kant e o fim da modernidade

166
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Kant e o fim da modernidade pré-crítica: os “Sonhos de um visionário” Marcio Tadeu Girotti MARÍLIA 2011

Upload: espocin

Post on 26-Sep-2015

82 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

ResumoA pesquisa pretende abordar os escritos da década de 1760, da filosofia kantiana, com ointuito de apontar quais os elementos de cunho crítico presentes nesses escritos, quedesembocam na obra Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica (1766).No ano de 1763, com o Único argumento possível para uma demonstração da prova daexistência de Deus e com o Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas emfilosofia, Kant aponta para o papel da experiência na existência do simples possível e para opapel da oposição real para os acontecimentos da ordem fenomenal. Tem-se, por parte deKant, uma preocupação com o estatuto da metafísica tradicional que se apoia em provas nãoconcretas e busca, por meio de inferência e pelo princípio de contradição, mostrar a ordem domundo e a existência do real. Nesse sentido, Kant começa a engendrar uma crítica aoracionalismo de cunho dogmático, em especial à escola Leibniz-wolffiana, tendo comoinfluências as inovações da ciência newtoniana e o ceticismo de David Hume. Assim, épossível encontrar nos Sonhos de um visionário pistas que conduzem à interpretação da obracomo um fechamento da filosofia pré-crítica de Kant, abrindo as portas para o criticismopresente na Dissertação de 1770, segundo o próprio autor (Carta a Tieftrunk em 1797). Tendoem vista a década de sessenta como um suposto período que configura o criticismo kantiano,a investigação busca, ainda, apontar os elementos que desembocam nos Sonhos e, a partirdesse escrito, mostrar as consequências desses elementos para o contexto da própriaDissertação de 1770 e da Crítica da razão pura (1781). Ao final, esboçaremos uma reflexãoacerca da existência ou não de um marco que separa a filosofia kantiana em período précríticoe crítico, tentando, ao menos, interpretar os escritos anteriores à Crítica da razão puracomo escritos pré-Crítica e não mais como escritos pré-críticos.

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Kant e o fim da modernidade pr-crtica: os Sonhos de um visionrio

    Marcio Tadeu Girotti

    MARLIA 2011

  • 1

    Marcio Tadeu Girotti

    Kant e o fim da modernidade pr-crtica: os Sonhos de um visionrio

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Estadual Paulista para Defesa de Mestrado na rea de concentrao em Histria da Filosofia Moderna e Contempornea.

    Orientador: Dr. Lcio Loureno Prado.

    MARLIA 2011

  • 2

    Ficha catalogrfica elaborada pelo Servio Tcnico de Biblioteca e Documentao UNESP Campus de Marlia

    Girotti, Marcio Tadeu. G527k Kant e o fim da modernidade pr-crtica: os Sonhos de um visionrio / Marcio Tadeu Girotti. Marilia 2011. 165f.; 30cm.

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Cincias, 2011.

    Bibliografia: f. 162-165 Orientador: Prof Dr. Lcio Loureno Prado

    1. Filosofia Pr Crtica. 2. Racionalismo Dogmtico. 3. Criticismo. I. Autor. II. Ttulo.

    CDD 142.3

  • 3

    Marcio Tadeu Girotti

    Kant e o fim da modernidade pr-crtica: os Sonhos de um visionrio

    Banca Examinadora

    ___________________________________________________

    Dr. Lcio Loureno Prado (Orientador UNESP)

    ___________________________________________________

    Dr. Ubirajara Rancan de Azevedo Marques (UNESP)

    ____________________________________________

    Dr. Paulo Roberto Licht dos Santos (UFSCAR)

    Marlia, 27 de maio de 2011

  • 4

    Dedicatria

    A ele, meu pai (Didi) A ela, minha me (Ins)

    pelo afeto, apoio, compreenso e, sobretudo, a amizade.

    A ela, minha namorada (Vivian) pela ateno, pacincia, carinho e companheirismo.

    A mim ...

  • 5

    Agradecimentos

    Ao longo de todo desenvolvimento pessoal e intelectual, as pessoas que nos cercam so a base de toda a nossa estrutura. So elas que nos ouvem, nos criticam, nos insultam, nos ofendem, mas sempre nos acolhem. Como esquecer momentos de tenso, em meio ao estudo da filosofia, como uma espcie de areia movedia, onde mais se mexe, mais se afunda; e, com isso, nos vamos sufocados. Nesses momentos, recorramos a quem? Aos grandes amigos. preciso agradecer a eles, mas no somente eles, mas tambm a toda estrutura disponvel para a construo de uma pesquisa acadmica. Aos colegas da Biblioteca, ao nosso Departamento de Filosofia, sempre acolhedor e apto para responder a qualquer questo ou simplesmente uma dvida. nossa Seo de Ps-Graduao, com secretrios, que no so simplesmente pessoas que ali trabalham, mas pessoas que se preocupam com o caminhar do Programa de Filosofia, e sempre esto ali para nos ajudar, simplesmente, em tudo (devo agradecer imensamente ao Paulo e a Aline, nossos secretrios, sempre dispostos e alegres, mesmo quando a situao no era to favorvel, mas sempre o resultado era o melhor possvel). preciso agradecer a todo o corpo docente do Departamento de Filosofia, pois, foram eles que me colocaram no caminho certo e seguro da pesquisa acadmica; claro, no h um caminho seguro, mas sempre h onde se apoiar. Devo agradecer imensamente o Prof. Ubirajara Rancan, sempre atento e disposto a me ajudar com bibliografias, as mais diversas, e com as dvidas de qual caminho seguir em meio s obras de Kant. A ele meus sinceros agradecimentos. No posso deixar de agradecer meu Orientador (Prof. Lcio Prado), que sempre me lembrava do caminho que tracei para construir minha pesquisa e, eu, sempre teimoso, acredito que at hoje no realizei o que ele me props, mas tenho certeza que ele j me compreendeu. Agradeo tambm o financiamento da CAPES, sem o qual, esta pesquisa no poderia ter sido desenvolvida com cautela e tempo suficiente. No posso deixar de lembrar um fato que mudou o rumo da minha pesquisa ainda em seus germes: a conversa que tive com o Prof. Leonel Ribeiro dos Santos (Universidade de Lisboa), embaixo de uma rvore na calada da UNESP, quando em um dia de muito calor o encontrei de terno e gravata caminhando em busca de um suco, porque o mesmo no aguentava mais o calor do Brasil e, em especial, de Marlia-SP (penso: por que no tirou o palet?). Lembro-me desse fato, porque o Prof. Leonel iluminou o caminho que eu estava a enxergar com pouca luz e, com isso, tenho muito pano pra manga para continuar a minha pesquisa dentro da filosofia de Kant, em pelo menos duas existncias! Por fim, preciso agradecer meus amigos, sem os quais no seriam nada fceis os dias tensos. Lembro das longas conversas, onde todos estavam num mesmo barco, com os mesmos fantasmas, e sem saber o qu! Mas, todos seguiram no mesmo caminho por estradas diferentes, mas todas, acreditamos, encaminham para o sucesso. Agradeo ao Joo Antnio de Moraes, pelo companheirismo acadmico, que com sua amizade construmos muitas coisas, que engrandeceu nossa amizade e, qui, nossa maturidade acadmica. Claro, tambm no posso esquecer a ajuda com a lngua inglesa, pois, sempre que necessrio eu recorria ao Joo (nem sempre ao dicionrio), porque, e nem sei porqu, parecia que o ingls travava. Agradeo ao Emerson Filipini de Lima, que sempre me escutava em longas conversas e papos descontrados sobre os mais diversos assuntos, nem sempre sobre filosofia. Tambm ao Herbert Barucci Havagnani, que me mostrou que a Universidade no s o curso que voc faz, mas muito mais do que isso; ao lado dele, realizamos o que acreditvamos ser necessrio no mbito da poltica-acadmica e de sua estrutura. No posso esquecer da Dbora Barbam Mendona, que nos ltimos anos demonstrou ser a amiga que eu precisava dentro e fora da Universidade. Agora, como esquecer do apoio incondicional de meus pais e irmos e, em especial, da minha namorada Vivian Bonani de Souza, minha psicloga que sustenta meus devaneios e me puxa sempre que estou a levantar voos, la Swedenborg! Meus sinceros agradecimentos a todos.

  • 6

    Epgrafe

    A Natureza, que muitas vezes atua mais como madrasta do que como me,

    produziu nos homens, principalmente nos menos inteligentes, uma fatal tendncia

    de descontentamento para aquilo que possui, apreciando e ambicionando

    aquilo que no tem

    (Erasmo de Rotterdam Elogio da Loucura)

  • 7

    Resumo

    A pesquisa pretende abordar os escritos da dcada de 1760, da filosofia kantiana, com o intuito de apontar quais os elementos de cunho crtico presentes nesses escritos, que desembocam na obra Sonhos de um visionrio explicados por sonhos da metafsica (1766). No ano de 1763, com o nico argumento possvel para uma demonstrao da prova da existncia de Deus e com o Ensaio para introduzir a noo de grandezas negativas em filosofia, Kant aponta para o papel da experincia na existncia do simples possvel e para o papel da oposio real para os acontecimentos da ordem fenomenal. Tem-se, por parte de Kant, uma preocupao com o estatuto da metafsica tradicional que se apoia em provas no concretas e busca, por meio de inferncia e pelo princpio de contradio, mostrar a ordem do mundo e a existncia do real. Nesse sentido, Kant comea a engendrar uma crtica ao racionalismo de cunho dogmtico, em especial escola Leibniz-wolffiana, tendo como influncias as inovaes da cincia newtoniana e o ceticismo de David Hume. Assim, possvel encontrar nos Sonhos de um visionrio pistas que conduzem interpretao da obra como um fechamento da filosofia pr-crtica de Kant, abrindo as portas para o criticismo presente na Dissertao de 1770, segundo o prprio autor (Carta a Tieftrunk em 1797). Tendo em vista a dcada de sessenta como um suposto perodo que configura o criticismo kantiano, a investigao busca, ainda, apontar os elementos que desembocam nos Sonhos e, a partir desse escrito, mostrar as consequncias desses elementos para o contexto da prpria Dissertao de 1770 e da Crtica da razo pura (1781). Ao final, esboaremos uma reflexo acerca da existncia ou no de um marco que separa a filosofia kantiana em perodo pr-crtico e crtico, tentando, ao menos, interpretar os escritos anteriores Crtica da razo pura como escritos pr-Crtica e no mais como escritos pr-crticos.

    Palavras-chave: Filosofia pr-crtica. Racionalismo dogmtico. Criticismo. Limites do conhecimento. Virada crtica.

  • 8

    Abstract

    This research intends to approach some Kantian philosophy written from 1760s decade, with the aim of pointing out what are the critical nature elements present on them, which culminate in the work Dreams of a Spirit-Seer elucidated by dreams of metaphysics (1766). In 1763, with The only possible argument in support of a demonstration of the existence of god (Beweisgrund) and with the Attempt to introduce the concept of negative magnitudes into philosophy, Kant points the role of experience in existence of the simple possibile and to the role of the truth opposition to the happenings in a phenomenical order. It has, from Kant position, a worry about the metaphysical traditional constitution that supports itself on not concrete proofs and seeks, throughout inferences and by contradiction principle, to show the order of the world and the existence of the real. In this sense, Kant begins to engender a criticism to dogmatic rationalism, in special to Wolffian-Leibniz school, supporting your ideas on innovation of Newtonian science and Humean skepticism. In so far, it is possible find out, at Dreams of a Spirit-Seer, clues that leads to its interpretation as a closure of the Kantian pre-critic philosophy and opening the doors to the criticism present in the Dissertation of 1770, according own author (Letter to Tieftrunk in 1797). In the end, we will sketch a reasoning on the existence, or not, of a landmark that separates Kantian philosophy in pre-critical period and a critical one, trying to, at least, understand the previous written to Critic of Pure Reason as pre-critical written and not as a critical ones.

    Keywords: Pre-critical philosophy. Dogmatic rationalism. Criticism. Boudaries of knowledge. Critical turn.

  • 9

    SUMRIO

    Nomenclaturas, Abreviaturas e Citaes das obras no original alemo............................10

    Siglas das Obras nas Citaes do original alemo...............................................................11

    Datao das Reflexes.............................................................................................................12

    Introduo................................................................................................................................14

    Contextualizao histrico-conceitual...................................................................................18

    1 O Kant pr-crtico e crtico: consideraes acerca do perodo pr-crtico e a distino entre o jovem Kant e o Kant maduro............................................................................36

    1.1 Algumas orientaes da filosofia kantiana.........................................................................44 1.1.2 Cronologia e subperodos dos escritos pr-crticos........................................................47 1.1.3 A dcada de 1760 e a crtica ao racionalismo: consideraes.......................................49

    1.2 nico argumento possvel e a prova da existncia de Deus: crtica ao dogmatismo..............................................................................................................................52

    1.2.1 Plano da obra...................................................................................................................52 1.2.2 Sobre o argumento ontolgico de Descartes e Leibniz: apresentao............................57 1.2.3 A crtica ao argumento ontolgico..................................................................................60

    1.3 As Grandezas negativas: plano da obra...........................................................................70

    1.3.1 Grandezas negativas e a possvel aproximao com o nico argumento possvel...78 1.3.2 Preldio revoluo copernicana...................................................................................83 1.3.3 Crtica aos dogmticos: aproximao entre as Grandezas negativas e os Sonhos...86 1.3.4 As possveis relaes entre nico argumento possvel, Grandezas negativas e Sonhos....................................................................................................................................89 1.3.5 Uma leitura dos Sonhos de um visionrio....................................................................93 1.3.6 Consideraes..................................................................................................................96

    2 Contextualizao dos Sonhos de um visionrio como escrito de cunho crtico...............99

    2.1 As opinies acerca dos Sonhos como escrito de cunho crtico......................................100 2.2 Anlise da obra Sonhos de um visionrio: apontamentos.............................................105 2.3 Swedenborg e a metafsica................................................................................................106 2.4 A experincia como limite para o conhecimento: os limites da razo.............................111 2.5 Consideraes acerca do comrcio psico-fsico: Crtica, Sonhos e Dissertao de 1770.......................................................................................................................................117 2.6 nico argumento possvel, Sonhos e Crtica da razo pura: uma tentativa de aproximao............................................................................................................................123 2.7 Consideraes acerca dos Sonhos como um escrito de cunho crtico...........................125

  • 10

    3 As consequncias dos Sonhos para os escritos posteriores a 1766: a questo do espao em 1768 e 1770.......................................................................................................................127

    3.1 Introduo.........................................................................................................................127 3.2 A problemtica do espao: apontamentos........................................................................129 3.3 A Dissertao de 1770: plano da obra..........................................................................138 3.4 A novidade da Dissertao de 1770 e a aproximaes entre as problemticas............142

    4 Sntese da investigao: o perodo pr-Crtica da razo pura........................................151

    5 Consideraes finais...........................................................................................................157

    Referncias.............................................................................................................................161

    Complementao bibliogrfica............................................................................................163

  • 11

    Nomenclaturas, Abreviaturas e Citaes das obras no original alemo

    Foras Vivas Pensamentos sobre a verdadeira estimao das foras vivas (Gedanken von der wahren Schtzung der lebendigen Krfte - 1747)

    Histria Universal Histria universal da natureza e teoria do cu (Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels - 1755)

    Monadologia Fsica Uso da metafsica unida geometria em filosofia natural cujo espcime I contm a Monadologia Fsica (Metaphysicae cum geometria junctae usus in philosophia naturale cujos specimen I. continet monadologiam physicam - 1756)

    Falsa sutileza Da falsa sutileza das quatro figuras silogsticas (Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren - 1762)

    nico argumento possvel O nico argumento possvel para uma demonstrao da existncia de Deus (Der einzig mgliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes - 1763)

    Grandezas Negativas Ensaio para introduzir o conceito de grandezas negativas em filosofia (Versuch den Begriff der negativen Gren in die Weltweisheit einzufhren - 1763)

    Escrito do Prmio Investigao sobre a evidncia dos princpios da teologia natural e da moral (Untersuchung ber die Deutlichkeit der Grundstze der natrlichen Theologie und der Moral - 1764)

    Sonhos (ou Sonhos de um visionrio) Sonhos de um visionrio explicados por sonhos da metafsica (Trume eines Geistersehers, erlutert durch Trume der Metaphysik - 1766)

    Ensaio de 68 Acerca do primeiro fundamento da diferena das regies no espao (Von dem ersten Grunde des Unterschiedes der Gegenden im Raume - 1768)

    Dissertao de 1770 Acerca da forma e dos princpios do mundo sensvel e inteligvel (De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis - 1770)

    Crtica Crtica da razo pura (Kritik der reinen Vernunft - 1781 e 1787)

    Prelees de Metafsica Prelees de Metafsica (Plitz) (Kant Metaphysik L1 (Plitz) - 1821)

    Progressos da Metafsica Os progressos da Metafsica (Welches sind die wirklichen Fortschritte, die Metaphysik seit Leibnitzens und Wolf's Zeiten in Deutschland gemacht hat? - 1804)

    Reflexo (R) Reflexes (Reflexionen)

    ** As Reflexes numeradas de 4674 a 4684 (datadas do ano de 1775) dizem respeito obra denominada O Legado de Duisburg (Duisburg Nachlass, AA 17).

  • 12

    Siglas das Obras nas Citaes do original alemo

    O Sistema de citao utilizado segue as abreviaes preparadas pela Kant-Forschungsstelle der Johannes Gutenberg-Universitt Mainz (http://www.kant.uni-mainz.de/ seguido dos Links: Kant-Studien / Hinweise fr Autoren). As mesmas podem ser acessadas a partir do portal da Sociedade Kant-Brasileira Seo Marlia - So Carlos - So Paulo (http://www.sociedadekant.org/tag/marilia/ seguido do Link: Kant-Forschungsstelle).

    Sistema de citao: Siglum, AA (Bd.-Nr.): Seite[n]. Zeile[n].

    AA Akademie-Ausgabe

    BDG Der einzig mgliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes (AA 02)

    Br Briefe (AA 10-13)

    FM Welches sind die wirklichen Fortschritte, die Metaphysik seit Leibnitzens und Wolf's Zeiten in Deutschland gemacht hat? (AA 20)

    GUGR Von dem ersten Grunde des Unterschiedes der Gegenden im Raume (AA 02)

    KrV Kritik der reinen Vernunft (zu zitieren nach Originalpaginierung A/B) (AA 03 e 04)

    MSI De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (AA 02)

    NG Versuch, den Begriff der negativen Gren in die Weltweisheit einzufhren (AA 02)

    NTH Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels (AA 01)

    OP Opus Postumum (AA 21 e 22)

    Prol Prolegomena zu einer jeden knftigen Metaphysik (AA 04)

    Refl Reflexion (AA 14-19)

    TG Trume eines Geistersehers, erlutert durch die Trume der Metaphysik (AA 02)

    UDGTM Untersuchung ber die Deutlichkeit der Grundstze der natrlichen Theologie und Moral (AA 02)

    V-MP-L 1 Kant Metaphysik L 1 (Plitz) (AA 28)

    No ser utilizada a linha que se refere passagem retirada da obra de Kant.

  • 13

    Datao das Reflexes

    O sistema de datao (presumidas) das Reflexionen segue a explicao de E. Adickes (AA, XIV, XXXVI-XLIII), determinando os seguintes perodos.

    (fim de 1769 outono de 1770). (por volta de 1770-1771). (por volta de 1771). (por volta de 1771). (depois ou mesmo perodo). (entre e ). (1773-1775). (por volta de 1775-1777). (por volta de 1775-1776). e (por volta de 1776-1778). (1778-1779).

    As Reflexionen abaixo foram utilizadas nesta pesquisa e esto seguidas das dataes presumidas do modo como segue (no corpo de texto da pesquisa s aparece o nmero da Reflexo utilizada, sem a data; mas, nas Reflexes que compem O Legado de Duisburg a data aparece (1755) para melhor identificar o perodo e a obra):

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 359 3946. 1? ??? M XXXXIII, XXXXIV. E II 127...

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 467 4230. ? (1? 1?) (1?) M 292'. 292. E II 1284. I 356...

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 486 4261. ? 1? ? 1? M 327. E II 1582...

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 494 4282. ? 2? 4? M XV...

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 495 4284. ? 2? 4? M XV. E II 167...

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 524 4373. 2. M 432e. E II 927...

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 557 4455. . M X. E II 96...

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 643 46744684. 1. L Bl. Duisburg 7. S. I, II. R I 1621...

    Kant: AA XVII, Reflexionen zur Metaphysik. , Seite 689 4729. 1. M 326'. E II 1642...

  • 14

    Kant: AA XVIII, Metaphysik Zweiter Theil , Seite 018 4880. 2. M XI. E II 215. 88...

    Kant: AA XVIII, Metaphysik Zweiter Theil , Seite 042 4964. . M XXVI. E II 7...

    Kant: AA XVIII, Metaphysik Zweiter Theil , Seite 065 5027. 2? ? M XXXIII. E II 152...

    Kant: AA XVIII, Metaphysik Zweiter Theil , Seite 069 5037. . M XXXVI. E II 55. 4...

    Kant: AA XVIII, Metaphysik Zweiter Theil , Seite 101 5133. 2? -? M 2'. E II 134...

  • 15

    INTRODUO

    A filosofia de Kant comumente dividida em dois perodos, que se distinguem em pr-crtico e crtico devido s problemticas e teses tratadas nestas duas fases; no entanto, no so somente as questes que diferem a suposta separao entre os dois perodos. Se, por um lado, h um amadurecimento da filosofia kantiana sem um rompimento entre os dois perodos; por outro, h um rompimento no projeto da filosofia kantiana. Aqui, h uma ruptura e diviso entre Kant pr-crtico e Kant crtico. Mesmo assim, ser que ainda hoje pertinente falar de uma ruptura ou diviso dentro da filosofia kantiana?

    O criticismo kantiano , em muitos aspectos, caracterizado como a inaugurao de uma nova maneira de conceber o conhecimento, ou, um novo olhar voltado ao racionalismo tradicional com uma viso crtica: a razo que se volta a si mesma e a possibilidade de um conhecimento a priori.

    Ao longo da especulao filosfica de Kant, possvel perceber um amadurecimento no processo de elaborao de sua filosofia passando por um perodo que, em alguns sentidos, pode ser considerado dogmtico, por conta de sua vinculao com a escola Leibniz-wolffiana desembocando, de certo modo, em um vis ctico ou de crtico da razo, com uma orientao voltada ao pensamento de Hume. Esses momentos, como comumente se diz, foram designados como a filosofia do Kant pr-crtico ou anterior Crtica da razo pura (1781/1787), os quais podem ser caracterizados, segundo alguns interpretes1, em duas subdivises: Kant dogmtico e Kant antidogmtico ou ctico (crtico).

    Agora, h um problema em determinar a filosofia kantiana como pr-crtica e crtica, uma vez que os textos do primeiro perodo contm elementos que so encontrados entre as obras do perodo crtico, o que poderia dificultar a colocao de um marco separando o Kant pr-crtico do Kant crtico. Assim, pode-se observar, entre os primeiros escritos kantianos, diversas discusses que giram em torno da questo acerca do conceito de fora e matria, espao, formao do universo, mtodo da filosofia, prova da existncia de Deus, bem como a possibilidade da prpria metafsica como cincia dos limites da razo (Sonhos, 1766). Tais questes esto presentes na elaborao do projeto crtico que tem como ponto principal a

    1 Nessa nomenclatura se destacam as interpretaes de Philonenko, Lombardi, Cassirer, Schnfeld, entre outros,

    variando, num caso ou outro, a classificao dos primeiros escritos kantianos em dogmticos ou antidogmticos de acordo com as dataes sugeridas pelos prprios interpretes, sendo um momento de pensamento conforme metafsica tradicional (dogmtica) at 1760 e antidogmtica (de crtica a tal metafsica) aps 1760. Ao longo da pesquisa veremos as argumentaes e a possibilidade de manter ou no tais classificaes e divises entre os escritos e os momentos do pensamento de Kant.

  • 16

    possibilidade da prpria metafsica como cincia, o que culmina na possibilidade dos juzos sintticos a priori.

    Diante disso, possvel traar um panorama sobre os escritos da dcada de 1760 e afirmar, em alguns aspectos, que neste perodo a filosofia kantiana adquire os primeiros indcios de uma filosofia crtica, uma crtica ao racionalismo de cunho dogmtico, que acredita na possibilidade da razo em tudo conhecer e tudo explicar, sem ao menos demonstrar suas provas in concreto.

    Assim, uma crtica razo se desdobra em uma crtica da razo pura, uma reflexo da razo sobre si mesma, buscando compreender sua ampliao e limites, procurando estabelecer o que pode ser conhecido e como pode ser conhecido. Com isso, caracteriza-se a filosofia transcendental de Kant como o modo de conhecer os objetos, dentro de um modo a priori de conhecimento.

    Considerando que h ou uma ruptura ou um amadurecimento da filosofia kantiana, preciso verificar, panoramicamente, as teses centrais dos escritos da dcada de 1760, as quais apontam para um amadurecimento do pensamento de Kant. No escrito A falsa sutileza das quatro figuras silogsticas (1762) tem-se o problema da lgica; no O nico argumento possvel para uma demostrao da existncia de Deus (1763) tem-se o problema da teologia; no Ensaio para introduzir o conceito de grandezas negativas em filosofia (1763) h a questo fsica e matemtica; na Investigao sobre a evidncia dos princpios da teologia natural e da moral (1764) h o conflito entre matemtica e metafsica; no texto Observaes sobre o sentimento do belo e do sublime (1764) trata-se da questo esttica; nos Sonhos de um visionrio explicados por sonhos da metafsica (1766), entre outros assuntos, h o problema do esprito e alma; no escrito Acerca do primeiro fundamento da diferena das regies no espao (1768) tem-se o problema do espao (matemtica e metafsica). Com essas teses, possvel perceber que Kant trata da maioria, ou mesmo de todos os problemas da metafsica, mesmo que estes estejam em escritos separados e no reunidos em uma mesma obra. Tal fato poderia justificar o que Kant diz na Reflexo 4964, afirmando que sua obra crtica aniquila por completo os escritos anteriores, no entanto, ele procurou salvar a justeza da ideia. Nesse contexto, buscaremos traar entre os textos do perodo pr-crtico os elementos que podem prenunciar o criticismo kantiano, o Kant da Revoluo Copernicana, o filsofo da virada crtica, o pensador que promoveu uma crtica razo dentro do prprio racionalismo. Ou seja, um filsofo que promove uma mudana no campo da teoria do conhecimento influenciando seus contemporneos, uma vez que a virada crtica da filosofia de Kant no altera somente o seu pensamento, mas tambm abala as estruturas da filosofia

  • 17

    moderna (desde Descartes), j que tal virada no interna ao pensamento de Kant, mas sim fundamental para toda a filosofia moderna e contempornea. Pois, aps a virada no campo do conhecimento, tendo o sujeito como centro, altera-se a filosofia como vis estritamente ontolgico (o que e o que conheo) para um vis epistemolgico (como conheo). Portanto: o fim da modernidade pr-crtica no s kantiana, mas tambm da prpria filosofia.

    Mesmo que se consiga identificar ou demarcar um ponto de passagem entre o pensamento pr-crtico e o pensamento crtico de Kant, a busca por uma contextualizao dos textos do perodo pr-crtico uma tarefa complicada. Determinar uma suposta unidade a esses textos quase sempre impossvel, porque considerados separadamente podem ser classificados e agrupados, mas no mbito do amadurecimento do pensamento de Kant difcil configur-los dentro de uma mesma classificao. Com efeito, vrios estudiosos da filosofia kantiana propuseram uma cronologia e subdivises dentro do perodo pr-crtico alm da diviso tradicional, a saber: a obra Acerca da forma e dos princpios do mundo sensvel e inteligvel (Dissertao de 1770) comumente considerada o marco da virada crtica. O prprio Immanuel Kant em carta2 a J. H. Tieftrunk em 13 de Outubro de 1797 confirma que a obra que retrata sua verdadeira posio filosfica a Dissertao de 1770. Todavia, uma boa parte dos comentadores considera outros textos desse perodo como escritos possveis que se encaixam em um criticismo mitigado. Assim, diante do amlgama de questes e das conciliaes de teses que Kant buscava em seus primeiros escritos, engendraremos uma investigao que retome os elementos crticos dentro do perodo pr-crtico com nfase na dcada de 1760. Essa poca pode ser contextualizada como antidogmtica, um perodo de crtica escola Leibniz-wolffiana que, em alguns aspectos, marca o antidogmatismo de Kant e seu amadurecimento que o conduziu a escrever a Crtica da razo pura. Alm do objetivo acima, tomaremos como base da investigao alguns escritos da dcada de 1760, que compreendem a crtica de Kant ao racionalismo, com o intuito de traar uma linha entre eles, buscando caracterizar o amadurecimento do pensamento kantiano. Os escritos so: O nico argumento possvel para uma demonstrao da existncia de Deus (1763); Ensaio para introduzir o conceito de grandezas negativas em filosofia (1763); Investigao sobre a evidncia dos princpios da teologia natural e da moral (1764) e Sonhos de um visionrio explicados por sonhos da metafsica (1766). Este ltimo diz respeito ao nosso objetivo principal: esboar a possibilidade de trat-lo como um escrito de cunho crtico

    2 Carta a J. H. Tieftrunk. In: Kant Werke, Berlim, Georg Reimer, 1902, Bd. XII. (ed. Kniglich Preussischen Akademie der Wissenschaften).

  • 18

    e, qui, um escrito que configura a virada crtica, uma vez que ele apresenta elementos que corroboram algumas teses presentes no perodo crtico, assim como ocorre em outros textos do perodo pr-crtico. Desse modo, dividiremos nosso trabalho em quatro partes: a primeira tratar do Kant pr-crtico e crtico de modo geral, buscando contextualizar o perodo e mostrar as principais obras da dcada de 1760 que demonstram o amadurecimento do pensamento kantiano, bem como a diferena entre o jovem Kant e o Kant das trs Crticas; a segunda procurar mostrar os argumentos encontrados nos Sonhos, que apontam a possibilidade da obra ser caracterizada como o fim da modernidade pr-critica da filosofia kantiana; a terceira, por sua vez, apontar as consequncias dos Sonhos para os escritos posteriores, entre eles, Acerca do primeiro fundamento da diferena das regies no espao (1768) e Acerca da forma e dos princpios do mundo sensvel e inteligvel (1770), no que diz respeito ao problema do espao, o que condiz com uma das teses tratadas na obra de 1766. Nessa parte, apesar do salto, poder ficar clara a argumentao que procura mostrar que o espao, a existncia, a posio e os

    limites do conhecimento, questes de importncia considervel para o criticismo, esto presentes nos escritos pr-crticos, em especial na dcada de 1760, e podem configurar os Sonhos como uma obra que adianta determinadas problematizaes das duas obras posteriores (citadas acima) e fortalece a ideia do escrito ser a obra que marca o suposto fim do perodo denominado como pr-crtico. Finalmente, para responder a questo colocada no incio da Introduo, dentro de uma presumida reviravolta no campo da investigao em meio aos escritos anteriroes Crtica procuraremos, na quarta parte, estabelecer uma reflexo acerca da periodizao das obras kantianas, a fim de problematizar a questo acerca de uma diviso existente ou no dentro da filosofia de Kant. Buscaremos estabelecer a possibilidade de se pensar a no existncia de um marco divisrio e sim a caracterizao de um amadurecimento do pensamento kantiano. Nesse sentido, toda a pesquisa leva em considerao um telos, que poder ser questionado em seu prprio fim na tentativa de identificar os escritos anteriores Crtica da razo pura como escritos pr-crtica e no mais como escritos pr-crticos, j que tal denominao pode pressupor que no exista problematizaes de carter crtico em meio aos escritos anteriores Crtica.

  • 19

    Contextualizao histrico-conceitual

    Antes de adentrarmos na anlise dos escritos de Kant, preciso entender alguns pressupostos conceituais acerca da crtica kantiana empreendida escola Leibniz-wolffiana, ao racionalismo que Kant chamou de dogmtico: Dogmatismo , portanto, o procedimento dogmtico da razo pura sem uma crtica precedente da sua prpria capacidade (KrV, B XXXV, grifo do autor). Para isso, buscamos a seguir definir alguns termos caros compreenso do enredo da pesquisa, entre eles: ceticismo, dogmatismo, empirismo e racionalismo. Alm de compreender o pano de fundo da filosofia alem no sculo de Kant, ao menos, no que diz respeito filosofia de Wolff, como seguidor e, em alguns momentos, crtico de Leibniz. comum compreendermos o racionalismo como uma corrente ou escola de pensamento que estrutura o mundo e o conhecimento exclusiva e unicamente atravs da razo, sem pressupor um contedo de cunho sensualista, ou, experimentalista (emprico). No entanto, o racionalismo pode ser dividido em trs ramos (MORA, 2001, p. 2442): racionalismo psicolgico, que equivale razo com pensar e com faculdade pensante, colocando-se como superior vontade e emoo (tal concepo oposta ao emocionalismo); racionalismo epistemolgico ou gnosiolgico, doutrina que coloca a razo como rgo do conhecimento, pressupondo que todo o conhecimento tem origem racional (esta concepo se ope ao empirismo ou intuicionismo); racionalismo metafsico, em que a realidade , em ltima anlise, de carter racional, o mundo como um organismo racional estruturado conforme modos e objetivos inteligveis (aqui se v uma oposio ao realismo emprico ou irracionalismo). possvel perceber que o racionalismo de cunho epistemolgico, como oposto ao empirismo, deveria ser o racionalismo da filosofia kantiana, uma vez que se considera a virada crtica de Kant como uma passagem da ontologia para a epistemologia (o que conheo para como conheo). No entanto, o racionalismo de Kant combate o racionalismo calcado exclusivamente na razo, ele combate o racionalismo de cunho dogmtico. Na modernidade, o racionalismo foi combatido pelos empiristas modernos (p. ex. Locke e Hume) que se voltaram contra o racionalismo continental (Descartes, Leibniz, Wolff) acerca do problema da origem das nossas ideias, se inatas ou adquiridas por meio da experincia. O empirismo no recusava o mtodo racional, mas sim era contrrio ao abuso da

  • 20

    razo3 (MORA, 2001, p. 2442-2443). Com isso, o racionalismo, ao menos na Modernidade, passa a ser definido no como mero uso da razo, mas sim como o abuso dela. Esse suposto abuso da razo seria a utilizao de um mtodo racional para o conhecimento que no levava em conta a investigao de seus pressupostos, bem como uma no comprovao de suas provas in concreto, com auxlio da experincia. nesse sentido que Kant se volta contra aqueles que ele chamou de dogmticos, nomeando a filosofia dos mesmos de metafsica tradicional, palco das aventuras da razo fora do campo de sua atuao, alm da esfera do possvel. Os filsofos dogmticos, criticados por Kant, seriam aqueles que insistiam demasiadamente em princpios sem se aterem aos argumentos, observaes, ou exames, dando nfase s suas opinies (afirmaes) sem comprovao precisa. Segundo Mora (2000, p. 762), tal dogmatismo possui, ao menos, trs caractersticas fundamentais: 1 possibilidade de conhecer as coisas em si mesmas; 2 confiana absoluta na razo; 3 adoo de princpios que impem ou revelam. Com isso, a oposio kantiana a esse tipo de filosofia estaria calcada na crtica da razo pura:

    A Crtica no se ope ao procedimento dogmtico da razo no seu conhecimento puro como cincia (pois esta tem que ser sempre dogmtica, isto , provando rigorosamente a partir de princpios seguros a priori), mas sim ao dogmatismo, isto , pretenso de progredir apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos (o filosfico) segundo princpios h tempo usados pela razo, sem indagar contudo de que modo e com que direito chegou a eles. Dogmatismo , portanto, o procedimento dogmtico da razo pura sem uma crtica precedente da sua prpria capacidade4. (KrV, B XXXV, grifo do autor).

    Para Kant, a Crtica se ope ao dogmatismo e no ao procedimento dogmtico da razo, j que a razo deve se impor de modo rigoroso em suas provas junto a seus princpios seguros e a priori, mas a metafsica tradicional continua a caminhar sem se indagar como chegou a tais princpios seguros.

    Diante da crtica ao dogmatismo da razo, na opinio de Maria Arruda (2008, p. 22), ela ganha maior destaque quando Kant se dirige escola Leibniz-wolffiana, que na Alemanha

    3 A caracterizao do racionalismo, por conta dos filsofos empiristas, como um abuso da razo uma questo

    polmica. A utilizao desta metfora leva a crer que a razo emprega seu mtodo na busca de um conhecimento que descarta o material sensvel ou mesmo os pressupostos da experincia como comprovao dos argumentos ou conceitos criados pela razo. Nesse sentido, o abuso da razo deve ser compreendido como uma razo que no se preocupa em investigar seus pressupostos se pautando somente em raciocnios lgicos e inferncias sem prova das premissas, que possa convencer acerca de seus argumentos. 4 Die Kritik ist nicht dem dogmatischen Verfahren der Vernunft in ihrem reinen Erkenntni, als Wissenschaft,

    entgegengesetzt (denn diese mu jederzeit dogmatisch, d.i. aus sicheren Principien a priori strenge beweisend, sein), sondern dem Dogmatism, d.i. der Anmaung, mit einer reinen Erkenntni aus Begriffen (der philosophischen) nach Principien, so wie sie die Vernunft lngst im Gebrauch hat, ohne Erkundigung der Art und des Rechts, womit sie dazu gelangt ist, allein fortzukommen. Dogmatism ist also das dogmatische Verfahren der reinen Vernunft ohne vorangehende Kritik ihres eigenen Vermgens.

  • 21

    do sculo XVIII estava em voga, abordando o fato de que a metafsica necessita de uma fundamentao a comear pelos seus pressupostos e sua validao.

    A metafsica padece, segundo Kant, das inconsistncias do realismo conceitual caracterstico do pensamento dogmtico, a saber, a utilizao de conceitos da razo sem fornecer uma validao do seu uso e sem estabelecer os limites de sua aplicao. Por isso, ela uma forma de filosofia dogmtica, que se encontra em patamar pr-crtico. Kant rejeitou o racionalismo intelectualista de Leibniz e suas pretenses terico-epistmicas. Segundo ele, Leibniz construiu um sistema intelectual do mundo base de conceitos e acreditou com isso conhecer as propriedades intrnsecas das coisas [...]. (2008, p. 22).

    Em relao ao racionalismo, nos Progressos da Metafsica, Kant aponta o primeiro estdio5 [Stadien] da metafsica como sendo o dogmtico, aquele que acreditava em seu sucesso sem ao menos inquirir acerca de seus pressupostos e teses, s vezes bem fundamentadas, mas sem comprovao in concreto:

    Os primeiros e mais antigos passos na metafsica se ousaram como simples tentativas refletidas, mas ocorreram com plena confiana, sem antes se empreenderem cuidadosas inquiries acerca da possibilidade do conhecimento a priori. Qual foi a causa de tal confiana da razo em si prpria? O sucesso presumido6. (FM, AA 20: 261-262).

    Voltando ao racionalismo moderno, no sculo XVII havia um racionalismo com pressupostos metafsicos e tambm religiosos, tendo na figura de Deus a garantia suprema das verdades racionais e o apoio para a existncia de um universo inteligvel. No sculo XVIII, a razo torna-se um instrumento para dissolver a obscuridade que envolve o homem, mas ao mesmo tempo uma atitude epistemolgica que integra a experincia e tambm a evoluo histrica. Nesse mbito, inaugura-se uma nova caracterstica do racionalismo, o racionalismo crtico. Tal racionalismo emerge dentro da crtica de Kant ao prprio racionalismo, uma vez que Kant comea a indagar sobre o papel, a funo, o significado e os limites do conhecimento (ou pensamento) no mbito da produo do conhecimento. Esse exame crtico da razo (pura) engendra uma razo crtica, uma razo que examina a si mesma criticando

    5 Na traduo utilizada da obra Progressos da metafsica, o tradutor preferiu traduzir o termo alemo Stadien

    (plural de Stadion ou Stadium) por estdios, que possui tambm a acepo de fases ou estados. Para a nossa lngua, seria prefervel traduzir o termo Stadien por fases ou estados, entendendo a expresso como momento. No entando, como optamos em fazer a leitura dos Progressos por meio da traduo portuguesa, no iremos contrariar a traduo e utilizaremos a expresso estdio para caracterizar o momento da metafsica ou a fase do pensamento metafsico que Kant caracteriza como dogmtico, ctico e crtico. 6 Die ersten und ltesten Schritte in der Metaphysik wurden nicht etwa als bedenkliche Versuche blos gewagt,

    sondern geschahen mit vlliger Zuversicht, ohne vorher ber die Mglichkeit der Erkenntnisse a priori sorgsame Untersuchungen anzustellen. Was war die Ursache von diesem Vertrauen der Vernunft zu sich selbst? Das vermeinte Gelingen.

  • 22

    seus pressupostos. Com isso, a atitude filosfica da razo em criticar a si mesma foi rotulada de criticismo. O criticismo, no mbito da filosofia kantiana, est relacionado crtica de Kant metafsica tradicional, escola Leibniz-wolffiana, ao racionalismo, cujo qual Kant chamou de racionalismo dogmtico7. Esse dogmatismo que se ope ao ceticismo, uma vez que o ceticismo se configura como uma tese que afirma a impossibilidade de decidir sobre a verdade ou falsidade de qualquer proposio, no tomando partido a favor da negao ou afirmao da proposio, mantendo assim uma dvida, examinando cuidadosamente qualquer coisa antes de tomar alguma deciso (o suposto ceticismo de Kant, na dcada de 1760, se deve sua dvida quanto prova da validade dos pressupostos da razo) combatido por Kant pelo vis crtico ao contestar o princpio de contradio e princpio de razo suficiente como princpios que bastam para o conhecimento, colocando a razo como rgo supremo do conhecimento. Nesse ponto, Kant acaba por apoiar o carter emprico do conhecimento resguardando razo a deciso ltima. Ou seja, Kant se coloca como um racionalista que faz uma crtica razo, sem descartar os pressupostos da razo, mas sim promovendo uma anlise destes pressupostos e delegando experincia (sensvel) um papel dentro do conhecimento.

    Na Introduo da Crtica da razo pura, Kant afirma que todo o nosso conhecimento comea com a experincia, mas nem todo deriva dela8 (KrV, B 1), o que, grosso modo, mostra que o impulso para o conhecimento estaria na experincia, mas o conhecimento

    (comprovado, organizado, sintetizado) estaria fora dela, ou seja, mesmo que o conhecimento comece com a experincia a deciso ltima da razo (ou, pode-se dizer, que a origem do conhecimento est na espontaneidade do Entendimento). Ainda, se todo o conhecimento derivasse da experincia, haveria um conhecimento de carter emprico, onde o entendimento (com suas categorias) no atingiria o fim ltimo de todo o conhecimento, a unidade ltima de todo o conhecimento, o fim ltimo da metafsica (no campo suprassensvel). Haveria, pois, o empirismo da filosofia transcendental e no o racionalismo da filosofia transcendental, o conhecimento a priori (FM, AA 20: 275).

    7 Na crtica de Kant ao racionalismo, ele mesmo denomina o racionalismo da metafsica tradicional como um

    racionalismo dogmtico, expresso polmica, uma vez que preciso compreender a quem Kant chama de dogmtico. Nas leituras das obras de Kant, somos levados a entender a crtica razo como uma crtica, em especial, escola Leibniz-wolffiana, bem como Descartes, em alguns sentidos. Assim, quando Kant se dirige contra o racionalismo ou quando coloca os argumentos que se referem aos problemas da razo, por no levar a cabo a investigao e a prova de seus pressupostos, ele denomina os racionalistas de dogmticos. Portanto, sempre que utilizarmos essa expresso, estaremos entendendo a crtica de Kant metafsica tradicional ou racionalismo da escola Leibniz-wollfiana, ou, queles que Kant chama de dogmticos, sendo esta a expresso kantiana. 8 Da alle unsere Erkenntnis mit der Erfahrung anfange, daran ist gar kein Zweifel [...] Wenn aber gleich alle

    unsere Erkenntnis mit der Erfahrung anhebt, so entspring sie darum doch nicht eben alle aus der Erfahrung.

  • 23

    Com isso, possvel compreender que o empirismo kantiano teria sua base no termo empirismo que deriva da experincia como informao trazida pelos rgos dos sentidos, uma vez que o empirismo pode ser dito como uma doutrina de carter epistemolgico, que afirma que todo o conhecimento deriva da experincia e todo o conhecimento deve ser justificado pela experincia recorrendo aos sentidos. O empirismo tem na experincia seu critrio ou norma da verdade, negando o carter absoluto da verdade, pressupondo que toda verdade deve ser coloca prova, para ser corrigida, modificada ou abandonada. Essa corrente de pensamento no nega ou se ope razo. Porm, quando a razo constitui verdades necessrias, que no se colocam prova, o empirismo ataca a razo mostrando que tais verdades podem e devem ser verificadas. Nesse ponto, o empirismo pode ser uma instncia ctica, pois, duvida da experimentao do campo no atingvel pelo conhecimento do homem, ou seja, o conhecimento possui seus limites, que esto nas verdades acessveis aos homens em oposio ao racionalismo metafsico que postula verdades necessrias, substncias e coisas em si. Com isso, o empirismo se configura como uma corrente de pensamento que no recusa o uso de instrumentos racionais ou lgicos, quando adequados s capacidades do sujeito, mas configura a experincia como sua fonte de conhecimento, bem como o elemento que decide sobre a validade do conhecimento. Nesse sentido, o pensamento kantiano est voltado tanto para o vis racional quanto para o vis emprico, dentro de uma razo dogmtica e um empirismo ctico, o que desembocou num racionalismo crtico ou criticismo. Assim, possvel compreender alguns pressupostos que conduziram Kant em sua empresa configurada como crtica da razo pura. O caminho pressuposto por Kant acerca dos progressos da metafsica, tendo seu incio com uma metafsica dogmtica, passa por um momento denominado ceticismo, em que a razo busca alcanar seu fim ltimo (conhecimento suprassensvel), configurando a metafsica como a cincia que opera, mediante a razo, a passagem do conhecimento sensvel ao suprassensvel9 (FM, AA 20: 260). Aqui se estabelece o segundo estdio da metafsica, o ctico:

    O segundo passo da metafsica, quase to antigo [como o primeiro], foi, pelo contrrio, um retrocesso [...] baseava-se no insucesso total de todas as tentativas levadas a cabo na metafsica. [...] so conquistas intentadas e supostas no campo do suprassensvel, onde sobre a totalidade absoluta da natureza, por nenhum sentido apreendida, e igualmente sobre Deus, a liberdade e a imortalidade que versa a questo, a qual concerne principalmente a estes trs ltimos objetos; a razo nutre a seu respeito um

    9 Dieser Endzweck, auf den die ganze Metaphysik angelegt ist, ist leicht zu entdecken, und kann in dieser

    Rcksicht eine Definition derselben begrnden: sie ist die Wissenschaft, von der Erkenntni des Sinnlichen zu der des bersinnlichen durch die Vernunft fortzuschreiten.

  • 24

    interesse prtico e em vista deles fracassam todas as tentativas de extenso eis o que divisamos no por um mais profundo conhecimento do suprassensvel, enquanto metafsica superior, que nos ensina o contrrio daquelas opinies, pois no as conhecemos como transcendentes, mas, sim, pela existncia, na nossa razo, de princpios que opem a toda a proposio extensiva acerca de tais objetos uma proposio antagnica, aparentemente bem fundada, e porque a prpria razo que aniquila as suas tentativas10. (FM, AA 20: 263).

    possvel pressupor que, se por um lado houve uma metafsica de cunho dogmtico, e por outro, uma metafsica de cunho ctico no como o entendido ceticismo tradicional, que postula uma dvida (um impulso para investigar) antes de afirmar ou negar qualquer proposio haveria de existir uma metafsica que se propusesse contrria ou intermediria entre estes dois momentos, pois, se h dogma, deve existir quem duvide; se h dvida, preciso existir quem a corrija ou proponha uma resposta a determinadas perguntas; ou ainda, que exista uma metafsica que busque compreender o porqu a primeira caiu num ceticismo, investigando seus pressupostos, buscando entender ainda o que ela pretende nesse suposto segundo passo da metafsica. Eis que surge o terceiro estdio da metafsica: o criticismo. Tal estdio, inaugurado por Kant, aponta a crtica da razo pura (estdio posterior metafsica Leibniz-wolffiana), o verdadeiro progresso da metafsica com a atualidade do racionalismo kantiano.

    O terceiro e mais recente passo que a metafsica deu e que deve decidir o seu destino a prpria crtica da razo pura, no tocante ao seu poder de alargar a priori o conhecimento humano em geral, quer em relao ao sensvel ou ao suprassensvel. Se ela realizou o que promete, a saber, determinar o alcance, o contedo e as fronteiras desse poder, se o levou a cabo na Alemanha e, justamente, desde a poca de Leibniz e de Wolff, ento resolver-se-ia o problema11 posto pela Academia real das cincias12. (FM, AA 20: 263-264).

    10 Der zweite, beinahe ebenso alte, Schritt der Metaphysik war dagegen ein Rckgang [...] grndete sich auf das

    gnzliche Milingen aller Versuche in der Metaphysik. [...] es sind beabsichtigte und vermeinte Eroberungen im Felde des bersinnlichen, wo vom absoluten Naturganzen, was kein Sinn fasset, imgleichen von Gott, Freiheit und Unsterblichkeit die Frage ist, die hauptschlich die letztern drei Gegenstnde betrifft, daran die Vernunft ein praktisches Interesse nimmt, in Ansehung deren nun alle Versuche der Erweiterung scheitern, welches man aber nicht etwa daran sieht, da uns eine tiefere Erkenntni des bersinnlichen, als hhere Metaphysik, etwa das Gegentheil jener Meinungen lehre, denn mit dem knnen wir diese nicht vergleichen, weil wir sie als berschwenglich nicht kennen, sondern weil in unserer Vernunft Principien liegen, welche jedem erweiternden Satz ber diese Gegenstnde einen, dem Ansehen nach, ebenso grndlichen Gegensatz entgegen stellen, und die Vernunft ihre Versuche selbst zernichtet. 11

    Em janeiro de 1788, a Academia Real de Cincias de Berlim abriu um concurso para responder a seguinte questo: Quais so os progressos reais da metafsica na Alemanha desde a poca de Leibniz e de Wolff?. A partir dessa questo, Kant comea a escrever sua resposta; porm, a mesma no foi terminada, e os textos foram publicados numa obra, tambm inacabada, sob o ttulo de Os Progressos da Metafsica (1804). 12

    Der dritte und neueste Schritt, den die Metaphysik gethan hat, und der ber ihr Schicksal entscheiden mu, ist die Kritik der reinen Vernunft selbst, in Ansehung ihres Vermgens, das menschliche Erkenntni berhaupt, es sei in Ansehung des Sinnlichen oder bersinnlichen, a priori zu erweitern. Wenn diese, was sie verheit, geleistet hat, nmlich den Umfang, den Inhalt und die Grenzen desselben zu bestimmen, wenn sie dieses in

  • 25

    Com relao crtica de Kant ao racionalismo, deve-se compreender que h, portanto, um progresso (em sentido kantiano, ou seja, a metafsica deve ser criticada nela mesma, a razo deve refletir sobre seus pressupostos e limites) e ao mesmo tempo um regresso, o qual deve ser resolvido, do lado dogmtico e do ctico, com uma crtica razo. Nas palavras de Kant, nos Progressos da Metafsica:

    H, pois, trs estdios que a filosofia devia percorrer em vista da metafsica. O primeiro era o estdio do dogmatismo; o segundo, o do ceticismo; o terceiro, o do criticismo da razo pura. Esta ordem cronolgica funda-se na natureza da humana faculdade de conhecer. Depois de descobertos os dois primeiros, o estado da metafsica pode manter-se oscilante ao longo de muitas geraes, saltando de uma desconfiana ilimitada da razo em si mesma para a suspeita ilimitada e, de novo, desta para aquela. Mas, mediante uma crtica do seu prprio poder, colocar-se-ia ela num estado consciente, no s no exterior, mas tambm internamente, no precisando, alm disso, ou mesmo j nem sequer sendo capaz, de uma extenso ou de uma restrio13. (FM, AA 20: 264).

    E continua: Daqui se segue a diviso dos estdios da razo pura em doutrina da cincia, como progresso assegurado, a doutrina da dvida, enquanto paragem, e a doutrina da sabedoria, como ultrapassagem para o fim ltimo da metafsica, de maneira que a primeira conter uma doutrina teortico-dogmtico, a segunda uma disciplina ctica, e a terceira uma [disciplina] prtico-dogmtica14. (FM, AA 20: 237).

    Disso entende-se o seguinte: no estdio dogmtico da metafsica h um progresso dentro de um uso terico da razo, um avano terico e dogmtico, que decorre no interior das fronteiras da ontologia; no estdio ctico h uma doutrina da dvida, um regresso, uma paragem da razo, que consiste nos limites da cosmologia transcendental ou pura; por fim, o estdio da doutrina da sabedoria, o criticismo, o fim ltimo da metafsica, configurado na teologia, no conhecimento a priori tem-se, aqui, a Era da crtica (FM, AA 20: 273 / 281).

    Com respeito metafsica, na Alemanha do sculo XVIII, ela era ensinada por um vis geral e por um vis especial. Este estuda Deus, o mundo, a alma, enquanto aquele se ocupa da

    Deutschland und zwar seit Leibnitzens und Wolfs Zeit geleistet hat, so wrde die Aufgabe der Kniglichen Akademie der Wissenschaften aufgelset sein. 13

    Es sind also drei Stadien, welche die Philosophie zum Behuf der Metaphysik durchzugehen hatte. Das erste war das Stadium des Dogmatism; das zweite das des Scepticism; das dritte das des Kriticism der reinen Vernunft. Diese Zeitordnung ist in der Natur des menschlichen Erkenntnivermgens gegrndet. Wenn die zwei erstern zurckgelegt sind, so kann der Zustand der Metaphysik viele Zeitalter hindurch schwankend sein, vom unbegrenzten Vertrauen der Vernunft auf sich selbst, zum grenzenlosen Mitrauen, und wiederum von diesem zu jenem abspringen. Durch eine Kritik ihres Vermgens selbst aber wrde sie in einen beharrlichen Zustand, nicht allein des uern, sondern auch des Innern, fernerhin weder einer Vermehrung noch Verminderung bedrftig, oder auch nur fhig zu sein, versetzt werden. 14

    Hieraus folgt die Eintheilung der Stadien der reinen Vernunft, in die Wissenschaftslehre, als einen sichern Fortschritt, die Zweifellehre, als einen Stillestand, und die Weisheitslehre, als einen berschritt zum Endzweck der Metaphysik: so da die erste eine theoretisch-dogmatische Doctrin, die zweite eine sceptische Disciplin, die dritte eine praktisch-dogmatische enthalten wird.

  • 26

    ontologia, o estudo do ente enquanto ente. Desde a antiguidade, essa metafsica girava em torno de seu prprio eixo sem avanar um nico passo, sem se fixar como a cincia, no avanar um passo sequer.

    Diante disso, Kant salienta os rodeios que essa pretensa cincia se submete e busca fundament-la como cincia, mas para isso preciso traar suas fontes, extenso e limites, sendo isso possvel somente por uma crtica razo.

    Segundo Sgarbi, [...] i primi tentativi metafisici kantiani sino al 1781 dimostrano che proprio questa la direzione intrapresa da Kant. Il tentativo kantiano quello di un superamento della metafisica stessa, un tentativo che vedeva negli aristotelici di Knigsberg illustri predecessori. (2010, p. 108).

    Pode-se dizer que perante as respostas insuficientes dadas s questes colocadas pela metafsica tradicional, apareceram os primeiros estudos da filosofia kantiana. O caminho para fundamentar a metafsica estabelecido, de certo modo, pelo prprio decorrer da histria. A lgica, segundo Kant, est pronta e acabada desde Aristteles (KrV, B VIII); a matemtica e a fsica seguem a passos firmes e a metafsica, que a mais antiga de todos os conhecimentos racionais, permanece como um simples tatear, sem fixao, caminhando sob conceitos puros despojados dos sentidos, constituindo o conhecimento a priori que investiga Deus, liberdade e imortalidade da alma. E, nesse sentido, o conhecimento a priori conduz razo pura desembocando em uma investigao em que a metafsica toma a forma de crtica razo pura eis o caminho da fundamentao da metafsica como cincia. Segundo afirma Torretti:

    Al conocimiento independiente de los datos de los sentidos lo llamamos, con Kant, conocimiento a priori. La pregunta por la metafsica no cuestiona, pues, nuestra capacidad de conocer en general, sino solamente nuestra capacidad de conocer a priori. Si la llamamos razn pura entendemos que la investigacin sobre la posibilidad de la metafsica tome la forma de uma crtica de la razn pura. (1980, p. 23, grifo do autor).

    Se retomarmos a histria no deixando de lado a conceituao do racionalismo criticado por Kant pode-se perceber que o percurso da metafsica at Kant tortuoso, mas iluminado, de certo modo, por Wolff (1679 - 1754), um leibniziano de grande influncia na Alemanha do sculo XVIII. Alm de Wolff, temos Baumgarten (1714-1762), Martin Knutzen (1713-1752), Crusius (1715-1775), entre outros, que contriburam para o estudo da metafsica e orientaram Kant em sua trajetria, em especial Wolff e Baumgarten.

  • 27

    Para situar a metafsica que rodeava Knigsberg no perodo dos primeiros escritos kantianos, vale tomar de emprstimo as palavras de Sgarbi, que resume bem as orientaes que giravam em torno de Kant:

    Dopo il 1740 non fu pi Wolff lautore pi studiato in campo metafisico. Bens Alexander Gottlieb Baumgarten. Sullopera di Baumgarten, Kant svillupper i suoi primi tentativi metafisici a partire dalla Nova dilucidatio del 1756, dove vengono delineati per la prima volta i rapporti fra logica e metafisica. Lopera pi importante del periodo per senza dubbio il Beweisgrund, dove Kant dimonstra la sua emancipazione rispetto alla tradizione metafisica predecente. Lesistenza indelebilmente segnata dai rapporte con lesperienza, essa esprime in particolar modo la completa determinazione dellindividuo. Dal ripensamento dei rapporti fra esistenza ed essenza si determina in Kant la distinzione fra il meramente logico e il metafisico o real. Il primo designa semplicemente lessenza di una cosa, il secondo la sua effettiva realtr. (2010, p. 221, grifo do autor).

    possvel perceber, pela citao, que h um amadurecimento por parte de Kant entre o escrito da Nova Dilucidatio e o nico argumento possvel, uma vez que, no primeiro, ele mostra suas primeiras reflexes metafsicas voltando-se contra a metafsica da escola Leibniz-wolffiana, contra o princpio de razo suficiente e o princpio de contradio. Ao passo que, no segundo, ele continua sua emancipao dentro de suas reflexes no campo da metafsica, mostrando que a razo no d conta de explicar, no mbito dos predicados lgico-formais, a existncia das coisas, voltando-se contra o racionalismo, conduzindo sua crtica contra o argumento ontolgico da prova da existncia de Deus, legado de Santo Anselmo, travestido por Descartes e revestido por Leibniz (BDG, AA 02: 72).

    Novamente, Sgarbi aponta a evoluo ou desenvolvimento da filosofia de Kant prximo aos anos de 1770, que teriam levado ao desenvolvimento da filosofia transcendental, especialmente, no mbito das categorias.

    Dopo un iniziale accoglimento della dottrina wolffiana, proprio a partire dalle riflessioni sul Beweisgrund, Kant rivolge il suo interesse verso Baumgarten e verso la particolare interpretazione che di lui ne dava Crusius. Il transcendentale dalla seconda met degli anni Sessanta diviene, sulla scorta delle riflessioni baumgartiane e crusiane, sinnimo di logico ed essenziale. Negli anni Sessanta, prprio alla luce di questaccezione logica, Kant tenta di applicare la dottrina dei transcendentali ai problemi di epistemologia e gnoseologia. Nascono cosi diversi tentativi, tutti destinati a fallire, di innestare il transcendentale nelle teorie logiche, in modo particolare nella dottrina delle categorie, i quali ebbero un certo impatto anche nella stesura della Kritik der reinen Vernunft, specialmente nel famoso 12. (SGARBI, 2010, p. 222, grifo do autor).

    Com isso, pode-se dizer que a filosofia de Kant amadurece e se desenvolve a partir de uma crtica ao racionalismo passando, primeiro, por um perodo de acolhimento de teses

  • 28

    metafsicas, depois, passando por um perodo de questionamento destas teses estabelecendo novas reflexes sobre os problemas prprios da razo que devem ser resolvidos dentro do prprio campo da razo (ou dentro do prprio racionalismo). Procurou-se resolver isso, por parte de Kant, com uma crtica razo, com uma busca pelos limites do conhecimento racional, uma busca pela fundamentao da metafsica; por fim, uma crtica da razo pura.

    Voltando considerao da filosofia de Christian Wolff, como uma das orientaes para a filosofia de Kant, nela possvel verificar a equivalncia do mtodo a ser seguido na metafsica, com o mtodo matemtico o mtodo universal da cincia ainda no empregado na filosofia. Para Wolff, o conhecimento estabelecido de trs modos, a saber: histrico, corresponde ao conhecimento do objeto de modo emprico; filosfico, pelo qual conhece a razo da existncia dos objetos; matemtico, onde se d o conhecimento da qualidade das coisas. Dentro desses conhecimentos, o filosfico ganha seu destaque, pois, o agregado de seu conhecimento a prpria filosofia, a cincia em que as outras se baseiam, a cincia dos possveis enquanto possveis, a filosofia primeira onde residem os princpios das outras filosofias (dos outros conceitos filosficos) desembocando na metafsica, estabelecida como filosofia primeira, em sentido amplo.

    A metafsica em Wolff pode ser dita como aquela que trata do ser (o ente enquanto ente), de Deus e da liberdade, formando um conjunto que agrega a ontologia, psicologia, teologia, incluindo a cosmologia, que at ento no era parte da metafsica. A cosmologia estabelecida como parte da metafsica no sentido de estabelecer a ponte entre ontologia e a cincia dos espritos (neumtica), explicando a passagem do ser ao suprassensvel.

    Esse fundo histrico serve como base para o estabelecimento da filosofia kantiana, uma vez que a metafsica deve seguir o mtodo matemtico, alm de se estabelecer como a cincia da transposio do sensvel ao inteligvel, sendo que a prpria ordenao estabelecida por Wolff obedece s leis eternas da razo, correspondendo como meio para fundamentar a metafsica dentro de um conhecimento puro.

    Como se sabe, Wolff adepto da filosofia de Leibniz e lcito afirmar a existncia de uma escola Leibniz-wolffiana, entretanto, existem diferenas entre eles que iro ter seus reflexos em Kant. Na opinio de Maria Arruda (2008, p. 20-21), o sculo XVIII assistiu uma espcie de wollfianizao das teses de Leibniz, uma vez que Wolff foi o principal divulgador da filosofia leibniziana. A ampla divulgao da filosofia de Leibniz por parte de Wolff teria impedido o acesso direto obra de Leibniz ao mesmo tempo em que a preservou. Para o autor, mesmo Kant no teria diferenciado Leibniz de Wolff em sua crtica filosofia alem, ou melhor, em sua crtica metafsica tradicional. Em nossa opinio, possvel dizer,

  • 29

    por um lado, que Kant teve acesso ao pensamento de Leibniz por meio de Wolff, medida que sua crtica dirigida escola Leibniz-wollfiana, ou seja, a Leibniz e seus seguidores. Nesse caso, Wolff o principal representante, o que nos leva a acreditar que Kant compreende as teses de Leibniz, se beneficia da divulgao desta filosofia por meio de Wolff e empreende sua crtica de modo amplo abarcando tanto Wolff quanto Leibniz. Ou seja, Kant teve acesso s obras de Leibniz, mas tambm teve acesso s interpretaes de Wolff e, em sua poca, com a suposta wollfianizao das teses de Leibniz, teria sido prudente question-los tendo em vista as teses de Wolff, j que ele era, no momento, o principal seguidor das ideias de Leibniz.

    Entre os pontos divergentes entre as duas filosofias (de Leibniz e de Wolff) est o dualismo de Wolff em contraposio ao monismo de Leibniz. Aquele afirma a existncia da alma e do corpo finitos, enquanto este supera a dualidade cartesiana da substncia pensante (alma) e da substncia extensa (corpo), reunindo na mnada uma nica substancialidade, contendo as determinaes que possuem correspondncia com outras mnodas, enquanto coexistentes refletindo todo o mundo. A consequncia da postulao da mnoda leibniziana reflete na harmonia pr-estabelecida, em que tudo que existe estaria pr-determinado, o que para Wolff justificaria, como hiptese artificiosa, a relao alma e corpo e no simplesmente um monismo.

    Acepta, as, sin cuestionarla, la divisin de los entes finitos en almas y cuerpos; entanto que Leibniz haba sabido superar el dualismo cartesiano de la sustancia extensa y la sustancia pensante, concibiendo todos los seres segn un modelo nico: l mnada [...] Arrancada de su suelo nutrcio, la armonia preestablecida se convierte en el sistema de Wolff en una hiptese artificiosa para explicar la relacin entre el alma y el cuerpo del hombre [...]. (TORRETTI, 1980, p. 34, grifo do autor).

    Uma outra caracterstica, todavia, une Leibniz e Wolff quando ambos afirmam que o conhecimento sensvel no se diferencia do intelectual, sendo o nico ponto de diferenciao a obscuridade do sensvel e a clareza do intelecto diante do mesmo objeto. Essa caracterstica em Kant no se sustenta e ele salienta que a experincia sensvel ser a responsvel pela

    validade objetiva dos conceitos puros do entendimento (Crtica), algo que em Wolff j se apresentava com a afirmao de que os princpios ltimos devem possuir sua evidncia na experincia.

    Com efeito, a orientao Leibniz-wolffiana nas obras kantianas inegvel, no entanto, Kant no deixa de refletir e repelir certas consideraes e argumentaes correspondentes a esses filsofos, como o caso do princpio de contradio. Em sua obra (Ontologia), Wolff

  • 30

    afirmava que algo no pode ser e no ser ao mesmo tempo, ou seja, se A B, o mesmo A no pode ser no B, o que corresponde ao princpio de contradio (que em Leibniz se agrega ao princpio de razo suficiente). Porm, esse princpio lgico de contradio absorve de modo nico a ordem real e a ordem lgica, caso este que no se repete em Kant, pois, isto configura--se em um jogo de puros conceitos (Grandezas Negativas - 1763).

    Na obra kantiana em 1763, a saber: O nico argumento possvel para uma demonstrao da existncia de Deus, a anlise ontolgica do possvel e impossvel de vir ou no a existir liga-se estreitamente ao princpio de contradio. Tanto em Wolff quanto em Kant, aquilo que carrega consigo contradio impossvel, ao passo que o possvel algo que no se contradiz. Mas, para Wolff, afirmar que algo possvel no implica que ele exista, ou seja, a possibilidade no razo suficiente para determinar a existncia, embora a existncia seja um complemento do possvel15.

    De forma anloga, em Crusius encontramos a justificao da existncia como um predicado (o que no ocorre em Kant, pois, a existncia no um atributo, algo que se acrescenta a um simples possvel e, nesse ponto, se a existncia se configura como predicado, ela um predicado verbal e no real), sendo sua demonstrao dada no sensvel, o que equivale a dizer que s h evidncia da existncia de algo no campo sensvel (o mesmo que ocorre em Kant no nico argumento possvel). Nas palavras de Torretti:

    Crusius, por ejemplo, lo acepta y enuncia claramente, a pesar de que se opone con firmeza a la transformacin de la existencia en un predicado de orden lgico. Su posicin en esta materia anticipa la de Kant, y parece que h ejercido una impresin duradera sobre l. Para Crusius, como ms tarde para Kant, en ltimo trmino la caracterstica de la existencia en nuestro entendimiento es siempre la sensacin [...]. (1980, p. 38).

    O que preciso entender, aqui, o desenvolvimento de uma crtica lanada metafsica tradicional acerca da existncia, determinada pelo princpio de contradio e princpio de razo suficiente. O que ir culminar, em Kant, na distino entre a oposio lgica e a oposio real, ou mesmo, na distino entre uso lgico e uso real do entendimento, tendo como ponto de partida as distines entre princpio de razo das verdades e um princpio de razo das existncias. Isso, supostamente, seria o primeiro indcio para se falar de uma filosofia crtica, uma crtica escola Leibniz-wolffiana, que ampliava o alcance da

    15 A afirmao wolffiana acerca da existncia como complemento do possvel no aceita por Kant, se

    considerarmos as Prelees de Metafsica (Plitz), uma vez que no nico argumento possvel, Kant somente define a existncia como posio absoluta e como no predicado. (V-MP-L 1, AA 28: 40-41). Trataremos disso mais adiante.

  • 31

    metafsica sem um exame do real e de premissas, que somente se postulavam como real no mbito de conceitos puramente lgicos. Aquele postulado das escolas: a existncia uma determinao lgica qualquer e somada todas as perfeies do ser no falta tambm a existncia, ser fortemente contestada por Kant ao afirmar que a existncia no um predicado real e que o princpio de razo suficiente e tambm o princpio de contradio no provam a existncia dos objetos, mas somente repetem uma determinao lgica da existncia, meramente por conceitos. Assim, quando se fala de uma crtica ao racionalismo dogmtico, o que est implcito a crtica ao princpio de razo suficiente e princpio de contradio. O primeiro o princpio que afirma que tudo o que , porque existe uma razo para que ele seja (existe uma causa). Tal princpio, em Leibniz, um princpio fundamental, em que todos os nossos raciocnios esto fundamentados, um princpio que est por trs de tudo aquilo que existe e/ou se afirma algo de alguma coisa. Ou seja, nenhum fato pode ser tomado como verdadeiro, sem que exista uma razo suficiente para que isto seja deste modo e no de outro; isso, mesmo que tal razo no possa ser por ns conhecida, mas deve ser pressuposta (em um ser acima de ns: Deus)16. O segundo um princpio caracterizado por implicar o que verdade, oposto ao que falso (contraditrio), assim, algo referente a um mesmo sujeito no pode ser falso e verdadeiro ao mesmo tempo17. Se o ser , ele no pode ser no ser; se a bola redonda, ela redonda e no pode ser quadrada (o que seria contraditrio referente a bola, que , de fato, redonda). Tais princpios, para Leibniz, so os dois principais de todo raciocnio, para toda verdade e existncia das coisas. Desse modo, a crtica a esses dois princpios, por parte de Kant18, desemboca na crtica determinao da existncia como um predicado de ordem lgico-conceitual, o que leva Kant a refletir acerca da ordem lgica e ordem real no mbito do conhecimento racional. Em considerao filosofia alem do sculo XVIII, que estava calcada no interesse de conciliar antigos pensadores com as inovaes recorrentes no campo da cincia e do

    16 Na obra de Leibniz: 32. Et celui de la Raison suffisante, en vertu duquel nous considrons quaucun fait ne

    saurait se trouver vrai ou existant, aucune nontiation vritable, sans quil y ait une raison suffisante pourquoi il en soit ainsi et non pas autrement, quoique ces raisons le plus souvent ne puissent point nous tre connues. [...] 38. Et cest ainsi que la dernire raison des choses doit tre dans une substance ncessaire, dans laquelle le dtail des changemens ne soit quminemment, comme dans la source, et cest ce que nous appelons Dieu. 39. Or cette substance tant une raison suffissante de tout ce dtail, lequel aussi est li par tout, il ny a quum Dieu, et ce Dieu suffit. (Monadologie, 32-38-39, grifo do autor). 17

    Na obra de Leibniz: 31. Nos raisonnements sont fonds sur deux grands principes, celui de la Contradiction, en vertu duquel nous jugeons faux ce qui em enveloppe, et vrai ce qui est oppos ou contradictoire au faux. (Monadologie, 31, grifo do autor). 18

    A melhor formulao dessa crtica est na obra intitulada Nova Dilucidatio (1755), onde Kant transforma o princpio de razo suficiente em razo determinante e o princpio de contradio em princpio de identidade.

  • 32

    pensamento filosfico, tm-se, por um lado, uma metafsica que era ensinada voltada ao estudo de Deus, mundo e alma e, por outro lado, uma metafsica que se preocupava com a ontologia, o estudo do ente enquanto ente. Segundo a viso de Kant, a metafsica de cunho ontolgico no teria avanado um passo sequer19, algo que ele salienta apontando os rodeios dados por essa pretensa cincia que permanece girando em torno do seu prprio eixo desde a antiguidade. Diante disso, Kant reconhece a necessidade de fundament-la, mas para isso preciso traar seus limites, suas fontes e tambm sua extenso, sendo possvel somente com uma crtica razo. No Prefcio primeira edio da Crtica da razo pura (1781), Kant afirma:

    Houve um tempo em que esta pretensa cincia (a metafsica) era chamada rainha de todas as outras e, se tomarmos a inteno pela realidade, mereceria amplamente esse ttulo honorfico, graas importncia capital do seu objecto. No nosso tempo tornou-se moda testemunhar-lhe o maior desprezo e a nobre dama, repudiada e desamparada [...]20. (KrV, A VIII).

    E continua no Prefcio segunda edio da Crtica (1787): A Metafsica, um conhecimento especulativo da razo inteiramente isolado que atravs de simples conceitos (no como a Matemtica, aplicando os mesmos intuio), se eleva completamente acima do ensinamento da experincia na qual portanto a razo deve ser aluna de si mesma, no teve at agora um destino favorvel que lhe permitisse encetar o caminho seguro de uma cincia, no obstante ser mais antiga do que todas as demais e de que sobreviveria mesmo que as demais fossem tragadas pelo abismo de uma barbrie que a tudo exterminasse21. (KrV, B XIV, grifo do autor).

    No Escrito do prmio (1764), Kant afirma que a metafsica , sem dvida, o mais difcil entre os saberes humanos; e nenhuma, jamais, foi escrita at ento. A questo22 da Academia mostra que existem razes para explorar a via pela qual se tenciona procur-la

    19 Ver Reflexo 4880: Die Schritte in Metaphysik sind bisher vergeblich gewese. Man hat nichts drein erfunden.

    Gleichwohl kan man sie nicht aufgeben, subject statt object. 20

    Es war eine Zeit, in welcher sie die Knigin aller Wissenschaften genannt wurde, und wenn man den Willen fr die That nimmt, so verdiente sie wegen der vorzglichen Wichtigkeit ihres Gegenstandes allerdings diesen Ehrennamen. Jetzt bringt es der Modeton des Zeitalters so mit sich, ihr alle Verachtung zu beweisen, und die Matrone klagt, verstoen und verlassen [...]. 21

    Der Metaphysik, einer ganz isolirten speculativen Vernunfterkenntni, die sich gnzlich ber Erfahrungsbelehrung erhebt und zwar durch bloe Begriffe (nicht wie Mathematik durch Anwendung derselben auf Anschauung), wo also Vernunft selbst ihr eigener Schler sein soll, ist das Schicksal bisher noch so gnstig nicht gewesen, da sie den sichern Gang einer Wissenschaft einzuschlagen vermocht htte, ob sie gleich lter ist als alle brige und bleiben wrde, wenn gleich die brigen insgesammt in dem Schlunde einer alles vertilgenden Barbarei gnzlich verschlungen werden sollten. 22

    Questo: Perguntamos se as verdades da metafsica em geral e, em particular, os primeiros princpios da teologia natural e da moral so suscetveis da mesma evidncia que as verdades matemticas e, no caso de no o serem, qual a natureza de sua certeza, a que grau podem chegar e se esse grau suficiente para a convico. Questo elaborada por Sulzer, em junho de 1761, enquanto responsvel pelo colegiado de Filosofia na Academia Real de Cincia de Berlim. Informaes obtidas em: KANT, I. Escritos pr-crticos. So Paulo: Unesp, 2005.

  • 33

    antes de tudo23 (UDGTM, AA 02: 283). Alm disso, no Opus Postumum, h uma passagem interessante, em que Kant cita uma metfora que mostra o peso e a tarefa rdua da metafsica: o elefante d um passo com uma de suas patas somente quando sente que as outras trs esto firmes em p24 (OP, AA 21: 387, traduo nossa). Ou seja, a metafsica caminha a passos lentos, um mero tatear que ainda no avanou um passo sequer (B XV). Nesse contexto de repdio metafsica, no perodo iluminista (XVIII), existiam diferentes autores e escolas que se desenvolveram e completaram o sculo das luzes do pensamento alemo. Havia a linha racionalista, que conservava as ideias de Leibniz em conjunto com a escolstica moderna encabeada por Wolff (escola Leibniz-wolffiana que dominava a filosofia alem entre 1730 e 1750). Havia ainda uma segunda linha de pensamento que agrupava diferentes autores, que aspiravam um anti-idealismo influenciados por empiristas (ingleses e franceses) ou mesmo telogos pietistas. Nesse sentido, Kant se encontra em um perodo de apogeu e crise do pensamento europeu, momento que abrange a conservao do pensamento filosfico imposto por Leibniz e as grandes inovaes recorrentes na poca. Pois, o racionalismo, segundo Kant, caminha a passos lentos e no consegue fundamentar suas teses e princpios, enquanto que a influncia dos ingleses e franceses (empirismo) se estende pela Europa abrindo as portas para o ceticismo e para desconfiana das teses racionalistas. Nesse contexto, segundo Arana (1982, p. 79), Kant foi o filsofo mais expressivo de sua poca, um pensador que tratou de todos os assuntos que o rodeavam buscando uma resposta global para a diversidade de problemas em meio s correntes filosficas, a fim de elevar a metafsica a um estatuto digno de cincia ao mesmo tempo em que buscava atribuir experincia um valor tal qual o empirismo empregava, porm, com um significado diferente. Dentro do mbito histrico, a filosofia alem da segunda metade do sculo XVIII, no conseguia mais explicar as teses metafsicas de modo aprofundado, principalmente o legado leibniziano, j que a filosofia nesse perodo estava voltada a uma filosofia cientfica, emprica, voltada ao prprio empirismo mecnico, culminando no primeiro passo para o empirismo (legado dos ingleses e franceses). Esse novo vis chama a ateno de Kant, porm, possvel perceber em seus escritos um racionalismo que no despreza o empirismo, mas tambm critica a razo dentro do prprio racionalismo na busca pelo estabelecimento de seus

    23 Die Metaphysik ist ohne Zweifel die schwerste unter allen menschlichen Einsichten; allein es ist noch niemals

    eine geschrieben worden. Die Aufgabe der Akademie zeigt, da man Ursache habe, sich nach dem Wege zu erkundigen, auf welchem man sie allererst zu suchen gedenkt. 24

    [...] wobei dann die Regel sein wird (nach dem schertzenden Spruch eines Philosophen) es zu machen wie die Elephanten die nicht eher einen der 4 Fe einen Fu weiter setzen als bie sie fhlen da die andern drei feststehen. (IV. Conv; Oktaventwurf 12-14, seite 387).

  • 34

    limites, utilizando o prprio recurso da experincia para estabelecer a objetividade real dos conceitos racionais25.

    Desse modo instaurada a crise do racionalismo e o suposto problema metodolgico que atravessa o sculo XVIII configurado, conforme Kant, como a falta de uma base slida e de uma estrutura com princpios que sejam claros e aceitos por todos, pois, s assim a metafsica poderia se estabelecer como uma cincia. A metafsica, segundo Cassirer (1948, p. 175), possui contradio interna em sua prpria histria, ela consiste em uma disciplina que no atinge uma norma prpria de certeza e a sucesso de sistemas desafia a metafsica a acomodar-se no caminho seguro da cincia. Nesse sentido, a soluo para a crise proposta seria atribuir regras a metafsica, ou seja, torn-la uma atividade regulamentada com normas que elevariam essa pretensa cincia a um grau de certeza e clareza tal qual a matemtica. Com isso, Kant afirma no Escrito do prmio:

    O principal, que reitero, isto: deve-se proceder analiticamente, na metafsica, do comeo ao fim, pois seu ofcio , de fato, resolver conhecimentos confusos. Se compararmos a isso o procedimento dos filsofos vigente em todas as Escolas, quo s avessas ele no se achar! Os mais abstratos de todos os conceitos, a que naturalmente o entendimento chega por ltimo, constituem para eles o incio, porque tm na cabea o plano dos matemticos, plano que pretendem imitar do comeo ao fim26. (UDGTM, AA 02: 289).

    Assim, esse racionalismo do sculo XVIII, que buscava conhecer objetos reais mediante a pura razo (concedendo a ela as tarefas de partir dos dados da experincia buscando a causa ltima das coisas e fundamentar, ou mesmo, demonstrar por si mesma a existncia de todas as coisas), conduziu Kant em uma investigao com o intuito de fundamentar a razo sobre os dados da experincia e alcanar, a partir deles, uma certeza da existncia de um Ser Transcendente, equivalendo a concepo kantiana de razo recorrente da poca. Diante da crise do racionalismo que, segundo Kant, no consegue sustentar suas teses, pode-se observar nas palavras de Mariano Campo, que no s Kant, mas algumas correntes da poca hostilizavam a metafsica e viam nela o fim da razo e a vitria do empirismo e do psicologismo:

    25 Da validade objetiva do conhecimento com dependncia da experincia; ver Reflexo 4373: [...] Unablngig

    von aller Erfahrung giebt es keine Gegenstnde und auch keine gesetz des Verstandes [...]. 26

    Das Vornehmste, worauf ich gehe, ist dieses: da man in der Metaphysik durchaus analytisch verfahren msse, denn ihr Geschfte ist in der That, verworrene Erkenntnisse aufzulsen. Vergleicht man hiemit das Verfahren der Philosophen, so wie es in allen Schulen im Schwange ist, wie verkehrt wird man es nicht finden! Die allerabgezogenste Begriffe, darauf der Verstand natrlicher Weise zuletzt hinausgeht, machen bei ihnen den Anfang, weil ihnen einmal der Plan des Mathematikers im Kopfe ist, den sie durchaus nachahmen wollen.

  • 35

    [...] in modi e toni diversi, dato cogliere lavversione contro la metafisica: si tratti dei circoli nominalisti, o del nuovo spirito umanista, o della nuova scienza sperimentale, o dellempirismo psicologistico o fenomenistico, o della mentalit matematica, o di quella giuridica o economica, cos diffuse nellera illuminista, o, finalmente, del nuovo clima filosofico preoccupato della metodologia e del problema della conoscenza e rinchiuso nella soggettivit, quale si svolto dal criticismo allidealismo transcendentale e al positivismo. Il tutte queste correnti, in tutti questi atteggiamenti, in tutte queste sistemazioni filosofiche la metafisica osteggiata come in peso morto, un corpo estraneo, o sbandita come un incubo immaginario o una chimera. (1953, p. 219-220).

    De acordo com a citao, observa-se que a metafsica permanecia em um estgio de decadncia: seus fundamentos no possuam uma base slida para configur-la como uma cincia racional dotada de certeza e preciso. Nesse sentido, Kant buscava na escola Leibniz-wollfiana, nas inovaes da cincia e no empirismo ingls (David Hume), a chave para reformular o mtodo metafsico e refazer suas bases com o intuito de estabelec-la como uma cincia tal qual a matemtica e a filosofia da natureza (fsica). Com efeito, Kant promove uma crtica quilo que ele chama de metafsica dogmtica, que engendra a validade dos conceitos racionais e de seus princpios sem demonstrao e validade in concreto, a qual comprova suas teses in abstrato, caminhando em um mundo suprassensvel onde o sujeito no conhece nada e insiste em afirmar que seu conhecimento racional digno de certeza e regrado como princpio de todo o conhecimento.

    A metafsica tradicional pressupe, segundo Kant, uma conformao entre conceito e realidade, mas incapaz de explicitar as condies de possibilidade dessa conformao. Com a revoluo copernicana de Kant, a metafsica de Leibniz foi empurrada para fora da trama filosfica principal que se desenvolvia nas ltimas dcadas do sculo XVIII. (ARRUDA, 2008, p. 23).

    Com isso, na opinio de Maria Arruda, Kant compreende a metafsica tradicional como uma conformao entre conceito e realidade sem explicar, de fato, as prprias condies de possibilidade desta relao. Nesse sentido, segundo o autor, a revoluo copernicana, por parte de Kant, coloca a metafsica de Leibniz (ou da escola Leibniz-wolffiana) para fora do cenrio filosfico do sculo XVIII com o advento da filosofia transcendental e a busca pela fundamentao da metafsica como cincia e pressuposio da existncia de juzos sintticos a priori na metafsica. Nesse sentido, a corrente racionalista permanece sem o estabelecimento dos limites do uso da razo, sem um fundamento concreto de teses, uma corrente que utiliza, segundo Kant, um palavrrio metdico para convencer os eruditos (e mesmo o senso comum) acerca

  • 36

    de suas teses. Ele constata uma razo que extrapola os limites da experincia sensvel engendrando uma argumentao que desembocar na afirmao dos Sonhos em 1766, onde Kant afirma que a metafsica equivalente aos sonhos dos visionrios, chegando a compar-la s viagens dos fantasistas e suas histrias jocosas. Assim, a metafsica tradicional criticada por Kant, mas vale lembrar que ele um racionalista que engendra uma crtica razo a fim de determinar seus limites e fundamentar suas teses. Para atingir o seu objetivo, ele se orienta pelas fundamentaes e determinaes tanto do crculo racionalista quanto da corrente empirista, justificando a diversidade de teses e conciliaes que esto presentes em meio aos escritos do perodo pr-crtico, impossibilitando uma unificao das obras desse perodo.

    [...] la filosofia dogmtica oficial es un vano conglomerado de razonamientos sofisticos sin utilidad, que occupa el terreno baldio que, hoy por hoy, es la metafsica; tan slo tiene la apariencia externa de la ciencia cuya consolidacin impide con su presencia. Para que sta florezca, es preciso desenmascarar y refutar la falsa sabiduria que usurpa el lugar que a ella corresponde. Tambin comienza a insinuar Kant que, una vez eliminadas las pseudometafsicas al uso, habr que realizar una labor propedetica antes de instaurar la genuina metafisica, pues no estn claros an sus fuentes y mtodo. (ARANA, 1983, p. 117).

    Isso , portanto, a caracterstica da filosofia racionalista do sculo XVIII, um conglomerado de raciocnios calcado em inferncias, um raciocnio lgico sem comprovao real, sem validade objetiva, no fundamentada na experincia sensvel. Uma filosofia que caminha no mundo ilimitado da razo, que ilude a si mesma.

  • 37

    1 O Kant pr-crtico e crtico: consideraes acerca do perodo pr-crtico e a distino entre o jovem Kant e o Kant maduro

    A primeira coisa que pode-se pensar quando se fala da possibilidade de tratar de um Kant crtico dentro do perodo pr-crtico : como? E nas palavras de Mariano Campo (1953, p. 222): com' possibile parlare di critica in un periodo precritico?. A possibilidade estabelecida quando lanamos um olhar aos escritos do perodo considerado como pr-crtico e compreendemos a grandiosidade de suas teses e problemticas que os escritos carregam acerca do seu pensamento crtico. No ano de 1797, em carta enviada a J. H. Tieftrunk27, Kant salienta que o marco de seu pensamento atual a Dissertao de 1770 e que os escritos anteriores a ela no devem aparecer ao pblico, uma vez que eles no representam mais sua posio intelectual. No entanto, Tieftrunk publicou os escritos como manuscritos em 1799, algo que surpreendeu Kant, mas histria da filosofia proporcionou a compreenso da evoluo de seu pensamento. O interesse que havia na poca, pela publicao dos escritos kantianos anteriores Crtica da razo pura (1781), partiu da tentativa de compreender o que Kant queria dizer nesta obra, visto que a mesma no obteve o sucesso esperado por Kant, j que ela no foi muito bem recebida e nem mesmo compreendida pela dificuldade das questes e teses que ela carrega. Nesse sentido, Kuno Fischer, que foi o primeiro a se interessar pelos primeiros escritos de Kant, afirmava que a chave para compreender a Crtica estava nos escritos anteriores a ela; assim, ele se debruou sobre tais escritos com o intuito de empreender a gnese do criticismo kantiano. O interesse de Fischer proporcionou uma primeira interpretao desse perodo como uma fase de conciliaes e diversidade de questes, demonstrando que Kant supostamente passa por trs fases antes de engendrar seu pensamento crtico, a saber: racionalismo, empirismo e ceticismo. No curso do sculo XVIII, no havia uma nica corrente de pensamento que envolvia toda a Europa e sim correntes opostas e diversificadas, movimentos que se aglutinavam e influenciavam Kant. As inovaes no campo da cincia por parte de Newton, na filosofia com Descartes e a escola Leibniz-wolffiana, estabeleciam relaes e fronteiras entre cincia moderna e metafsica, fsica e matemtica, metafsica e matemtica; ou seja, um amlgama de

    27 [...] Zu Ihrem