lavagem de dinheiro: os efeitos macroeconômicos

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  • 7/30/2019 Lavagem de dinheiro: os efeitos macroeconmicos

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    Braslia a. 40 n. 160 out./dez. 2003 333

    Tiago Ivo Odon

    1. Introduo

    A lei brasileira de lavagem de dinheiro

    lei n

    9.613/98 adotou a estratgia de sele-cionar quais tipos de ativos ilcitos podemou no ser lavados. Assim, no Brasil, s hrelevncia penal, para que o Estado movi-mente sua mquina de represso, se umagente tentar ocultar ou dissimular a ori-gem de ativos provenientes de trfico de en-torpecentes, terrorismo e seu financiamen-to, trfico de armas e munies, extorsomediante seqestro, crimes contra a admi-

    nistrao pblica, crimes contra o sistemafinanceiro nacional, crimes praticados pororganizao criminosa e por particular con-tra administrao pblica estrangeira.

    A lei brasileira de lavagem de dinheiro uma lei de segunda gerao, para usarexpresso da doutrina internacional. As leisde primeira gerao so aquelas que s con-sideram dinheiro sujo passvel de ser lava-do aquele proveniente exclusivamente do

    narcotrfico. As leis de segunda gerao au-mentaram o campo de incidncia, conside-rando outros crimes alm do narcotrfico,como terrorismo, trfico de armas, corrup-

    Lavagem de dinheiro: os efeitos

    macroeconmicos e o bem jurdico tutelado

    Tiago Ivo Odon Especialista em Intelign-cia e Consultor Legislativo do Senado Federal.

    Sumrio1. Introduo. 2. A defesa do Estado e a de-

    fesa da Economia. 3. O bem jurdico tuteladopela lei de lavagem de dinheiro. 4. Os efeitosmacroeconmicos da lavagem de dinheiro ver-sus o rol de crimes antecedentes. 5. Os instru-mentos buchananianos do Brasil. 6. Concluses.

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    o etc. o caso do Brasil, da Alemanha eda Espanha. As leis de terceira gerao, porsua vez, no definem um rol, sendo qual-quer provento de infrao penal passvel deser lavado. o caso dos EUA, da Blgica, da

    Frana, da Itlia, da Sua, do Mxico.A primeira questo que surge a partir

    dessa estratgia de poltica criminal brasi-leira se o crime de lavagem concebido apartir da anlise dos bens jurdicos tutela-dos pelas normas subjacentes aos crimesantecedentes ou se ele possui autonomiaaxiolgica, um bem jurdico prprio. A se-gunda questo se, demonstrando-se que anorma que pune o crime de lavagem de

    dinheiro tutela bem jurdico prprio, o rolde crimes antecedentes abarca todas as in-fraes penais dotadas de tal periculosida-de a ponto de alcanar o ncleo de garantiae proteo da norma jurdica de lavagem dedinheiro, e que seriam, portanto, penalmen-te relevantes, apesar de ausentes.

    O presente estudo pretende analisar es-sas questes a partir das premissas da esco-la de cincia econmica da Escolha Pbli-

    ca, de James M. Buchanan, e a partir da iden-tificao dos efeitos macroeconmicos da la-vagem de dinheiro, retirando a discussodo mbito meramente jurdico e abstratopara situ-la no mundo real.

    2. A defesa do Estado e a

    defesa da Economia

    Algumas das atividades ilegais citadas

    no rol de crimes antecedentes do art. 1 daLei n 9.613/98 demandam recursos finan-ceiros expressivos, como, por exemplo, aproduo e a distribuio de drogas ilegaise o trfico de armas. No Brasil, por exemplo,os mercados de ambos os produtos tm ro-tas distintas (a rota da droga mais ao norte ea rota da arma mais ao sul), o que expandepor todo o pas os efeitos da subtrao des-ses recursos da economia regular, processo

    que provoca uma reduo tanto da taxa deproduo quanto do ritmo de crescimento.Com freqncia, essas atividades geram

    muito mais renda aos seus agentes do quepodem utilizar prudentemente no curto pra-zo. Para permitir o uso desses recursos alongo prazo, precisam ser armazenados ouinvestidos de forma a no perder valor.

    Como se observa, essas rendas tm um ciclode vida prprio tm valor mais em funodo tempo de sua manuteno do que do con-sumo que poderiam gerar.

    precisamente isso o que a lavagem dedinheiro tenta proporcionar: preservar namedida do possvel o valor dos ativos ad-quiridos e transform-los em ativos maislegtimos ou mais utilizveis, processo que,no caso de grandes somas, gera conseqn-

    cias macroeconmicas entrpicas, como sever mais adiante.

    O dinheiro sujo que entra no pas, de tr-fico de cocana, herona, ecstasy ou de ar-mas estrangeiras at mesmo de armas bra-sileiras, que so exportadas e retornam peloParaguai , ou gerado domesticamente, decorrupo, de gesto fraudulenta de insti-tuio financeira, entre outros, e lavadoproduz dois efeitos bsicos relevantes: o

    primeiro a realimentao da atividade cri-minosa, uma vez que o crime uma inds-tria, gera lucro e necessita de constante rein-vestimento, e o dinheiro no pode ficar oci-oso sob pena de perder valor; o segundo adesestabilizao da ordem econmico-fi-nanceira, nos processos de armazenamen-to e transformao dos ativos. Assim, dian-te desse quadro, oportuno perguntar qual o bem jurdico tutelado pela lei de lava-

    gem de dinheiro. So todos os bens jurdi-cos por trs dos crimes que compem o roldo art. 1, chamados de crimes anteceden-tes (sade pblica, segurana nacional,patrimnio, administrao pblica nacionale estrangeira, sistema financeiro nacional,ou qualquer um, se ofendido por organiza-o criminosa), ou possui um bem jurdicoprprio a ser protegido?

    A Exposio de Motivos da Lei n 9.613/

    98 (EM n 692/MJ), de 18 de dezembro de1996, em seus itens 29 a 33, parece adotar atese, em nome de uma poltica criminal

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    transnacional, de que a soma de todoseles. No obstante, vai mais longe: acrescen-ta a defesa do Estado como um dos fun-damentos para a criminalizao da lavagemde dinheiro como entidade tpica autno-

    ma (item 31) aps se referir aos crimes pra-ticados por organizaes criminosas, in-dependentemente do bem jurdico ofendi-do, terrorismo e trfico de armas e a de-fesa de uma economia saudvel (item 33),ao se referir aos crimes contra o sistema fi-nanceiro nacional. Estamos diante de umtipo penal com uma pluralidade de bens

    jurdicos tutelados, uma vez que vrias mo-dalidades de crimes so elementos do tipo?

    A EM n 692/MJ, ao citar a defesa doEstado numa ponta e a defesa da econo-mia na outra, estaria voltando velha dis-tino Estado-mercado, da gnese do libe-ralismo, ou, depois de Hegel, distinoEstado-sociedade civil? At que ponto de-fender a economia diferente de defender oEstado? Talvez Marx tenha sido o primeiroa sistematizar uma crtica a respeito dessasuposta dualidade. No prefcio sua famo-

    sa Crtica da economia poltica, ele afirma, es-tudando Hegel, que ficara convencido deque as instituies polticas e jurdicastinham suas razes nas relaes materiaisda existncia (cujo complexo englobadopor Hegel na expresso sociedade civil) eque a anatomia da sociedade civil deve serbuscada na economia poltica. Para ele,enfim, a sociedade civil o espao onde tmlugar as relaes econmicas; ou seja, a

    base real sobre a qual se eleva uma superes-trutura jurdica e poltica.

    Todd G. BUCHOLZ (2000, p. 14), emoutras palavras, e sem usar a teoria do ma-terialismo histrico, observou que o vnculomais forte entre a economia e o mundo realtem sido sempre a poltica. De fato, at oincio do sculo XX a economia era chama-da de economia poltica. Quase todos osmais importantes economistas serviam ao

    governo em algum nvel. David Ricardo eJohn Stuart Mill at ganharam a eleio parao Parlamento britnico; de uns tempos para

    c, no Brasil, Roberto Campos e Delfim Neto,entre outros.

    Na verdade, a economia moderna ganhouseu impulso inicial quando Adam Smithdenunciou o casamento incestuoso entre as

    monarquias e os negociantes da Europa. Del pra c nada mudou, apenas o fato de queagora esse casamento se d entre repbli-cas e esses negociantes, que so do mundotodo. Nos dias de hoje at os Estados preci-sam ser financiados e fechar balanos. Atganham notas de risco igual s empresas!No Brasil, por exemplo, todo o mercado temttulos pblicos na mo. Os ttulos pblicosso usados como um ativo praticamente isen-

    to de risco e chegam a ser contabilizadospelos bancos como parte de seu capital. Cos-tuma-se inclusive obrigar certos fundos adestinarem determinada frao de seus ati-vos a aplicaes em ttulos do governo, como o caso dos fundos de penso. O BancoCentral, alm disso, usa esses ttulos emoperaes no mercado aberto para influ-enciar as taxas de juros. Para se ter umaidia, enquanto nos EUA e na Inglaterra

    as taxas de juros de referncia para o mer-cado (prime e libor, respectivamente) sotaxas sobre ttulos privados, no Brasil ataxa referncia (Selic) sobre ttulos p-blicos!

    Estamos numa poca da Histria em queat a poltica virou uma atividade econmi-ca, para usar uma das premissas do PrmioNobel de Economia de 1986, James M.Buchanan, fundador da escola da Escolha

    Pblica. Desde que as polticas pblicasdeixaram de ser de apoio oferta (sculosXVII, XVIII e XIX) para serem de apoio de-manda (sculo XX e incio do XXI), isso temsido uma realidade. Em nenhum momentoda Histria a expresso repblica teve umsignificado to preciso: fundo pblico. Ofundo pblico, ou res publica, caracteriza-se(1) pelo financiamento da produo (subs-dios para agricultura, indstria, comrcio,

    cincia e tecnologia, formao de amplossetores produtivos estatais, investimento eminfra-estrutura, crdito para as micro e pe-

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    quenas empresas etc.; (2) pela valorizaofinanceira do capital, por meio da dvidapblica; e (3) pelo financiamento da repro-duo da fora de trabalho, alcanando todaa populao por meio dos gastos sociais

    (educao gratuita, sade universalizada,previdncia social, seguro-desemprego, sub-sdios para transporte, alimentao, habi-tao, cultura e lazer, salrio-famlia etc.),conquista da social-democracia.

    A interveno do Estado adquire assimum sentido preciso, j que fornece uma cotade capital constante, que contribui para fre-ar a queda da taxa mdia de lucro (econo-mia real) ou de rendimento (economia finan-

    ceira) no mercado. No final do processo, opas endivida-se, tornando-se cada vez maisdependente do mercado financeiro doms-tico, o que contribuiu para o aumento expo-nencial da dvida pblica como mecanismoprivilegiado de financiamento de seus gas-tos: a prazos de maturidade cada vez maiscurtos e a taxas de juros crescentes, condi-es impostas pela sociedade civil para se-guir comprando ttulos pblicos. Essa rea-

    lidade o grande dilema das novas esquer-das hoje. O primeiro ano do governo Lula uma constatao emprica disso.

    Portanto, defesa de uma economia sau-dvel no deixa de ser uma defesa da so-ciedade civil, credora do Estado, e, assim,defesa do governo, defesa da poltica.Em ltima instncia, se estamos falando decondutas criminosas que lidam com a moe-da, no existe diferena prtica entre defe-

    sa da economia e defesa do Estado.

    3. O bem jurdico tutelado pela

    lei de lavagem de dinheiro

    O que a EM n 692/MJ nos faz refletir se devemos ou no valorar o crime de lava-gem de dinheiro a partir da anlise dos cri-mes antecedentes, definir o bem jurdico tu-telado a partir do bem jurdico ofendido pelo

    crime antecedente. Ser que o bem jurdicoprincipal multmodo e derivado? Comoisso pode ser possvel se s temos uma pena?

    O fato que, no direito penal moderno, arelao entre bem jurdico e pena traduz, naverdade, uma simbiose entre o valor do beme a funo da pena; ou seja, nas palavras deLuiz Regis PRADO (1997, p. 21), de um

    lado, tendo-se presente que se deve tutelar oque em si mesmo possui um valor, o marcoda pena no seno uma conseqncia im-posta pela condio valiosa do bem. De ou-tro lado, e, ao mesmo tempo, a significaosocial do bem se v confirmada precisamen-te porque para a sua proteo vem estabele-cida a pena.

    Para situar a discusso num mbito axi-olgico uma vez que, a partir de Kant, o

    conceito de bem passa a ser dimensionadoaxiologicamente para o mundo do Direito ,se estamos diante de uma soma, como a penade um crime antecedente pode ser maior doque a pena do crime principal (caso da ex-torso mediante seqestro)? Se isso ocorre, porque aquele primeiro efeito bsico cita-do do crime de lavagem de dinheiro a re-troalimentao da atividade criminosa nofoi considerado valorativamente para a de-

    finio da pena, uma vez que se est punin-do no sistema jurdico o fato A com umapena W e a recolocao dos proventos parafinanciar um novo A com uma pena W - n.Em contrapartida, temos vrios crimes an-tecedentes (corrupo, descaminho, trficode armas etc.) com penas inferiores do cri-me principal. Nesses casos, o sistema jur-dico est punindo o fato B com uma pena Xe a recolocao dos proventos para financi-

    ar um novo B com uma pena X + n. Em tese,de um lado e de outro (A/B e o financia-mento de novo A/B), o bem jurdico ofendi-do exatamente o mesmo. Por que isso nose reproduz na cominao da pena? Certa-mente, diante dessa falta de padro, e parano termos que declarar uma ofensa ao prin-cpio da proporcionalidade, percebe-se quea retroalimentao do crime no foi fator le-vado em considerao para se definir o mar-

    co da pena, o que, em ltima instncia, reve-la como o sistema penal ptrio concebe (oumelhor, no concebe) o crime de lavagem de

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    dinheiro o qual, como se conclui, no concebido, ontologicamente, a partir docrime antecedente.

    Se o crime de lavagem de dinheiro chegaa ser punido mais severamente que o seu

    crime precedente ou o crime que se visa rea-limentar, ento est claro que a lavagem emsi ganhou autonomia axiolgica. Assim sen-do, ofende um bem jurdico prprio. Da arazo de a lei estabelecer uma completa au-tonomia entre o crime principal e os crimesque so elementos do tipo (art. 2, inciso II e 1).

    Isso uma questo de poltica crimi-nal. Toda norma jurdica nasce de uma

    deciso poltica. Para usar a definio deZAFFARONI e PIERANGELI (2002, p.132), poltica criminal a cincia ou a artede selecionar os bens que devem ser tutela-dos jurdica e penalmente, e escolher os ca-minhos para efetivar tal tutela, o que, inilu-divelmente, implica a crtica dos valores ecaminhos j eleitos.

    interessante observar que outro fatonos indica que o crime de lavagem de

    dinheiro no foi concebido a partir dos cri-mes antecedentes. A EM n 692/MJ fornecea seguinte explicao por que os crimes con-tra a ordem tributria no foram includosno rol de crimes antecedentes:

    Observe-se que a lavagem dedinheiro tem como caracterstica a in-troduo, na economia, de bens, di-reitos ou valores oriundos de ativida-de ilcita e que representaram, no mo-

    mento de seu resultado, um aumentodo patrimnio do agente. Por isso queo projeto no inclui, nos crimes ante-cedentes, aqueles delitos que no re-presentam agregao, ao patrimniodo agente, de novos bens, direitos ouvalores, como o caso da sonegaofiscal. Nesta, o ncleo do tipo consti-tui-se na conduta de deixar de satis-fazer obrigao fiscal. No h, em de-

    corrncia de sua prtica, aumento depatrimnio com a agregao de valo-res novos. H, isto sim, manuteno

    de patrimnio existente em decorrn-cia do no pagamento de obrigaofiscal. Seria desarrazoado se o projetoviesse a incluir no novo tipo penal lavagem de dinheiro a compra, por

    quem no cumpriu obrigao fiscal,de ttulos no mercado financeiro. evidente que essa transao se consti-tui na utilizao de recursos prpriosque no tm origem em um ilcito(item34).

    Essa explicao, portanto, mostra-nosuma lgica oposta: o crime de lavagem dedinheiro que est selecionando o rol de cri-mes antecedentes. Se o direito penal deve

    cumprir um objetivo de segurana jurdica,que, para ZAFFARONI, no se diferenciasubstancialmente da defesa social, e se esseobjetivo se cumpre tutelando bens jurdicos aqueles tidos como caros para a ordemconstitucional vigente , por que a decisopoltica prvia constituio da norma ju-rdica resolveu restringir o alcance do tipopenal usando como critrio o que o crime cau-sa para o seu agente e no o que o crime causapara a sociedade civil ou para o Estado? Pareceque a EM n 692/MJ no est mais falandode tutela de bens jurdicos. E se com odinheiro da sonegao fiscal o agente pro-cura um doleiro para remeter o montantepara fora do pas sem que a Receita Federale o Banco Central percebam? Houve evasode divisas (remessa clandestina de dispo-nibilidades de moeda estrangeira do pas),que crime contra o sistema financeiro na-

    cional (art. 22 da Lei n 7.492/86) e que estno rol da lei n 9.613/98 (inciso VI). Nohouve aumento de novos bens, direitos evalores ao patrimnio do agente. Pelo con-trrio, houve reduo, pois ele teve que pa-gar a comisso do doleiro e a taxa da or-dem de pagamento! Como j afirmaraZAFFARONI, o caminho escolhido pelapoltica criminal para efetivar a tutela jimplica a crtica do caminho eleito.

    Alm disso, a EM n 692/MJ defendeuma tese (de que o resultado do crime delavagem constitui um aumento do patrim-

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    nio do agente) que o tipo penal prescrito nalei no reclama. Tal condio no se encon-tra no caputdo art. 1 ou em seus 1 e 2.Estamos diante de um fenmeno parecidocom o que atualmente ocorre com o crime de

    furto. H uma corrente jurisprudencial ex-pressiva defendendo que o crime s se con-suma se o objeto furtado passar para a pos-se tranqila do agente (ver voto vencido doMinistro Nri da Silveira, STF RT 677/428). uma condio que, a rigor, o tipopenal (art. 155 do Cdigo Penal) no recla-ma. Mas o interessante que a condio co-locada pela EM n 692/MJ (o resultado docrime de lavagem precisa ser uma agrega-

    o de fora ao patrimnio do agente) no foiimposta pela jurisprudncia, no foi frutoda anlise judicante de um caso concreto por meio da qual o processo, na perspectivade Ihering, torna-se uma luta que cons-tri o Direito, da J.J Calmon de Passos ensi-nar que na fase de aplicao do Direitoque ocorre a sua legitimao social , masfoi fruto de uma deciso poltica prvia criao da norma jurdica.

    Essa relao necessria da poltica como Direito no , logicamente, como j alertouMaurcio A. R. LOPES (1999, p. 202), umaquesto limitada ao campo penal, mas umproblema geral do Direito. Contudo, no sedeve perder de vista que a norma jurdicaforma parte de uma ordem jurdica e que adeciso poltica, na medida em que podeensejar a criao de uma norma jurdica con-creta, deve-se harmonizar ao todo jurdico

    j existente, para que seja mantida a coern-cia do sistema. Apenas com a lei penal nasmos no podemos conhecer o direito pe-nal de um pas, prescindindo do restante delegislao positiva do ordenamento jurdi-co. Assim, o que o sistema nos diz sobre atese defendida pela deciso poltica na EMn 692/MJ? No direito tributrio, o paga-mento de um tributo torna-se obrigao le-gal a partir da ocorrncia do fato gerador.

    Assim, o seu no pagamento configura en-riquecimento ilcito. Este, em nosso direitocivil, possui os seguintes pressupostos: a)

    enriquecimento do accipiens (do que lucra);b) empobrecimento do solvens (do que sofreo prejuzo); c) relao de causalidade; d)existncia de lei prevendo a hiptese. Emsuma, no crime contra a ordem tributria, o

    que o agente est fazendo retirando recur-sos do fundo pblico, da res publica. A teseda EM n 692/MJ, portanto, falaciosa, e,de certa forma, no esconde o patrimonia-lismo burocrtico, para usar expresso deRaymundo Faoro, tradicionalmente presen-te no imaginrio poltico brasileiro.

    A noo do delito como ofensa a um bemjurdico uma das grandes conquistas doconstitucionalismo liberal a partir de mea-

    dos do sculo XIX, com Birnbaum. A partirde ento, no foram raras as ocasies, como

    j constatou Luiz Flvio GOMES, em que oconceito de bem jurdico foi frontalmenteatacado ou menosprezado, ocasies quecoincidem com momentos autoritrios daHistria. Quando isso acontece, o bem jur-dico j no revela a essncia do delito, seusubstractum, seno exclusivamente a ratioseca da lei. O conceito mesmo de delito se

    transforma para ser concebido como meraleso norma ou mera violao de um de-ver (GOMES, 2002, p. 79-80). O que importa,nessa perspectiva, a vigncia formal daprpria norma. Assim, no crime de lavagemde dinheiro, politicamente falando, o queganha relevncia penal no a ofensa aoEstado ou a uma economia saudvel,mas a violao da norma que condena im-plicitamente o aumento do patrimnio do

    agente!Estamos diante de um caso clssico da

    escola de Escolha Pblica de Buchanan!Essa escola um fenmeno do final do s-culo XX e pouco debatida no Brasil. Apesarde ser uma escola da cincia econmica, trazquestes que deveriam ser trazidas para ocampo de estudo do Direito. Uma das pre-missas usadas por ela a de que o burocra-ta, assim como o homem de negcios, ego-

    sta, mas seu egosmo se manifesta de dife-rentes maneiras. Enquanto o homem de ne-gcios luta para maximizar os lucros, os bu-

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    rocratas procuram maximizar um conjuntodiferente de variveis: poder, prestgio, imu-nidade, elegibilidade, salrios, bonificaes,oportunidades depois da aposentadoria etc.O burocrata maximiza essas variveis in-

    flacionando o oramento e o tamanho dorgo administrativo. Da Buchanan dizerque o sistema poltico fomenta os dficits nooramento.

    Keynes, por exemplo, nunca questionoua motivao dos polticos e burocratas por-que adotava implicitamente uma mo in-visvel poltica, que assegurava uma con-fluncia entre o egosmo poltico e o bempblico. Por exemplo, um poltico pode de-

    fender uma poltica X simplesmente porqueela popular e ir maximizar votos. Assim,o pblico obtm o que quer, e o que ele quer bom, e o poltico obtm o que quer, ain-da que se importasse muito pouco com aao que desempenhava.

    Mas e se o egosmo poltico divergir dointeresse pblico, desvelando a ingenuida-de poltica de Keynes? No fundo, o queBuchanan faz chamar a ateno para a

    existncia de possveis desequilbrios smi-thianos na poltica e que deveriam ser leva-dos em considerao como varivel econ-mica. Quando o governo se expande em mi-crotransaes mediante criao de leis, re-gulamentaes, subsdios, tarifas e conces-ses, os custos de informao sobem para opblico. Ou seja, os cidados que desejamestar informados a respeito dos gastos p-blicos e da poltica precisam investir mais

    tempo e esforo reunindo informaes. Paraa maioria dos cidados, esse investimentoser economicamente irracional, porque oscustos de informao excedem os benefci-os que eles obtm (principalmente quandoo cidado no est entre os beneficiados).Assim, agentes pblicos podem desviar gas-tos de programas por egosmo poltico quan-do os custos de informao para os eleitoresso altos se comparados aos benefcios de-

    rivados. Esses custos aumentam quando ogoverno expande as operaes. Qual a con-cluso lgica de Buchanan? Uma tendn-

    cia na direo da expanso governamental uma tendncia em direo separao dosatos dos polticos do conhecimento do p-blico.

    Se a pessoa no sofre direta ou indireta-

    mente prejuzo com as microtransaes en-tre o governo e outros, ela desconta os bene-fcios de obter informao sobre a ao dogoverno. Assim, at o ponto em que os cida-dos no vem o prejuzo, no se importam.Pelo lado macroeconmico, as finanas p-blicas sero e prosseguiro sendo prejudi-cadas at o ponto em que os eleitores subes-timam os prejuzos ou benefcios indiretosda poltica fiscal e monetria.

    No incluir os crimes contra a ordem tri-butria no rol de crimes antecedentes da la-vagem de dinheiro fruto de uma micro-transao poltica que produz benefcios in-diretos para todo mundo (desde o simplesfuncionrio pblico sem reajuste salarial hoito anos e que no sai do cheque especialat uma grande empresa que precisa com-patibilizar altos custos operacionais com aalta carga tributria) ao mesmo tempo em

    que produz prejuzos macroeconmicospara todo mundo, os quais so subestima-dos ou no percebidos, e as finanas pbli-cas continuaro sendo prejudicadas at oponto em que a sociedade acreditar que oscustos de informao so altos se compara-dos aos benefcios derivados.

    Essa perspectiva buchananiana nosleva, ento, ao segundo efeito bsico do cri-me de lavagem de dinheiro a desestabili-

    zao da ordem econmico-financeira. Esseefeito tem tomado a ateno particular doFundo Monetrio Internacional (FMI) e daComunidade Europia. O FMI est inclusi-ve incluindo as medidas antilavagem im-plementadas como um dos pontos a ser ava-liado nos pases que pedem emprstimos, oque inclusive foi feito recentemente noBrasil. Alguns penalistas sublinham o efei-to da lavagem sobre a administrao da jus-

    tia. Apesar de relevante, apenas um efei-to reflexo, e a comunidade internacional esttentando minimiz-lo com a multiplicao

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    de assinaturas de Acordos de CooperaoJudiciria em Matria Penal.

    A lavagem de dinheiro um tpico fatoentrpico, como se ver, pois gera desordem.Nesse caso substitumos a discusso ante-

    rior sobre os microbens jurdicos paradefinir apenas um: a ordem econmico-fi-nanceira sendo essa a atual tendncia devalorao por parte da comunidade inter-nacional. O Parlamento Europeu e os Par-lamentos de 13 dos 15 pases da UnioEuropia (UE), em fevereiro de 2002, em reu-nio na Frana, consideraram o crime de la-vagem de dinheiro como ameaa direta estabilidade da economia global. Assim,

    em que medida a ordem econmico-finan-ceira afetada pela escolha pblica de nose punir os que lavam os proventos desonegao ou fraude fiscal? A estabilidadeda ordem econmico-financeira justifica aaplicao de ultima ratio do direito penal?Ser que a proteo a esse bem jurdico subs-tantiva tanto uma defesa do Estado quan-to uma defesa da sociedade civil?

    4. Os efeitos macroeconmicos da

    lavagem de dinheiro versus o rolde crimes antecedentes

    O impacto de altos montantes no siste-ma econmico-financeiro digno da aten-o por parte da poltica criminal por vri-as razes. Em primeiro lugar est o fato deos bancos comerciais terem poder para cri-ar moeda. Ao receberem recursos sob a for-

    ma de depsitos vista, geram moeda escri-tural, com liquidez equivalente moeda le-gal em circulao. Os depsitos geram apli-caes (emprstimos) e essas, por sua vez,resultam em novos emprstimos, processoque eleva os meios de pagamento da econo-mia. Para cada R$ 1,00 de depsito tomadoisoladamente o banco pode criar moeda ato limite de suas reservas. Esse crescimentode moeda escritural definido pelo coefici-

    ente de expanso do sistema, dado pela fr-mula: 1/R, em que R indica o percentual dereservas mantido pelos bancos.

    Nos termos do Acordo de Basilia de1988, do qual o Brasil signatrio, todo ban-co deve ter patrimnio lquido de 8% do va-lor de seus ativos ponderado pelo risco. NoBrasil, o sistema financeiro trabalha atual-

    mente com uma relao mnima de 11%. Emsuma, isso significa que, para cada R$ 100,00que o banco empresta, R$ 11,00 devem sergarantidos com recursos prprios. Adotan-do esse indicador para um exerccio hipot-tico, considerando um sistema bancrio noqual os bancos mantenham reservas equi-valentes a 11% do saldo dos depsitos (semconsiderarmos aqui os efeitos de instrumen-tos de poltica monetria, como os depsi-

    tos compulsrios), 1/R seria 1/0,11 e dariaum coeficiente de expanso de 9,09 do siste-ma, o que significa que para cada R$ 1,00depositado em um banco brasileiro, em tese,pode-se criar at R$ 9,09 de moeda escritu-ral.

    Em 2001 a Receita Federal divulgou umnmero muito interessante. Cerca de R$ 825bilhes que circulam na economia brasilei-ra dinheiro informal, que s foi detectado

    pela CPMF. Ou seja, dinheiro no associadoa nenhum faturamento declarado nem anenhum imposto pago. Isso equivale a 30%de todo o dinheiro em circulao no merca-do. quase o Produto Interno Bruto (PIB)nacional! Assim, prosseguindo em nossoexerccio hipottico, se multiplicssemosesses R$ 825 bilhes, supondo que essedinheiro estivesse circulando no mercadosul-americano e fosse injetado no Brasil, por

    9,09, teramos gerao de at R$ 7,5 trilhesno sistema financeiro nacional, aproxima-damente sete vezes o PIB nacional! porisso que existem parasos fiscais, pases queabrem mo da tributao s para ter odinheiro em seus caixas. Existem muitos pa-ses financiando seus dficits em Transa-es Correntes com dinheiro sujo. No toa que a Colmbia, desde que se tornougrande produtora de drogas, nunca passou

    por uma recesso econmica.O dinheiro sujo influencia o comporta-

    mento dos meios de pagamento no merca-

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    do. Grandes montantes podem provocarsaltos em M1 (moeda em poder do pblico +depsitos a vista nos bancos comerciais) emperodos inflacionrios! Um dos primeirosefeitos da introduo de altos montantes no

    sistema o aumento da velocidade de circu-lao da moeda, que pode ser medida pelarazo PIB/Quantidade de moeda. Se a velo-cidade de circulao da moeda aumenta,gera-se presso inflacionria; se o dinheiroapenas passa pelo pas e remetido ao exteri-or, gera-se presso sobre o cmbio, desvalori-zando a moeda nacional. Michel Camdessus,ex-presidente do FMI, j declarava, em 1998,que a lavagem de dinheiro gerava mudan-

    as inexplicveis na demanda por moeda euma maior volatilidade dos fluxos inter-nacionais de dinheiro e de taxas de cm-bio.

    Todos esses movimentos citados at aqui,mais adiante, comporo a lista de fatoresque far com que o Comit de Poltica Mo-netria (Copom) aumente a taxa de juros.Juros maiores significam dvida pblicamaior; moeda desvalorizada tambm signi-

    fica dvida pblica maior, pois o pas aindapossui muitos ttulos indexados ao cmbio.Isso se traduz em problemas para o governopara cumprir metas de supervit fiscal.

    H um fator agravante no Brasil com re-lao a esses pontos: o pas faz fronteira comfortes produtores de drogas Colmbia,Bolvia, Peru e Paraguai e, como so eco-nomias pequenas, o que torna mais arrisca-do para traficantes lavarem expressivos

    montantes de dinheiro sujo, o Brasil torna-se destino certo, dado o tamanho de seumercado financeiro e de seu volume popu-lacional. Isso sem contar o fato de o Brasilser rota de passagem da droga que seguepara a Europa, o que significa dizer que opagamento de muitas mulas e distribuido-res atacadistas se d no mercado brasileiro.

    Cabe ressalvar ainda que a droga do vi-zinho nunca vem sozinha. O fato que os

    centros de varejo do narcotrfico criam eco-nomias informais em torno de si. Entre gru-pos de traficantes normalmente viceja o co-

    mrcio em domiclio de roupas de grife, ji-as, CDs, aparelhos eletrnicos e, ultimamen-te, tambm modernos equipamentos de es-cuta e de comunicao. Desse mbito localpara fora, a estrutura vai-se tornando

    mais complexa, e passa a envolver car-ros, caminhes, barcos, avies, material eequipamento para refino de cocana e pren-sagem de maconha, profissionais especiali-zados, aeroportos clandestinos ou no, do-cumentao, comrcio de armas e de dla-res, pirataria, evaso fiscal etc. Cria-se umEstado paralelo, informal, que no Brasil temum PIB de R$ 825 bilhes!

    Os movimentos de capital induzidos

    pelas tentativas de lavar dinheiro no sopromovidos por questes econmicas fun-damentais, tais como tentativas de tirar pro-veito de diferenas de taxas de juros ou decmbio ou mesmo de baixas alquotas tri-butrias. Em vez disso, os movimentos soinduzidos por diferenas de controles e re-gulamentos que tornam a atividade de la-vagem menos arriscada em alguns pasesdo que em outros, mesmo que isso proporci-

    one taxas de retorno mais baixas. Portanto,esses ativos seguem caminhos opostos aosque seriam indicados pelos princpios fun-damentais da economia. O dinheiro podefluir para fora de pases com polticas eco-nmicas slidas e taxas de retorno mais al-tas para pases com polticas mais frgeis etaxas de retorno mais baixas, num aparentedesafio s leis econmicas! Como resulta-do, o capital tende a ser investido de forma

    menos otimizada do que seria se no fossede origem ilegal. A taxa mundial de cresci-mento diminui no apenas como causa doimpacto das atividades criminosas na alo-cao de recursos, mas tambm como causada alocao do produto de tais atividades(TANZI, 1996, p. 45). Estamos diante de umfenmeno que ri do clssico modelo Hecks-cher-Ohlin! No toa que a UE define ocrime de lavagem de dinheiro como ameaa

    direta estabilidade da economia global.Como se observa, os formuladores de po-

    ltica em pases caracterizados por altas ta-

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    xas de inflao, taxas supervalorizadas decmbio e grandes dficits fiscais tendem aser menos propensos a modificar suas pol-ticas se receberem uma forte injeo de capi-tal externo. Em nvel nacional, entradas e

    sadas volumosas de capital podem impac-tar o comportamento de variveis de formasignificativa como as taxas de cmbio e de

    juros (Peter J. QUIRK (1997), em estudo parao FMI sobre lavagem de dinheiro, j conclu-ra que, medida que a procura por dinhei-ro parece se deslocar de um pas para outroem funo da lavagem, ela passa a ter con-seqncias negativas sobre a volatilidadedas taxas de juros) e preos de ativos espe-

    cficos, como, por exemplo, imveis. Em al-guns pases identificados com atividades delavagem de dinheiro, aumentos imprevis-tos tm ocorrido nos preos de certos ativos(terra, casas, flats etc.) que no podem serexplicados por alteraes de poltica econ-mica.

    Quando as taxas de cmbio flutuam li-vremente, como no Brasil, o influxo de gran-des quantias de dinheiro lavado pode re-

    sultar em valorizao das taxas e/ou em ex-panso da base monetria. A valorizaoda taxa de cmbio reduziria a competitivida-de dos setores exportadores mais tradicionaise geraria maiores importaes. Na ausnciade interveno poltica de esterilizao, oaumento da base monetria tenderia a pres-sionar os preos internos para cima, geran-do a presso inflacionria citada anterior-mente. Ao enfrentar essas dificuldades, os

    formuladores de poltica nacionais seriamforados a apertar a poltica fiscal para cri-ar supervit oramentrio que poderia serutilizado para esterilizar os efeitos monet-rios dos influxos de capital.

    Numa perspectiva buchananiana, a po-ltica se aproxima de fato de uma atividadeeconmica: a deciso poltica que manuseiao rol de crimes antecedentes da lavagem dedinheiro, processo que amplia ou no o tipo

    penal, o que significa que amplia ou no arepresso do Estado sobre este crime pro-cesso que define o uso ou no de ultima ratio

    do direito penal sobre o fato real , tem po-deres para, indiretamente, fomentar ou noo dficit oramentrio, o que, em ltima ins-tncia, depender da escolha pblica.

    No se pode esquecer dos efeitos macro-

    econmicos sobre a distribuio de renda.QUIRK (1997, p. 8) levantou indcios de queos recursos subtrados pela evaso fiscaltendem a ser canalizados para investimen-tos mais arriscados e de maior rentabilida-de no setor das pequenas empresas, e tam-bm de que a evaso fiscal predomina nessesetor. Assim, medida que a atividade cri-minosa redireciona a renda de altos poupa-dores para baixos poupadores, ou de inves-

    timentos slidos para investimentos arris-cados, de baixa qualidade, como j colocado,o crescimento econmico do pas sofre. Porfim, o estudo de QUIRK encontrou indciosde que redues significativas nas taxas anu-ais de crescimento do PIB de alguns pa-ses estavam associadas com aumentos nalavagem do produto do crime.

    Por tudo isso que a estratgia polticaadotada pelo legislador brasileiro merece al-

    gumas observaes. Primeiramente, o caputdo art. 1 da Lei n 9.613/98 limitou o cam-po de incidncia de infraes penais ante-cedentes a crimes. No Brasil h diferenaentre crime e contraveno penal. A diferen-a bsica que nesta h priso simples (semrigor penitencirio) e a pena cominada podeser apenas a de multa. O jogo do bicho, porexemplo, uma das maiores chagas da crimi-nalidade nacional, uma contraveno pe-

    nal e no um crime. Assim, se um bicheirointroduz proventos do jogo no sistema fi-nanceiro para ocultar ou dissimular a ori-gem, no estar praticando crime nenhum,por maior que seja o montante. H hoje umvcuo legislativo com relao ao bingo. Foieditada medida provisria dando CaixaEconmica Federal poder para fiscalizar elicenciar, mas necessita de regulamentao.O Poder Judicirio tem atrapalhado bastan-

    te a fiscalizao e represso da Caixa, poistem concedido liminares contra o descre-denciamento de vrias dessas atividades.

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    Atualmente proliferam-se no Brasil asmquinas de caa-nqueis. S no DistritoFederal (DF), onde a incidncia no toalta quanto em algumas cidades do Nordestee Sudeste, estima-se que cada mquina ar-

    recade R$ 3 mil por ms. um negcio quemovimenta R$ 40 milhes por ano s no DF. tpico jogo de azar cujos proventos podemser injetados no sistema financeiro sem ris-co de incriminao, pois o jogo mera con-traveno penal.

    O mesmo ocorre com a promoo de lo-terias no autorizadas, nacionais ou estran-geiras, que tambm contraveno penal.No bilhete de loteria no se consigna nome

    ou CPF, o que o transforma num ttulo aoportador. Estima-se que h cerca de 9 milrevendedores lotricos no pas, os quais po-dem comprar bilhetes premiados para fins delavagem. Outra contraveno o comrcioclandestino de obras de arte, um dos merca-dos mais utilizados atualmente para a la-vagem de dinheiro. Muitos bancos europeustm aceitado sem maiores problemas obrasde arte como garantia para emprstimos,

    muitas das quais furtadas ou roubadas. NoBrasil, qualquer pessoa poderia furtar ouroubar obras de arte carssimas, oferec-lascomo garantia de um emprstimo correspon-dente ao seu valor, para, em seguida, nopagar o emprstimo: o banco ficaria com umbem sujo e o criminoso com dinheiro limpo(com uma origem a ser declarada), e ele noseria punido por isso.

    Em segundo lugar, como j menciona-

    do, esto ausentes do rol do art. 1 os crimescontra a ordem tributria. Segundo a Orga-nizao das Naes Unidas (ONU), a mai-or fonte de lavagem de dinheiro do mundo a evaso fiscal, seguida pela corrupo. ,assim, oportuno ressaltar que a EM n 692/MJ, apesar de rogar por uma suposta pol-tica criminal transnacional, apresenta umalei que no atende essa poltica, uma vezque a evaso fiscal, repita-se, a maior fonte

    de lavagem de dinheiro do planeta. O Brasilsequer pode extraditar os que causam rom-bos fiscais em outras partes do mundo.

    A ttulo de quantificao, at outubro de2003 a indstria devia R$ 5,3 bilhes ao Fis-co, o comrcio devia R$ 4,8 bilhes e o setorfinanceiro devia R$ 2,3 bilhes. Segundo oInstituto Brasileiro de tica Concorrencial

    (Etco), o volume de combustveis vendidoirregularmente corresponde a R$ 3,1 bilhespor ano de sonegao fiscal; as tubanas (re-frigerantes mais baratos) cresceram sua par-ticipao no mercado de 5%, h dez anosatrs, para 40%, hoje; no setor de cigarros,produtos contrabandeados ou que no pa-gam impostos representavam 8% a 10% domercado e agora representam 33%. Em au-dincia pblica promovida pela Comisso

    de Seguridade Social e Famlia, da Cmarados Deputados, foi dito por auditores fis-cais da Previdncia Social que o governo temR$ 100 bilhes para cobrar de sonegadoresna Justia. O ministro Berzoini, por sua vez,divulgou uma lista com mais de 170 milnomes de devedores que, juntos, devem R$153 bilhes Previdncia. Segundo a CPIda Pirataria, R$ 10 bilhes o rombo fiscalprovocado pela pirataria por ano. A que

    nmero chegaramos se fosse somado a es-tes todo o dinheiro que no paga impostoproveniente das contravenes penais cita-das anteriormente? Se continuarmos a citarexemplos e formos somar todos esses valo-res, talvez chegssemos ao nmero de R$825 bilhes, j certamente fruto do efeitomultiplicador financeiro, divulgados pelaReceita Federal. E isso num pas que, s em2003, pagou R$ 137 bilhes com despesas

    da dvida da Unio, estados, municpios eempresas estatais.

    Ser que essas modalidades de crimesso condutas dotadas de tal periculosidade(criadora de riscos) a ponto de alcanar oncleo de garantia e proteo da norma ju-rdica de lavagem de dinheiro, que expres-sa um bem jurdico a ordem econmico-financeira? Se a resposta for positiva, entose pode falar em um fato penalmente rele-

    vante, uma vez que, sob o signo do direitopenal da ofensividade, deve ser includocomo crime antecedente lavagem de

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    dinheiro aquele que proporciona uma con-creta ofensa ao bem jurdico protegido nullum crimen sine iniuria.

    5. Os instrumentos

    buchananianos do Brasil

    A escola da Escolha Pblica, deBuchanan, alerta-nos ainda para outro as-pecto da questo. O Brasil no um pasbastante atrativo para a lavagem de dinhei-ro apenas por fazer fronteira com produto-res de drogas e por ser rota de passagem e,tambm, praa de consumo. H outras vari-veis que agravam todos aqueles efeitos ma-

    croeconmicos citados. Devido ao tamanhogeogrfico do pas, complexidade de seumercado, ao fato de a mquina administra-tiva ser muito grande e o ordenamento jur-dico ser instvel e saturado de leis e regula-mentos, e ainda cheio de lacunas, o custo dese obter informaes sobre as expanses dogoverno muito alto. Exemplo claro dissoso as contas de no residentes (conheci-das como contas CC5), em sua verso de

    1988, vigente at os dias de hoje. H em tor-no de 4.300 dessas contas no mercado. OBrasil nico no mundo em pelo menos umaspecto: sua moeda e no livremente con-versvel ao mesmo tempo! Uma excentrici-dade. A rigor, nossa moeda no livrementeconversvel. Mas torna-se por meio de um ins-trumento buchananiano precrio as CC5.

    Estamos novamente diante de uma ex-panso governamental uma microtransa-

    o que visou o fim do dlar paralelo e oretorno de capitais que estavam fora do pas(fruto da evaso fiscal e dos super e subfa-turamentos de importaes e exportaes dadcada de 1980, num momento histrico emque o governo passava a desconfiar quetodo o problema de sua economia tinha raizfiscal), feita por meio de regulamentaes(Resoluo n 1.555/88 do Conselho Mone-trio Nacional e Circular n 2.259/92 do

    Banco Central) que significa uma clara se-parao do ato poltico do conhecimento dopblico.

    Oficialmente, para o pblico, o real no livremente conversvel. No atual regime,os exportadores so obrigados a trazer econverter, no pas, a moeda estrangeira re-sultante da venda de suas mercadorias. Ne-

    cessariamente, portanto, a exportao geraoferta domstica de moeda estrangeira. Emdiversos pases onde a livre conversibilida-de foi adotada, tal contrapartida no exi-gida se o exportador quiser, ele pode rece-ber o dinheiro no exterior. Todavia, h umaincoerncia nas regras nacionais. O mesmoexportador que obrigado a trazer a moedaestrangeira, no momento seguinte, pode re-meter de novo os recursos ao exterior sem

    dar qualquer motivo, uma vez que permi-tido a qualquer pessoa fsica ou jurdica re-meter o dinheiro a ttulo de constituio dedisponibilidade no exterior, usando a con-ta de uma instituio financeira no resi-dente (CC5 verso 1988). Ento o que de fatosignifica o discurso antigo do Banco Cen-tral, conhecido desde 1995, da necessidadede tornar o real livremente conversvel? Naprtica, como as remessas j podem ser fei-

    tas via CC5, seria apenas uma mera desbu-rocratizao, nada mais.

    Apenas a ttulo de exemplificao, a li-vre conversibilidade implicaria o fim dosprazos mnimos para emprstimos e finan-ciamentos externos que as empresas brasi-leiras tm que observar, de 90 dias ou mais,dependendo do caso. Na prtica, uma em-presa que pretende pagar antes do prazopode remeter os recursos via CC5, a ttulo

    de constituio de disponibilidade. Mas cer-tamente os credores externos no gostam eestranham muito isso, uma vez que, conta-bilmente, a transao no fica transparente.

    No Brasil, esse instrumento buchanania-no produz uma demanda por moeda que sedesloca do pas para outros pases em fun-o da lavagem, o que passa a ter conseqn-cias negativas sobre a volatilidade das taxasde cmbio e de juros e sobre o preo de vrios

    ativos, como j analisado no item anterior.Um lavador, para esconder o seu nome,

    pode abrir uma empresa no Brasil mesmo

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    de preferncia num ramo que movimentebastante dinheiro em espcie, como umafactoring, um restaurante, um hotel, uma pres-tadora de servios etc. (aqueles ramos queos economistas sempre estranham porque

    resistem bem aos ciclos econmicos em pa-ses com baixa poupana interna!) , s parano movimentar montantes no sistema ban-crio em nome prprio, ou ir logo ali noUruguai, paraso fiscal mais prximo doBrasil, e abrir uma Sociedad Financiera deInversion (Safi), companhia offshore muitopopular, em que, mediante pagamento deum imposto de 0,3% sobre o capital acion-rio, o investidor pode colocar e sacar no Uru-

    guai qualquer quantia com anonimato ga-rantido. Se o esquema envolver fluxos fre-qentes, nosso lavador pode ainda abriruma holding num pas com uma legislaofiscal branda. A holding uma empresa quemantm o controle sobre outras (subsidiri-as) pela posse majoritria das aes. Emgeral, ela no produz nada. Empresas des-se tipo constituem um dos estgios maisavanados da concentrao de capital, que

    devem fazer Marx se contorcer em seu t-mulo, pois podem controlar um capital mui-to maior que o seu, auferindo lucros despro-porcionalmente elevados.

    Para mandar o dinheiro para fora, a em-presa procura um banco autorizado a ope-rar com cmbio e pede para depositar seusreais, provento de crime, numa CC5, a ttulode disponibilidade no exterior, modalidadeque no depende de respaldo documental

    (art. 10, 1, da Circular n 2.677/96 doBanco Central). Permite-se, estranhamente,que as remessas de disponibilidades sejamregistradas na rubrica Transferncias Uni-laterais do balano de pagamentos (PRO-GRAMA..., 2000, p. 33-34). Assim, aparece-r um sinal negativo nela, o que contribuirpara reduzir o saldo das Transaes Cor-rentes (soma da Balana Comercial, Balan-a de Servios e Transferncias Unilaterais).

    Vamos supor que o dinheiro tenha idopara um banco nas Bahamas ilhas quefazem parte do grupo de parasos fiscais lis-

    tados pelo Banco Central que ocupam o ter-ceiro lugar no ranking dos maiores investi-dores externos no Brasil, ao lado das ilhasCayman, Luxemburgo, Bermudas e IlhasVirgens Britnicas , titular daquela CC5 no

    banco brasileiro, e tenha sido misturado comrecursos no identificados de outras partesdo mundo, constituindo um fundo de in-vestimento. Ento esses recursos retornamao Brasil, sob a forma de capital estrangei-ro, com direito iseno tributria.

    O dinheiro vai entrar pela conta de Ca-pital do balano de pagamentos, registran-do um sinal positivo, que, todavia, gerarum sinal negativo nas Transaes Corren-

    tes, pois os rendimentos retornam para oexterior. E esse fundo certamente comprarttulos da dvida pblica brasileira, pois es-to entre os que mais rendem no planeta.Assim, como se observa, o Brasil perdeu re-ceita fiscal e, no resultado consolidado, noteve qualquer ganho, porque, se o dinheiroque agora entra pela conta de Capital finan-cia um eventual dficit na conta de Transa-es Correntes, ele j havia sado por esta,

    desajustando-a num primeiro momento. E,alm disso, o pas ainda se torna devedordo lavador! Se esse dinheiro for fruto de so-negao fiscal, o Brasil torna-se devedor deum sonegador por causa do dinheiro queele retirou da res publica!

    Tecnicamente, como se observa, a faltade ganho , na verdade, perda para o pas.Esse mesmo dinheiro que deu registro deentrada pela conta de Capital pode voltar a

    passear pelo exterior a ttulo de disponibili-dade sem que o remetente d o registro debaixa da entrada, como exige a Lei n 4.131/62. O Banco Central tem um sistema de re-gistro (Sisbacen), outro instrumento bucha-naniano, que sequer critica se uma remessa anotada anos aps ter acontecido. O arti-go 11 da Circular n 2.677/96 determina queo banco depositrio dos recursos deve re-gistrar no Sisbacen, no mesmo dia em que

    forem realizadas, todas as transfernciasinternacionais em reais. No entanto, anli-ses periciais a pedido do Ministrio Pblico

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    Federal j chegaram a demonstrar que cen-tenas de operaes de cmbio so registra-das no Sisbacen fora desse prazo, atingin-do, em alguns casos, 6 anos aps a data emque a operao de cmbio fora realizada!

    um sonho para qualquer lavador. Essedinheiro gera um efeito multiplicador ques traz ganhos crescentes para o seu dono eperdas crescentes para o Fisco, sem contaros problemas de poltica monetria para oBanco Central, uma vez que, como j colo-cado, variaes na base monetria esto di-retamente vinculadas ao saldo do balanode pagamentos e ao desempenho financei-ro do setor pblico.

    Mas o dinheiro que voltou por um fundode investimento pode voltar de outras for-mas tambm. Vamos supor que o dinheirotenha sido depositado, l nas Bahamas, naconta de uma empresa especialmente cria-da para receber essas quantias. Algum tem-po depois, uma Trust, uma Holding ou umaS.A de qualquer nome, contanto que possaatuar como investidor estrangeiro peran-te a Lei n 4.131/62, realiza com esse

    dinheiro um Investimento Externo Direto(IED) no Brasil em uma empresa do mesmogrupo daquela criada nas Bahamas. Ou seja,o nosso criminoso tornou-se, de forma ocul-ta, um investidor em moeda estrangeira deseu prprio grupo empresarial no Brasil!Mas se ao invs de escolher mandar por IEDoptar por um emprstimo empresa brasi-leira, o nosso criminoso tornar-se-, ento,credor em dlares (e no em reais, frise-se)

    de suas prprias empresas no Brasil! E as-sim a dvida externa privada s cresce.

    Pode-se ainda lucrar no Brasil com ou-tro instrumento buchananiano: o fato de opas possuir dois mercados de cmbio oflutuante e o livre , e com cotaes cambi-ais distintas, outra excentricidade no siste-ma financeiro mundial! Assim, como noh lei que impea, pode-se trazer o dinheiropor um e lev-lo embora pelo outro, ganhan-

    do-se na diferena da variao. Isso umsonho para qualquer doleiro. O Brasil, spor possuir esses dois mercados de cmbio,

    um fenmeno sem qualquer razo plaus-vel, financia todos os grandes doleiros domercado. Ou seja, o pas possui uma legis-lao que pune doleiros (arts. 21 e 22 da Lein 7.492/86) e, ao mesmo tempo, um siste-

    ma financeiro que os premia. uma incon-gruncia perturbadora.

    O dinheiro de nosso criminoso tambmpoderia ter sado pela conta de Capital, attulo de capital de curto prazo, emprsti-mo, financiamento ou investimento. Nessecaso, apareceria um sinal negativo nessaconta, que, em contrapartida, geraria um si-nal positivo nas Transaes Correntes, pois,em tese, deveria haver pagamento de juros

    ou dividendos para o Brasil. Contudo, infe-lizmente, no o que acontece. Perceber-se-, com o tempo, que o dinheiro s sai, nuncavolta. As disponibilidades no exterior, que,na verdade, so capitais de curto prazo, de-veriam sair pela conta de Capital e retornarao pas dentro de 360 dias, conforme orien-taes do FMI para capitais dessa natureza.Mas nunca voltam. Sequer existe no Brasilpreviso regulamentar de retorno desse

    dinheiro nesse prazo. Se voltar, muito fre-qentemente ser na forma de aplicao deum fundo de investimento estrangeiro oude investimento externo direto ou de em-prstimo do exterior!

    Toda a sociedade sai perdendo com isso.Os saldos (dficits ou supervits) do balan-o de pagamentos como um todo repercu-tem no nvel das reservas cambiais do pas.Os dficits implicam reduo das reservas.

    As situaes clssicas de insolvncia exter-na decorrem de redues comprometedorasno nvel de reservas, sejam por TransaesCorrentes cronicamente deficitrias, comofoi o caso do Brasil durante toda a dcadade 90, seja por interrupes nos financia-mentos compensatrios, pela conta de Ca-pital, dos registros negativos nas balanascomercial e de servios.

    Para o criminoso, sem qualquer patrio-

    tismo num mundo globalizado, pelo menoso dinheiro retorna limpo, pois se ocultouou se dissimulou a origem. Se todo esse es-

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    trago macroeconmico foi provocado poraltas quantias de dinheiro sonegado ou fru-to de fraude fiscal, apesar de ter afetado obem jurdico tutelado pela Lei n 9.613/98,o agente no ser punido por isso, pois no

    h crime de lavagem de dinheiro.Mas suponhamos que a lei mude e in-

    corpore os crimes contra a ordem tributriano rol de crimes antecedentes. O nosso so-negador, contratando um brilhante advoga-do, poderia defender-se em juzo alegando,num derradeiro esforo, diante de provasirrefutveis, para escapar da pena mais r-gida, que de forma alguma seu crime de v-rios anos atingiu o bem tutelado pela Lei n

    9.613/98, pois, tecnicamente, as reservascambiais do pas foram recompostas, dadoque os recursos transferidos em dlar aoexterior (pelas CC5) acabaram por ingres-sar em divisas ao pas, sob a forma de inves-timentos, emprstimos etc. Ou seja, no ha-veria sequer evaso de divisas!

    A grande questo : os reais transferidosao exterior em moeda forte (dlar) e reingres-sados, igualmente em moeda forte, na for-

    ma de emprstimos, IED, financiamentos oucompra de ativos recompem ou no as re-servas? Em primeiro lugar, como j coloca-do, nem todos os recursos que saem voltam.Segundo, se o dinheiro saiu em dlar por-que esses dlares j haviam sido captadospelo pas anteriormente, muitos sob as mo-dalidades de emprstimos, financiamentos,comrcio exterior, venda de ativos etc., e so-bre os quais j incidem juros, royalties, divi-

    dendos, pagamentos de comisses, taxas etc.Ou seja, existe um efeito multiplicador ne-fasto por trs, pois o pas voltar a ser one-rado, quando o dinheiro voltar, pelos mes-mos tipos de encargos que j esto sendopagos. Terceiro, se o objetivo era lavar odinheiro, ocultar a origem, ele retorna con-tabilizado como um patrimnio externo.No mais reserva do Brasil. Portanto, noexiste, tecnicamente, a recomposio. Mas o

    nosso sonegador pode ficar tranqilo, po-der vir a ser condenado por crime contra aordem tributria, com pena mxima abstra-

    ta de 5 anos, e de evaso de divisas, compena mxima de 6 anos, mas no por crimede lavagem de dinheiro, que poderia deix-lo por at 10 anos preso.

    Por fim, a realidade que salta aos olhos

    que os prejuzos so sempre subestimadosem comparao ao custo da informao so-bre a deciso poltica, sobre a expanso go-vernamental, sobre as microtransaes dogoverno. Os rgos de fiscalizao brasilei-ros no se comunicam. H registros no Sis-bacen de pessoas que mandaram milhesde reais por CC5 para o exterior e at hoje aReceita Federal os declara isentos de impostode renda. A administrao pblica brasilei-

    ra no consegue sequer identificar laranjas!Para completar, o Sisbacen no critica CPFsfalsos, nmeros de praas bancrias inexis-tentes, nem o registro posterior de operaes.O Tribunal de Contas da Unio j levou umsusto, depois de analisar remessas para oexterior, que as operaes tinham sido re-gistradas muito tempo depois de terem acon-tecido com a cotao cambial do dia do re-gistro! Alm disso, no h qualquer critrio

    para se definir por que mercado sai e entra odinheiro, se pelo livre ou pelo flutuante. Issodificulta identificar o que voltou do que saiu,e vice-versa. Nem se sabe ao certo a que ttu-lo sai o dinheiro e em que conta ele regis-trado no balano de pagamentos. Nem sesabe se os registros do balano esto corre-tos, pois h sinais negativos lanados quenunca produziro os positivos, e vice-ver-sa. O Tesouro que vai bancar tudo nos Er-

    ros e Omisses. Isso nos faz refletir se existealgum nmero confivel divulgado no pas! um paraso para qualquer lavador.

    Por tudo isso o Brasil um excelente mer-cado de passagem de dinheiro sujo. O FBInorte-americano j considera o Brasil um im-portante centro de lavagem, com cerca de2,5% do movimento global, segundo suaestimao.

    Alguns eventos recentes da Histria

    privatizaes em grande escala de empre-sas pblicas, o crescimento dos mercadosde valores de vrios pases em desenvolvi-

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    Revista de Informao Legislativa348

    mento, a diversificao crescente dos ins-trumentos financeiros disponveis no mer-cado internacional, o mercado de derivati-vos, o crescimento de fundos de hedging, acrescente parcela de capital internacional

    controlada por entidades oficialmente loca-lizadas em parasos fiscais, a ausncia decontroles regulatrios rgidos (como as CC5)e a escassez de capital em muitos pases criaram mercados para grandes influxos erefluxos de capital financeiro internacionalbem como as condies para a alocao an-nima desses recursos. No Brasil especifica-mente, como se percebeu, torna-se muito di-fcil distinguir entre movimentos de capital

    estimulados ou induzidos por diferenas depoltica econmica e movimentos de capitalgerados por tentativas de ocultar ou dissi-mular suas origens.

    6. Concluses

    Observou-se, em face do exposto, que ocrime de lavagem de dinheiro no um cri-me qualquer. Uma de suas peculiaridades,

    talvez compartilhada por outros crimes decarter financeiro, a produo de efeitosdifusos por toda a sociedade. Em outras pa-lavras, ele afeta tanto o Estado quanto o ci-dado comum. Se as taxas de juros estomuito altas, a lavagem de dinheiro pode seruma das causas; se os preos de imveis noparam de subir num pequeno bairro litor-neo, a lavagem de dinheiro pode ser umaexplicao; se o real deu um salto de desva-

    lorizao em certo perodo, a lavagem dedinheiro pode estar por trs; se a taxa anualde crescimento do PIB est caindo ou o go-verno tem dificuldades para cumprir suasmetas de supervit fiscal, a lavagem dedinheiro pode ser uma varivel importante.

    Observou-se ainda, a partir deste estudoa respeito do primeiro artigo da nossa lei delavagem de dinheiro, confrontando-o com arealidade social, poltica e econmica em que

    se insere, que as teses da escola da EscolhaPblica, de James M. Buchanan, so perfei-tamente aplicveis realidade brasileira.

    Outrossim, concluiu-se que o crime delavagem de dinheiro possui autonomia axi-olgica e, portanto, ofende bem jurdico es-pecfico a ordem econmico-financeira,conforme j declarado pelos parlamentos

    europeus em fevereiro de 2002. Analisou-secomo esse bem jurdico afetado pelo crime,o que justifica a aplicao poltica de ultimaratio do direito penal. Todavia, ficou claroque o tipo penal da lavagem de dinheiro en-contra-se deficiente e destoante da realida-de no Brasil. Na perspectiva da escola daEscolha Pblica, a expanso governamen-tal gerou uma separao do ato poltico deconcepo do crime do conhecimento do

    pblico. Como resultado, o bem jurdico tu-telado pela lei continua sendo ferido e ame-aado de forma penalmente irremedivelsem que a sociedade civil tenha conscinciadisso, pois subestima o custo.

    O presente trabalho, portanto, demonstraa necessidade de as anlises jurdicas, tantoem nvel doutrinrio quanto jurisprudencial,incorporarem outras variveis, como o des-compasso ftico apontado por Buchanan en-

    tre deciso poltica e bem pblico, que podemser tomadas emprestadas de outros ramos dosaber, como a economia, num saudvel pro-cesso interdisciplinar, sob pena de o discur-so jurdico tornar-se falacioso e estril.

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