do conhecimento literÁrio:

579
Nabil Araújo de Souza DO CONHECIMENTO LITERÁRIO: ENSAIO DE EPISTEMOLOGIA INTERNA DOS ESTUDOS LITERÁRIOS (Crítica e Poética) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura. Orientador: Prof. Dr. Élcio Loureiro Cornelsen. Belo Horizonte Faculdade de Letras – UFMG 2006

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Nabil Arajo de Souza

DO CONHECIMENTO LITERRIO:

ENSAIO DE EPISTEMOLOGIA INTERNA

DOS ESTUDOS LITERRIOS

(Crtica e Potica)

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios daFaculdade de Letras da Universidade Federalde Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Letras:Estudos Literrios.

rea de concentrao: Teoria da Literatura.Orientador: Prof. Dr. lcio LoureiroCornelsen.

Belo Horizonte

Faculdade de Letras UFMG

2006

II

Para minha filha Laura,

permanente estmulo descentrao.

III

Agradeo

aos meus pais,

que em larga medida viabili zaram a dedicao que hoje dispenso vida acadmica;

Sarah,

pela parceria ao longo de todo o processo de elaborao deste trabalho;

ao professor lcio Loureiro Cornelsen,

por deixar li vre o espao para que eu pudesse criar, no sentido pleno do termo;

CAPES,

pela bolsa de estudos;

a todos aqueles que professores, colegas ou alunos concederam-me, ao longo do

tempo, a oportunidade da interlocuo.

IV

A reflexo terica ameaava talhar um aluno doutro tipo:aquele que no s gostasse de literatura mas entendesse quefaz a literatura. (Costa Lima, 2002f:8).

A teoria voltar, como tudo, e seus problemas seroredescobertos no dia em que a ignorncia for to grande que sproduzir tdio. (Phili ppe Sollers apud Compagnon, 2001:14).

J fomos suficientemente atingidos pela ignorncia e pelo tdiopara desejarmos novamente a teoria? (Compagnon, 2001:15).

V

SUMRIO

RESUMO

PREFCIO

1. TEORIA DA LITERATURA COMO EPISTEMOLOGIA INTERNA DOS ESTUDOS LITERRIOS

1.1. Relevncia de uma epistemologia interna dos Estudos Literrios

1.2. Prolegmenos a uma epistemologia interna dos Estudos Literrios

1.3. Um programa de investigao para a Teoria da Literatura

2. DO CONHECIMENTO LITERRIO (I): ENSAIO DE EPISTEMOLOGIA DA CRTICA

2.1. Para uma crtica da razo crtica

2.2. Percursos da teoria crtica ocidental

2.2.1. O imprio retrico

2.2.2. A crtica classicista

2.2.3. A ascenso da esttica

2.2.4. O advento da funo autor

2.2.5. A moderna crtica literria

2.2.6. A crise do positivismo literrio

2.2.7. A virada lingstica

2.2.8. O paradigma hermenutico

2.2.9. Da estilstica retrica

2.2.10. A estilstica estrutural

2.2.11. A voga antiintencionalista

2.2.12. O new criticism

2.2.13. Crtica e lingstica

VII I

IX

001

006

067

105

113

113

121

126

145

149

168

173

175

191

195

202

205

230

VI

2.2.14. A crtica lingistificante

2.2.15. A virada desconstrucionista

2.2.16. Crtica e desconstruo

2.2.17. O programa gramatolgico

2.2.18. Crtica e gramatologia

2.2.19. Do texto ao Texto

2.2.20. Gramatologia X Semanlise

2.2.21. Os limites da desconstruo

2.2.22. Literatura e retoricidade

2.2.23. Crtica e cegueira

2.3. Estatuto cognitivo da crtica ocidental

3. DO CONHECIMENTO LITERRIO (II): ENSAIO DE EPISTEMOLOGIA DA POTICA

3.1. A mira(gem) lingstica

3.2. Do epili ngstico ao metalingstico

3.3. Trajetria da Potica ocidental

3.3.1. A langue estruturalista

3.3.2. A Potica segundo o formalismo russo

3.3.3. A visada substancialista

3.3.4. A visada funcionalista

3.3.5. O Crculo Lingstico de Praga

3.3.6. A potica estruturalista

3.3.7. Rumo narratologia: Propp

3.3.8. Rumo narratologia: Lvi-Strauss

3.3.9. A narratividade em foco

3.3.10. Ocaso do estruturalismo

3.3.11. A virada pragmtica

3.3.12. A langue de Benveniste

3.3.13. A langue de Austin

3.3.14. A Potica luz da pragmtica

3.3.15. A leitura literria segundo Iser

234

247

250

253

266

271

285

288

297

309

314

342

358

365

365

373

376

384

390

394

414

420

433

443

446

452

456

466

467

VII

3.3.16. Efeito e recepo

3.3.17. O leitor implcito em questo

3.3.18. A virada cognitivista

3.3.19. Cognio e significado

3.3.20. A metfora revisitada

3.3.21. A potica cognitiva

3.3.22. Os limites do cognitivismo

3.3.23. Lingstica, Potica e linguagem

CONCLUSO

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

486

489

497

501

502

511

523

527

532

544

VIII

RESUMO

Propusemo-nos uma investigao da natureza, dos fundamentos, da validade do

conhecimento literrio dito especializado, fili ando-nos, com isso, ao programa geral de

uma Teoria da Literatura estritamente concebida como crtica da crtica ou

metacrtica (Compagnon), ou, mais especificamente, como epistemologia interna dos

Estudos Literrios, isto , como uma abordagem crtica do conhecimento produzido

nesse domnio, com vistas a fazer reverter os resultados de uma tal anlise em favor do

prprio domnio em questo. No primeiro captulo, ocupamo-nos de delimitar e

justificar a prpria visada epistemolgica a ser ento adotada, a qual, partindo da dupla

recusa do subjetivismo e do objetivismo clssicos em favor de uma concepo

construtivista da cognio humana segundo a qual sujeito e objeto constituem-se

mutuamente quando da atividade cognitiva efetiva , institui como baliza crtica

justamente o nvel de conscincia-de-si eventualmente alcanado pelo sujeito

cognoscente ao longo da histria de uma dada disciplina, sendo que quanto maior esse

nvel mais descentrado dir-se-ia o conhecimento ento produzido. Procedemos, assim,

na seqncia, a uma anlise epistemolgica histrico-crtica dos Estudos Literrios

ocidentais, em que procuramos determinar, seja em relao crtica literria (captulo

dois) num percurso que vai da retrica antiga ao ps-estruturalismo francs seja em

relao Potica (captulo trs) num percurso que vai do formalismo russo potica

cognitiva contempornea o nvel de descentrao efetivamente alcanado pelo

conhecimento literrio produzido em cada um dos dois referidos domnios. Se

constatamos, no primeiro caso, o que se poderia chamar de uma centrao fundamental

e constitutiva da experincia crtica em geral apesar da inegvel descentrao da

teoria crtica ao longo do perodo estudado , o mesmo no se poderia dizer em relao

ao segundo caso, o do conhecimento produzido pela Potica em sua histria, cuja

centrao, ento por ns apreendida em suas nuanas diacrnicas, revela-se no uma

condio mas antes um estado, passvel de alterao em funo de uma concepo

verdadeiramente descentrada de literariedade concepo essa a qual procuramos

esboar, num modo possvel de articulao, em nossa Concluso.

IX

PREFCIO

[...] poderei doravante apoiar-me nos cacos de objetivao de mim mesmoque fui deixando pelo caminho, ao longo de minha pesquisa [...] . (Bourdieu,2005:39).

Para esse singularssimo desbravador dos meandros do conhecimento humano que foi

Gaston Bachelard, o problema da cientificidade impunha-se, antes de mais nada, como

uma questo de descontinuidade, de ruptura. No a simples reviso de antigas crenas e

informaes proporcionada pela pretensa descoberta de novos dados, tal como

previsto pelas concepes evolucionistas do saber humano. Antes, a pronta recusa da

prpria condio pela qual habitualmente fazemos derivar o conhecimento que nos toca

de nossas intuies primeiras, de nossas percepes imediatas. Tratar-se-ia, bem

entendido, de uma verdadeira converso. Assim: A formao do esprito cientfico

no apenas reforma do conhecimento vulgar, mas ainda uma converso dos interesses.

Reside nisso justamente o princpio do engajamento cientfico. Ele exige o abandono

dos primeiros valores . (Bachelard, 1977:32). A emergncia da cientificidade

corresponderia, pois, para usar ainda palavras de Bachelard, reforma de uma iluso

reforma que pressupe, enquanto tal, e por definio, a prpria conscincia do erro por

parte do sujeito do conhecimento. Donde o conselho: J que no h operao objetiva

sem a conscincia de um erro ntimo e primeiro, devemos comear as lies de

objetividade por uma verdadeira confisso de nossas falhas intelectuais . (Bachelard,

1996:297).

Isso que Bachelard tendia a tomar por um padro cognitivo caracterstico do tipo

de ruptura empreendida pelo novo esprito cientfico do sculo XX em relao

cincia doravante dita clssica, tendemos, de nossa parte, a identificar, no que tange a

nosso prprio campo de trabalho, quilo mesmo que chamaramos de a gnese do

pensamento terico no mbito dos Estudos Literrios. A teoria surge, assim, quando,

em vislumbre a uma certa iluso de base, lanamo-nos ao perscrutamento dos prprios

fundamentos do que at ento tnhamos por slido e auto-evidente em nosso fazer

X

cognitivo institucional. A cincia contempornea, declarava, a propsito, Bachelard

(1996:307), cada vez mais uma reflexo sobre a reflexo .

Voltemo-nos brevemente a um exemplo do tipo de ruptura a que nos referimos, o

qual, pela prpria importncia de seu protagonista, tende a tornar-se paradigmtico.

Prefaciando o clebre volume pstumo de Paul de Man emblematicamente intitulado

The resistance to theory, Wlad Godzich mapeia uma determinada ciso no escopo geral

da obra de seu mestre e amigo:

(1) a princpio, a imerso numa prxis de leitura crtica em si mesma no-

problematizada: Os seus primeiros ensaios , explica Godzich (1989:9-10),

constituem a fase propriamente crtica da sua atividade. Neles considerava autores to

clssicos como Montaigne e to modernos como Borges e interrogava-se sobre as

possibili dades atuais da poesia ou do sentido histrico na Amrica ;

(2) num certo momento, a crise e o autoquestionamento: A prpria prtica deste

tipo de crtica, prossegue Godzich (1989:10), levou-o a pr em questo a sua

validade, uma interrogao logo exacerbada pelo fato de ter entrado para a profisso

acadmica numa altura em que o new criticism estendia a sua hegemonia ao ensino da

literatura nas universidades americanas ;

(3) enfim, a ruptura, o redirecionamento: Comeou assim a preocupar-se mais

com questes de metodologia e a escrever mais acerca de outros crticos do que acerca

de poetas ou romancistas. Os resultados desta fase de sua obra encontram-se na edio

revista de Blindness and insight. Foi nos ensaios reunidos nesse volume que Paul de

Man articulou uma posio propriamente terica . (Godzich, 1989:10).

Observe-se que o engajamento terico de que ento se fala insurge-se no contra a

crtica literria pura e simplesmente, mas contra a postura pela qual a crtica tida por

uma atividade autofundamentada. Desnudada a iluso, a prpria pergunta pelos

fundamentos da reflexo crtica, bem como por seu alcance e seus limites, torna-se o

objeto privilegiado da reflexo terica ( reflexo sobre a reflexo). A teoria assim

concebida institui-se, antes de mais nada, como uma metacrtica (Compagnon).

Na base do presente trabalho, um movimento anlogo ao que acabamos de

descrever: da prtica de uma leitura crtica cuja conscincia orgulhosa de seu objeto era

a prpria medida da inconscincia-de-si que fundamentalmente a caracterizava

inquietao incitada, certa altura, pela dvida acerca do estatuto at ento

XI

confortavelmente atribudo ao objeto da leitura crtica, dvida essa em cuja origem ou

em cujo desdobramento no fcil ou mesmo possvel determinar identificar-se-ia a

prpria manifestao de uma determinada conscincia-de-si. Necessrio se fizesse o

reconhecimento de um marco nesse percurso, haveramos de remeter ao perodo em

que, seja na graduao, seja, subseqentemente, no bacharelado em Letras, entregamo-

nos aos desafios impostos pelo projeto de leitura crtica da obra de Kafka, especialmente

de um romance como O processo, tornado objeto de uma monografia que redigimos em

2002.1 A meio caminho, diramos, entre o perodo de redao da referida monografia e

o incio da redao desta dissertao de mestrado, consolidou-se a demanda pelo

redirecionamento a que acima fizemos meno, demanda qual procura responder o

prprio trabalho que ora damos a conhecer.

Tomada, tal como a concebemos, como reflexo metacrtica a indagar pela

natureza, pelos fundamentos, pelos limites do estudo literrio acadmico, a Teoria da

Literatura revela sua feio propriamente epistemolgica. do esclarecimento dessa

feio que nos ocuparemos, em profundidade, no captulo I: esse, diramos, nosso

captulo propriamente terico, do qual derivam diretamente as anlises desenvolvidas

nos outros dois captulos da dissertao, o primeiro deles dedicado epistemologia da

crtica literria, o segundo, epistemologia da Potica.

Na contramo, portanto, do clebre gesto de Antonio Candido a induzir os

leitores da Formao da literatura brasileira a saltarem a introduo terica do livro,

abordando-o diretamente pelo trabalho de anlise histrica,2 ressaltamos a primazia de

nosso captulo inicial na economia geral desta dissertao, a cuja maior ou menor

aceitao por parte do leitor submeter-se- a maior ou menor aceitao que o prprio

trabalho como um todo haver ou no de ter.

1 SOUZA, Nabil Arajo de. Do esclarecimento como cegueira: vestgios do trgico em O processo deKafka. 2002. 18 f. Monografia (Bacharelado em Letras) Faculdade de Letras, Universidade Federal deMinas Gerais, Belo Horizonte.

2 A leitura desta Introduo dispensvel a quem no se interesse por questes de orientao crtica,podendo o livro ser abordado diretamente pelo Captulo I . (Candido, 1969:23).

1

1. TEORIA DA LITERATURA COMOEPISTEMOLOGIA INTERNA DOS ESTUDOS LITERRIOS

H uma enorme vontade de cincia que atravessa os estudos literrios.(Prado Coelho, 1981:84).

A teoria da literatura no a polcia das letras, mas de certa forma suaepistemologia. (Compagnon, 2001:15).

O enlace que pretendemos entre epistemologia e teoria da literatura no serigualmente positivo se adotamos este ou aquele ponto de vista sobre aepistemologia. (Costa Lima, 1975:12).

1.1. Relevncia de uma epistemologia interna dos Estudos L iterr ios

1.1.1. Considere-se, de incio, o seguinte estado de coisas:

(1) seja uma dada comunidade de leitores, um dado contexto scio-histrico de

enunciao: textos determinados so lidos como possuindo um carter diferenciado ou

especfico em relao a todos os outros textos enunciados ou a serem enunciados na

mesma ou em qualquer outra lngua em considerao; denominam-se-lhes obras

literrias;

(2) a despeito da ausncia de uma definio intersubjetivamente compartilhada da

real natureza ou dimenso da alegada especificidade dos textos ditos literrios, a

referida comunidade de leitores parece conceber a existncia mesma dessa

especificidade como auto-evidente, a ponto de consider-la um fato ou uma realidade;

observar-se-ia, assim, um certo saber espontneo, um certo conhecimento intuitivo, um

certo senso comum acerca do que se poderia chamar realidade literria;

(3) um dado subgrupo da referida comunidade de leitores, partindo do pressuposto

da auto-evidncia da realidade literria, incumbe-se e a exemplo do que ocorre com

outras realidades de tom-la como objeto de estudo e investigao mais ou menos

sistemticos, produzindo, com isso, um dado discurso que se pretende especializado; o

discurso dito especializado acerca da realidade literria recebe a alcunha acadmica de

Estudos Literrios;

2

(4) a confiana generalizada na efetividade da especializao alegada pelos

Estudos Literrios atua no sentido de legitimar socialmente a figura do especialista em

literatura, sobretudo a autoridade do professor de literatura, ento concebido como

porta-voz acadmico ou escolar do verdadeiro conhecimento literrio em detrimento

do saber espontneo, do conhecimento meramente intuitivo acerca da realidade literria;

torna-se tautolgico falar em ensino de literatura, quando a literatura aquilo que se

ensina, e ponto final . (Barthes, 1988d:53).

Isso posto, considere-se uma primeira aproximao do problema de que aqui nos

ocuparemos: sejam os Estudos Literrios tal como vieram a se constituir ao longo do

tempo: em que se sustenta o discurso de autoridade por eles instaurado? o que dizer dos

fundamentos, da validade e dos limites do saber veiculado por esse discurso? em que

sentido, afinal, poder-se-ia tomar o conhecimento produzido nesse mbito como

efetivamente distinto do saber espontneo e meramente intuitivo do senso comum

acerca da realidade literria?

1.1.2. Antes de mais nada, seria preciso ressaltar que essas no so indagaes que se

impem naturalmente. Elas pressupem, antes, como se percebe, uma certa

instabili dade da confiana votada ao saber institudo pelos Estudos Literrios, ao

conhecimento literrio dito especializado na forma tal qual ento se apresenta, e

preciso lembrar, a esse respeito, que a maioria dos professores e especialistas em

literatura desenvolvem, na maior parte do tempo, suas atividades acadmicas, de

ensino e pesquisa, como se de fato nunca lhes tivesse abatido a menor dvida acerca da

natureza e da legitimidade do conhecimento que produzem ou reproduzem

institucionalmente, ou do modo como as disciplinas ou domnios em que atuam

encontram-se definidos e estruturados institucionalmente. Seja como for, as fissuras

existem, e no raramente do origem a crises.3 No outro seno esse, como veremos, o

mbito por excelncia da teoria no campo dos Estudos Literrios.

3 Tambm Santos (2002:99), ao chamar a ateno para o carter ritualstico da crtica literriainstitucionalizada, bem como para a resistncia arraigada, nesse mbito, a se retomarem questesconsideradas bsicas ou primitivas, no deixa, por outro lado, de reconhecer: H, no entanto, pontos deinflexo, momentos de mudana em que o poder de legitimao dos rituais entra em crise. quando asquestes bsicas insistem em voltar cena, e a obviedade ganha uma curiosa espessura, uma estranhezampar e desafiadora, fazendo com que as convenes ritualsticas que garantiam a estabili dade dosmodelos de pensar sejam encaradas precisamente em seu carter convencional .

3

Douwe Fokkema explicitou bem, a nosso ver, a referida relao entre crise do

saber institudo e reflexo terica nos Estudos Literrios, ao fazer, algum tempo atrs, o

balano do que chamou de questes epistemolgicas inerentes a esse domnio.

Afirma, de incio, Fokkema (1995:399):

Desde a publicao da obra de Hirsch, Validity in Interpretation (1967), asquestes relativas justificao das proposies no que respeita literaturatornaram-se mais insistentes. Segundo o dicionrio americano Webster, avalidade deve apoiar-se numa verdade objetiva ou numa autoridadegeralmente reconhecida. Mas s raramente se menciona nos nossos diasqualquer verdade objetiva e que autoridade gozar ainda doreconhecimento geral? No surpreendente que a questo da validade dasnossas propostas sobre a literatura no depare com uma resposta fcil .

Fokkema reconhece, como se v, uma espcie de crise de legitimidade nos

Estudos Literrios contemporneos, provocada, segundo ele, pelo desprestgio de meios

tradicionais de justificao ou validao do conhecimento tais como o recurso

verdade objetiva ou autoridade reconhecida . Poder-se-ia argumentar, certo, que

a referida crise no diz respeito nem exclusivamente nem mesmo predominantemente

aos Estudos Literrios, ou, mesmo, que crises de legitimidade como a que se refere

Fokkema so inerentes dinmica prpria dos diversos campos do saber humano,

dentre eles o do estudo da literatura, com suas especificidades. Interessa-nos, antes,

contudo, a idia, sustentada na seqncia pelo autor, de que o avultamento da crise no

constituiria um impedimento para a reflexo terica, mas antes, pelo contrrio, o prprio

estmulo ou desencadeamento de tal reflexo. Isso fica claro quando o autor constata

estarmos a vivenciar nos Estudos Literrios contemporneos uma situao em que,

segundo ele, se as regras de um argumento no forem questionadas, chamamos-lhes

ideolgicas ou seja, uma situao de suspeio generalizada em relao ao discurso

dito especializado , sendo que a prpria popularidade dessa Ideologiekritik, dessa

crtica da ideologia, configuraria justamente um sintoma da referida crise de

legitimidade que atravessariam os Estudos Literrios.

Dir-se-ia a entrevista, ainda que num plano estritamente sincrnico, o que

poderamos chamar de a gnese do pensamento terico no mbito dos Estudos

Literrios: a reflexo terica surge, em outras palavras, justamente quando a

inquietao epistemolgica se instala e impe, com isso, uma determinada demanda; e

surge, diramos, no tanto como sintoma, como quer Fokkema, mas sobretudo como

problematizao daquela inquietao, como resposta quela demanda. Dir-se-ia ser

4

esse, com efeito, o papel de um domnio de feies e limites to controversos quanto o

da Teoria da Literatura doravante TL , pelo menos tal como o estamos aqui a

conceber, na esteira, alis, de um Compagnon (2001:15): como epistemologia dos

Estudos Literrios entendendo-se a epistemologia, lato sensu, justamente como a

reflexo sobre os fundamentos, a validade e os limites do conhecimento dito cientfico

ou especializado.

A TL, na definio de Compagnon (2001:21), contrasta com a prtica dos

estudos literrios, isto , a crtica e a histria literrias, e analisa essa prtica, ou melhor,

essas prticas, descreve-as, torna explcitos seus pressupostos, enfim critica-os (criti car

separar, discriminar) . A TL seria, assim, ainda de acordo com o terico francs, uma

espcie de crtica da crtica, ou uma metacrtica: colocam-se em oposio uma

linguagem e a metalinguagem que fala dessa linguagem; uma linguagem e a gramtica

que descrevesse seu funcionamento . (Compagnon, 2001:21).4 medida que o produto

dessa metacrtica pudesse ser revertido em proveito dos prprios Estudos Literrios,

sobretudo por meio de uma tomada de conscincia do especialista dessa rea em relao

a aspectos at ento negligenciados, ou, mesmo, ignorados de sua prpria atividade, a

TL revelar-se-ia, na verdade, uma genuna epistemologia interna dos Estudos Literrios,

na acepo que um epistemlogo como Japiassu (1979:17) confere a esse termo, ou

seja, a de uma anlise crtica que se faz dos procedimentos utili zados por uma dada

disciplina, tendo em vista estabelecer os fundamentos dessa disciplina, de modo a

integrar seus resultados no domnio da cincia analisada.

1.1.3. Ressaltemos que se, por um lado, o presente trabalho busca justamente inserir-se

no quadro de uma investigao do que se poderia chamar de os fundamentos gerais do

conhecimento literrio especializado tal qual se nos apresenta em sua verso

especificamente acadmica com o que deliberadamente vincula-se, portanto, ao

projeto de uma TL stricto sensu concebida como epistemologia interna dos Estudos

Literrios, ou metacrtica, como quer Compagnon, donde, alis, a ausncia de

4 Mais de uma dcada antes de Compagnon, Carlos Reis j afirmava, em tom programtico: De tal modose tm sucedido e confrontado, ao longo dos anos, as vrias metodologias crticas e, por extenso, asdistintas linguagens obviamente por elas arrastadas, que possvel pensar numa criticologia, quer dizer,numa metacrtica que, como o nome indica, assuma como objeto de estudo no o texto literrio, mas ametalinguagem que resulta da sua abordagem e os princpios operatrios em que assenta essaabordagem. (Reis, 1981:31).

5

ineditismo no que concerne a seu escopo geral , procura faz-lo, por outro lado, em

franca recusa ao tratamento tradicionalmente dispensado ao problema, articulando-se,

na verdade, como uma tentativa de fornecer uma outra resposta ao mesmo, esboada, a

nosso ver, por determinados tericos, mas no levada a cabo satisfatoriamente por

nenhum deles. Ser preciso, pois, esclarecer a contento os termos em que tudo isso

concebido.

Explicitemos de antemo a esse respeito nossa convico de que, como explicam

Maturana & Varela (1997:111), qualquer observao, mesmo a que permite reconhecer

a validade efetiva de uma afirmao cientfica, implica uma epistemologia, o que

equivale a dizer que toda e qualquer anlise epistemolgica pressupe, necessria e

invariavelmente, uma dada teoria epistemolgica de base, isto , pressupe um corpo

de noes conceituais explcitas ou implcitas que determina a perspectiva da

observao e, portanto, que se pode e que no se pode observar, que e que no

avaliado pela experincia, que e que no explicvel mediante um conjunto

determinado de conceitos tericos . (Maturana & Varela, 1997:111). Assim sendo,

diramos que a primeira exigncia a um projeto epistemolgico verdadeiramente ciente

desse estado de coisas justamente a de procurar explicitar tanto quanto possvel a

prpria teoria de base, as prprias noes conceituais luz das quais atuar, relegando a

um mnimo o nmero de concepes tcitas ou irrefletidas a servir de escoras

argumentativas para o epistemlogo em questo.

Isso to mais importante, no nosso caso, quando se leva em conta a habitual

negligncia, ou o mais completo desconhecimento at, por parte dos profissionais dos

Estudos Literrios, em relao ao que estudado e discutido no mbito da

epistemologia em geral, mesmo, ou sobretudo, quando se propem a tecer

consideraes sobre o carter ou a natureza do conhecimento que produzem. Como nos

lembra Prado Coelho (1982:90) a respeito:

Razo tinha Charles Pguy ao escrever que a maior parte dos abusos dapalavra cincia foram cometidos na classe das letras. Raras vezes surge nomundo literrio a curiosidade de saber o que na realidade se passa no ladode l dessa cincia onde se vo buscar as mitologias do rigor, o prestgio e atradio. H uma quase total incomunicabili dade entre este mundo das letrase o mundo das cincias que se conhece apenas por ouvir falar. Da que todo odebate que percorre a filosofia das cincias contemporneas parea ficar margem das preocupaes literrias mesmo quando se pretendemcientficas, sobretudo quando se pretendem cientficas. E sobretudo por umarazo simples: que um mnimo de informao abalaria certas convicesdemasiado estabelecidas.

6

Mas que tipo de convices, afinal, uma anlise crtica dos fundamentos dos

Estudos Literrios seria capaz de abalar, e de que forma? Antes de mais nada, que tipo

de anlise epistemolgica dos Estudos Literrios estaramos dispostos a fazer, e por

qu? Cabe-nos, com efeito, antes de qualquer esboo de um programa especfico de

investigao epistemolgica dos Estudos Literrios, explicitar tanto quanto possvel o

que haveremos de tomar neste trabalho por epistemologia sua natureza, seu escopo,

seu alcance. o que faremos a seguir.

1.2. Prolegmenos a uma epistemologia interna dos Estudos L iterr ios

1.2.1. Se se concebe de fato a TL, para retomar a analogia usada por Compagnon, como

uma gramtica a se ocupar da linguagem dos Estudos Literrios, preciso lembrar

que h diferentes visadas gramaticais, as quais postulam distintas concepes de

linguagem e sustentam distintas posturas frente a seu objeto de estudo. Basta dizer, por

exemplo, que a concepo de linguagem pressuposta pela tradicional gramtica

normativa no a mesma pressuposta pelas modernas gramticas ditas descritivas, e

que enquanto a primeira reveste-se de um vis deliberadamente prescritivo, ou seja,

incumbe-se de determinar, de acordo com uma dada tradio, o que deve e o que no

deve ser a linguagem, as segundas, por sua vez, e a despeito das diferenas entre si,

procuram apreender a linguagem tal como ela , ou, antes, tal como ela se d a

conhecer luz de uma dada teoria lingstica. Ora, o mesmo parece ocorrer, em linhas

gerais, no mbito da reflexo epistemolgica propriamente dita.

Santos (1995:21) nos lembra, a propsito, que no concernente definio e

apreenso do objeto da epistemologia, h uma discrepncia entre os que pretendem

estudar na epistemologia a normatividade pura e os critrios formais da cientificidade e

os que, ao invs, pretendem estudar nela a facticidade da prtica cientfica luz das

condies em que ela tem lugar . Diramos que ambas as perspectivas mencionadas

poderiam ser tomadas como gramticas a se ocupar do funcionamento da cincia. A

diferena, no caso, que enquanto a segunda vai buscar na anlise efetiva da prxis

cientfica suas respostas acerca de como as diversas disciplinas e campos do saber

humano de fato funcionam e nisso residiria seu carter descritivo , a primeira

comporta-se como se isso fosse desnecessrio, como se de fato no houvesse dvida

7

acerca do que ou do que deve ser a cincia, do que a distingue inequivocamente da

no-cincia ou da pr-cincia, cabendo ao epistemlogo justamente explicitar e

sistematizar os inequvocos critrios formais da cientificidade. Ao incumbir-se, assim,

de determinar, a partir de uma concepo unvoca de cincia e cientificidade, os

critrios e normas que uma dada atividade intelectual deve cumprir para ser considerada

cientfica, esse tipo de epistemologia acaba por converter-se, a exemplo do que ocorre

com a gramtica normativa, numa verdadeira preceptstica. Vejamos as contradies

que isso parece implicar.

1.2.2. O gramtico normativo prope-se, em linhas gerais, a estabelecer para os diversos

usurios de uma dada lngua o que deve ser tomado como o bom uso da mesma; toma

por base, para tanto, dentre as mais diversas variedades de uso da lngua em questo,

aquela a que chama de lngua padro , procurando fornecer algo como a explicitao

sistematizada e formalizada do que julga serem as regras inerentes a esse bom uso ou

uso exemplar da lngua. Cabe Gramtica , diz-nos, com efeito, o gramtico

normativo, registrar os fatos da lngua geral ou padro, estabelecendo os preceitos de

como se fala e escreve bem ou de como se pode falar e escrever bem uma lngua.

(Bechara, 1985:25). Mas o que faria, afinal, dessa pretensa lngua padro superior e

prefervel s demais variedades de uso da lngua, a ponto de se poder tom-la

inequivocamente, como quer o nosso gramtico, como correspondendo totalidade do

que seja o bem falar e o bem escrever nessa dada lngua? Dentro da diversidade

das lnguas ou falares regionais , explica-se o gramtico normativo, se sobrepe um

uso comum a toda a rea geogrfica, fixada pela escola e utili zada pelas pessoas cultas:

isto o que constitui a lngua geral, lngua padro ou oficial do pas . (Bechara,

1985:24).

Posto que o alegado uso comum de uma dada lngua no mbito de todo um

territrio nacional s pode ser tomado como uma abstrao mais ou menos ilegtima,

dir-se-ia figurarem como os verdadeiros critrios da alegada superioridade da chamada

lngua padro o ser fixada pela escola e o ser utili zada pelas pessoas cultas. Mas o que

faria, afinal, da lngua utili zada pelas pessoas cultas ou escolarizadas superior e

prefervel s demais formas de linguagem? O gramtico normativo no parece se

colocar essa pergunta; procede, portanto, como se a alegada superioridade fosse auto-

8

evidente e inequvoca, quando, na verdade, apenas por um juzo de valor prvio e

injustificado assim o seria; um juzo segundo o qual como mostra bem, alis, uma

disciplina como a sociolingstica o valor de uma dada variedade de uso da lngua

seria diretamente proporcional ao capital scio-econmico-cultural de seus usurios.

Isso posto, restaria ainda a considerar o direito que se arroga o gramtico de

codificar a variedade de uso da lngua a que chama padro, a despeito de se vir a

consider-la melhor ou pior do que as demais formas de linguagem. Para que esse

direito se confirmasse legtimo, seria preciso ter certeza de que aquilo que o gramtico

codifica mesmo um determinado uso efetivo da lngua, e no, apenas, uma projeo

arbitrria do prprio gramtico acerca do que seja ou do que deva ser esse uso; de que

o gramtico de fato no um legislador do idioma nem tampouco o tirano que defende

uma imutabili dade do sistema expressivo . (Bechara,1985:25). Seria preciso, em suma,

a confirmao de que o que faz, de fato, o gramtico normativo, simplesmente, como

ele mesmo diria, ordenar os fatos lingsticos da lngua padro na sua poca, para

servirem s pessoas que comeam a aprender o idioma tambm na sua poca

(Bechara,1985:25); codificando e sistematizando as regras pelas quais se regem esses

fenmenos, tirando-as da observao concreta e diria da linguagem e jamais

concluindo teoricamente, a priori, sem o absoluto e indispensvel apoio dos fatos

prticos do idioma. (Silveira Bueno,1963:16; grifo nosso).

Mas em que consistiria, afinal, esse trabalho de observao concreta e diria da

linguagem, do qual dir-se-ia, alis, fundamentar e justificar o prprio carter

normatizante do discurso gramatical ao menos, diramos, em relao a uma

determinada variedade, dita padro, de uso da lngua? Ora, bem conhecido o corpus

lingstico de que se costumam servir nossos gramticos normativos; no que tange, a

mero ttulo de ilustrao, a um tpico como colocao pronominal, campeiam em

nossas gramticas como supostos exemplos desses fatos prticos do idioma de que

nos fala o gramtico exemplos esses que presumivelmente representariam a lngua

geral ou padro contempornea a partir da qual dir-se-ia estabelecerem-se, como

vimos, as regras do bem falar e do bem escrever ali expostas nada menos do que

trechos aleatrios de Cames, S de Miranda, Padre Antonio Vieira, Padre Manoel

Bernardes, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Ea de Queirs, Machado de

9

Assis, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Rui Barbosa, entre outros.5 Note-se que a

pliade em questo formada sobretudo por autores portugueses, anteriores ao sculo

XX, bem como o fato de que os normalmente mais citados so os mais antigos, ou os

mais clssicos ! E apesar de se reconhecer, por exemplo, que na linguagem caseira do

Brasil , todos dizemos: Me passe o feijo! Me d um pouco dgua! (Silveira Bueno,

1963:353), decreta-se que, na verdade:

Em todo e qualquer idioma h trs classes de linguagem: a popular, asemiliterria e a literria. A nica destas trs que representa a lngua aliterria e nunca a popular, a caseira. Os plebesmos, as corruptelas dasexpresses populares no podem formar o padro representativo da lnguaculta e policiada. Logo, tais modos de comear a frase no so para imitar emuito menos para fundamentar regras do bom e correto falar portugus.(Silveira Bueno, 1963:353).

Este, portanto, o grande paradoxo do gramtico-preceptor: a fim de estabelecer as

regras contemporaneamente vigentes do bem falar e do bem escrever remete a uma

suposta lngua padro contempornea, a qual, ao invs de ser inferida de uma anlise do

uso que efetivamente hoje fazem da lngua aqueles de quem se diria bem falar e bem

escrever, , antes, inferida de uma leitura viciada dos chamados clssicos da literatura

verncula. Ora, um tal procedimento s se justificaria se se pudesse de fato tomar o que

a se chama de lngua literria como verdadeiramente representativa do uso que

efetivamente hoje fazem da lngua seus falantes escolarizados, ditos cultos , o que

decisivamente no procede.6

Longe, portanto, de simplesmente codificar a posteriori um determinado uso

efetivo, dito padro, da lngua contemporaneamente falada ou escrita, todo o trabalho do

gramtico normativo estrutura-se, antes, sobre a certeza tcita de uma ruptura

inequvoca entre uma suposta lngua literria, injustificadamente tomada como

representativa do referido uso dito padro, e uma suposta lngua comum, ou fora do

padro , bem como da inquestionvel superioridade da primeira em relao segunda, a

despeito de nada disso ser auto-evidente ou garantido de antemo a no ser, claro,

por uma certa opo arbitrria da parte do prprio gramtico, sendo que a usual

remisso, nesse caso, a uma dada tradio , no destitui o procedimento como um todo

5 Cf., por exemplo, Bechara (1985:253-273); Silveira Bueno (1963:350-362).

6 Basta lembrar, por exemplo, a normalidade, entre os mesmos, de construes como Me passe ofeijo! , Me d um pouco dgua! , em total desconsiderao s regras de nclise pronominalestabelecidas pela gramtica normativa.

10

dessa arbitrariedade. Erige-se, dessa forma, como modelo de correo lingstica, uma

determinada imagem arbitrria e ilusria de linguagem, em detrimento do uso que,

bem ou mal , efetivamente fazem da lngua os usurios da mesma; o gramtico

normativo no sistematiza ou codifica, em suma, nada alm daquilo que julga

arbitrariamente dever ser a lngua, e to-somente nisso que se fundamenta sua

pretensa autoridade.

Tal perspectiva apresenta a evidente vantagem da comodidade oferecida pela

adoo a priori de um critrio especfico de fundamentao e autoridade, ento tido por

inquestionvel, apesar de indemonstrvel; apenas que o preo a ser pago, nesse caso,

nada menos do que a total incomunicabili dade entre norma e prxis a no ser, claro,

pelo intuito arrogante de submeter a segunda primeira. Alm do mais, na pior das

hipteses, nenhuma tradio dura para sempre, e constantemente nos vemos obrigados,

mais ou menos constrangedoramente, a renovar os parmetros de autoridade, os

modelos seguros a serem seguidos a fim de se alcanar a correo: no se viram,

afinal de contas, muitos preceptores de nossa lngua levados a complementar, ou mesmo

a substituir, com o tempo, os imortais exemplos oriundos dos clssicos sagrados da

literatura verncula, por ilustraes buscadas junto a fontes tidas por bem mais

modestas, como a literatura contempornea, a MPB, a publicidade e a imprensa escrita

em geral?

Isso posto, diramos que um epistemlogo que tomasse por objeto a

normatividade pura e os critrios formais da cientificidade, como afirma Santos a

propsito, ver-se-ia enredado guardadas, evidentemente, as devidas propores nas

mesmas contradies que o gramtico que toma por objeto a normatividade pura e os

critrios formais da correo lingstica. A perspectiva epistemolgica da qual dir-se-

ia perfeitamente encarnar esse perfil , chamamo-la positivista. Sua principal

caracterstica justamente a tendncia em procurar normatizar o conhecimento humano

luz de uma concepo inflexvel de cincia e cientificidade. Apesar de suas origens

poderem ser rastreadas j na filosofia da cincia do sculo XVII, e de seus

desdobramentos mais sofisticados terem sido desenvolvidos apenas no sculo XX, foi

no sculo XIX, como se sabe, a partir, sobretudo, da obra de Auguste Comte, que o

positivismo, enquanto corpo sistematizado e doutrinrio de pensamento, veio a

consolidar-se inequivocamente na histria das idias no Ocidente.

11

1.2.3. No incio do sculo XIX, o saber cientfico apresentava-se como um sistema

coerente e bem estabelecido, relativamente simples, em que o bom senso funcionava a

partir de princpios universais, bastante fiel ao real para ser utili zado como um conjunto

de estratgias adaptadas prtica , lembra-nos Japiassu (1975:94). Os contemporneos

de Laplace, sobretudo Comte, continua o autor, estavam convictos de que esse

monumento esgotava nossas exigncias de rigor e de preciso, que ele fornecia solues

e respostas altura exata da amplitude de nossas necessidades . De um ponto de vista

filosfico, a doutrina positivista da cincia traduzir-se-ia, em suma, pela confiana

excessiva que a sociedade industrial depositou na cincia experimental . (Japiassu,

1979:66). essa confiana que se encontra na base de todo o edifcio da filosofia

positiva comteana, cujo principal objetivo, segundo o prprio Comte (1973a:21), era o

de conhecer, de forma precisa, as regras gerais convenientes para proceder de modo

seguro na investigao da verdade as quais seriam buscadas nica e exclusivamente

no estudo das cincias desenvolvidas , estabelecendo, com isso, algo como um

mtodo positivo de conhecimento, visando seja reorganizao dos mtodos de

educao, seja resoluo de eventuais questes cientficas pendentes, seja, sobretudo,

reorganizao da prpria sociedade.

O perfil do epistemlogo, numa perspectiva como essa, seria, assim, o de uma

espcie de gramtico do conhecimento humano que tomasse para si a tarefa de

estabelecer as regras inequvocas e definitivas do bom conhecimento, ou do

conhecimento vlido ou verdadeiro , por ele derivadas de sua anlise da positividade

supostamente inerente cincia moderna, e s a ela. Mas o que tornaria, afinal, o

conhecimento dito cientfico superior e prefervel a todas as demais manifestaes do

saber humano, a ponto de se poder tom-lo inequivocamente, como quer o terico

positivista, como correspondendo totalidade do que seja o bom ou o verdadeiro

conhecimento?

Para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o carter prprio da

filosofia positiva, declara, a propsito, Comte (1973a:9), indispensvel ter, de

incio, uma viso geral sobre a marcha progressiva do esprito humano, considerado em

seu conjunto, pois uma concepo qualquer s pode ser bem conhecida por sua

histria. Comte julgava ento ter descoberto o que chama de uma grande lei

fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invarivel , segundo a qual cada

12

uma de nossas concepes principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa

sucessivamente por trs estados histricos diferentes: estado teolgico ou fictcio,

estado metafsico ou abstrato, estado cientfico ou positivo . (Comte, 1973a:9-10). No

primeiro e mais primitivo estado, o esprito humano dirigir-se-ia para a essncia dos

seres, para as causas ltimas dos eventos, numa palavra, para os conhecimentos

absolutos, explicando todos os fenmenos pela ao direta e contnua de agentes

sobrenaturais; o segundo estado tomado por Comte como simples modificao geral

do primeiro , na qual substituem-se os agentes sobrenaturais por foras abstratas; no

estado positivo propriamente dito, o esprito humano renunciaria busca por essncias,

causas ltimas, noes absolutas, em favor, nica e exclusivamente, da observao dos

fatos, e da derivao, a partir dos mesmos, de relaes invariveis e leis necessrias. O

estado teolgico tomado por Comte como o ponto de partida necessrio da

inteligncia humana, o positivo como seu estado fixo e definitivo , e o metafsico

como destinado unicamente a servir de transio .

Essa, portanto, a famosa lei dos trs estados de Auguste Comte, de cuja

veracidade dependeria a legitimao da prpria filosofia positiva comteana: uma vez

confirmado o estado positivo supostamente instaurado pela cincia moderna como o

pice mesmo do processo de desenvolvimento da inteligncia humana, ver-se-ia

justificado o mtodo positivo professado por Comte como o mtodo por excelncia do

conhecimento vlido e verdadeiro. Mas o que garantiria, afinal, a validade da prpria lei

que Comte julga ter descoberto?

Em primeiro lugar , afirma o autor a respeito (Comte, 1973a:11) basta, parece-

me, enunciar tal lei para que sua justeza seja imediatamente verificada por todos aqueles

que possuam algum conhecimento aprofundado de histria geral das cincias . Como

que percebendo, contudo, a fragili dade de tal afirmao, Comte procura corrobor-la

por meio da considerao do que chama de desenvolvimento da inteligncia

individual e de sua suposta relao com o desenvolvimento do esprito humano em

geral, tal como o concebe. O ponto de partida sendo necessariamente o mesmo para a

educao do indivduo e para a da espcie, as diversas fases da primeira devem

representar as pocas fundamentais da segunda, declara, com efeito. (Comte,

1973a:11). Ora, continua o autor, cada um de ns, contemplando sua prpria

histria, no se lembra de que foi sucessivamente, no que concerne s noes mais

13

importantes, telogo na sua infncia, metafsico em sua juventude e fsico em sua

virili dade? E antes que se possa esboar qualquer discordncia, Comte arremata sua

argumentao com um apelo que s faz escancarar o carter vicioso da mesma: Hoje

fcil esta verificao para todos os homens que esto ao nvel de seu sculo (grifo

nosso). Trata-se, como se v, de uma evidente petio de princpio!

Comte acaba por tomar, em outras palavras, como ponto de partida de sua

demonstrao, nada menos do que o prprio argumento que deveria ser provado to-

somente ao final dessa mesma demonstrao. Se o seu intuito, consiste, nesse caso, em

justificar e legitimar a crena na positividade absoluta do esprito cientfico , postulado

bsico de todo o seu projeto filosfico, por meio do recurso anlise do que chama de

marcha progressiva do esprito humano, sob a qual teria descoberto, como vimos,

uma pretensa lei do desenvolvimento humano, Comte procede, na verdade, como se

exigisse, sub-repticiamente, o tempo todo, como lastro para sua demonstrao, nada

menos do que estar ao nvel do sculo , isto , estar em consonncia plena com a

referida crena na positividade absoluta do esprito cientfico! O pretenso carter

absoluto e a pretensa superioridade da cincia moderna seriam assim comprovados

por meio de uma narrativa do desenvolvimento intelectual humano cujo ponto de

partida justamente a crena irrestrita no carter absoluto e na superioridade da cincia

moderna!

Trata-se, dessa forma, menos de uma questo de lgica do que de uma questo de

f: tudo parece teleologicamente convergir para o Esprito Positivo, quando se est

imbudo a priori da crena no Esprito Positivo, tal como dir-se-ia tudo convergir para o

Esprito de Deus, quando se est imbudo a priori da crena no Esprito de Deus! Essa

postura de crena irrestrita e injustificada nos poderes supostamente ilimit ados da

cincia moderna que aqui identificamos na base mesma do positivismo comumente

conhecida, na histria das idias, por cientismo ou cientifi cismo.

A postura cientificista ante o problema do conhecimento humano delineia-se j no

sculo XVII, sobretudo com a obra de um Francis Bacon que acabou por alimentar,

sobremaneira, o desenvolvimento da moderna ideologia que associa estreitamente e de

maneira causalista mtodo cientfico , progresso tcnico e desenvolvimento

humano , consolida-se como mentalidade vigente em meio ao mainstream da

inteligncia ocidental com o Iluminismo e o Enciclopedismo franceses, no sculo

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XVII I, e levada sua mxima formulao pelo pensamento positivista dos oitocentos,

cuja influncia se faz sentir at hoje. Mas o que pretende, afinal, o cientificismo? O

propsito cientificista poderia ser definido, em suma, como o de invalidar, por

princpio, toda e qualquer outra forma de conhecimento que no satisfaa s exigncias

do conhecimento positivo propriamente dito . (Japiassu, 1975:76). Dois grandes

postulados de base caracterizariam a mentalidade cientificista, de acordo com Granger

(1989:158): (i) O conhecimento cientfico, no apenas no seu projeto, mas sob sua

forma e com suas tcnicas atuais absoluto ; (ii ) Todo problema redutvel a um

problema cientfico . Esses seriam temas, ainda segundo Granger, que se desenvolvem

num culto cincia, como aspecto vivido de civili zao e num fechamento agressivo a

toda outra forma de apreenso da experincia humana.

Semelhante postura, que pretende submeter a totalidade dos valores jurisdio

da verdade cientfica , conclui Japiassu (1975:73) a respeito, est fundamentada num

juzo de valor prvio, praticamente impossvel de ser racionalmente justificado . A se

supor, assim, num primeiro momento, no existir dvida alguma acerca do que deva ser

tomado por razo cientfica , por conhecimento cientfico propriamente dito , ainda

assim constataramos no haver, na base mesma disso que poderamos chamar de

radical intolerncia positivista a todo e qualquer tipo de alteridade epistemolgica, nada

alm de uma escandalosa metafsica. Nada, em resumo, pareceria garantir ao

epistemlogo positivista que o que toma por cincia constitui um saber

inquestionavelmente absoluto e inquestionavelmente superior a toda e qualquer outra

forma de conhecimento seno um parti pris completamente arbitrrio de sua parte tal

como, diramos, o do gramtico normativo em relao superioridade da lngua padro

de que julga se ocupar.

Isso posto, restaria ainda a pergunta pelo direito que se outorga o epistemlogo

positivista de estabelecer os critrios e parmetros definitivos dessa atividade a que

chama cincia, a despeito de se vir a consider-la melhor ou pior do que as demais

formas de conhecimento. Para que se reconhecesse tal direito o direito, em suma, de

codificar a atividade dita cientfica , seria preciso a certeza de que a idia de cincia

sustentada pelo epistemlogo positivista corresponde aos fatos , ou seja, ao modo pelo

qual dir-se-ia efetivamente funcionar a atividade dita cientfica.

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A esse respeito, seria preciso lembrar, antes de mais nada, que para o

cientificismo positivista o modelo acabado de cientificidade a fsica moderna, de

matriz newtoniana, no sendo gratuito que um Comte tenha associado, como vimos, o

que tomava pelo estado de mais alto de desenvolvimento da inteligncia humana,

individual e coletiva, imagem do fsico em oposio do telogo e do metafsico

, nem que tenha tomado, por exemplo, como ilustrao privilegiada do tipo de

positividade racional que quis ver associado a seu projeto filosfico a explicao dos

fenmenos gerais do universo fornecida pela lei de gravitao newtoniana: por um lado,

declara Comte (1973a:13), (a) essa bela teoria nos mostra toda a imensa variedade dos

fatos astronmicos, como constituindo apenas um nico e mesmo fato considerado de

diversos pontos de vista: a tendncia constante de todas as molculas umas em relao

s outras na razo direta de suas massas e na razo inversa do quadrado das distncias ;

por outro lado, continua o autor, (b) esse fato geral se nos apresenta como simples

extenso de um fenmeno eminentemente familiar e que, por isso mesmo, o

consideramos como particularmente conhecido, a gravidade dos corpos na superfcie da

terra . Em suma: o mrito de Newton residiria justamente em ter descoberto a lei geral

subjacente aos fatos astronmicos observados a chamada lei da gravitao universal

, e em associar, por fim, essa lei, no a algum tipo de causa ltima, teolgica ou

metafsica, mas a um fenmeno bem conhecido e familiar, posto que observvel: a

gravidade dos corpos na superfcie da Terra.

A fsica moderna encarnaria assim, exemplarmente, a prpria concepo

positivista de cincia como uma atividade que, tendo abolido definitivamente a

indagao pelas causas ltimas e pelas essncias das coisas caracterstica da teologia e

da metafsica , atm-se estritamente observao dos fatos, tomada como nica base

possvel de conhecimentos verdadeiramente acessveis, e derivao de leis gerais

invariveis a partir dos mesmos. No estranha, assim, que Comte (1973b:54) tenha

decretado, como regra fundamental do Esprito Positivo, que toda proposio que no

seja estritamente redutvel ao simples enunciado de um fato, particular ou geral, no

pode oferecer nenhum sentido real e inteligvel , sendo sempre de sua conformidade,

direta ou indireta, com os fenmenos observados que resulta exclusivamente sua

eficcia cientfica.

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Tal regra fundamental poderia ser tomada, alis, como a divisa mxima de uma

das mais importantes escolas filosficas do sculo XX, qual convencionou-se

sintomaticamente chamar de positivismo lgico, ou simplesmente neopositivismo, e que

acabou por converter-se num dos grandes pilares da epistemologia contempornea,

sobretudo em terreno anglo-saxo.7 De acordo com o positivismo lgico, trata-se, com

efeito, de (a) decretar irrevogavelmente a ininteligibili dade, a no-significncia e a

conseqente a-cientificidade de todo e qualquer enunciado ou discurso que, referindo-se

a uma determinada realidade, no se preste, contudo, verificao, alm de (b)

delimitar, em contrapartida, com o mximo de rigor possvel, os critrios mesmos no

somente de verdade e falsidade dos enunciados empricos, mas tambm de seu sentido.

A verificabili dade seria assim erigida em critrio nico e definitivo para a

determinao da significncia ou no de um dado enunciado emprico; para o

positivismo lgico, j no se poderia contentar, apenas, com o critrio da

verificabili dade direta, via percepo, tal como no empirismo clssico, mas seria preciso

levar em conta as possibili dades de verificao ou confirmao introduzidas pelo

emprego da linguagem, por seus atributos lgicos, e que extrapolam, portanto, o mbito

do que efetivamente observado. Introduz-se, assim, a idia de confirmao pela

realidade, que tanto pode ser uma simples confirmabili dade de princpio ou potencial,

quanto uma confirmabili dade efetiva ou em ato . (Japiassu, 1979:88).

O propsito ltimo do positivismo lgico do Crculo de Viena era, em suma:

[...] fundamentar na lgica uma cincia emprico-formal da natureza eempregar mtodos lgicos e rigor cientfico no tratamento de questes detica, filosofia da psicologia e cincias sociais, sobretudo economia esociologia. A fsica, enquanto cincia emprico-formal, forneceria oparadigma de cientificidade para todas as formulaes tericas que sepretendessem cientficas, formulando em uma linguagem lgica, rigorosa eprecisa verdades objetivas sobre a realidade. Uma teoria deveria consistirassim em princpios estabelecidos na lgica, de carter analtico, ou seja,verdadeiros em funo de sua prpria forma lgica e de seu significado; e emhipteses cientficas, a serem verificadas atravs de um mtodo emprico.(Marcondes, 1997:262).

Essa concepo empiricista de cincia que identificamos na base mesma tanto do

positivismo comteano, quanto do nepositivismo logicista do Crculo de Viena, e da qual

os mesmos no passariam de tentativas mais ou menos sofisticadas de aperfeioamento

7 Para uma viso de conjunto dos trabalhos do Crculo de Viena, como ficou ento conhecido o grupoliderado por M. Schlick, O. Neurath e R. Carnap, cf. a clssica antologia de Ayer (1965).

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e formalizao, no outra seno a prpria concepo vulgar de conhecimento

cientfico que acabou por popularizar-se na cultura ocidental a partir da chamada

revoluo cientfica do sculo XVII, estabelecendo-se, desde ento, como um senso

comum, amplamente aceito, acerca da cincia e da cientificidade, assim resumido por

um epistemlogo como Chalmers (1993:23):

Conhecimento cientfico conhecimento provado. As teorias cientficas soderivadas de maneira rigorosa da obteno dos dados da experinciaadquiridos por observao e experimento. A cincia baseada no quepodemos ver, ouvir, tocar etc. Opinies ou preferncias pessoais e suposiesespeculativas no tm lugar na cincia. A cincia objetiva. O conhecimentocientfico conhecimento confivel porque conhecimento provadoobjetivamente.

No outra, portanto, seno essa concepo de senso comum de cincia que se

encontra na base mesma da mxima cientificista promulgada pelos epistemlogos

positivistas em geral de que nenhum conhecimento poder pretender dignidade

cientfica, a no ser que se comprove sua capacidade de revestir as formas e os cnones

ditados pela fsica e pelas matemticas , sendo que todas as verdades humanas, para

terem significao cognitiva, devero submeter-se aos critrios de uma verificao

experimental . (Japiassu, 1975:73). Ilustra a persistncia e a pervasividade, sobretudo

no meio acadmico, dessa associao estreita entre conhecimento positivo e critrios

fsico-matemticos de verificao experimental o seguinte panorama do cientificismo

contemporneo que nos oferece Chalmers (1993:18):

A alta estima pela cincia no est restrita vida cotidiana e mdia popular. evidente no mundo escolar e acadmico e em todas as partes da indstriado conhecimento. Muitas reas de estudo so descritas como cincias porseus defensores, presumivelmente num esforo para demonstrar que osmtodos usados so to firmemente embasados e to potencialmentefrutferos quanto os de uma cincia tradicional como a fsica. Cincia Polticae Cincias Sociais so agora lugares-comuns. Os marxistas tendem a insistirque o materialismo histrico uma cincia. De acrscimo, CinciaBibliotecria, Cincia Administrativa, Cincia do Discurso, Cincia Florestal,Cincia de Laticnios, Cincia de Carne e Animais, e mesmo CinciaMorturia so hoje ou estiveram sendo recentemente ensinadas em colgiosou universidades americanas. Auto-intitulados cientistas nesses campospodem freqentemente ver a si mesmos seguindo o mtodo emprico dafsica, o que para eles consiste na coleta de dados por meio de cuidadosaobservao e experimentos e da subseqente derivao de leis e teorias apartir desses dados por algum tipo de procedimento lgico. Fui recentementeinformado por um colega do departamento de histria, que aparentementetinha absorvido esse rtulo de empiricismo, de que no possvel hojeescrever uma histria da Austrlia porque ainda no dispomos de um nmerosuficiente de dados. Uma inscrio na fachada do Social Science ResearchBuilding na Universidade de Chicago diz: Se voc no pode mensurar, seuconhecimento escasso e insatisfatrio . Sem dvida, muitos de seus

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habitantes, aprisionados em modernos laboratrios, esquadrinham o mundoatravs das barras de ao de seus algarismos, no conseguindo perceber que omtodo que se empenham em seguir no apenas estril e infrutfero, mastambm no o mtodo ao qual deve ser atribudo o sucesso da fsica.

Poder-se-ia dizer, em suma, que a epistemologia positivista limita-se, em linhas

gerais, a identificar essa imagem empiricista de cincia e de cientificidade a entrevista

com a racionalidade cientfica tout court, qual pretende submeter, como vimos, todas

as demais formas de conhecimento humano. A julgar, no obstante, pelo que nos

explica, por exemplo, um autor como Chalmers, ele prprio fsico de formao, s

possvel tomar o mtodo emprico , tal como concebido pelo senso comum

cientificista, como mtodo cientfico por excelncia, se se ignora ostensivamente o que

de fato se faz numa disciplina como a fsica, alegado modelo de cientificidade. A

verdade cientfica, o conhecimento positivo, ou o mtodo cientfico proclamados

pela epistemologia positivista afiguram-se, assim, abstraes que s se sustentam

custa de uma anlise do modo pelo qual a atividade dita cientfica, qualquer que seja

ela, efetivamente constitui-se e d-se a conhecer. Em outras palavras, a substituio, no

mbito do pensamento positivista, da prxis cientfica propriamente dita por uma

imagem empiricista, to eufrica quanto esttica e inflexvel de cincia e de

cientificidade anloga, diramos, imagem de linguagem sustentada pelo gramtico

normativo , revela-se injustificvel e aquilata a dimenso eminentemente arbitrria e

dogmtica dessa visada epistemolgica.

Mas, se assim o , tambm um certa postura dita anticientifi cista ou

antipositivista,8 de significativa ressonncia, alis, em grande parte do pensamento

8 A tomar o anticientificismo, lato sensu, como mera inverso da escala de valores cientificista, a qualerige, como vimos, a verdade cientfica como positividade absoluta, em detrimento de tudo o mais quevenha a ser tomado como refratrio cientificidade os sentimentos, as emoes, as paixes, asintuies, as opinies, as crenas, os juzos de valor , ento seramos levados a reconhecer suas origensno que poderamos chamar de o contra-iluminismo de Rousseau. Depois dele, toda uma tradioanticientificista parece ter se constitudo a partir do pensamento romntico alemo de um Schell ing, umHolderlin, um Novalis, um Schill er ou dos irmos Schlegel , alimentando-se, ao longo do sculo XIX,da obra de autores como Schopenhauer, Kierkegaard e, sobretudo, Nietzsche, desaguando, no sculo XX,em pensamentos como os de Bergson, de Heidegger, da escola de Frankfurt, ou, mais tarde, do chamadops-estruturalismo francs e de toda a filosofia dita ps-moderna. De acordo com Popper (1980:183):Um irracionalismo oracular criou (especialmente com Bergson e a maioria dos filsofos e intelectuaisalemes) o hbito de ignorar ou, na melhor das hipteses, deplorar a existncia do ser inferior que oracionalista. Para eles, os racionalistas ou os materialistas , como costumam dizer e especialmente oscientistas racionalistas so os pobres de esprito, dedicados a atividades frias e em grande partemecnicas, completamente alheios aos problemas mais profundos do destino humano e de sua filosofia.Eco (1984:115) enfatiza o carter religioso desse irracionalismo que dir-se-ia encontrar na base doanticientificismo contemporneo: Uma religiosidade do Inconsciente, do Vrtice, da Falta do centro, da

19

ocidental contemporneo inclusive nos Estudos Literrios , afigurar-se-ia arbitrria e

dogmtica por princpio. O anticientificismo ope-se a esta imagem deformada da

cincia como se ela fosse uma interpretao fiel e se situa, por conseqncia, de incio,

sobre o plano de um conflito de ideologias , lembra, com efeito, Granger (1989:158).

Numa contraposio estreita euforia cientificista, a disforia anticientificista atm-se

uma imagem to negativa quanto esttica e inflexvel portanto, igualmente ilusria

de cincia e cientificidade, continuando a negligenciar, dessa forma, o modo pelo qual a

atividade dita cientfica, qualquer que seja ela, efetivamente constitui-se e d-se a

conhecer.

Dois mitos opostos entram em conflito: o dos cientificistas e o dos

anticientificistas, isto , dos idelogos do tudo ou do nada. Nenhum dos dois fala da

cincia diretamente . (Japiassu, 1975:94). Cientificismo e anticientificismo, em suma,

no se poderia consider-los como exprimindo o que a cincia. (Granger,

1989:158). Assim sendo, o que dizer da possibili dade e da relevncia de uma visada

epistemolgica verdadeiramente descritiva, a atuar como uma verdadeira gramtica

descritiva do conhecimento dito cientfico ou especializado?

1.2.4. O epistemlogo positivista poderia ser considerado, como acabamos de ver, uma

espcie de gramtico normativo do conhecimento humano, buscando determinar as

regras do bom ou verdadeiro conhecimento, pautando-se, para tanto, numa

determinada imagem, to eufrica quanto esttica e inflexvel, de cincia e

cientificidade, erigida em detrimento da anlise efetiva da dinmica inerente a esta ou

quela disciplina em particular, a este ou quele campo especfico do saber, mas tomada

pelo prprio epistemlogo como constituindo a coisa-em-si em questo. Isso posto,

diramos que o primeiro passo na direo de uma epistemologia que se quisesse, de fato,

distanciada desse estado de coisas consistiria em abandonar o ilusrio porto-seguro da

concepo de cincia como um estado-de-conhecimento-definitivamente-estabelecido,

em nome de uma concepo de cincia como um processo-de-ininterrupta-construo-

Diferena, da Alteridade absoluta, da Ruptura, atravessou o pensamento moderno como contracantosubterrneo insegurana da ideologia oitocentista do progresso e ao jogo cclico das crises econmicas.Esse Deus tornado leigo e infinitamente ausente acompanhou o pensamento contemporneo sob vriosnomes e explodiu no renascimento da psicanlise, na redescoberta de Nietzsche e de Heidegger, nasnovas antimetafsicas da Ausncia e da Diferena.

20

de-conhecimento. Devemos passar da idia de um conhecimento-estado idia de um

conhecimento-processo , diz-nos, com efeito, Japiassu (1975:26). A epistemologia

converter-se-ia, assim, na

[...] atitude reflexiva e crtica que permite submeter a prtica cientfica a umexame que, diferentemente das teorias clssicas do conhecimento, se aplicano mais cincia verdadeira de que deveramos estabelecer as condiesde possibili dade e de coerncia lgica, bem como seus ttulos de legitimidadeou de validao , mas cincia em vias de se fazer, em suas condies reaise concretas de realizao, dentro de um determinado contexto scio-cultural.(Japiassu, 1975:26).

Caberia, dessa forma, epistemologia, revelar a processualidade das cincias;

revelar, em outras palavras, o modo pelo qual dir-se-ia efetivamente constiturem-se as

diversas disciplinas e campos do saber, efetivamente consolidarem-se, desenvolverem-

se e eventualmente desaparecerem os conhecimentos ditos cientficos ou especializados

ao longo do tempo. No poderia assim pautar-se o epistemlogo por esta ou aquela

imagem esttica, mais ou menos positiva, mais ou menos negativa, de cincia e

cientificidade, pois, como nos lembra Granger (1975:22), quando se toma o

conhecimento cientfico como uma norma, reflexo idealizado de uma de suas etapas ,

a epistemologia converte-se na hermenutica de uma mitologia.

A cincia existe de fato; a dificuldade preliminar mais paradoxal daepistemologia consiste em capt-la como tal, sem a substituir por umaimagem hipostasiada. Portanto, o movimento cientfico do pensamento queconstitui o objeto do nosso estudo; no o sistema de uma cinciaimplicitamente considerada como acabada; nem so de resto, as obrasparticulares do esprito contemporneo. No fcil , sem dvida, fugir a estadupla tentao. No entanto, a cincia existe. (Granger, 1975:22).

Mas, apreender os conhecimentos cientficos em seu movimento, no seu fazer-se,

em sua processualidade, no significaria necessariamente capt-los em sua histria? E

quando se pensa que essa , na verdade, uma funo, bem ou mal, j desempenhada, e

sem nenhuma novidade, pela chamada histria das cincias, no se torna necessrio

esclarecer em que medida uma epistemologia histrica propriamente dita, tal como aqui

a entrevemos, diferenciar-se-ia, de fato, de uma histria das cincias tout court? Isso diz

respeito, alm do mais, ao problema da possibili dade e da relevncia, sob um ponto de

vista propriamente epistemolgico, de uma abordagem puramente descritiva do

conhecimento dito cientfico ou especializado.

De uma histria das cincias tradicionalmente concebida, diz-se, basicamente, que

descreve os eventos, os acontecimentos importantes que se sucederam ao longo do

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tempo em um ou em diversos campos do saber, fornecendo-nos, assim, o relato, to

exato quanto possvel, do desenvolvimento histrico do conhecimento humano. Por

mais que um tal projeto historiogrfico afigure-se-nos, a princpio, perfeitamente

plausvel e familiar por mais que, de um modo geral, encontremo-nos dispostos a

apreender, de boa-f, tudo o que o historiador das cincias tem a nos ensinar, movido,

igualmente, por sua boa-f , isso no nos permite tom-lo, em nenhuma medida, por

auto-evidente sobretudo quando somos impelidos pelas questes que aqui nos

movem. Forcemo-nos, antes de mais nada, a no perder de vista que toda descrio

descrio de. No h, em outras palavras, descrio sem objeto-a-descrever, objeto esse

cuja prpria delimitao dir-se-ia enformada a priori por uma dada teoria descritiva

de base. No h, em suma, nada como uma descrio neutra ou imediata do que quer

que seja.

Isso fica claro quando pensamos para voltarmos, uma vez mais, nossa analogia

com a problemtica gramatical na diversidade de enfoques das gramticas ditas

descritivas, e do modo como as mesmas acabam por descrever objetos distintos, e no,

simplesmente, aspectos diversos de um mesmo objeto. Com efeito, a lngua descrita, por

exemplo, por uma gramtica histrica, no a mesma descrita por uma gramtica

estruturalista, sendo que ambas diferem da que descrita por uma gramtica gerativa,

sendo que as trs diferem, alm do mais, da que descrita por uma gramtica

funcional.9 Essas quatro modalidades de gramtica so tomadas, no obstante, por

descritivas, em oposio gramtica normativa.

A concluso a que se chega, portanto, que o objeto a ser descrito, no caso, pela

gramtica descritiva, qualquer que seja ela, enformado pela prpria teoria lingstica

de base de que tributrio o gramtico descritivo em questo. No haveria nada como

um acesso direto ou imediato lngua em si mesma. Se o prprio gramtico descritivo

desconsidera essa questo e exime-se de problematizar a contento suas implicaes, no

h por que tom-lo por menos arbitrrio e intransigente do que o gramtico normativo.

No se trata, de nossa parte, de simplesmente condenar uma situao em que uma dada

teoria de base precede e enforma o trabalho de descrio , mas de reconhecer a

perniciosidade de uma situao em que se procede justamente de modo a ignorar ou a

9 Com relao lngua portuguesa, cf., por exemplo, Coutinho (1982) e Said Ali (1965), para aperspectiva histrica, Camara Jr. (1987), para a estruturalista, Perini (1979) e Raposo (1979), para agerativista, Neves (2003), para a funcionalista.

22

negligenciar esse fato, tomando por dado o que na verdade engendrado pela prpria

teoria, e que deveria, enquanto tal, ser justificado.

O mesmo dir-se-ia acontecer quanto chamada descrio histrica, qualquer

que seja ela. Toda e qualquer histria histria de. Todo e qualquer historiador tem uma

concepo prvia de seu objeto-a-descrever, uma certa teoria de base a respeito, espcie

de baliza meta-histrica a guiar a atividade historiogrfica. Distintas teorias de base

acabariam por implicar, assim, modos necessariamente distintos de se conceber o trajeto

histrico a ser reconstitudo pelo historiador. Por exemplo: voltando-se a inmeras

obras dedicadas Revoluo Francesa desde o fim sculo XVII I como as de um

Michelet, de um Tocquevill e, de um Taine, de um Jaurs, de um Mathiez, de um

Labrousse, entre outros Adam Schaff acabou por constatar

[...] divergncias essenciais entre os diferentes historiadores, no s naexplicao e na interpretao do fato histrico, mas ainda na sua descrio ena seleo dos elementos que o constituem e at mesmo na articulao doprocesso histrico, ou seja na diferenciao dos acontecimentos parciais quecompem a totalidade da imagem histrica do grande acontecimento que foia Revoluo Francesa de 1789. (Schaff , 1978:10).

As diferentes e, mesmo, divergentes descries da Revoluo Francesa levadas a

cabo por historiadores diversos afigurar-se-iam, assim, indissociveis das diferentes e

diversas concepes de Revoluo Francesa a em jogo. No nos propomos aqui

estabelecer quem tem razo nesta discusso, em que medida e em que sentido se pode

dar razo a um mais do que a outro , declara Schaff (1978:59) a propsito. O que

submetemos ao nosso estudo e nossa reflexo , explica o autor, apenas o fato da

diversidade, da variabili dade, at mesmo da incompatibili dade dos pontos de vista dos

historiadores que, potencialmente, dispem das mesmas fontes e, subjetivamente,

aspiram verdade, e s verdade, crendo mesmo t-la descoberto .

Da mesma forma, diramos que distintas e divergentes verses de um

supostamente mesmo trajeto histrico so concomitantemente possveis no que se refere

histria de uma dada disciplina ou campo do saber humano. Atenhamo-nos, aqui, a

duas grandes perspectivas historiogrficas opostas, das quais dir-se-ia terem dividido o

mainstream da histria das cincias no sculo XX: uma primeira, chamada continusta,

associada ao modelo tradicional, teleolgico, de histria das cincias, herdado do sculo

XIX, e uma segunda, chamada descontinusta, associada a certos programas

historiogrficos surgidos no sculo XX em franca oposio ao modelo continusta.

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(1) De acordo com a primeira perspectiva, o conhecimento dito cientfico s

conhece crescimento contnuo e acumulativo. Na base desse processo evolutivo

encontrar-se-ia, contudo, uma espcie de ruptura de origem, a grande revoluo

cognitiva que teria dado origem ao regime propriamente cientfico de conhecimento na

histria da humanidade: a chamada revoluo cientfica do sculo XVII,

impulsionada sobretudo pelas idias de um Coprnico (1473-1543), de um Galil eu

(1564-1642), de um Kepler (1571-1630), de um Newton (1642-1727), considerados,

como se sabe, os pais da astronomia e da fsica modernas. No que se refere, por

exemplo, histria especfica dos estudos astronmicos no Ocidente, constatar-se-ia, de

acordo com essa perspectiva, uma ruptura definitiva entre o modelo heliocntrico do

cosmos formulado por Coprnico e o modelo geocntrico, aristotlico-ptolomaico,

vigente ao longo de toda a Idade Mdia ruptura comumente conhecida como

revoluo copernicana , seguida de um perodo dito ps-copernicano, no sentido de

uma continuidade em relao a Coprnico, no qual teria se desenvolvido

progressivamente a moderna astronomia ocidental, num crescendo que vai de Galil eu,

Kepler e Newton a Einstein e ao pensamento astronmico do sculo XX. Tudo

ocorreria, pois, como numa corrida de bastes , em que, uma vez entrevisto o

caminho, os corredores incumbir-se-iam de passar a seu sucessor o basto que

receberam de seu antecessor, rumo, ininterruptamente, ao destino final.

O historiador norte-americano D. J. Boorstin oferece-nos, a propsito, no prefcio

a seu Os descobridores (Boorstin, 1989) obra em que prope-se a fazer a narrativa de

como o homem procurou conhecer-se a si mesmo e ao mundo um programa deveras

congruente com o tipo histria das cincias de que estamos a falar. O meu heri o

Homem, o Descobridor , anuncia, logo de incio, o autor. O mundo que vemos agora

do Ocidente instrudo as perspectivas de tempo, a terra e os mares, os corpos celestes

e os nossos prprios corpos, as plantas e os animais, a histria e as sociedades humanas

passadas e presentes teve de ser aberto para ns por incontveis Colombos.

(Boorstin, 1989:13). A metfora colombiana no se afigura, de fato, nesse caso, afetada

ou despropositada. Esse tipo de histria costumeiramente assume, com efeito, um tom

que poderamos dizer prprio de um relato pico. Seja esse relato mais interno ,

voltado, no caso, para dentro do prprio fazer cientfico ao longo do tempo, seja mais

externo , voltado, antes, para as condies e para as conseqncias sociais e culturais

24

do fazer cientfico ao longo do tempo, trata-se, invariavelmente, do relato cronolgico

do desenvolvimento, pelo Homem, o Grande Descobridor , de um corpo tal de

conhecimentos especializados e de tcnicas que lhe teria permitido progressivamente

desvendar e conquistar, como numa grande epopia, os mais diversos domnios da

realidade. E como em toda epopia que se preze, aqui tambm o heri em questo

enfrenta, ao longo de sua odissia, desafios e inimigos vrios:

Os obstculos descoberta as iluses de conhecimento tambm fazemparte da nossa histria. Somente contra o esquecido pano de fundo do sensocomum herdado e dos mitos do seu tempo podemos comear a pressentir acoragem, as arremetidas hericas e imaginativas dos grandes descobridores.Tiveram de lutar contra os fatos e os dogmas vigentes dos eruditos. Tenteirecapturar essas iluses acerca da terra, dos continentes e dos mares antesde Colombo e Balboa, de Ferno de Magalhes e do capito Cook; acerca dofirmamento antes de Coprnico e Galil eu e Kepler; acerca do corpo humanoantes de Paracelso e Veslio e Harvey; acerca das plantas e dos animais antesde Ray e Lineu, Darwin e Pasteur; acerca da riqueza antes de Adam Smith eKeynes; acerca do mundo fsico e do tomo antes de Newton e Dalton eFaraday, de Clerk Maxwell e Einstein. (Boorstin, 1989:13).

Haveria, em suma, de um lado, as descobertas, o material de que se faz a histria

das cincias propriamente dita, e, de outro, os obstculos s descobertas , as iluses

de conhecimento , a consideradas com o intuito nico de ilustrar o pano de fundo do

senso comum herdado e dos mitos identificado basicamente com uma viso

teolgico-metafsica do mundo contra o qual se diz insurgir o verdadeiro

conhecimento; de um lado os f atos e os dogmas vigentes dos eruditos , de outro, as

arremetidas hericas e imaginativas dos grandes descobridores . Dir-se-ia caber, assim,

a nosso zeloso bardo-historiador cantar justamente as progressivas descobertas feitas

por esses diversos Colombos, ao longo da histria, e que teriam permitido a

configurao do mundo de que hoje dispomos no Ocidente instrudo . Dir-se-ia, ainda,

que, idealmente, a narrativa em questo deve buscar respeitar, tanto quanto possvel, o

carter linear e, mesmo, teleolgico, supostamente inerente prpria histria contada.

assim que nosso historiador, ao referir-se prpria obra, declara algo como: O plano

do livro como um todo cronolgico. Em pormenor, dispe-se como um telhado; cada

uma de suas partes sobrepe-se cronologicamente sua antecessora medida que a

histria avana da Antiguidade para o presente. (Boorstin, 1989:14).

(2) De acordo com a segunda perspectiva historiogrfica citada, o trajeto histrico

do conhecimento dito cientfico caracterizar-se-ia antes pela descontinuidade e pela

ruptura do que pelo desenvolvimento contnuo e teleolgico. Identificar-se-iam, assim

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no que se refere histria especfica dos estudos astronmicos , entre, por exemplo,

Aristteles e Ptolomeu, Ptolomeu e Coprnico, Coprnico e Kepler, Kepler e Galil eu,

Galil eu e Newton, Newton e Einstein, Einstein e Aristteles, tanto pontos de contato

quanto rupturas decisivas, no havendo, a rigor, nada que se assemelhasse a um

desenvolvimento ou crescimento contnuo de um para outro; a histria do pensamento

astronmico ocidental revelar-se-ia, na verdade, a histria de como distintas teorias

cosmolgicas engendraram sucessivamente distintos modelos de explicao do cosmos,

irredutveis uns aos outros.

Um autor como o fsico e historiador das cincias norte-americano Thomas Kuhn

no nega, com efeito, a existncia da chamada revoluo copernicana, mas procura

mostrar, em contradio historiografia tradicional, que o carter revolucionrio da

mesma antes uma regra do que uma exceo no percurso histrico do conhecimento

cientfico. De acordo com Kuhn, houve ruptura no apenas na passagem de Ptolomeu a

Coprnico, mas tambm, por exemplo, entre a teoria gravitacional newtoniana e a

concepo de mundo mecnico-corpuscular vigente junto ao mainstream cientfico do

sculo XVII (Kuhn, 1978:138-141), bem como, mais tarde, entre a teoria gravitacional

einsteiniana e a newtoniana. No sculo XX, Einstein foi bem sucedido na explicao

das atraes gravitacionais , afirma, a propsito, Kuhn (1978:143), e essa explicao

fez com que a cincia voltasse a um conjunto de cnones e problemas que, neste aspecto

especfico, so mais parecidos com os dos predecessores de Newton do que com os de

seus sucessores .10 Atentando-se pois para as descontinuidades em questo, constatar-

se-ia no ter havido nada, em suma, como um desenvolvimento contnuo de uma

suposta cincia ps-copernicana, ou ps-galil aica, ou ps-newtoniana.

Em resumo: duas perspectivas historiogrficas distintas, dois distintos percursos

cognitivos constatados e descritos na histria das cincias. Numa primeira perspectiva,

correspondente histria das cincias tradicional, o percurso descrito caracteriza-se

basicamente por uma ruptura de origem seguida de um crescimento contnuo e

acumulativo, sendo que a histria propriamente dita confunde-se, a, com o relato

cronolgico desse crescimento contnuo e acumulativo; por essa razo, chama-se-lhe

10 Numa outra comparao, entre a dinmica einsteiniana e a newtoniana, Kuhn (1978:132:133) chega aafirmar que essas duas teorias so fundamentalmente incompatveis, no mesmo sentido que a astronomiade Coprnico com relao de Ptolomeu: a teoria de Einstein somente pode ser aceita caso se reconheaque Newton estava errado .

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continusta. Numa segunda perspectiva, desviante em relao historiografia

tradicional por negar terminantemente a existncia de um desenvolvimento

uniformemente contnuo na histria do conhecimento cientfico, o percurso descrito

caracteriza-se basicamente por uma progresso por rupturas ou descontinuidades; por

essa razo, chama-se-lhe descontinusta.

Que os historiadores eles prprios tendam a discutir entre si sobre que verso deva

ser tomada por mais verdadeira ou fidedigna, mais atinente, em suma, aos fatos

mesmos algo que se poderia contemplar, talvez, com uma certa condescendncia; ao

epistemlogo, contudo, no resta outra coisa a fazer seno explicitar e criti car justo o

que a descrio histrica, continusta ou descontinusta, toma tacitamente como baliza

meta-histrica para sua empreitada.

1.2.5. Vimos que, no mbito da historiografia tradicional das cincias, a chamada

revoluo cientfica do sculo XVII adquire o estatuto de um verdadeiro marco-zero.

Ela o ponto fixo a partir do qual se vislumbra todo o desenvolvimento subseqente da

cincia moderna , como num continuum, at os dias de hoje. Mas o que caracterizaria,

afinal, essa cincia que se tem a em vista?

O que a revoluo iniciada por Coprnico, desenvolvida por um Kepler e um

Galil eu e consolidada por um Newton teria acarretado, de acordo com essa perspectiva

historiogrfica, seria justamente a superao definitiva de um modelo dito antigo,

aristotlico, de produo de conhecimento, pautado pela idia de contemplao

especulativa em detrimento completo da observao e da experimentao, pelo modelo

de uma cincia nova, ativa ao invs de contemplativa, promotora da observao

sistemtica e do chamado mtodo experimental ou emprico de investigao. A cincia

moderna surge, declara, a propsito Marcondes (1997:150), quando a observao, a

experimentao e a verificao de hipteses tornam-se critrios decisivos, suplantando o

argumento metafsico . Ora, vimos anteriormente que justamente essa concepo

empiricista de cincia que se encontra na base mesma da epistemologia positivista.

mais do que sintomtico, alis, que o prprio Comte tenha tomado a chamada revoluo

cientfica sobretudo o pensamento de Galil eu , bem como a tradio filosfica

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surgida com ela sobretudo com Bacon e Descartes como uma espcie de marco-zero

do prprio positivismo.11

No outra, portanto, seno esse mesmo cientificismo empiricista a baliza meta-

histrica a alicerar o continusmo evolucionista da histria das cincias tradicional. O

raciocnio a em jogo parece simples: (a) por conhecimento cientfico entende-se o corpo

de verdades sistemtica e progressivamente obtido e estabelecido por meio do mtodo

emprico, o nico a possibilit ar verdadeiras descobertas sobre o funcionamento do

mundo porque orientado pela observao e pela verificao experimental; (b) o nvel de

progresso tcnico e desenvolvimento humano de que dispomos, hoje, no Ocidente

instrudo, foi possibil itado pelas descobertas progressivas, engendradas pela cincia

experimental, das verdadeiras leis de funcionamento do mundo; cabe histria das

cincias reconstituir esse processo evolutivo. Em resumo, dir-se-ia, com Dominique

Lecourt, que o evolucionismo o complemento inevitvel, em histria das cincias, do

positivismo em epistemologia. (Lecourt, 1972:13).

Thomas Kuhn foi certamente o mais influente autor no sculo XX a denunciar as

mazelas do continusmo evolucionista em histria das cincias. Em sua obra mais

importante, A estrutura das revolues cientficas, publicada em 1962,12 ele

denunciava:

Se a cincia a reunio de fatos, teorias e mtodos reunidos nos textos atuais,ento os cientistas so homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se emcontribuir com um ou outro elemento para essa constelao especfica. Odesenvolvimento torna-se o processo gradativo atravs do qual esses itensforam adicionados, isoladamente ou em combinao, ao estoque semprecrescente que constitui o conhecimento e a tcnica cientficos. E a histria dacincia torna-se a disciplina que registra tanto esses aumentos sucessivoscomo os obstculos que inibiram sua acumulao. Preocupado com odesenvolvimento cientfico, o historiador parece ento ter duas tarefasprincipais. De um lado deve determinar quando e por quem cada fato, teoriaou lei cientfica contempornea foi descoberta ou inventada. De outro lado,deve descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e supersties queinibiram a acumulao mais rpida dos elementos constituintes do modernotexto cientfico. (Kuhn, 1978:20).

11 Indicarei a data do grande movimento impresso ao esprito humano, h dois sculos, pela aocombinada dos preceitos de Bacon, das concepes de Descartes e das descobertas de Galil eu, como omomento em que o esprito da filosofia positiva comeou a pronunciar-se no mundo, em oposioevidente ao esprito teolgico e metafsico. (Comte, 1973a:14).

12 Quatro anos antes, portanto, desse outro clssico da historiografia descontinusta que As palavras e ascoisas de Foucault, obra com a qual A estrutura freqentemente comparada.

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Kuhn critica duramente esse modelo historiogrfico continusta, afirmando que

se a histria fosse vista como um repositrio para algo mais do que anedotas ou

cronologias, poderia produzir uma transformao decisiva na imagem de cincia que

atualmente nos domina. (Kuhn, 1978:19). Contra essa histria das cincias que limita-

se a corroborar a imagem a-histrica de cincia expressa nos manuais cientficos

contemporneos, o autor declara ter por objetivo justamente (a) mostrar que esses

livros nos tm enganado em aspectos fundamentais e (b) esboar um conceito de

cincia bastante diverso que pode emergir dos registros histricos da prpria atividade

de pesquisa. (Kuhn, 1978:19).

Se levamos em conta esses objetivos tal como a expressos, somos levados a crer

que Kuhn julga poder derivar a posteriori uma nova concepo, no-positivista, de

cincia, de uma anlise da prpria histria das cincias como se houvesse uma espcie

de histria-das-cincias-em-estado-bruto a ser explorada desta ou daquela maneira.

Contudo, o prprio autor quem afirma que mesmo se partirmos da histria, esse novo

conceito no surgir se continuarmos a procurar e perscrutar os dados histricos para

responder a questes postas pelo ester