a armadilha do leviatã

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    AARMADILHA DO LEVIAT

    Interaes corporativas, por

    definio, se desenvolvem dentro

    de limites definidos por normas

    legais. Tratei de me familiarizar

    com o ambiente institucional cor-

    porativo. A legislao, os arranjos

    institucionais que ela sustentava,

    os atores que ela articulava, os

    mecanismos por ela criados. Alegislao sindical e as Cons-

    tituies vigentes no perodo de

    montagem desta estrutura foram

    utilizadas como moldura legal do

    universo interativo e, mais impor-

    tante ainda, puderam ser utilizadas

    para avaliar a distncia entre as

    intenes da lei e sua aplicao.

    No espao aberto entre a inteno

    da lei e sua aplicao, surgiram os

    atores, arquitetos e engenheiros

    que planejaram e construram a

    estrutura corporativa de re-

    presentao e de participao

    poltica: a burguesia industrial, a

    burocracia e o governo. Esta era a

    "arma do crime" e estes os seus

    autores. Mas um crime supe umavtima ou vrias, diz a jurisprudn -

    cia. S h crime se houver vtima.

    O exame da "arma" poderia me

    conduzir vtima?

    A Construo do Corporativismo no Brasil

  • 7/23/2019 A Armadilha Do Leviat

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    UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Vanda Maria Ribeiro Costa

    ReitorAntnio Celso Alves Pereira

    ice-reitora

    Nilca Freire

    A ARMADILHA DO LEVIAT

    deuerj

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Conselho Editorial

    Elon Lages LimaGerd Bornheim

    Ivo Barbieri (Presidente)Jorge Zahar (in memoriam)

    Leandro KonderPedro Luiz Pereira de Souza

    A Construo do Corporativismo no Brasil

    CdYuerj

    Rio de Janeiro1999

    BIBLIOTECA NIRVIA RAVENt\

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    SUMRIO

    Apresentao.....................................................................................................................11Introduo......................................................................................................................... 21

    Copyright 1999 by Vanda Maria Ribeiro CostaTodos os direitos desta edio reservados Editora da Universidade do Estado do Rio deJaneiro. proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte, sobquaisquer meios, sem a autorizao expressa da Editora.

    Ed U ER JEditora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRORua So Francisco Xavier, 524 - MaracanCE P 20550-013 - R io de Janeiro - RJTel./Fax: (021) 587-7788 Tel. (021) 587-7789 / 587-7854 / 587-7855e-mail: [email protected]

    Coordenao de Publicao Renato CasimiroCoordenao de Produo Rosania RolinsCapa Heloisa FortesProjeto Grfico e Diagramao Celeste de FreitasReviso Ana Luiza Martins CostaApoio-Administrativo Maria Ftima de Mattos

    CATALOGAO NA FONTEU ER J/ R EDE SI R I U S/P R OT AT

    C837 Costa, Vanda Maria Ribeiro.A armadilha do Leviat : a construo do

    corporativismo no Brasil / Vanda Maria Ribeiro Costa. Rio de Janeiro : EdUERJ, 1999.

    200p.

    ISBN 85-85881-79-8

    1 . Corporativismo Brasil. 1. Ttulo.

    CDU 334(81)

    Captulo 1: O Corporativismo: um Conceito Sombra...........................27 sombra de umconceito...................................................................................28O corporativismo dos pobres e o corporativismo dos ricos..............37

    Captulo 2: Projeto Corporativo e Conflito de Elites...............................49A reorgani-nao do Estado-Nao.................................................................. 56A utopia de Oliveira Vianna: corporativismo e justia social..........67Direitos, prerrogativas, privilgios.................................................................75

    Captulo 3: A Construo do Corporativismo...............................................89Organizando a ao coletiva..............................................................................89"Pagando pra ver"...................................................................................................97Fabricando o interesse comum.......................................................................103Embusca da identidade.....................................................................................117

    Os sindicatos-cartis.........................................................................................129Proteo ao trabalho e organizao do capital...................................135

    Concluso..................................................................................................................143

    Captulo 4:A Armadilha do Leviat...........................................................:...147A montagem da armadilha................................................................................151

    Competio e apelo ao Estado....................................................................... 163Interdependncia parasitria e predao....................................................168Concluso.................................................................................................................. 177

    Comentrios Finais: "O Mapa no o Territrio"....................................179Bibliografia.....................................................................................................................193

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    para lvaro e Vanda,

    ...ouro de mina,

    corao, desejo e sina...

    (Djavan)

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    Da mesma farinha so os escritores que correm atrs da

    fama imortal publicando livros. Todos me devem muito,

    principalmente aqueles que sujam o papel com meras

    bagatelas. Quanto queles que escrevem (...) para serem

    julgados pela minoria dos doutos (...) parecem mais

    mseros do que os beatos, porque perpetuamente se tor-

    turam. Acrescentam, mudam, suprimem, repem, repe-

    tem, refazem, insistem (...) e nem assim ficam satisfeitos;

    o louvor, ftil prmio, e que s poucos recebem, com-prado por viglias, por suores e por tormentos, quando

    o sono a coisa mais doce.

    (Elogio da Loucura, Erasmo de Rotterdam)

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    APRESENTAO

    Este livro era uma tese que nem eu mesma conseguiareler, anos depois de t-la defendido no Iuperj. Quando a Edi-tora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro concordouem public-la, pedindo-me que a tornasse "legvel", entendi

    exatamente o que pedia e o que eu devia fazer. S no sabiaexatamente para quem torn-la legvel. Voltei ao texto em bus-ca de um leitor provvel e reencontrei os leitores para os quaisescrevi a tese. Foi um reencontro sentimental e didtico que meconduziu a meu novo(a) leitor(a).

    Mal iniciara a leitura, senti crescer em mim a sensaode que o texto no mostrava nada do que havia sido feito e

    dizia nada sobre o trabalho de pesquisa. Aos poucos me viemaranhada em uma escrita que obedecia rigorosamente ao maispuro jargo da cincia poltica mas que de alguma forma pare-

    cia deixar margem o mais importante. Era um texto sem vida.Levei algum tempo para entender por que havia escrito de for-ma to complicada, to presa letra da teoria.

    Lembrei-me ento de como vivi as sucessivas "fases" dotrabalho, da "formulao do tema" "redao da tese", e como elasno tinham nada a ver com a seqncia prevista pelos manuais.Fora um tempo no-linear, um trajeto feito de ziguezagues, idas evindas, de retornos sistemticos ao campo, aos dados e literatura.

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    A ARMADILHA DO LEVIAT APRESENTAO

    A escrita refletia esse movimento, mas no mostrava o caminhoque, mesmo "errtico", conduziu-me exatamente aonde eu queriachegar. Desconfio que a maioria das pesquisas segue um poucoesse caminho de mltiplas estradas, sobrepostas, paralelas ou tan-gentes, e percorr-las produz ansiedade toda vez que nos depara-mos com os manuais de pesquisa ou sempre que nos perguntamsobre o "andamento" ou "fase"dos trabalhos. Mais que ansiedade,

    vivi muitas vezes a angstia de pensar que "no tinha nenhumametodologia". E no entanto eu seguia um mtodo. dele quequero falar.

    A primeira "revelao" que me veio com fora e clarezaao longo da leitura foi a de que eu havia escrito para os meus

    professores. E, como aluna, submetida a um ritual de passagem,tentava mostrar que sabia trabalhar "cientificamente" e que meapropriara adequadamente do jargo da disciplina.

    Era mais do que isso no entanto. Constatava, surpresa,que podia identificar nessa escrita as marcas deixadas por cada um

    dos professores que "me iniciaram" na vida acadmica. Reencon-trei Csar Guimares com uma inteligncia que brilhava envolvidano afeto e no humor. Lembrei da minha dificuldade em entender oregistro de sua fala sempre irnica que me deixava com a sensaode s ter entendido um pouco e perdido o principal. Saa das con-versas sempre pensando: ser que algum dia vou conseguir entend-lo? Reconheo passagens destinadas a "completar" as conversasque tinha tambm com Wanderley Guilherme dos Santos e RenatoBoschi. Hoje sei que Wanderley Guilherme ser sempre meu"orientador". Sua agressividade terica, iconoclasta, me ensinou a

    ler de forma diferente, a no ter medo de pensar por mim mesmae entrar na "idade da razo". Renato Boschi era o porto seguroonde ancorava durante as tempestades, e de onde saa para conti-nuar o caminho depois de atualizar o mapa e equilibrar a bssola.

    Impossvel falar de todos os reencontros. Registro os maisintensos, que me levaram de volta aos tempos de aluna de carteira

    assinada. Hoje aluna honorria, me reencontro comigo e com meunovo leitor. O professor-aluno que inicia a caminhada rumo "pas-sagem" de aluno a professor que nunca sabemos realmente quandoe onde se d, mas que o ritual da tese assinala.

    A releitura me trouxe a exata medida do que parecia entouma tortura auto-infligida, quando o pouco de alvio vinha doscolegas e amigos mais pacientes. Helena Bomeny, Ana Caillaux,

    Dulce Pandolffi, Orlando Alves Paiva, Marcus e ArgelinaFigueiredo marcaram meus estudos, trabalhos e corao. So pes-soas queridas, com quem discutia, aprendia, mas pessoas e noanjos, como me pareciam quela poca. Ser que a elaborao deum trabalho acadmico ser, desde sempre, uma tarefa da loucura?A "tortura", ridicularizada por Erasmo?

    Imagino que parte desta se deva s regras formais dosmanuais. Talvez, quem sabe, refazendo a caminhada, eu possaajudar aqueles(as) que esto comeando a viagem. As regras tam-bm so reconstrues e quase nunca podem ser obedecidas. Elas

    no podem impedir a camin h -da, mas apenas orient-la. melhorviol-las todas quando esto impedindo prosseguir, mesmo que

    no. se saiba por qu.A viagem comeou financiada pela Finep, atravs do

    CPDOC e, posteriormente, pelo CNPq. Eram tempos mais ge-nerosos aqueles quando se apostava a fundo perdido na pesqui-sa bsica (digamos assim) emhistria do Brasil e Cincias

    Sociais. Sem este "mecenato" do poder pblico certamente euno seria hoje professora.

    Entrei no doutorado com um projeto de estudos que

    francamente no lembro qual era. Foi um tempo em que passa-va tardes inteiras discutindo Maquiavel, Hobbes, Marx,Shumpeter, Freud, Olson... tempos de "cio", aqueles. Ser queo Brasil ficou mais pobre? Ser que o dficit pblico aumentoucom os gastos pblicos que financiaram este meu cio? Emtodo caso, com o que eu ganho hoje como professora, acho que

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    A ARMADILHA DO LEV1ATAPRESENTAO

    j devolvi com correo no-monetria o que a nao gastou comminha educao.

    Durante o curso participei de um grupo de estudos sobreEstado e Mercado, financiado pela Fundao Ford, coordenado porEli Diniz e Renato Boschi. Neste grupo entrei na estrada que me

    levaria ao estudo sobre a construo do corporativismo no Brasil.Tudo comeou nas discusses sobre a experincia brasileira, atra-vs da literatura referente ao corporativismo nas sociedades capi-talistas avanadas. Na perspectiva das novas teorias, tanto quantona perspetiva da cannica do corporativismo, era difcil chegar aoselementos necessrios ao exame do tipo de corporativismo desen-volvido entre ns. Foram brigas boas essas. Perdi todas. Perdi?

    Menos a dificuldade em entender o caso brasileiro e maisa teimosia em sustentar pontos sistematicamente derrotados ouindefensveis nas discusses, me levaram ao estudo do

    corporativismo. Fui entrando nele devagar, avaliando os riscos deexaminar um objeto j "achado" e, de certa forma, "um poucoevidente demais". Perguntava-me se no seria perda de tempo ten-tar entender um "crime" j desvendado, de "autoria" j conhecida.Me perguntava mesmo se haveria de fato, ali, algum "crime" a serinvestigado. Enfim, seria este um "relevante objeto de pesquisa"?

    Digo com toda franqueza que a teimosia em continuarvinha exclusivamente da curiosidade em analisar mais detidamentea "arma do crime", com a inteno (intuio?) preconcebida demostrar que a estrutura corporativa, ao contrrio do que enfatizava

    a literatura neocorporativa em geral, no poderia por si s explicaro funcionamento diferenciado e o tipo de corporativismo brasilei-ro, que, como outros, est associado ao controle dos conflitos declasse e, ao contrrio de outros, institucionalizava o desequilbriodo poder organizacional de trabalhadores e patres. Imaginei quese tentasse me informar sobre a montagem do grande artefato,chegaria a entender seu funcionamento e resultados. Fui em busca,ento, de seu artfice, identificado pela literatura: o governo Vargas.

    Teria que muito caminhar para perceber que a montagemdessa estrutura resultara de interaes mltiplas entre mltiplosatores, orientados por mltiplos interesses, por vezes conflitantes,

    por vezes convergentes, e no da vontade poltica ou virt de UM.Meu ponto de partida foi a idia de que as instituies so

    cristalizaes de prticas e relaes bem-sucedidas. Eu t inha asinstituies que me serviam como estacas em tomo das quais eupodia amarrar os fios das interaes. O primeiro passo deveria serento delimitar o universo dessas interaes.

    Interaes corporativas, por definio, se desenvolvem den-tro de limites definidos por normas legais. Tratei de me familiari-zar com o ambiente institucional corporativo. A legislao, os ar-ranjos institucionais que ela sustentava, os atores que ela articula-va, os mecanismos por ela criados. A legislao sindical e asConstituies vigentes no perodo de montagem desta estrutura

    foram utilizadas como moldura legal do universo interativo e, maisi mportante ainda, puderam ser utilizadas para avaliar a distnciaentre as intenes da lei e sua aplicao. A anlise da legislao,inclusive dos anteprojetos e projetos de leis destinados a organizara representao de interesses de forma corporativa permitiram ava-liar com preciso essa distncia.

    No espao aberto entre a inteno da lei e sua aplicao,surgiram os atores, arquitetos e engenheiros que planejaram econstruram a estrutura corporativa de representao e de parti-cipao poltica: a burguesia industrial, a burocracia e o gover-

    no. Esta era a "arma do crime" e estes os seus autores. Mas umcrime supe uma vtima ou vrias, diz a jurisprudncia. S hcrime se houver vtima. O exame da "arma" poderia me condu-zir vtima?

    Privilegiando a dimenso participatria e os processosinterativos que caracterizam o corporativismo, pude limitar o cam-po de investigao: aquele constitudo pelas interaes desses ato-res e, a partir destas interaes, sair em busca de dados.

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    A ARMADILHA DO LEVIAT APRESENTAO

    Dispunha a esta altura de um conjunto de indcios sobreo manuseio da "arma". Eram falas, discursos e depoimentos dogoverno, da burocracia e do empresariado paulista, sem nenhumaarticulao entre si, aparentemente independentes, referidos, noentanto, a um mesmo objeto: a organizao corporativa da produ-o. Eu precisava ento de um princpio ordenador que me permi-tisse encontrar o elo de ligao ou, pelo menos, explicar o que me

    parecia incoerente: vrios discursos divergentes servindo a umaao conjunta e, por vezes, cooperao dos atores: discursosconvergentes e ao conflitante.

    Nas teorias da ao coletiva, encontrei o fio que me per-mitiu seguir as linhas de ao entrelaadas e as trajetrias dosvrios atores em defesa de seus interesses. Francamente, se fosseuma questo de escolha por empatia ou mesmo orientao valorativa,teria escolhido outra teoria. Acontece que o caminho indicado

    pelo processo que est sendo observado. O caminho e as fontesadequadas no so escolhas do pesquisador, mas imperativos do

    objeto pesquisado. Isto eu aprendi um pouco com Marcus e Arge-lina Figueiredo.

    A lgica dual da ao coletiva foi o f io que me permitiucombinar indcios, ligar pontos em linhas e curvas. Redesenhareste arabesco me permitiu passar da anlise das intenes para amicroscopia da ao. Foi ento que me dei conta pela primeira vezque, ao contrrio do que aprendera nos manuais de pesquisa, s nomeio do caminho que eu podia falar da natureza do trabalho queestava fazendo. Tratava-se de um exerccio de interpretao docorporativismo a partir das intenes, aes e resultado das aes

    dos atores envolvidos no jogo corporativo.Ao longo da caminhada, a estrada ia condicionando a

    forma e o ritmo do andar. O primeiro "achado" foi o destaque dasassociaes representativas da indstria paulista neste ambien-te. "Perdi" muito tempo coletando dados na Associao Comer-cial de So Paulo at entender que o tipo de informao que eu

    procurava estava em outro lugar. Perdi tempo? . A consulta exaus-tiva aos livros de atas e s publicaes da Associao Comer-cial de So Paulo me deu a certeza de que, se existiu no Brasildos anos 30 e 40 algumcompromisso comos princpios doliberalismo, poltico ou econmico, ele limitou-se aos comerci-antes. Isto exclua esta frao de classe do campo da pesquisa,

    Na biblioteca da Fiesp encontrei "o dirio" da institui-

    o e nele as primeiras pistas para compreender a ausncia dosmecanismos de interao entre capital e trabalho, previstos pelalegislao corporativa, na estrutura institucionalizada. Estariafinalmente na pista da "vtima"?

    Nos Livros de Circulares achei estranho encontrar, re-correntemente, referncias irnicas e hostis a Oliveira Vianna.Procurando dados sobre a rotina de uma associao patronal,encontro emoes. Voltei aos livros de Oliveira Vianna. Agoraa leitura tinha outro sentido, menos abstrato e mais ligado a ummundo que cada um tentava transformar sua imagem e seme-

    lhana. Esta leitura foi fundamental para a "formulao da hi-ptese central" e para a diferenciao entre o projeto corporativoda burocracia e o projeto corporativo do governo.

    Oliveira Vianna me passava sua confiana inicial nopropsito governamental de promulgar leis que abrissem oscaminhos para a justia social. Mas passou-me tambm seu desen-canto, que aumenta no incio dos anos 40. Com rigor e ressenti-

    mento, ele documenta o sucesso dos "grandes industriais paulistas"na perverso de um modelo idealizado de corporativismo.

    At ento eu tentava organizar interpretao e anlise,

    orientada pela clebre questo: a quem serve isto? Foi de formainteiramente casual que pude sair do dilema- que este tipo de con-duta criava. Afinal a permanncia e sucesso do corporativismocorrespondeu e corresponde ao interesse de grupos e fraes declasse as mais diversas, at mesmo antagnicas. A porta da sadafoi aberta por um livro, de fato um dossi, sobre o esforo da elite

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    A ARMADILHA DO LEVIAT APRESENTAO

    empresarial paulista em formular um projeto de organizaocorporativa em reao ao projeto do governo. Este achado absolu-tamente casual transformou-se na principal fonte de informaessobre o papel da elite industrial paulista na montagem do sistemacorporativo.

    Encontrei-o olhando cansada as estantes da Fiesp, espe-ra das cpias do material coletado no dia. O livro, no catalogado,estava "fora de lugar" nas estantes. Quando o abri "A Constituiode 10 de Novembro de 1937 e a Organizao Corporativa e Sin-dical", disse para mim mesma: acabei minha tese. Doce engano.Mas sem dvida eu entrara em outra "fase" da pesquisa.

    Achar "minha" verdadeira vtima foi coisa tambm daordem do acaso, ou mais precisamente, de um erro na seleo dasfontes. Passara dois longos anos para obter acesso ao arquivo doDepartamento Administrativo do Estado de So Paulo, que eu en-

    tendia ser fundamental para examinar formas de representao deinteresses paralelas ao corporativismo, surgidas nos anos 30, quan-do experincias polticas as mais diferentes foram realizadas. Oacesso a este arquivo, especial gentileza do Prof. Goffredo daSilva Telles, me colocou em uma encruzilhada. Ou bem eu seguiaem direo ao exame de formas de governo local inventadas pelaelite paulista nos tempos de Vargas', ou bem dava o tempo por

    perdido. Todo ele financiado pela Finep via Cpdoc. Escolhi deixarde lado um achado importante. Tinha-me apegado ao objeto. Pre-feri seguir outra pista, encontrada neste material, que levava a um

    "Conselho de Expanso Econmica de So Paulo". O DAESP man-tinha um fluxo contnuo de comunicao com as entidades patro-nais que participavam deste Conselho.

    Vi com enorme prazer e um pouquinho de inveja que este estudo est sendofeito por Adriano Nervo Codato. Ver Codato, "O Departamento Administrativodo Estado de So Paulo na Engenharia do Estado Novo", em Revista de Socio-logia ePoltica, n. 9, 1997. Dossi Estado Novo,

    ta

    Voltei aos arquivos pblicos paulistas, reiniciando umaverdadeira peregrinao. Ela terminou quando, comentando comuma arquivista antiga do Arquivo do Estado sobre as dificuldadesde localizar o arquivo do Conselho, ela lembrou-se de ter vistocerta vez, no arquivo morto, o acervo de um conselho econmico.

    A consulta a este material s foi possvel graas generosidade eboa vontade das arquivistas do Arquivo do Estado que se dispu-seram a trazer uma a uma as caixas no organizadas, e de suadiretora poca, Inez Etienne Romeu, que me permitiu consult-lo. O

    funcionamento do Conselho expunha a natureza do "crime", algica do "assassino", o processo de fabricao da "arma", ecolocava-me frente frente com a "vtima".

    O Conselho articulou a elite empresarial paulista aointerventor de Vargas; permitiu que as diversas entidades patronaispudessem cooperar entre si, disciplinando seus conflitos; permitiu

    que as medidas econmicas do governo local e do governo federal,em pleno Estado Novo, fossem discutidas e negociadas; permitiuque as elites empresariais, em especial as industriais, assumissemo controle do processo de distribuio de recursos (polticos eeconmicos) escassos em So Paulo; finalmente permitiu o forta-lecimento de algumas fraes do capital em detrimento de outras.A experincia do Conselho me permitiu completar o argumentoem defesa da idia de que, alm do corporativismo de Estado, oBrasil experimentou tambm o corporativismo societal.

    Foi difcil comear a escrever. Nunca me esqueo da ale-

    gria que tive, quando, folheando uma revista de filosofia poltica,coisa que fazia sempre que me sentia cansada da literatura que era

    obrigada a examinar, encontrei um artigo de Peter Hall (1990)sobre como escrever uma tese. No dizia nada muito diferente doque diziam os professores, mas terminava aconselhando enfatica-

    mente: don't get it right, get it written. Naquele exato momento

    entendi o que me impedia de escrever. Era chegada a hora depassar da posio de leitora posio de escritora exposta cr-

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    A ARMADILHA DOLevuTA

    tica. Era hora de deixar a estrada. As idas e vindas atrs de pistasque surgiam e desapareciam, de atalhos que eram de fato desviosde rota. Aprendi que a pesquisa tem tempos e movimentos queos manuais no contam. O tempo dos erros, dos acertos, doscaminhos exploratrios. Movimentos de ajuste das lentes, do foco;escolha de. outras perspectivas e do melhor (ou de outro) ngulo.Tempo que inclui a relao entre o pesquisador e seu objeto, sem-

    pre complicada. Tentei seguir a estratgia de Auguste Dupin: pordetrs do esforo de identificao, que me ajudava a entend-lo,preservei uma atitude de permanente suspeita2 .

    Hoje estou convencida de que o poeta o melhororientador: el comino, o! viandante, se hace al cominar. O poeta,

    porque poeta, certamente me desculpar por ter esquecido seu nome.

    2 Personagemde Edgar Allan Poe, em"A Carta Roubada".

    20

    INTRODUO

    Este trabalho pretende oferecer mais uma interpretaosobre o. corporativismo no Brasil. Originou-se da minha dificul-dade em entender o modelo brasileiro atravs das postulaesdo corporativismo clssico e das teorias corporativas contem-porneas.

    Embora o Estado brasileiro tenha sido capaz de orga-

    nizar, ao longo dos anos 30, a representao dos interesses dospatres e dos operrios, no se criou aqui aquele espao dedilogo institucionalizado, necessrio colaborao entre clas-ses antagnicas, previsto pela teoria corporativa clssica. Poroutro lado, a participao dos grupos de interesses nas polticaspblicas relativas a esses interesses, que caracterizam os arranjoscorporativos nos pases industriais avanados, foi prtica rotineirano Brasil dos anos 30 e incio da dcada de 40. Refiro-me basi-camente aos conselhos e comisses paritrias, compostos por re-presentantes de interesses de classe e agentes do poder pblico.

    Desde ento, esses mecanismos foram utilizados com eficcia paradiscutir, decidir e implementar polticas pblicas em comum acordo.Se comparados com seus congneres pelo mundo afo-

    ra, percebe-se que, enquanto no Capitalismo desenvolvido elesservem como mecanismos de consulta do governo sociedadeorganizada, mais precisamente aos grupos de interesse e ent id-

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    A ARMADILHA DO LEVIATINTRODUO

    des de classe, e ao entendimento e acordo entre capital e trabalho,no Brasil eles servem apenas ao capital.

    Essa diferena quanto ao mbito da ao organizada dasclasses fundamental para qualificar a estrutura corporativa noBrasil. Aqui, o corporativismo combinou padres organizacionais

    distintos sindicatos e corporaes definindo os limites da aoorganizada de acordo com as desigualdades de classe. Consideraras diferenas entre organizao sindical e organizao corporativa fundamental para se acompanhar o argumento central da teseaqui defendida: noBrasil, os interesses do capital se organizaram

    sob um formato corporativo, enquanto a representao dos inte-resses do trabalho foi organizada sob a forma de um sindicalismotutelado. Essa diferena se expressa na combinao docorporativismo societal com um corporativismo estatal' , que Oli-veira Vianna tratou de distinguir2 , antecipando em quase meiosculo a literatura contempornea sobre o corporativismo nas de-mocracias.

    Por enquanto suficiente observar que a diferena apare-ce de forma mais clara na transformao dos sindicatos operrios,de organizaes de defesa de interesses e luta, que eram, emmecanismos de organizao e controle das reivindicaes da clas-se operria, destitudos de suas funes participatrias e polticas.Os conselhos e comisses tcnicas, compostos por representantesdos sindicatos e/ou associaes patronais, eram os novos espaosde participao, constitudos como mecanismos corporativos porexcelncia. Atravs deles, institucionalizou-se a participao dos

    A coexistncia de tipos diferenciados de corporativismo foi reconhecida porPhilippe Schmitter, e ressaltada por Csar Guimares em "Planejamento, Gru-

    pos Empresariais e Corporati vismo Societal ". Expanso do Estado eIntermediao dos Interesses no Brasil(1979), IUPERJ, Rio de Janeiro.Ver bibliografia consultada por Schmitter ao longo do segundo captulo e nofinal do livro citado na nota acima.

    22

    grupos de interesse do capital na mquina do Estado e nas defini-es da poltica pblica.

    No Brasil, a diferena entre corporativismo e sindicalismono tem sido levada em conta, sendo esses termos utilizados quasecomo sinnimos. Isto deve-se em parte ao fato de o corporativismo

    ter sido entendido como uma estrutura. Se a anlise das estruturasfacilita a apreenso das semelhanas, dificulta, por outro lado acaptura de diferenas, perceptveis apenas no exame de seu funcio-namento e dinmica.

    Trata-se aqui de examinar o desenvolvimento dos proces-sos interativos que antecederam a institucionalizao da estruturade corporativismo no Brasil. Parto da hiptese de que, no Brasil,este sistema de representao de interesses e de participao naformulao de polticas pblicas se desenvolveu no mbito restritodas relaes entre o capital e o Estado, e que sua estrutura resultou

    dos padres interativos produzidos nessas e por essas relaes.A literatura contempornea associa o caso brasileiro ao"corporativismo de Estado". A idia se difundiu porque, alm dese adequar com perfeio estrutura sindical, se ajustava per-cepo generalizada de que o corporativismo fora a grande obra de

    engenharia poltico-institucional, artefato exemplar do engenho earte do autoritarismo dos anos 30.

    Para efeitos de anlise comparada, a noo de corporativis-mo de Estado pode ser til para o estudo das relaes entre Estado eclasse trabalhadora. Entretanto, ela diz nada, ou quase nada, sobre as

    relaes entre Estado e classe empresarial. Quando a anlise privilegiaaspectos estruturais, acaba deixando fora de foco diferenas associa-das a processos polticos, econmicos e sociais que so exatamenteaqueles aspectos que "fazem a diferena" dos tipos de corporativismo:

    Para estes processos, portanto, dirijo o foco da anlise.Nesta perspectiva, as relaes entre a classe patronal e o Estado nopodem ser descritas atravs do conceito de corporativismo de Esta-do, mesmo que este possa corresponder a uma "necessidade estru-

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    AARMADILHA DOLEVIAT INTRODUO

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    tural do Estado autoritrio e de capitalismo atrasado" (Schmitter,1979). Embora o corporativismo societal esteja teoricamente as-sociado ao Estado ps-liberal, ao capitalismo avanado e ao Es-tado de bem-estar democrtico, as relaes entre o Estado brasi-leiro e a classe patronal, ao longo dos anos 30, podem ser melhordescritas atravs deste conceito3 . Este conceito destaca a institu-cionalizao precoce de relaes entre o Estado e o capital, que

    cristalizaram a desigualdade poltica entre as classes.Dizer que tivemos "corporativismo de Estado" para aclasse operria e "corporativismo societal" para a classe patronalno implica dizer que experimentamos dois tipos de corporativis-mo. Se a anlise da dinmica do sistema revela diferenascruciais, que podem ser apreendidas atravs da tipologia deSchmitter, os resultados dessa dinmica demonstram a comple-mentaridade e a "interdependncia conflitante" entre o sistemasindical operrio, o sistema corporativo patronal e o governo nosanos 30, e mais ainda no perodo do Estado Novo 4 .

    A tutela e o controle dos-sindicatos foram pr-requisitospara a consolidao do corporativismo societal no Brasil s . Defen-do a idia de que esse corporativismo, por enquanto dito societal,

    Csar Guimares foi o primeiro a questionar a utilizao generalizada de cor-porativismo de Estado, destacando padres de interao societal como carac-terstica das relaes entre burguesia industrial e Estado, mesmo no fascismo.Para essa questo, ver tambm Roland Sarti, "Fascism and the IndustrialLeadership in Italy , 1919-1940 (1991), University of Califomia Press, Berkeley.Para a idia de complementaridade do conflito de classes, ver Karl Marx em"O Manifesto Comunista"; e para a idia de interdependncia conflitante, verWanderley Guilherme dos Santos, "A Lgica Dual da Ao Coletiva", em

    Dados, vol. 32, n. 1, 1989; e ainda Georg Simmel, Conflit and the Web ofGroup Affiliations, Free Press, New York, London; e em Evaristo de MoraesFilho e Florestan Fernandes (orgs.) (1983), Simmel, tica, So Paulo.Werneck Vianna, trabalhando com o paradigma marxista, ressaltou o pacto

    bilateral entre burguesia _e Estado como caracterstica do corporativismo noBrasil da dcada de 30 ; Angela Castro Gomes assinalou que as barganhas que

    produziram este pacto envolviam o controle da classe trabalhadora.

    desenvolve-se atravs de uma lgica que resultar em um corpo-rativismo predatrio. Seus elementos bsicos so: a competioque se desenvolve no interior do capital e o papel do Estado comoprodutor de bens privados para atores coletivos.

    Analiso exclusivamente o processo de organizao dos in-dustriais paulistas ao longo da dcada de 30 e incio da dcada de 40,tentando mostrar a correspondncia entre o corporativismo desenvol-

    vido no Brasil e as solues encontradas pelos industriais paulistaspara seus problemas de ao coletiva. Neste processo, a organizaodos sindicatos patronais, segundo as regras estabelecidas pelo gover-no, foi ao mesmo tempo mecanismo de organizao do mercado e deacesso da classe patronal mquina do Estado, legitimando sua re-presentao e participao nas decises e implementao de polticaspblicas, em especial na poltica relativa aos direitos trabalhistas.

    Centrada na indstria paulista, a anlise necessariamen-te parcial e seletiva. Sries de eventos so tomadas como ilustra-es para reconstruo e reinterpretao da dinmica dos jogos de

    poder que resultaram no corporativismo brasileiro.No primeiro captulo esclareo a perspectiva adotada,tentando neutralizar os estigmas associados ao conceito para efei-tos de anlise. Revendo a literatura, identifico os problemas edesafios a serem enfrentados. Em seguida, confronto projetos deorganizao do sistema de representao de interesses, elaboradosao longo dos anos 30, tentando mostrar como o debate em tornodas regras que regulamentariam as relaes entre Estado, capitale trabalho expressam, na verdade, o conflito em torno da defini-o das regras do jogo poltico e de seus participantes.

    O terceiro captulo uma anlise do processo de organi-zao da ao coletiva dos industriais paulistas, onde mostro as re-laes entre a organizao da Fiesp-Ciesp e a montagem da estru-tura corporativa. No quarto captulo acompanho a consolidao deum tipo de corporativismo que resultou da competio entre as en-tidades patronais paulistas pela proteo do Estado.

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    Captulo 1

    O CORPORATIVISMO:UM CONCEITO SOMBRA

    At Maquiavel, Estado e sociedade no se diferencia-vam no. "todo orgnico da existncia humana" (Cassirer, 1976).Assinalando diferenciaes histricas, Maquiavel traa os limi-tes entre uma e outra, isolando esferas da vida social at ento

    ligadas e indistinguveis. Desde ento, o debate sobre as rela-es entre Estado e sociedade se desenvolve sombra da uni-dade e organicidde perdidas, reproduzindo-se como utopia aser recuperada pela ao do Estado, do indivduo ou pela aocoletiva.

    A nostalgia da totalidade perdida acompanha, at hoje,teorias e doutrinas que no conseguem se desvencilhar da espe-rana de reunificar um todo, histrico ou imaginrio, seja atra-vs da vontade geral, da fora, da razo, da paixo, da liberda-de, da necessidade ou mesmo da revoluo. Anarquismo, libe-

    ralismo, marxismo, conservadorismo, socialismo, capitalismo,corporativismo e democracia so, sob esse ponto de vista, uto-pias que se diferenciam pela concepo que fazem do todo a serreunificado e pelas propostas para recuper-lo face a um uni-verso submetido lei irreversvel da diferenciao.

    Verso sofisticada da nostalgia utpica a poliarquia(Dahl, 1971). Seu limite o reencontro da sociedade com oEstado. Governo "de muitos", a poligarquia revela na semnti- -

    . A ARMADILHA DO LEVIAT O CORPORATIVISMO: UAI CONCEITO SOMBRA

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    ca a saudade do mundo ateniense, experincia paradigmtica a serrenovada mediante sua re-significao num mundo em que a dife-renciao do Estado como sede do poder t ransformou a naturezado poltico, e no qual a diviso do trabalho recoloca indefinida-mente a questo da recomposio desse todo, seus limites, crit-rios e mecanismos de incluso.

    Sob esse ponto de vista, possvel examinar essas teorias

    como gneros de uma mesma espcie, isolando-as dos eventos eprocessos histricos aos quais ficaram associadas. No se trataaqui de fazer esta avaliao, mas apenas de explicitar a perspec-tiva sob a qual ser examinado o corporativismo no Brasil: umprojeto utpico entre outros e, como os outros, situado no mbitodo debate sobre as relaes entre Estado e sociedade, marcado

    pela nostalgia da totalidade. Como outras utopias, o corporativismotem sua prpria concepo do todo e dos critrios e mecanismosde incluso. Como as outras, seguir a trajetria que lhe serimpressa pela razo e ao dos homens e de suas circunstncias no

    esforo de construir suas instituies.

    sombra de um conceito

    No territrio das utopias, o corporativismo ocupou, e aindaocupa, um espao de contornos imprecisos porque partilhado de umlado, com teorias fundadas na idia da sociedade como totalidade dasrelaes sociais, organizada em grupos, onde a correspondncia entreos interesses desses grupos e a ao do governo seria o fundamentolegtimo do poder pblico'. De outro lado, coabitou e coabita com

    teorias que vem o Estado como portador de um interesse geral, ouagente do interesse comum, detentor do monoplio do poder paraorganizar, sob uma totalidade poltica, os grupos sociais 2 .

    ' Agrupo, nesse caso, liberalismo e pluralismo.2 Refiro-me ao totalitarismo e autoritarismo.

    A temtica do corporativismo se difundiu no Brasil na

    dcada de 30, como rationale do autoritarismo, ficando associadaao fechamento dos partidos polticos, supresso do direito delivre associao e organizao do sistema de representao deinteresses de classe. Idia dominante no perodo, fascinou juristas,militares, intelectuais em geral os catlicos em particular ,identificados com ou refratrios ao novo regime. Para o corpo-

    rativismo confluram naturalmente os diversos e conflitantesprojetos de reorganizao do Estado Nacional no ps 30. Des-ses projetos, ficariam conhecidos aqueles apoiados em versesassociadas ao dos grupos que sucessivamente se destacaram

    pela influncia que exerceram no governo durante o perodo.Os tenentes, seguidos pelos juristas responsveis pelo arcabouolegal da Segunda Repblica e pelos intelectuais catlicos, foramdeixando os traos de seus projetos na reestruturao de umEstado mais racional, menos oligrquico, mais pblico, maisincludente e autoritrio.

    A legislao social, a reorganizao sindical de_1931,a criao dos Tribunais de Trabalho e Juntas de Conciliao, arepresentao classista, a liberdade sindical episdica de 1934,os conselhos tcnicos setoriais e de assessoria governamental,a Carta de 37, a reorganizao sindical de 1939, a Lei doEnquadramento Sindical de 1940, e, finalmente, a Consolida-o das Leis do Trabalho, documentam a institucionalizao deum modelo de relaes entre Estado e sociedade conduzidasvertical e hierarquicamente pelo Estado, conforme regras porele estabelecidas. Era um modelo corporativo de base sindical.

    Nesse modelo cabia ao Estado, personificando o interesse ge-ral, promover a incorporao dos grupos de interesses de classe totalidade do Estado-Nao.

    Este mesmo modelo institucionalizou um outro tipo decorporativismo, caracterizado por relaes de classe horizontais epela participao de grupos de interesse na mquina de governo.

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    A ARMADILHA DO LEVIATO CORPORATIVISMO: UM CONCEITO SOMBRA

    Ele propiciou a autonomia relativa de algumas associaes de classee contribuiu para que elas conseguissem organizar sua ao demercado. Foi um tipo de corporativismo que serviu organizaoe consolidao do associativismo patronal sob padres inteiramen-te diferentes daquele que o corporativismo imps classe traba-

    lhadora. Correspondeu a uma verso desenvolvida por juristaspaulistas, encomendada pela elite empresarial de So Paulo 3 .

    Elaborada como reao ameaa de um corporativismototalitrio imagem do fascismo italiano, articulava-se em tornoda idia de que no Estado corporativo o poder pblico e sua legi-timidade emanam da sociedade civil. Totalitarismo e corporativis-mo seriam, portanto, incompatveis'. Esta verso foi utilizada paraorganizar a resistncia das associaes patronais paulistas reor-ganizao sindical promovida pelo Estado Novo, que contrariava,segundo argumentavam, a evoluo "corporativa natural" de suas

    entidades de classe.Seu primeiro postulado era o da diferena entre sindicatose corporaes. Os sindicatos no eram instituies corporativascomo eram as associaes da classe patronal. Com base na distin-o, sugeriram modificaes no projeto de reorganizao do siste-ma de representao de interesses (Lei Sindical de 1939), que

    propunha a igualdade e simetria organizacional entre todas as as-sociaes de classes, de trabalhadores e de patres. As mudanasno projeto tinham o sentido de garantir a assimetria organizacionalatravs do reconhecimento do status diferenciado das associaes

    civis patronais. A verso empresarial-paulista do corporativismo

    Esta verso ser apresentada no segundo captulo, com base em publicao de1940, da Fiesp: A Constituio de 1937 e a Organizao Corporativa Sindical.

    a As fontes mencionadas em apoio a esse argumento foram Mikhail Manoilesco,Azevedo Amaral, Francisco Campos e Agamenon Magalhes. Ver Fiesp, op.cit. Osjuristas paulistas recorreram tambm aos corporativistas catlicos, sencclicas Quadragsimo Anno eRerrum Novarum, e a alguns italianos.

    foi traduzida juridicamente em um conjunto de emendas e suges-tes de substitutivos lei de sindicalizado de 1939, todas posteri-ormente acatadas pelo legislador, como se ver.

    O conceito de corporativismo foi por muito tempo trata-do, predominantemente, pela literatura jurdica. Embora os estu-dos sobre o Estado no Brasil desemboquem na temtica do corpo-rativismo, poucos analisam o conceito de forma detida. Embora aestrutura corporativa e seus efeitos nas relaes de classe, nocontrole dos trabalhadores, na gnese da cidadania social, sejamvariveis consideradas pela anlise poltica, social e histrica, pou-cos estudos tomaram o conceito como objeto de anlise, exceode Werneck Vianna (1978), Neuma Aguiar (1969), e Amaury de

    Sousa (1978).A democratizao do regime, em 1946, deixa para trs o

    debate poltico sobre o corporativismo, que ficar desde entoassociado ao autoritarismo e organizao compulsria da classeoperria. Sob esta forma retomar 30 anos depois nos estudossobre a classe trabalhadora, onde o sistema corporativo utilizado,via de regra, para explicar a fraqueza da classe e a subordinaodos sindicatos (Simo, 1966), ou ao contrrio, explicado pelafraqueza da classe operria.

    O papel das associaes patronais na consolidao daestrutura corporativa permaneceu por longo tempo protegido daanlise terica. Em parte, a explicao est na identificao docorporativismo com a organizao sindical. exceo de NeumaAguiar (1969) e, posteriormente, Amaury de Souza (1978), no se

    cuidou em diferenciar terica ou empiricamente o corporativismodo sindicalismo, tendo-se perdido de vista seu significado e suareferncia a um modelo mais amplo de representao de interesses'

    (Rodrigues, 1990).No incio dos anos 70, esse significado recuperado e

    difundido por Philippe Schmitter (1971) em sua anlise sobredesenvolvimento poltico no Brasil. Neste estudo ele distingue um

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    A ARMADILHA DO LEVIAT O CORPORATIVISMO: UM CONCEITO SOMBRA

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    "corporativismo natural" como padro de organizao da classepatronal, de um "corporativismo artificial", formato sob o qual seorganizara a classe operria, associando-o, no Brasil, a um conjun-to de caractersticas culturais e comportamentais ligadas a socie-dades tradicionais (Schmitter, 1971, pp. 93 e 98). A distino, feitaa partir da identificao de padres de relao entre Estado esociedade que correspondiam desigualdade de classes, retoma-

    da por Guillermo O'Donnell.Diferenciando o corporativismo na Amrica Latina da-

    quele em desenvolvimento nas sociedades democrticas, O'Donnellidentifica um tipo "bifronte", ao mesmo tempo estatizante e

    privatista, cada uma dessas frontes correspondendo s relaesdesiguais entre o Estado e as classes, em funo da desigualda-de de poder. O corporativismo bifronte associado tambm racionalidade burocrtico-autoritria do Estado moderno

    (O'Donnell, 1982).A conjuno corporativismo-autoritarismo explica a

    marginalizao do tema ao longo da dcada de 70, estimuladapelas perplexidades trazidas pela consolidao da ditadura militar,ao longo da qual os estudos se voltam para a busca de explicaesque dessem conta do que parecia ser uma cultura poltica desen-volvida sob um autoritarismo endmico.

    A reflexo, no entanto, se confrontaria sempre, e de for-mas diversas, com a necessidade de explicar o dilema posto pelaconstatao da existncia de um Estado forte, centralizado, capazde se impor aos interesses da sociedade em geral, e s evidnciasda fora de setores e grupos sociais especficos, que conseguiam

    fazer prevalecer seus interesses e projetos em polticas pblicasdesenvolvidas em nome dos interesses da nao. O esforo derepensar o Brasil orientou-se no sentido de retomar conceitos quetinham servido para pensar o pas e seus problemas.

    A noo de "Coronelismo" (Leal, 1949) e a idia dos"cls feudais e parentais" (Vianna, 1951) foram recuperadas pela

    anlise poltica, na tentativa de compreender a evoluo de umsistema poltico que se implantava como resultado de alianas do

    poder privado com o Estado, e pela predominncia atvica doprivado sobre o pblico. Por outro lado, conceitos como"patrimonialismo" e "estamento burocrtico" (Faoro, 1958) expli-cavam o pas a partir de um autoritarismo gentico. O fato de, noBrasil, o Estado ter se organizado antes da sociedade, impondo-se

    sobre esta, teria sufocado processos autnomos de organizaocujo resultado se via na debilidade da sociedade civil.

    Nessa linha de interpretao, o conceito de "cooptao"daria conta de arranjos neopatrimonialistas resultantes da tensoentre processos de autonomizao da sociedade civil e processosde centralizao do Estado (Schwartzman, 1981).

    Mesmo marginalizada e limitada ao mbito dos estudossobre a organizao sindical, a questo do corporativismo permeiaquase todas as anlises. sua sombra nascem conceitos necess-rios para falar de um sistema de participao desigual e diferencia-

    do na estrutura do Estado, que, evoluindo desde 30, foi reconhe-cido como obstculo democratizao.

    "Capitalismo burocrtico" foi uma das frmulas teis parafazer referncia a este sistema de uma perspectiva estrutural. Indi-cava um tipo de relao entre sociedade e Estado que resultava emformas intervencionistas favorveis a interesses capitalistas priva-dos, agilizadas atravs da burocracia (Prado Jr., 1966). As evidn-cias do fortalecimento e racionalizao da ao do Estado se fa-ziam acompanhar de 'evidncias relacionadas ao de grupos esetores que se fortaleciam no interior mesmo do processo de ex-

    panso do Estado. Esse fortalecimento resultava de um tipo deinterao que se desenvolvia no crculo limitado dos "anis buro-crticos" que substituam os partidos clssicos na articulao entreinteresses econmicos e Estado (Cardoso, 1972).

    Inspirados nas trajetrias clssicas rumo democracia, osgrandes modelos de anlise descuidaram da potencialidade anal-.

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    A ARMADILHA DO LEVIAT O CORPORATIVISMO: UM CONCEITO S OMBRA

    tica de um conceito, aplicando-o descrio de estrutura verticale hierarquizada, sancionada e controlada pelo Estado, associada aoautoritarismo. No entanto, nele acabam desembocando os estudossobre Estado, classes e as relaes entre ambos, tomando-se temarecorrente a partir do trabalho de Schmitter, sem nunca ter sido toma-

    do, no entanto, como objeto especfico e central de anlise.Qualquer levantamento bibliogrfico mostra que o corpo-rativismo foi estudado quase sempre como captulo da histria

    jurdica, doutrinria ou sindical, sendo incorporado anlise po-ltica como dado (Vianna, 1978; Rodrigues, 1990). No tendo sido,no Brasil, objeto de tratamento terico at incio dos anos 70, ocorporativismo tem-se revestido entre ns de significados os maisdiversos (Santos, 1989). Em parte, esta multiplicidade de signifi-cados pode ser atribuda ao fato de ser considerado principalmenteatravs deseus efeitos sobre os diversos e diferentes objetos de

    anlise privilegiados pelos autores. Sua concepo mais difundida,como uma estrutura vertical, hierarquizada e controlada pelo Es-tado, utilizada principalmente nos estudos sobre o sindicalismooperrio, foi aos poucos sendo requalificada. Achados relativos dinmica da ao do Estado e seu papel nas relaes entre asclasses; estudos que se deparam com os condicionamentos impos-tos pela estrutura corporativa ao movimento sindical operrio; tra-balhos voltados para o exame de grupos de interesse: todos apon-tam relaes cada vez mais claras entre o processo decorporativizao e processos interativos mais amplos e includentes.

    Francisco Weffort, definindo o sindicato operrio no Bra-sil como uma "organizao corporativa de classe" (1972), atribuiao corporativismo uma importncia central em sua argumentaosobre o "Estado de compromisso". Portanto, enfatizando averticalidade hierrquica da estrutura sindical, refere-se a articula-es horizontais, vistas como elementos externos ao sistema,explicadas pela "capacidade de resistncia" de alguns setores oupela "tolerncia do governo". levado todavia a reconhecer que

    essas articulaes horizontais "complementavam e dinamizavam aestrutura oficial". Tais articulaes so exatamente o que permite queas relaes entre Estado e patronato escapem rigidez hierrquica quedisciplinava as organizaes dos trabalhadores.

    A idia de Estado de Compromisso fecundou anlises

    posteriores, abrindo espaos compreenso do corporativismo comoum arranjo que se estendia para alm da estrutura sindical verticale subordinada (Rowland, 1974). Associado ao controle e subordi-nao da classe operria, o corporativismo passa a ser percebidocomo mecanismo de distribuio de privilgios a certos grupos daclasse operria (Walker, 1968; Souza, 1978), da classe mdia(Almeida, 1978), e da classe capitalista (Vianna, 1976; Diniz, 1979;Diniz e Boschi, 1979). relacionado tambm ao fortalecimento dopapel poltico do empresariado (Leopoldi, 1984) e ao processo deformao de identidade das classes fundamentais (Gomes, 1979),

    ou ainda expanso da cidadania e incorporao dos atoressociais ao sistema poltico (Santos, 1979).Isto implicava reconhec-T como um fenmeno que en-

    globava outras dimenses, alm da organizacional. O corporativismo

    dizia respeito, portanto, a prticas interativas, polticas pblicas earranjos institucionais diversos (Santos, 1990). sombra da estru-tura corporativa, a compreenso do papel do Estado vai sendoampliada na medida em que vai se tornando cada vez mais neces-srio qualificar o tipo e grau de autonomia que este dispunha nassuas relaes com a sociedade, nas diversas fases de seu desenvol-

    vimento (Almeida, 1978; Vianna, 1976). A anlise do funciona-mento dessa estrutura leva a achados interessantes. Conflitosentre classes te-lo-iamlegitimado nas funes de mediador,(idem).. Conflitos intraclasse estariamna fase da criao de

    estilos polticos como o populismo (Weffort, 1972), e abriamespaos participao de segmentos burocrticos nas decises"sobre os rumos da economia e o destino das instituies pol-ticas" (Almeida, 1978).

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    A ARMADILHA DO LEVIAT O CORPORATIVISMO: UM CONCEITO SOMBRA

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    O tipo de compromisso que garante a estabilidade dosregimes e governos tambm revisto. Nessa linha, WerneckVianna chama a ateno para o papel da estrutura corporativano pacto entre Estado e fraes da classe dominante ao longodos anos 30 (Vianna, 1976). A estrutura sindical, ao legalizar aexcluso poltica dos trabalhadores, evidenciava a parceria da

    burguesia industrial com o Estado na montagem da "estrutura

    sindical corporativa" (idem). A experincia corporativa dos anos30 relacionada, assim, a um pacto bilateral em torno de inte-resses econmicos. Pacto que se acompanhou, entretanto, deuma poltica social. Com uma nica exceo, Wanderley Gui-lherme dos Santos, o pacto do governo com a burguesia indus-trial foi tratada apenas como a contraface da excluso polticae do controle da classe trabalhadora. Talvez por ser "um poucoevidente demais", a associao entre corporativismo e polticasocial no tenha despertado o interesse sobre a microscopia docorporativismo.

    Seguindo as pistas,

    deixadas por Werneck Vianna, umasrie de estudos que se concentram no exame do desenvolvi-mento das associaes patronais vo desembocar tambm nocorporativismo (Diniz, 1978; Boschi, 1978; Gomes, 1979,Leopoldi, 1984; Diniz e Lima Jnior, 1986). Na dcada de 80,o corporativismo incorporado como conceito central na an-lise da poltica brasileira (Reis e O'Donnell, 1988; Boschi, 1991).Esses estudos, alm de imprimirem inflexes contraditrias naavaliao do papel do estado e das classes (Diniz e Boschi, 1991),contriburam para transformar o tema em um quebra-cabea

    emprico e terico.Se para Schmitter tivemos um corporativismo de Esta -

    do, e para O'Donnell um corporativismo bifronte e segmentrio,para Werneck Vianna trata-se de um corporativismo suigeneris.Para Diniz e Boschi, estaramos diante de um corporativismo(de Estado?) "descaracterizado", enquanto Leopoldi identifica

    uma forma privada de corporativismo que fundiu representaode interesse e participao poltica, aplicvel apenas a associaesindustriais. Se, de um lado, o corporativismo identificado comoobstculo consolidao da democracia, por outro, possvel re-conhecer seu papel na industrializao (Diniz e Boschi, 1989, 1990),no alargamento da incorporao poltica (Santos, 1989; Diniz eBoschi, 1990) e seu potencial na extenso da democracia (Reis,

    1989).A diversidade das avaliaes fornece as peas para a mon-

    tagem do quebra-cabeas. Sua soluo poder ser encaminhadaquando acharmos uma maneira de combinar caractersticas aparen-temente contraditrias que revelem a lgica de um modelo derelaes entre Estado e sociedade, que combinou:

    a) interveno do Estado com interferncia da socie-dade no Estado;

    b) subordinao dos grupos de interesse com autono-

    mi de uns e controle de outros;c) mecanismos de incluso social com mecanismos deexcluso poltica;

    d) sistema de proteo social com polticas de acumu-lao de capital e concentrao de renda.

    O corporativismo dos pobres e o corporativismodos ricos

    O retorno temtica do corporativismo e sua difuso

    no pensamento anglo-saxnico resultou do acmulo de evidn-cias de que polticas e processos a ele associados conformavaminstituies slidas nas sociedades pluralistas de capitalismoavanado.

    Tais evidncias produziram um certo desconforto te-rico ligado adequao do conceito, estigmatizado historica-

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    A ARMADILHA DO LEVIAT

    mente, captura de fenmenos que atestavam a falncia dospressupostos liberais relativos ao equilbrio dos mercados e aoequilbrio poltico produzido pelo pluralismo. Mesmo tendo sidofecundo para a anlise de processos em desenvolvimento nasdemocracias modernas, detectados ainda na dcada de 60 nosEstados Unidos (McConnell, 1966; Lowie, 1968), a simplesmeno ao termo corporativismo continua sendo problemtica,

    por evocar "o espectro do fascismo e do governo autoritrio"(Schmitter, 1982).

    Essas associaes no so suficientes, no entanto, paraexplicar a resistncia sua utilizao. Acho mais fcil entend-la pelo fato de que seu ressurgimento emprico desafia hipte-ses que foram transformadas em princpios dogmticos, ocor-rncia comum nas cincias sociais, como h muito nos alertouLowie (1968). Refiro-me particularmente aos postulados sobreas relaes Estado-sociedade e ao dogma da rgida separao

    entre estes domnios, partilhado pelo liberalismo, pelo pluralismoe pelo marxismo. O pavor quanto s implicaes tericas doreconhecimento desta fratura um obstculo real teorizaosobre o corporativismo.

    Associado, em suas postulaes clssicas, idia dasociedade como uma rea multiforme de cooperao (compul-sria ou voluntria), e ao Estado como organizao que atuanecessariamente como catalisador da uniformidade, o corpora-tivismo transforma-se em antema. A resistncia ao conceitoaumenta, diante das manifestaes empricas que ele tipifica. O

    corporativismo revela interaes complexas entre todas as esfe-ras da vida social e econmica, combinadas expanso do papeldo Estado moderno que, conseqentemente, tem sido levado a in-tervir na sociedade com freqncia cada vez maior. O corporativismodiz da institucionalizao de relaes entre a sociedade e o Estado que

    no obedecem aos padres previstos pelo pluralismo ou pelo marxis-mo. So relaes que se desenvolvem a partir do movimento real da

    O CORPORATIVISMO: UM CONCEITO A SOMBRA

    sociedade e que transformam o Estado, sua ao e a prpria socie-dade, redefinindo o grande jogo social'.

    Uma vez percebido como fenmeno emprico, o corpora-tivismo transforma-se em desafio terico. Estado, mercado e orga-nizao dos grupos de interesse no podem continuar sendo enten-didos nos termos clssicos da dogmtica liberal, pluralista oumarxista. Embora j exista um nvel satisfatrio de consenso sobrea necessidade de reviso conceituai, ela tem se caracterizado porum paradoxo. Enquanto o debate vem se mantendo dentro doslimites rgidos do discurso das disciplinas, os estudos sobre asformas contemporneas de corporativismo ultrapassam esses limi-tes. A meu ver, a conteno deve-se em parte ao fato de que adiscusso provoca o rompimento desses limites. No gratuito ofato de que o conceito venha sendo aplicado anlise de sistemaseconmicos, de sistemas polticos e de sistemas interativos (Cawson,1986; Lehmbruch, 1982).

    A resistncia se reflete na teoria. Manifesta-se, por exem-plo, na transformao do debate terico em uma competio entrepropostas de organizao da sociedade e do Estado, corporativis-mo versuspluralismo, principalmente na literatura anglo-saxnica .Pode surgir de forma mais velada, em formulaes fundadas numaempiria rigorosa, numa depurao conceitua) que limita paradoxal-mente sua aplicao ao estudo das democracias capitalistas avan-adas, trazendo problemas para o estudo da experincia brasileira.

    Como se sabe, o desenvolvimento desses estudos no Bra-sil foi liderado por Philippe Schmitter. Sua tipologia, hoje clssica,

    Estou me valendo parcialmente de uma idia de Emest Barker sobre modelosde relaes entre Estado e Sociedade, com base em concepes antigas . emodernas de sociedade e Estado. Sir Emest Barker, Teoria Poltica Geral(1978), EUB, Braslia.O exemplo mais conhecido desse tipo de polmica foi a discusso entre CollinCrouch e Ross Martin, nas pginas de Political Studies, entre setembro de1983 e maro de 1984. Ver tambm Schmitter, 1979; Cawson, 1986; Almond,1983; e Beyme, 1983.

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    A ARMADILHA DO LEVIAT O CORPORATIVISMO: UM CONCEITO SOMBRA

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    cuidou em diferenciar gneros da espcie corporativa. Agrupousob o tipo Corporativismo de Estado estruturas formadas por ini-ciativa ou legitimao do Estado. A base emprica deste tipo eraconstituda por experincias vividas em pases sob regimes au-toritrios e capitalismo atrasado. O gnero Societal agrupavaestruturas formadas a partir de iniciativas da sociedade, servindopara fazer referncia a padres associativos modernos, caracters-

    ticos de regimes no-autoritrios (mas centralizados), na rbita docapitalismo.A distino, fundamental, acabou sendo absorvida de forma

    enviesada, face necessidade de se distinguir uma nova espcie decorporativismo ("moderno", "democrtico", "pluralista", reserva-do s sociedades desenvolvidas) do velho tipo estigmatizado, as-sociado em princpio ao mundo subdesenvolvido (Santos, 1993). claro que diferenas desse teor so relevantes. O que acontece,porm, que se trata de diferenas que se manifestam apenas doponto de vista macroanaltico. Quando se compara instituies,interaes e o funcionamento dessas estruturas, as diferenas sediluem, ficando por explicar exatamente as semelhanas entre

    processos e interaes no interior dessas estruturas.O problema, no caso brasileiro, como articular teoria

    mais recente achados que indicam a emergncia de formas societaisde corporativismo no Brasil dos anos 30, ao longo de um perodoautoritrio, em condies de um capitalismo precrio e de ummercado fragmentado e incipiente. Os estudos estimulados pelapotencialidade comparativa da tipologia de Schmitter se desenvol-veram a partir do exame das estruturas corporativas e se concen-traram na .anlise dos pases anglo-saxnicos. A estratgia de

    priorizar a anlise comparada de estruturas de representao dospases europeus e nrdicos contribuiu para difundir a associaoentre corporativismo societal e sociedades pluralistas de capitalis-mo avanado, atravs de conceitos elaborados a partir de variveise indicadores retirados desse contexto.

    O rigor emprico ajustava-se com perfeio necessidadede dissociar processos corporativos observados nos pases anglo-saxnicos, daqueles observados na Amrica Latina. Um dos efei-tos dessa opo metodolgica foi a marginalizao de um compo-nente central e nuclear do conceito: sua referncia a um tipo deinterao e arranjo poltico-institucional resultante da necessidadede organizar conflitos de interesses, sejam estes conflitos entre

    fraes de classe ou entre classes. A lacuna maior , no entanto,a perda de sua dimenso participativa.Recuperar essa dimenso foi uma das preocupaes

    desta anlise. Os processos interativos aqui reconstrudos po-dem ajudar a precisar a natureza do espao poltico criado pelocorporativismo, que no se forma exclusivamente dentro doEstado, nem exclusivamente dentro da sociedade. um novoespao, onde o jogo poltico se desenvolve dentro de regrasestabelecidas na interao dos atores e no apenas em funodo sistema de governo stricto sensu. A recuperao dessa di-

    menso, mesmo que observada na perspectiva do associativismopatronal, pode contribuir para encontrar alternativas para umateoria poltica comparada sobre o corporativismo (Crouch, 1984;Lehmbruch, 1982).

    Critica-se seu uso indiferenciado para fazer referncia asistemas econmicos, formas de Estado e sistemas de intermediaode interesses (Panitch, 1980). Este foi, no entanto, outro resultadoda preferncia pelas abordagens macroanalticas. O esforo com-parativo exigiu do conceito uma elasticidade que acabou por diluirdiferenas fundamentais entre os casos nacionais analisados. Poroutro lado, as exigncias quanto a uma operacionalizao rigorosarestringiram sua aplicao a contextos de capitalismo e democra-cia avanados. Em alguns casos, a rejeio ao termo, combinadaao reconhecimento de sua fecundidade analtica, inspirou sua subs-tituio pelas expresses "capitalismo organizado" ou "pluralismoavanado" (Sholten, 1987).

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    AAR.u1DILHA DO LEVIATO CORPORATIVISMO: UM CONCEITO S OMBRA

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    Alguns desses problemas vm sendo solucionados no m-bito mesmo desses estudos. A definio j clssica do corpora-tivismo como uma estrutura de representao de interesses com-

    posta por um nmero limitado de organizaes compulsrias, fun-cionalmente diferenciadas, organizadas hierarquicamente, no-com-petitivas, reconhecidas ou licenciadas (seno criadas) pelo Estado

    que lhes concede deliberadamente o monoplio da representao,d especial destaque a relaes verticais no interior dessa estrutu-ra . Lehmbruch, adotando essa abordagem, analisa estruturas for-madas no interior de sociedades democrticas de capitalismo avan-ado. Seus achados orientaram-no para a nfase nas relaes ho-rizontais. Assim, para Lehmbruch (1981), o modelo corporativo dearticulaes de interesses um modelo institucionalizado de for-mao de polticas pblicas, no qual as grandes organizaes deinteresse colaboram entre si e com a autoridade pblica, no s naarticulao e intermediao de interesses, como tambm na

    implementao de polticas decididas atravs de negociaes eacordos envolvendo atores coletivos estratgicos: capital, trabalhoe Estado.

    O desenvolvimento dos estudos comparativos com basenas estruturasrevelou, no entanto, a inexistncia de um padroinstitucional uniforme, capaz de identificar por si s os arranjoscorporativos. Alm disso, evidenciou tambm que no existem

    padres institucionais especficos que levem necessariamente emergncia do corporativismo (Lehmbruch e Schmitter, 1982).

    O acmulo de obstculos ao desenvolvimento de uma teo-

    ria sobre o corporativismo redirecionou os estudos para os proces-sos interativos entre atores coletivos e Estado (Cawson, 1986).

    Nessa linha, o corporativismo tem sido tratado como um processoque se desenvolve na interao entre grupos que detm o monop-lio da representao de interesses, e agncias do Estado, em tomode polticas relacionadas a esses interesses. Essas interaes en-volvem trocas que viabilizam a implementao dessas polticas e

    a prpria funo de governar (Cawson, 1986). A abordagem liberao conceito de constrangimentos impostos anlise comparativa,permitindo generalizaes no nvel microanaltico. Possibilita ain-da acompanhar o desenvolvimento de estruturas atravs da organi-zao e institucionalizao dos grupos de interesse, como resulta-do de interaes especficas e diferenciadas. Nesta perspectiva, aspeculiaridades dos arranjos corporativos so relacionadas a inter-dependncias estruturais ou conjunturais entre Estado, classes egrupos de interesse (Cawson, 1986).

    O reconhecimento dessas interdependncias pode expli-car a emergncia de arranjos que se institucionalizaro, ou no. Anatureza e o tipo de interdependncia que se refletem na incorpo-rao de grupos organizados mquina do Estado, ajudariam aexplicarpor que oarranjo corporativo exige um nmero limi-tado de organizaes, o monoplio da representao, estruturashierarquizadas, e a participao dos grupos nas decises sobre

    polticas a serem implementadas. A dimenso participativa doconceito recuperada quando a anlise se desloca da estruturapara os processos. Decises de Estado, envolvendo interessesconflitantes, exigem consulta, participao e colaborao dos gru-

    pos interessados. Da a formao de um espao poltico diferenci-ado: o espao corporativo, habitado por atores coletivos que po-dem, eventualmente, ser pensados como corporaes, em aluso asuas origens remotas.

    O deslocamento d visibilidade s interaes conflitivase cooperativas, ajudando na compreenso de processos de con-

    solidao de estruturas corporativas. Permite ainda explicarquando e por que essas estruturas se consolidam, incluindo gru-

    pos ou classes estrategicamente interdependentes entre si e emrelao ao Estado, da mesma forma que pode explicar a exclu-so de grupos ou classes. O deslocamento do foco de anlise,das estruturas para os processos interativos, foi viabilizado atra-vs do conceito de intermediao de interesses (Schmitter, 1979,

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    1982; Lehmbruch, 1981). possvel, com este conceito, dife-renciar em nvel microanaltico arranjos corporativos e arranjos

    pluralistas.O conceito de intermediao de interesses refere-se ao

    papel de organizaes que, por serem de fato e dejure represen-tativas, tm condies de garantir e implementar os acordos feitos.A capacidade de garantir o cumprimento dos acordos feitos umadas condies necessrias incluso de determinado ator coletivona estrutura de poder. ela que permite a fuso da "participao"com a "representao" que garante a implementao de polticaspblicas decididas atravs da negociao e do acordo. Isto signi-fica que polticas decididas com base em acordos sero de fatoi mplementadas (Cawson, 1986). O conceito especialmente tilna identificao de arranjos corporativos onde quer que se mani-feste esta interao complexa que envolve grupos e classesconflitantes e Estado, liberando a utilizao da idia da racionalidadeque subordina sua incidncia estrutura do sistema como um todo.Ou seja, atores podem entrar em interaes corporativas sem queo sistema poltico no qual interagem se caracterize como corporativoem sua totalidade.

    Nesse sentido, o conceito de intermediao permite ana-lisar a questo do autoritarismo versus democracia. E traz impl-cita a distino entre mediao e intermediao. Ajustes mediadosatravs da autoridade pblica se aproximam de relaes de natu-reza autoritria. Ajustes intermediados entre representantes e re-presentados implicam procedimentos democrtico-pluralistas liga-dos ao reconhecimento da legitimidade dos atores e de seus inte-resses diversos e/ou antagnicos.

    Embora a coero seja um elemento crucial na organiza-o dos grupos em sociedades pluralistas ou no (Olson, 1976), acapacidade de coagir e controlar pode ser obtida sem a ajuda doEstado (arranjos pluralistas), ou com a ajuda do Estado (arranjoscorporativos).

    Relaes de intermediao levam ' a reformulaes,redefinies ou alteraes de prioridades, atravs de um pro-cesso de adequao ou "nivelamento" dos interesses ou senti-mentos (como diria Adam Smith), que possibilitaria os acordos.A capacidade de intermediao pode ser exercida numa relaodemocrtica com o Estado e autoritria com os representados,ou vice-versa, permitindo maior refinamento analtico no que

    diz respeito avaliao do grau de fechamento (autoritarismo) ede abertura (participao) dos sistemas de intermediao.

    Avaliar se um determinado sistema democrtico ouautoritrio passa a exigir a avaliao das formas atravs dasquais a capacidade de intermediao exercida no interior dasinstituies, e do tipo de articulao com o patamar superior(governo) e com o andar de baixo (representados). Trata-se deexaminar as formas atravs das quais os representados so obri-gados a cumprir os acordos feitos entre seus representantes e oEstado. O modo pelo qual obtida a capacidade de obrigar o

    cumprimento dos acordos diferencia o corporativismo dos sis-temas pluralistas de representao de interesses (Crouch, 1983;Schmitter, 1979; Cawson, 1978; Panitch, 1974; Lehmbruch,1979).

    O exame de processos interativos pode mostrar variaesque dependem dos atores envolvidos e do contedo da interao(Cawson, 1986; Santos, 1990). Arenas de interesse especfico legislao tarifria, legislao social, poltica industrial e acor-dos necessrios implementao de polticas especficas podemdar surgimento a arranjos corporativos parciais que envolvem ape-

    nas grupos estratgicos, afetando, no entanto, os demais gruposno envolvidos nas barganhas e negociaes. Nesses casos, o cor-porativismo um tipo de cooperao que envolve apenas aquelesatores coletivos mais organizados, mais fortes e com maior poderde barganha e negociao (Manoilesco, 1938; Cawson, 1986).Interaes deste tipo foram identificadas por Cawson em sistemas

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    A ARMADILHA DO LEVIAT O CORPORATIVISMO: UM CONCEITO A SOMBRA

    polticos democrticos, como constitutivas do que ele chamou decorporativismo setorial ou intermedirio (sectoral meso-level). este tipo de relao que me interessa, porque se aproxima do tipode relao entre burguesia industrial e Estado, que caracterizou ocorporativismo no Brasil.

    A literatura consagrou a expresso corporativismo preda-trio (Santos, 1990) para nomear as relaes referidas acima. Aidia de predao implica a destruio da presa. Mas outro termo

    pode completar a descrio dessas relaes. A idia de parasitaexpe com clareza a coerncia interna de um modelo que combi-nou interveno estatal com a interferncia de grupos de interesseem polticas pblicas, em benefcio prprio; que comportou a au-tonomia da classe patronal, obtida sombra da proteo do Estadoe apoiada no controle e fragmentao da classe trabalhadora; quecombinou excluso poltica com incluso social e, finalmente, com-binou cidadania com desigualdade.

    Parasitismo e predao descrevem bem os resultados deum processo que se desenvolve a partir de' interdependncias es-truturais e/ou conjunturais, que ajudam a entender o fortalecimen-to do poder poltico e poder de mercado dos grupos de interesseque foram incorporados mquina decisria do Estado. A incor-

    porao , ao mesmo tempo, causa e efeito do crescimento dacapacidade de interveno do Estado, estabelecendo-se uma cor-respondncia entre a concentrao de poder do mercado e a con-centrao do poder poltico dos grupos de interesse e do Estado(Cawson, 1986).

    Este resultado descreve apropriadamente a paisagem po-ltico-econmica do Brasil em meados da dcada de 40, quando seinicia a democratizao do regime. A representao partidria e a

    participao eleitoral, que recriavam a democracia, no teriam ne-nhuma utilidade, sendo inteiramente dispensveis ao capital emesmo ao trabalho, j integrados ao sistema de forma organizada,no interessados nem dispostos a abrir mo do monoplio da re-

    presentao de seus interesses. A estrutura corporativa fora edificadaem bases slidas e resistir aos tempos.

    Sendo o monoplio de representao a condio sine qua

    non de qualquer tipo de corporativismo, ele est necessaria-mente ligado questo da ao coletiva. O monoplio da repre-sentao, como condio necessria de arranjos corporativos,indica que o corporativismo requer que j tenham sido ou quesejam solucionados os problemas de organizao dos interes-ses. Deste ponto de vista, o "corporativismo de Estado" aque-le no qual o Estado impe sua prpria soluo aos problemasde ao coletiva. No caso brasileiro, o conceito parece apropriadopara falar da organizao dos trabalhadores.

    O corporativismo societal corresponderia aos casos emque esses problemas so solucionados pelos prprios atores eminterao com o Estado. No caso brasileiro, este conceito serve

    para descrever a interao entre as elites industriais paulistas e

    o Estado, sob um regime autoritrio em um contexto de capita-lismo atrasado.

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    PROJETO CORPORATIVO E

    CONFLITO DE ELITES

    Captulo 2

    No Brasil, a predominncia do interesse privado e a apro-priao privada dos recursos socialmente gerados e geridos peloEstado, esto indissoluvelmente associadas ao corporativismo. Emoutros contextos, prticas semelhantes esto associadas ao libera-lismo. Esta curiosa convergncia de resultados derivados de pr-ticas via de regra contraditrias pode ser relacionada ao formato

    paradoxal que o corporativismo assumiu entre ns.Arranjos corporativos so frmulas de institucionalizaodo conflito de classes, levando-as ao dilogo ou a regras mnimasde convivncia sob a arbitragem do Estado. Entre ns este arranjoproduziu o completo distanciamento das ciasses que supostamentedeveria aproximar. Organizando-se em estruturas paralelas, semnenhuma articulao institucionalizada entre si, as entidades repre-sentativas da classe patronal e da classe operria nunca chegarama esse suposto espao de interlocuo que deveria ser criado pelocorporativismo. Como entender este desvio de rota?

    Trato desta questo examinando diferentes projetoscorporativos. Seus portadores eram o governo central, a burocraciado Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio (MTIC) e a eliteempresarial paulista. A anlise restringe-se ao perodo compreen-dido entre 1930 e 1945. Minha preocupao apresentar os vriosprojetos de modo a diferenciar as linhas de divergncia ou conver-

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    A ARMADILH ADO LEVUT PROJETO CORPORATIVO E CONFLITO DE ELITES

    gncia que entrelaam projetos ainda em gestao. Analis-los uma primeira forma de abordar o campo a ser explorado. As fontesde informao sobre os projetos so:

    a) a legislao sindical e a Carta Outorgada de 37, comoevidncias do projeto do governo;

    b) duas publicaes de Oliveira Vianna serviro comofontes de informao sobre o projeto da burocracia:Problemas de Direito Corporativo (1938), no qual ex-pe sua concepo de corporativismo, e Problemas deDireito Sindical (1943), onde explica terica e politi-camente sua oposio verso paulista do corpora-tivismo;

    c) o projeto corporativo da elite empresarial paulista seranalisado com base em uma publicao da Fiesp, demaio de 1940: A Constituio de 10 de novembro de1937 e a Organizao Corporativa e Sindical.

    Estudos sobre as relaes entre Estado e classe patro-nal no Brasil referem-se repetidamente polmica travada nai mprensa, por volta de 1940, entre o presidente da Confedera-o Nacional da Indstria, Euvaldo Lodi (engenheiro, deputadofederal de 1934 a 1937), e Oliveira Vianna, consultor jurdicodo Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio, de 1932 a1940 (Almeida, 1978; Leopoldi, 1984). Em causa, o modelocorporativo institudo pela Carta de 1937 e o formato a ele

    i mpresso pelos juristas do Ministrio, na lei de sindicalizaode 1939' . Essa discusso correspondia, na verdade, ao paroxis-mo de um conflito iniciado em 1931. Dele nos fala Evaristo de

    Para acompanhar a discusso, verJornal do Comrcio, 12.05.1940; 19.05.40;02.06.40, Rio de Janeiro. Ver tambm FIESP, A Constituio de 37 e a Orga-nizao Corporativa Sindical de So Paulo, maio de 1940.

    Morais Filho comentando a hostilidade do empresariado ao Mi-nistrios.

    Segundo Evaristo, desde ento o empresariado financiavacampanhas sistemticas na imprensa, difundindo a idia de que oMinistrio estaria inventando a luta de classes ou, mais precisa-mente, inventando a questo social no Brasil. O conflito recrudes-ce em 1936, dessa vez em torno do projeto de reorganizao daJustia do Trabalho, elaborado pelo MTIC, sob a liderana deOliveira Vianna, em cumprimento da agenda de regulamentaode dispositivos da Constituio de 34. Vem a pblico, por inicia-tiva do prprio Oliveira Vianna, em defesa contra as crticas dos

    paulistas trazidas ao plenrio da Cmara Federal por WaldemarFerreira, deputado paulista, jurista, catedrtico da Faculdade deDireito de So Paulo2 .

    Em 1939, o debate em torno da definio das regras queregulamentariam as relaes entre capital e trabalho se transformaem um conflito em torno da definio das regras do jogo polticoe de seus participantes. Vem a pblico novamente, entre maio -e

    junho de 1940, quando, motivada pela publicao do D.L. 1.402,de 05.07.39, que regulamentava a associao sindical, a elite paulista

    reage, enviando extensa representao ao Ministro do Trabalho.Esse documento, publicado em maio de 1940 pela Fiesp, resultoude um esforo conjunto das principais entidades da classe patronalpaulista, reunidas na Fiesp, sob a liderana de Roberto Simonsen,durante o segundo semestre de 1939'.

    Compunham a Comisso encarregada do projeto: Oliveira Vianna, Luis Augustodo Rego Monteiro, Deodato Maia, Oscar Saraiva, Geraldo Augusto de Faria .Batista e Helvcio Xavier Lopes. Ver Oliveira Vianna, Problemas de DireitoCorporativo (1938), Jos Olympio, Rio de Janeiro.Dele participaram representantes da Associao Comercial de So Paulo(ACSP), do Instituto de Engenharia de So Paulo (IE), do Instituto dosAdvogados de So Paulo (IASP), da Bolsa de Mercadorias de So Paulo,da Federao das Indstrias Paulistas, e da Federao Comercial de SoPaulo (FCSP), e ainda consultores jurdicos dessas entidades.

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    PROJETO CORPORATIVO E CONFLITO DE ELrrS

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    Refluindo para o crculo fechado dos atores diretamenteenvolvidos, o conflito se estenderia at 1943, resolvendo-se, aoque tudo indica, na Consolidao das Leis do Trabalho. A soluoda questo via CLT revela porm um equilbrio precrio. Se, porum lado, a CLT consagrava uma legislao que obedecia, na letrada lei, s diretrizes da burocracia do Ministrio, por outro, incluadispositivos de exceo que abriam elite empresarial os espaos

    reivindicados pela elite paulista, garantindo sua participao nadefinio das regras de funcionamento do sistema de representa-o de interesses no Brasil, naquela poca4 . A CLT, mais queconsagrar os direitos dos trabalhadores, expressa o acordo entreburguesia e Estado, sobre os limites do exerccio desses direitos,do ponto de vista poltico.

    Os sinais dessa negociao precedem a consolidao dasleis trabalhistas. O mais ostensivo deles a nomeao de MarcondesFilho para o Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio. Advo-gado paulista, amigo pessoal de Roberto Simonsen, estreitamenteligado elite empresarial paulista, Marcondes Filho vai liderar oesforo de articular grupos at ento em conflito, para os acordosnecessrios aprovao da CLT. De fato, tratava-se do acordo queinstitucionalizaria o corporativismo (Gomes, 1988, pp. 199-200;Leopoldi, 1984). Antecipando a exposio dos projetos que ani-maram o conflito, podemos assinalar os objetivos bsicos decada um deles.

    Para o governo, o corporativismo era, antes de tudo, umprograma de integrao dos atores produtivos ao Estado, sob sua

    Ver Oliveira Vianna, Problemas de Direito Sindical (s/d.), Max Limonad, Riode Janeiro. Neste trabalho, Oliveira Vianna aponta cuidadosamente os pontosnos quais os industriais paulistas "conseguiram ser atendidos" (pp. 254-258),onde "conseguiram vencer" (p. 260), e onde venceram "integralmente", tendosido adotada "soluo intermediria" (p. 261). Ver tambm Philippe Schmitter,

    Interest Conflict and Political Change in Brazil (1971), Stanford UniversityPress, Stanford.

    coordenao e vigilncia. Suporte do interesse coletivo, o Estadorenascia em oposio aos interesses privados de cls e de grupos,e s mquinas partidrias que sustentavam seu domnio.

    Deslegitim-las implicava a substituio dos sistemas de lealdadetradicionais por um outro que transferisse essa lealdade ao Estado.

    Nesta perspectiva, o corporativismo foi visto como frmula derepresentao da nao no Estado e pelo Estado. A realizao

    deste projeto implicou a redefinio do significado, limites e na-tureza do pblico e do privado.Impulsionando reordenamentos sociais a partir da

    mobilizao associativa, por ele mesmo estimulada, o governosobrecarregava sua agenda, aumentando o potencial latente de crises.

    No lhe restaria outra sada a no ser posicionar-se frente s foraspor ele mobilizadas e com elas interagir de acordo com o potencialdisruptivo de cada uma. Represso e/ou cooptao.

    Para Oliveira Vianna, problemas de integrao, participa-o e representao, no Brasil de sua poca, eram problemas po-

    ltico-administrativos que exigiam a soluo de um problema pr-vio e original: o conflito distributivo. Tentar solucion-lo atravsdo livre confronto entre foras dotadas de recursos organizacionaisdesiguais, seria invivel. A possibilidade de conflitos entre a foraeconmica e a fora das massas desorganizadas exigia um esforode preveno que s o Estado poderia realizar, estabelecendo asregras necessrias superao e soluo do conflito distributivo.

    A natureza tica dessa ao preventiva determinava anatureza do mecanismo a ser criado. Se a questo era de justia eequilbrio de poder, o mecanismo deveria ser jurdico. O corpora-

    tivismo era para ele um projeto essencialmente normativo. Trata-va-se conseqentemente de criar o conjunto de mecanismos neces-srios a garantir normas de justia e progresso social. O edifcio

    jurdico-organizacional imaginado por Oliveira Vianna jamais saiuda prancheta. Em seu lugar levantou-se um outro que de fato seapoiaria nos pilares e vigas desenhados por Oliveira Vianna: o

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    A ARMADILHA DO LEVIAT

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    A ARMADILHA DO LEVIATPROJETO CORPORATIVO E CONFLITO DE ELITES

    sindicato nico com o monoplio da representao, o imposto sin-dical obrigatrio, a justia do trabalho e a separao entre sindi-catos patronais e sindicatos operrios.

    Assumindo o papel de condutor do conflito distributivo, oEstado tratisformava-se no coringa capaz de substituir as foras dotrabalho, excluindo-as do jogo poltico. Ao reorganizar os trabalhado-

    res, dividindo-os por categoria profissional, o Estado criou obstculos unificao da classe trabalhadora. Definindo pr-requisitos para acriao de federaes e proibindo a formao de confederaes dotrabalho, o governo inviabilizou sua inteno manifesta de reorganizaro sistema de representao de interesses em moldes corporativos, com

    o objetivo de equilibrar o poder organizacional entre as classes.As associaes patronais escaparam fragmentao pro-

    posta pelo projeto, em parte por no se identificarem como asso-ciaes profissionais e em parte pela habilidade que adquiriramem driblar a letra da lei. Paradoxalmente o resultado foi a insti-

    tucionalizao do desequilbrio de foras e da assimetria orga-nizacional que o corporativismo pretendia corrigir. - absoluta-mente correta a percepo da classe empresarial paulista de que oMinistrio do Trabalho estava criando a luta de classes. Se entender-mos, obviamente, que esta luta s possvel atravs do equilbrio deforas antagnicas. O corporativismo proposto pelo MTIC visava estasimetria. A recusa da elite patronal em reconhecer a legitimidade dolugar dos trabalhadores neste sistema, dando-lhes voz e voto, aorigem da perverso da utopia de Oliveira Vanna.

    O projeto paulista, como veremos, embora afinado doutri-

    nariamente com Oliveira Vianna, neutralizava a estratgia do Mi-nistrio do Trabalho. At 1937, esta estratgia permitiu s elitespaulistas dar impulso sua organizao, enquanto a classe traba-lhadora foi duramente controlada, quando no, reprimida.

    Depois de 1937, o mpeto centralizador do Estado revigo-ra-se, fazendo-se acompanhar, no entanto, de um propsitoindustrializante que possibilitar uma interao especial entre o

    Governo e a indstria paulista. Compatibilidde de interesses eincompatibilidade de objetivos constituem o dilema a ser superado

    pela elite empresarial paulista em suas relaes com o Estado.Sua defesa foi entender aos limites a doutrina corporativa

    clssica: a fonte de toda legitimidade a sociedade e difere da

    legalidade que se origina no Estado; autonomia no se delega;direitos no so prerrogativas; interesses privados so pblicos,quando dizem respeito a coletividades; as coletividades se formamterritorialmente, em funo dos interesses de regies economica-mente homogneas, com o objetivo de solucionar problemas co-muns. Com estes pressupostos, o corporativismo imaginado parasubstituir a representao poltica de interesses locais, at entomonopolizada pelos partidos polticos, torna-se, na mo dos

    paulistas, instrumento de defesa de interesses locais privados, re-presentados agora pelas associaes da indstria e do comrcio.

    Quadro 1

    Governo organizar o Estado-Nao;subordinar a sociedade;

    disciplinar os conflitos de classe.

    Oliveira Vianna

    (Burocracia)

    organizar as relaes de classes;equilibrar o poder organizacional das classes;solucionar legalmente os conflitos de classe.

    ElitePaulista

    representar seus interesses;articular e encaminhar suas demandas ao governo;

    participar das decises governamentais queenvolviam seus interesses.

    O Quadro 1 sintetiza toscamente as diferentes expectati-vas desses atores em relao ao corporativismo.

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    PROJETO CORPORATIVO E CONFLITO DE ELITES

    http://co-muns.com/http://co-muns.com/
  • 7/23/2019 A Armadilha Do Leviat

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    Considerando as diferenas, possvel dizer que o re-sultado final foi frustrante para Oliveira Vianna, enquanto ogoverno viu em parte realizado o seu programa. Pode-se atri-

    buir elite empresarial paulista um resultado mais que satisfa-trio. Os mecanismos imaginados para a realizao de objetivosdivergentes acabaram por servir aos interesses comuns do go-verno e da elite empresarial. Para justificar esta avaliao, passo

    exposio cuidadosa dos diversos projetos.

    A reorganizao do Estado-Nao

    A inteno de modificar o sistema representativo anun-ciada por Vargas a 2 de janeiro de 1931, decorridos menos detrs meses da vitria do movimento de 30. Era necessrio "ex-tirpar as oligarquias polticas, estabelecendo a representao

    por classes, em vez do velho sistema da representao indivi-dual, to falho como expresso da vontade popular". Vargasainda que adverte: "O Estado, que a sociedade organizada,dirigido e impulsionado pelo interesse pblico, nesse somente,deve encontrar os limites normais a seu poder de interveno"(Vargas, 1931).

    Motor e limite do Estado, o interesse pblico deverias