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iCapa: criao de Andr Mesquita a partir de processo colaborativo organizado por Danielle Noronha e Henrique Parra. A iniciativa ainda teve a participao de Gavin Adams e Paula Ordonhes. Imagens de base: mapa da WebTrends 2007 e Leviat de Thomas Hobbes e Abraham Bosse. iiUNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAODepartamento de Educao, Conhecimento, Linguagem e Arte TESE DE DOUTORADOO Leviat e a Rede:mutaes e persistncias poltico-estticasDoutorando: Henrique Zoqui Martins ParraOrientador: Prof. Dr. Wenceslo Machado de Oliveira Jnior2009iiiivUNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAOTESE DE DOUTORADOO Leviat e a Rede: mutaes e persistncias poltico-estticasAutor: Henrique Zoqui Martins ParraOrientador: Wenceslao Machado de Oliveira Jr.2009vviRESUMOAopesquisar as mutaes e persistncias na relao imagem-saber-poder, advindas coma expanso das tecnologias de comuncao digital, nosso objetivo caracterizar a emergncia de umcampodeconflitosque, napolticavisualadotadaenasconfiguraestcno-polticasdo ciberespao,refletem tenses anlogas que daro forma ao atual diagrama de poder.A pesquisa tem inicio com uma investigao dos antecedentes histricos que marcam a produo da imagem do Leviat de Thomas Hobbes, onde uma dada ordem visual se coadunava com uma novacomposiodopoder. Emseguida, analisaremos as transformaes destaconfigurao especfica, metaforizada pelo regime imagtico do Leviat, atravs das tecnologias de produo de imagens nos meios analgicos e digitais.Nossa hiptese que as disputas (estticas, jurdicas, econmicas) que regulam a imagem nos meios digitais e que configuram uma determinada poltica visual, so anlogas s tenses que determinamas condies dociberespaose constituir comouma outra superfcie sensvel, potencialmentemobilizador deoutras formas deconhecer, deseorganizar eproduzir. Para examinar o problema, analisaremos o conflito em curso entre essas diferentes foras sociais que apontamtantoparaacriaodenovas prticas esignificaes, comoparaas tentativas de imposiosobreosmeiosdigitaisdosmecanismosregulatriosconsolidadosnocontextodos meios analgicos.Conclumosotrabalhocaracterizandooatual diagramadepoder queseformaapartir das disputasesttico-polticaqueintervem sobre as bases que regulam o campo de enunciao e visibilidade no ciberespao. Finalmente, trata-se de evidenciar um conflito em curso por outros modosdepensamentoedeorganizao social, mediado por uma guerra sobre a produo do virtual e do imaginrio, portanto, simultaneamente dirigida ao presente e ao futuro.Palavras-chave: Leviat; imagem; poder; conhecimento; poltica; tecnologias digitais, Internet. viiABSTRACTThroughananalysis of thetransformations andpersistencies intheimage-power-knowledge relationship that result from the spread of digital communications technologies, our goal is to characterizetheemergenceofaconflictthat, inthepoliticsofvisualityandthecyberspace's techno-political configuration, reflects similar tensions that constitute the actual power relations diagram.The research begins with an investigation of the historical background that influenced Thomas Hobbes Leviathan's images production, where a given visual order corresponds to a new power order. Then, weanalyzethechanges of this specific configuration that is perceptible as the Leviathan image regime's metaphor in face of the analog and digital image production technologies.Our hypothesis is that the disputes (aesthetic, legal, economic) that attempt to regulate the image within the digital media domain and that shape a particular politics of visibility, are similar to thosetensionsthat affect thecyberspaceconditionstobecomeadifferent sensiblesurface (medium), that potentially mobilizes other forms of knowing, other models of organization and production. To examine this issue, we analyze the ongoing conflict between different social forces that point out both for new practices and meanings that emerge in the cybercultural arena, and for the trends that attempts to impose over the digital medium the regulatory mechanisms established in the context of analog medium.At the end we characterize the current power diagram, and we argue that cyberspace aesthetic and political configurationdependuponacapacitytointerveneover theveryfundamentalsthat regulate its field of enunciation and visibility. Finally, we take it as a struggle for others modes of thought andsocial organizationmodels, asawarover thevirtual andimaginaryproduction, therefore a war that is oriented to the future.Keywords: Leviathan; image; power; knowledge; politic; digital technologies; InternetviiiAgradecimentosOcrditoqueles queparticiparamdarealizaodestetrabalhorefleteumdos argumentos centrais da tese: a produo de conhecimentos obra coletiva e acontece por diversos caminhos, relaes, agenciamentos, decises e acidentes. H, todavia, uma pequena parte deste processo que somos capazes de reconhecer evisualizar, eoutra, igualmente importante, mas quesomos incapazes de nomear por diversas razes que escapam nossa vontade. Agradeo:Ameuorientador WencesloMachadodeOliveiraJr. pelaateno, disponibilidadeeafeto durantetodoestepercurso. Suaconfiana eapoio nos caminhosqueapesquisa tomou foram fundamentaisparaqueatesepudesseacontecer. Almdeumorientadorparceiro, ganheium grande amigo.Aos professores do OLHO, Carlos Eduardo Albuquerque Miranda e Milton Almeida, por terem me recebido no grupo de pesquisadores, pelas aulas inspiradoras e contribuies investigao. Ao Carlos Eduardo agradeo ainda as diversas sugestes realizadas na banca de qualificao. A Antnio Carlos Amorim, pelas oportunidades de trabalho criativo e coletivo compessoas estimulantes.CibeleSalibaRizek, pelagenerosidadeeprecisonasdiversascontribuiesnabancade qualificao. Sua presena muito importante porque me ajuda a conectar os caminhos da minha trajetria de pesquisador.Aos professores que me receberam como aluno (ouvinte, especial ou acidental) em disciplinas na PUC-SP, UNICAMPeUSP: EugnioTrivinho, RogriodaCosta, Norval Baitello, Etienne Samain, Laymert Garcia dos Santos e Vladimir Safatle.ix Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP - pela bolsa de pesquisa. Sem este suporte, a investigao no teria a mesma densidade. Agradeo tambm ao parecerista desconhecido que contribuiu com crticas e sugestes em todos os relatrios.AosfuncionriosdaFaculdadedeEducaoquetornamavidaacadmicapossvel emenos burocrtica.As colegas Alik e Giovana que primeiro me apresentaram o OLHO.Aos colegas do grupo de orientao: Ana Maria Preve, Pablo Sebastian Moreira, Sua Baquero, Paulo Henrique e Carlos Queiroz, pela ateno e pela poesia sempre ativa em nossas discusses.Ao Eugnio Zoqui e Suzana Reck Miranda pela hospitalidade e carinho em todos os momentos em que precisei de um pouso em Campinas durante o doutorado.AZMarioePablo, novamente, pelaamizadequesurgiunestatrajetriaesemaqual no conseguiramos dar profundidade e realidade aos nossos sonhos.Aos amigos do Centro de Mdia Independente, com os quais muito aprendi e partilhei momentos de intensa alegria, tenso e criao, sempre permeados pela solidariedade e confiana inabalvel. Os nomes so tantos que no arriscarei apont-los. Sinto que esta pesquisa deve muito ao que foi vivido junto de vocs.Aos diversos colaboradores ativos nas redes e listas de discusso que contriburam livremente: Submidialogia([email protected]); GrupodePesquisaemPolticas Pblicas de AcessoInformao([email protected]); Net [email protected]; Propriedade Intelectual Brasil ([email protected]).Aos colegas Edilson Cazeloto, Michelle Prazeres e prof. Eugnio Trivinho do Centro xInterdisciplinardePesquisasemComunicaoeCibercultura-CENCIB, ondeinicieiminhas investigaes em mdias digitais. Rita Freire e demais integrantes da Ciranda Internacional da Informao Independente, que me proporcionaramoportunidadesnicasdeconheceroutrasexperinciasnestareaemCaracas, Nairobi e Belm, por ocasio dos Fruns Sociais Mundiais. Laura, pelo incentivo nos caminhos percorridos.Aoscolegasdoscoletivosdearteeintervenoquecontriburamdediversasformascomo projeto, principalmente: Experincia Imersiva Ambiental, Esqueleto, Elefante, Bijari, Poltica do Impossvel e CORO (Coletivos e Organizaes em Rede).Aos artistas e amigos do Ateli Espao Coringa que me receberam para o projeto de residncia, que estimularam meu trabalho e que se tornaram parceiros de novas empreitadas: Fabrcio, Dan, Mateus, Ded, Chico, Roger e Guilherme.AoscoiotesfotgrafosRogrioNagaokaeIsaumirNascimentopeladisposiocolaborativae pela compreenso s exigncias prprias da pesquisa.spessoasquemeacolheramnasviagensdetrabalho. CssiaeAnaEmlia, pelocarinhoe hospitalidade emOlinda; FernandoMaus e famlia, emBelm; colegas doIndygestoem Goinia; John Bwakali, pelos cuidados necessrios em Nairbi. Na Espanha, aos amigos queme proporcionaramumaintensa imerso no ambiente poltico local: Xavi, Miguel, Mauro, Marta, Toret, Nico, Mirian, Maria, Osfa e demais companheiros dos centros sociais 2.0.Aos amigos, que me ajudaram a superar algumas limitaes tecnolgicas. Foi graas a vocs que abri a caixa-preta do computador e pude viver uma mudana radical na minha relao com esta mquina. Obrigado Marcelo, Diogo, Ferno e Foz. Tambm agradeo aos tcnicos da Incubadora xiFAPESP que colaboraram com a manuteno do portal Xam (http://xama.incubadora.fapesp.br ), parte integrante do projeto de pesquisa.Aos amigos que contriburam em diferentes momentos da tese: Luciano Pereira, Slvio Rhatto, ChicoLinares, FlviaVivacqua, Euler Sandeville, TomasComino, Anglicadel Nery, Lilian Sampaio, Pablo Ortellado, Ana Lcia Ferraz e Isabelle Ruelland. Em especial, a Gavin Adams pelas referncias imagticas e tericas sintonizadas com a pesquisa. Agradeo tambm a Paula Ordonhes, Danielle Noronha e Andr Mesquita pela ajuda na criao e produo das imagens que participamdadifusodestetrabalho. AgradeotambmAnglicaZoqui Sabadini eDaniel Junior Lima pelas correes finais e adequaes s normas da ABNT. Gisella Hiche, pelo carinho, ateno e liberdade que marcaram esta trajetria compartilhada. Foram inmeras suas contribuies pesquisa, redao e s imagens. Sua poesia e seu sorriso sempre me impulsionam a ir alm.AMaurcio, meuirmo, pelacompanhiavalente, pelosuportecotidianoepelasexperincias intraduzveis de superao. Aos meus pais Wilke e Nelci pelo apoio de todos os momentos e pelo amor infinito. por tudo isso que sinto que esta tese deve ser escrita atravs de um ns.xiiqueles que partilham sonhos,que vivem e insistem em criar verses imprevistas do real,e que poetizam com alegria modos mais livres de vida.xiiixivSumrioIntroduo.......................................................................................................................................1Captulo 1: Regime Imagtico do Leviat: formas de ver, pensar e imaginar..........................71.1 Pensando atravs das imagens ou como as imagens pensam em ns.....................................91.1.1 O texto e a imagem........................................................................................................171.1.2 Formas de apresentao: o humano, o racional e as paixes da alma...........................191.1.3 Viso, perspectiva e poltica.........................................................................................261.1.4Fundamentomticoversusfundamentojurdico: polticavisual erelaohomem-mquina.................................................................................................................................341.1.5 O Leviat como imagem e signo: produo da memria e da imaginao...................411.2 O regime imagtico do Leviat............................................................................................45Captulo 2: Mutaes e persistncias do regime imagtico.......................................................552.1 Ecologias do Conhecimento e Polticas Visuais..................................................................572.2 Mundo-Imagem, Real e Virtualidade...................................................................................752.3 Aparelhos de Viso e Polticas de Subjetivao..................................................................832.4 Imagem e Cincia: educao poltico-visual.......................................................................932.5 Conflitos Imagticos e a Ressurreio do Leviat.............................................................109xvCaptulo 3: Regime Digital: configuraes poltico-estticas e novos diagramas de poder..1193.1 A emergncia de um novo conflito.....................................................................................1213.2 Disciplina e controle, do analgico ao digital....................................................................1273.3Liberdade de conhecer e existncia aparelhada.................................................................1413.4 Sujeito, Territrio e Propriedade: tenses esttico-polticas sobre a emergncia do commons digital........................................................................................................................1713.4.1 Sujeito e Territrio na Cibercultura............................................................................1533.4.2 Imagem e Impropriedade Intelectual na Cibercultura................................................1673.5 Imagens do ciberespao: entre redes, pirmides e icebergs...............................................1793.5.1 Apago da Internet-Telefnica e as estruturas invisveis da rede...............................1853.5.2 Representao poltica e regulao da Internet..........................................................191Captulo 4: Consideraes finais: ponto de fuga e linhas de fuga..........................................1994 Consideraes finais: ponto de fuga e linhas e fuga.............................................................2014.1 O Leviat e a Rede: representao e simulao.................................................................2054.2 Poltica e Medialidade: as fronteiras da informao..........................................................2114.3 Transbordamentos: linguagem e inveno democrtica.....................................................217Referncias..................................................................................................................................225Bibliografia Consultada.............................................................................................................239Anexos..........................................................................................................................................243Ensaio I: Imagem, Mito e Poder...............................................................................................245Ensaio II: Entre Blow-up e The Road to Guantnamo............................................................263Ensaio III: Internet, economia e poltica: o eterno-retorno do Leviat?..................................275xviImagensIl. 1: Reproduo da capa do livro Leviat de Thomas Hobbes, 1651............................................13Il. 2: Detalhe da ilustrao de Abraham Bosse...............................................................................15Il. 3: Les Perspecteurs de Abraham Bosse......................................................................................21Il.4: Ilustrao desenhada por Bosse em 1650 para a edio manuscrita.......................................24Il. 5: Emblema de Francis Quarles, 1658 (1ed. 1635)...................................................................28Il. 6: Esquema do experimento de Jean-Franois Niceron.............................................................30Il. 7: Detalhe do quadro apresentado no esquema anterior.............................................................31Il. 8: Reproduo do livro Os Meios so as Massagens ............................................................62Il. 9: Priso na Ilha da Juventude, Cuba.........................................................................................63Il. 10: Torre de Transmisso e rvore............................................................................................65Il. 11: NS Propaganda.....................................................................................................................67Il. 12: Alunas do colgio Des Oiseaux...........................................................................................68Il. 13: Reproduo do Quadro Econmico de Quesnay, 1758.....................................................95Il. 14: Counter-Strike X BOPE.......................................................................................................98Il. 15: Campus Party, So Paulo, 2008..........................................................................................100Il. 16: Visualizao de atividade cerebral......................................................................................101Il. 17: Imagem do xido de Zinco ...............................................................................................102Il. 18: Ilustrao da campanha do Greenpeace contra os transgnicos.........................................103Il. 19: Fotografia apresentando o milho Safrinha......................................................................104Il. 20: Convite - Atitude Suspeita...............................................................................................131Il. 21: Montagem cmeras vigilncia............................................................................................132Il. 22: Manifeste-se.......................................................................................................................133Il.23: Escaneamento digital das impresses digitais.....................................................................158Il. 24: Nova carteira de identificao com chip............................................................................158Il. 25: Cartografia do projeto Fadaiat............................................................................................161xviiIl. 26: Simulao georreferenciada de patentes.............................................................................162Il. 27: Mapa das principais rotas de trfego na Internet mundial..................................................163Il. 28: Fotograma do filme Warriors of the Net............................................................................180Il. 29: Diagrama de foras e formas de organizao.....................................................................183Il. 30: Modelos de rede criados por Paul Baran em 1964.............................................................187Il. 31: Mapa com a topologia da Rede Ip....................................................................................188ImagensdosanexosIl. 32: Leviat e Mussolini............................................................................................................246Il. 33: Leviat e Bush Jr................................................................................................................247Il. 34: Fotogramas do filme The Revolution will not be televised.................................................251Il. 35: Fotogramas do filme The Revolution will not be televised.................................................251Il. 36: Fotogramas do filme The Revolution will not be televised................................................253Il. 37: Fotogramas do filme Juba..................................................................................................258Il. 38: Fotogramas do filme Blow-up............................................................................................264Il. 39: Fotogramas do filme Blow-up............................................................................................265Il. 40: Fotogramas do filme Blow-up............................................................................................266Il. 41: Fotogramas do filme Blow-up............................................................................................267Il. 42: Cartaz de divulgao do filme The Road to Guantnamo.................................................268Il. 43: Fotogramas do filme The Road to Guantnamo................................................................270Il. 44: Fotogramas do filme The Road to Guantnamo................................................................271Il. 45: Bolsa da Malsia. ..............................................................................................................276Il. 46: Imagens de Barack Obama.................................................................................................280Il. 47: Imagens de Barack Obama.................................................................................................280xviii11IntroduoOinteressepor estapesquisasurgiudeumanecessidadedearticular nombitodavidapessoal, algumas dimenses de atuao que se encontravam relativamente dissociadas antes do doutorado. At ento, otrabalhodepesquisaemsociologia, meuinteressepelafotografia, pelas tecnologias de comunicao digital e pela poltica, tinham dificuldade em dialogar.Apartir de 2003, numa aproximao maior juntoa alguns projetos de midiativismoatravs da fotografia, comecei a experienciar de maneira mais direta uma combinao entre aqueles elementos. Levou alguns anos para que as questes ali vivenciadas se transformassem num desejo de investigao. Nesteperodo, aindatrabalhavanogovernomunicipal deSoPauloepassei afreqentaralgumas disciplinascomo aluno ouvintena PUC, USP e UNICAMP. Sentia que meu interesse pela pesquisa distanciava-se do tema do mestrado, porm, se aproximava cada vez mais dos assuntos com os quais eu comeava a me envolver.No final de 2004, entrei no doutorado em Educao com um projeto bastante distinto deste que acabei concluindo. As transformaes devem-se, acredito, aoaprendizadointensodos primeiros anos de pesquisa, pois havia um dficit a ser superado com relao a um referencial terico que no fazia parte daminhaformaoanterior. Aofinal dosegundoanoapesquisajcomeouater umaestrutura prxima a esta aqui apresentada.Um dos eixos centrais de mobilizao intelectual era o impacto e o entusiasmo que sentamos pelas novas possibilidades de comunicao, de organizao de redes e de produo colaborativa que estvamos vivenciando com a Internet. Alm disso, a percepo de que podamos juntar num mesmo suporte as diferentes linguagens com as quais trabalhvamos, provocou inquietaes sobre a maneira de como aprendamos e produzamos conhecimento. Com a expanso dos meios de comunicao digital e astransformaes quepassamosaobservar nas vidas mediatizadas, na sociabilidade, nas formas de trabalho, consumo e criao artstica, passamos a nos perguntar: o que conhecer?1Aomesmo tempo, tais interrogaes refletiam-se numa esfera mais ampla, na medida emque experiencivamosnovasformasdeorganizaoedeativismopoltico. Senumprimeiromomento vimos surgir uma diversidade de prticas tornadas possveis pelas redes telemticas, ao mesmo tempo nos perguntvamos sobre os impactos a mdio e longo prazo dessas tecnologias. Tenho a impresso que ainda estamos nos primeiros momentos deste processo. Por outro lado, j podemos vislumbrar um novo campo de tenses que comea a se delinear sobre essas potencialidades. Parte desta tese est dedicada a problematizar esse campo de disputas.A porta de entrada para a investigao foi definida a partir de um tema que eu pouco conhecia, mas que osentiacomoumazonadeintensidades. Aseduoprovocadapelaimagemepelasformasde conhecimento no-formal mobilizadas por esta, deslocaramminha ateno para o universo da visualidade. Assim, a percepo de que a produo-circulao de imagens ocupa um lugar importante nas redes digitais levou-me a tom-las como o fio condutor que atravessa as diversas questes que a investigao pretende analisar. Seguimos as imagens por duas razes: (1) as transformaes sofridas pelo regime imagtico no decorrer do tempo manifestam diversos problemas que esto presentes em outros domnios do universo digital, neste sentido as imagens funcionam como bons sintomas; (2) as configuraesdavisualidade, asfronteirasentreovisveleinvisvel, soconstitutivasdasrelaes saber-poder.A tese se organizou, ento, a partir do encadeamento de algumas questes: (a) de que forma a imagem (e o regime visual) participa dos processos de produo de conhecimentos e do exerccio do poder? (b) quais as transformaes introduzidas nessas relaes pelas tecnologias digitais e de comunicao em redestelemticas?e(c)queforasedisputasatuamsobreaemergnciadeumanovasuperfcie (campo social) potencializada pelas tecnologias digitais?Dada a dimenso do assunto, no percurso da investigao definimos um recorte mais especfico para os problemasquesemostrarammaisrelevantes. Tambmdevemosantecipar, paranodecepcionar o leitor, que apesar de analisarmos assuntos recentes (alguns dos eventos estudados na tese esto ocorrendo no exato momento em que escrevo), nossa ateno estar direcionada a captar um cenrio de transio, ou seja, no se trata de pesquisar os novos elementos de uma sociedade da Era Digital. 2Diferentemente, a partir da anlise das estratgias visuais adotadas em situaes onde se vislumbra uma tenso medial, iremos examinar as tendncias e a fronteira que se constitui e que d vida Poltica, exatamente a partir das persistncias e mutaes que emergemcoma expanso nos meios de comunicao em redes telemticas.Paraisso, umdoseixosdotrabalhoinvestigar comoasdisputas (estticas,jurdicas,econmicas, cientficas) em torno dos fundamentos que buscam estabilizar a imagem no mbito de um regime da representao ou da simulao, relacionam-se s tenses em torno das possibilidades do ciberespao se constituir como o mdium que expressa um outro ordenamento societal. Em outras palavras, como um espao-tempo que institui uma outra configurao, distribuio e pertencimento entre os sujeitos que integramumadeterminadasociedade. Ouainda, nostermosdeRancire, inaugurandoumaoutra partilha do mundo sensvel (Rancire, 2005). Tal anlise dever contribuir para a caracterizao do atual diagrama de poder (relao entre formas de conhecimento e regime de dominao), bem como para a identificao dos seus principais desafios tericos e polticos.Organizamosotextoemtrscaptulos. Aofinal dateseinserimostrsensaiosqueapresentamde maneira mais livre alguns dos problemas tericos analisados. Nestes textos partimos de acontecimentos polticos recentes, filmes, fotografias e outras imagens que circulam na Internet, procurando evidenciar a maneira como a visualidade participa dos problemas analisados emcada captulo. H outros elementos produzidos, mas que deixamos de fora da verso impressa da tese, como os contedos e a metodologia de trabalho que levou criao do portal Xam (http://xama.incubadora.fapesp.br). Ali, desde o incio da pesquisa, organizamos e disponibilizamos todo o material investigado, bem como os textos, ensaios e imagens que foram produzidos no percurso. Nossa proposta era favorecer dinmicas de investigao mais colaborativas.Por fim, quando j havamos terminado o trabalho, sentimos falta de uma imagem para a capa. Mas a, nosconfrontamoscomumproblema: comonocairnamesmaarmadilhaquecriticamosnatese? Optamos entopor uma estratgia que deveria conter, noprocessode criao e na visualidade alcanada, algunsdoselementosquecaracterizamastensesesttico-polticasqueestamosvendo emergir (e que ser analisada na tese). Selecionamos um conjunto importante de imagens da pesquisa e 3o disponibilizamos em um site de compartilhamento. Esta seleo formou um repertrio de imagens-chavequepoderiaminspirar acriaodeimagens colaborativas. Convidamos algumas pessoas e criamos uma conta comum(usurio e senha) que foi partilhada por todos. Ao final, graas colaborao de Danielle Noronha, Paula Ordonhes, Gavin Adams e Andr Mesquita, novas imagens foram criadas e uma delas se tornou capa da tese.Regime Imagtico do Leviat: formas de ver, pensar e imaginarNoprimeirocaptulo mergulhamos nas estratgias visuais adotadas por Thomas Hobbes para a elaborao da famosa imagem do Leviat que ilustra a capa do livro homnimo. Tal percurso, realizado quase maneira de um estudo de caso, ir discutir as interconexes entre um regime visual, as formas deconhecimentoeasconfiguraesda poltica implicadas naquele contexto. Em certa medida, a relaoentreostermosdestatradequeseranalisadaaolongodatese, sendoquenestecaptulo caracterizaremos oregimeimagticodoLeviatcomoexpressometafricadestarelaoentre imagem-saber-poder.Ao final deste captulo estabeleceremos algumas relaes entre esta configurao que emerge no sculo XVII e que se atualiza, sob outras formas, na visualidade que participa dos mecanismos contemporneos de legitimao do poder e de produo do real, resultantes da convergncia entre os processos comunicacionais em meios digitais, a produo econmica material e imaterial e as novas formas de dominao.Mutaes e persistncias no regime imagticoO segundo captulo faz uma elaborao mais precisa dos marcos conceituais e empricos que delimitam o problema e as hipteses da tese. Inicialmente, analisaremos a relao entre as formas de produo de conhecimento, astecnologiasdecomunicaoeasformasdeorganizaosocial emdoisgrandes recortes histricos.4Neste processo, destacaremos as transformaes que apontam para um processo de acelerao societal e para o deslocamentodofocodeinterveno poltica em direo ao virtual. Trata-se de uma nova configurao social onde, graas expanso dos meios digitais em rede e a uma crescente hegemonia do paradigma informacional na cincia, na economia e na poltica, surge um novo campo de disputas sobre o universo virtual e, portanto, dirigidas gesto do futuro.Paralelamente, caracterizaremosapolticavisual mobilizadapor cadaumdos regimes imagticos analisados para discutir a maneira como ela atua sobre as formas de percepo, sensao e interpretao, implicando em diferentes modos de subjetivao. Ao analisar a maneira como a imagem participa dessas duas dimenses - tendncias macro-sociais de acelerao e virtualizao, e tendncias micro-polticasdesubjetivaopreparamosoterrenoparadescrever aformaodestecampode disputas estticas e polticas na Era Digital.Uma das hipteses que comea a ser investigada a de que as formas contemporneas de dominao se constituemnoentrecruzamento(orasolidrioeoraconflitivo)dedoisdiagramasdepoder, eestes podem ser apreendidos a partir das tenses que atuam sobre as formas de regulao da imagem em mdias digitais e do ciberespao. Aqui, as mutaes e as persistncias do regime imagtico so o elo de ligao entre estes dois universos: poltica e esttica.Regime Digital: configuraes poltico-estticas e novos diagramas de poderOterceirocaptulo talvez o maiscomplexo. Aqui, iremos estabelecer analogias de carter formal-esttico entre as tenses que regulam o regime imagtico e os diagramas de poder que se configuram em torno das disputas sobre/no ciberespao.Iniciamos ocaptulo analisandooencapsulamentoda imagemtcnica analgica pelo regime da imagemdesimulao, ecomoesteprocesso reflete a emergncia de novos dispositivos de controle social. Emseguida, descrevemos a emergncia do ciberespao emsua aparente planeidade (ou neutralidade) inicial e algumas prticas sociais no universo da cibercultura que esto orientadas por 5princpios de compartilhamento e livre acesso informao.Nossa inteno apresentar as tenses que surgem diante das potencialidades instauradas pelos meios digitaisemredenasseguintesdirees:doponto devistadasdisputasemtornodasdefinies de propriedade intelectual; e do ponto de vista da regulao estatal sobre a dimenso do territrio (relao espaofsicoeespaoinformacional)esobreoindivduo(polticasdecontroleeidentificaodo internauta).Como desdobramento, a partir de uma analogia entre as tenses que se desenvolvem sobre o regime imagtico e sobre a regulao do ciberespao, descreveremos como as disputas emtorno da configurao do commons digital se constitui numa importante fronteira Poltica. Na medida em que a informaodigital e acomunicaomediadapor computador estocadavezmais presentes em diferentesesferasdenossasvidas(trabalho, lazer, cincia, sociabilidade), asdisputasemtornodas condies de produo e circulao de imagens (e conhecimentos) tornam-se centrais nos processos sociais e subjetivos. Trata-se, para alm de um conflito sobre a apropriao dos recursos materiais e simblicos inaugurados pelos meios digitais em rede, de uma guerra sobre as condies de produo do imaginrio e, portanto, sobre as possibilidades de produo do presente e do futuro.Pontos de fuga e Linhas de FugaNas consideraes finais sintetizamos os principais argumentos dos captulos anteriores numa narrativa mais direta e procuramos avanar na caracterizao dos principais dilemas tericos e polticos que se anunciamapartir daimbricaoentretecnologias decomunicaodigital, capitalismocognitivo, cincias da informao e gesto biopoltica da sociedade.Finalmente,o trabalho descreve como a configurao esttico-poltica do ciberespao depende desta capacidade de interveno sobre os fundamentos que regulamo seu campo de enunciao e visibilidade, tendo, portanto, a linguagem e a liberdade de conhecimento como importantes territrios de criao Poltica e resistncia contra a obsolescncia do Humano.678Captulo 1 - Regime Imagtico do Leviat: formas de ver, pensar e imaginarTudoestacertadoapartirdomomentoemqueaforma-Estado inspira uma imagem do pensamento(Deleuze & Guattari, 2005)1.1 Pensando atravs das imagens ou como as imagens pensam em nsUma das imagens mais emblemticas1 na histria da Cincia Poltica aquela produzida para a capa do livroLeviat, de Thomas Hobbes, em1651(Il.1). Poucas soas imagens posteriores a ela que associaram de maneira to competente um iderio poltico-filosfico emergente s condies estticas de uma poca. Da mesma forma como emoutros perodos histricos os afrescos e as pinturas cumpriamvisualmenteumapedagogiapoltica, apresentandonas paredes dos edifcios os valores ticos-polticos de uma determinada poca (Almeida, 1999), esta imagem do Leviat executa h sculos uma discreta educao visual.A imagemda capado livro de Hobbes j foi analisada por diversos autores. Proporcionalmente, no entanto, das obras publicadas sobre este filsofo e seu livro, poucas so aquelas que tratam da imagem propriamente dita (Brown, 1978, 1980;Goldsmith, 1981; Schmitt, 1996). Oexcelente livro de Bredekamp(originalmentede1999) atualizouodebatecomoutras referncias deumaprofunda pesquisaiconogrfica, apontandoinclusiveos elementos quelevaramos demais autores atomar Wenceslao Hollar2 como o autor daquela gravura (Bredekamp, 2003). Ainda que no haja condies de seafirmar conclusivamentequemfoi oexecutoreoimpressor, hfortesindciosdeumaparceria 1Inthelonghistoryofpoliticaltheories, ahistoryexceedinglyrichincolorfulimagesandsymbols, iconsandidols,paradigms and phantasms, emblems and allegories, this Leviathan is the strongest and most powerful image (Schmitt, 1996).2HumabelaseleodeimagensdigitalizadasdostrabalhosdeWenceslaoHollar, organizadapelaUniversidadede Toronto: http://link.library.utoronto.ca/hollar/index.cfm9efetiva entre Hobbes e um artista francs. Como revela Bredekamp, a escolha de Hobbes pelo artista Abraham Bosse3 estaria em parte motivada por sua insistente defesa, no plano esttico, da perspectiva renascentista, do mtodo geomtrico e do pensamento de Descartes, os quais estariam em sintonia com os fundamentos poltico-filosficos partilhados por Hobbes. Mesmo que no seja possvel determinar se a concepo da imagem foi obra integralmente sua, ou qual foi o grau de colaborao entre Hobbes e Bosse, o que nos interessa para efeito desta investigao a aproximao entre os elementos filosficos-polticos e o contexto esttico que envolvem esses dois homens. curioso que a afirmao de Brown que descreve Hollar como autor da gravura, continue ressoando no trabalho de outros autores, como o caso da recente e prestigiada edio do Leviatorganizada por RichardTuckepublicadapelaMartinsFontesem2003(traduodaversoinglesadaCambridge University Press de 1991). Este assunto parece ter ficado margem no debate acadmico, contribuindo para a desvalorizao de um importante conhecimento mobilizado para a produo desta imagem, a qual cumpria, para Hobbes, uma funo educativa e poltica especfica.Numa direo complementar, tomaremos esta ilustrao como umdisparador da nossa reflexo. Acreditamosqueapotnciadessaimagemresida, emparte, nasuacapacidadededidatizaruma proposta de entendimentosobreomundopoltico, funcionandocomouma espcie demquina abstrataqueconduzaimaginaoeopensamentoporencadeamentoslgico-racionaisaomesmo tempo em que mobiliza nossa percepo e sentidos atravs de outros territrios diretamente tocados pela imagem.Em nossa pesquisa, aproximaremos o funcionamento deste dispositivo visual noo de imagem do pensamento, conforme elaborada por Gilles Deleuze (2006). Parte do percurso intelectual deste autor guiou-se pela crtica "imagem do pensamento", entendido aqui como uma configurao especfica do prprio pensar ou como um certo regime do pensar. Conforme analisado por Safatle4, neste contexto a imagem significa aquilo que o pensamento capaz de ver. Portanto, refere-se a um regime de 3 Citamos a seguir alguns sites que apresentam o trabalho de Bosse:Exposio da Biblioteca Nacional da Frana: http://expositions.bnf.fr/bosse/index.htmVerbete sobre A.Bosse na Wikipedia Francesa: http://fr.wikipedia.org/wiki/Abraham_Bosse4 Safatle (2007).10visibilidade do pensamento, sua capacidade de dispor, determinar e diferenciar objetos. Ao question-la, Deleuzetinhaemmenteacrticadoprimadodaimagem, comoumapr-configurao, ouum esquematismo que orienta o pensamento: aquele que se deixa guiar por uma imagem no capaz de pensar em sua potncia, pois j parte de uma arquitetura instaurada, de uma geometria que domestica e adequa o pensamento. Portanto, a crtica a esta pr-disposio desdobra-se numa crtica da representao e numquestionamento dos pressupostos implcitos que formamumcampo no problematizado de enunciados (Deleuze, 2006). No limite, pensar implica numa capacidade de destruir um sistema produtor de imagens unitrias que estabilizam o pensamento; significa atacar o sistema de representao estabelecido5.Junto a Flix Guattari, eles iro realizar a noologia6da forma-Estado, tratando-a como uma forma especficadopensarqueseinstituicomodominante.Nestemomento,a preocupao dosautores mostrarcomoaforma-Estadoseconstituicomouma imagem particular dopensamento. A forma-Estadoirseexpressar emdiferentes campos doconhecimento: nas tradies cientficas quese tornaram dominantes enoprprio ordenamento social e poltico, na medida em que o pensamento-Estado (emoposio ao pensamento nmade) instaura formas prprias de categorizao, de identificao, de mensurao, de partilha e pertencimento numa totalidade constituda:Haveria portanto uma imagem do pensamento que recobriria todo o pensamento, que constituiria o objeto especial de uma noologia, e que seria como a forma-Estado desenvolvida no pensamento. Esta imagempossui duascabeasqueremetemprecisamenteaosdois plosdasoberania:um imperiumdopensar-verdadeiro, operando por captura mgica, apreenso ou liame, constituindo a eficcia de uma fundao (mythos); uma repblica dos espritos livres, procedendopor pactooucontrato, constituindoumaorganizao legislativa e jurdica, trazendo a sano de um fundamento (logos). Na imagem clssica do pensamento, essas duas cabeas interferem constantemente: uma repblica dos espritos cujo prncipe seria a idia de um Ser supremo. (Deleuze & Guattari, 2005, p. 43-44).5 A reflexo de Deleuze sobre a imagem modifica-se ao longo de sua trajetria intelectual. Nesta parte do texto, quando nos referimos imagemdopensamentopartimos desuaelaboraoconformerealizadaemseulivroDiferenae Repetio. Tambm, mais adiante, quandonos referirmos imagemdopensamentoemsuaforma-Estado, conforme discutido no Tratado de Nomadologia, manteremos o mesmo referencial. A noo de imagem em Deleuze ganha outras significaes nos anos 80, quando ele adentra as discusses sobre esttica, arte e cinema, para tratar de um outro regime de conhecimento que se torna possvel atravs da imagem-movimento e imagem-tempo, com o cinema.6O estudo dasimagensdopensamentoe de suahistoricidade,serdenominado de noologia porDeleuze eGuattari (2005).11Acrticadaforma-Estadoelaboradapor DeleuzeeGuattari noserefereaumaimagemvisual especfica, mas a um certo regime do pensar. Entretanto, quando nos confrontamos com sua descrio, fomos inspirados a buscar uma imagemvisual quepudessereunir e sintetizar alguns elementos caracterizados por esses autores. Com isso, desejvamos dar visibilidade e expresso sensvel a este regime do pensar. Revisitamos os clssicos fundadores da teoria do Estado e ao pesquisar a iconografia polticadosculoXVIIchegamos, inevitavelmente, figura doLeviatdeThomasHobbes(1651). Diantedela, fomosarrastadosparaumnovocaminhodeinvestigaoenamedidaemquefomos conhecendo - graas ao brilhante trabalho de Horst Bredekamp - as estratgias visuais adotadas por Hobbes e por ele condensadas naquela imagem, percebemos que a construo de homologias entre a forma-Estado deleuziana e a imagem do Leviat poderia ser frutfera7.De maneira labirntica, foi a crtica imagem do pensamento elaborada por Deleuze e Guattari que nos levouaoencontrodeumaimagemque, emsuaprpriaconstituioenavisualidadealcanada, condensa algumas das caractersticas presentes naquele conceito. Mais que uma ilustrao (no sentido restrito do termo) para a capa do livro, o estudo desta imagem revela toda uma estratgia poltico-visual adotada por Hobbes para criar umcaminhoalternativoaoconhecimentodotexto. Finalmente, seduzidos pela importncia desta imagem na histria do pensamento poltico, resolvemos empreender umareflexosobreocontextodesuaproduo, naexpectativadequeissocolaboreparanovos entendimentos sobreas relaes entreaimagemeas tecnologias decomunicao, as formas de conhecimento e as configuraes da poltica.***7Paratal empreitada, tambmnosinspiramosnareflexolanadaporFoucault apartirdoquadroAsMeninasde Velsquez, e na discusso empreendida por Deleuze sobre o trabalho de Francis Bacon (Foucault, 2000; Deleuze, 2005).12Il. 1: Reproduo da capa do livro Leviat de Thomas Hobbes (1651).13Naimagem(Il. 1), osoberanosurgeaofundodoquadroemgrandespropores, nohorizontedo territrio, acimadas montanhas etendoasuafrenteeabaixoacidadeeocampodevidamente ordenados, sendo a primeira formada por zonas de fortificao militar, muros, residncias e igrejas, e o campoporestradas, castelos, igrejasepequenospovoadosespalhados. Suamodireitaportauma espada, enquanto a mo esquerda carrega um cetro religioso. Cada um desses instrumentos representa uma forma de poder (temporal e civil de um lado, atemporal e eclesistico do outro), mas que esto reunidos no corpo de uma unidade finita e que se deseja perene: o Soberano. Este corpo constitudo pela amlgama e indiferenciao de inmeros indivduos (no se trata do indivduo moderno sociologicamente falando) quelhe doforma e unidade. De qualquer nguloque observamos a imagem, todos eles esto voltados na direo do soberano, alguns de p e outros ajoelhados, em posio de admirao, medo ou submisso (Il. 2). No quadro, os olhos do soberano coincidem com um dos pontos de maior tenso da gravura, localizando-se na tera-parte superior da ilustrao, no meio do eixo vertical, estandopraticamentenocentrodeumtringuloequilibradoformadopelaespada, cetroe territrios como base.Esses elementos apiam-se sobre trs colunas verticais, sendo que as duas laterais esto divididas em cinco retngulos8alinhados por umarelao de equivalncia. Da mesma forma que os instrumentos carregados nas mos do Leviat, a coluna da esquerda (do observador) refere-se ao poder civil-militar, enquanto a da direita ao poder eclesistico. Assim, em relao ao forte civiltemos a igreja; coroa o mitrepapal; ao canho os relmpagos da excomunho; aos signos do combate, as armas da lgica; batalha ou guerra a disputatio (controvrsia eclesistica).Entre essas duas colunas h um manto ou cortina que apresenta o ttulo da obra e o contedo do texto que seguir. Segundo Bredekamp, esta cortina, ao mesmo tempo que mostra e anuncia o contedo do texto que ser apresentado, tambm permite esconder o que est atrs. Em relao metade superior da capa, relevante que o texto esteja abaixo do soberano, como que a reforar o carter subordinado do 8 Essa distribuio geomtrica e numrica poderia ser investigada ainda com maior detalhe. Visualmente, temos ainda um tringulo e uma forma circular que predominam na parte superior, enquanto abaixo temos retngulos, quadrados e colunas. Dada a proximidade de Hobbes dos estudos hermticos e de publicaes hoje consideradas ocultistas, possvel que esses nmeros ainda transportem outros significados.14texto ao soberano. O autor ainda chama a ateno para o fato de que o Leviat e a paisagem do seu entorno no tm bordas, fazendo aluso a uma nova apario que no tem fronteiras, enquanto os elementos da parte inferior esto todos circunscritos e limitados pelas molduras do quadro.Il. 2: Detalhe da ilustrao de Abraham Bosse.O Leviat de Hobbes constitui um esforo terico de superao da diviso entre os poderes da Igreja e doEstado. Suamaiorpreocupaoafirmaraindivisibilidadedopoderdeumcorpopoltico: a insignificantedistinoentretemporaleespiritualtemqueserproscrita, poisquandoestesdois poderesseopemumaooutro, oEstadospodeestaremgrandeperigodeguerracivil oude dissoluo (Hobbes, 1983, p. 196, apud Castelo Branco, 2004, p. 27). Esse corpo poltico, para evitar a guerra civil e a emergncia da multido como foras desintegradoras, tem que ser Uno. Assim, o poder soberano encarnado no Leviat nasce da delegao do poder (potncia) dos indivduos que atravs do contrato com ele se submetem por paixo, medo ou temor da morte violenta (Castelo Branco, 2004). 15Essadelegaodopoderdiferedaidiaderepresentaopolticaclssicanamedidaemquepara Hobbes no interessa a ligao de continuidade da vontade entre o representante e o representado. O soberano representa o Todo e sua vontade autnoma e superior. A emergncia desse poder unitrio, como veremos adiante, corresponder dentro desta filosofia poltica constituio de outros princpios tambm universais: Razo, Sujeito e Verdade.161.1.1 O texto e a imagemH, no centro subterrneo de nossa discusso, um conflito que permear a investigao. Trata-se dos problemasassociadosstensesentrediferenteslinguagensquemobilizamhabilidadeseprocessos mentais distintos: a escrita e a imagem.Se por um lado a maior parte dos autores que discutiu o trabalho terico de Hobbes deu pouca ateno quela imagem na capa do livro, alguns autores, como Carl Schmitt, analisaram a imagem do Leviat nasua relao comoprprio texto deHobbes, e no como um trabalho complementar e por vezes autnomoaotexto. ApreocupaodeSchmitt,porexemplo,limita-se ainvestigar asimbologiado Leviat nos livros sagrados das tradies judaico-crists para traar algumas correspondncias com a imagem presente no texto de Hobbes e no na ilustrao criada para a capa do livro.A concluso final de Schmitt, que iremos analis-la com maior detalhe ao longo do texto, que Hobbes teria cometido um grave equvoco, tanto terico quanto poltico, ao se utilizar da imagem do Leviat:Hobbesusedthisimagebecauseheconsideredit tobeanimpressive symbol.He failed to realize,however,thatinusingthissymbolhewas conjuring up the invisible forces of an old, ambiguous myth. His work was overshadowed by the leviathan, and all his clear intelectual constructions andargumentswereovercomeinthevortexcreatedbythesymbol he conjured up.No clear chain of thought can stand up against the force ofgenuine, mythical images. (Schmitt, 1996, p. 81, grifo nosso).Hobbes, segundoSchmitt, teriacometidoumerroemduasdirees: aomobilizarumaimagemj bastante carregada de uma simbologia especfica, relacionada tanto cultura crist como judaica, que despertasignificaesqueirocontraospressupostostericosqueopensamentodeHobbestenta instituir no plano poltico; e tambm ao combinar texto e imagem, pois para Schmitt tal procedimento enfraqueceria a racionalidade e o ordenamento lgico do argumento escrito.Nossa linha de investigao,ao contrrio, supe que Hobbes sabia muito bem o que estava fazendo 17quando optou por utilizar esta imagem. E mais, esta escolha teria sido estratgica, tanto do ponto de vista polticocomo terico.Estecaminho de investigao apia-se em grande parte nos achados de HorstBredekamp, queiremossintetiz-losparaapresentaraquelesaspectosquedizemrespeitoaos argumentos centrais de nossa investigao mais ampla.181.1.2 Formas de apresentao: o humano, o racional e as paixes da almaDiscutiremos, inicialmente, alguns elementos que aproximama filosofia poltica de Hobbes do contexto esttico partilhado pelo artista parisiense Abraham Bosse (1604-1676). Tais fatores, segundo Bredekamp, podem revelar indcios que fazem da escolha por Abraham Bosse, dentre outros artistas da poca, uma deciso mais estratgicado que circunstancial.Havia na primeira metade do sculo XVII, uma intensa disputa no ambiente artstico europeu em torno das possibilidades de representao visual. Sinteticamente, pode-se dizer que as duas principais tendncias neste campo sofreram forte influncia do pensamento emergente de Descartes. Entretanto, cadaumadelasseaproprioudemaneiradiversadeseusprincpiosfilosficos(Bredekamp, 2003; Miranda, 2000).Um dos artistas maisproeminentes na Frana naquele momento era Charles Le Brun, que em 1648 participa da fundao e torna-se presidente da Academia Francesa. Designado pintor oficial de Louis XIV, encontrouespaoeapoioparadesenvolver umprojetoinovador derepresentaovisual, na medidaem que, comoaponta Miranda,Le Brun soube perceber as vantagens que uma determinada apropriao do pensamento de Descartes, se aplicado pintura oficial, poderia oferecer em termos do fortalecimento do poder absoluto nas mos de Louis XIV (Miranda, 2000, p. 117-118).O que estava em jogo naquele momento era a emergncia de um projeto centralizador do Estado, cuja fora racionalizadora e organizativa comeava a se manifestar num impulso generalizado de produzir e sistematizar informaes sobreaadministraodoreinoedos sditos. Sepor umladooEstado instaura o monoplio das regras do mtodo, a arte dever se apresentar como a expresso e obra deste mtodo. nestesentidoqueLeBrun, afirma Miranda,produzirum novosujeito atravsdasua pintura. Um sujeito dotado de autonomia que se manifesta na apresentao do seu prprio tempo de vida, havendo uma forte relao entre a sua representao fsica expressa na pintura e as paixes da alma descritas por Descartes (Miranda, 2000, p. 123).19Em especial, no que diz respeito aos estudos das paixes da alma de Descartes (e conseqentemente idia das relaes do corpo-mquina proposta pelo filsofo), Le Brun procura traduzir as paixes e suasmanifestaesnumamaneiraprpriadepintaroscorpose, sobretudo, osrostos. Seantesde Descartes eLeBrunorostoeraoespelhodaalma, depois deles orostotorna-seaprpria expresso fsica das paixes (Miranda, 2000, p. 123-126).LeBrunseengaja, portanto, noprojetodecentralizaodoEstadodesencadeadopelaregnciade LouisXIVedesenvolveumprogramavisual quetambmumprogramadeeducaovisual: a poltica do soberano deve se tornar visual para que se torne real (Miranda, 2000, p. 133, grifo nosso). A citao seguinte do trabalho de Julien Philipe exemplar para nosso problema:Em uma palavra, a inteno de Le Brun no pintar aquilo que , mas o que deve ser. O olhar que coloca sobre as coisas uma ordem que ele d a elas. Ele no se preocupa em pintar segundo a natureza, e no procura a representao do mundo tal como se apresenta, mas representar o mundo como deve aparecer. muito diferente, e , por isso, que o veremos definir e classificar as paixes, e mesmo explic-las, antes de tratar sobre a expresso que delas se deve dar napintura. Apreocupaotericaprevalecesobretudo, ebasta considerar as expresses de suas famosas cabeas, para se persuadir deque, seLeBruntivessepintadosegundoanatureza, nsno teramos tanta dificuldade em adivinhar, ocultando-se a legenda, a qual paixocorrespondetal desenho. (Philipe, 1994, p. 16apud Miranda, 2000, p. 154).Numa outra direo, encontramos o artista AbrahamBosse, na poca bastante conhecido pela publicaodeummtododetalhadodagravuraemmetal etambmporsuadefesadaperspectiva geomtrica renascentista como modelo de representao. Bosse, neste sentido, insere-se num contexto intelectual mais amploqueadvogaageometrizaodomundo- sendoDescartes umdos mais importantes representantes - como forma de conhecimento mais adequada para se alcanar e apreender o real, o justo e o verdadeiro. Hobbes era tambm um estudioso da geometria euclidiana e apaixonado pelos seus impactos nos estudos da tica e no aperfeioamento dos aparelhos visuais. Ele colecionava diversos instrumentos ticos e dava aulas de fsica e matemtica a Charles II. Destaca-se ainda, dentro deste mesmo cenrio, a publicao na Frana em 1651 do Tratado de Pintura de Leonardo da Vinci (mesmo ano da publicao do Leviat), fortemente ancorado na defesa dos mesmos princpios geomtricos. 20Il. 3: Les Perspecteurs9 de Abraham Bosse. Gravura para livro dedicado ao mtodo perspectivista de Girard Desargues, Paris, 1647-48.Esta ilustrao de Bosse (Il. 3) apresenta claramente este projeto de geometrizao como forma de conhecimento: o olhar mediado pela tcnica, a partir de um ponto de fuga nico (na imagem as linhas convergem para apenas um dos olhos), se apresenta como o modelo ideal de apreenso do real.Almdestaproximidadeintelectual,Bosseeraumdosartistasquemelhor dominavaatcnicada gravura em gua-forte, que permitia a realizao de pequenos detalhes na imagem, o que nas tcnicas 9 Fonte: http://www.ciren.org/ciren/productions/perspecteurs/index.html21anteriores (frequentemente o buril) era mais difcil de ser alcanado. Assim, ainda que no possamos afirmar oporqudaescolhadesteartista, interessantepensarmos nas convergncias entreo pensamento geomtrico de Hobbes e o cartesianismo esttico de Bosse.ConformeanalisadoporMiranda, nestemesmoperodohistricoDescartesestdesenvolvendosua teoria das paixes e seus estudos de fisiognomonia10, objetivando estabelecer relaes entre uma determinada paixo oumanifestao da alma e sua expresso fsica e facial. Tal tradiofoi determinante para os artistas da poca. Se observarmos, por exemplo, o rosto do Leviat de Hobbes, temos uma expresso que no aparenta qualquer emoo. O olhar direto e firme para o observador, sem manifestao de amor ou dio em sua face. Isso nos faz pensar nas referncias tericas de Hobbes que apontam para a necessria criao de um Estado inspirado na fora e na razo, orientado, portanto, por um pensamento neutro em suas paixes porque segue uma construo racional, segundo princpios matemticos e geomtricos. Portanto, um Estado que fosse mais que o humano, no sentido de uma novaunidadedequalidadesuperior;um novo sujeitoqueno estaria submetidosvariaes das paixes que interferem na razo dos humanos.AimagemdoLeviat, secomparadasfigurascriadaspor LeBrun, paradoxalmenteestticae dinmica. A gravura dinmica na medida em que apresenta um acontecimento, um instante de um tempoquecorre, articulandootempomtico, atravs dasimbologiaancestral doLeviat, coma inaugurao do novo tempo da fuso do poder temporal com o poder atemporal no soberano. Por outro lado, a figura no dotada de movimento como as imagens dos quadros de Le Brun, onde aquilo que est representado possui marcas visuais (por exemplo, nos gestos) que lhe conferem um tempo prprio de vida. Hobbes est interessado em criar algo que seja universal e duradouro. Portanto, no pode estar ligadoaotempodevidadequalquerserhumano.Aimagem criada, assim comoa suateoria, tem pretenses universalidade e persistncia no tempo, portanto importante que ela no esteja baseada na representao de um soberano existente, o que a reduziria a uma dimenso pessoal e geograficamente localizada11.10Estudoqueobjetivaestabelecerrelaesentreasexpressesoumarcasfaciaisedeterminadasestadosd'almaoudo corpo.11 Bredekamp analisa a dvida (presente em alguns autores) sobre a identificao, nesta verso impressa, do rosto Leviat a Charles II ou a Cromwell. Para Bredekamp a dvida respondida pelo prprio posicionamento terico-poltico do autor.22Duasimagensforamconfeccionadasparaolivro. Umadelasumdesenhorealizadosobrepapel-pergaminhoquefoi utilizadoparaacapadeumaedioespecialmentemanuscritaparapresentear Charles II em 1650; a outra foi a gravura em metal para a capa da primeira edio impressa em 1651.Bredekamp compara as duas capas (desenho e gravura) e destaca algumas diferenas fundamentais (Il. 4). Talvez a principal delas que que, na verso manuscrita, o Leviat adquire diversos traos que o tornam mais particular, mais prximo de uma possvel identificao com Charles II. Hobbes sabia dos problemasqueiriaenfrentarcomapublicao do seu texto e por isso, tentava estabelecer algumas alianas para sua proteo. A verso impressa, ao contrrio, almeja a universalidade. Ela no tem como refernciaqualquersoberanodapoca, noest localizadaemqualquernaoenempartede uma forma de poder j constitudo. Neste sentido, do ponto de vista da linguagem adotada, ela est em total sintoniacomasnovaspossibilidadesde reprodutibilidade tcnica oferecidas pela gravura em metal, rompendocomocarteroriginal enicododesenhomo. Selecionamosapartirdotrabalhode Bredekamp trs diferenas relevantes entre estas duas edies.23Il.4: Ilustrao desenhada por Bosse em 1650 para a edio manuscrita por Hobbes para Charles II. Fonte: Bredekamp (2003, p. 31).24A primeira a supresso na verso manuscrita do ttulo superior - versculo do Livro de J:Non estpotestasSuperTerramquaeCompareturei(Nohsobreaterraqualquer potnciaquelheseja comparvel). Talvez por prudncia, como o interpreta Bredekamp, Hobbes teria retirado a frase para que no corresse o risco do seu presente ser interpretado como uma ironia situao de Charles II. Um poucoantes, seupai, oRei Charles I, fora executado, e as disputas pelo poder comas foras parlamentaristas de Cromwell eram crescentes. Na verso impressa, a frase fundamental para indicar a fundao da potncia superior do Leviat. Outramodificao, jcitadaacima, orostodosoberano. Bredekampcomparaalgunsretratosde Charles II realizados por outros artistas e afirma que na verso manuscrita o rosto doLeviat assemelha-se a outras imagens conhecidas de Charles II, em especial, um retrato do prprio candidato ao trono realizado por Wenceslao Hollar, em 1650 (Bredekamp, 2003, p. 47). Tal possibilidade ganha fora se acreditamos que o presente de Hobbes tinha tambm a inteno de enaltecer Charles II.Outra alterao significativa o corpo do Leviat. Na verso impressa, a multiplicidade de indivduos que constituem e fundam o corpo do Leviat est voltada em direo cabea do soberano. Na verso desenhada, ocorpodosoberanoformadoporpequenascabeasqueestovoltadasparafora, em direoqueles que observamodesenho. Umapossvel interpretaopara essas pequenas faces voltadas para o observador - conforme analisado em outros desenhos em circulao na poca - seria a de que elas serviriam para assustar ou afugentar os inimigos do soberano. No contexto de ameaa em que Charles II se encontrava, essa interpretao tambm se torna possvel.Bredekampaindairinvestigar outrasversesdacapadolivroqueforamimpressasemperodos prximos na Holanda, Frana ou Inglaterra. A tese do autor que as mudanas identificadas entre as diversascapasconstituemrespostasprprias dos editores que visamalterar ocontedo da imagem, como medidas de prudncia s condies histricas determinadas (Bredekamp, 2003, p. 24).251.1.3 Viso, perspectiva e polticaO momento de criao da ilustrao do Leviat tambm marcado pela crescente importncia da viso comorgoprivilegiadodoatodeconhecimento, combinandoaclssicaseparaosujeito-objeto (observador-observado) comumadoutrinarenovadadas paixes. Oolhar, mediadopor objetos tcnicos (lunetas, cmeras escuras e outras mquinas de viso), vai ao longo dos sculos XVIII e XIX se combinando ao processo de reificao cientfica, fortalecendo a fuso das noes de objetividade, verdade e realidade. Por outro lado, no qualquer viso que servir para a cincia, uma vez que os nossos sentidos, influenciveis pelas paixes, deveroser disciplinados pelatcnicaepelos procedimentos de racionalizao.ComobemexaminouMiranda, fomospaulatinamenteeducadosapensar oolhocomoumrgo-aparelho-mquina. Esta percepo acaba por legitimar umentendimento apoltico dos aparelhos tecnolgicos de viso como se fossem apenas a extenso do olho, permitindo um aprimoramento, uma correo e ampliao da nossa capacidade visual. Ver mais significava saber mais! Entretanto, para isso ser alcanado, avisodeveriaser disciplinada, corrigidapelapretensaneutralidadecientficados instrumentos ticos (Miranda, 2001).OinteressedeHobbespelageometriaepelosestudosdeticajestava, portanto, imersoemum ambienteintelectual quevalorizavaavisocomoformadeconhecimento, tendonasimagensum importanterecursodememorizaoe construoargumentativa. AssimcomoDescartes, Hobbes partilhava da idia de que a viso se completava no crebro sob influncia dos afetos corporais12. Como analisouMiranda, paraDescartesaspaixestmorigemnassensaesdocorpoecomotodosos rgos dos sentidos so duplos, tudo que percebido dever unir-se para chegar alma. Esta percepo dual, e portanto confusa, dever ser unificada para ser clara e distinta. O instrumento deste processo de unificao, visandoumaverdadedequalidadesuperior, advidaracionalqueserealizapelo afastamento de qualquer paixo, emoo ou sentimento (Miranda, 2000, p. 127).12 Por volta de 1648, segundo Bredekamp, Hobbes j manifestava esta opinio em algumas correspondncias trocadas com o poeta Willian Davenant (Bredekamp, 2003: Captulo Tradition de la forme et optique politique).26De maneira correspondente, Hobbes concede viso a prioridade de produzir imagens que reflitam os movimentosdocrebrodiantedomundoexterior. Estaviso, noentanto, deverestarsubmetida geometria (equivalente ao mtodo racional de Descartes) para que possa se auto-corrigir. Neste sentido, a geometria ser o rgo de controle do sentido visual, mais uma garantia de que o homem pode se aproximar distnciadeumarealidadeexterior para conhec-la. Deste modo, para Hobbes, pensar, falar e agir conforme as leis da geometria significava produzir uma realidade artificial que no estava fundada sobre os fantasmas e a imaginao, mas sobre a realidade (Bredekamp, 2003).Aqui, comeamos a encontrar mais indcios da importncia dada por Hobbes construo da ilustrao para a capa do seu livro, bem como sobre a escolha de um artista que correspondesse no plano esttico a seu pensamento poltico-geomtrico.A combinao da geometria euclidiana s tcnicas de representao visual, como o esforo de gerar formas de representao mais semelhantes ao real e, portanto, mais apropriadas para o conhecimento verdadeiro, irsemanifestarcomoumaparatosimultaneamentetcnicoepolticonaperspectiva renascentista. Comodiscutidopor Almeida, aperspectivapensadacomocincia, objetivamente produzida (atravs da geometria) para apreender o real e reproduzi-lo, afirmando-se como sua nica e competente representao, portanto, apresentando-se como politicamente neutra (Almeida, 1999).Tal tradioserpotencializadanosculoXVII pelosinstrumentosdevisoquecomeavamase popularizar, construdos em sua maioria com base nos estudos da tica e da perspectiva renascentista. Neste mesmo perodo, este pensamento ser articulado e fortalecido por uma doutrina que valorizava o controledaspaixescomoalutadohomemcontraosseus impulsosedesejos autodestrutivos (Bredekamp, 2003). nestapoca- primeirametadedosculoXVII - quecomeamacircular inmeras imagens, sobretudo na forma de emblemas, que so portadoras de uma educao moral e que orientavam para o controle das paixes atravs da cincia (neste caso, representada pelos aparelhos ticos).Nestaimagem(Il. 6) analisada por Bredekamp, amulher nua e inocente seduzida pela viso fantasmagrica gerada pelo prisma que est em suas mos. As imagens produzidas pelo prisma no 27existem de verdade, elas so enganadoras aos olhos. A seu lado, uma outra mulher est vestida em sinal de prudncia e olha atravs de um telescpio, que permite que ela veja distncia as aparies essenciais (deus, a morte, o juzo final e o poder divino).Tal emblema, exemplar para nosso caso, ajuda a compreender no apenas o contexto intelectual, mas tambm a educao poltica, moral e visual em curso. Portanto, quando a imagem do Leviat estava sendo produzida ela tambm dialogava com uma cultura visual da poca. H, ainda, uma outra imagem que ter, segundo Bredekamp, especial impacto sobre o pensamento de Hobbes.Il. 5: Emblema de Francis Quarles, 1658 (1 ed. 1635).Fonte: Bredekamp (2003, p. 83)28Em 1638, o parisiense Jean-Franois Niceron publica um livro chamado La perspective curieuse, que apresentava um conjunto de imagens produzidas atravs de diversas deformaes ticas. Niceron era umespecialistaeminstrumentosticosedominavaaconstruodeumobjetoespecficochamado lentes perspectivas (verres perspectives, no original). Em uma das experincias apresentadas no livro, uma luneta construda com essas lentes perspectivas utilizada para gerar uma nova imagem a partir de um quadro contendo diversos retratos. Conforme apresentado por Bredekamp, a experincia ocorria da seguinte maneira:Vemos na parte superior da ilustrao 7 um modelo da construo das lentes perspectivas que esto no interior da luneta (LXVI), logo abaixo das lentes em forma de medalhas talhadas (LXIV e LXV). Na metade inferior do desenho vemos um esquema do experimento. A luneta colocada horizontalmentesobreumsuporte(posio R-Q) efica direcionadaa um quadroque possui vrios retratosdesenhados. Oobservadordoexperimentodeverolharestequadroatravsdalunetanesta posiodeterminada. Aseguir, umaoutrailustrao(Il. 8)comodetalhedosretratosenaparte inferior direita (LXXI), a nova imagem que resultar da observao atravs da luneta.29Il. 6: Esquema do experimento de Jean-Franois Niceron, publicada em 1638 no livro La Perspective Curieuse. Fonte: Bredekamp (2003, p. 84).30Il. 7: Outra imagem do quadro apresentado no esquema anterior, agora detalhando o processo de constituio da nova imagem (LXXI). Fonte: Bredekamp (2003, p. 85).Nesteexemplo, oobservadortinhadiantedesidiversosretratosdeindivduosdeumafamlia. Ao observ-los atravs da luneta via-se apenas um novo rosto, formado a partir da fuso tica gerada pelas lentes perspectivas.Haindaumoutroexemplodautilizaodaslentesperspectivasemumasituaoqueforamuito comentada na poca, e que teve impactos diretos sobre Hobbes. A hiptese de Bredekamp que este experimento teria inspirado Hobbes a conceber a imagem do Leviat como o resultado da fuso dos cidados que produz uma nova unidade, justamente por ele no ser nenhum dos cidados representados e ao mesmo tempo ser formado pela juno de todos eles.31Nesta mesma poca em Paris, o chanceler Pierre Sguier possua em seu gabinete uma luneta e um quadroperspectivocapazdereproduzir o mesmo efeito. Neste caso, no entanto, havia no painel os retratos de seus familiares e a imagem resultante era a sua prpria. Esta experincia no teria sido mais importante do que as outras se ela no tivesse sido vista e comentada pelo poeta Richard Fanshawe. Segundo Bredekamp, o comentrio de Fanshawe a respeito desta experincia completaria o quadro de influncias sobre o pensamento imagtico de Hobbes.Em 1647 Richard Fanshawe dedica a Charles II sua traduo do livro Il Pastor fido de Giovanni Battista Guarini. Naquele momento poltico conturbado, Fanshawe no deixa de manifestar seu apoio a Charles II, desejando que ele seja capaz de retomar o poder e reconstruir o Estado. Sua dedicatria no livro primorosa do ponto de vista da teoria poltica ento emergente, e estava diretamente sintonizada com o pensamento de Hobbes, que ir escrever posteriormente a Fanshawe parabenizando-o pelo prefcio e tambm para explicitar o seu entendimento sobre o mesmo experimento tico analisado por Fanshawe. Reproduzimos abaixo, nantegra, omesmotrechodeFanshawecitadopor Bredekamp, pois este pequeno fragmento parece conter, virtualmente, o projeto terico do Leviat de Hobbes:Sua Alteza talvez tenha visto em Paris uma imagem (ela se encontra no gabinete do grande chanceler), que to admiravelmente imaginada que ela apresenta ao observador ordinrio uma multitude de pequenos rostos (os gloriosos ancestrais deste senhor), mas, ao mesmotempo, aquelequeaobservaatravsdeumaperspectiva [luneta perspectiva], l disposta para tal propsito, ver um nico retratoemgrandeformatodoprpriochanceler. Dessaforma, o pintor daentender quenapessoadochanceler seconcentram todasasvirtudesdeseusancestrais; ou, por umafilosofiamais sutil, ele consegue mostrar que o corpo poltico composto de um grandenmerodecorposnaturaisequecadaumdelesemsi completo e consiste de uma cabea, olhos, mos e coisas parecidas, enooutro, umacabea, olhoseumamo; detal formaqueos corpos privadosdos humanos nopodemser preservados seo corpo pblico destrudo; tambm assim, que as pequenas imagens no poderiam conservar a sua existncia se a grande imagem estiver corrompida, poisestagrandeimagemfoi tambmaprimeiraea mais importante no desenho do pintor, e foi em seu nome que todo o resto foi feito. (Guarini, 1647, p. A3v,apudBredekamp, 2003, p. 88, traduo nossa).32Hobbes, emcorrespondncia como poeta Fanshawe, ir estabelecer relaes diretas entre os experimentosrealizadospelaslentes perspectivaseoseupensamentopoltico. Paraele, aslentes representariam o filtro da razo e da cincia, e apontariam, atravs da fuso, para a criao de uma nova imagem, uma nova unidade de qualidade superior. Em contraposio luneta telescpica que amplia as imagens, sendo usada como metfora da ganncia e da busca dos interesses pessoais, a lente perspectiva representaria um outro estgio do pensamento, no qual os cidados j teriam renunciado as suas paixes pessoais. Para Hobbes, metaforicamente, aqueles que j olharam atravs das lentes perspectivas esto decididos a se reunir no corpo do Leviat (Bredekamp, 2003, p. 80-82). H, portanto, uma combinao de fatores que cria um ambiente intelectual que influenciar tanto sua teoriapoltica como tambma concepo da imagem do Leviat de Hobbes. Em relao imagem destacamosque: osestudosgeomtricosefsicosconferemvisoumestatutoprivilegiadocomo forma de conhecimento; doutrinas morais valorizamodisciplinamentoda percepoatravs dos aparelhos tcnicos (neutros e cientficos); a existncia de experimentos ticos e comentrios poticos que tratam de problemas da teoria poltica.331.1.4 Fundamento mtico versus fundamento jurdico: poltica visual e relao homem-mquinaH um interessante caminho de reflexo sobre as possveis imbricaes mitolgicas provocadas pela imagem do Leviat. Retomamos aqui, o trabalho de Carl Schmitt naquilo que ele apresenta de crtica utilizao da imagem do Leviat por Hobbes. sua argumentao, baseada na interpretao do texto de Hobbes sobre a figura mitolgica do Leviat e sua relao com o universo judaico-cristo, contrapomos uma anlise baseada na prpria imagem da capa do livro.O Leviat de Hobbes apresenta um momento de fundao que coincide com o nascimento do poder soberano do Estado. Se observarmos atentamente a gravura, podemos perceber que todos os indivduos que compem o corpo do Leviat esto voltados diretamente para a sua cabea, nica parte do corpo que no feita da multiplicidade.O Leviat emerge por detrs das montanhas, tendo a sua frente o campo e a cidade. A gravura no nos permitedefinir seoLeviatsurgedaterraoudomar, poisnocantosuperior direitodaimagem podemos ver algumas embarcaes. Da maneira como o Leviat foi construdo, tanto uma interpretao como a outra so possveis. Se, por um lado, em algumas culturas o Leviat13estava associado a um monstro marinho, por outro, Hobbes est preocupado com a constituio de um Estado, necessariamentevinculadoaoestabelecimentodeumterritrio. Advida, nestecaso, fortalecea pretensouniversalistadopensamentohobbesiano, umavezqueelenolocalizaosurgimentodo Leviat a um pas especfico: poderia ser uma ilha (Inglaterra) ou um pas continental (Frana).Os instrumentos que o Leviat carrega em suas mos esto caracterizados como uma espada (smbolo do poder temporal civil) e um cetro (smbolo do poder atemporal religioso). O fato de ambos estarem reunidos na mesma pessoa, uma unidade corporal, indica a necessria unidade do poder. A preocupaocentraldeHobbeseraenfrentar a divisibilidade do poder, que ele identificava como a principal causadora da guerra civil que ento assolava a Inglaterra. Para evitar a destruio do Estado e alcanar a superao do estado de natureza (no qual os homens so movidos por seus interesses e 13Na Wikipedia de lngua inglesa h um bom verbete sobre a figura do Leviat em suas diversas expresses culturais: http://en.wikipedia.org/wiki/Leviathan34paixes), era necessrio o estabelecimento de uma fora unitria e de maior potncia. Do contrrio, a guerra seria eterna (Castelo Branco, 2004; Ribeiro, 1993).A confeco de uma imagem que representa a criao do Estado chama a ateno para o fato de que a sua construo seria efetivamente um trabalho de carter artificial (relativo s artes) e voluntrio, obra dosprprioshomens(enodeumafora exterior) como ao necessria superao da natureza humana. Esta, para Hobbes, por definio dominada pelas paixes e interesses particulares, levando, no limite, destruio dos prprios homens. Assim, a produo deste homem de qualidade superior far coincidir a eternidade artificial (dos deuses e das mquinas autnomas) num homem artificial.Aidia de ummecanismo artificial presente nesta inveno pode indicar uma influncia das primeiras mquinas autnomas que surgemno sculo XVII. Tais aparelhos inspiraramdiversos pensadores da poca sobre as relaes mecnicas entre as partes constitutivas do corpo, e tambm sua relao com a essncia (alma) do humano. Como veremos adiante, este mais um fator que contribuir para a emergncia duma outra relao "homem-mquina" naquele momento.Schmitt, em sua interpretao do trabalho de Hobbes, destacar este carter artificial e mecnico do Estado, de maneira que o poder supremo e impessoal deveria culminar no em uma pessoa, mas em uma mquina. Neste sentido, o Estado moderno representaria o primeiro produto da Era da Tecnologia:[...] that statewascreatednot onlyasanessential intelectual or sociological precondition for the technical-industrial age that followed but also the typical, even the prototypical, work of the new technological erathedevelopment of thestateitself. (Schmitt, 1996, p. 34).Assim, para este autor, o Estado como totalidade corpo e alma,homo artificialis, uma mquina. Da mesmaforma, oshomens quecompemesteEstadopodemreciprocamenteassumir umaforma-mquina, produzindo assim uma transformao antropolgica do humano:35After the bodyandsoulofthehugeman becamea machine,the transfer back became possible, and even the little man could became a homme-machine. The mechanization of the concept of the state thus completed the mechanization of the anthropological image of man. (Schmitt, 1996, p. 37).Portanto, para Schmitt, atradiomobilizada pela imagem judaico-crist do Leviat, somada a esta fuso homem-mquina, far com que o Leviat de Hobbes adquira o mais alto nvel de fora mtica. EstamecanizaodoEstadoinstalaumproblemacentral paraSchmitt. Conformeanalisadopor LaymertGarciadosSantos, aoperaorealizada porHobbesdetransferir oconceitocartesianode homem como mecanismo dotado de alma para o Estado como mquina-animada criaria, na leitura deSchmitt, umaantinomiainsupervel entreopoder decisriodosoberanoeasuamecanizao, tornando-oumautmatosemarbtrio. Estasupressodohumanointerpretadanegativamentepor Schmitt: ele se d conta que a metafsica que rege o primado do econmico e do tecnolgico no plano dadominao poltica transfere a potncia da exceo das mos do soberano para a machina machinorum, seja ela incorporado no Estado total ou no Mercado (Santos, 2007, p. 347).Porm, como aponta Santos, no podemos perder de vista que esta crtica Hobbes esconde uma das preocupaes centrais de Schmitt, que restabelecer uma teologia poltica como fonte originria da legitimao do Estado, em detrimento do primado da cincia e da tcnica (Santos, 2007).Aqui, interessante destacar duas dimenses presentes na construo imagtica doLeviat que funcionamdemaneirano-contraditria. Deumlado, temosadefesadopensamentogeomtricoe matemticocomonorteadores filosficos dacriaodeumpoder central, quedeveriafuncionar segundo normas racionais. Este, por sua vez, s nasce da adeso voluntria dos indivduos que aceitam integrar este corpo social, dando origem a uma nova totalidade. Se este Estado nasce da fuso e do trabalho artificial dos homens e funciona de maneira "mecnica", no exagero afirmar que tambm estamos diante de uma nova concepo da relao homem-mquina, mesmo que o soberano na acepo hobbesiana persista como o detentor do poder e vontade decisrias. Por outro lado, ainda que Hobbes valorize as formas de conhecimento originrias das cincias geomtricas e matemticas como disciplinadoras das paixes humanas, ele no abre mo da utilizao da imagemcomorecurso alternativo ao texto, convencido das suas prprias potencialidades intelectuais.36Alm do desenho do Leviat, todo o cenrio montado por Hobbes na capa do livro parece indicar para a produo de um acontecimento singular, maneira de um ato de fundao mtica que se projeta no tempo para que possa durar e ultrapassar os limites do presente. A idia de utilizar uma antiga imagem de diversas culturas poderia fortalecer a sua inteno de produzir uma nova imagem que resistisse ao tempo, uma vez que o Estado por ele concebido ainda no existia como tal. Neste sentido, podemos interpretar que Hobbes pretendia mobilizar foras mticas que funcionariam de forma diversa sobre a memria eopensamentodos leitores de sua poca (exploraremos adiante a teoria da memria partilhada por Hobbes). A gravura do Leviat, portanto, pretende fixar o exato momento de nascimento doEstado, lembrandoaoscidadosdasuaparticipaonesteatoedanecessriapermannciado Estado.Para Schmitt, no entanto, a escolha feita por Hobbes ao utilizar a figura mitolgica do Leviat ser um graveerroquecontribuirparaadestruioda simbologia que ele prpriopretendiacriar.Oautor argumentaqueoobjetivocentraldeHobbes era superar adisputa entreo poder poltico eo poder religioso. Tal conflito estava na origem das guerras civis da poca, e eram vistas por Hobbes como uma ameaa ao Estado14.ParaSchmitt,a escolha da figuradoLeviat por Hobbes, poderia ser explicada pelo fato dela estar ligada a diversas mitologias de guerra (anteriores a sua insero nas tradies judaico-crists), sobretudo, conectada aos mitos pagos. Assim(inspirado nos estudos hobbesianos de Helmut Schelsky), Schmitt afirma que a luta representada pelo Leviat aponta para duas direes: ou o mito do Leviat de Hobbes constitui a restaurao da unidade original da vida poltica (sem distino poltica-religio), ou ela representa a imagem mtica-poltica que luta contra a destruio judaico-crist desta unidade original.Para fundamentar a segunda possibilidade, Schmitt problematiza a separao entre poltica e religio iniciada no judasmo em contraposio s sociedades pags que desconheciam tal ciso. Schmitt construir sua tese a partir de interpretaes da bblia hebraica, em especial o Livro de J, e dos poucos fragmentos do texto em que Hobbes cita diretamente a figura do Leviat (a palavra 14 No podemos perder de vista que no contexto em que escrevia, a Alemanha dos anos 30, Schmitt via como ameaador a falncia do Estado Alemo diante do crescente tensionamento poltico interno. inclusive este o argumento utilizado para fazer uso da clusula de exceo e salvaguardar o Estado alemo, dando poderes totais ao Fher.37Leviat aparece no seu livro em apenas trs pginas).Na tradio judaica, segundo Schmitt, o Leviat o monstro marinho que combate o monstro terrestre Behemot. Tal embatemticorepresentariaalutaentreospovospagos, observadadelongepelos judeus que aguardariam pela morte dos combatentes. Mas o Leviat tambm est presente no Livro de J como o monstro marinho enviado por Deus para demonstrar a sua potncia. Essas histrias, para Schmitt, tornariam a imagem do Leviat utilizada por Hobbes pouco simptica aos olhos da cultura judaica.Do ponto de vistado cristianismo,segundo Schmitt, o Leviat era frequentemente associado a uma fora do mal enviada por Deus (no Livro de J) ou como o smbolo do diabo, conforme algumas verses nos livros da Idade Mdia Crist. O autor ainda aponta que nas imagens bizantinas do Juzo Final, o Leviat aparecia como o monstro que engole o universo.Portanto, tanto para os cristos como para os judeus, o Leviat representava uma fora que no deveria ser despertada, pois a sua ao sempre significaria um momento de desordem no mundo. Novamente, Schmitt aponta a utilizao da imagem como o ponto frgil da estratgia adotada por Hobbes:thatimagewasinadequatetothesystemofthought towhichit wasappliedinhistorical realityanditperished as a result of its encounter with the forces arrayed behind the traditional Jewish interpretation of the leviathan (Schmitt, 1996, p. 82).Alm do fato desta imagem mobilizar sentimentos contrrios queles que ela poderia despertar, a partir dapropostatericadeHobbes, Schmitt apontaoutroelementonateoriapolticahobbesianaque ampliaria a liberdade de interpretao sobre a figura do Leviat, aumentando assim a vulnerabilidade do prprio Estado que Hobbes pretendia criar.Schmittafirmaqueaseparaoproposta por Hobbes entre o pensamento (dimensoinner) e sua manifestao externa (dimenso outer de ao no mundo) ser outro fator que, ao proteger as liberdades individuais em determinadas circunstncias, poderia trazer ameaas ao Estado. Hobbes argumentou que o Estado deveria ocupar-se apenas dos aspectos externos do pensamento dos cidados, ou seja, aquilo 38que publicamente manifestado, garantindo aos cidados a liberdade de pensamento. Para Schmitt, este graudeautonomiadopensamento, permitindoquecadaindivduojulgueapartir desuaprpria vontade, criaria possibilidades de interpretaes contrrias ao projeto poltico que estava sendo gestado por Hobbes, ampliando as chances de indisposio figura do Leviat:Although the enlightened humanitarian could conceive of and admirethestateasaworkofart, thesymbol oftheleviathanas applied to the state appeared to his classical taste and sentimental feeling as a bestiality or as a machine turned into a Moloch that lost all the powers of a sensible myth and at first represented an externally driven lifeless mechanism and then as animate organism of a political contract, an organism driven from within. When a widespread romantic feeling began to perceive in the image of the state a plant, a growing tree, or even a flower, the image generated by Hobbes began to be perceived as downright grotesque. The new symbol left nothing to remind people of a huge man and a god created by human reason. The leviathan assumed an inhuman or a subhuman appearance which led to a secondary question that need not be aswered, namely, whether the perceived inhumanity and subhumanity represented an organism or a mechahism, as animal or an apparatus. (Schmitt, 1996, p. 62-63).Oargumento de Schmitt destaca o fundamento mtico no ordenamento jurdico, tendo como decorrnciaacriaodeumparadoxonointerior dareflexohobbesiana. Conformedescritopor Santos, o paradoxo da soberania apresentado por Schmitt consiste no fato do soberano ser aquele que decide sobre o estado de exceo, ficando simultaneamente dentro e fora do ordenamento jurdico. Este argumento ser desmontado por Agamben ao afirmar que o estado de exceo o princpio de todoordenamentojurdico. Nolimite, aprpriapossibilidadededecidir excepcionalmenteque caracteriza o poder soberano. Portanto, no h um fora da lei e assim, a deciso soberana deixa de ter necessidade de um fundamento mtico (Santos, 2007).Para concluir, podemos sintetizar os argumentos de Schmitt da seguinte maneira: 1) o fato de Hobbes se utilizar de uma imagem sem referente real aponta uma inspirao de origem mtica; (2) a escolha por uma imagem mtica especfica estaria orientada pela busca da unidade original pag, quedesconheciaadistinoentre religio e poltica; (3) a deciso de mobilizar uma imagem mtica e combin-la ao pensamento lgico-racional realizado pela escrita do texto foi um equvoco; 39(4) amecanizaodoEstadoemoposioaodecisionismodosoberanocriaumacontradio interna; e (5) a busca de uma fundamentao teolgico-poltica por Schmitt seria uma forma de superar o paradoxo da soberania.Talvez por estar muito preocupado em identificar as razes poltico-culturais que levaram crise do Estado alemo (e portanto, justificar sua tese do estado de exceo nazista), Schmitt tenha optado por rastrear os elementos presentes na obra de Hobbes que conflitavam com as tradies religiosas judaico-crists. Entretanto, Schmitt noanalisaaculturaimagticadapoca, nemas outras tradies de pensamento que estavam em voga e que tinham na representao visual a sua centralidade (estudos de fsica, tica e geometria). Ao se fixar na anlise textual, Schmitt foi incapaz de olhar a imagem.Numaoutradireo, oestudodeBredekampseconcentrounainterpretaodasimagensedoseu contexto de produo, o que o levou a concluses muito diversas de Schmitt: (1) Hobbes se utiliza da visualidade como estratgia complementar ao texto; (2) a imagem criada tem uma funo mnemnica precisaeprope, conformeosentendimentosdapoca, umaoutraformadepensamento; e(3) a ausncia de referncia real para a imagem lhe confere potncia simblica.401.1.5 O Leviat como imagem e signo: produo da memria e da imaginaoChegamos ao ponto mais importante para as discusses da nossa investigao, a saber: a relao entre a produo de imagens, formas de conhecimento e imaginrio15 poltico. Hobbes, em seu esforo criativo paragerarumaimagemadequadateoriapolticaquepretendiadifundir, nosrevelaumprofundo interesse em alcanar uma forma mais eficiente de comunicao. Sua busca por esta imagem estava apoiada em seus entendimentos sobre as relaes entre memria, imaginao, pensamento e corpo. Esta preocupao em parte motivada pela influncia das diferentes tradies tericas pelas quais Hobbes simpatizava. Alm da geometria euclidiana e da fsica-tica, a proximidade de Hobbes das chamadas cinciashermticasfrequentementeapontadaemsuabiografiademaneiramarginal ecomoalgo relacionado a uma influncia ocultista (Schmitt, 1996). Entretanto, justamente nessas cincias que as reflexes sobreaimportnciadaimaginaoedadimensoperceptivo-sensvel ganhammaior importncia.Bredekamp, em sua anlise sobre o pensamento visual de Hobbes, encontrar alguns elementos que reforam este caminho de anlise. Em correspondncia enviada ao poeta Sir Willian Davenant, Hobbes escreve sobre a relao entre a imagem e a letra:15 Hesitamos na utilizao da palavra Imaginrio pelo seu desgaste e pluralidade de usos a que esteve sujeita. No entanto, decidimos mant-la pela sua forte presena na histria das idias. Partimos de uma noo de imaginrio na trilha dos estudos tardios de C. Castoriadis (1995) e G. Durand (1994). Mais recentemente, encontramos nos trabalhos de Deleuze, uma proposioque agregava outros entendimentos, emespecial, a relaocoma imagem-cristal. Na entrevista Dvidas sobre o Imaginrio, de 1986, o autor apresenta uma explicao que nos parece adequada ao uso que faremos nestatese: Oimaginrioumanoomuitocomplicadaporqueestnoentrecruzamentodosdoispares[real-irreal, verdadeiro-falso]. Oimaginrionooirreal, masaindiscernibilidadeentreoreal eoirreal. Osdoistermosnose correspondem, elespermanecemdistintos, masnocessamdetrocarsuadistino. oquesevbemnofenmeno cristalino, segundo trs aspectos: existe a troca entre uma imagem atual e uma imagem virtual, o virtual tornado-se atual e vice-versa; e tambm h uma troca entre o lmpido e o opaco; o opaco tornando-se lmpido e inversamente; enfim, h a troca entre um germe e um meio. Creio que o imaginrio esse conjunto de trocas. O imaginrio a imagem-cristal [...] por isso que no atribuo muita importncia noo de imaginrio. Por um lado, ela supe uma cristalizao, fsica, qumica ou psquica; ela no define nada, mas se define pela imagem-cristal como circuito de trocas; imaginar fabricar imagens-cristal, fazer a imagem funcionar como um cristal. No o imaginrio, o cristal que tem uma funo heurstica, segundo seu triplo circuito: atual-virtual; lmpido-opaco; germe-meio (Deleuze, 2007, p. 84-85).41For memory is the World (though not really, yet so as in a looking-glasse) in which the Judgement the severe Sister busieth her selfe in graveandrigideexaminationof all theparts of Nature, andin registeringbyLetters, their order, causes, uses, differences and resemblances.(Bredekamp, 2003, p. 64-65, nota 132. Correspondncia entre Hobbes e Davenant).Enquanto a memria povoada por imagens, que so a matria-prima do mundo icnico produtor da imaginao, aescritateriaafunocomplementar deordenar oreinoespecular. Nestapassagem, afirma Bredekamp, a deusa do Julgamento (a escrita) surge como a irm de Mnemosyne (memria). Da mesma forma, se a potncia contida na imaginao fonte criadora do pensamento, para Hobbes, o melhor que ela seja guiada pelo pensamento matemtico-geomtrico. Portanto, a relao de complementariedadeentreessas duas habilidades mentais (pensamentoimagticoeopensamento lgico-racional) em Hobbes tratada de maneira no contraditria.Mas, para que a memria possa funcionar adequadamente, continua Bredekamp, as imagens mentais no devemser produtos virtuais daimaginao. Ou seja, essas imagens devem ter existidoantes no mundo sob alguma forma. Assim, da mesma maneira como para Hobbes a existncia de um corpo condio para que possa haver um pensamento substancial, uma imagem na memria necessitar de umarefernciasensvelexternaeanterior. Nestareflexo, encontramosnovamenteaarticulaode duas tradies filosficas frequentemente tratadas como excludentes. Se por um lado Hobbes mostra-se simptico teoria sobre a sntese mental (lgico-formal) das afeces que nos chegam alma atravs donossocorpo, conformepropostopor Descartes, percebemostambmumainflunciaepicurista (materialista), naqual tantoocorpohumanoquantoosobjetosexternostmumacentralidadena produo do pensamento. (Bosi, 1988). neste sentido, conclui Bredekamp, que a imagem do Leviat cumpre para Hobbes a funo de um signo sensvel mnemnico, sendo colocado no incio de toda ordem de pensamentos (Bredekamp, 2003, p. 63-68). Essessignos, eaquitalvez tenhamos a influnciade outros tericosdapocaque discutiamas estratgias deespacializaodamemria, criariammarcasqueconduziriamnosso pensamento atravs daquilo que percebemos sensivelmente (Almeida, 2005).42MasHobbesaindavai maislonge. Enquantoasmarcasmnemnicastmumcarterpessoal, na medida em que cada indivduo pode criar suas prprias refernc