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KUNHANGUE ATY GUASU ENTRE RITUAIS: A RESISTÊNCIA DAS MULHERES KAIOWÁ E GUARANI NO MS MARLENE RICARDI DE SOUZA [email protected] PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO MESTRADO E DOUTORADO EM HISTÓRIA UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS MS, BRASIL.

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KUNHANGUE ATY GUASU ENTRE RITUAIS: A RESISTÊNCIA DAS

MULHERES KAIOWÁ E GUARANI NO MS

MARLENE RICARDI DE SOUZA

[email protected]

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO

MESTRADO E DOUTORADO EM HISTÓRIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS – MS, BRASIL.

Page 2: KUNHANGUE ATY GUASU ENTRE RITUAIS: A RESISTÊNCIA DAS … · 2018. 11. 21. · 3 Tekohas), através de uma ferramenta de mobilização, a Kuñangue Aty Guasu, a Assembleia das Mulheres

KUÑANGUE ATY GUASU ENTRE RITUAIS: A RESISTÊNCIA DAS

MULHERES KAIOWÁ E GUARANI NO MS

Marlene Ricardi de Souza

(Universidade Federal da Grande Dourados – MS, Brasil.)

Resumo. O artigo ora proposto remete ao Projeto de Pesquisa apresentado ao Programa

de Pós Graduação em História – PPGH – UFGD da Universidade Federal da Grande

Dourados: “As Transformações no Modo de Ser Mulher Guarani em MS no Cenário de

Profundas Transformações no Território, na Organização Social e nas Formas de

Sustentabilidade (1960 – 2017)”. A referida pesquisa está em andamento e esse trabalho

objetiva compartilhar algumas narrativas das mulheres indígenas, mobilizadoras e

articuladoras da Aty Kuña, Assembleia das Mulheres Indígenas Kaiowá e Guarani. O

artigo ora proposto traz relatos de informantes importantes/estratégicas no grupo de

mulheres com as quais pesquisamos, dialogando a partir da espiritualidade, da reza, do

canto, da dança no belo caminhar das mulheres indígenas Kaiowá e Guarani. Nessa

perspectiva o espaço da Kuñangue Aty Guasu, é de conversação e interação entre

mulheres de diferentes gerações e que exercem atividades distintas nas aldeias do sul do

estado de Mato Grosso do Sul, dentre as quais podemos encontrar/destacar as jovens, as

anciãs (ñandesy), as mulheres lideranças das áreas de retomadas, as

parlamentares/vereadoras. A Kuñangue Aty Guasu tornou-se uma ferramenta de

reivindicação e afirmação de suas resistências e caminhares.

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Palavras-chave: Kuñangue Aty Guasu; mulheres Kaiowá e Guarani, mobilização,

resistência.

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INTRODUÇÃO

As mulheres indígenas do Mato Grosso do Sul mobilizam e lutam pela

demarcação das terras, assumem as bandeiras das políticas públicas na perspectiva de

gênero constroeme consolidam caminhos outrora inimagináveis no sentido de fortalecer

as diversas organizações e espaços de resistências em suas respectivas comunidades..

Nesse contexto, é indispensável adentrar, com a devida permissão, é claro, em seus

espaços de luta e pertencimento. A mulher Kaiowá e Guarani tem vivido e sobrevivido

em aldeias de áreas diminutas, muito aquém das necessidades de reprodução do seu

modo de ser e de viver conforme assegurado na Constituição Federal de 1988. Grande

parte das comunidades indígenas vivendo no Sul do estado está em áreas de retomada,

em áreas de conflito.. Essas áreas eram pertencentes aos seus ancestrais, áreas

anteriormente ocupadas pelos povos indígenas Guarani e Kaiowá e transformadas em

latifúndios.

O historiador/pesquisador Antônio Brand (2001, p. 59) nos auxilia na análise

desse processo de expropriação dos territórios dos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso

do Sul.

Nas décadas de 1910 e 1920, o governo federal reconheceu como de posse

dos Kaiowá e Guarani oito reservas de terra, perfazendo 18.124 hectares (ha),

com o objetivo de confinar os diversos núcleos populacionais dispersos em

amplo território. Essas reservas, demarcadas sob a orientação do Serviço de

Proteção aos Índios (SPI), constituíram importante estratégia governamental

de liberação de terras para a colonização e consequente submissão da

população indígena aos projetos de ocupação e exploração dos recursos

naturais por frentes não-indígenas. Ignorou-se, na sua implementação, os

padrões indígenas de relacionamento com o território e seus recursos naturais e, principalmente, a sua organização social. (BRAND, 2001. P. 59).

As mulheres Guarani, nessas áreas e mesmo nas aldeias demarcadas, vivem

em condições extremas, desumanas, sofrendo inúmeras privações, violências impetradas

pelo estado e por não indígenas. As mulheres indígenas no Mato Grosso do Sul são

invisibilizadas pelas instituições públicas e estão em situação de vulnerabilidade e total

desrespeito aos seus direitos fundamentais. Apesar da Constituição Federal de 1988 em

seus artigos 231 e 232 assegurar direito a reprodução de sua cultura, costumes,

religiosidade e língua materna. Esse trabalho diz respeito às lutas, mobilizações das

mulheres indígenas Kaiowá e Guarani pelo direito aos seus territórios tradicionais (os

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Tekohas), através de uma ferramenta de mobilização, a Kuñangue Aty Guasu, a

Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani.

De acordo com CRESPE (2015. p. 21), o jeito de ser e de viver Kaiowá e

Guarani está intimamente ligado ao Tekoha e as mulheres são porta-vozes desse clamor

pelo direito ao seu modo de viver.

[...] o significado de tekoha à partir da etimologia da palavra. Teko significa

modo de ser e ha é um indicativo de lugar. Assim, o uso mais comum do

termo é para se referir a um lugar onde se viveu, se vive ou se pode viver o

teko, o modo de ser Kaiowá. Este modo de ser não pode ser de qualquer jeito;

muito pelo contrário, o modo de ser que os Kaiowá e os Guarani se referem é

o bom modo de ser (modo reto, certo) chamado de teko porã. (CRESPE

2015. p. 21)

Com efeito, a grande Assembleia das mulheres Kaiowá e Guarani busca uma

articulação com dezenas de comunidades e territórios indígenas do sul do estado de

Mato Grosso do Sul, na defesa de seus Tekoha e na luta incessante pelos direitos já

conquistados, porém negados até os dias atuais.

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O CONTEXTO DAS MULHERES INDÍGENAS NO MS

Esse trabalho procura dialogar com as lutas, mobilizações das mulheres

indígenas, Kaiowá e Guarani pelo direito aos seus territórios tradicionais (os Tekohas) e

às políticas públicas tão ausentes da realidade das mulheres indígenas no estado de

Mato Grosso do Sul.

Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica),

divulgado em Agosto de 2012 a população indígena do Mato Grosso do Sul é de 61.737

pessoas, somente no município de Dourados estão 18% dessa população. Desse

contingente, as mulheres são 38.054 indígenas. As mulheres que habitam em aldeias

correspondem a cerca de 29.990 pessoas e aquelas que estão em espaços urbanos são de

aproximadamente 8.064. Isto é, um fato inédito no censo do IBGE, além da contagem

da população indígena, tem o recorte do quantitativo de mulheres indígenas. Essa

novidade traz um diferencial importantíssimo para efeitos de aplicação das políticas

públicas e outras articulações nas comunidades indígenas do nosso estado. Isto é, os

dados acima referido podem ser considerados instrumento de análise para

implementação de políticas públicas que assegurem respeito às especificidades das

mulheres Kaiowá e Guarani.

Dentre as especificidades a serem consideradas, o viver em seus tekohas, que de

acordo com as mulheres Kaiowá e Guarani, de diferentes faixas etárias e representações

nas comunidades do sul do estado, restabeleceria “o bem viver” Kaiowá Guarani. O

artigo que ora apresentamos, objetiva visibilizar as milhares de mulheres indígenas

Kaiowá e Guarani dos rincões do estado de Mato Grosso do Sul, ás quais foram e ainda

são negadas o direito à terra tradicional, à liberdade de ser e de viver conforme sua

ancestralidade, mesmo que sejam com novos arranjos e articulações, necessárias,

inclusive como estratégia de sobrevivência em meio a tanta adversidade. As mulheres

Kaiowá e Guarani resistem à invisibilidade das suas vidas vividas e se movimentam,

mobilizam enquanto rezadoras (ñandesy), as quais como lideranças religiosas de suas

comunidades são respeitadas por seu povo pela sabedoria, conhecimento e relação com

a espiritualidade. As mulheres liderança das áreas de retomada são as vozes e as

lutadoras pelo direito aos seus Tekoha, as professoras, cuja atuação pelo direito à

educação, garante minimamente o respeito às tradições e o direito à língua materna, as

agentes de saúde que lutam incessantemente por atendimento digno e pelo direito à

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medicina tradicional, ao respeito e ao direito das parteiras assistirem as parturientes nos

hospitais e na rede pública de saúde. As jovens mulheres Kaiowá e Guarani, estudantes

universitárias, com bandeiras de luta e pautas que dizem respeito à garantia da

permanência dos estudantes indígenas na Universidade pública e gratuita, são

protagonistas da reivindicação e conquista da bolsa universitária indígena, da luta contra

todas as formas de violência contra as mulheres indígenas, do direito ao corpo, à arte e à

cultura de seu povo.

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KUÑANGUE ATY GUASU: VOZES QUE ECOAM PARA ALÉM DO TEKOHA

A Kuñangue Aty Guasu _ Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e

Guarani, é uma organização/ mobilização das mulheres Guarani e Kaiowá em torno de

suas lutas comuns e ao mesmo tempo específicas. A Assembleia das mulheres indígenas

como convencionamos chamar (os não indígenas assim se referem), tornou-se uma

estratégia de resistência e um instrumento de reivindicação das mulheres Guarani e

Kaiowá para que as políticas públicas, tão ausentes nas suas respectivas aldeias, venham

a ser implementadas. Nesse texto iremos nos referenciar a VI KUÑANGUE ATY

GUASU, ocorrida em Julho do corrente, na Reserva Indígena Amambai, no município

do mesmo nome, A pauta ou temas desse Grande Encontro que contou com a

participação de centenas de pessoas entre adultas/os, jovens e crianças foram os

seguintes:

Interessante analisar essa mobilização/ articulação das mulheres indígenas na

perspectiva de um diálogo com Latour (2012) que em sua obra Reagregando o Social

nos apresenta a ideia de um social que seja um social achatado, ou seja, onde cada

forma de alteridade está no mesmo nível de realidade. Isso nos remete a realidade das

mulheres indígenas no MS, lutando pelos seus Tekohas, tendo em vista estarem

vivenciando o mesmo problema, a mesma dificuldade, em que pese estejam em aldeias

diferentes.

Colman nos auxilia na compreensão dessa mobilidade, do caminhar, da

espacialidade que agrega os Kaiowá e Guarani, bem como as mulheres desses povos e a

relação de humanos e não humanos numa simetria, que se encaixa em suas expectativas

e desafios imersos nessa realidade.

O território para os Guarani e Kaiowá se caracteriza como espaço de

comunicação, no qual a possibilidade do Oguata ou Ojeguata, que quer dizer,

genericamente “caminhar”, na língua Guarani, é dimensão fundamental. Há

inúmeros tipos de Ojeguata: em busca e atividade produtivas, como coletas

de ervas e produtos específicos de um determinado lugar; para participar de

atividades rituais. (COLMAN, 2015 p. 12).

Nessa dimensão é possível afirmar que a Kuñangue Aty Guasu se tornou uma

atividade ritual, onde se prepara a chegada e recepção das mulheres, de várias aldeias do

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sul do estado. Nesse espaço ritual ocorrem cantos, rezas e danças noite adentro

buscando proteção para os dias que seguem no correr das atividades.

Toda a Assembleia segue um rito do acolhimento/recepção dos (as)

participantes, convidados (as), palestrantes, autoridades, logo na entrada da aldeia que

sedia o evento e, essa ação ritual fica sob a responsabilidade das lideranças religiosas as

Ñandesy e os Ñanderu, mais especificamente as Ñandesy, visto que se trata de um

encontro das mulheres indígenas.

Em realidade, tudo na Kuñangue Aty Guasu transborda atividade ritual e a

religiosidade e a espiritualidade transcende o nosso pretenso conhecimento. De acordo

com CHAMORRO (2017), na língua Kaiowá não há um termo equivalente ao que nós

chamamos de religião, entretanto, existem expressões que se avizinham dessa

formulação/concepção. O Ñande reko katu, “nosso bom modo de ser”, por exemplo. É o

sistema cultural como um todo, o que engloba “religião e religiosidade”, pois tem a ver

com o desenvolvimento e aperfeiçoamento da ‘vida’ e da ‘cultura’, teko, que o grupo

considera ‘seu’, ñande, e ‘bom’, katu. Esse teko katu, ‘bom modo de viver’, e suas

variantes teko porã ‘belo modo de ser’ e teko marangatu ‘modo de ser virtuoso’ são

marcadores constantes da identidade tradicional do grupo diante da sociedade

circundante. (CHAMORRO, 2017, p.113).

Essas articulações e mobilizações onde os atores sociais se movimentam

fortalecendo os laços entre si, como inúmeros/ incontáveis parceiros, associações,

movimentos e as redes locais de mulheres que se relacionam entre laços de parentesco,

de afinidades, de proximidade de territórios, de áreas de retomada possibilitam e

asseguram uma atividade particular, inerente a sua especificidade cultural, cosmológica

e social: a Grande Assembleia das Mulheres. Essa Assembleia permite discussões/

proposições em termos de políticas públicas e articulações internas que possam

solucionar ou apontar soluções como prevê o documento final da Kuñangue Aty Guasu:

“Nós mulheres guarani e kaiowá sabemos com ter e cuidar de nossos filhos. Nossa

medicina tradicional e a reza são muito importantes para a saúde da mulher indígena e

para o crescimento saudável da criança”. Essa afirmação se refere ao que as mulheres

denunciam em relação à saúde pública que não permite a presença da rezadora, a

ñandesy, da parteira para acompanhar a mulher kaiowá e guarani na hora de dar a luz.

Na concepção delas, esse momento está carregado de tristeza por causa da violência a

que são submetidas na hora do parto. Uma dessas violências é a proibição do

acompanhamento das mulheres grávidas através do conhecimento tradicional: “dos

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nossos remédios, da reza da ñandesy para a mulher sofrer menos na hora do parto”. Para

as mulheres Guarani e Kaiowá, o parto é um momento de alegria e está se tornando um

momento de sofrimento, porque a SESAI e os hospitais não respeitam o modo de ser

indígena. No tocante à educação escolar indígena, as mulheres kaiowá e guarani

reiteram que: “Nunca mais nossos filhos sejam levados para estudar em Campo Grande,

ou em qualquer outro lugar distante de seu território e que o estado, e o Ministério da

Educação (MEC), respeitem as decisões do movimento indígena”. A educação Superior

conquistada através da luta dos Kaiowá e Guarani, o Teko Arandu, a licenciatura

intercultural da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), “também tem que

nos respeitar, respeitar nossos estudantes e o nosso processo histórico de luta para a

conquista deste curso e o nosso acesso e permanência dentro das instituições de

educação”.

O documento da Kuñangue Aty Guasu denuncia as várias tentativas de

genocídio contra o povo Kaiowá e Guarani destacando a “remoção forçada de nossas

terras ancestrais, o confinamento nas reservas; a tentativa de tirar nossa língua, a

insistência do Estado em dizer que não sabemos cuidar dos nossos filhos e a insistência

de tirar eles de nós”. O documento se refere à retirada de 65 crianças indígenas do seio

de suas famílias no município de Dourados-MS, as quais residiam nas aldeias Jaguapiru

e Bororó. E prossegue: “reclamam que nossos filhos são sujos, mas claro, vivemos na

terra, cozinhamos no fogo, não aceitamos a retirada de nossas crianças, a doação delas

para não indígenas, não aceitamos o estado intervindo nas nossas formas de vida”.

A violência contra as mulheres indígenas foi pautada de forma categórica

pelas participantes da Assembleia, denunciada pelas mulheres jovens

(estudantes/acadêmicas e professoras) pelas anciãs, parteiras, lideranças de áreas de

retomada e explicitada no documento final nos seguintes termos: “Somos mulheres

Guarani e Kaiowá e temos que ter a garantia dos nossos direitos que levem em

consideração as nossas especificidades culturais, para que assim não nos deixe vítimas

da violência do estado e da sociedade brasileira. Sem a demarcação das nossas terras,

nós mulheres Guarani e Kaiowá não podemos ter uma vida livre da violência. E

resistimos para que possamos ter uma vida com liberdade junto com nossos filhos,

nosso povo, em nossa terra”.

A Kuñangue Aty Guasu detém a premissa de articular numa grande reunião,

questões caras às mulheres Guarani Kaiowá, nesse aspecto, SERAGUZA (2013) nos

auxilia a refletir sobre o quão abrangente e intenso são esses encontros. “Os encontros

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com interlocutores são permeados por intenções políticas, étnicas, de gênero, terrenas e

cósmicas, percebidas na inserção contínua dos que lá estão presentes (2013 pág. 10).”

Ou seja, a mulher Guarani e Kaiowá ocupa espaços autônomos de importantes

interações, decisões, colaborações em suas aldeias e/ ou comunidades. Essas mulheres,

através de seus modos de ser e viver, expressam, vivenciam experiências com humanos

e não humanos na produção da vida social (SERAGUZA, p. 11 – 12).

Há que se ter paciência, e muita vontade de escutar, uma escuta atenta, calma

respeitosa, despojada para visualizar e interagir com esse conhecimento, esse “Ñande

reko katu” que integra religião e religiosidade e ainda, uma gama de saberes e uma outra

abordagem do viver, do caminhar e de entrelaçar cosmologias com elementos que

embalam suas vidas e existências.

LATOUR chama nossa atenção para essa questão da interação com elementos

vindos de outro tempo, de outro lugar e gerados por outra mediação. Nossa abordagem

para com esses coletivos deve levar em consideração que “uma cultura é ao mesmo

tempo aquilo que faz as pessoas atuarem” (uma atuação completa criada pelo olhar do

etnógrafo e que é gerado no local pela constante inventividade das interações dos

membros). (LATOUR, 2012 p. 245).

É nesse sentido, nessa dinâmica que a Kuñangue Aty Guasu se movimenta,

realizadas e encarnadas em algum tipo de interação local e vivida (LATOUR, 2012. p.

245). As mulheres Guarani e Kaiowá estão mobilizadas e incrustadas numa associação,

numa articulação que as remetem a um constante desafio e enfrentamento de uma

realidade difícil, adversa, mas com possibilidades e estratégias reais que ousam romper

a invisibilidade a “vulnerabilidade” que lhes foram impostas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando rascunhei o pré projeto de pesquisa para ingressar no mestrado

“achei” que conhecia, entendia os povos indígenas, sobre os povos indígenas, sobre as

mulheres indígenas. E agora? Agora eu diria que começo a aprender. Começo a tatear, a

visualizar com sensibilidade os coletivos e povos que me propus estudar com elas e não

sobre.

Dessa maneira, considero que nesse pequeno percurso de tempo percebo a

resistência das mulheres Kaiowá e Guarani através das suas variadas frentes de luta

como as áreas de retomada, o conhecimento tradicional em relação ao seu modo de ser e

de viver, sua religiosidade e rituais e o espaço da Kuñangue Aty Guasu mobilizando

mulheres na defesa de seu território de pertencimento.

Essas reflexões e análises auxiliam e suscitam inseguranças. Por outro lado,

reforça a vontade de aprender e compartilhar o conhecimento que recebo através da

sabedoria e solidariedade das mulheres Kaiowá e Guarani ao escrever e pesquisar junto

a elas, no seu caminhar entoando cantos, rezas e movimentando a dança para embalar

suas lutas e resistências.

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