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MELPE. São Paulo, n. 8, junho de 2018. 144 Leitura de texto literário em contexto escolar: contos de Clarice Lispector e Guimarães Rosa RESUMO: Este projeto de implementação de sequência didática teve como objetivo promover uma experiência de leitura literária para alunos de Ensino Médio. Buscou-se, para tanto, uma alternativa à prática escolar comum que, ao introduzir um autor, parte de seu lugar na História da Literatura, seguindo os padrões do livro didático. Assim, a metodologia empregada procurou privilegiar o texto literário propriamente dito, acompanhado de uma sensibilização para a figura do autor enquanto personalidade também construída literariamente. O trabalho enfrentou o desafio de considerar a centralidade do papel ativo do aluno na construção dos objetos ensinados, uma vez que a sua participação, tanto nas leituras coletivas, quanto nas produções textuais resultantes destas, foi condição para o êxito do projeto. O conteúdo a ser ensinado se baseou em uma seleção de contos de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, bem como em documentos relacionados à vida ou à obra de ambos (entrevistas audiovisual e transcrita, fotos, textos críticos). O projeto foi implementado em uma escola pública de Ensino Médio e Técnico, localizada no bairro de Pinheiros, em São Paulo, especificamente para as turmas de Marketing e Edificações do 3º ano, em horário normal de aula, numa sequência de dez aulas para cada grupo. PALAVRAS-CHAVE: Conto; Ensino Médio; Escola Técnica; Leitura; Texto Literário. DAIANE WALKER ARAUJO Professora de Francês na Aliança Francesa de São Paulo. Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (2017). Estágio de pesquisa na Universidade Católica Portuguesa (Lisboa, 2016). Graduação e Licenciatura em Letras (Português e Francês) pela Universidade de São Paulo (2014). Intercâmbio acadêmico na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis (Paris, 2013), na área de Letras Modernas. Temas de pesquisa: Literatura Portuguesa; Ensino de Literatura e de Francês Língua Estrangeira (FLE).

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MELPE. São Paulo, n. 8, junho de 2018. 144

Leitura de texto literário em contexto

escolar: contos de Clarice Lispector e

Guimarães Rosa

RESUMO: Este projeto de implementação de sequência didática teve como objetivo promover uma experiência de leitura literária para alunos de Ensino Médio. Buscou-se, para tanto, uma alternativa à prática escolar comum que, ao introduzir um autor, parte de seu lugar na História da Literatura, seguindo os padrões do livro didático. Assim, a metodologia empregada procurou privilegiar o texto literário propriamente dito, acompanhado de uma sensibilização para a figura do autor enquanto personalidade também construída literariamente. O trabalho enfrentou o desafio de considerar a centralidade do papel ativo do aluno na construção dos objetos ensinados, uma vez que a sua participação, tanto nas leituras coletivas, quanto nas produções textuais resultantes destas, foi condição para o êxito do projeto. O conteúdo a ser ensinado se baseou em uma seleção de contos de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, bem como em documentos relacionados à vida ou à obra de ambos (entrevistas audiovisual e transcrita, fotos, textos críticos). O projeto foi implementado em uma escola pública de Ensino Médio e Técnico, localizada no bairro de Pinheiros, em São Paulo, especificamente para as turmas de Marketing e Edificações do 3º ano, em horário normal de aula, numa sequência de dez aulas para cada grupo.

PALAVRAS-CHAVE: Conto; Ensino Médio; Escola Técnica; Leitura; Texto Literário.

DAIANE WALKER ARAUJO Professora de Francês na Aliança Francesa de São Paulo. Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (2017). Estágio de pesquisa na Universidade Católica Portuguesa (Lisboa, 2016). Graduação e Licenciatura em Letras (Português e Francês) pela Universidade de São Paulo (2014). Intercâmbio acadêmico na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis (Paris, 2013), na área de Letras Modernas. Temas de pesquisa: Literatura Portuguesa; Ensino de Literatura e de Francês Língua Estrangeira (FLE).

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Leitura de texto literário em contexto escolar: contos de Clarice Lispector e Guimarães Rosa

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O contexto escolar Este estágio de observação e regência, realizado no âmbito da

disciplina Metodologia do Ensino de Português II, foi desenvolvido em

uma escola pública de Ensino Médio e Técnico, pertencente à Diretoria de

Ensino Centro-Oeste de São Paulo, ao longo de três meses (setembro,

outubro e novembro de 2016), no turno da manhã, somando um total de

85h. Nesse período, foram acompanhadas as aulas de Língua

Portuguesa, Literatura e Comunicação Profissional, ministradas aos

alunos de 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio, em modalidade regular ou

integrada ao técnico. Dentro dessa carga horária, 20h foram destinadas à

implementação do projeto de regência junto a duas turmas de 3º ano.

A referida escola, desde sua institucionalização em 1950, está voltada para o ensino profissional, além do ensino básico. Em 1992, foi desvinculada da Secretaria de Educação, passando a ser gerida pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação. Em 1993, foi incorporada ao Centro Paula Souza, autarquia do Estado de São Paulo.

Atualmente, a escola conta com 146 professores, 30 funcionários e aproximadamente 1900 alunos. Estes se dividem em quatro modalidades de ensino: Ensino Médio Regular, Ensino Médio Integrado ao Técnico (ETIM), Ensino Técnico e Ensino Técnico Semipresencial (EaD). O quadro abaixo1, que apresenta os cursos oferecidos para 2017, informa-nos sobre o número de vagas, turmas e períodos de cada modalidade:

ENSINO MÉDIO

REGULAR

ENSINO MÉDIO

INTEGRADO AO

TÉCNICO (ETIM)

ENSINO TÉCNICO

ENSINO TÉCNICO

SEMIPRESENCIAL

(EAD)

Ensino Médio

(40) Administração (40) Administração (40) Administração (40)

Design de Móveis (40)

Edificações (40) Edificações (40)

Eletrônica (40) Eletrônica (80)

Marketing (40)

Meio Ambiente (40) Meio Ambiente (40)

Recursos Humanos

(40)

Período Manhã Integral Noite Sábados pela manhã

Total de

vagas 40 200 280 40

1 Vestibulinho Etecs. Disponível em: <http://www.vestibulinhoetec.com.br/unidades-cursos/escola.asp?c=118>. Acesso em 21 jun. 2018.

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Seguindo as normas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional (LDB), o oferecimento do ensino técnico está articulado ao

médio, seja de modo integrado (ETIM), concomitante (alunos matriculados

em nível médio em outras escolas) ou subsequente (alunos já formados

no ensino médio). Note-se que mais da metade das vagas é destinada

aos cursos exclusivamente técnicos (320). O ensino médio regular, por

sua vez, está passando por um processo de enxugamento: em 2016,

foram abertas duas turmas; para o ano seguinte, apenas uma. Isso

porque a escola pretende reduzir ao mínimo o número de alunos sem

interesse em qualificação profissional no nível médio.

Embora se localize no bairro de Pinheiros, região nobre da cidade

de São Paulo, o corpo discente da escola não se restringe aos moradores

do bairro, uma vez que o processo seletivo das ETECs, o chamado

“vestibulinho”, permite a inclusão de alunos oriundos de qualquer

localidade, mediante aprovação. Segundo o PPG da escola, os alunos

“são provenientes de várias regiões de São Paulo, vindos dos bairros de

Santo Amaro, Grajaú, Parelheiros, Campo Limpo, Pinheiros, Pirituba,

Butantã, Vila Jaguara, Vila dos Remédios, Lapa, Vila Madalena, além das

cidades da grande São Paulo como Itapecerica da Serra, Embu-Guaçu,

Embu das Artes, Taboão da Serra, Cotia, Osasco e Carapicuíba”.

O alunado caracteriza-se, pois, pela heterogeneidade, tanto no que

diz respeito à cultura local (diferentes cidades e bairros), quanto aos

setores sociais de que fazem parte. Em questionário aplicado pela

estagiária a duas turmas de 3º ano do ensino médio, verificou-se que, dos

57 alunos entrevistados, 64,9% concluíram o ensino fundamental em

escolas públicas (municipais ou estaduais) e 35,1% em escolas

particulares, números que apontam para a diversidade de experiências

escolares e de classes sociais que confluem para as ETECs. Há, no

entanto, uma característica comum: são alunos “selecionados” por um

processo de ingresso ao sistema público, o que significa, a rigor, que

apresentam um bom desempenho escolar e que estão interessados em

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um ensino de qualidade. É uma constatação presente no PPG da escola:

“Assim, não temos uma comunidade escolar típica de Bairro, mas uma

comunidade formada por alunos que escolhem estudar [na escola], o que

torna essa comunidade escolar ainda mais heterogênea, com grande

diversidade cultural e currículos ocultos riquíssimos e variados”.

Pode-se dizer que os alunos “escolhem estudar” nas ETECs, e

nesta especificamente, pois vislumbram ali a possibilidade de desfrutar de

um ensino público de qualidade. De fato, os resultados da escola no

Enem 2015 revelam a sua posição bastante acima da média no que diz

respeito à eficiência do ensino público, ocupando a 2ª posição no ranking

das 20 melhores escolas públicas da capital. No ranking geral do país,

que inclui as escolas privadas, das 14998 instituições registradas, ocupa

a 497ª colocação2.

1.1. Do ensino de língua portuguesa

Durante o estágio, foram acompanhadas as aulas de dois

professores da disciplina Língua Portuguesa, Literatura e Comunicação

Profissional.

O Prof. Leon3 possui duas graduações: Tradução Português-

Francês e Licenciatura em Língua Francesa, pela PUC de São Paulo; e

Letras (Português e Linguística), pela Universidade de São Paulo.

Leciona nesta escola há 16 anos, como professor de Língua Portuguesa,

com uma carga horária de 24 horas semanais no período matutino. No

vespertino, leciona como professor de Língua Portuguesa em outra escola

estadual, há 12 anos, com carga horária de 25 horas semanais.

O Prof. Marcel é igualmente formado em Letras (Português e

Linguística), pela Universidade de São Paulo e possui pós-graduação em

Gestão Escolar, pelo SENAC. Além da função docente, atua no cargo de

2 Estadão - Infográficos: http://infograficos.estadao.com.br/educacao/enem/2015/escolas/. 3 Os nomes dos professores foram substituídos por pseudônimos.

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Coordenador de Curso, dividindo sua carga horária entre a sala de aula, a

sala dos professores e a gestão escolar.

A proposta de ensino da disciplina que corresponde ao estudo da

língua materna para as modalidades de Ensino Médio e ETIM parte dos

componentes curriculares que integram a Base Nacional Comum e está

dividida em temas, que deverão ser trabalhados durantes as três séries.

Trata-se de uma formação geral, que procura abarcar as diversas

competências relacionadas ao domínio da língua: conhecimentos teóricos

e práticos sobre o sistema linguístico, leitura, escrita, gramática e

literatura. Transcrevemos, abaixo, a definição detalhada do corpo de

saberes estabelecido no Plano de Curso:

Tema 1 - Usos da língua Língua e linguagens. Variação linguística. Elementos da comunicação. Relação entre a oralidade e a escrita. Conotação e denotação. Funções da linguagem. Figuras de linguagem. Tipologia Textual. Interlocução. Tema 2 - Diálogo entre textos: um exercício de leitura Procedimentos de leitura; Leitura de imagens (linguagem não verbal). A arte de ler o que não foi dito. Ambiguidade. Intertextualidade. Narração/Descrição. Exposição. Dissertação. Argumentação e persuasão. Interlocução. Articulação textual: coesão/ coerência. Texto persuasivo. Carta persuasiva. Tema 3 - Ensino de gramática: algumas reflexões Fonética. Ortografia. Estrutura e formação de palavras. Classe de palavras. Sintaxe. Período simples e composto. Regência verbal. Regência nominal. Pontuação. Revisão gramatical. Tema 4 - Texto como representação do imaginário e a construção do patrimônio cultural Literatura: texto e contexto. Estilo. Gêneros literários. Trovadorismo. Humanismo. Classicismo. Barroco. Arcadismo. Romantismo. Realismo/Naturalismo. Parnasianismo. Simbolismo. Pré-Modernismo. Modernismo. Fase contemporânea.

Os dois professores que foram acompanhados durante o estágio

optam pela mesma estratégia de ensino, no que diz respeito à

organização dos conteúdos curriculares ao longo das séries: ao invés de

dividir as aulas da semana pelos quatro temas de ensino, de maneira

concomitante, preferem se concentrar em um conteúdo específico durante

determinado tempo, intercalando os temas ao longo do ano.

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No período em que o estágio foi realizado, ambos os professores estavam ministrando aulas de Literatura, para todas as séries, através de sequências didáticas relacionadas ao período literário dos autores estudados.

O prof. Marcel, do qual foram observadas apenas sete aulas para o

2º e 3º anos, demonstrou ter clara preferência pelas sequências didáticas

propostas pelo livro didático da escola, Novas Palavras4, no qual os

conteúdos se dividem entre “Literatura”, “Gramática” e “Redação e

Leitura”. No entanto, o livro figurou apenas como pano de fundo da

estrutura das aulas, sendo convocado, sobretudo, no momento da

realização de exercício de fixação. As aulas seguiram o método

expositivo-dialogado, em que o professor introduz os conteúdos de

maneira aberta às discussões e leituras dos alunos.

Observou-se, porém, que suas aulas se assemelhavam a uma

estratégia bastante recorrente em cursinhos pré-vestibulares: primeiro, o

professor faz uma apresentação do autor a ser estudado, considerando o

período literário em que se insere; em seguida, a obra a ser estudada é

apresentada pelo resumo de seu enredo, detalhado por capítulos.

Assim, ao falar do livro Vidas secas, de Graciliano Ramos, o

professor listou na lousa todos os capítulos do livro e passou a contar as

ações referentes a eles, dando aos alunos uma visão geral da obra. A

leitura prévia do romance foi indicada, mas não cobrada, de modo que a

sua aula se configurou como uma substituição, indireta, da leitura da obra.

Notou-se, por outro lado, um esforço do professor em transcender

os limites do enredo, inferir o seu sentido crítico, bem como o alcance

dessa crítica nos dias atuais, conduzindo os alunos a possíveis

interpretações. Ao falar de São Bernardo, por exemplo, o professor

pergunta: “O que é importante pra gente? A situação de Paulo Onório é

algo bastante atual. Mesmo tendo ascendido socialmente, ele continua

sendo discriminado, por causa de sua origem social”. Então, o professor

4 AMARAL, Emilia; FERREIRA, Mauro; LEITE, Ricardo; ANTÔNIO, Severino. Novas

Palavras. 2ª ED. Editora FTD, 2013.

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entra em uma discussão sobre as dificuldades em ascender socialmente e

os preconceitos de classe. Os alunos participam, falando de exemplos

pessoais, mas também literários: uma aluna retoma a figura de João

Romão, do romance O cortiço, estabelecendo paralelos com Paulo

Onório. O professor aproveita o exemplo, mas esclarece a diferença entre

os personagens, tendo em vista a sua função social.

Assim, verificou-se que as aulas de literatura ministradas pelo

professor Marcel, embora façam a economia do texto literário, pouco

recuperado em sua tessitura original, é capaz de construir um espaço de

discussão e reflexão acerca dos sentidos do texto e da visão de mundo

de seu autor, buscando desenvolver o pensamento crítico dos alunos, não

em relação apenas ao momento em que o texto foi escrito, mas também

ao nosso próprio tempo. Os alunos, na maior parte, aderiram ao debate,

sem muitos problemas de indisciplina ou indiferença. As aulas foram

possíveis pois o professor dispunha de boas condições de trabalho.

O professor Leon, por sua vez, do qual foram acompanhadas

algumas dezenas de aulas para 1º, 2º e 3º anos, declarou não ser adepto

do livro didático Novas Palavras, por considerar os seus conteúdos muito

restritos ou insuficientes. Ao invés de se limitar a um único livro, o

professor prefere fazer uma seleção de vários deles, montando apostilas

que ficam disponibilizadas para os alunos na xerox da escola. O professor

também tem o hábito de mobilizar a leitura de textos acadêmicos, como

por exemplo, quando do estudo de Machado de Assis, o artigo

“Humanitismo – a teoria do mundo sem dor”5, lido e analisado com os

alunos do 2º ano.

Com o uso dessa diversidade de materiais, o professor também se vale, como principal instrumento didático, da aula expositiva-dialogada, tendo a lousa como aliada para a sistematização dos conteúdos. A sua abordagem do texto literário procurava situar os alunos em reflexões filosóficas, históricas, estilísticas, linguísticas, mobilizando uma série de conhecimentos que acompanham cada obra. 5 XAVIER, Anderson da Costa. “Humanistismo – a teoria do mundo sem dor”. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/machado_de_assis/Humanitismo%20%E2%80%93%20a%20teoria%20do%20mundo%20sem%20dor.pdf>.

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Livros utilizados pelo professor Leon

Geralmente, a sequência didática era introduzida pela apostila,

através da leitura compartilhada e comentário coletivo do texto didático.

Em seguida, passava-se a exemplos de textos literários, geralmente

excertos disponibilizados no mesmo livro. Por fim, os alunos prosseguiam

com a realização de exercícios de leitura e interpretação dos textos ou do

período literário, os quais eram corrigidos na aula seguinte, coletivamente.

Era nesse momento que a memória didática era mais acionada, em

resumos e sínteses que recuperavam as aulas anteriores.

Embora tal abordagem do professor fosse, a exemplo das aulas do

professor Marcel, pautada no desenvolvimento do pensamento crítico, da

comunicação oral e da autonomia dos alunos, em geral, as aulas também

fizeram a economia do texto literário: a prioridade estava em falar sobre o

texto, mas não necessariamente com o texto. Quando das aulas sobre o

Parnasianismo, ministradas ao 2º ano, alguns alunos chegaram a

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reclamar por maior presença de poemas que ilustrassem as teorias

estéticas dos autores, pedido ao qual o professor acedeu.

Um gesto de regulação da aprendizagem muito usado por esse

professor, e que ele achava imprescindível, era o visto de atividades nos

cadernos. Para cada tarefa realizada em casa, o aluno tinha direito a um

visto; o conteúdo das respostas, entretanto, ficava a cargo do próprio

aluno, que deveria verificá-lo na correção coletiva. Essa prática, se

funcionava com um estímulo para a realização das atividades, nem

sempre se mostrou eficiente: muitos alunos copiavam do colega ou

respondiam apressadamente; o momento do visto, em geral, ocupava

uma aula inteira, em que os alunos ficavam ociosos, pois não havia a

proposta de uma atividade paralela. Por outro lado, isso garantia que

muitos alunos fizessem a atividade e estivessem preparados para discutir

as respostas no momento da correção.

2. O projeto didático: justificativa e descrição Na sequência dos estudos literários previstos no Plano de Curso do

3º ano, este projeto didático concentra-se na chamada “Terceira Geração

Modernista” do Brasil, tendo como principal objeto de ensino os contos

“Amor”, de Clarice Lispector, e “A hora e vez de Augusto Matraga”, de

Guimarães Rosa. O projeto foi implementado em duas classes de 3º ano

do ETIM, a saber, as turmas de Marketing (3B, 28 alunos) e de

Edificações (3C, 38 alunos), em horário normal de aula, numa sequência

de dez aulas para cada grupo.

O tema deste projeto deu-se em decisão conjunta com o docente

responsável pelas turmas, o professor Leon, tendo em vista o seu

planejamento de ensino e uma demanda dos próprios alunos, que

manifestaram interesse no estudo das referidas obras, uma vez que estas

compõem as listas de textos literários de importantes vestibulares, como

FUVEST e UNICAMP. De fato, no questionário proposto pela estagiária,

dos 57 alunos que responderam às questões, apenas um afirmou que não

prestaria os exames.

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No entanto, o estímulo inicial para a realização de um projeto didático em

torno da literatura deu-se no decorrer da observação das aulas dos

professores Leon e Marcel, nas quais se pôde verificar uma ampla

participação e gosto dos alunos pelos autores, textos e escolas literárias

estudadas. As aulas de literatura eram, frequentemente, um momento de

intensa discussão e interpretação, com debates que ultrapassavam as

questões puramente de “escola literária”, atualizando problemas que

persistem em não serem resolvidos ao longo de séculos. Em conversa

com o professor Leon, este afirmou que os alunos “não gostam de

gramática” e que houve muita resistência e dificuldade no período em que

esse tópico estava sendo estudado. O estudo da literatura, por outro lado,

era preferido pelos alunos pelo seu valor histórico, social e humano, ao

lado de conhecimentos como os estudados em Geografia, Filosofia e

Sociologia, também muito valorizados pelas turmas de um modo geral.

Desse modo, o projeto partiu da ideia de que havia uma

predisposição da maioria para o estudo do texto literário e de que as

condições de trabalho possibilitariam o desenvolvimento de uma

sequência didática de dez aulas em torno de dois autores apenas.

Em relação às práticas que caracterizam o trabalho dos

professores, conforme descrito anteriormente, procurou-se adotar um tipo

de abordagem do corpo de saberes literário que pudesse associar tanto a

compreensão da obra em seu período histórico, quanto as ideias, estilos e

procedimentos característicos de cada autor, e não necessariamente de

uma “escola literária”. O fato de Clarice Lispector e Guimarães Rosa

fazerem parte de um momento de produção de que se destacam mais as

figuras autorais e menos os movimentos estéticos facilitou essa

estratégia.

Desse modo, a primeira decisão que este projeto implicou foi de

que o centro das aulas seria o próprio texto. O objetivo principal da

sequência didática proposta apoiou-se, assim, na presentificação do

objeto de estudo, ou seja, na realização, em sala de aula, da leitura

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(integral ou parcial) do texto literário, e, somente por meio desta, a

proposição de análises dos procedimentos estéticos utilizados por cada

autor (o que, comumente, os professores definem como as

“características” do autor ou do período).

A sequência foi desenvolvida no período de dez aulas para cada

grupo, centradas no ensino/aprendizagem dos autores referidos. Para

cada autor, foram reservadas cinco aulas, obedecendo à seguinte ordem:

1) apresentação do autor, 2) leitura integral de um texto curto do autor (no

caso de Guimarães Rosa, esta sequência foi invertida: partiu-se da leitura

de um conto, ficando a apresentação do autor reservada para a aula

seguinte); 3-4) leitura parcial dos contos selecionados como objeto de

estudo; 5) exercícios e correção em sala de aula. Quanto ao material

utilizado, procurou-se evitar o uso extensivo do livro didático: as aulas de

introdução contaram com vídeos e apresentação de slides; para a

primeira aula de leitura (2), levou-se o texto impresso para os alunos; para

as aulas (3) e (4), os alunos providenciaram o texto, impresso ou digital.

As aulas de exercícios foram baseadas em propostas do livro didático, no

caso de Clarice Lispector, e em uma sequência de questões de vestibular,

selecionadas pela estagiária, no caso de Guimarães Rosa. O método de

ensino baseou-se na aula expositiva dialogada, com sistematização na

lousa.

Além da interação com o professor, os alunos trabalharam

individualmente, nos exercícios sobre Lispector, e em grupo, nos

exercícios sobre Rosa. O final da sequência culminou em uma produção

textual, baseada em um dos autores. Todas as aulas foram

acompanhadas pelo professor da turma, o qual também esteve inserido

nos debates.

Apresenta-se, abaixo, a sequência didática na íntegra:

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Aula 1 – Apresentação de Clarice Lispector Objetivo: Sensibilização para o universo de questões pessoais, estéticas e sociais que compõem a vida e a obra de Clarice Lispector. Sensibilização para a complexidade de uma figura autoral, para além dos esquemas de “escola literária”. Material: 1) Entrevista com Clarice Lispector. TV Cultura, 1977. [vídeo, 23min] Conteúdos: Tema: 1) Fatos relacionados à vida e à obra de Clarice Lispector, a partir de um registro audiovisual (entrevista). Construção composicional: 1) Apresentação da vida e da obra da autora em registro áudio-visual (entrevista). Recursos textuais: 1) Recursos de sugestão utilizados pela escritora na exposição de sua vida e obra. 2) Recursos de inquirição utilizados pelo entrevistador, para estimular declarações da autora. Atividades: 1) Projeção da entrevista. 2) Discussão sobre aspectos relevantes da entrevista (declarações da escritora, perguntas do entrevistador), tendo como suporte complementar uma apresentação de slides. Produtos: 1) Anotações no caderno de aspectos relevantes da entrevista. 2) Discussão oral sobre aspectos relevantes da entrevista (impressões, comentários, dúvidas). Avaliação: Habilidade de identificar e selecionar informações a partir de um registro audiovisual. Habilidade de analisar os dados selecionados, buscando configurar uma imagem da autora. Aula 2 – Crônica “Amor”, de Clarice Lispector Objetivo: Sensibilização quanto a questões estéticas e temáticas recorrentes em Clarice Lispector. Sensibilização quanto aos temas que reaparecerão no conto “Amor” da autora. Material: 1) Excertos do texto crítico “No raiar de Clarice Lispector”, de Antonio Candido. 2) Crônica “Amor” (1971), de Clarice Lispector, in: A descoberta do mundo (1984). Conteúdos: Temas: 1) O “amor”, os “papéis sociais” e a “crise existencial” em Clarice Lispector. Construção composicional: 1) O gênero narrativo no interior do gênero crônica. 2) Descrição de personagens. 3) Função do narrador. 4) Exposição de fenômenos (existenciais) e de argumentos (libertários). Recursos textuais: 1) Recursos de prosa poética (figuras de linguagem, frases coordenadas, ritmo). 2) Recursos narrativos (repetição e reformulação de ideias, fluxo de consciência, associação livre, epifania, introspecção). 3) Parágrafo final: proposição do narrador. Atividades: 1) Rememoração da aula anterior. 2) Leitura, pela professora, de excertos do texto 1, para contextualizar a recepção crítica de Clarice Lispector, bem como o seu lugar na história literária do Brasil. 3) Leitura coletiva e análise do texto 2. 4) Didatização, na lousa, de procedimentos e temas empregados na crônica. Produtos: 1) Leitura coletiva do texto 2. 2) Discussão, estimulada pela professora, sobre recursos narrativos e textuais do texto 2. 3) Anotações no caderno. Avaliação: Habilidade de inferir informações de um texto narrativo. Habilidade de atribuir sentidos a recursos narrativos e textuais empregados pela autora.

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Aula 3 – Conto “Amor”, de Clarice Lispector Objetivo: Sensibilização para procedimentos estéticos empregados pela autora, tendo em vista a construção e disrupção da “crise existencial” da personagem. Sensibilização para os temas da “crise existencial” e da “função da mulher” em Clarice Lispector. Material: 1) Conto “Amor” (1950), de Clarice Lispector, in Laços de família (1960). Conteúdos: Tema: A “crise existencial” e a “função da mulher” em Clarice Lispector. Construção composional: 1) Descrição de tempo, espaço, personagens. 2) Função do narrador indireto livre. 3) Tensão narrativa na estrutura do texto. 4) Preparação e narração do evento incitador da crise da personagem. Recursos textuais: 1) Recursos de prosa poética (figuras de linguagem, frases coordenadas, ritmo). 2) Recursos narrativos (repetição e reformulação de ideias, fluxo de consciência, associação livre, epifania, introspecção). 3) Tensão narrativa na linguagem. Atividades: 1) Leitura coletiva e análise do texto, retomando temas presentes na entrevista e na crônica anteriormente trabalhadas. 2) Didatização, na lousa, de procedimentos e temas empregados no conto. Produtos: 1) Síntese da aula anterior, estabelecendo uma relação com o conto. 2) Leitura coletiva do texto. 3) Discussão, estimulada pela professora, sobre recursos narrativos e textuais presentes no texto. 4) Anotações no caderno. Avaliação: Habilidade de inferir informações de um texto narrativo. Habilidade de analisar e atribuir sentidos a recursos narrativos e textuais empregados pela autora. Aula 4: Conto “Amor”, de Clarice Lispector (continuação) Objetivo: Sensibilização para procedimentos estéticos empregados pela autora, tendo em vista os desdobramentos da “crise existencial” da personagem. Sensibilização para os temas da “crise existencial”, da “função da mulher” e do “amor” em Clarice Lispector. Material: 1) Conto “Amor” (1950), de Clarice Lispector, in Laços de família (1960). 2) Excertos de “A mulher e a alma diária perdida”, de Berta Waldman, in Clarice Lispector:

a paixão Segundo C. L. (1992). Conteúdos: Tema: A “crise existencial”, a “função da mulher” e o “amor" em Clarice Lispector. Construção composional: 1) Descrição de tempo e espaço. 2) Tensão narrativa na estrutura do texto. 3) A crise e seus desdobramentos na narração. 4) A circularidade da narrativa (resolução). Recursos textuais: 1) Recursos de prosa poética (figuras de linguagem, frases coordenadas, ritmo). 2) Recursos narrativos (repetição e reformulação de ideias, fluxo de consciência, associação livre, epifania, introspecção). 3) Tensão narrativa na linguagem. Atividades: 1) Leitura coletiva e análise do texto, retomando temas presentes na entrevista e na crônica anteriormente trabalhadas. 2) Didatização, na lousa, de procedimentos e temas empregados no conto. 3) Proposição de interpretação do conto. Produção inicial: Responder às perguntas do livro didático sobre o conto “Amor”.

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Sugestão de leitura: Excertos de “A mulher e a alma diária perdida”, de Berta Waldman, in Clarice Lispector:

a paixão Segundo C. L. (1992). [xerox distribuída pela estagiária] Produtos: 1) Leitura coletiva do texto. 2) Discussão, estimulada pela professora, sobre recursos narrativos e textuais presentes no texto. 3) Anotações no caderno. Avaliação: Habilidade de inferir informações de um texto narrativo. Habilidade de atribuir sentidos a recursos narrativos e textuais empregados pela autora. Habilidade de sintetizar os sentidos de um conto. Aula 5: Exercícios sobre Clarice Lispector Objetivo: Sintetização dos temas e procedimentos discutidos nas aulas anteriores. Material: 1) Exercícios do livro didático sobre o conto “Amor”. 2) Excertos de “A mulher e a alma diária perdida”, de Berta Waldman, in Clarice Lispector: a paixão

Segundo C. L. (1992). Conteúdos: Temas: A “crise existencial”, a “função da mulher” e o “amor" em Clarice Lispector. Construção composicional: 1) Descrição de tempo, espaço, personagens. 2) Narração de episódios. 3) Exposição de uma pesquisa íntima da personagem. Recursos textuais: 1) Recursos de prosa poética (figuras de linguagem). 2) Recursos narrativos (repetição e reformulação de ideias, fluxo de consciência, associação livre, epifania, introspecção). 3) Tensão narrativa na linguagem. Atividades: 1) Correção dos exercícios, procurando retomar e sintetizar os pontos centrais do conto. 2) Fechar a discussão sobre Clarice Lispector, lendo excertos da obra de Berta Waldman, que apontam para as relações entre os contos e os romances de Clarice Lispector, além de falar sobre seus principais temas. Produtos: 1) Correção coletiva dos exercícios. 2) Leitura e discussão sobre o texto de Berta Waldman. Avaliação: Habilidade de responder questões sobre um texto literário. Habilidade de sintetizar os sentidos de um conto. Habilidade de compreender um texto crítico. Aula 6 – Introdução a Guimarães Rosa: conto “Desenredo” Objetivo: Sensibilização quanto a questões estéticas e temáticas recorrentes em Guimarães Rosa. Material: 1) Conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, in: Tutameia (1967). Conteúdos: Temas: 1) A “poética” roseana. Construção composicional: 1) Escolhas formais; 2) Descrição de personagens. 3) Função do narrador. 4) Intertextualidade. Recursos textuais: 1) Recursos de prosa poética (figuras de linguagem, frases coordenadas, ritmo). 2) Recursos narrativos. 3) Uso de provérbios. Atividades: 1) Leitura coletiva e análise do texto. 4) Didatização, na lousa, de procedimentos e temas empregados no texto.

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Produtos: 1) Leitura coletiva do texto. 2) Discussão, estimulada pela professora, sobre recursos narrativos e textuais empregados no conto. 3) Anotações no caderno. Avaliação: Habilidade de inferir informações de um texto narrativo. Habilidade de atribuir sentidos a recursos narrativos e textuais empregados pelo autor. Aula 7 – Apresentação de Guimarães Rosa Objetivo: Sensibilização para o universo de questões pessoais, estéticas e sociais que compõem a vida e a obra de Guimarães Rosa. Sensibilização para a complexidade de uma figura autoral, para além dos esquemas de “escola literária”. Material: 1) Entrevista com Guimarães Rosa. TV alemã, 1962. [vídeo, 6min]. 2) Apresentação de slides, com fotos e trechos de entrevista escrita dada pelo autor. Conteúdos: Tema: 1) Fatos relacionados à vida e à obra de Guimarães Rosa, a partir de um registro audiovisual (entrevista). Construção composicional: 1) Apresentação da vida e da obra do autor em registro audiovisual, fotográfico e escrito. Atividades: 1) Projeção da entrevista. 2) Discussão sobre aspectos relevantes da entrevista (declarações do escritor, perguntas do entrevistador), tendo como suporte complementar uma apresentação de slides. Produtos: 1) Anotações no caderno de aspectos relevantes da entrevista. 2) Discussão oral sobre aspectos relevantes da entrevista (impressões, comentários, dúvidas). Avaliação: Habilidade de identificar e selecionar informações a partir de registros audiovisual, fotográfico e textual. Habilidade de analisar os dados selecionados, buscando configurar uma imagem do autor. Aula 8: Conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa Objetivo: Sensibilização para procedimentos estéticos empregados pelo autor, tendo em vista as transformações sofridas pela personagem. Sensibilização para os temas da “criação vocabular” e “o herói sertanejo” em Guimarães Rosa. Material: 1) Conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, in: Sagarana (1946). Conteúdos: Tema: A “criação vocabular” e “o herói sertanejo” em Guimarães Rosa. Construção composional: 1) Descrição de tempo e espaço. 2) Tensão narrativa na estrutura do texto. 3) As transformações do personagem . 4) A circularidade da narrativa (resolução). Recursos textuais: 1) Recursos de prosa poética (figuras de linguagem, frases coordenadas, ritmo). 2) Recursos narrativos. Atividades: 1) Leitura coletiva e análise do texto, retomando temas presentes na entrevista e no conto anteriormente trabalhados. 2) Didatização, na lousa, de procedimentos e temas empregados no conto. Produtos: 1) Leitura coletiva do texto. 2) Discussão, estimulada pela professora, sobre recursos narrativos e textuais presentes no texto. 3) Anotações no caderno.

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Leitura de texto literário em contexto escolar: contos de Clarice Lispector e Guimarães Rosa

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Avaliação: Habilidade de inferir informações de um texto narrativo. Habilidade de atribuir sentidos a recursos narrativos e textuais empregados pelo autor. Aula 9 – Conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa (continuação) Objetivo: Sensibilização para procedimentos estéticos empregados pelo autor, tendo em vista os desdobramentos do processo de transformação do heroi. Material: 1) Conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, in: Sagarana (1946). Conteúdos: Tema: 1) “O sertão é o mundo”. 2) O herói moderno. Recursos textuais: 1) Recursos de prosa poética (figuras de linguagem, frases coordenadas, ritmo). 2) Recursos narrativos. Atividades: 1) Leitura coletiva e análise do texto. 2) Didatização, na lousa, de procedimentos e temas empregados no conto. 3) Proposição de interpretação do conto. Produtos: 1) Leitura coletiva do texto. 2) Discussão, estimulada pela professora, sobre recursos narrativos e textuais presentes no texto. 3) Anotações no caderno. Avaliação: Habilidade de inferir informações de um texto narrativo. Habilidade de atribuir sentidos a recursos narrativos e textuais empregados pela autora. Habilidade de sintetizar os sentidos de um conto. Aula 10 – Questões dissertativas de vestibular sobre Guimarães Rosa Objetivo: Sintetização dos temas e procedimentos discutidos nas aulas anteriores. Trabalho em equipe. Material: Questões dissertativas propostas pelos vestibulares da FUVEST e UNICAMP sobre o conto “A hora e vez de Augusto Matraga. Conteúdos: Tema: questões relativas à leitura do conto. Construção composicional: estrutura de resposta de uma questão dissertativa de vestibular. Recursos textuais: adequação da linguagem e poder de síntese. Atividades: 1) Correção dos exercícios, procurando retomar e sintetizar os pontos centrais do conto. 2) Fechar a discussão sobre Guimarães Rosa, através da leitura feita pelos próprios alunos de suas interpretações acerca do conto. Produtos: 1) Produção e correção coletiva dos exercícios. Avaliação: Habilidade de responder questões sobre um texto literário em grupo. Habilidade de sintetizar os sentidos de um conto. Habilidade de compreender um enunciado.

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CULMINÂNCIA: produção textual sobre um dos autores, realizada em casa e entregue no prazo de uma semana Escolha UMA das propostas abaixo e redija um texto contendo entre 20 e 30 linhas: 1. Estamos no ano de 1971, e você acaba de ler a crônica “Amor”, de Clarice Lispector, publicada no dia 11 de setembro, no Jornal do Brasil. Escreva uma Carta do Leitor, destinada à escritora, desenvolvendo uma reflexão sobre a problemática narrada no texto. Você pode, criativamente, fazer referências ao conto “Amor” (1950), da mesma autora, buscando aproximações entre personagens, temáticas, procedimentos estilísticos e posicionamento crítico. Procure criar um vínculo de compreensão com a escritora. Lembre-se do que ela declarou em entrevista: “Eu me surpreendo com os estudantes, porque eles estão na minha”. 2. Reconstrua, criticamente, a trajetória do protagonista de “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa. Considere as suas transformações de bandido a benfeitor, de coronel valentão a herói. Como o autor constrói a figura mítica Augusto Matraga? Quais aspectos do mundo sertanejo o autor mobiliza para contextualizar o percurso de redenção da personagem? E em que medida essa história fala, não de apenas de um drama local, mas de uma questão humana? Importante: não se trata, apenas, de fazer um resumo da história; procure analisar criticamente os sentidos que emergem do texto.

3. O projeto didático: implementação e resultados O presente projeto de ensino procurou conciliar uma prática

corrente observada no trabalho do professor – gestos didáticos voltados

ao desenvolvimento da expressão oral e do pensamento crítico dos

alunos, em aulas dialogadas – com uma carência também constatada

nessas aulas – a economia do texto literário em aulas de literatura. O

princípio adotado vai ao encontro da constatação de Roxane Rojo de que

“a unidade mais relevante de ensino é o texto, que não deve se dar como

pretexto para outras atividades de ensino sobre a língua ou sobre a

escrita, mas que se constitui em objeto de estudo, por si mesmo” (ROJO,

2002, p. 35).

Mas não se tratou apenas de considerar o texto em seus aspectos

puramente formais e estéticos, como obra de arte; procurou-se uma

abordagem em que a noção de gênero discursivo fosse integrada à de

gênero textual (no caso, contos), uma vez que as leituras procuraram

presentificar a própria figura do autor como enunciador de uma

mensagem, como interlocutor que deseja nos comunicar algo que

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desconhecemos. A leitura do texto literário, nesse sentido, aflorou como

uma prática social e uma atividade de linguagem, em que autores e

alunos foram colocados frente a frente, através do texto. Pois como

sintetiza Rojo,

(...) para além de se estudar o texto em suas propriedades formais e estilísticas particulares, o texto é visto como um exemplar de gênero do discurso e é por meio da exploração das propriedades temáticas, formais e estilísticas comuns e recorrentes num conjunto de textos pertencentes a um certo gênero que se pode chegar à apropriação destas formas estáveis de enunciado (ROJO, 2002, p. 36).

Partindo desse princípio, o projeto procurou seguir um modelo de

aula expositiva dialogada, ou seja, aquele em que o professor se

posiciona como mediador das análises do objeto de ensino, fornecendo

pontos de partida e sínteses para as discussões.

Uma das propostas do projeto era de promover a sensibilização

dos alunos para o tema através da presentificação da figura do autor, não

enquanto mera entidade da história literária, mas como ser humano,

pensante, complexo. Para tanto, propôs-se a exibição de entrevistas em

documentos audiovisuais, em que os escritores discorrem sobre assuntos

referentes à sua vida e obra. No caso de Lispector, a entrevista causou

certa celeuma em alguns alunos, que consideraram a postura da autora,

em um primeiro momento, muito “chata”, “antipática”, “difícil”. No decorrer

das conversas sobre a entrevista, entretanto, procurou-se chamar a

atenção para a maneira como a escritora compreendia o mundo, os

outros e a si mesma, de modo que a sua visão das coisas, muito diferente

do senso comum, está intimamente ligada à sua maneira de estruturar as

suas obras, no que diz respeito a enredo, personagens, estruturas e

recursos narrativos. O momento da entrevista foi importante para que os

alunos percebessem que há um escritor real por trás da obra, e que

interessa a nós pensarmos de que maneira essa obra é capaz de nos

comunicar sobre a postura crítica que esse autor assumiu frente ao seu

tempo. Quando da entrevista com Guimarães Rosa, os alunos logo

perceberam a diferença de personalidade em relação a Lispector: Rosa

era “sorridente”, “simpático”, “leve”.

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Essas nuances verificadas nas conversas com os autores foram

importantes para que os alunos fossem sensibilizados para a recepção

dos seus textos, notadamente no que diz respeito aos temas tratados e às

peculiaridades de sua linguagem. No momento da leitura dos textos

propriamente ditos, foi possível recuperar diversos indícios presentes

nesses documentos audiovisuais, que já apontavam para aspectos

frequentes nos autores: o drama da existência, o mistério do mundo, o

pasmo diante do cotidiano, a crítica a segmentos da sociedade foram

assuntos recorrentes tanto na entrevista, quanto nos dois contos de

Clarice Lispector lidos com os alunos; no caso de Guimarães Rosa, a sua

relação com o sertão e o homem sertanejo, a sua paixão pelas línguas e

a sua visão “solar” face à aventura humana também apareceram em

ambos os registros mobilizados para a sequência didática. Assim, a

sensibilização por meio desses registros mostrou-se bastante profícua

para a sequência do projeto.

No que diz respeito ao estudo de Rosa, essa não foi, entretanto, a

primeira aula relacionada ao autor, mas a segunda. Isso porque se optou

por experimentar uma inversão no planejamento de aulas referente a

cada autor: se com Lispector iniciou-se pela entrevista, com Rosa por que

não arriscar uma entrada direta pelo texto?

O risco era grande, uma vez que a linguagem do autor nem sempre

facilita o trabalho do professor. No entanto, como os alunos vinham de

uma sequência de cinco aulas em torno da leitura e análise de textos de

Lispector, a maior parte já se mostrava familiarizada com o método da

estagiária e pôde acompanhar a discussão sem grandes dificuldades.

O método, por sua vez, consistiu em uma espécie de adaptação da

estrutura das aulas do curso de Letras para o contexto escolar, isto é,

priorizou-se a análise e interpretação de segmentos linguísticos e

estilísticos, recursos de prosa poética, efeitos de sentido e sugestão,

intertextualidade, enfim, uma série de elementos mobilizados pelo autor

para a construção do texto narrativo, porém com estratégias didáticas

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adaptadas ao nível das turmas (3º ano de EM). Primeiramente, quando

uma expressão ou palavra considerada “difícil” no texto surgia, os alunos

eram mobilizados a tentar dar um sentido a ela, no contexto da obra. Se

isso não ocorria imediatamente, buscava-se fornecer algumas pistas para

que a compreensão fosse aguçada, o que em muitos casos era uma

solução. Outra estratégia mobilizada foi relacionar passagens dos textos

com filmes, músicas, séries, outros textos conhecidos dos autores, de

modo que os alunos pudessem visualizar com mais clareza os espaços e

as personagens envolvidas nos enredos. No caso do conto “A hora e vez

de Augusto Matraga”, por exemplo, falou-se muito em Vidas secas, de

Graciliano Ramos, na música “Faroeste Caboclo”, do Legião Urbana, no

filme Django livre, de Quentin Tarantino. Esse exercício de compreensão,

fundamental para despertar e sustentar o interesse dos alunos pelos

autores, foi desenvolvido à luz de reflexões como as propostas por Luiz

Antônio Marcuschi:

Compreender bem um texto não é uma atividade natural nem uma herança genética; nem uma ação individual isolada do meio e da sociedade em que se vive. Compreender exige habilidade, interação e trabalho. [...] Compreender não é uma ação apenas linguística ou cognitiva. É muito mais uma forma de inserção no mundo e um modo de agir sobre o mundo na relação com o outro dentro de uma cultura e uma sociedade (MARCUSCHI, 2008, p. 229-230).

Assim, para que a leitura atingisse, de fato, a compreensão, foi

preciso estimular “habilidade, interação e trabalho”, numa atividade

coletiva, em que todos pudessem contribuir com hipóteses de

interpretação, ou simplesmente com dúvidas que gerassem o debate. Os

alunos foram constantemente convocados à leitura do texto por meio de

perguntas como: o que poderá significar tal metáfora no contexto do

conto? Por que o autor modificou o sentido de um provérbio popular?

Como se configura este narrador? Qual é o tom deste excerto? Caso a

turma não apresentasse uma resposta ou um comentário aos apelos, ou

se suas análises fossem insatisfatórias, procurava-se oferecer uma leitura

possível e justificada, de uma perspectiva mais expositiva, para que o

diálogo não enfraquecesse. Essa tomada de posição da professora foi

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importante para provocar reações nos alunos, seja de compreensão

apenas, como de dúvida ou de questionamento. Não raro, quando da

explicação de algum momento de um conto, os alunos interrogaram a

leitura feita: mas será mesmo um narrador onisciente? Por quê? Será que

o autor quis dizer isso mesmo? Isso reflete um posicionamento ideológico

do autor? Ele está querendo nos doutrinar? etc. Para manter vivo o

diálogo, foi preciso fornecer elementos para o debate, quando estes não

surgiram. E então a aula deixava de ser expositiva e retornava à

interação. A experiência neste estágio mostrou que essa dinâmica

contribui favoravelmente para o ensino de literatura e a formação de

leitores na escola.

Outra estratégia de compreensão mobilizada foi a de atualizar a

referenciação das obras literárias em estudo, trazendo as discussões ali

presentes para o contexto atual e a experiência pessoal dos alunos, como

propõe M. M. Cavalcante:

Nem o significado das expressões referenciais, nem os próprios referentes pelos quais compreendemos o mundo têm total estabilidade num texto. Eles se encontram em constante transformação, porque dependem do modo como os percebemos, do modo como nossa cultura nos influencia a vê-los e a denominá-los, do modo como julgamos que nossos interlocutores os encaram e até do modo como os textos, falados e escritos, guiam nosso olhar para eles (CAVALCANTE, 2007, p. 65).

Desse modo, procurou-se esclarecer aos alunos que os textos não

apresentam sentidos fechados, mas que transcendem as intenções do

autor e as limitações da linguagem, uma vez que é o nosso olhar sobre

eles que libera e transforma o alcance de suas significações. No decorrer

das leituras, os alunos pareceram compreender essa nova forma de ler

proposta pelo projeto, e a maior parte deles aderiu ao “jogo”.

As turmas revelaram um importante fôlego de leitura, notadamente

a turma de Edificações. A leitura coletiva pôde ser realizada praticamente

sem interrupções que não estivessem relacionadas às discussões.

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Nas atividades propostas como síntese das leituras das obras

também se procurou uma variação nas estratégias. No caso de Lispector,

optou-se por uma sequência de exercícios do livro didático, bastante bem

feita para os objetivos interpretativos da proposta didática: foram seis

questões dissertativas breves, que procuravam recuperar momentos-

chave do conto “Amor”, relacionando-os a possíveis interpretações de

leitura. Os alunos fizeram a atividade em casa e receberam o “visto” do

professor, o que fez com que, no momento da correção, muitos deles

pudessem participar do fechamento da sequência relacionada à autora.

Já no caso de Guimarães Rosa, foi realizada uma atividade em

grupos de cinco ou seis pessoas. Cada grupo ficou responsável por uma

questão dissertativa de vestibular, ou da FUVEST ou da UNICAMP,

relacionada ao conto “A hora e vez de Augusto Matraga”. Tinham, então,

15 minutos para formular uma resposta coletiva à questão (dividida em “a”

e “b”, ou “a”, “b” e “c”), que deveria ser exposta ao restante da turma após

o tempo estabelecido. Esse momento foi muito significativo para inferir em

que medida as discussões foram absorvidas pelos alunos, revelando que

o aproveitamento foi altamente produtivo, conforme o bom desempenho

dos alunos nas respostas. Cada uma destas foi comentada pela

estagiária, sempre retomando as discussões das aulas e orientando os

alunos para uma melhor maneira, quando necessário, de expor a análise

em uma resposta dissertativa.

A sequência foi finalizada com um momento de culminância, no

qual os alunos receberam duas propostas de produção textual, das quais

deveriam escolher uma para ser entregue no período de uma semana,

atividade a qual também contou com o visto do professor. As propostas

buscaram ser democráticas, de modo a oferecer ao aluno a opção de

escolher o autor com o qual sentira mais afinidade. Dos 66 alunos

matriculados nas duas turmas, 41 realizaram a produção textual, sendo

29 dos textos sobre a proposta relacionada a Lispector e 12 sobre Rosa.

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Embora os textos não contassem pontos para a nota dos alunos,

foram avaliados seguindo os conceitos instituídos pela escola (MB, B, R,

I), a fim de que os alunos recebessem uma devolutiva mais concreta do

alcance dos seus textos. Também foram feitos comentários sobre bons ou

maus momentos, e correções pontuais referentes a gramática ou a

questões de coesão e coerência. Os resultados foram, em geral, bastante

positivos, pois mostraram que os alunos, de fato, compreenderam a

proposta didática do projeto e assimilaram muitas das discussões que

foram proporcionadas em sala de aula. A maior parte dos textos foi

avaliada com a nota B.

4. Considerações finais Os desafios deste projeto foram os mais variados possíveis. Talvez

um dos mais complexos, para o qual foi necessária uma solução rápida,

tendo em vista o caráter excepcional desta sequência didática – o estágio

–, diga respeito à aquisição do material para a aula. Sem o livro didático,

que é um facilitador, como fazer com que os alunos trouxessem o

material? Embora a escola disponha de uma “xerox”, na qual o professor

pode disponibilizar textos para fotocópia, muitos alunos não têm

condições de fazê-lo (ou não se esforçam para isso). A solução

encontrada foi de providenciar uma cópia do texto curto, para que todos

pudessem lê-lo. No caso do texto longo, a maior parte da turma estava

sem o texto, o que provocou maior dispersão e exigiu maior concentração

na leitura da estagiária. Quando da segunda parte da leitura do conto de

Guimarães Rosa, “A hora e vez de Augusto Matraga”, o final da história foi

fotocopiado e distribuído aos alunos, para que todos pudessem ter, pelo

menos, algum contato com a materialidade do texto. Reconhece-se, no

entanto, que essa prática é inviável para o professor.

A partir desse problema, surgiu um outro desafio: como basear

uma aula na leitura de um texto, se os alunos não têm o material? Além

das soluções já mencionadas, as aulas exigiram uma teatralização muito

maior do que teria sido, caso todos estivessem acompanhando a leitura

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com o texto, e não apenas oralmente. Desse modo, para manter a

atenção dos alunos e fazer com que eles não se dispersassem da leitura,

precisou-se despender certa energia na mimetização das tonalidades do

texto, sobretudo no que diz respeito à oralidade inerente à prosa roseana.

A estratégia funcionou, mas é algo desgastante para um professor que

precisará ministrar cinco aulas numa manhã.

Por fim, o próprio fato de partir diretamente para a leitura de um

conto, sem desenvolver explicações de escola literária com base no livro

didático, tal como os alunos estão habituados, foi um desafio não só para

a estagiária, mas para toda a turma. A proposta da sequência foi de

oferecer uma nova maneira de ler um texto, baseada em análises

detalhadas de estruturas e procedimentos, a fim de atingir uma

interpretação. Se esse método despertou a curiosidade de grande parte

dos alunos, uma vez que expandiu o universo de leitura em que estavam

situados, uma parcela menor deles foi se dispersando ao longo do

projeto, talvez por considerar o desafio muito grande ou distante de seus

interesses, o que resultou em um maior índice de ausência no decorrer

nas aulas, sobretudo na turma de Marketing. A turma de Edificações, no

entanto, mostrou-se bastante envolvida, com ampla adesão e participação

nas discussões, o que comprovou, finalmente, que há espaço para o texto

literário em sala de aula: basta que o professor saia dos arredores da

Literatura e dê mais espaço para ela própria possa formar os seus

leitores.

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REFERÊNCIAS CAVALCANTE, M. M. “Leitura e escrita: produção de sentidos”. Um mundo de letras: práticas de leitura e escrita – Salto para o futuro – Boletim 3. TV Escola/SEED-MEC, 2007, p. 63-79. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. ROJO, Roxane Helena Rodrigues. “A concepção do leitor e produtor de textos nos PCNs: ‘Ler é melhor que estudar’”. In: FREITAS, Maria Teresa de Assunção; COSTA, Sérgio Roberto (orgs.). Leitura e escrita na formação de professores. 1ª ed. Juiz de Fora: EDUFJF/CONPED/MUSA, 2002, p. 31-50.

Sites consultados

Estadão – Infográficos. Disponível em: <http://infograficos.estadao.com.br/educacao/ enem/2015/escolas/>. Acesso em: 13 de dezembro de 2016.

Centro Paula Souza. Disponível em: <http://www.cps.sp.gov.br/quem-somos/perfil-historico/>. Acesso em: 10 de dezembro de 2016.

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 07 de dezembro de 2016.

Regimento Comum das Escolas Técnicas Estaduais do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza. Disponível em: <http://www.cps.sp.gov.br/etec/regimento-comum/regimento-comum-2013.pdf>. Acesso em: 10 de dezembro de 2016.

Vestibulinho Etecs. Disponível em: <http://www.vestibulinhoetec.com.br/home/>. Acesso em: 10 de dezembro de 2016.

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Leitura de texto literário em contexto escolar: contos de Clarice Lispector e Guimarães Rosa

MELPE. São Paulo, n. 8, junho de 2018. 169

Anexos

Atividade com questões de vestibular

Questão 1

(UNICAMP) “(...) E, páginas adiante, o padre se portou ainda mais

excelentemente, porque era mesmo uma brava criatura. Tanto assim,

que, na despedida, insistiu:

- Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com

sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E

você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua

hora e a sua vez: você há de ter a sua.”

(João Guimarães Rosa, A hora e a vez de Augusto Matraga, em Sagarana. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001, p. 380).

“(...) Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso

intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério

contentamento.

Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrando,

sumido:

- Põe a bênção na minha filha..., seja lá onde for que ela esteja... E,

Dionóra... Fala com a Dionóra que está tudo em ordem!

Depois morreu.”

(Idem, p. 413).

a) O segundo excerto, de certo modo, confirma os ditos do padre

apresentados no primeiro. Contudo, “a hora e a vez” do protagonista não

são asseguradas, segundo a narrativa, pela reza e pelo trabalho. O que

lhe garantiu ter “a sua hora e a sua vez”?

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b) “A hora e a vez” de Nhô Augusto relacionam-se aos encontros que ele

tem com outro personagem, Joãozinho Bem-Bem, em dois momentos da

narrativa. Em cada um desses momentos, Nhô Augusto precisa realizar

uma escolha. Indique quais são essas escolhas que importam para o

processo de transformação do personagem protagonista.

Questão 2

(UNICAMP) Leia a seguinte passagem de "A hora e vez de Augusto

Matraga":

"O casal de pretos, que moravam junto com ele, era quem mandava e

desmandava na casa, não trabalhando um nada e vivendo no estadão.

Mas, ele, tinham-no visto mourejar até dentro da noite de Deus, quando

havia luar claro.

Nos domingos, tinha o seu gosto de tomar descanso: batendo mato, o dia

inteiro, sem sossego, sem espingarda nenhuma e nem nenhuma arma

para caçar; e, de tardinha, fazendo parte com as velhas corocas que

rezavam o terço ou os meses dos santos. Mas fugia às léguas de viola ou

sanfona, ou de qualquer outra qualidade de música que escuma tristezas

no coração."

a) Identifique o casal que vive junto com o protagonista da narrativa.

b) Explique o comportamento do protagonista no trecho acima,

confrontando-o com sua trajetória de vida.

c) O que há de contraditório no descanso dominical a que o narrador se

refere?

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Questão 3

(FUVEST) No conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães

Rosa, o protagonista é um homem rude e cruel, que sofre violenta surra

de capangas inimigos e é abandonado como morto, num brejo. Recolhido

por um casal de matutos, Matraga passa por um lento e doloroso

processo de recuperação, em meio ao qual recebe a visita de um padre,

com quem estabelece o seguinte diálogo:

- Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz,

e tendo nas costas tanto pecado mortal?

- Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo

do pé de arrependido nenhum... (...) Sua vida foi entortada no verde,

mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de

chamar demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de

sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele

não regateia a nenhum coração contrito.

a) A linguagem figurada amplamente empregada pelo padre é adequada

ao seu interlocutor? Justifique sua resposta.

b) Transcreva uma frase do texto que tenha sentido equivalente ao da

frase não regateia a nenhum coração contrito.

Questão 4

(FUVEST) Considere os seguintes versos, que fazem parte de um poema

em que Carlos Drummond de Andrade fala de Guimarães Rosa e de sua

obra:

(...) ou ele mesmo [Guimarães Rosa] era a parte de gente servindo de ponte entre o sub e o sobre que se arcabuzeiam de antes do princípio, que se entrelaçam para melhor guerra, para maior festa?

(arcabuzeiam = lutam com arcabuzes, espingardas)

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a) A luta entre Augusto Matraga e Joãozinho Bem-Bem (do conto “A hora

e vez de Augusto Matraga”) apresenta, conjugados, os aspectos de

guerra e de festa referidos nos versos de Drummond. Você concorda com

esta afirmação? Justifique sucintamente.

(UNICAMP) Os versos seguintes fazem parte do poema “Um chamado

João” de Carlos Drummond de Andrade em homenagem póstuma a João

Guimarães Rosa. Trabalhe a questão a partir da leitura do poema.

Um chamado João

João era fabulista? fabuloso? fábula? Sertão místico disparando no exílio da linguagem comum? (...) Mágico sem apetrechos, civilmente mágico, apelador de precípites prodígios acudindo a chamado geral? (…) Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar.

(Carlos Drummond de Andrade, em Correio da Manhã, 22/11/1967, publicado em Rosa, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001).

b) Na primeira estrofe do poema, ‘fábula’ é derivada em ‘fabulista’ e

‘fabuloso’. Mostre de que modo a formação morfológica e a função

sintática das três palavras contribuem para a formação da imagem de

Guimarães Rosa.

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Produção textual

[Escola] Língua Portuguesa, Literatura e Comunicação Profissional Prof. Leon, Profª Daiane Nome: ___________________________ Nº: _______ Turma: _______

Escolha UMA das propostas abaixo e redija um texto contendo entre 20 e

30 linhas:

1. Estamos no ano de 1971, e você acaba de ler a crônica “Amor”, de

Clarice Lispector, publicada no dia 11 de setembro, no Jornal do Brasil.

Escreva uma Carta do Leitor, destinada à escritora, desenvolvendo uma

reflexão sobre a problemática narrada no texto. Você pode, criativamente,

fazer referências ao conto “Amor” (1950), da mesma autora, buscando

aproximações entre personagens, temáticas, procedimentos estilísticos e

posicionamento crítico. Procure criar um vínculo de compreensão com a

escritora. Lembre-se do que ela declarou em entrevista: “Eu me

surpreendo com os estudantes, porque eles estão na minha”.

2. Reconstrua, criticamente, a trajetória do protagonista de “A hora e vez

de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa. Considere as suas

transformações de bandido a benfeitor, de coronel valentão a herói. Como

o autor constrói a figura mítica Augusto Matraga? Quais aspectos do

mundo sertanejo o autor mobiliza para contextualizar o percurso de

redenção da personagem? E em que medida essa história fala, não de

apenas de um drama local, mas de uma questão humana? Importante:

não se trata, apenas, de fazer um resumo da história; procure analisar

criticamente os sentidos que emergem do texto.

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Exemplo de produção textual de aluno (1)

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Exemplo de produção textual de aluno (2)