relacionados com a
vida cotidiana, isto é, não há discurso sem intencionalidade, neutro e inocente. O
discurso é uma construção social, cultural, histórica, ideológica, eivado de interesses e
de valores de mudanças ou de reprodução das situações concretas dos sujeitos das
classes multisseriadas amazônidas, a partir, também, do ensino de ciências. Na maioria
de nossas escolas,
“O ensino de ciências, de uma maneira geral, tem reforçado a
visão da ciência como algo estático, como um conjunto de
verdades imutáveis, de estruturas conceituais congeladas no
tempo. A prática de um ensino sem nenhuma relação com os
contextos históricos, sociais e tecnológicos em que a ciência é
construída e aplicada, a ausência de fenômenos que possam
mostrar a natureza das construções teóricas e dos modelos
científicos como construções matemáticas e discursivas para
interpretação e descrição de uma realidade muito mais
complexa, tudo isso torna a ciência escolar algo desinteressante
e sem sentido para a maioria dos estudantes” (MORTIMER,
l998, p. ll4).
As interações discursivas, no ensino de ciências, nas classes multisseriadas, no
contexto das pesquisas acima citadas, é gravitado pelos diálogos críticos, interpretativos
e problematizadores, construídas pelas professoras e pelos alunos, quando tecem as teias
de saberes com os temas “o corpo humano” e “água”, ao mesmo tempo, fazem relações
e conexões com as condições concretas existenciais do ecossistema para viverem. As
indagações vão aflorando em torno das temáticas, materializadas em suas histórias e em
suas práticas sócio-culturais. A estética do corpo, com suas falas e expressões. As
semelhanças e as diferenças existentes entre os seres humanos dos povos de diversas
culturas. Para se alimentar, se vestir, calçar, tomar banho, precisamos de que? Perguntas
e respostas vão sendo construídas, com base nas interações discursivas, buscando os
significados e os sentidos das teias de seus saberes tradicionais, no ambiente em que
estão envolvidos.
A importância de seus saberes para a (re)construção de suas vivências
cotidianas, evidenciadas nas suas práticas de pescar, caçar, fazer farinha, vender e
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preparar o açaí e de contar histórias. No ensino de ciências, fundado nas relações
crítico-dialógicas,
“...O aluno só entende o novo significado que o professor e
professora estão enunciando ao dialogar com ele, ao carregá-lo
com suas próprias palavras, seus próprios significados. Quanto
maior for o número de contrapalavras, de ‘respostas’ que o
enunciado do professor e professora produzir no aluno, mais
profundo será o seu entendimento” (MORTIMER, l998, p. ll5).
A prática das professoras, nas aulas de ciências, diferente do ensino transmissão-
recepção de conteúdos, disciplinar, fragmentado e compartimentalizado, é,
constantemente, construída nas interações dialógicas com os alunos, para desconstruir
os processos de negação e de silenciamento das vozes e das vivências dos sujeitos das
sociedades tradicionais, que, historicamente, foram e, ainda, são reproduzidos no ensino
de ciências.
As docentes, ao construírem um ensino de ciências crítico-dialógico, estavam
sujeitas às indagações, aos questionamentos e às problematizações feitas pelos alunos,
para captar os significados da linguagem dos conteúdos científicos e cotidianos,
articulados às praticas sócio-culturais dos sujeitos das classes multisseriadas, no
contexto amazônico. As indagações e os questionamentos dos alunos, quando se
referiam às suas práticas cotidianas, teciam as teias de significados, desvelando e
demolindo os preconceitos e as práticas racistas. Para tanto, “... Transformar a prática de
sala de aula numa prática dialógica significa dar voz aos alunos e alunas, não apenas
para que reproduzam as ‘respostas certas’ do professor ou da professora, mas que
expressem sua própria visão de mundo, sua própria voz” (MORTIMER, l998, p. ll5).
As teias de saberes eram tecidas e tratadas, nas classes multisseriadas, durante o
ensino de ciências, como se os assuntos “água” e “corpo humano” fossem apenas um
pretexto para a incessante construção de saberes dialógicos com outras ciências. As
professoras, ao falarem da divisão do corpo humano em três partes, ou seja, em cabeça,
tronco e membros, estavam, também, fazendo referência, com a quantidade, à
matemática. À geografia, quando ao falar de higiene do corpo, reportavam-se às
precárias condições sócio-ambientais, onde residem os alunos.
As aulas das professoras de ciências evidenciaram, sob a égide das interações
discursivas, o compromisso ético-humano de fazer do conhecimento e do
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reconhecimento dos saberes prático-dialógicos dessas sociedades tradicionais, fonte das
tecituras das teias da linguagem científica com a linguagem cotidiana.
A vitalidade desses saberes é verificado quando constróem conhecimentos em
teias com suas vivências cotidianas. Nas aulas de ciências, em interações crítico-
dialógicas, as professoras e os alunos das classes multisseriadas estavam construindo e
praticando incessante tentáculos e veias de alfabetização científica, tão defendida por
CHASSOT (2003, p. 29-30):
(...) a alfabetização científica, permito-me antecipar que defendo
(...) que a Ciência seja uma linguagem; assim ser alfabetizado
cientificamente é saber fazer ler a linguagem em que está escrita
a natureza. É um analfabeto científico aquele incapaz de uma
leitura do universo [mais próximo, onde constrói suas teias de
saberes]”. (grifos nossos)
As interações discursivas, no ensino de ciências crítico-dialógico, contribui,
entre outras coisas, para a permanente construção de teias de saberes das etnociências
das sociedades tradicionais, sem deturpação de seus significados, com os saberes
científicos, isto é, a perene construção da alfabetização científica, com (re)leitura crítica
e entendimento das palavras constituintes dos conceitos da linguagem científica,
conectada à leitura das teias das palavras do contexto local. Neste sentido, “...
poderíamos considerar alfabetização científica como o conjunto de conhecimentos que
facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo onde vivem”
(CHASSOT, 2003, p. 38).
O ensino de ciências, de caráter dialógico, nas aulas das professoras das classes
multisseriadas, se fundamenta na (re)construção do encontro dos saberes cotidianos com
os saberes científicos, ou seja, através das interações dialógicas com os alunos,
constróem rizomas entre esses saberes, sem a supervalorização de um em detrimento do
outro. As professoras, com freqüência, levavam os alunos para fora da sala de aula, e
dialogavam, refletiam e problematizavam os conteúdos dos assuntos, com os alunos,
fazendo conexões com realidade onde vivem. A prática dessas professoras revela a
constante preocupação em estar construindo, com os alunos, um ensino
“... que buscasse cada vez mais propiciar que a Ciência seja um
instrumento da leitura de realidade e facilitadora da aquisição de
uma visão crítica da mesma e, assim, possa contribuir para
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modificá-la para melhor, onde esteja presente uma continuada
preocupação com a formação de cidadãs e de cidadãos críticos
[preocupados com os outros e com o mundo]” (Grifos nossos)
(CHASSOT, 2003, p. l3l).
O ENSINO DE CIÊNCIAS EM CLASSES MULTISSERIADAS: AÇÕES,
INTERAÇÕES E APRENDIZAGEM
A professora partiu de uma dinâmica chamada “Eu e meu corpo, como me
vejo?”. Após desenharem, buscando responder a pergunta, a professor pediu que todos
apresentassem seus desenhos.
Nesse episódio, percebe-se a preocupação com o belo, o estético. A maioria dos
alunos se achou bonito/a, como nos turnos (3) Eu acho que me vi bonito; (4) Quando me
vi no espelho, me achei bonita; (5) Como, se tu és gorda! e (6) Mas eu me sinto bem e
acho que sou bonita!
Os alunos interagem entre si, preocupados com a estética do corpo. Neste
sentido, a professora reagiu diante da fala do aluno, ((7) Viram como ser gordo não é
feio? É como nos sentimos bem!) respeitando a maneira de considerar o corpo e
propondo que se discuta a temática, uma vez que a valorização do corpo privilegia
aqueles que parecem ser esteticamente perfeitos (modelo formatado pela mídia), mesmo
que para isso se gaste bastante e se façam muitos sacrifícios (as famosas dietas), o que
revela o forte apelo dos meios de comunicação no que diz respeito aos estereótipos
impostos pela sociedade
A professora se restringe a discutir a relação cultural e biológica do corpo, como
explicitam os turnos (14) - Muito bem! Cada um mostrou como se viu. Este desenho é o
jeito como vocês se acham - e (15) – É importante a gente gostar de si mesmo, se aceitar
do jeito que é – e esquece de tecer relações ligadas a fatores sociais, de saúde e
econômicos a que estão expostos os corpos de nossos jovens.
No turno (20) – Então... o que temos? Ninguém lembra que órgãos compõem
este corpo? – a professora faz perguntas para buscar respostas de seus alunos, sem se
prender ao rigor científico, e assim eles vão respondendo, construindo as teias de
saberes. A estética é um tema recorrente nas falas, (25) – O que vocês acham que se
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deve fazer para se ter um corpo bonito? As questões sociais estão referendadas nos
turnos (28) – todos nós temos uma boa alimentação? - (29) aqui, não! A gente só come
peixe e açaí, quando tem! E (30) – Por que será que nem todos podem se alimentar?
A partir dessa discussão, estabelece-se uma série de argumentos como falta de
dinheiro, de emprego, doenças causadas pela falta de alimentação adequada, chegando
ao descaso das autoridades, que só aparecem no local na época de campanhas pré
eleitorais. A discussão constitui-se uma construção coletiva da conscientização da
realidade social, por meio do ensino de ciências. Percebe-se que as interações
discursivas e dialógicas surgem nos turnos (33), quando a professora, após escutar as
diferentes dificuldades apontadas pelos alunos, pergunta “Tudo isso que vocês falaram
tem a ver com o estudo do corpo humano? (E permite que os alunos reafirmem que sim,
com diferentes argumentos) e (39), quando diz: É isso mesmo?.
Nossa análise, no que se refere às interações discursivas no ensino de Ciências
entre aluno/aluno, professor/aluno, acerca dos conteúdos sobre o Corpo Humano,
fundamenta-se nos estudos de Mortimer e Scott (2003) 2.
O desenvolvimento de trabalhos que envolvam a cientificidade e a
cotidianeidade no plano social da sala de aula é de fundamental importância. O aluno
não é um simples receptor de estímulos e informações. Muito pelo contrário, ele tem um
papel ativo ao selecionar, assimilar, processar, interpretar, conferir significados,
construindo, assim, seu próprio conhecimento.
As atividades propostas pela professora, de certa forma, despertam interesse na
turma. No entanto, verificamos que, como participar, expondo suas idéias não era uma
prática comum do dia-a-dia da sala de aula, as crianças apresentaram certa timidez para
fazê-lo, no momento em que foram solicitadas pela professora. Observamos que alguns
dos alunos, senão todos haviam escrito/desenhado figuras relativas às temáticas
propostas pela professora.
É imprescindível destacar a preocupação da professora com os que não sabem
ler e escrever. A escolha do desenho foi uma opção feita pala professora para que todos
participassem. Esta atitude revela a preocupação com a aprendizagem significativa de
seus alunos, temática muito presente em sua fala, durante nossas conversas. Demonstra,
também, a preocupação para que cada um se sinta sujeito do processo de ensino e de
aprendizagem no espaço da sala de aula, interagindo saberes mesmo que alguns não 2 A esse respeito, consideramos as matrizes teóricas deste autor: Interativo/Dialógico; Não-Interativo/Dialógico; Interativo/ de Autoridade; Não Interativo/ de Autoridade, isso é evidenciado nas reflexões de Mortimer (2002)
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saibam ler e escrever. Nas interações apresentadas nos episódios em análise neste
trabalho, pode ser verificada a participação de crianças da Educação Infantil (4 e 5 anos)
e crianças maiores.
Vygotsky (1989) nos propicia uma reflexão a respeito da relação entre
desenvolvimento e aprendizagem num processo de interação social mediada pelo
contexto histórico-cultural de cada realidade.
A interação provocada pela professora permite evidenciar que aprender é um ato
comunicativo e depende de uma ação compartilhada (Mercer, 1998).
Lívia avança na mediação da construção do conhecimento, a partir do que as
crianças já sabem sobre o corpo humano, desenvolvendo agora um maior número de
interações e relações do que havia conseguido desenvolver em episódios discutidos em
outros trabalhos (Mendes, Leão e Gonçalves, 2005). Ainda pode melhorar, pois em
vários momentos o padrão de interação foi avaliativo e a abordagem comunicativa foi
marcada pela autoridade.
A professora tentou construir explicações teóricas a partir dos saberes vividos
por seus alunos, mas a limitação imposta por sua formação, impediu-a de tal elaboração,
o que vai culminar com a abordagem comunicativa predominantemente de autoridade.
No entanto, sua forma de intervenção, muitas das vezes, não propicia selecionar
as idéias dos alunos e nem explorar as atividades de modo adequado, talvez por receio
de encaminhar para uma discussão na qual não se sinta segura. Algumas vezes formula
questões instrucionais e estabelece uma interação combinatória.
A diversidade entre os alunos das classes multisseriadas confere heterogeneidade
de saberes das práticas sócio-culturais cotidianas e vivenciadas pelos alunos, o que
ganha relevância no processo de conhecimento, garantindo ocasiões para a troca de
informações, idéias e opiniões.
As interações discursivas entre os alunos acontecem mesmo com a ausência da
participação da professora com eles, pois os alunos possuem saberes e trocam
experiências por meio de seus incessantes diálogos, vivenciados de forma desinibida,
mais presente fora do contexto de sala de aula.
As interações do texto/contexto construídas pelos alunos acontecem
independentemente da participação da professora, como no exemplo dos desenhos.
Se bem orientadas e planejadas as aulas com os alunos das séries iniciais do
ensino fundamental das classes multisseriadas, estes serão capazes de ir além da
observação e da descrição dos fenômenos. Como afirma Mercer (1998), o discurso não
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é meramente a representação do pensamento na linguagem: é mais uma maneira social
de pensar e agir relacional e intencionalmente. Neste sentido, o papel do professor é
essencial, pois não é fácil criar condições para que os alunos adquiram conhecimento,
especialmente em escolas sem as mínimas condições físicas, materiais e pedagógicas.
O uso de desenho nas aulas favorecem o processo de aprendizagem. Vygotsky
(1989) não restringe seus estudos ao uso da linguagem verbal, apesar da importância
que atribui a esta forma de comunicação. Ou seja, as interações proporcionadas entre
aluno/aluno, professora/alunos, texto/contexto, ajudaram no sentido de permitir novos
significados na aprendizagem dos alunos, constituindo-se interações e diálogos
significativos e necessários à apropriação do conhecimento científico e suas múltiplas
relações sociais, culturais e econômicas.
A organização da sala de aula é outro aspecto que deve ser considerado, pois a
preocupação da professora era fazer deste espaço um espaço de construções, permitindo
aos alunos exporem suas idéias, pensarem. De acordo com Vygotsky (1989: p. 114):
A criança, ao querer, realiza seus desejos, ao pensar, ela age. As
ações internas e externas são inseparáveis: a imaginação, a
interpretação e a vontade são processos internos conduzidos pela
ação externa.
Neste sentido, as oportunidades oferecidas pela professora aos alunos para que
expressassem suas idéias, certamente os ajudaram a reconstruírem seus diálogos. As
interações entre os pares foram amplamente utilizadas, ou seja, a sala de aula da
professora de multissérie ganhou outros ares, além das práticas que a professora ia
incorporando no seu fazer pedagógico, permitindo que outras ações emergissem e
fluíssem no ensino e na aprendizagem de seus alunos.
Os estudos de Mortimer e Scott (2003), permitiram-nos evidenciar as dinâmicas
interativas e o fluxo do discurso que operam em sala de aula, assim como compreender
aspectos importantes da prática docente e como as interações discursivas constituem-se
elementos fundamentais para a melhoria da qualidade social do ensino que se quer, seja
numa escola multisseriada ou uma classe “regular”.
Observamos, ainda, que a produção dos saberes científicos e cotidianos
organizados e sistematizados no âmbito escolar, ajudam o educador no desenvolvimento
de um currículo de ciências significativo para os alunos, intimamente relacionado com o
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contexto social em que os processos educativos se realizam. De nada adiantaria uma
atitude meramente acadêmica da professora, desprovida da realidade vivida por ela e
pelos alunos.
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