variaÇÃo lingÜÍstica e literatura...
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VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E LITERATURA SURDA
Lodenir Becker Karnopp - ULBRA
Variação lingüística e literatura surda é o recorte proposto para a análise da
relação entre língua e literatura, questões dialetais e produção cultural em comunidades
surdas. Ancorada nos pressupostos teóricos dos Estudos Culturais em Educação
(COSTA 2000, 2002, SILVEIRA 2002, VEIGA-NETO 1995, HALL 1997) e dos Estudos
Surdos (FERREIRA BRITO 1993, QUADROS 1997, SOUZA 1998, SKLIAR 1998,
1999, KARNOPP 1999, CAPOVILLA 2001, PEREIRA 2002, QUADROS, KARNOPP
2004) desenvolvo algumas discussões acerca de “um projeto de pensar as implicações
da extensão do termo ´cultura´ para que inclua atividades e significados das pessoas
comuns, esses coletivos excluídos da participação na cultura quando é a definição
elitista que a governa” (BARKER & BEEZER, 1994, p. 12). Filiada a essa perspectiva
de cultura, os estudos da arte, da língua e da literatura surda congregam artistas surdos
para difundir e dar visibilidade às expressões lingüísticas, culturais e artísticas advindas
da experiência da surdez. Neste sentido, utilizamos a expressão “literatura surda” para
histórias que têm a língua de sinais, a questão da identidade e cultura surda presentes na
narrativa. Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que entende a
surdez como presença de algo e não como falta, possibilitando outras representações de
surdos, considerando-os como um grupo lingüístico e cultural diferente.
Conforme Lacerda (2004), a posição de sujeito denominada ‘pessoa com
deficiência’, vem sendo construída nos Estados Unidos e na Europa através da
participação e ativismo político das pessoas com deficiência na criação e
regulamentação de leis. Além disso, foco do Disability Studies1 é na elaboração dos
pressupostos teóricos sobre a condição deficiente como uma questão social, coletiva e
decididamente cultural. Grande parte dos autores que elaboram o corpo de teorias
chamado Disability Studies estão filiados aos Estudos Culturais, definindo uma agenda
de pesquisas articulada com as lutas por significação que subjuga e desqualifica as
pessoas com deficiência. O objetivo dessa agenda é simultaneamente buscar novos
argumentos que possam forçar as mudanças na legislação, e privilegiar investigações
que tenham como objetos de análise diversos artefatos culturais como literatura, filmes,
propaganda,... que tramam discursivamente as formas de ser e de lidar com a
deficiência.
Temos presenciado uma mudança de mentalidade e postura, por parte de uma
nova geração de pessoas com deficiência, que se insere na pauta das discussões como
um grupo minoritário, repudiando o modelo clínico-patológico. No caso dos surdos,
Skliar (1998) e Perlin (1998) apresentam duas concepções construídas historicamente:
concepção clínico-terapêutica e a sócio-antropológica. A partir da concepção sócio-
antropológica, o surdo é concebido como alguém pertencente a uma minoria lingüística,
com língua e cultura próprias.
“Numa atitude de resistência ao empreendimento de dominação, essa geração de pessoas com deficiência redefiniu suas armas, elegendo a teoria e a arte para recontextualizar a luta por seus direitos. A primeira arma [teoria], deu origem ao Disability Studies2[6] (DS) que tem como foco o desenvolvimento de estudos que revelem os mecanismos através dos quais a invalidez é convertida em deficiência visando a desconstrução da sua posição subalterna como fatalidade. A segunda arma [arte], implica na Disability Arts3[7] que congrega artistas com deficiência para multiplicar e dar visibilidade às possibilidades expressivas advindas da experiência da deficiência.” (LACERDA 2004, p. 6)
Registrar a literatura produzida por pessoas surdas e articular teoricamente essas
questões que envolvem língua e cultura são os objetivos do presente artigo.
Passaremos, a seguir, a uma apresentação da variação lingüística a uma descrição da
pesquisa sobre as histórias narradas por surdos na Língua de Sinais Brasileira
(LIBRAS). A pesquisa “Literatura Surda” (KARNOPP, ROSA, MACHADO em
andamento) objetiva registrar as histórias contadas por surdos, envolvendo os próprios
surdos e tradutores, no registro das histórias em sinais (registro através da escrita da
LIBRAS e através da tradução das histórias para a língua portuguesa).
VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA
Ao estudarmos as línguas de sinais, estamos tratando também das relações entre
linguagem e sociedade. A lingüística, ao estudar qualquer comunidade que usa uma
língua, constata, de imediato, a existência de diversidade ou de variação, ou seja, a
comunidade lingüística (no caso aqui investigado, a comunidade de surdos) se
caracteriza pelo emprego de diferentes modos de usar a língua de sinais. A essas
diferentes maneiras de fazer sinais, a sociolingüística utiliza a denominação de
“variedades lingüísticas”.
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Todos o usuários da língua de sinais brasileira conseguem se comunicar uns com
os outros e entendem-se bastante bem, apesar de não haver sequer dois que façam sinais
da mesma maneira. Algumas diferenças devem-se à idade, escolaridade, maior ou
menor contato com a comunidade surda, sexo, classe social, personalidade, estado
emocional. O fato de sermos capazes de identificar pessoas conhecidas pela forma
como falam (nas línguas orais) ou pela forma como fazem sinais (nas línguas de sinais)
mostra que cada pessoa tem uma maneira característica de usar a língua, diferente das
outras. Denominam-se idioletos as maneiras únicas do modo de falar/ ou sinalizar de
cada indivíduo. Para ilustrar a definição de idioleto transcrevo um diálogo entre surdos:
Eva (E) (31:44) - Eu percebo no teu jeito de fazer o sinal ‘vermelho’, uma forma peculiar. A tua orientação de mão é diferente, o pulso está mais para o lado. Esse é um jeito só teu ou é um jeito dos surdos de Pernambuco?
Figura 1: sinal VERMELHO
Pedro (P) (32:01) É verdade! É um jeito só meu, mas não faz diferença, o sinal continua sendo o mesmo, apesar de a forma ser um pouco diferente.
E (32:05) Outro detalhe interessante é que algumas pessoas quando fazem o sinal “branco”, fazem questão de encostar o dedo nos dentes [risos]...
P (32:09) Verdade! Verdade! E ainda abrem bem a boca para mostrar os dentes!
Figura 2: Sinal BRANCO
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E (32:13) Isso não é necessário. Veja só: para o sinal “branco” não é necessário nem abrir a boca, nem encostar o dedo no dente! Imagine se eu estou comendo e sinalizando, ficaria um horror abrir a boca!
Vejo que aí é culpa de alguns professores [ao ensinar sinais]!
P (32:38) Sim, embora o sinal “branco” tenha tido a motivação da cor do dente, ele não precisa ter esse contato, ele vai se desprendendo...!
E (32:44) O sinal “branco” deve ser sinalizado de forma natural, assim como as palavras no português têm um ritmo, os sinais também têm um ritmo...
(KARNOPP, 2004)
Além dessas diferenças individuais (idioletos), a língua utilizada por diferentes
grupos de pessoas pode apresentar variações regulares, variações em determinados
grupos, conforme a proximidade entre as pessoas. Quando a língua de sinais usada por
surdos de regiões geográficas ou grupos sociais diferentes apresenta diferenças
sistemáticas, diz-se que esses grupos usam dialetos da mesma língua. Os dialetos nas
línguas de sinais podem ser definidos como formas mutuamente compreensíveis dessa
língua e com diferenças sistemáticas.
No entanto, nem sempre é fácil decidir se essas diferenças sistemáticas entre
duas comunidades lingüísticas representam dois dialetos ou duas línguas distintas. A
definição mais simples, que tem sido utilizada é: “Quando dois dialetos se tornam
mutuamente ininteligíveis, ou seja, quando os usuários de um dialeto já não conseguem
compreender os usuários de outro, esses dialetos tornam-se línguas diferentes”. Claro
que a dificuldade está em definir o que é “inteligibilidade mútua”, pois considerar o uso
lingüístico de duas comunidades como dialetos ou como línguas diferentes transcende
questões lingüísticas, já que há questões políticas e de identidade cultural. Neste
trabalho, consideraremos dialetos da mesma língua as versões mutuamente
compreensíveis da mesma gramática básica que se distinguem de forma regular. Todas
as comunidades lingüísticas apresentam, de fato, variações sistemáticas no uso da língua
de sinais. Essas variações podem se apresentar no vocabulário, na sintaxe, enfim, na
forma como o surdo usa os sinais.
A diversidade de dialetos tende a aumentar conforme o isolamento comunicativo
(ou geográfico) entre os grupos. As mudanças que ocorrem em uma determinada região
não se estendem necessariamente a outras regiões. Se alguma barreira de comunicação
separa grupos de surdos – quer se trate de uma barreira física, geográfica, social,
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política, racial ou religiosa – as alterações lingüísticas não se divulgam facilmente e as
diferenças dialetais aumentam.
As alterações dialetais não se dão todas ao mesmo tempo; dão-se gradualmente,
tendo muitas vezes origem numa região e espalhando-se lentamente a outras, por vezes
ao longo de várias gerações de usuários da língua. Uma mudança que ocorra numa
região, mas que não se estenda a outras regiões, dá-se o nome de dialeto regional
(FROMKIN & RODMAN, 1993, p. 269). No diálogo entre os surdos, um do Nordeste
e o outro do Sul, eles descrevem algumas diferenças visíveis na língua, os dialetos
regionais.
E (39:15) - Minha pergunta agora é sobre as diferenças entre os sinais produzidos em Pernambuco e no Nordeste comparados com os sinais do Sul, de Porto Alegre. Percebes algumas diferenças?
P (39:22) - Sim, percebo que há muitas diferenças! Talvez em torno de 15% do total dos sinais sejam diferentes! Em Porto Alegre há um jeito diferente de fazer sinais!
E (39:21) - Eu observo que aqui no sul [Porto Alegre] se utiliza muito o alfabeto manual e toda a palavra é digitada manualmente. Em São Paulo percebo que um grupo de surdos oralizados utiliza somente a primeira letra, por exemplo, “F” na mão, enquanto oraliza toda a palavra “Fabiano”, necessitando que o surdo faça leitura labial para entender toda a palavra.
P (39:49) - Eu percebo que em Porto Alegre há muitos sinais diferentes, por exemplo, PESSOA, TIO/ TIA, SHOPPING... enfim, todos esses sinais utilizam como configuração de mão a primeira letra da palavra do português, “p” para pessoa, “t” para tio/tia, etc...
(KARNOPP, 2004)
Apesar de todas as línguas apresentarem variação, muita gente pensa e se refere
a uma língua considerando unicamente a forma padrão. Assim, surge uma pergunta: O
que é um dialeto padrão? De que forma é possível identificá-lo na LIBRAS? Em
primeiro lugar, é preciso estabelecer um princípio lingüístico: não existe um dialeto
melhor do que o outro, mais correto ou certo. Os gramáticos normativos consideram
geralmente que as formas corretas da língua são os dialetos usados na literatura, em
documentos impressos, dialetos ensinados nas escolas e difundidos pelos órgãos de
comunicação social e/ou os dialetos usados pelos dirigentes políticos, pelos
empresários... Um dialeto padrão não é nem mais expressivo, nem mais lógico, nem
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mais complexo, nem mais regular do que qualquer outro dialeto. O que queremos dizer
quando afirmamos que alguém usa a forma padrão é que o dialeto que essa pessoa usa
em situações formais é mais ou menos semelhante, em gramática e vocabulário, ao
padrão utilizado por líderes surdos na comunidade de surdos, geralmente aqueles mais
escolarizados, e/ou pelos instrutores de LIBRAS.
Como é que um dialeto torna-se o dialeto padrão? Assim que um dialeto
começa a impor-se, ganha, na maior parte dos casos, uma certa dinâmica. Quanto mais
“importante” se torna, mais usado é; e quanto mais usado é, mais importante se torna.
Pode ser o dialeto usado nos centros culturais (ou educacionais) de um país e pode
estender-se a outras regiões. (FROMKIN & RODMAN, 1993, p. 273). Nas
comunidades de surdos esse fenômeno também ocorre com freqüência, já que essa
dinâmica tende a se impor entre surdos de regiões diferentes.
Ao discutir a questão da variação e a quebra da dicotomia certo-errado, em
defesa de diferenças em relação ao uso da língua, utilizo a comparação da língua como
vestimenta, citada em Bagno (1999). As roupas, como sabemos, são variadas, indo da
mais formal (vestidos longos, terno e gravata) à mais informal (biquíni, pijamas). A
idéia dos que fazem essa comparação é que não existem, em geral, formas lingüísticas
erradas, existem formas lingüísticas inadequadas. A língua assim pode ser comparada
com as roupas: assim como ninguém vai à praia de terno e gravata, também ninguém
vai a um casamento de biquíni ou de pijama (ao menos, convencionalmente!). De igual
modo, ninguém diz “me dá esse troço aí” num jantar formal nem “faça-me o obséquio
de passar-me o sal” numa situação de convívio familiar.
A variação envolve a discussão de questões de uso e padrão lingüístico e, nesse
sentido, encontramos opiniões de gramáticos e de sociolingüistas, cada um com seu
viés, que afirmam que o padrão lingüístico é usado pelas pessoas representativas de uma
sociedade.
1 Estudo das pessoas com deficiência.2[6] Segundo definição da Professora Simi Linton (Longmore 1995:7) “Disability Studies reconfigura o estudo da deficiência enfocando-a como um fenômeno social, construído socialmente, metafórica e culturalmente, utilizando o modelo de grupo minoritário. Ele examina idéias ligadas à deficiência em todas as formas de representação cultural através da história, e examina políticas e práticas de todas sociedades para entender os determinantes sociais, mais do que os determinantes físicos e psicológicos, da experiência da deficiência.”3[7] A definição corrente da Disability Arts é ‘arte feita por pessoas com deficiência que reflete sua experiência de deficiência’. No entanto, seus participantes fazem questão de afirmar que Disability Arts é arte e não terapia. Ela é uma atividade que envolve trabalho elaborado, criatividade e propósitos estéticos e não tem nada a ver com retratos ou documentários feitos para mostrar o lado trágico ou mágico da vida das pessoas com deficiência. (Arts Council England, 2004)
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Na nossa própria língua podemos usar dois ou mais dialetos. Quando estamos
com os amigos nos expressamos de uma maneira; quando vamos a uma entrevista para
um emprego, a tendência é sermos mais formais. Esses dialetos de situação
denominam-se estilos. Conforme a situação, as pessoas utilizam um estilo informal
(interlocutor familiar) ou um estilo formal (interlocutor cerimonioso). Nas línguas de
sinais, observamos que o estilo varia conforme o interlocutor: quando um surdo se
comunica com um ouvinte, em geral, tende a fazer sinais de forma mais lenta, utilizando
alguma vocalização; quando se comunica com outro surdo, tende a sinalizar de forma
natural, sem vocalização.
Quase todas as profissões, comércios e ocupações têm um conjunto de
vocábulos; alguns são considerados “calão”, outros “termos técnicos”, consoante o
status social da pessoa que usa esses termos ‘da moda’. Esses vocábulos são muitas
vezes chamados de gíria.
Muitos termos de gíria passam para a língua padrão. A gíria, tal como o calão,
começa por um grupo reduzido até ser compreendido e usado por uma grande parte da
população. Por fim, pode até perder o status especial de gíria ou calão e entrar no
círculo respeitável do uso formal. Na língua de sinais temos muitas gírias, conforme o
relato a seguir.
E (43:10) - Lembrei do sinal de ‘droga’, que é este aqui e um outro que não tem o mesmo sentido do primeiro, pois é uma forma de cumprimento, é uma gíria... mas percebo que há confusão no entendimento do sentido de cada um, aplicados aos contextos de uso.
(KARNOPP, 2004)
Figura 3: sinais de DROGA e TCHAU!
Nesta seção vimos alguns aspectos da língua em sociedade, apresentando alguns
exemplos de idioletos e dialetos nas línguas de sinais. Com base em Fromkin &
Rodman (1993) vimos que cada um tem a sua própria maneira de usar a língua, de fazer
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sinais. Afirmamos que usar uma determinada língua implica um conhecimento que vai
além do lingüístico. Quando duas pessoas usuárias de uma mesma língua se encontram
e começam a fazer sinais, certamente se dá uma interação ampla em que cada uma das
pessoas usa a língua com características particulares, denotando se é usuário nativo da
língua e de que comunidade lingüística provém. Usuários de qualquer língua prestigiam
ou marginalizam certas variantes regionais, a partir da maneira pela qual os sinais são
articulados (expressões faciais e corporais, sinais caseiros, entre outros.). Interessa-nos,
na presente discussão, articular as variedades lingüísticas da LIBRAS aos registros
literários, com o objetivo de divulgar aspectos culturais e lingüísticos existentes na
comunidade de surdos.
REGISTRAR E TRADUZIR VARIEDADES LINGÜÍSTICAS E
CULTURAIS
A experiência de registrar e traduzir textos produzidos por surdos na LIBRAS
tem como referência a participação anual de surdos na Feira do livro de Porto Alegre
(desde 2001), evento promovido pela Câmara do Livro, que objetiva divulgar e
promover a leitura. No artigo “O surdo como contador de histórias” (ALVES;
KARNOPP, 2002) apresentamos algumas das práticas e processos que surdos utilizam
para contar e recontar histórias. Destacamos que, no ato de recontar histórias para
crianças surdas, os contadores surdos transformam um texto tradicionalmente voltado
para uma cultura ouvinte em uma história com elementos da cultura surda.
Além disso, analisamos (ALVES E KARNOPP, 2002) o clássico Cinderela
(1985) e descrevemos as adaptações e transformações para “Cinderela Surda” (2003).
Essa nova história remeteu-nos à análise das condições de produção e recepção textual,
evidenciando que essas condições são inseparáveis do local, das condições sócio-
históricas e institucionais em que os contadores estão situados.
A construção de histórias por surdos implicam na interação, na construção de
sentidos do texto, com base no diálogo com outros surdos e na tradução de uma língua e
de uma cultura para outra. Pessoas não constroem significados em um vácuo; o uso da
língua está inserido em contexto social, pois o texto é o resultado de processos e forças
sociais que o produzem. A leitura do texto e a análise das condições de produção e
recepção que o recriam, trazem à tona que essas condições são inseparáveis do local,
condições sócio-históricas e institucionais em que os interlocutores estão situados.
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Surdos recontam histórias para outros surdos e reconstróem através da língua e da
cultura os sentidos veiculados pelo texto que serviu como ponto de partida para a
criação de um outro texto.
Surdos apresentam uma releitura do texto clássico Cinderela e recontam essa
história para surdos e ouvintes numa versão intitulada “Cinderela Surda” (HESSEL,
ROSA, KARNOPP). Outras publicações deram seqüência a essa experiência de criação
e tradução: “Rapunzel Surda” (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP 2003), “O Patinho
Surdo” (ROSA; KARNOPP 2005) e “Adão e Eva” (ROSA; KARNOPP 2005)
registram histórias dos clássicos da literatura, a partir de uma cultura visual, em que
ocorre uma aproximação com a/s história/s de vida e as identidades surdas.
Cabe considerar que inúmeras histórias são contadas em línguas de sinais pelos
surdos, mas que não são registradas em livros e impressas para a divulgação e leitura
das mesmas em escolas de surdos e na comunidade em geral. Nesse sentido, utilizamos
a expressão “literatura surda” para histórias que têm a língua de sinais, a questão da
identidade e cultura surda presentes na narrativa.
Livros de literatura infantil que evidenciam uma representação dos surdos e da
surdez em um enfoque clínico-patológico são registrados na literatura (SILVEIRA,
2000); no entanto, livros com uma visão sócio-antropológica dos surdos, que
apresentem a surdez como diferença e não como deficiência, são escassos.
POR UMA CONCLUSÃO
Os aspectos analisados e considerados na relação entre variação lingüística e
literatura surda indicam que ao produzir literatura surda é necessário privilegiar o
contexto social em que a narrativa, piada, história de vida, etc... estão inseridos. Os
textos que são recorrentes na comunidade surda e que freqüentemente são
compartilhados e transmitidos às gerações seguintes formam o propósito do registro e
divulgação dos textos. Outro aspecto considerado é a relação entre aquele que produz
um texto e aquele que o interpreta, determinando modos diferenciados de apresentar e
interpretar a mesma história. Por fim, a identidade daquele que produz ou reproduz uma
história é também um aspecto considerado, tendo em vista as diferentes experiências de
contar histórias em contextos formais e informais.
Uma escrita literária, tendo como base aquilo que é narrado, parece ser um
primeiro passo para uma apreciação que corresponda à criação de histórias por surdos.
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Mas a escrita, como a tradução, já é uma injustiça às narrações, pois perdem as
características, o sabor específico da língua de sinais, da interação com os pares surdos,
da situação de espaço visualmente rico, dos olhares, das expressões faciais. A tradução
das histórias em sinais supõe um universo culturalmente compartilhado com o cotidiano
de pessoas surdas. Uma escrita à altura dos narradores deve recriar esse clima.
Claro que a arte de narrar se transforma, ao passar para a escrita ou para outra
forma de registro. Mesmo os escritores surdos, usuários da língua de sinais, têm
problemas parecidos ao de outros escritores (tradutores) ao registrar as narrações. Não
basta filmar, fielmente, e transcrever na língua; e depois traduzir, mesmo da maneira
mais detalhada. Sempre vai se tratar de uma outra forma de narrar, com recriação
inevitável pela pessoa que registra. Uma recriação escrita que exige dos escritores uma
nova tradução literária na escrita dos sinais (sign writing)4, e o domínio das tradições
literárias em português.
Além da escrita, outras formas de documentação, como o teatro, a poesia
sinalizada, vídeos e filmagens são fundamentais como registro das formas lingüísticas
que vão se perdendo ou se transformando.
A pesquisa sobre as histórias narradas por surdos pretende servir de apoio à
comunidade surda, pois pode proporcionar, principalmente às escolas, um material
baseado na cultura das pessoas surdas, escrito em português e em signwriting (escrita da
língua de sinais) .
O trabalho de registro de histórias contadas por surdos, apresenta toda a
complexidade exposta anteriormente. É primeiro passo, porém, registrar a ficção e o
imaginário da comunidade surda, envolvendo os próprios surdos e tradutores, no
registro das histórias em sinais.
A literatura surda e as representações da cultura surda, caracterizada pela
experiência visual, são corporificadas em livros para crianças de um modo singular, em
que o enredo, a trama, a linguagem utilizada, os elementos visuais, os desenhos e a
escrita dos sinais (Sign Writing) evidenciam o caminho da auto-representação do grupo
de surdos na luta pelo estabelecimento do que reconhecem como suas identidades,
através da legitimidade de sua língua, de suas formas de narrar as histórias, de suas
4 Sign Writing é o modo como se pode escrever qualquer língua de sinais. Serve tanto para escrever a língua de sinais brasileira (LIBRAS), como a americana (ASL) ou qualquer outra. É uma escrita que permite combinar símbolos gráficos para registrar por escrito a forma visual dos sinais.
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formas de existência, de suas formas de ler, traduzir, conceber e julgar os produtos
culturais que consomem e que produzem.
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