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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Milena Figueirêdo Maia Entre a tradição e a pós-modernidade O percurso metaficcional em Livro, de José Luís Peixoto Mestrado em Literatura e Crítica Literária São Paulo 2016

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Page 1: Entre a tradição e a pós-modernidade O percurso ... · Milena Figueirêdo Maia Entre a tradição e a pós-modernidade ... cenário da literatura portuguesa, desde o fim do século

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Milena Figueirêdo Maia

Entre a tradição e a pós-modernidade O percurso metaficcional em Livro, de José Luís Peixoto

Mestrado em Literatura e Crítica Literária

São Paulo 2016

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Milena Figueirêdo Maia

Entre a tradição e a pós-modernidade O percurso metaficcional em Livro, de José Luís Peixoto

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Prof. Drª. Diana Navas.

São Paulo 2016

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MAIA, Milena. Entre a tradição e a pós-modernidade: o percurso

metaficcional em Livro, de José Luís Peixoto. Dissertação de Mestrado.

Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2016. 89p.

ERRATA

Página Linha Onde se lê Leia-se

13 *Nota de rodapé 1995 1991 17 29 Carlos Reis (2004) Carlos Reis (2006) 21 30 (citação) ... mudança mão se... ... mudança não se... 76 6 Ao olha para si... Ao olhar para si... 77 28 (citação) Nas tuas mão, a... Nas tuas mãos, a...

* Nas Referências (página 85), não consta: AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. * Nas Referências (página 87), não consta: PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa. Fixação do texto, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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Banca Examinadora:

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Ao Arthur, o melhor de mim.

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Agradecimentos

Esta pesquisa acadêmica só foi possível graças ao apoio de pessoas

importantes, que me deram suporte técnico e emocional.

Primeiramente, agradeço a Deus, que sempre me guia e me protege.

Ao meu pequeno Arthur, por me mostrar que a minha vida é mais bonita

quando refletida nele e por me fazer perceber todos os dias que, por ele, vale a pena

todo o esforço de buscar ser uma pessoa melhor.

À minha mãe, por dedicar-se integralmente, por chorar e rir comigo e

pelas vezes que abdicou da própria vida para cuidar de mim e do meu bebê.

Obrigada pelo seu amor incondicional.

Ao meu pai, por ser meu eterno herói, meu amigo, meu exemplo de

hombridade, caráter e paciência e por todo o estímulo que sempre me deu para que

eu seguisse meu caminho e enfrentasse os obstáculos com perseverança.

Ao Diogo, pelo companheirismo de todas as horas, pelo apoio integral,

pelo amor, carinho e cuidado e, sobretudo, por acreditar mais em mim do que eu

mesma. Obrigada pela nossa família, por ser todo o tempo meu esteio e meu prumo.

Aos meus irmãos, Vitor, Danilo e Breno, pela amizade, risadas e afeto

que tornam a vida mais leve.

Aos meus amigos e familiares do Rio e da Bahia, por serem

companheiros de todo instante, mesmo à distância. Aos de São Paulo, que alegram

os dias cinzas, em especial, à amiga Paula Petersen e sua família, que se fez

presente quando mais precisei, dedicando sempre palavras de conforto e estímulo.

À minha orientadora, Prof. Drª. Diana Navas, pela confiança,

disponibilidade e orientação que possibilitaram meu crescimento acadêmico e

pessoal, pelo conhecimento transmitido com respeito e carinho e, principalmente,

pela amizade, solidariedade e compreensão nos difíceis momentos do meu

percurso.

Ao Prof. Dr. Eduino Orione e à Prof. Drª. Leila Darín pelas contribuições

cuidadosas que auxiliaram no desenvolvimento deste projeto.

Aos professores e funcionários da PUC-SP e do Colégio Objetivo por

terem dado o suporte necessário para o desenvolvimento desta pesquisa.

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Agradeço a CAPES, pela bolsa que me deu condições para o

desenvolvimento mais adequado de meu projeto de trabalho, permitindo-me, assim,

a presença das experiências transformadoras e fecundas, quer para minha vida,

quer para minha realização profissional.

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MAIA, Milena. Entre a tradição e a pós-modernidade: o percurso metaficcional

em Livro, de José Luís Peixoto. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos

Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, SP, Brasil, 2016. 89p.

Resumo

Esta dissertação tem como proposta primeira avaliar o percurso do

narrador peixotiano em busca do autoconhecimento e mostrar como este trajeto

culmina na busca da narrativa pela sua autognose, além de apresentar de que modo

Peixoto concilia a tradição e a pós-modernidade em Livro. Inicialmente, foi exposto o

cenário da literatura portuguesa, desde o fim do século XX até a atualidade,

traçando os mecanismos ficcionais que aproximam importantes autores deste

período. Posteriormente, mostramos como elementos da tradição e da pós-

modernidade dialogam no romance supracitado. Por fim, analisamos o percurso

autognóstico do narrador e da própria obra literária. A busca do narrador pelo

autoconhecimento é empreendida inicialmente no âmbito temático, porém, ao

acompanhar a trajetória deste narrador, é possível perceber que a sua busca

extrapola o plano temático e a carga metalinguística, já evidenciada pelo nome dele,

Livro, e alcança o plano estrutural do romance. Tendo em vista este importante

aspecto do romance, esta pesquisa dispõe-se a revelar o processo metaficcional de

constituição dessa narrativa, apoiando-se nos conceitos de Linda Hutcheon, Patricia

Waugh e Gustavo Bernardo, acerca da metaficção. Ademais, este trabalho visa

também a demonstrar como a busca desse narrador errante, desse herói

problemático (conceitos, respectivamente, sugeridos por Álvaro Cardoso Gomes e

Georg Lukács) – estilhaçado, esfacelado – culmina num romance também

fragmentado e, portanto, refletindo a tentativa de resgate de uma totalidade

aparentemente perdida.

Palavras-chave: Literatura portuguesa contemporânea – José Luís Peixoto –

tradição – pós-modernidade – metaficção

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MAIA, Milena. Between tradition and postmodernity: the metaficcional journey

in Livro of José Luís Peixoto. Master’s Dissertation. Graduate Studies Program in

Literature and Literary Criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP,

Brasil, 2016. 89p.

Abstract

This thesis has as its first proposal evaluating the path of Peixoto’s

narrator in search of self-knowledge and showing how this path culminates in the

search of the narrative for its self-gnosis, in addition to presenting how Peixoto

conciliates tradition and postmodernity in Livro. At first, the Portuguese literature

scenery was presented, from the end of the twentieth century until the present time,

outlining the fictional mechanisms that bring important authors from this period

closer. Subsequently, it is shown how elements from tradition and postmodernity

dialogue in the aforementioned novel. Lastly, we analyzed the self-gnostic path of the

narrator and novel itself. The narrator’s search for knowledge is undertaken initially at

a thematic scope, however, through the analysis of this narrator it is possible to

notice that his search goes beyond the thematic level and the metalinguistic weight,

already in evidence through its name, Livro, and it reaches the structural plan of the

novel. Bearing in mind this important aspect of the novel, this research is willing to

reveal the metafictional process of constitution of this narrative, relying on the

concepts of Linda Hutcheon, Patricia Waugh e Gustavo Bernardo, on metafiction.

Furthermore, this thesis also means to demonstrate how the search for this

wandering narrator, this problematic hero (concepts, respectively, suggested by

Álvaro Cardoso Gomes e Georg Lukács) – shattered, ripped – culminates in a novel

also fragmented and, therefore, reflecting the attempt of rescue of an apparently lost

totality.

Key words: Contemporary Portuguese literature – José Luís Peixoto – tradition –

postmodernity – metafiction

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Sumário

Introdução ........................................................................................................ 09

Capítulo 1

O pós-modernismo no romance português ................................................. 13

1.1 A relação do romance contemporâneo com o real .................................... 15

1.2 O romance português pós-moderno e seus mecanismos ficcionais ......... 20

Capítulo 2

Tradição e pós-modernidade em Livro ......................................................... 31

2.1 O contexto sociopolítico-econômico: a realidade portuguesa da ditadura

ao momento atual ..............................................................................................

32

2.2. As tendências pós-modernas em Livro ......................................................

2.3 O aspecto metaficcional: pós-modernismo em evidência ...........................

2.4 A (des)construção das instâncias narrativas ..............................................

37

41

46

Capítulo 3

A trajetória do narrador .................................................................................. 55

3.1 O objeto livro: “a sombra de um ato” ...........................................................

3.2 O Livro: a autorreferencialidade ..................................................................

3.3 Livro: o percurso do narrador errante .........................................................

56

60

64

Considerações Finais .....................................................................................

Referências ......................................................................................................

82

85

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Introdução

A literatura contemporânea portuguesa tem provado constantemente sua

altíssima qualidade. Autores portugueses ganham cada vez mais espaço na Europa,

conquistando prêmios e tendo suas obras traduzidas e publicadas em diversos

países. Dentre os mais jovens autores, encontra-se José Luís Peixoto que, até o

presente ano, já publicou dezesseis livros, dentre os quais treze obras em prosa e

três em poesia. Ganhou prêmios importantes como o Prêmio José Saramago 2001,

pelo livro Nenhum Olhar; o Prêmio Cálamo Outra Mirada 2008 (Espanha), por

Cemitério de Pianos, dentre outros.

Peixoto tem como marca de estilo o lirismo vinculado com a sua terra, que

parece querer resgatar a essência da História e da ruralidade portuguesa, mas sem

deixar de compreender a contemporaneidade e o cosmopolitismo típicos da sua

geração. Sua escrita é sensível, poética e mescla elementos míticos, fantásticos,

com a realidade por vezes dura da sua pátria. A influência de José Saramago,

sobretudo dos romances que são voltados para a história portuguesa, como

Memorial do Convento e História do Cerco de Lisboa, é evidente neste aspecto.

O escritor reescreve a saudade portuguesa sob uma nova perspectiva,

revitalizando o Portugal bucólico, e tentando trazer para a contemporaneidade a

importância da valorização de suas raízes:

A saudade é algo que faz parte da minha matriz. Uma parte grande do meu trabalho é feita com o passado. Tento fixá-lo, transportá-lo intacto para o futuro. Sei que não chegará inteiro, sei que sou incapaz de moldá-lo tal como ele era, mas tento. E sinto-o. Tenho o passado dentro de mim, em cada palavra, cada gesto. Isso é a saudade.1

A saudade expressa na obra de Peixoto nem sempre é saudade de algo

que o autor viveu. Sua obra é o retrato de sua geração e esta é bastante marcada

por aquilo que não viveu. O escritor nasceu em Galveias, interior de Portugal e é

filho de portugueses que emigraram para a França no período da ditadura

salazarista. Desde pequeno, escutava os relatos das dificuldades que os pais

tiveram durante o exílio. Estas histórias que fizeram parte de sua infância são

1 Entrevista com José Luís Peixoto, disponível em <http://www.alagamares.net/alagamares-informacao/artigos/cultura/407-entrevista-com-jose-luis-peixoto>.

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resgatas e transformadas para configurar seu romance Livro2, corpus do nosso

estudo.

Nesta obra, Peixoto aprofunda esta relação entre a tradição e a

contemporaneidade, misturando uma certa ousadia cosmopolita com o típico lirismo

português. É uma narrativa que tem os pés na pós-modernidade, mas não tira os

olhos da tradição. O romance divide-se em duas partes. Na primeira, um narrador

onisciente narra a história de Ilídio, menino que vivia num pequeno vilarejo do

Alentejo, abandonado pela mãe e criado pelo pedreiro Josué. Adolescente, Ilídio

apaixona-se por Adelaide que, exilada, vai para a França. O enredo trata, portanto,

de encontros e desencontros, numa vila (inominada) do Alentejo, no período da

ditadura salazarista. Ao fim desta primeira parte, nasce Livro, filho de Ilídio e

Adelaide, personagem que se declara narrador da história que se segue e da que

acabamos de ler.

O insólito narrador, personagem-título do romance, altera a estrutura da

narrativa, que, até então, parecia apresentar estrutura romanesca tradicional de

enredo com início, meio e “fim”. Ao apresentar-se como narrador de toda a narrativa,

Livro altera a visão que o leitor tinha do romance, pois sua trajetória está

diretamente ligada ao que já estava sendo narrado antes do seu nascimento.

Livro é singular, a medida que, simultaneamente, obedece e subverte a

tirania da cronologia3. Esta mudança do enredo linear para uma estrutura

fragmentada abre um novo universo para o leitor que, quando inicia a segunda parte

do romance, percebe que todo o contexto supostamente realista exibido até então

deve ser visto com novos olhos. A alteração ocorre tanto no âmbito da

macroestrutura (espaço, tempo, enredo, personagens, autor e narrador), quanto da

microestrutura do romance (plano metalinguístico, gêneros literários, incorporação

do discurso não literário, etc).

É no plano da linguagem que se consagram as estratégias narrativas de

Peixoto. Partindo do pressuposto de que “a mais importante característica do

romance contemporâneo seja o fato de este ser antes um romance do romance, isto

é, uma obra que é ao mesmo tempo romance e meditação acerca do romance, de

suas possibilidades como forma literária” (NAVAS, 2009, p. 50), atestamos que, ao

2 A narrativa de José Luís Peixoto foi publicada pela primeira vez em 2010, em Portugal, pela editora Quetzal. Utilizamos a primeira edição brasileira, publicada em 2012, pela Companhia das Letras. 3 REAL, Miguel. Disponível em: <http://www.joseluispeixoto.net/?skip=20&tag=livro>.

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lançar um Livro dentro de outro livro (e ainda possibilitar o desdobramento daquele

em objeto, sujeito e discurso), o autor reconstrói os conceitos tradicionais de autoria

e narração e, assim, acaba por reelaborar e questionar a própria linguagem

discursiva. Nosso intuito é mostrar que isto se dá por meio do narrador, que numa

obstinada busca pelo conhecimento de si, acaba por construir uma narrativa em que

ele se espelha: intrincada e fragmentada como este sujeito.

A proposta central da nossa dissertação é avaliar como o narrador do

romance traça o seu percurso rumo ao autoconhecimento e, consequentemente, a

narrativa em que ele se reflete também o faz. Para isso, buscamos identificar de que

modo a estrutura metalinguística, ou mais profundamente, metaficcional, já que a

metaficção é um dos principais aspectos da literatura portuguesa contemporânea,

contribui para esta busca. Além disso, procuramos apresentar de que modo Peixoto

concilia a tradição e a pós-modernidade em Livro.

Assim, a realização da pesquisa mostra-se importante, pois vai além de

contribuir para a fortuna crítica deste promissor escritor ainda pouco estudado no

Brasil. Tendo em vista que o romance contemporâneo é fundamentalmente

fragmentado e dirige seu olhar para a própria narrativa, observamos que José Luís

Peixoto olha para dentro em busca da autognose da própria narrativa, por meio da

busca empreendida pelo narrador.

O presente trabalho tem sua estrutura dividida em três capítulos. No

primeiro capítulo, intitulado “O pós-modernismo no romance português”, traçamos as

características da literatura pós-moderna em Portugal, seus principais

representantes e expusemos as teorias que têm surgido a respeito deste assunto,

tendo como referências os estudos de Ana Paula Arnaut – Post-Modernismo no

romance português contemporâneo –, Álvaro Gomes – A voz itinerante – e Miguel

Real – O romance português contemporâneo, demonstrando exemplos de quatro

expoentes do cenário literário português (José Saramago, António Lobo Antunes,

Gonçalo M. Tavares e José Luís Peixoto), desde o fim do século XX até hoje. Como

acreditamos que a literatura portuguesa contemporânea faz um levantamento crítico

tanto da situação sócio-política do país, como também da própria estrutura da

narrativa, subdividimos o capítulo e traçamos exemplos de como esses olhares

“para fora” e “para dentro” se dão na conjuntura literária vigente.

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No segundo capítulo, “Tradição e pós-modernidade em Livro”, expusemos

de que forma se dá a confluência entre tradição e pós-modernidade no romance

peixotiano. Apresentamos a análise da maneira como são abordadas as diferentes

tendências narrativas próprias da atual literatura portuguesa num texto repleto de

elementos que revelam a ruralidade em sua essência, com o intuito de mostrar como

este romance inscreve-se na pós-modernidade sem abandonar a tradição.

Utilizamos como aporte teórico deste capítulo, mais uma vez, o estudo de Gomes;

as teorias de Linda Hutcheon – Narcissistic Narrative: The Metafictional Paradox – e

Patricia Waugh – Metaficcion: the theory and pratice of self-conscious fiction, acerca

da literatura metaficcional; e ainda contribuições de Walter Benjamin – Magia e

Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura, história e cultura –; de Anatol

Rosenfeld – Texto/Contexto I, dentre outros.

Por fim, no terceiro capítulo, que consideramos de maior relevância para

a nossa pesquisa, aprofundamos a investigação acerca do percurso de

autoconhecimento do insólito narrador de Livro. A nossa leitura do romance segue

os rastros deste narrador errante, que busca o conhecimento de si e, ao ser

nomeado Livro, traz consigo a bagagem metalinguística. O narrador, que se

configura também herói problemático, perfaz seu trajeto por meio de uma narrativa

que aponta para si mesma e desnuda seu fazer literário. Neste aspecto, a própria

metaficcionalidade da obra contribui para que ela, assim como o narrador, revele

sua procura autognóstica. Neste capítulo, apoiamo-nos nos conceitos de herói

problemático de Lukács – Teoria do romance –, e narrador errante de Gomes, no

estudo supracitado, além de tomarmos por base, mais uma vez, as considerações

teóricas de Hutcheon e Waugh, além do aporte crítico de Gustavo Bernardo – O livro

da metaficção.

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Capítulo 1

O pós-modernismo no romance português

O romance português contemporâneo, como já foi dito, está vivendo uma

época de crescente proeminência, desde o surgimento do neorrealismo até o

momento presente. Embora não haja nenhuma escola ou movimento a que os atuais

escritores estejam vinculados, conforme explica Gomes (1993, p.83), algumas

características são observáveis nos autores deste período, as quais permitem que

sejam classificados como autores pós-modernos4. É importante destacar que tal

classificação não visa a restringir, tampouco rotular a atual produção literária de

autores portugueses, mas mostrar que, dentro da diversidade de características dos

escritores contemporâneos em Portugal, há traços comuns que delineiam a essência

da nova literatura portuguesa.

É importante frisar que os autores que iniciaram suas publicações após o

ano 2000, configuram uma nova geração de escritores na literatura portuguesa, mas

as semelhanças e influências das suas obras com autores da geração anterior –

sobretudo José Saramago e Lobo Antunes –, mostra-nos que não há uma grande

distinção entre eles. Embora nosso intuito, como já salientamos, não seja rotular a

literatura portuguesa contemporânea, tampouco demarcar fronteiras literárias

geracionais, faz-se necessário mostrar que, a configuração da literatura do início

deste século está fortemente ligada à geração antecedente. Não há, ao nosso ver,

uma nova estrutura estético-literária atualmente, mas um novo momento, um

desdobramento, desta literatura que, como veremos, teve início no final da década

de 1960.

4 Adotaremos a nomenclatura “pós-modernismo” seguindo a proposta de Linda Hutcheon (1995), pois acreditamos que “o pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que desafia” (HUTCHEON, 1995, p.19). Assim, ele pode ser considerado continuidade da escola modernista e, simultaneamente, uma subversão desta mesma escola, posto que a revisita criticamente. Portanto, “o debate começa pelo significado do prefixo ‘pós’ – um enorme palavrão de três letras [...] a relação do pós-modernismo com o modernismo é contraditória [...] ele não caracteriza um rompimento simples e radical nem uma continuação direta em relação ao modernismo: ele tem esses dois aspectos e, ao mesmo tempo, não tem nenhum dos dois” (HUTCHEON, 1995, p.36).

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Tendo iniciado em 1968, com a publicação de O Delfim, de José Cardoso

Pires (ARNAUT, 2002, p.17), o pós-modernismo5 português consolidou-se no fim do

século XX, em meio a críticas que questionavam se o movimento era continuidade

do modernismo ou se pretendia romper com este. Porém, como esclarece Arnaut, é

na intensidade que o pós-modernismo difere das escolas pregressas:

A possibilidade de se instaurar um sentido de descontinuidade (contínua) em relação ao passado residirá, pois, no grau e na maneira como a sua realização e a sua aplicação são levadas a cabo na tessitura narrativa. As estratégias são similares, sem dúvida, elas não se traduzirão numa mera recuperação pautada por uma coexistência pacífica num enunciado palimpséstico; pelo contrário, travestir-se-ão de sentidos que, apesar de semântica e formalmente relacionais, acabam por tropeçar em conceptualizações anteriores, inaugurando, por isso, novos rumos ficcionais. (ARNAUT, 2002, p.17-18)

Assim, as características da literatura pós-modernista são, ao mesmo

tempo, continuação e oposição à tradição literária. O que as difere é justamente o

olhar que se lança sobre ela, como observa Gomes (1993, p.101): “Percebe-se que

os velhos mitos ainda permanecem intactos; mudaram foram os pontos de vista

ideológicos que, por sua vez, implicaram modificações no plano da linguagem”. Em

Portugal, essa nova visão sobre o velho resultará numa literatura preocupada em

revelar “o inventário crítico da situação sociopolítico-econômica portuguesa, como

também [fazer] um inventário crítico da linguagem, do modo de narrar e do

compromisso do escritor com a realidade” (GOMES, 1993, p.84).

É importante ressaltar que, desde a década de noventa até hoje, a

literatura tem evoluído e as temáticas nacionalistas têm sido abordadas por

perspectivas diversas. Veremos como a literatura contemporânea tem se

desenvolvido desde o fim do século XX até o início do século XXI. Para tanto,

analisaremos as duas vertentes inventariadas na literatura contemporânea – as

críticas à realidade e aos mecanismos ficcionais – e demarcaremos os atributos da

literatura pós-moderna portuguesa e a forma como estes estão se transformando.

5 Ana Paula Arnaut opta pela nomenclatura “post-modernismo”, porém não serão discutidas aqui as diversas polêmicas que envolvem este termo. Doravante, assumiremos o termo Pós-Modernismo, compreendendo-o como análogo ao termo utilizado por Arnaut, bem como por termos como ‘Pós-Modernidade’, ‘Pós-Moderno’ etc.

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1.1 A relação do romance contemporâneo com o real

Ao final do século XX, a literatura portuguesa ainda estava influenciada

pela História recente do país. A opressora ditadura salazarista, a Revolução dos

Cravos, a guerra travada com as colônias, ainda marcavam a memória dos

portugueses e davam a tônica dos romances escritos nesse período. Muitos autores

vivenciaram o duro período de repressão e, uma vez livres do silêncio forçado,

expuseram essa dura realidade em suas obras. Além desses temas, outros

(derivados desses) também foram explorados, como: o peso da tradição, a

descaracterização de um povo, as gerações sem causa, as castas e hierarquias do

Sistema, a condição feminina e a tragédia dos retornados da guerra colonial,6 por

autores como José Saramago, Almeida Faria, Lídia Jorge, Lobo Antunes e Teolinda

Gersão. Ora espelhando a realidade social, ora subvertendo-a, o romance português

parecia querer “suprir falências do discurso histórico” (LEPECKI apud GOMES,1993,

p.84).

É possível notar como essas temáticas foram abordadas em alguns

romances de escritores portugueses atuantes no fim do século passado. A opressão

ditatorial foi abordada por meio dos relatos de perseguições, interrogatórios, prisões,

torturas, além de personagens como o próprio Salazar e policiais da PIDE, em livros

como Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo – Teolinda Gersão; Manual de pintura

e caligrafia – José Saramago; e Fado Alexandrino – Lobo Antunes. Em Levantado

do Chão, Manual de Pintura e Caligrafia – Saramago; Auto dos Danados, Fado

Alexandrino – Lobo Antunes; Paisagem com mulher e mar ao fundo – Teolinda, há

referência à Revolução dos Cravos e as críticas revelam que só aparentemente a

antiga ordem foi derrubada. A miséria provocada pela guerra colonial é cenário de

Os cus de Judas, de Lobo Antunes e Paisagem com mulher e mar ao fundo, de

Teolinda Gersão, que abordam ainda a tragédia dos retornados.

O peso da tradição, crítica ao passadismo português que resulta na

estagnação presente, é assunto dos romances de Lobo Antunes – Os cus de Judas,

Auto dos Danados e Explicação dos Pássaros; e de Almeida Faria – Tetralogia

Lusitana. A descaracterização do povo, que tinha sua visão nacionalista limitada e

6 Temas enumerados por Álvaro Cardoso Gomes (1993, p.85).

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retrógrada, é tema de O Dia dos Prodígios e O Cais das Merendas, de Lídia Jorge.

As gerações sem causa, por não ter algo por que lutar, estão retratadas em Os cus

de Judas. As castas, existentes devido à diferença social gritante, estão presentes

em Levantado do Chão e Memorial do Convento, de Saramago. Por fim, a condição

da mulher, subjugada moral e socialmente, é explorada em O Dia dos Prodígios e

em Paisagem com mulher e mar ao fundo.

Embora trama, espaço, personagens, identidade, e História portuguesa

constituíssem a essência das narrativas, o romance português não ficou restrito ao

público local. Os portugueses tiveram suas obras difundidas e a tradução dos livros

produzidos em Portugal para outras línguas, sobretudo a obra de Saramago e Lobo

Antunes, tornaram esses autores reconhecidos e premiados internacionalmente.

Assim, os escritores finisseculares levaram ao restante da Europa e do ocidente a

literatura e a cultura portuguesas, divulgando sua História em visões novas e

peculiares. Esta internacionalização do romance ganhou novos rumos no início do

século XXI.

A nova geração de autores portugueses não só tem tido sua obra

traduzida e premiada internacionalmente, como também globalizou o teor dos novos

romances. Formada por escritores já reconhecidos – Gonçalo M. Tavares, José Luís

Peixoto, Valter Hugo Mãe, João Tordo, Patrícia Portela, dentre outros –, essa

geração de escritores, ao optar pela universalização das temáticas trabalhadas nos

romances, traça um novo perfil para a literatura contemporânea portuguesa. Os

enredos, as personagens, o tempo e o espaço sofreram uma “desnacionalização

ideológica”7 (REAL, 2012, p.28), isto é, mesmo quando situados em Portugal, não se

vinculam ideologicamente com as questões nacionalistas portuguesas. “Em síntese,

a nova narrativa portuguesa não retrata já um Portugal fechado sobre si próprio,

antes um Portugal europeu, global, com tendências sociais e problemas psicológicos

semelhantes aos dos europeus” (REAL, 2012, p.29).

Há uma gama diversificada de enredos que, localizados ou não em

território português, como já mencionado, revelam a globalização das narrativas

publicadas no início do século XXI. Estas não estão preocupadas em defender uma

causa, um povo ou nação, são essencialmente anárquicas e apartidárias, conforme

explica Miguel Real:

7 Grifos do autor.

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17

Seguindo o niilismo e o relativismo éticos europeus e americanos dominantes, o romance português hoje, em geral:

a. não visa ensinar nada a ninguém (não é culturalmente moralista; não é socialmente proselitista);

b. não apresenta situações dramáticas exemplares como modelo de acção para o leitor (os autores não possuem uma doutrina filosófica enformadora dos seus textos);

c. não sacraliza nenhum Deus; d. não denuncia nenhum Demónio; e. não ostenta nenhuma bandeira nem combate outra adversa. (REAL, 2012,

p.53)

Observemos algumas obras internacionalmente premiadas e já traduzidas

em diversas línguas, de autores que já publicavam em fins do século XX e autores

que iniciaram sua publicação de romances a partir do ano 2000 –, que exemplificam

o quadro acima exposto. Apesar de haver uma série de autores excelentes na

geração de escritores portugueses contemporâneos, selecionamos apenas quatro –

José Saramago, António Lobo Antunes, Gonçalo M. Tavares e José Luís Peixoto –

para exemplificar o quadro, por entendermos que este não é o foco deste trabalho.

José Saramago iniciou suas publicações em 1947, com Terra do Pecado;

porém tanto este romance como Manual de pintura e caligrafia (1977) são tidos pela

crítica como romances menos expressivos na carreira do autor. A partir da

publicação de Levantado do chão (1980), a obra de Saramago ganha contornos

estéticos mais definidos, como a não-linearidade – recuos, avanços, coloquialismos,

oralidade, alternância de registros da fala, entre outros –, a presença de um narrador

marcado por uma ideologia e a revisitação da História portuguesa sob a perspectiva

do oprimido são marcas do texto saramaguaiano, sobretudo em sua primeira fase,

chamada pelos críticos de romances de temática histórica. Compõem esta fase os

romances publicados até História do cerco de Lisboa (1989). De acordo com Carlos

Reis (2004), os romances publicados a partir de O evangelho segundo Jesus Cristo

(1991), iniciam uma sequência de obras com temática universal, em que o foco

passa a ser a fragilidade, a duplicidade, o egoísmo e a crueldade do homem,

associados a uma preocupação mais ética do que ideológica em sua ficção. Além

disso, a visão cética e pessimista de Saramago, no tocante às relações humanas e à

organização de um mundo absurdo e desequilibrado, acentua-se (REIS, 2006).

António Lobo Antunes publicou seu primeiro romance, Memória de

Elefante, em 1979 e, desde então, já publicou mais de 30 livros – todos traduzidos

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para outros idiomas e grande parte contemplada com importantes prêmios literários.

Autor de romances com elevado grau de sarcasmo, ousadia e lirismo, Lobo Antunes

defende a prática de uma escrita antiburguesa e antiacadêmica, dotada de

agressividade, forte carga erótica e alto grau metafórico. O escritor explora a

mediocridade sórdida do cotidiano, penetra no psicológico das personagens e expõe

o íntimo de personagens frustradas social, amorosa e/ou profissionalmente. No

intuito de compreender a si e ao outro, a distância entre o “eu” e o mundo que o

cerca – ambos estilhaçados – é reduzida, “criando um mundo de espelhos, em que

narcisos degradados fazem do real uma extensão de si próprios” (GOMES, 1993,

p.55).

Gonçalo M. Tavares, autor com uma extensa obra já publicada, mesmo

tendo iniciado suas publicações em 2001, é extremamente eclético no seu

repertório. O autor já publicou diversos livros que compõem a coletânea intitulada ‘O

Bairro’, cujos títulos homenageiam ilustres pensadores, criando curtos perfis

ficcionais com caráter ao mesmo tempo lúdico e filosófico. Outra coletânea

romanesca do autor é a famosa tetralogia ‘O Reino’, composta pelos já famosos

‘Livros Pretos’, que abordam o horror e a violência na sociedade contemporânea. Os

livros têm como pano de fundo a guerra ou o imediato pós-guerra, em local não

nomeado, e mostram como esses acontecimentos influenciam a vida das pessoas.

Vale a pena destacar o romance Uma Viagem à Índia, livro que, provavelmente,

melhor exemplifica o teor niilista da atual literatura portuguesa. Embora o livro siga a

estrutura básica da maior epopeia portuguesa de todos os tempos, Os Lusíadas, o

caráter errático de Bloom, protagonista, difere bastante da heroicidade de Vasco da

Gama. No romance de Tavares, não há esperança para a decadência da

humanidade, numa perspectiva muito mais ampla do que na epopeia camoniana.

Por fim, vejamos de que forma a obra romanesca de José Luís Peixoto

também está vinculada à proposta de Miguel Real supracitada. Daremos uma

visibilidade maior a este autor, visto que um dos seus livros é o corpus do nosso

estudo. Há uma particularidade interessante nos romances de Peixoto que difere

bastante sua obra de outros autores pós-modernos que, assim como ele, iniciaram

suas publicações já no século XXI: quase todos seus romances têm Portugal como

cenário, com exceção apenas de Uma casa na escuridão. No seu segundo livro, o

autor cria uma espécie de ‘alegoria da falência da civilização’, como lemos na orelha

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do livro, ao mesmo tempo lírica e apocalíptica, que não se situa num espaço nem

em um tempo determinado. Nos demais romances de Peixoto, as histórias têm

Portugal como cenário. Nota-se aí uma aproximação com a narrativa histórica de

Saramago, visto que, como este, Peixoto também aderiu ao uso de alegorias, refletiu

sobre a História recente de Portugal, pôs em evidência, em suas obras, a crítica aos

costumes portugueses (dentre eles, a corrupção política, o desvirtuamento da

religiosidade, os vícios locais, a sensação de não-pertencimento à Europa, a

tacanhez do povo), embora a perspectiva saramaguiana tenha um viés mais

desencantado e irônico em relação a este passado revisitado.

Já nas publicações mais recentes, sobretudo da geração de autores que

passaram a publicar a partir de 2000, da qual faz parte José Luís Peixoto, a visão da

pátria começa a mudar. Apesar de os autores do início do século XXI produzirem

uma literatura mais intimista, eles não abandonam completamente a temática

nacionalista e, quando a abordam, seguem uma linha crítica, mas não irônica ou

desencantada, pois não viveram a ditadura, não participaram da revolução. Este fato

permite-lhes uma maior liberdade temática para refletir sobre questões da sociedade

contemporânea.

Numa breve análise dos romances de Peixoto, podemos notar como se

dá a caracterização “dos Portugais” criados pelo autor e como a narrativa peixotiana

parte do local para atingir o universal. Em comum, seus romances apresentam,

geralmente, um Portugal atrasado, acinzentado, tacanho, real e fantástico ao mesmo

tempo, cheio de elementos simbólicos que revelam as características de um país

que é globalizado, mas que, com a artificial internacionalização, corre o risco de

perder sua identidade. A constante tensão entre o rural e o cosmopolita, frequente

na obra peixotiana, parece denunciar a tentativa dos portugueses de esconder suas

raízes rurais em nome de um certo cosmopolitismo artificial, de um desejo

desenfreado de alcançar a modernidade.

Há certo caráter alegórico em sua produção romanesca, construindo

espécies de mito-narrativas, repletos de simbologias (a fonte de Livro, o

meteorito/coisa sem nome de Galveias, o piano em Cemitério de Pianos, etc),

referências bíblicas (nomes das personagens, citação de salmos) e criação de um

tempo que parece fundir passado, presente e futuro e de um espaço que, por fundir

elementos fantásticos e reais, circunscrevem-se tanto em Portugal como em

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qualquer outro local do mundo. Existe uma preocupação em relatar não apenas a

realidade obsoleta de um Portugal ficcional provinciano, rural, como, principalmente,

a pequenez da humanidade diante do universo.

Deste modo, [...] as personagens portuguesas de romances portugueses, ainda que situadas num tempo e num espaço portugueses, perderam, na quase totalidade dos romances publicados, o seu vínculo ideológico <<portuguesista>> (ou nacionalista) [...], para se estatuírem como seres humanos universais, indiferentes aos pormenores locais, trajando, comendo, trabalhando, guerreando e amando como cidadãos do mundo.8 (REAL, 2012, p.29)

Apresentamos esses quatro autores como exemplos da literatura

contemporânea, por acreditarmos que eles são membros de destaque no atual

panorama literário português. A grandiosidade destes autores reflete-se na

elaboração de obras literárias já inscritas na história da literatura europeia, pois

perceberam a necessidade de subverter a história, desvelar a crise, a fragilidade da

humanidade e, principalmente, refletiram na sua escrita esta crise, como explica

Diana Navas:

Desta forma, é natural que a literatura contemporânea reflita a crise que hoje vivemos, crise esta presente não só em termos de temática, mas também no plano estrutural, já que a literatura não é apenas um conjunto de temas, mas, antes, uma linguagem que tem algo a dizer, segundo um modo distinto de dizer – um modo indisciplinador, inquietante. (NAVAS, 2009, p.146)

1.2 O romance português pós-moderno e seus mecanismos ficcionais

A literatura portuguesa recente tem voltado seu olhar, sobretudo, para sua

própria estrutura. Os quatro autores já mencionados são exemplos de como a

literatura teve que se “reinventar” a partir do fim do neorrealismo, visto que o modelo

realista de literatura mostrou-se ultrapassado. Em tempos de crise sobre os

paradigmas políticos, sociais, econômicos, etc, há de se refletir também sobre uma

crise existente no paradigma literário, pois a literatura, como sabemos, acompanha,

de alguma forma, sua realidade histórico-social. Miguel Real (2012, p.33) afirma, em

suas considerações acerca da literatura portuguesa contemporânea: “Com efeito,

8 Grifos do autor.

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hoje, século XXI, reflexo de uma sociedade anémica, apática e individualista,

pragmática e tecnocrática, a militância literária desapareceu”.

Assim, autores voltam seu olhar para dentro, a fim de revelar o que há por

detrás do enredo, da construção do texto. O que era, até então, função exclusiva da

crítica – a revelação do avesso da tessitura narrativa –, passa a ser explorada pelos

próprios escritores. Para esclarecer como ocorre esse processo de “olhar para

dentro” nos romances contemporâneos portugueses, apresentaremos os artifícios

próprios da pós-modernidade empregados pelos quatro autores citados no item 1.1

deste capítulo.

Ao explicitar as tendências pós-modernas no nível microestrutural do

romance, ou seja, no plano da linguagem, os autores lançam mão de recursos

importantes, como: a assimilação da poesia no corpo da prosa e a incorporação dos

discursos considerados não-literários pela tradição (GOMES, 1993); a

intertextualidade; a mistura de gêneros e decorrente fluidez genológica; a polifonia; a

fragmentação das narrativas e a metaficção (ARNAUT, 2002).

Segundo o professor Álvaro Cardoso Gomes,

A assimilação do poético pela prosa tem uma função restitutiva, ou seja, visa a resgatar a linguagem da sua excessiva “prosificação”. Essa “prosificação” seria resultado da redução, em alguns casos, da função poética do discurso, tornando-o essencialmente instrumentalizado. Neste momento, a palavra atinge o máximo da transparência, é meio para um fim, simples moeda em relações de troca. (GOMES, 1993, p.108-109)

Observa-se, nos autores já mencionados, que a assimilação da poesia

pela prosa permeia a literatura dos quatro, ainda que expressa de formas distintas.

José Saramago utiliza estruturas sintáticas e semânticas aparentemente confusas,

mesclando linguagem denotativa e conotativa, com o intuito de criar um texto

alegórico. Em Levantado do Chão, podemos notar a cena em que o meio-dia é

separado da noite por apenas um segundo. As ideias são ordenadas por meio da

compreensão de metáforas que demarcam o alheamento (noite) e a consciência

(dia), apresentando uma alegoria do 25 de abril:

Outros, porém já se levantaram, não no sentido próprio de quem suspirando se arranca ao duvidoso conforto da enxerga, se a há, mas naquele outro e singular sentido que é acordar em pleno meio dia e descobrir que um minuto antes ainda era noite, que o tempo verdadeiro dos homens e o que

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neles é mudança mão se mede por vir o sol ou ir a lua, coisas que afinal só fazem parte da paisagem […] (SARAMAGO, 2013, p.99)

Em Lobo Antunes, é possível verificar a utilização de metáforas grotescas

e insólitas, de imagens que exploram o feio e a deformação do real. Em

Conhecimento do Inferno, por exemplo, Lobo Antunes transforma o mar,

tradicionalmente associado pelos portugueses a conquistas e saudade,

desconstruindo a paisagem, como se fosse apenas um cenário de um espetáculo

teatral:

O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem: estendem conscienciosamente as toalhas na serradura da areia, protegem-se com óculos escuros do sol de papel, passeiam encantados no palco de Albufeira em que funcionários públicos, disfarçados de hippies de carnaval, lhes impingem, acocorados no chão, colares marroquinos fabricados em segredo pela junta de turismo, e acabam por ancorar ao fim da tarde em esplanadas postiças, onde servem bebidas inventadas em copos que não existem, as quais deixam na boca o sabor sem gosto dos uísques fornecidos aos figurantes durante os dramas da televisão. Depois do Alentejo, evaporado na paisagem horizontal como manteiga numa fatia queimada, as chaminés que se diriam construídas de cola e paus de fósforo por asilados habilidosos, e as ondas que se diluem sem ruído na praia no croché manso da espuma, faziam-no sempre sentir-se como os bonecos de açúcar nos bolos de noiva, habitante espantado de um mundo de trouxas de ovos e de croquetes espetados em palitos, a imitar casas e ruas. (ANTUNES, 2006, p.9)

Gonçalo M. Tavares opta pelas frases diretas e por uma linguagem que

mantém estreito diálogo com o tema da obra. Em Aprender a rezar na era da

técnica, obra cuja temática violenta contamina a linguagem do romance, podemos

observar que, por exemplo, as metáforas e comparações são carregadas de

violência: diante das radiografias da cabeça doente do irmão Albert, Lenz, o médico

protagonista da narrativa, chega a afirmar que olhá-las “É quase um divertimento,

igual a qualquer outro” (TAVARES, 2008, p.60), ou ainda quando o médico fala do

cérebro humano: “[o] cérebro, visto de perto, e entendido profundamente, tem a

forma e a função de uma arma, nada mais” (TAVARES, 2008, p.27).

Em José Luís Peixoto, há uma constante fusão de elementos míticos e

bíblicos ao discurso, além do embelezamento de cenas cotidianas, banais.

Observemos, por exemplo, a linguagem poética, metafórica e anafórica, utilizada

neste fragmento do romance Nenhum olhar: “[...] talvez os homens existam e sejam,

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e talvez para isso não haja qualquer explicação; talvez os homens sejam pedaços

de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique” (2005,

p.23).

A intertextualidade é um dos recursos mais utilizados por autores da

contemporaneidade. Segundo Júlia Kristeva, referência nos estudos acerca deste

assunto, “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é a absorção

e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1994, p.64). Nos textos pós-

modernos, as relações intertextuais são exploradas de diversas formas, seja nas

relações estabelecidas com outros textos literários, com textos não-literários, com

textos de outros autores, ou com obras do próprio autor, no corpo do texto, ou no

título da obra. Estas e outras formas de explorar a intertextualidade são utilizadas

pelos autores pós-modernos portugueses. O intertexto é uma das bases

constitutivas da obra de Saramago. Observemos dois exemplos de como se dá o

intertexto literário com Os Lusíadas, obra prima camoniana, que aparece com

frequência nos textos do vencedor do Nobel: em O ano da morte de Ricardo Reis

(romance que já é marcado pela intertextualidade, visto que a personagem-título da

obra é um heterônimo de Fernando Pessoa), a primeira frase: “Aqui o mar acaba e a

terra principia” (SARAMAGO, 1988, p.11), faz uma menção inversa a versos do

Canto III, estrofe 20 do poema épico: “Eis aqui [...] Onde a terra se acaba e o mar

começa” (CAMÕES, 2003, p.134); e em Memorial do convento, no trecho: “e então

uma grande voz se levanta, é um labrego de tanta idade já que não o quiseram, e

grita subido a um valado, que é púlpito de rústicos, ó glória de mandar, ó vã cobiça,

ó rei infame, ó pátria sem justiça...” (SARAMAGO, 2003, p.284), a alusão ao

episódio do velho do Restelo é evidente:

Mas um velho d’aspeito venerando,/ Que ficava nas praias, entre a gente,/ Postos em nós os olhos, meneando/ Três vezes a cabeça, descontente,/ A voz pesada um pouco alevantando,/ Que nós no mar ouvimos claramente,/ C'um saber só de experiências feito,/ Tais palavras tirou do experto peito:// – Ó glória de mandar! Ó vã cobiça/ Desta vaidade, a quem chamamos Fama!/ Ó fraudulento gosto, que se atiça/ C’uma aura popular, que honra se chama! (CAMÕES, 2003, p.188)

Lobo Antunes também apresenta a intertextualidade como uma das

práticas discursivas estruturantes do seu texto (NAVAS, 2013). Citando apenas um,

dentre os inúmeros recursos intertextuais utilizados por Lobo Antunes, temos a

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relação entre o romance As Naus e a epopeia camoniana, Os Lusíadas. O mesmo

ocorre com os autores portugueses da atual geração, que recorrem frequentemente

à intertextualidade como base da escrita. Além de também se valer do mais famoso

poema épico português como referência da obra Uma viagem à Índia, Gonçalo M.

Tavares faz alusão, por exemplo, a críticos literários famosos em sua coletânea

intitulada O Bairro e no livro A perna esquerda de Paris seguida de Roland Barthes e

Robert Musil. Já na obra de Peixoto, podemos destacar como exemplo a relação

entre suas próprias obras (intratextualidade): o romance Uma casa na escuridão

estabelece referência direta com o livro de poesia A casa, a escuridão.

Além da relação estabelecida entre textos literários, a incorporação dos

discursos considerados não-literários pela tradição é traço frequente na literatura

atual. A inserção de textos jornalísticos, artigos científicos, bulas de remédios,

propagandas, dentre outros textos que podem ser reconhecidos pelo leitor, mas não

são distinguidos da narrativa, enriquecem o texto e incitam o conhecimento em

áreas diversas, aguçando a curiosidade do leitor mais atento. É importante ressaltar

que este tipo de fusão textual é também uma espécie de intertexto:

Considerada em sua perspectiva stricto sensu, a intertextualidade projeta-se explicitamente não só através de citações, referências, resenhas, paráfrases, mas também através de itens lexicais presentes no texto que podem despertar na memória do leitor informações armazenadas ou textos adormecidos. As palavras, no entender de Jenny, são “super palavras”, uma vez que, “fragmentos textuais” ganham o “estatuto de discurso”. (JENNY apud NAVAS, 2013, p.44)

Saramago ilustra bem tal mescla de discursos, incorporando ao seu livro,

O ano da morte de Ricardo Reis, notícias de jornal, como quando a personagem

Ricardo Reis lê a notícia da morte de Fernando Pessoa:

Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que cultivava não só a poesia em moldes originais mas também a crítica inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as letras em Portugal não sustentam ninguém, Fernando Pessoa empregou-se num escritório comercial, e, linhas adiante, junto do jazigo deixaram os seus amigos flores de saudade. Não diz mais este jornal, outro diz doutra maneira o mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite, na poesia não era só ele, Fernando Pessoa, ele era

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também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis, pronto, já cá faltava o erro, a desatenção, o escrever por ouvir dizer, quando muito bem sabemos, nós, que Ricardo Reis é sim este homem que está lendo o jornal com os seus próprios olhos abertos e vivos, médico, de quarenta e oito anos de idade, mais um que a idade de Fernando Pessoa quando lhe fecharam os olhos, esses sim, mortos... (SARAMAGO, 1988, p.35-36)

Observemos como Lobo Antunes insere, no corpo do texto de

Conhecimento do inferno, o nome de diversas pessoas que se destacaram na mídia

em algum momento, sem definir quem são, exigindo do leitor um conhecimento

prévio ou uma pesquisa para reconhecer pugilistas, ciclistas, violinistas, cantores,

escritores ou mesmo criminosos:

O Jorge falava de Ma Barker, de Baby Face Nelson, de Machine Gun Kelly, do grande John Dillinger assassinado à traição pela polícia à porta de um cinema, falava de Carl Bobo Olsen e da sua célebre tatuagem Mama, falava de Louison Bobet, de Geminiani, de Coppi, o Campeoníssimo, a agonizar de paludismo em África durante um safari, à maneira dos sublimes e risíveis heróis de Hemingway, mas eu cessara por completo de o ouvir.9 (ANTUNES, 2006, p. 130-131)

O mesmo faz Tavares, em Matteo perdeu o emprego (2013, p.46),

listando uma série de elementos químicos da tabela periódica, no corpo do texto: “ –

Ródio, irídio, selênio, ósmio, eis alguns dos rivais do escândio – dizia Goldsntein,

que tentava transmitir aos outros seu amor às substâncias pequenas e raras”10.

De acordo com Ana Paula Arnaut, a mistura de gêneros e a consequente

fluidez genológica é traço marcante do pós-modernismo11. A pesquisadora, porém,

ressalta que, assim como as demais características deste período, a fusão de

gêneros não é novidade nem exclusividade do período:

O encontro numa mesma obra de diversos géneros literários secular e canonicamente aceites como distintos, não é, ao contrário do que poderia pensar-se, invenção recente e prática exclusiva de alguma ficção mais ousada a que, também por esse encontro entre géneros, mas não só por causa dele, se convencionou apodar de post-modernista. [...] Sobremaneira interessante é, essencialmente, a constante frequência com que se minam os próprios clichés genológicos, como subvertendo, contrariando e violando preceitos básicos se fazem implodir os próprios universais de

9 Grifos do autor. 10 Grifos nossos. 11 Arnaut opta pelo termos post-modernismo, mas nós seguiremos utilizando o termo mais utilizado pela crítica, por convenção.

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representação. O que fundamentalmente muda, pois, é o tipo e o modo de transgressão. (ARNAUT, 2002, p.141-142)

Na obra de Saramago, tomamos com exemplo de fluidez genológica o

livro Ensaio sobre a cegueira. O próprio título da obra indica sua intenção de

apresentar-se como ensaio, não simplesmente como um romance, como explica

Teresa Cerdeira:

Este [...] é um ensaio sobre a visão: do outro, das relações humanas, das linguagens e seus clichês, da verdade, do poder e até dos gêneros literários nesse romance que, como se sabe, se quer ensaio. Porque este não é tão-somente um romance cujo assunto é a cegueira, mas também um ensaio entendido como experiência, experimentação que revele a possibilidade de enxergar para além das aparências, para além dos seus próprios limites convencionais.12 (CERDEIRA, 1999, p.294)

Lobo Antunes exemplifica bem essa transgressão à classificação de

gênero no seu livro Não entres tão depressa nessa noite escura, narrativa a que o

próprio autor atribui o subtítulo “poema”. Trata-se, neste caso, não só de uma

referência intertextual ao poema “Do not go gently into that good night”, do poeta

Dylan Thomas (1951), bem como de uma reformulação, em todo o corpo da obra, do

discurso romanesco. Gonçalo M. Tavares, em sua coletânea O Bairro, apresenta

uma diversidade de gêneros ao mesclar histórias ficcionais a teorias dos supostos

moradores do “bairro”. Em Cemitério de pianos, José Luís Peixoto mistura ficção e

realidade, ao narrar a história de um personagem cuja história de vida é conhecida

do público português, mas distinta da história do livro. Em nota, o autor adverte, ao

final do romance, sobre sua “inspiração”:

Francisco Lázaro foi um atleta português que faleceu após cumprir trinta quilómetros da maratona nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. A personagem que, neste romance, tem o mesmo nome baseia-se apenas circunstancialmente na sua história, sendo todos os episódios e personagens apresentados do âmbito da absoluta ficção. (PEIXOTO, 2006, p. 315)

Característica frequente nos textos contemporâneos, mas que não se

trata de uma novidade da literatura atual, bem como os outros recursos literários

aqui mencionados, é a polifonia. Esta “bakhtiniana noção de pluridiscursividade,

12 Grifos nossos.

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resultante do cruzamento e do encontro dialógico entre o discurso do narrador e os

outros discursos alheios, vozes “chegadas de sítios incríveis” por vias de diferentes

práticas transtextuais” (ARNAUT, 2002, p.115) pode ser observada em diversas

obras da contemporaneidade portuguesa. É um dos traços de maior destaque

em Memorial do Convento, de José Saramago. Não obstante a ironia cáustica do

narrador em relação ao discurso do rei, que representa uma das importantes vozes

do discurso, a voz do monarca também ganha destaque num primeiro momento do

texto, até que as vozes do padre Bartolomeu, Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-

Luas vão se tornando mais forte, promovendo os conflitos de ideias que permeiam a

narrativa – sonho do rei versus sacrifício do povo, invenção do povo versus tirania

do império, heresia popular versus despotismo do clero –, visto que cada voz

apresenta um modo distinto de pensar.

A obra de Lobo Antunes, Manual dos inquisidores, por exemplo,

apresenta sua estrutura dividida em cinco partes, cada uma com um narrador

predominante. O mesmo ocorre em Cemitério de pianos, de José Luís Peixoto:

Francisco (pai, já morto), Francisco (pai, quando jovem) e Francisco (filho) alternam-

se para dar voz(es) à narrativa. Jerusalém, livro mais premiado do autor Gonçalo M.

Tavares, também possui estrutura polifônica, visto que cada um de seus capítulos é

atribuído a um personagem que, muitas vezes, parece não ter relação com o

personagem anterior. Somente aos poucos a relação entre eles torna-se aparente.

Nesses romances, a polifonia gera outra característica importante dos

romances pós-modernos: a fragmentação. A estrutura desses romances, narrados

por vozes múltiplas, acaba se fragmentando e revelando uma aparente perda da

narratividade. O enredo, supostamente intrincado, exige maior atenção do leitor para

que conecte as partes e vozes da história com o intuito de compreender o todo.

A metaficção é uma das estratégias mais utilizada pelos autores pós-

modernos em seus romances. “Trata-se de um fenômeno estético autorreferente

através do qual a ficção duplica-se por dentro, falando de si mesma ou contendo a si

mesma” (BERNARDO, 2010, p.9). As obras contemporâneas já não estão

preocupadas apenas em contar a história, mas em revelar a maneira como a própria

narrativa se desenvolve.

Notemos como a exibição do avesso da tessitura narrativa pode se dar de

forma implícita dentro do romance, como acontece neste fragmento de A Caverna,

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de Saramago, em que o narrador aborda a construção do tecido-texto por meio da

metáfora da linha-fio narrativo:

Começar pelo princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós nem desenredar estrangulamentos, coisa impossível de acontecer na vida dos novelos e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida. [...] Puro engano de inocentes e desprevenidos, o princípio nunca foi a ponta nítida e precisa de uma linha, o princípio é um processo lentíssimo, demorado, que exige tempo e paciência para se perceber em que direção quer ir, que tenteia o caminho como um cego, o princípio é só o princípio, o que fez vale tanto como nada. (SARAMAGO, 2000, p.71)

Em Não entres tão depressa nessa noite escura, por exemplo, o narrador

antuniano desnuda o processo de escrita de forma explícita:

escrevo uma linha ou duas, apago, torno a escrever e não foi assim, não foi assim, um traço mais carregado por cima das palavras, como as palavras continuam legíveis um segundo traço demorado, muitos traços rápidos em xis e agora que a frase se não entende tentar decifrá-la porque afinal era assim, refazê-la na cabeça e perdi-a, procurar a ideia que deu origem à ideia e não consigo, apenas vagos rostos informes... (ANTUNES, 2000, p.467)

Tavares, em Matteo perdeu o emprego, discute acerca da postura do

narrador dentro da narrativa, num posfácio em que o próprio autor elabora notas a

respeito do seu próprio livro:

De qualquer maneira, o narrador atua assim: o olhar fixa-se num pormenor de uma pequena narrativa e é esse pormenor que faz a ligação com a pequena narrativa seguinte. Se o narrador fixasse, não aquele pormenor, mas um dos outros milhares de pormenores que existem, então a personagem Aaronson poderia ligar-se, não a Ashley, mas a uma outra personagem, a um qualquer outro acontecimento. (TAVARES, 2013, p.155)

Por fim, ressaltamos como estratégia dos romances pós-modernistas a

desconstrução das funções das categorias clássicas do romance: autor, narrador,

personagem, etc. Isso ocorre, basicamente, porque o autor perdeu ao longo do

tempo o estatuto de autoridade do romance. Na ficção pós-moderna, sobretudo por

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sua característica metaficcional, “o contexto discursivo do registro do texto é o de

uma rede de ‘múltiplas escritas, obtidas a partir de muitas culturas e envolvendo-se

em relações mútuas de diálogo, paródia e contestação’” (HUTCHEON, 1991, p.107);

assim, o autor perde o domínio exclusivo sobre sua obra e, consequentemente, seu

leitor passa a assumir o papel de co-autor do romance, conforme explica Linda

Hutcheon:

Na metaficção, no entanto, este fato torna-se explícito e, enquanto lê, o leitor vive em um mundo que é forçado a aceitar como ficcional. Contudo, paradoxalmente, o texto também requer que ele participe, que ele atue intelectualmente, imaginativamente, e afetivamente em sua co-criação. Esta força de atração recíproca é o paradoxo do leitor. O paradoxo do próprio texto é que ele é, ao mesmo tempo, narcisisticamente auto-reflexivo e ainda focado no exterior, orientado ao leitor.13 (HUTCHEON, 1984, p.7)

Devido ao processo metaficcional, as instâncias literárias – enredo,

linguagem, personagens, foco narrativo, etc. –, que passavam despercebidas devido

à excessiva familiarização do leitor com a estrutura romanesca, tornam-se mais

explícitas para ele, permitindo sua atuação na “co-autoria” do romance.

Desnudadas, as categorias narrativas acabam ganhando novos contornos.

No âmbito do enredo, como já vimos, surge a preocupação não só com o

ato de contar a história, mas com o fato de mostrar como ela se constrói. Já no

plano da linguagem, notamos a utilização de diferentes artifícios que promovem a

maior atenção do leitor para o processo do fazer literário, como: ruptura com a

norma no que diz respeito à pontuação – “... E tu, gostas, Gosto, Eu, por mim, acho

que gostaria sempre, mas nunca mais o tornarei a ver, Podiam casar, Se

casássemos, talvez eu deixasse de gostar...”; frases entrecortadas – “O meu pai de

dois meses antes de Exactamente assim” (ANTUNES, 2000, p.47), “Apressada, sem

reparar em nada, saiu pelo portão. [Quilómetro vinte e dois] na mesa nova que eu

tinha feito” (PEIXOTO, 2008, p.226); novas estruturações de capítulos, isto é,

estrutura-se capítulos e subcapítulos em uma espécie de ‘romance-ensaístico’ – “O

médico na Era da Técnica: 1. A mão que segura o bisturi 2. Explosão e precisão 3. A 13 No original: In metafiction, however, this fact is made explicit and, while he reads, the reader lives in a world which he is forced to acknowledge as fictional. However, paradoxically the text also demands that he participates, that he engages himself intellectually, imaginatively, and affectively in its creation. This two-way pull is the paradox of the reader. The text’s own paradox is that it is both narcissistically self-reflexive and focused outward, oriented toward the reader. (tradução nossa)

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competência não se define com o coração” (TAVARES, 2008, p. 29, 32 e 35), ou

separados por salmos bíblicos, como em Uma casa na escuridão, de José Luís

Peixoto; entre outros muitos artifícios linguísticos explorados.

Por fim, notemos que algumas personagens, por exemplo, “perdem a

imagem de cópia de seres humanos e ganham o estatuto de possibilidades, de

símbolos e mesmo de alegoria do homem. Mas podem-se transformar simplesmente

em vozes que se encarregam do emergir do discurso.” (GOMES, 1993, p.119). Em

Nenhum olhar, de José Luís Peixoto, por exemplo, personagens que remetem ao

universo bíblico convivem com um gigante, gêmeos siameses ligados por um dedo e

o próprio demônio. “Mas mesmo no caso em que as personagens podem se

constituir em “cópia” de seres humanos, esvaziam-se de componentes físicos e

psíquicos, concebidos a priori, ganhando a sua presença no mundo através do seu

discurso.” (GOMES, 1993, p.120), como o que ocorre com as personagens de

Ensaio sobre a cegueira, que sequer precisam de nome, basta que tenham voz,

como afirma a mulher do médico: “Os cegos não precisam de nomes, eu sou esta

voz que tenho, o resto não é importante” (SARAMAGO, 2008, p.275); e com o

psiquiatra que narra sua viagem e suas memórias em Conhecimento do Inferno

(ANTUNES, 2006).

Com base na análise elaborada, foi possível perceber que os autores da

geração do início do século XXI – aqui citados Gonçalo M. Tavares e José Luís

Peixoto –, possuem forte vínculo com a geração precedente, em razão de manterem

muitas características em comum. No próximo capítulo, daremos especial atenção a

Livro, de José Luís Peixoto, mostrando como as características desse romance,

nosso objeto de estudo, inscrevem-no na contemporaneidade portuguesa, mas não

deixam de revisitar a tradição.

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Capítulo 2

Tradição e pós-modernidade em Livro

No primeiro capítulo, destacamos a estrutura dos romances

contemporâneos estabelecida por Álvaro Cardoso Gomes em seu ensaio A voz

itinerante e mostramos como se dá a reflexão crítica nas obras pós-modernas, a

qual ocorre em dois níveis: no nível sociopolítico-econômico e no nível da

linguagem. Aqui, traçaremos um panorama de como esses inventários são expostos

no romance Livro, de José Luís Peixoto e daremos destaque às estratégias

metaficcionais utilizadas, com base na teoria exposta por Ana Paula Arnaut, no

estudo Post-modernismo no romance português contemporâneo, que igualmente

contribui para a análise da obra.

Dividida em duas partes, a obra retoma, no primeiro momento, o período

da ditadura portuguesa, em uma narrativa linear, como uma espécie de “crônica de

costumes”, que revela problemas decorrentes deste período histórico. A história do

jovem Ilídio, abandonado pela mãe aos seis anos de idade, é o cenário inicial da

primeira parte que aborda a saga da emigração portuguesa para a França em

meados do século XX.

É mister ressaltar que, já na primeira parte de Livro, Peixoto segue uma

das tendências expostas por Gomes (1993, p.85) como característica da literatura

portuguesa contemporânea: a abordagem de temáticas que contemplam os

problemas do país ‘pós-74’, como “a opressão ditatorial”; “as castas e hierarquias do

Sistema”; “a condição feminina”; “a guerra colonial [...]”; “a Revolução dos Cravos”;

“a descaracterização de um povo” e “as gerações sem causa” (abordados na

segunda parte de Livro, mas vinculados diretamente ao enredo da primeira parte).

Peixoto aborda todos esses pontos – às vezes, de forma superficial – e inclui ainda

outros, como a própria emigração, a fim de retratar o percurso que levará à

formação de uma nova geração, revelada na segunda parte do romance, como

veremos posteriormente.

Contemplaremos, a seguir, o modo como a realidade portuguesa é

explicitada na primeira parte de Livro, para entendermos como, na segunda parte do

romance, o autor retoma esta realidade em forma de discurso ficcional no qual

reflete acerca do processo de poiesis.

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2.1 O contexto sociopolítico-econômico: a realidade portuguesa da ditadura ao

momento atual

Em Livro, podemos observar que Peixoto finca os pés na pós-

modernidade, mas não tira os olhos da tradição. O liame entre a ruralidade e o

cosmopolitismo gera reflexões sobre questões portuguesas, que detectam os

problemas de uma sociedade que se fez em detrimento da parte mais isolada da

população. Ao demarcar as características da sociedade rural tradicional – sem

exaltá-la ou defendê-la, mas desnudando seus mecanismos e suas falhas – e

estabelecer um elo entre a História recente de Portugal e a atualidade, o escritor

galveiense mergulha na sua experiência individual e, assim, atinge o universal.

Nesse aspecto, José Luís Peixoto aproxima-se do José Saramago da

primeira fase a medida que resgata eventos históricos de Portugal, porém

abordando-os de uma outra perspectiva, a perspectiva daqueles que,

historicamente, não têm voz: o homem do interior de Portugal, ainda ligado com a

tradição e muitas vezes alienado dos problemas políticos que acometem o país.

Além disso, assim como Saramago, Peixoto também “elege o imaginário como seu

guia no passado” (GOMES, 1990, p.103), sobretudo, no caso deste, por não ter

vivido a realidade histórica que ele aborda em seus romances, como, por vezes,

ocorreu com o Nobel português.

Ao retratar a vida campesina, Peixoto não deixa de lado elementos

importantes da cultura local, como: a solidariedade entre os moradores – quando

Josué cuida de Ilídio após este ter sido abandonado pela mãe, ou mesmo quando

Josué cuida do irmão deficiente de Galopim, após este ter sofrido um acidente; a

transmissão dos conhecimentos populares – Josué explica a Ilídio que vinagre é um

bom remédio para “as picadas de urtigas” (p.90)14; o legado de tradições – a

matança de porcos no barracão de palha, onde Ilídio, Galopim e Cosme, ainda

adolescentes, assistiam “à maneira como o Josué, com facas, desmanchou o porco”

(p.31); e o ensinamento de profissões – o trabalho de pedreiro que Josué ensinou a

Ilídio.

14 Todas as citações de Livro serão demarcadas apenas pela paginação.

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Todavia, os problemas típicos da vida em uma pequena vila também são

ressaltados: o falatório a respeito da vida alheia – os moradores da vila comentavam

as visitas frequentes da mãe do Ilídio15 ao padre: “Quando estava a uma boa

distância, as vozes das mulheres silvavam, como rastilhos de foguetes” (p.44); o

sexo antes do casamento e o aborto – Lubélia, quando menina, engravida do

namorado e os pais a trancam em casa para evitar a boataria e ela acaba

abortando; o alcoolismo – Aquele da Sorna bebia e era judiado pelos meninos na

rua; o abuso sexual e a pedofilia banalizados – Aquele da Sorna e o padre

abusavam da mãe de Ilídio desde a infância e ela acreditava ser natural ceder sem

contar a ninguém; os abusos da Igreja – além de abusar sexualmente da mãe de

Ilídio, que acabou recebendo a alcunha de “amiga do padre” (p.43), e de contratar

dois homens para que fizessem sexo com ela e assumissem a ‘culpa’ por sua

gravidez, ainda extorquia dinheiro do povo com a desculpa de que teria que fazer

obras desnecessárias na igreja, a mando de Salazar; assim como a questão da

emigração – Adelaide é mandada para a França e Ilídio vai atrás dela, como

veremos mais adiante.

Além de abordar esse viés da ruralidade, que direciona o olhar do

romance para a tradição, há também a abordagem do viés histórico, focado na

História recente do país. Analisaremos esta perspectiva utilizando como suporte os

aspectos expostos por Álvaro Cardoso Gomes, o qual traça um panorama das

características comuns abordadas por romances que retratam a Revolução dos

Cravos e suas consequências, como observamos na análise realizada no capítulo

anterior da nossa pesquisa.

Segundo Gomes (1993), um dos aspectos retratados nestes romances é

a opressão ditatorial, que

[...] se apresentará de vários modos, desde a menção a figuras, a fatos diretamente ligados ao salazarismo, à repressão política, ao mundo das prisões e interrogatórios, passando por sua manifestação no mundo estagnado, no qual se procura manter o status quo do domínio dos poderosos sobre os deserdados da sorte, até na sua referência mais subterrânea de um mundo arcaico, reacionário, mantido às custas de um propositado processo de negação do progresso ou mesmo de fixação de formas esclerosadas de educação e planejamento social. (GOMES, 1993, p.86)

15

Nessas ocasiões, o Ilídio ainda não era nascido, porém a personagem não tem nome, sendo referida pelo narrador como mãe do Ilídio.

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Em Livro, essa opressão manifesta-se na realidade dos moradores da

vila, os quais, por medo, viam-se obrigados a dar dinheiro às autoridades para a

construção de um posto de guarda, como se percebe na fala de Josué:

Têm miúfa. São uns gatos borrados. Se não derem para o posto, têm medo que os outros pensem que estão a esconder algum crime. Antes querem ficar sem comer do que arrancarem-lhes as unhas com um alicate. Fez uma pausa e falou ainda mais baixo. A culpa é do Salazar, esse filho de uma correnteza de putas, esse cão. (p.101-102)

Os moradores da vila são evidentemente divididos por sua condição

social, em espécies de castas que compõem a sociedade local. De acordo com

Gomes (1993, p.92), “Estas, além de provocarem diferenças sociais flagrantes, que

levam necessariamente à miséria dos explorados, também provocam a

compartimentação do olhar, ou seja, cada indivíduo, fechado no espaço de sua

casta, verá o mundo a partir da óptica da classe a que pertence”. Destacam-se, de

um lado, os pobres, oprimidos econômica e moralmente, e, de outro, os ricos e/ou

poderosos, como D. Milú e o padre opressor que servia ao regime salazarista. A

distinção de classes fica evidente na forma como a água é distribuída na vila:

Então pois, a água não era má. Já tinham chegado a essa conclusão muitas vezes, mas nem os que moravam perto se serviam dela. A casa de d. Milú tinha poço, claro, a restante vizinhança lançava-se em grandes voltas com carroças, carrinhos de mão ou carregavam bilhas à cabeça. De entre os que moravam perto, eram poucos os que tinham bestas. Havia também mulheres menos asseadas que não se incomodavam de lavar a roupa nos tanques. Mas só quem não tinha escrúpulos é que usava aquela água para beber. (p.42)

Esta sociedade visivelmente cindida é palco ainda de outra forma de

opressão: a sujeição da mulher diante de um mundo evidentemente patriarcal. É o

caso de Lubélia que, ao engravidar na juventude, foi escondida pelos pais do “povo

que tinha amargo e venenoso nos olhos” (p.59) e acabou abortando, provavelmente

por falta de condições dignas e de um tratamento médico necessário: “Então, houve

um momento em que toda a escuridão do quarto entrou dentro dela, encheu-a.

Envelheceu. Quando o seu corpo rejeitou o que poderia ser uma criança e todo o

seu sangue morto, a Lubélia ainda tinha dezassete anos, mas já era velha” (p.81).

Verifica-se, ainda, o caso da mãe de Ilídio. Desde criança, ela era molestada pelo

padre e pelo pai, Aquele da Sorna, que ela acreditava ser o pai do Ilídio:

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Quando aquilo começou a acontecer, ela não sabia do que se tratava, tinha onze anos e a mãe fazia-lhe pequenos vestidos para as colheres de pau. Na memória, essas imagens esfregavam-se umas de encontro às outras, eram minutos com o olhar perdido na abertura estática da janela, um apito agudo e permanente, tinham cores imprecisas. Mais tarde, mais velha, quando aquilo estava a acontecer, ela facilitava os movimentos do pai, conhecia-os. Os pensamentos eram já concretos, feitos de palavras, a temperatura era nítida, ela pensava em tantas coisas. A mãe estava viva e, depois, a mãe morreu, nunca contariam a ninguém, e ele não parou. Ficou enjoada, prenha, e ele não parou. (p.49-50)

Aos dezoito anos já possuía “má fama” (p.39) e o único morador da vila

que a respeitava era Josué. Ela decide, então, abandonar a vila e o filho e jamais

retorna.

Outro problema da sociedade portuguesa levantado pela narrativa é a

guerra colonial. Embora de forma breve, sem que tenha sido em algum momento

aprofundado, o tema revela-se na trajetória da personagem Cosme, amigo de Ilídio.

O jovem rapaz, convocado a contragosto pelo governo português para defender a

pátria em prol de “um ideal difuso: manter o Império, que, anacrônico em pleno

século XX, se esboroava pouco a pouco” (GOMES, 1993, p.97), revolta-se com o

recrutamento, fato que depois o motivará a emigrar com Ilídio para a França:

Eu sei que vou morrer na merda daquela guerra. Ou venho de lá sem uma perna, sem a pila. Eu sei, não me perguntes como é que eu sei. Aquilo não é para gajos como eu, vais ver. [...] Ah, é a pátria e não sei mais o quê. Então, e porque é que sou eu que tenho de amargar com essa merda? Não me dizes? Porque é que sou eu que tenho de ficar ali, esticado no caixão, a engolir a pátria à pazada?! (p.78)

Em Livro, José Luís Peixoto aborda ainda uma temática não explorada

diretamente por Gomes (1993): a emigração portuguesa para a França durante a

ditadura salazarista. Adelaide, forçada pela tia Lubélia, segue em uma viagem

clandestina rumo à República Francesa. A seguir, Ilídio vai atrás do seu grande

amor, acompanhado pelo amigo Cosme, estabelecendo a saga de sofrimento,

desencontros e reencontros, que centraliza o tema da primeira parte do romance. Ao

tratar desta temática, Peixoto dá voz a um grupo pouco representado na literatura

portuguesa: os emigrantes. Embora Peixoto não aborde a emigração diretamente

sob a ótica político-econômica que levou, de fato, milhares de portugueses a

emigrar, a fugir de um país sem perspectiva de futuro para os jovens e assolado por

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uma cruel ditadura, é possível afirmar que ele versa sob esta temática. Se, por um

lado, Adelaide e Ilídio saem do país por motivos alheios à questão política, por outro,

Cosme sai com medo de morrer na Guerra Colonial, e Constantino representa os

expatriados políticos da ditadura salazarista.

Independentemente do motivo que levou essas personagens ao degredo,

todas elas acabam refletindo os problemas comuns aos exilados: as dificuldades

enfrentadas por Adelaide, Ilídio e Cosme na travessia: “[...] tiveram de reaprender a

andar. Cada um escolheu uma direção torta para avançar sem destino. Tinham

muita fome, mas não era nisso que pensavam. Os seus pensamentos dirigiam-se

com a mesma falta de orientação e com a mesma hesitação gaga de seus passos”

(p.109); a instalação deles em bairros da periferia, chamados pelos franceses de

bidonville ou de bairro de lata, pelos portugueses, morando de favor e trabalhando

em subempregos: “Aos poucos o bidonville de Saint-Denis anoitecia finalmente.

Essa palavra, bidonville, era conhecida por Adelaide e por toda a gente, mas

ninguém a utilizava” (p.147); os reveses decorrentes da diferença da língua e da

cultura: “Na França, a Adelaide tinha-se admirado com muito” (p.145); as

preocupações políticas de Constantino com Portugal: “[...] o Constantino entrou

esbaforido a dizer que estava a rebentar um golpe em Lisboa [...], dizia que nunca

se haveriam de esquecer daquele dia” (p.217-218); por fim, ele enlouquece ao fim

da vida e vive o resto dos seus dias acreditando ser Lenine: “[...] era o próprio

Lenine. Nada menos, Vladimir Ilitch Oulianov” (p.236); além da dificuldade de viver o

drama dos retornados (não se sentem como parte de um lugar que antes

consideravam como sendo seu, como acontece a Adelaide): “Faltava-lhe Paris,

faltava-lhe o Natal a piscar nas avenidas, faltavam-lhe as avenidas, carregar sacos

no Champs-Élysées” (p.238).

Mesmo quando Adelaide deseja, de certa forma, reintegrar-se à cultura de

seu país, seus planos são frustrados. Ao retornar à vila, ela compra a casa que fora

de d. Milú e revela ao filho “a intenção de mandar forrar a casa de azulejos” (p.245),

em uma clara referência à tradição portuguesa. Porém, seu desejo é coibido por

uma espécie de lei que desautorizava o revestimento da casa com a alegação de

que desfeavam a rua. A padronização da vila, obedecendo a um modelo europeu e

depreciando o tradicional gosto português, é uma metáfora à ‘descaracterização do

povo’. Como explica Álvaro Cardoso Gomes:

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a descaracterização também se oferece ao nível da perda da identidade, ao nível da diferença entre gerações e entre o passado e o presente. O passado, no instante em que é confrontado com o presente, ou se solidifica e teimosamente se mantém, ou cede terreno ao presente, mas sempre deixando suas marcas. Desse confronto é que surge a descaracterização das novas gerações... (GOMES, 1993, p. 89-90)

Consequentemente, resultando na formação de uma ‘geração sem causa’.

Além do que ocorre à Adelaide, que sente falta da vida cosmopolita de

Paris, mas quer sentir-se portuguesa, seu filho, Livro, também convive com a

sensação de não-pertencimento a qualquer local onde se encontre. Livro,

representante maior da ‘geração sem causa’ nesse romance, volta com sua mãe a

Portugal, em busca de autoconhecimento, mas não será na vila que a personagem

alcançará sua autognose. Como ocorre com as personagens da literatura

contemporânea, não mais alcançam a plenitude ao concluir seu trajeto de aventuras,

pois não há aventura a ser vivida. “O herói, o explorador da modernidade,

sucedâneo degradado daquele da antiguidade, transformou-se agora no rotineiro

cidadão, que cumpre roteiros sem perigos” (GOMES, 1993, p.90); o guerreiro perdeu

lugar na literatura para o homem comum, cujo drama não é mais a busca pela

salvação da humanidade, mas a tentativa de salvar a si mesmo.

Portanto, Livro é um romance contemporâneo que resgata elementos da

tradição portuguesa para firmar-se na pós-modernidade. Como veremos, trata-se um

romance que, ao olhar para si, acaba por voltar-se para importantes momentos da

história de Portugal.

2.2 As tendências pós-modernas em Livro

Apresentaremos, agora, tendências empregadas por José Luís Peixoto

em Livro para demonstrar como este romance se inscreve no panorama do romance

pós-moderno português. É importante salientar que não pretendemos simplesmente

rotular o romance como uma narrativa pós-moderna, mas expor as vertentes típicas

deste período para revelarmos os mecanismos que levam esta obra a romper com

um conceito tradicional de romance. Para isso, tomaremos como referência a

seguinte definição de romance tradicional, do crítico literário Anatol Rosenfeld:

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No romance do século passado [XIX] a perspectiva, a plasticidade das personagens e a ilusão da realidade foram criadas por uma espécie de truque: o romancista, onisciente, adotando por assim dizer uma visão estereoscópica ou tridimensional, enfocava as suas personagens logo de dentro, logo de fora, conhecia-lhes o futuro e o passado empíricos, biográficos, situava-as num ambiente de cujo plano de fundo se destacavam com nitidez, realçava-lhes a verossimilhança (aparência da verdade) conduzindo-as ao longo de um enredo cronológico (retrocessos no tempo eram marcados como tais), de encadeamento causal. O narrador, mesmo quando não se manifestava de um modo acentuado, desaparecendo por trás da obra como se esta se narrasse sozinha, impunha-lhe uma ordem que se assemelhava à projeção a partir de uma consciência situada fora ou acima do contexto narrativo. Por mais fictício que seja o imperfeito da narração, esta voz gramatical revela distância e indica que o narrador não faz parte dos sucessos, ainda que se apresente como Eu que alega narrar as próprias aventuras: o Eu que narra já se distanciou o suficiente do Eu passado (narrado) para ter a visão perspectívica. O Eu passado já se tornou objeto para o Eu narrador. (ROSENFELD, 2006, p.91-92)

Uma das tendências que podemos notar em Livro é a “mistura de gêneros

e a consequente fluidez genológica”, conforme proposto por Arnaut (2002). Livro

apresenta uma primeira parte que, aparentemente, condiz com a formação clássica

do romance, com contornos realistas. Porém, os traços realistas da narrativa são

frequentemente cindidos por trechos excessivamente poéticos ou por fragmentos

dotados de teor fantástico.

Por meio de metáforas, que formam ricas imagens, o narrador imprime

uma linguagem sensível e extremamente lírica à sua obra, como podemos ver no

exemplo da descrição do curral onde Ilídio, ainda adolescente, está conversando

com Cosme e Galopim:

Entrava uma estrada de luz pela porta aberta do barracão da palha. A tapada estava cheia de janeiro. Sem chuva, só a ameaça, o frio crescia dentro das pedras. Também as árvores eram feitas de frio até ao momento em que ardiam no lume e subiam pela chaminé de todas as casas da vila. A tapada cheirava a janeiro. (p.32)

O autor utiliza também linguagem poética para elaborar, por exemplo,

uma teoria que faz alusão ao pós-25 de abril. Utilizando a imagem da primavera e do

inverno nesta teoria incorporada ao seu texto, a referência ao período posterior à

Revolução dos Cravos e à ditadura salazarista fica implícita:

Uma breve teoria: há certos movimentos que apenas são possíveis depois do início da primavera. Durante a invernia, o corpo esquece-os, mingua, endurece como as árvores. Em maio, o corpo recorda esses movimentos, julga reaprendê-los e, ao fazê-lo, redescobre a sua verdadeira natureza. É

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por isso que se fala de renascer na primavera, é por isso que as pessoas se apaixonam e é por isso que crescem as plantas. Esses movimentos são simples, todas as pessoas sabem fazer. Ao serem empreendidos, dão lugar a multidões desgovernadas de sequências que, no fim da sua ação, acendem o sol. (p.13)

Além do gênero lírico, Peixoto explora ainda, em momentos pontuais do

romance, a vertente fantástica. Segundo Todorov (2012, p.31), “O fantástico é a

hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um

acontecimento sobrenatural”. Na primeira parte de Livro, em meio a fatos

verossímeis, o narrador relata acontecimentos sobrenaturais. É o que acontece, por

exemplo, com a mulher que transportava os expatriados de Portugal até a França.

Em determinada altura da trajetória de Adelaide, a mulher aproxima-se do grupo,

“vinda da escuridão, aflita, as saias a restolharem, a respiração a entrar pelo meio

das palavras, a parti-las” (p.97) e consola-se com o marido. Pouco depois, sob

alegação de um ataque de lobos, os migrantes deparam-se com um dos seus

companheiros de viagem morto:

No chão, destroço, atrás da sombra de uma rocha, estava o corpo de um dos homens que viera na parte de trás da caminhoneta. Tinha o rosto e os olhos atravessados por riscos de garras, tinha a pele rasgada por vincos fundos, cravados na carne. Tinha o rosto esfarrapado. Faltava-lhe um dos lados do pescoço, comido, arrancado à dentada. Estava branco, como se não fosse feito de pessoa, como se fosse uma forma de areia fina. Não escorria sangue das feridas. Estava seco, gelado. (p.98)

Posteriormente, a mulher acompanha o degredo de Ilídio e Cosme e,

durante o traslado, metamorfoseia-se e ataca Ilídio, que lhe enfia o pombo dado por

Galopim na boca, salvando-se da mulher-lobo.

Adiante, quando Ilídio e Cosme chegam à França, não têm dinheiro

suficiente para comprar o bilhete, mas surge um homem de “gabardina, chapéu e

uma mala enorme” (p.136) e oferece para pagar-lhes a passagem de trem. Eles vão

de primeira classe com o homem que, a certa altura, diz que vai ao lavabo e

desaparece, deixando sua grande mala. Cosme e Ilídio procuram-no por todo o

trem, mas não o encontram; ninguém no trem tinha visto o tal sujeito, e são

obrigados a descer, levando consigo a mala do homem misterioso. Resolvem abri-la

e “Dentro da mala, desarticulado, estava o corpo do homem, morto, dobrado,

ensopado por uma pasta de sangue, com os braços e as pernas sem jeito, a

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traçarem ângulos retos, com um olhar cego e a pele do rosto vincada pelo interior da

mala” (p.143).

Já na segunda parte, o texto ficcional ganha caráter experimental,

tornando-se uma espécie de romance ensaístico, em que o narrador aborda

diferentes assuntos, elaborando teses diversas – sobretudo acerca do próprio

romance, o que evidencia o caráter metaficcional do texto, o qual discutiremos

adiante. Se considerarmos ensaio como um texto que “desenvolve os argumentos

ensaisticamente, isto é, experimentando, questionando, refletindo, criticando o

próprio objeto de estudo. É um gênero textual essencialmente crítico e

interpretativo”16, observaremos que a segunda parte do romance é um ensaio sobre

o próprio romance. Para caracterizar este gênero textual, notamos que o autor

utiliza-se de paratextos, como notas de rodapé, teorias para fundamentar sua crítica,

citações de outros textos, etc. É o caso deste exemplo, em que o autor discute,

numa nota de rodapé, sobre a real dimensão das coisas:

No passado, em relação a temas diversos, custou-me aceitar que a maneira como eu via isto ou aquilo pudesse estar longe da real imagem das coisas (disto, daquilo). Se esta pessoa era outra pessoa, se aquela cor era outra cor, tinha que aprender tudo outra vez. Tinha de mudar a percepção de tudo em função desse dado novo. Tudo está ligado a tudo. Esta pessoa não existe independentemente das outras pessoas, aquela cor não existe independentemente das outras cores. As pessoas e as cores não existem independentes de todos os outros elementos. Hoje, também me custa aceitar que possa ver isto ou aquilo de forma imperfeita, mas considero essa possibilidade. (p.247)

Ou colocando em prática teses elaboradas por outros, como é o caso do

método N+7 da OuLiPo (Oficina de Literatura Potencial)17 – o qual consiste em criar

um texto substituindo todo substantivo pelo sétimo que aparecer após ele no

dicionário e que foi elaborado por um grupo que propõe a libertação da literatura por

meio de experimentos diversos:

N+7= A cascavel estava vazia quando saí do camarim. N+6= A cascata estava vazia quando saí da camarata. N+5= O cascalho estava vazio quando saí do camarão. N+4= A casca estava vazia quando saí da câmara.

16 PAVIANI, Jayme. “O ensaio como gênero texual”. Disponível em: <http://www.ucs.br/ucs/tplSiget/extensao/agenda/eventos/vsiget/portugues/anais/textos_autor/arquivos/o_ensaio_como_genero_textual.pdf>. 17 No original: Ouvroir de Littérature Potentielle.

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N+3= o casamento estava vazio quando saí do camaleão. N+2= O casal estava vazio quando saí do camafeu. N+1= A casaca estava vazia quando saí da camada. N+0= A casa estava vazia quando saí da cama. (p.259)

Assim, dentro do próprio romance, surge “uma vertente ensaística (no

caso sobre o próprio processo de escrita) que, mais uma vez, através de processos

metaficcionais, diluirá, implodindo (e entre outras), as fronteiras canonicamente

apontadas aos dois gêneros em causa (ou seja, romance e ensaio)” (ARNAUT,

2002, p.19).

A metaficção é, portanto, mais uma tendência pós-moderna – no caso da

narrativa de Peixoto, a de maior destaque –, que iremos analisar. Em Livro, ela

ganha força na segunda parte do romance, que, como dissemos, assume contornos

ensaísticos, permitindo a elaboração de uma espécie de estudo acerca da própria

narrativa, como veremos a seguir.

2.3 O aspecto metaficcional: pós-modernismo em evidência

Ao adentrarmos na segunda parte de Livro, a personagem-título nos

(re)apresenta a obra sob uma nova ótica: fica claro, a partir daí, que estamos diante

de uma metaficção. Linda Hutcheon (1980, p.1) define metaficção como sendo

“ficção sobre ficção – isto é, ficção que inclui dentro de si mesma um comentário

sobre sua própria narrativa e/ou identidade linguística”18. Assim, neste tipo de

romance, a estrutura narcisista do texto fica em evidência, já que o processo de

escrita textual se torna visível e, portanto, é mais explorado do que o produto final.

Logo, podemos observar que, na primeira parte, o texto tinha estrutura

aparentemente realista, ou, conforme explica a crítica canadense Linda Hutcheon

(1980), seguia o conceito tradicional de literatura, à qual interessa a mimese do

produto. Já na segunda parte, o narrador leva-nos a desvendar o avesso da

tessitura narrativa de modo mais explícito, desnudando o processo de escrita do

romance e voltando-se, portanto, para a mimese do processo.

Embora haja uma diferente relação com o real, os textos metaficcionais

não excluem a realidade. Patricia Waugh (2003, p.40) ressalta que “A metaficção

atua por meio da problematização e não da destruição do conceito de realidade. Ela

18 No original: “[Metaficcion [...] is] fiction about fiction – that is, fiction, that includes whiting itself a commentary its own narrative and/or linguistic identity”. (tradução nossa)

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depende da construção regular e da subversão de regras e sistemas”19. No texto

metaficcional, a relação com o real se dá pela via discursiva, diferentemente do que

acontecia no romance tradicional, que visava ao espelhamento do real, ou seja, a

relação entre o real e a arte agora reside no nível do processo, isto é, na explicitação

da forma de contar a história, e não no produto (a história contada). O condutor

dessa mudança é o leitor, conforme elucida Hutcheon:

[...] em toda ficção, a linguagem é representacional, mas de um outro mundo ficcional, um completo e coerente “heterocosmo” criado pelos referentes fictícios dos signos. Na metaficção, no entanto, este fato torna-se explícito e, enquanto lê, o leitor vive em um mundo que é forçado a aceitar como ficcional. Contudo, paradoxalmente, o texto também requer que ele participe, que ele atue intelectualmente, imaginativamente, e afetivamente em sua co-criação. Esta força de atração recíproca é o paradoxo do leitor. O paradoxo do próprio texto é que ele é, ao mesmo tempo, narcisisticamente auto-reflexivo e ainda focado no exterior, orientado ao leitor.20 (HUTCHEON, 1984, p.7)

Logo, se na narrativa clássica, o leitor, excessivamente familiarizado com

os elementos textuais, não atenta para a construção ficcional, na narrativa narcisista

ele é, a todo o tempo, levado a observar o processo. Há duas formas distintas,

segundo Hutcheon (1984), de desvendar os procedimentos de escrita metaficcional:

a ‘explicitamente narcisista’ e a ‘implicitamente narcisista’21. Ela explica que,

enquanto nos textos implicitamente narcisistas o processo de “auto-revelação” é

internalizado, sendo o texto auto-reflexivo, mas não necessariamente

autoconsciente; nos textos explicitamente narcisistas, o texto é autoconsciente de

seu processo. Ambos os tipos podem manifestar-se em dois planos: diegético (ou

seja, no plano da tematização da narrativa) ou linguístico.

Apesar de Livro ser uma narrativa metaficcional, não é possível

“enquadrá-la” em uma dessas categorias. Ao revelar seu processo narrativo, a obra

19 No original: “Metafiction functions through the problematization rather than the destruction of the concept of ‘reality’. It depends on the regular construction and subversion of rules and systems.” (tradução nossa) 20 No original: “(…) in all fictions, language is representational, but of a fictional “other” world, a complete and coherent “heterocosm” created by the fictive referents of the signs. In metafiction, however, this fact is made explicit and, while he reads, the reader lives in a world which he is forced to acknowledge as a fictional. However, paradoxically the text also demands that he participate, that he engage himself intellectually, imaginatively, and affectively in its co-creation. This two-way pull is the paradox of reader. The text´s own paradox is that it is both narcissistically self-reflexive and yet focused outward, oriented toward the reader. (tradução nossa) 21 Optamos por utilizar a tradução dos termos criados por Linda Hutcheon: “overtly narcissistic” e “covertly narcissistic”.

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peixotiana utiliza-se das mais diversas estratégias, extrapolando as subdivisões de

Hutcheon.

Ao iniciar a segunda parte do texto, deparamo-nos com uma espécie de

questionário ao leitor:

Indique os seguintes dados: (1) Nome da sua mãe. (2) Autor/a mais antigo que já leu. (3) Título do último livro que terminou de ler (sem contar com este, que ainda não terminou de ler). (4) Primeira coisa que fez hoje ao acordar (infinitivo). (5) Cor das cuecas que está a usar neste momento. (6) Número do seu bilhete de identidade. (7) Aquilo que vai fazer na próxima pausa da leitura deste livro (infinitivo). (8) Área da sua casa (em metros quadrados). (9) Erro que mais lamenta ter cometido (infinitivo). (10) Lugar onde está (plural). (11) Adjetivo que melhor caracteriza o penteado que tem neste momento. (12) Número de vezes que lava os dentes por semana. (p.221)

e, logo depois, com um texto com lacunas para que o leitor insira ali suas respostas

pessoais:

Preencha os espaços em branco com as respostas anteriores: Se algum dia tiver uma filha, hei-de chamar-lhe _____(1), como a minha avó. Não hei de obriga-la a ler _____(2), lerá apenas aquilo que escolher. Se encontrar um exemplar de _____(3) na sua mesinha-de-cabeceira, saberei que lhe transmiti a procura, o desejo de compreender o mundo. À margem disso, havemos de _____(4) juntos, assistiremos ao _____(5) do pôr do sol e hei-de dizer-lhe _____(6) vezes que a adoro. Hei-de dizer-lhe: _____(1), vem _____(7) com o pai. Ela há-de chamar-me pai. Dirá: já vou, pai. E, quando chegar, terei um sorriso de ____(8) a espera-la. Noutro dia, se ela me disser que teve vontade de _____(9), não irei recrimina-la, irei explicar-lhe que também fui assim. Estive exatamente no mesmo lugar do que ela e estive noutros lugares, em topos de montanhas, em vales, em _____(10), e saberei respeitar todos os lugares onde estará sem mim. Levar-lhe-ei _____(12) rosas no aniversário e uma travessa de arroz doce, onde escreverei com canela: _____(1) e Livro. (p.223-224)

O leitor participa da construção textual por meio de uma espécie de jogo,

que permite a ele e ao narrador compartilharem experiências semelhantes, como a

última leitura realizada ou o número de vezes que escovam os dentes. Neste caso,

portanto, trata-se de uma estratégia implicitamente narcisista, pois, inicialmente, o

leitor não tem consciência do objetivo do jogo e, se o leitor não for atento, mesmo

após findar a leitura da obra, não perceberá que este é o primeiro passo que ele dá

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para adentrar na segunda parte do romance. Esta primeira experiência se dá no

nível implícito, em que “a autorreflexão é implícita; isso quer dizer que ela está

estruturada, internalizada no texto. Como resultado, ela não é necessariamente

autoconsciente”22 (HUTCHEON, 1984, p.31).

Adiante, o narcisismo revela-se, tornando-se explícito à medida que o

texto vai construindo sua autocrítica: constrói-se uma critica à estrutura da trama,

aponta-se para a debilidade e a banalidade do enredo e ainda se recriminam certas

partes da história – o episódio em que a mulher-lobo ataca Ilídio durante o percurso

de Portugal a França e o episódio do português de gabardina e chapéu que ajuda

Ilídio e Cosme a pagarem as passagens de trem na França, que nos permite

suspeitar que o livro que está sendo lido por Livro é o mesmo que está sendo lido

por nós –, julgando-as como incoerentes. Neste caso, o narrador estabelece uma

autocrítica e ironiza seu próprio projeto de escrita, tornando a autorreflexão tema do

seu próprio romance. Desta forma, o jogo estabelecido com o leitor é evidenciado,

apresentado de forma explícita, conforme explica Hutcheon:

Romances explicitamente narcisistas colocam a ficcionalidade, a estrutura ou a linguagem no centro de seu conteúdo. Eles jogam de forma diferente com a organização e permitem (ou forçam) o leitor a aprender como ele compreende este mundo literário (se não seu próprio mundo real).23 (HUTCHEON, 1984, p.29)

Estes exemplos mostram que não há, na narrativa de Peixoto, como

caracterizar integralmente o texto como explicitamente narcisista ou implicitamente

narcisista. O texto extrapola tais classificações. Por esse motivo, não cabe aqui

rotular cada uma das estratégias peixotianas como implícitas ou explícitas, mas

mostrar como essas estratégias contribuem para revelar uma nova forma de leitura

deste romance.

Ainda na primeira parte de Livro, o leitor mais atento pode notar que o

texto já comenta sua própria linguagem. Em um trecho que trata do conhecimento

da velha Lubélia a respeito do namoro de Adelaide e Ilídio, apreende-se a ideia de

que, em um texto, a forma pode ser mais importante do que o conteúdo:

22 No original: [On this covert level,] the self-reflection is implicit; that is to say, it is structuralized, internalized within the text. As a result, it is not necessarily self-conscious. 23 No original: Overtly narcissistic novels place fictionality, structure, or language at their content's core. They play with different ways of ordering, and allow (or force) the reader to learn how he makes sense of this literary world (if not his own real one).

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Nessas conversas, sobre o outono ou sobre roupa interior, aquilo que importava não era o assunto, tesouras ou fantasmas, mas a forma. Se estivessem a falar de bolos, Ilídio podia ser, por exemplo, o fermento e a Adelaide podia ser, por exemplo, a farinha. Depois, era o trabalho de encaixar duas lógicas num único discurso. (p.82)

Não há, porém, muitas estratégias metaficcionais utilizadas na primeira

parte do romance. A maioria está centrada na segunda parte de Livro, o que se

justifica por ser esta a parte “experimental” da narrativa. Notemos que, se aquela

parte tem um enredo linear, com feição majoritariamente realista, nesta, toda vez

que a trama parece ganhar fôlego, seguindo determinada sequência, o narrador

interrompe a narrativa, seja utilizando expedientes da metalinguagem, ou da

intertextualidade, ou paratextos, ou artifícios gráficos, ou mesmo citações fora do

contexto que obrigam o leitor a interromper o deleite da leitura e a reconhecer o

texto como ficcional.

Em determinada altura, Livro está contando sobre como era sua relação

com Cosme e interrompe brevemente a história, lançando mão de um recurso

metaficcional:

Chorava. Os seus olhos eram o único ponto do rosto que não tinham sido queimado pelo tempo, enrugado pelo sol. Acertava a boina na cabeça para disfarçar o choro. Dizia-me que eu era tão parecido com o Ilídio quando era pequeno. Também ficávamos em silêncio. Às vezes, descuidava-se e continuava impávido. Como não ouvia, julgava que eu também não tinha ouvido. Grande parte deste livro que estás a ler foi escrito com a soma que conservo desses agostos. O Cosme, principalmente, gostava de falar.24 (p.253)

Noutro momento, ele cita Voltaire numa clara referência intertextual:

[...] Voltaire referia-se a Shakespeare: “c´était un sauvage qui avait de l’imagination; il a fait même quelques vers heureux, mais ses pièces ne peuvent plaire qu’a Londres et au Canada”. Por todas as razões, estou muito mais próximo do espírito de Voltaire do que ele da grandeza de Shakespeare. (p.243)

Logo nas primeiras páginas da segunda parte, ele utiliza-se de paratexto

– especificamente as notas de rodapé – e segue com elas até quase o fim do

romance, do que se constitui exemplo: “<We dance around in a ring and suppose. / 24 Grifos nossos.

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But the secret sits in the middle and knows> Robert Frost, The Witness Tree.”

(p.258).

Em novo ponto, no próprio Livro, encontramos palavras circuladas:

“Mesmo depois de acordar, podemos acordar de novo [...] começou a falar [...] És

servido ? ” (p.244), que remetem a círculos mencionados por Adelaide em seu livro,

ainda na primeira parte do romance: “Por baixo, de novo, havia círculos à volta das

palavras: podemos, falar. E havia um círculo à volta de um ponto de interrogação”

(p.160).

Ainda em relação às estratégias metaficcionais utilizadas em Livro,

podemos notar que citações completamente fora do contexto são inseridas no corpo

do texto, ainda com a intenção de atentar o leitor para a ficcionalidade do texto que

está sendo lido. É o que ocorre quando Livro conta que, aos dezoito anos, pela

primeira vez, ele não queria acompanhar Cosme e a família nas viagens de férias a

Portugal:

[...] O Cosme e a mulher souberam numa visita de sábado. Calaram-se porque perceberam que o tempo estava a passar. As trigêmeas invejaram-me. Se pudessem, também não iriam. Sylvia Plath nasceu no dia em que Dylan Thomas fez dezoito anos, a 27 de outubro de 1932.25 (p. 256)

Além desses mecanismos metaficcionais, percebe-se, na escrita do

romance, que a metaficção interfere na estrutura das instâncias narrativas do

romance, isto é, revela que as categorias romanescas – espaço, tempo,

personagem, narrador, autor e leitor – adquirem novos contornos, passam a exercer

novas funções, atribuindo novas características a esse romance.

2.4 A (des)construção das instâncias narrativas

É possível observar, em Livro, a modificação da estrutura composicional

das categorias narrativas, se compararmos as duas partes do romance. Na primeira

parte, de formação supostamente realista, notamos instâncias narrativas que,

aparentemente, seguem o padrão tradicional, enquanto, na segunda parte, as

alterações sofridas por algumas dessas instâncias tornam-se mais evidentes.

25 Grifos nossos.

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Espaço, tempo, personagens e narrador são algumas das instâncias que são

definidas no início do livro e demarcam blocos textuais (capítulos ou subcapítulos),

porém perdem seus contornos na segunda parte.

A história tem início em 1948, quando Ilídio, ainda criança, é abandonado

por sua mãe, aos cuidados de Josué, numa vila inominada no interior de Portugal. A

relação das personagens com a vila – microcosmo de Portugal e, por conseguinte,

metaforicamente, a casa das personagens – é extremamente importante, pois lhes

confere identidade. Conforme Bachelard:

[...] a casa é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. [...] O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que não raro interferem, às vezes se opondo, às vezes excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “jogado no mundo”, como professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço da casa. (BACHELARD, 1993, p.26)

Há um forte vínculo identitário entre os moradores e o espaço da vila,

marcado por alguns elementos locais que reforçam a noção de integração com o

lugar, como a Fonte onde Ilídio é deixado pela mãe, a Casa do Povo onde as

pessoas se divertem, a taberna e a barbearia onde os homens conversavam sobre

os acontecimentos locais.

Já na segunda parte do romance, o narrador-personagem Livro, nascido

na França, porém filho de portugueses, revela sua sensação de não pertencimento,

levando ao extremo o sentimento modernista de ser “Estrangeiro aqui como em toda

parte” (PESSOA, 1999, p.148). Assim como acontece com Adelaide, Livro também

faz parte da ‘geração sem causa’ e, como característica, é dominado por essa

sensação de não-pertencimento à sua própria pátria, Paris, nem à pátria de seus

pais, a vila portuguesa.

Inferimos, então, que já não é possível a essa personagem se identificar

com um espaço, apontá-lo como seu, pois, para o pós-modernismo, temos esta

espécie de “não-lugar” como espaço romanesco, em contraponto ao “lugar” como

espaço delimitado na literatura tradicional: “se um lugar pode ser definido como

identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode ser assim caracterizado

será definido como um não-lugar” (ALGÉ, 1994, p.73). Esta sensação de não

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pertencimento é justamente o que caracteriza a identidade – agora globalizada – do

sujeito contemporâneo e, também, do português. Povo historicamente marcado pelo

vínculo arraigado com a pátria, enfim assume nova postura diante deste novo

momento histórico-social, conforme assegura Peixoto:

No que toca ao momento da sociedade portuguesa, há muitos pontos em que este romance ganha atualidade. Não apenas pelo facto de a emigração voltar a ser uma realidade, com muitos portugueses a irem viver para outros países, nomeadamente para o Brasil, mas também porque me parece que é muito importante que, hoje, se faça uma reflexão sobre o Portugal recente e a sua identidade.26

O tempo também sofre significativa modificação. Se, na primeira parte, ele

é constantemente demarcado, iniciando-se no ano de 1948 e terminando em 27 de

abril de 1974, determinando uma narrativa linear e lenta, com fatos

cronologicamente organizados (embora, em diversos momentos, a narrativa recorra

a artifícios da memória de algumas personagens), na segunda parte o tempo se

liquefaz. Observemos que o narrador/ protagonista da segunda parte do romance

afirma ter nascido ao final da segunda parte, exatamente em 27 de abril de 1974. Na

segunda parte, Livro assumirá a posição de narrador do romance (não apenas desta

segunda parte, mas do todo) e, como tal, ele questiona a falta de experiência para

narrar os acontecimentos que precedem seu nascimento. Em certa altura ele afirma:

Desde a perspectiva da minha leitura pessoal, o único momento em que o romance denota o uso da experiência é num episódio, logo no segundo capítulo, passado num barracão de palha (página 31). Se posso garantir que utilizou a sua memória é porque eu, com onze ou doze anos, também estava lá. Alterou alguns pormenores mínimos... (p.242)27

Peixoto vai além da ruptura com a linearidade e com a noção de

causalidade; ele transgride a lógica temporal, apresentando uma cena em que uma

personagem está presente, cena, no entanto, ocorrida trinta e cinco anos antes do

seu nascimento.

O autor afirma em entrevista que “O tempo é parte da matéria que

constitui a natureza mais fundamental de qualquer narrativa” e acrescenta: “O tempo

26 Entrevista concedida ao Suplemento Pernambuco, em 06/03/2015. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/component/content/article.html?id=593>. 27 Grifos nossos.

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depende de mecanismos que são altamente não lineares, como a memória”28. É

justamente o tempo da memória que predomina em Livro: memória daquilo que se

viveu e, também, do que não foi vivido. Na segunda parte, a falta de vivência em

relação ao que foi narrado na primeira parte é alvo de autocrítica do narrador, mas,

se “Por um lado, não tinha o direito, não era uma memória que lhe pertencesse em

exclusivo; por outro lado, na linguagem romanesca, a experiência deve ser matéria

de transfiguração e nunca uma mera enumeração literal” (p.242). A memória

também está presente na primeira parte do romance. Por exemplo, quando Ilídio

ouve um comboio, ele é levado ao tempo de sua infância, quando ouvia sua mãe

trabalhar na máquina de costura:

Por fim, a explicação: quando era mais novo do que a sua memória, três anos, quatro anos, a mãe do Ilídio sentava-se à máquina de costura. Do balanço dos seus pés, do círculo que a sua mão seguia, nascia um estrondo repetido. Nessas horas, a mãe escolhia uma voz que o descansava, uma voz feita dos panos mais macios, e dizia-lhe que aquele era o barulho dos comboios, que não devia ter medo. (p.103)

Ainda na primeira parte, quando Ilídio retorna a Portugal, já residindo na

França, rememora a juventude:

Nessa noite, adormeceu na sua cama, o corpo envolto pelos lençóis frescos. Na escuridão, sob os ruídos que o Josué ainda experimentava depois das paredes, o quarto regressava, trazia consigo o tempo. O Ilídio sentiu-se com outra idade, a França pareceu-lhe impossível. Foi assim que o rosto da Adelaide lhe acertou, a memória completa de como, ali, tinha sonhado com ela. (p.181-182)

Outra alteração expressiva ocorre com as personagens. Na primeira parte

do romance, a maioria delas tem contornos bem delimitados, é definida por suas

características físicas e/ou psicológicas e suas atitudes contribuem para dar noção

de causa e efeito aos fatos narrados. Ilídio, por exemplo, que é o protagonista da

primeira parte, é abandonado pela mãe, sofre com isso e tenta “apagar” essa

memória da sua vida, cresce criado por Josué e, na adolescência, conhece e

apaixona-se por Adelaide. Exerce a função do típico herói, emigrando para a França

atrás do seu grande amor, porém, quando a reencontra, ela está casada com outro.

Por volta dos sessenta anos de idade, conseguirá viver seu amor. De acordo com a

28 Entrevista concedida ao Suplemento Pernambuco, em 06/03/2015. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/component/content/article.html?id=593>.

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autocrítica que o próprio texto faz na segunda parte, as personagens da primeira

parte do romance eram incongruentes, inconsistentes, simples, não possuíam

riqueza subjetiva, eram títeres pouco expressivos.

Mesmo quando se trata da mulher-lobo, personagem estranha ao padrão

narrativo estabelecido na obra de Peixoto, as características são bem definidas e

seu aparecimento no meio da viagem justifica a dificuldade de Ilídio e Cosme em

concluir a viagem após terem fugido sem suas malas.

Então, Ilídio viu-a bem. Tinha o rosto incendiado, feito de inferno. Os seus olhos eram portões para outro lugar. Os lábios da mulher afastaram-se sob o tamanho dos dentes, subitamente enormes e afiados. Levantou as mãos devagar e, na ponta dos dedos, tinha garras sujas, grossas. Sem que existisse um instante entre esse e o seguinte, a mulher lançou-se inteira sobre o Ilídio. Sentiu o corpo da mulher, duro e pesado sobre o seu, o estrafego da luta. Num gesto que não antecipou, espetou-lhe o pombo na boca aberta. Teve tempo de vê-la a desfazer o animal, os movimentos aflitos das asas, morrentes, e teve tempo de sair a correr. (p.110-111)

Em contrapartida, na segunda parte de Livro, o narrador-personagem

assume status diferenciado, visto que, “a consciência da personagem passa a

manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato presente, como um Eu que

ocupa totalmente a tela imaginária do romance”29 (ROSENFELD, 1996, p.84).

O protagonista da segunda parte emerge como uma voz no romance,

perde a imagem de mera cópia dos seres humanos e ganha estatuto de

possibilidade, de símbolo e mesmo de alegoria do homem (GOMES, 1993). Livro,

aos trinta anos, ainda mora com a mãe, embora seja um ávido leitor, não terminou

seus estudos no mestrado em Letras da Sorbone e admite que Constantino está

certo ao acusá-lo de não ter uma direção:

Nunca acabei o mestrado, mas continuei a sair de manhã e a chegar à noite. O Constantino não fez perguntas mas, ao fim de anos, era pouco provável que tivesse dúvidas. Desde o início que sabia que eu só me tinha inscrito no mestrado porque, depois do curso, não me imaginava a procurar um emprego. Tinha medo. Falta-te uma direção. O mais humilhante era que ele sabia o que estava a dizer. (p.266)

Em oposição a Ilídio, Livro é desprovido de traços individuais, como

vimos, destituído de uma identidade que o vincule a determinada cultura, sendo

29 Grifos do autor.

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retrato do homem contemporâneo – globalizado, esvaziado de unidade –, sente-se

esfacelado, fragmentado, estilhaçado. Portanto, ele é reduzido a um “mero portador

abstrato – inválido e mutilado – da palavra, a mero suporte precário, ‘não-figurativo’,

da língua” (ROSENFELD, 1986, p.86). Desta redução das personagens resulta a

rarefação do enredo.

Enquanto na primeira parte a estrutura da trama é linear, bem demarcada

temporal e espacialmente, geralmente respeitando a noção de causa e efeito – salvo

os casos da mulher-lobo e do morto na mala –, na segunda parte, a narrativa ganha

novos contornos. Livro, o narrador, em uma das suas críticas sobre o próprio

romance, reflete sobre a primeira parte, levantando importantes questões acerca da

organização textual, rotulando a história como banal, superficial e repreendendo o

escritor do romance por narrar algo que não conhece profundamente, pois não

vivenciou aquela experiência.

O narrador explora, em sua crítica, todos os possíveis “defeitos” do texto,

apresentando possíveis falhas, ressaltando o predominante conteúdo realista do

romance e, ainda, adiantando possíveis críticas de leitores mais mordazes. O fato de

não terem (Peixoto e Livro, ambos, real e ficcionalmente, nascidos em 1974) vivido a

experiência da ditadura e da emigração, é tratado criticamente pelo narrador como

algo negativo. Porém, o fato de não ter vivido diretamente as dificuldades deste

período, talvez, seja o que possibilite esta narrativa, visto que ele não foi silenciado,

conforme expõe Walter Benjamin em seu ensaio “Experiência e Pobreza” (1994,

p.114-115); “os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais

pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos”. Em entrevista ao

Suplemento Pernambuco, José Luís Peixoto reconhece a importância de escrever

sobre algo que não viveu e ressalta que Livro é o primeiro romance que tematiza o

processo migratório ocorrido na década de 60 em Portugal:

O fato de fazer parte de uma geração que não viveu a emigração em massa, a ditadura ou a guerra colonial, por exemplo, foi uma vantagem ao escrever porque não tinha a grande quantidade de constrangimentos que, ainda hoje, impede as pessoas de falarem abertamente nesses temas e que são parte da explicação porque só com estas páginas surge o primeiro romance português a narrar diretamente este enorme êxodo dos anos 1960. No qual, entre 1960 e 1974, só para França, emigraram mais de um milhão e meio de portugueses, o que significou 15% de toda a população.30

30 Entrevista concedida ao Suplemento Pernambuco, em 06/03/2015. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/component/content/article.html?id=593>.

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Contudo, é na segunda parte do romance que o enredo se rarefaz, perde

o caráter basilar de linearidade; o eixo tempo-espacial constrói-se sob outros

alicerces, a voz narrativa não tem mais o poder da onisciência, as ações não mais

configuram o cerne da história e a autorreferencialidade se apresenta de forma

constante. Embora de forma negativa, o narrador também critica esta parte do

romance – “A segunda parte consiste num desequilíbrio estrutural injustificado,

experimentalismo fora de tempo” (p.242) – e, como ele próprio afirma, parece ser

uma tentativa de antecipar as críticas que possam vir a aparecer acerca do

romance.

A narrativa, portanto, fragmenta-se, e o romance passa a ser

compreendido não mais como uma estrutura fechada, que exibia a ordenação

clássica dos movimentos agônicos da existência humana. O romance adquire um

novo aspecto, aparentando conjuntos de imagens isoladas, anotações soltas,

iluminações súbitas, tranches de vie, monólogos que aparentemente não levam à

parte alguma e que ignoram, de modo proposital, possíveis desfechos, o desfilar de

figuras autonomamente concebidas, que provocam no leitor uma comoção diferente

daquela provocada pela narrativa tradicional. A transformação do romance em

espécie de puzzle alterará fundamentalmente a relação entre autor-leitor (GOMES,

1993). Assim, Livro atinge o objetivo inicial do autor:

Essa ruptura fez parte logo da ambição inicial do romance. Sempre a considerei como um aspecto fundamental de toda a estrutura e daquilo que pretendia atingir. Para além dos múltiplos objetivos internos que pretende alcançar, essa ruptura é a expressão da vontade de fazer um romance que não seja a repetição de nenhum outro. 31

Outra alteração significativa na estrutura de Livro em relação ao romance

tradicional é a da figura do narrador. Em seu ensaio “O narrador: considerações

sobre a obra de Nikolai Leskov”, Walter Benjamin (1994) defende a ideia da falência

do narrador clássico devido à perda da faculdade de intercambiar experiências. Com

a pobreza de experiência, a arte perde seu propósito na transmissão da experiência

como lição de vida. De fato, o narrador contemporâneo não baseia sua narrativa nas

suas próprias experiências. Talvez, a falta mesmo de experiência seja a matéria da

31 Entrevista concedida ao Suplemento Pernambuco, em 06/03/2015. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/component/content/article.html?id=593>.

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narrativa contemporânea, visto que a ficcionalidade não é pautada na experiência,

pois “o narrador pós-moderno sabe que o “real” e o “autêntico” são construções de

linguagem” (SANTIAGO, 1989, p.40).

Ao escrever o romance, José Luís Peixoto narra uma história que não foi

diretamente vivida por ele, mas que, talvez, por isso mesmo, tenha sido possível

fazê-lo, como o próprio autor relata em entrevista intitulada: “José Luís Peixoto: a

desmistificação de um escritor”, concedida ao caderno “Prosa”, do jornal O Globo

(24/03/2012):

[...] desenvolver esse tema foi escrever sobre um tempo anterior a mim que, no entanto, não está completamente desligado de mim. Até porque percebi que aquilo que define a minha geração em Portugal é sobretudo o que não vivemos. Não vivemos a revolução, a ditadura, a guerra colonial, a emigração em massa. Ao escrever, percebi que esse aparente desprendimento podia ser uma vantagem, uma vez que me permitia escrever sem constrangimentos sobre temas que, ainda hoje, não são fáceis para os portugueses (e talvez por isso não existam outros romances a deterem-se diretamente neste tema que afetou milhões de portugueses).32

A narração de uma história que não é propriamente sua não é, porém,

simplesmente um relato do que aconteceu. Por meio de um autor implícito33 que dá

voz ao narrador, uma “voz [que] se desprende de uma garganta de papel, recorte de

uma das possíveis manifestações do autor” (DAL FARRA, 1978, p. 19), é instaurada

uma busca pelo autoconhecimento. Esta voz só assume condição de narrador-

personagem na segunda parte, mas está presente em toda a estrutura narrativa:

Como [...] representante e porta-voz [do autor-implícito], o narrador se torna, então, mais que a personagem fictícia assentada como tal: ele se transforma no verbo criador da linguagem, no espírito onisciente e onipresente que cria e governa o mundo romanesco. (DAL FARRA, 1978, p. 19)

Assim, o narrador-personagem Livro, perdido, fragmentado, “cria e

governa” este mundo romanesco para tentar se encontrar, já que, ao mirar-se no

espelho, já não se reconhece:

32 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/03/24/jose-luis-peixoto-desmistificacao-de-um-escritor-437353.asp> 33 É importante deixar claro que o autor implícito não é o autor real, a pessoa física que escreve o romance. Um mesmo autor terá diferentes autores implícito em cada uma de suas obras, visto que em cada um de seus textos, marcas diferentes serão impressas.

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Ao fixar o reflexo dos meus olhos no espelho, já me pareceu muitas vezes que está outra pessoa dentro deles. Observa-me, julga-me, mas não tem voz para se exprimir. Será talvez eu com outra idade, criança ou velho: Inocente, magoado por me ver a destruir todos os meus sonhos; ou amargo, a culpar-me pela construção lenta dos seus ressentimentos. Seria melhor se tivesse palavras para dizer-me, mas não. Só aquele olhar lhe pertence. É lá que está prisioneiro. (p.268)

Este sujeito, perdido em si e num mundo desidealizado, empreende uma

busca por autoconhecimento e “O romance transforma-se num palco da procura,

sem que necessariamente aponte para o término dela” (GOMES, 1993, p.121).

Assim, ao instituir sua busca, o narrador, elemento chave na configuração deste

novo romance, resgata a história da vila onde sua mãe nasceu com o objetivo de

conhecer suas origens e mostra ser ele mesmo o elo entre as duas partes da

narrativa.

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Capítulo 3

A trajetória do narrador

No capítulo anterior, vimos que Livro é um romance metaficcional e que

esta característica propicia uma nova formulação das funções das instâncias

narrativas. Neste capítulo, acompanharemos a trajetória do insólito narrador deste

romance em busca do seu autoconhecimento. Embora só na segunda parte do

romance ele assuma a condição de narrador-personagem – que carrega consigo

bagagem metalinguística ao ser nomeado Livro – declarando-se narrador de toda a

obra, examinaremos como, de certo modo, ele está presente ao longo da narrativa.

É por meio da metalinguagem, ou mais especificamente da

autorreferencialidade, característica inerente ao romance metaficcional, que esta

busca pelo autoconhecimento se solidifica. De acordo com Patricia Waugh (2003),

nos romances metaficcionais, o objeto de análise é a natureza da relação entre o

real e o fictício e, portanto, o comentário metalinguístico (isto é, o comentário da

linguagem que faz referência à própria linguagem) é destacado como o veículo

desta análise.

Em O Livro da Metaficção, Gustavo Bernardo (2010) explica que o termo

metaficção foi utilizado pela primeira vez por William Gass para se referir aos

romances americanos do século XX que estabeleciam um diálogo entre as ficções.

Gass criou este termo com base na concepção de metalinguagem estabelecida

pouco antes pelos linguistas Saussure e Hjelmslev. A relação da metalinguagem

com a metaficção, além da origem dos termos, está na essência da significação

desta. Se a metaficção é a ficção que se revela ficção, ela o faz por meio da

linguagem, sendo portanto, uma extensão da metalinguagem.

A referência metalinguística inicia-se desde o título do romance, visto que

se trata de um livro denominado Livro. No decorrer da história, o título do romance

vai adquirindo significados para o leitor que só adiante, na segunda parte, conhecerá

o insólito narrador cujo nome é o mesmo da narrativa. Verificaremos como ele se

mostra onipresente em toda a obra e como a estrutura do romance é configurada em

torno desta autognose do narrador errante.

Na primeira parte, já desde a primeira cena do romance, o livro aparece

como o objeto deixado pela mãe de Ilídio com ele, no dia em que foi abandonado.

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Este livro (objeto) percorrerá todo o romance, exercendo papel crucial na história. Ao

final da primeira parte, observaremos que o teor metalinguístico começa a configurar

a metaficção, visto que o objeto que é mencionado é o romance que nós, leitores,

estamos lendo. É importante notar como, neste caso, a metalinguagem contribui

para o desvelamento do processo ficcional.

É também no final da primeira parte que nasce Livro, filho de Adelaide e

narrador do livro que estamos lendo. Observaremos a trajetória deste narrador que

tenta solucionar seu drama pessoal, sua busca pelo autoconhecimento por meio da

linguagem, ou melhor, da metalinguagem. Numa análise minuciosa do percurso

metalinguístico do livro no romance, em suas múltiplas formas: objeto que tem

‘status de personagem’, obra literária (o próprio Livro) e narrador do romance,

intentaremos mostrar que a metalinguagem não é um mero exercício de estilo, mas

um artifício metaficcional utilizado em virtude da construção identitária não apenas

do narrador, mas do próprio romance.

3.1 O objeto livro: “a sombra de um ato”

No breve estudo intitulado Metalinguagem, Samira Chalub (1998) baseia-

se na teoria de Jakobson sobre as funções da linguagem para explicar a função

metalinguística como aquela em que o código volta-se para si mesmo, isto é, para o

próprio código utilizado no processo comunicativo. Dado que, na literatura, o código

é a linguagem por meio da qual os textos são elaborados, temos a linguagem

voltada para a própria linguagem. A respeito do poema34, Chalub elucida que ele

coloca “a nu o processo de produção da obra” e, ainda, “Constrói-se contemplando

ativamente sua construção” (1998, p.32).

No decorrer do romance de José Luís Peixoto, observamos que a

recorrente alusão a “um” livro – seja ele um objeto, o narrador-personagem, ou a

obra (esta que ele intitula Livro) – vai se configurando como metalinguagem a

medida que o objeto se torna peça importante na construção das personagens

centrais do romance. Para percebermos essa “evolução” do objeto literário,

acompanharemos a trajetória deste livro na narrativa.

34 Estendemos aqui o entendimento do termo poema para todo e qualquer texto literário.

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A primeira cena do romance é o momento em que uma mãe entrega um

livro ao seu filho de seis anos de idade. O livro aparece como objeto grande e

misterioso, posto pela mãe nas mãos do menino Ilídio, que não compreende a

intenção do presente:

A mãe pousou o livro nas mãos do filho. Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito para aquele objeto que suportava. [...] não se desinteressou pelo livro, apenas deixou de o interrogar enquanto objeto em si, começou a questioná-lo de maneira mais abstrata, enquanto intenção, enquanto sombra de um ato. (p.9)35

O menino guardará consigo o objeto como se fosse parte dele e, embora

não mexa nele com constância, ele estará sempre ali, como uma sombra da qual é

impossível se separar, tal qual aquilo que o objeto representa: o abandono sofrido,

“as perguntas sem resposta” (p.19), um certo apagamento da sua infância. Esse

objeto percorrerá toda a narrativa e as relações que estabelecerá com as

personagens e com a própria obra é fundamental para o desenrolar do enredo. Além

disso, a sua importância é tão grande que ele ganha “status de personagem” ao

longo da narrativa.

Ao chegar à adolescência, Ilídio apaixona-se por Adelaide e lhe oferece

de presente, juntamente com outros objetos significativos, o livro que a mãe lhe

deixou: “Se namorares comigo, dou-te um pombo, cem escudos e um livro” (p.61).

Contra a vontade de Josué, que alega que aquele livro era muito importante e que

Ilídio “devia estimá-lo sempre” (p.68), Ilídio entrega o objeto à amada: “O Ilídio

estendeu-lhe o livro com as mãos desencontradas. Os anos tinham passado sobre

aquele livro. Em tamanho, o livro era uma espécie de morte. A Adelaide aceitou o

livro” (p.70). Neste momento, o objeto ganha novo valor simbólico.

Se até esta altura, o livro representa o abandono sofrido pelo menino

Ilídio, a partir daí passará a representar o amor puro e sincero do casal. Adelaide é

obrigada pela tia a emigrar para a França e leva consigo o presente que ganhara do

amado: “Pousou a mala sobre a cama. Procurou um casaco de malha para amaciar

o fundo. Pousou o livro fechado sobre o casaco de malha, aconchegou-o” (p.90).

Quando, no meio da viagem, sente-se sozinha e saudosa, recorre ao objeto para

recordar-se dos momentos com Ilídio:

35 Grifos nossos.

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Afastou as roupas com delicadeza e encontrou o livro. Passou-lhe a ponta dos dedos a capa, sentiu-o. Depois, levantou-se com as duas mãos, deslizou-os ao longo da pele do rosto, tocou-o com os lábios. Enquanto o abraçou, manteve os olhos fechados. (p.114-115)36

Já na França, Adelaide começa a trabalhar numa biblioteca e resolve

levar o livro que recebeu no primeiro dia de namoro para tentar ler. Esquece-o

aberto em cima de uma mesa e o objeto vai aproximá-la do futuro marido,

Constantino, frequentador do local e admirador de Adelaide. Ele circula palavras no

livro como forma de dar início a uma relação com a jovem moça:

O livro estava mexido. Alguém o tinha aberto em uma página, número 224, e feito pequenos círculos a lápis, à volta das seguintes palavras: gosto, de, ti. Olhou em redor, e, ao longe, entre as pessoas distraídas, viu o leitor de livros da biblioteca a fixá-la. Desviou o olhar, guardou o livro na mala e saiu. (p.153)37

Como já mencionamos no capítulo 2 deste trabalho, posteriormente, no

próprio Livro, encontraremos as palavras circuladas: “Tive de dizer-lhe que sim,

gostei, gostei, porque gosto pouco de ver [...] e a vontade nula de ler aquele monte

[...]. Correio para ti.” (p.239). Assim, o livro, que até então parecia desempenhar

apenas a função de objeto ficcional, ganha novos contornos. Observa-se que, de

acordo com a teoria de Jakobson (1971), a linguagem literária ocorre em dois níveis:

no primeiro nível, chamado de linguagem-objeto, a linguagem versa sobre objetos,

e, portanto, fala sobre o outro; no segundo nível, a metalinguagem, tira o olhar de

sob o outro e o coloca sobre si. Logo, é a linguagem falando da própria linguagem,

porque parece que falar de outro já não lhe satisfaz. Atente-se ao seguinte: no nível

da metalinguagem, a literatura não deixou de versar sobre o outro. Segundo Barthes

(1970), ela finge destruir-se como linguagem-objeto, para, através da

metalinguagem, continuar sendo uma nova linguagem-objeto. Assume, então, uma

dimensão dupla: ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto, fala e fala dessa

fala, literatura objeto e metaliteratura.

36 Grifos nossos. 37 Na edição portuguesa, as palavras estavam circuladas na página referida pela personagem Adelaide (p.224). Porém, na edição utilizada neste trabalho, a editora brasileira, Companhia das Letras, não obedeceu ao padrão estabelecido pelo autor, o que foi corrigido já na 1ª reimpressão da mesma edição do romance.

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A palavra livro, que, embora já fizesse uma referência ao título do

romance, ainda representava simplesmente um objeto da narrativa, isto é, um objeto

que compõe a história do romance, agora adquire caráter metalinguístico.

Desde que saíra da vila, Adelaide não teve mais notícias de Ilídio. Ele não

respondera nenhuma sequer de suas cartas. Após iniciar o relacionamento com

Constantino, recebeu uma carta antiga que Ilídio lhe escrevera. Com a morte da

velha Lubélia, Josué descobriu que Ilídio tentara manter contato, mas a velha

escondera durante todo esse tempo as cartas destinadas ao próprio Josué e à

Adelaide. Fizera o mesmo com as cartas que Adelaide enviara a Ilídio. Josué, então,

encaminha uma carta antiga de Ilídio a ela. Ao receber a carta, Adelaide não sabe o

que fazer e, dividida entre o início do relacionamento com Constantino e a

possibilidade de reencontrar seu amor da adolescência, guarda a carta dentro do

livro:

A Adelaide encontrou o livro onde o tinha deixado, meio lido. Abriu-o e acertou a carta no meio das suas páginas. Guardou o envelope com a direção no bolso, iria desfazer-se dele mais tarde [...]. Tinha tomado a sua decisão. A carta, escrita pelo Ilídio, iria ficar fechada no livro, suspensa, como uma página solta desse mesmo livro, uma página que talvez ninguém pudesse entender, uma página volante, que poderia estar em qualquer lugar da ordem daquele livro porque, para ele, para o seu entendimento, era uma página que existia e não existia. (p.168-169)

Neste caso, o status de personagem do objeto livro fica ainda mais evidente, visto

que ele acaba por se personificar na construção textual.

Em alguns momentos, Adelaide relembrava com carinho do livro, e o

objeto lhe transmitia, de algum modo, algo inexplicável, como quando, em 1968,

meses após o casamento, descobriu estar grávida:

Adelaide ainda tinha o livro guardado numa das malas com que chegara [...] Sem explicação que compreendesse, quando a Adelaide soube que estava grávida, lembrou-se do livro. A casa de banho, branca e lixívia, foi o lugar dessa epifania, como se tivesse sido atravessada por um eixo que, apesar do terceiro andar, apesar dos vizinho de baixo, lhe fez sentir a terra sobre os pés. (p. 187-188)

Adelaide perdeu o bebê, sem sequer contar ao marido que suspeitava da

gestação, tampouco das dores que a fizeram ir ao hospital ao acordar. Mentiu,

disse-lhe que havia ido à biblioteca e, ao ser questionada pelo marido sobre o fato

de ninguém tê-la visto na biblioteca, pega o livro e alega que o trouxe da biblioteca:

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Disse-lhe que tinha trazido o livro da biblioteca. O Constantino riu-se. Livro? Não basta ter capa e páginas cheias de palavras para ser um livro. Não basta ser feito de papel. [...] Livro? Às vezes, esqueço-me da tua ingenuidade. E riu-se mais. (p.198)

Diante do desdém de Constantino, o interesse de Adelaide pelo marido

vai diminuindo e a sua identificação com o livro aumenta. Para ela, o livro representa

seu amor da adolescência, a saudade de sua terra, sua história. Isto fica claro anos

depois, em 1973, na visita que ela faz à vila e leva consigo o livro:

Já o ar tinha retomado sua espessura, sem o Cosme, quando a Adelaide entrou na sombra do quarto e tirou o livro da mala. Tinha-o trazido não tanto para o ler, como para não o deixar sozinho na França. Segurou-o com as duas mãos, sussurrou-lhe: estamos na nossa terra. E voltou a pousá-lo no interior da mala. (p.210)

Este livro, que percorre toda a narrativa enquanto objeto-símbolo da vida

de Ilídio e, também, de Adelaide, será revelado na segunda parte como o próprio

Livro que nós, leitores, estamos a ler. Devido a uma questão composicional do

nosso texto, separamos os comentários acerca do livro-objeto, que percorre a

primeira parte do romance e do Livro, título da obra, pelo fato de que, a partir do

surgimento do narrador de primeira pessoa que tem o mesmo nome do título do

romance, a autocrítica torna-se explícita e mais acentuada. Portanto, o livro objeto,

que se denuncia enquanto Livro que estamos lendo, será retomado posteriormente.

3.2 O Livro: a autorreferencialidade

A partir do momento que o romance passa a ser narrado em primeira

pessoa, o teor autocrítico do romance evidencia-se e o objeto livro, que até então

aparecia como representação das relações estabelecidas entre as personagens,

sem que nunca fosse revelado seu conteúdo, passa a ser analisado pelo narrador-

personagem. Os comentários acerca da obra são configurados como

metalinguagem, visto que se trata de “linguagem acerca da linguagem” (CHALUB,

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2002, p.8)38, e, também, são metaficcionais, por ser “ficção que versa sobre si

mesma” (LODGE, apud BERNARDO, 2010, p.42).

A primeira vez que o narrador fala do livro, ele menciona seu título: “Essa

foi minha irritação inicial: o título” (p.238). Ele explica que ganhou o livro da sua mãe

no Natal, pois ela lembrou que ele costumava brincar com o livro quando criança. E

reflete sobre a situação:

Eu sabia que costumava brincar com ele quando era pequeno. Eu ia aos figos com ele, mas não ia aos figos com Proust; eu andava de bicicleta com ele, mas não andava de bicicleta com Cervantes; eu jogava à bola com ele, mas não jogava à bola com o Stendhal. Não era por isso que tinha mais ou menos consideração por Proust, Cervantes ou Stendhal. (p.239)

O narrador conta, então, que ganhou o mesmo presente do Cosme e,

mesmo depois de ter afirmado ser nula sua vontade de ler o romance, decide lê-lo

por consideração a eles. Adiante, escreve uma longa crítica acerca do livro que lhe

foi dado de presente, a qual, quando esmiuçada, revela sua autorreferencialidade.

Inicialmente, critica a estrutura da trama:

O enredo é frouxo, invertebrado e, nos momentos esparsos em que consegue encaixar-se com interesse relativo, narra experiências banais, histórias que não se distanciam daquelas que poderiam pertencer ao vizinho ou, quando muito, ao vizinho do vizinho. Um episódio de licantropia e o desfecho sanguinário de uma personagem mal desenvolvida apenas acrescentam ausência prosaica de lógica. (p.240)

A metalinguagem evidencia-se nas alusões ao episódio da mulher-lobo

que ataca Ilídio na sua travessia de Portugal para a França e ao episódio do homem

que ajuda Ilídio e Cosme a pagarem as passagens de trem na França e depois

aparece misteriosamente esquartejado dentro de uma mala, o que nos permite

suspeitar de que o livro que está sendo lido por Livro é o mesmo que está sendo lido

por nós.

Posteriormente, ele reitera a crítica metaliterária, tomando como alvo as

personagens:

As personagens arrastam-se, incoerentes, desconexas. Longe da riqueza subjetiva, apresentam-se como figuras bidimensionais. Longe da construção

38 Grifos da autora.

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arquetípica, apresentem-se como fantoches de densidade rasteira. Se algum dia, por mero acaso, se cruzassem com Ishmael, com Julien Sorel ou com Raskolnikov, o que teriam para dizer-lhes? (p.242)

Essas críticas, que claramente se referem à primeira parte da narrativa,

tentam, ironicamente, antecipar a crítica externa ao romance, revelando os pontos

que podem ser vistos como frágeis por determinados críticos literários. É possível

observar que o teor irônico dessas críticas, notável no tom debochado utilizado pelo

narrador, dirige-se a um tipo específico de crítico, que seria mais conservador, ligado

à ideia de que um bom romance deve ser realista e/ou verossímil, e, portanto, veria

os episódios supracitados como falhas textuais, além de questionar a densidade das

personagens se comparados com personagens de Melville, Stendhal ou Dostoiévski.

Logo em seguida, o narrador criticará, também, a segunda parte do romance,

desconstruindo-a por meio de um julgamento não menos agressivo do que aquele

que acusa o enredo de ser frouxo:

É nesse ponto que o romance atinge níveis intoleráveis de arrogância. Para lá das constantes referências a autores que ele, nitidamente, desconhece, num exercício fútil de name-drop, esperteza de google, o clímax de insensatez é alcançado numa espécie de autocrítica que, fazendo parte do romance, se refere ao próprio romance. A autorreferencialidade e o pós-modernismo têm as costas largas. (p.242-243)

A ironia acentua-se nesse trecho, em que o narrador acusa o autor de

utilizar referências que este desconhece, num trabalho arrogante e insensato. O

leitor atento percebe que as acusações não se sustentam, mas a ironia do narrador

antecipa, mais uma vez, possíveis críticas conservadoras a respeito do pós-

modernismo. Em sequência, o próprio narrador, novamente em comentário

sarcástico, acusa o texto: “Em última análise, a tentativa descarada de controlar as

críticas que o romance possa sugerir. Como se quisesse antecipar-se aos

comentários dos outros e, assim, os esvaziasse de sentido” (p.243).

Adiante, ele conclui sua opinião acerca do romance que acabara de ler:

Um nome é suficiente? Não é. Um título também não. Esperar-se-ia muito mais de um romance intitulado Livro. Com expectativas mínimas, seria de supor que um romance que se apresenta como Livro tivesse, ao menos, a honestidade de ser aquilo que anuncia. Livro sugere perigosamente o livro,

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artigo definido que esta sucessão de páginas, por mais encadernadas, nunca merece. Na melhor das hipóteses, é um livro. E triste. (p.243)39

Além disso, ao questionar a suposta petulância do autor ao intitular seu

romance de Livro, ele desconstrói uma possível falsa impressão de que o título do

livro pode ser pretencioso, afirmando ser este “um livro”. Esses fragmentos

autorreferenciais e autocríticos que destacamos no texto de Peixoto

reconhecem a artificialidade das convenções realistas ao mesmo tempo que as empregam; desarmam as críticas ao antecipá-las; lisonjeiam o leitor ao tratá-lo como um intelecto elevado e sofisticado o bastante para não se chocar com a confissão de que uma obra de ficção é uma construção verbal, e não um fragmento de vida. (LODGE, apud BERNARDO, 2010, p.42)

Por fim, o narrador encerra sua crítica mostrando que, apesar das

negativas, o livro lhe rendeu algo positivo:

O aspecto positivo das horas que perdi a ler esse presente de Natal, meu pálido homônimo, foi que, mal o pousei, comecei logo a escrever este livro que estás a ler. Se esse despenteado que mijava atrás de sobreiros pode escrever e publicar um romance, também posso. (p.243-244)

O que ocorre neste trecho é uma espécie de duplicação do romance: o

livro que ele fecha e sobre o qual acabou de elaborar uma longa crítica não era já

“este” que o leitor está a ler? Em O livro da metaficção, Gustavo Bernardo analisa o

conto “Continuidade dos parques”, de Júlio Cortázar, mostrando que o leitor do

conto confunde-se com a personagem que lê na história, ou melhor, espelha-se

nesta personagem leitora, estabelecendo uma relação “entre diferentes níveis de

ficção” (BERNARDO, 2010, p.37), assim como a relação existente entre os vários

“escritores” do romance. Bernardo explica que a ponte entre esses diversos planos

da ficção é denominada ‘metaficção’.

Em Livro, este processo de espelhamento entre os diversos níveis

ficcionais ocorre por meio da metaficção. Em certa altura, o narrador explicita as

características do livro, estabelecendo relação entre diferentes níveis ficcionais de

forma clara:

39 Grifos do autor.

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64

Estou aqui, sentado a esta mesa, com este teclado de computador à frente, esta janela aberta à esquerda, esta cama desfeita atrás de mim. [...] Até este xis, este: X, o livro que estás a ler tem 404853 caracteres, incluindo notas de rodapés e espaços. Em 1990, viviam na França um total de 798837 pessoas de origem portuguesa, 603686 dos quais nascidos em Portugal e 195151 nascidos na França. Cada letra e cada espaço das páginas anteriores equivale a quase duas pessoas de origem portuguesa a viverem na França em 1990. Cada batida no teclado, na barra de espaços. Estão a bater à porta do quarto. (p. 279-280)

A ligação entre a quantidade de caracteres do texto que está sendo lido,

com a quantidade de imigrantes portugueses na França – matéria real utilizada

como mote do enredo ficcional –, funde-se ainda à narrativa no momento em que a

mãe do narrador bate à porta para contar-lhe da retomada de seu relacionamento

amoroso com Ilídio.

Estas diversas camadas da ficção são exploradas a fundo em Livro.

Aprofundaremos a análise dessas relações metaficcionais, examinando o percurso

do narrador a seguir.

3.3 Livro: o percurso do narrador errante

“Quando a Adelaide saiu de trás do muro do chafariz, já uma vírgula

iniciara o percurso em direção ao seu útero” (p.216). Assim tem início o percurso do

narrador do romance. O reencontro de Adelaide e Ilídio, na vila, após tantos anos de

desencontros desde a emigração a Paris, resulta na gravidez de Adelaide. Foi

aquela ‘vírgula’ que fecundou Adelaide para gerar o narrador, Livro.

Ao final da primeira parte do romance, nasce o narrador. Ele mesmo,

numa transposição da narração de terceira pessoa para a narração de primeira

pessoa, anuncia, no dia 27 de abril de 1974: “Foi às duas e meia da tarde que eu

nasci” (p.218).

Como já vimos, a seguir à sua primeira aparição explícita na história, ele

estabelece um jogo de perguntas e respostas com o leitor e, logo depois,

apresentar-se-á melhor, enumerando seus gostos literários, definindo-se como “leitor

solitário, único leitor de páginas que as multidões já esqueceram” (p.224) e, então,

revelando seu nome:

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65

É verdade que te chamas Livro? Um nome, como um título, tem muita importância. [...] Livro. Sim, é verdade. (p.225)

Em meio à narrativa, o narrador conta-nos um pouco da sua vida, desde a

infância em Paris até o retorno a Portugal. Em meio a essas confissões, alguns fatos

destacam-se e revelam o que, de certa forma, o narrador parece buscar. Em nota de

rodapé, ao descrever a casa parisiense onde passara a infância, ele divide com os

leitores uma de suas angústias – a sensação de não pertencer a lugar algum e a

busca constante por encontrar esta pertença:

Nunca encontrei o abrigo que ainda procuro, uma mão que me feche no seu interior e me guarde no bolso de dentro do casaco, paredes que me digam com veludo: descansa, menino. Mas procuro, continuo, como se acreditasse que vou encontrar. (p.226)40

Essa procura a que o narrador se refere nos remete à ‘busca pelo

autoconhecimento’ exposta por Lukács, em sua obra A teoria do romance (2009).

Ele elabora sua teoria a respeito da constituição do romance, afirmando que este é

uma extensão da epopeia clássica. Para tanto, o crítico húngaro traça um percurso

entre a epopeia e o romance, a fim de mostrar como o último se tornou a forma

estética predominante em nosso tempo.

No período clássico, a forma predominante era a epopeia. Nesta, os

homens e o mundo estavam conciliados, em perfeita harmonia, sem estranhamento

e, juntos, formavam uma unidade. Conforme explica Lukács, o herói da epopeia

desconhece o medo do novo e a angústia da busca:

Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá de buscar-se. Essa é a era da epopeia. (LUKÁCS, 2009, p.26)

Quanto ao herói da epopeia, ele não é um indivíduo solitário, isolado, ele luta por

uma causa coletiva e sua conquista é a conquista do seu povo.

40

Grifos nossos.

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O romance, para Lukács, tem também estrutura épica, “é a epopeia de

uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo

evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que

ainda assim tem por intenção a totalidade” (LUKÁCS, 2009, p.55). Assim, essa

intenção pela totalidade, dificultada pela fragmentação da era do romance, é

materializada na narrativa pela busca constante do herói, como ratifica o crítico: “a

intenção fundamental determinante da forma do romance objetiva-se como

psicologia dos heróis romanescos: eles buscam algo” (LUKÁCS, 2009, p.60), assim

como vimos que acontece com Livro.

Porém, a busca do herói do romance não tem caráter coletivo. Esse herói

é um ser solitário, visto que “A matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o

homem que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem

ninguém pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém”

(BENJAMIN, 1994, p.54).

É exatamente essa solidão que acomete o herói narrador, Livro. Ele se

entregará a essa busca pelo autoconhecimento, ao narrar sua vida e a vida dos

moradores da vila portuguesa, afinal, o romance contemporâneo português voltará

“a contemplar a imagem do herói em perene busca” (GOMES, 1993, p.122).

Perceberemos inclusive que, ao longo do romance, a sua busca vai sendo

aprofundada. Retomando Lukács, podemos compreender que o narrador configura o

que o crítico húngaro denomina ‘herói/ indivíduo problemático’:

O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento. (LUKÁCS, 2009, p.82)41

Para compreendermos como se dá essa peregrinação, é necessário,

contudo, questionar: Qual o ponto de partida, o estopim que incita a busca pelo

autoconhecimento? Qual, ou melhor, quais os motivos desta busca? Qual o meio

utilizado pelo narrador para tentar alcançar o desejado autoconhecimento? Como se

dará a busca? A partir das respostas a estas perguntas verificaremos se Livro

consegue alcançar o conhecimento de si.

41 Grifos nossos.

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Se recompusermos os fatos narrados por Livro a respeito da sua vida

adulta – fatos que não são narrados em ordem cronológica, e nem poderiam, já que

na escrita, materializa-se o esfacelamento do sujeito –, notaremos que há um evento

decisivo para que ele decida ir a Portugal com a sua mãe.

Livro tinha por hábito indicar leituras a uma jovem senegalesa, Sidonie,

com quem se encontrava ocasionalmente e mantinha encontros amorosos. Numa

dessas ocasiões, ela avisou que acabara de ler Voyage au bout de la nuit. Eles se

encontram, têm relação sexual e ela lhe devolve o romance de Céline. Ao retornar

para casa, ele coloca o livro no banco da frente e segue viagem. Como o cheiro de

sexo estava muito forte no carro de Constantino, ele abre os vidros, mas perde o

controle e atropela uma velha, que depois ele descobrirá ser uma portuguesa, de

oitenta e um anos, que trabalhava com costura. Ele segue viagem sem olhar para

trás, ao chegar, apanha o livro que havia caído no chão do carro, vomita, entra em

casa e dorme. Na manhã seguinte, assim que levanta, procura por sua mãe e diz-lhe

que sim. “Ela não percebeu. Sim o quê? Se vendíamos a casa, vendíamos também

o carro, oferecíamos aquelas latas a quem as quisesse” (p.277). E então, voltam a

Portugal. O atropelamento – substancializado no romance de Céline, já que este

passa a representar um “espaço de vácuo” (p.271) no interior do narrador, pois

remete à “memória do erro que [ele] mais lamenta ter cometido” (p.271) – é, pois, o

gatilho para seu regresso a Portugal e a decorrente busca pelo autoconhecimento

de Livro.

Embora o atropelamento da velha portuguesa – que, aliás, de acordo com

a idade, naturalidade e profissão levanta no leitor atento a suspeita de que possa ser

a sua avó, mãe do Ilídio, embora em nenhum momento se levante essa hipótese na

história – tenha passado a fazer parte dele: “Ainda sou capaz de sentir o volume

daquele corpo na chapa do carro. É uma sensação que faz parte de mim” (p.276) e

tenha sido o estopim para a sua mudança para Portugal, por conseguinte, o ponto

de partida da sua busca, não é esta a razão principal da sua empreitada rumo ao

autoconhecimento. O cerne da sua jornada consiste no fato de o narrador ser um

sujeito solitário que não se identifica com lugar algum, não tem certeza de sua

genealogia, não tem sequer contornos definidos, ou seja, é um indivíduo angustiado

por não conhecer a si próprio.

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Livro, enquanto narrador-personagem, após o drama do atropelamento,

reflete sobre sua vida vazia de sentido e decide retornar às suas origens para buscar

conhecer-se. A tentativa de [re]conhecer-se voltando a Portugal, porém, parece não

surtir o efeito esperado.

Em busca dessa essência da vida, desse abrigo que ele procura para

sentir seu, Livro decide que “tinha mesmo de ir* para Portugal” (p.237). Em nota de

rodapé, afirma ainda que essa ida era na verdade um retorno: “*Voltar” (p.237). Este

retorno às suas origens, à terra natal da sua mãe, parece não surtir o efeito

esperado, visto que lá ele vive o drama de não se identificar com o espaço: “Quem

era eu ali?” (p.231).

Já vivendo em Portugal, reflete, mais uma vez em nota de rodapé, que

também não adiantaria retornar a Paris: “Eu não tenho pra onde voltar. Paris não é

minha [...]. Se me dessem Paris, é tua, eu não a queria porque sei que espectros

dessa natureza não se deixam possuir” (p.233). Percebe-se, tanto no seu retorno à

vila como na sua reflexão a respeito de Paris, que Livro se torna uma espécie de

estrangeiro em toda parte, numa espécie de incorporação do drama pessoano.

A sensação de não pertencimento e o desejo de encontrar um lugar que

possa chamar de seu é apenas uma das buscas de Livro. O retorno a Portugal, país

de origem da sua família, não é suficiente para este conhecimento de si, visto que

ele não sente aquele lugar como seu. As dúvidas acerca da sua origem genealógica

também o perturbam. Desde que nasceu, ele foi levado a crer que era filho de

Constantino, embora nunca lhe houvesse chamado pai. Mesmo quando pequeno,

“com dois/três anos, chamava-lhe Tontanti” (p.232). A relação com o marido de sua

mãe sempre foi conflituosa, as conversas eram ríspidas e as acusações frequentes.

Constantino chamava-o incorreto, besta, parasita, animal, cavalgadura, bicho,

inferior e acusava-o de não ter uma direção. Mais tarde, Cosme conta-lhe a respeito

do reencontro de Adelaide e Ilídio, um ano antes do seu nascimento:

Ora essa, já tem idade para saber. O Cosme insistia em contar até aquilo que não interessava a ninguém. Estava eu diante do meu prato vazio, quando ele começou a falar das festas da vila em 1973, da minha mãe, do Ilídio, da fonte etc. Perdi o apetite. Tive pouco a dizer até chegarmos a Paris. (p.254)

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Embora, em outra ocasião, ele já tivesse dito que desconfiou de tudo o

que Cosme lhe contou a respeito das histórias da vila (p.247), ao ouvir Adelaide

referir-se a Constantino como seu pai, nota a artificialidade com que pronuncia tal

palavra:

Não dás um beijo ao teu pai? Nesse dia, reparei o tom artificial com que a minha mãe pronunciou essa palavra que usava tão poucas vezes, pai. Antes de fechar a porta, ainda ouvi o Constantino dizer: É um incorreto. (p.254)

Ainda assim, era difícil aceitar que sua mãe e o Ilídio, que não passava de

um estranho para ele, alguém que sequer condizia com a pessoa que sempre

imaginara ao ouvir as histórias da vila (como quando observa o casal numa

conversa trivial), tivessem novamente um relacionamento.

Nessa manhã, eu tinha trinta e seis anos acabados de fazer. Tinha passado metade da minha vida a acreditar em algo que, naquele momento, se rasgava como celofane. Recordava as horas perdidas a afastar uma ideia inventada, a fazer caretas mas, logo a seguir, pensava que talvez fosse o tempo que os tivesse levado àquele desprendimento. [...] Se tivesse acontecido tudo o que o Cosme tinha me contado, não haviam de falar da Junta e de azulejos ou, mais impossivelmente, se falassem seriam obrigados a um trejeito, ainda que mínimo, de constrangimento. Podiam passar décadas sobre essa realidade da natureza humana, continuaria inalterada. (p.261)

A mãe que era seu esteio, que ele presumia conhecer, embora

reconhecesse que, na verdade, não é possível conhecer ninguém a fundo, visto que

ele não conhece nem a si mesmo – “Eu conhecia* a minha mãe. Na contabilidade

das nossas vidas, tínhamos caminhado quilómetros de mão dada, tínhamos dito

todas as palavras de língua portuguesa e francesa um ao outro” (p.261) e, em nota,

explica: “Se desconfiamos de nós próprios, desconfiamos sempre dos outros. Tão

simples quanto isso” (p.261) –, que era sua única companheira e de quem ele era

único companheiro e, inclusive, que ele havia duvidado que de fato ainda nutrisse

amor por Ilídio, tinha vida própria e, sim, amava. Mais uma vez, Livro percebe que as

suas certezas não se sustentam. Quando ele fica diante desta realidade, da

retomada da relação de amor que lhe deu a vida, não quer acreditar, demonstra

fragilidade e sente como se o ar e o tempo pesassem como chumbo diante de si:

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Tento fixar-me nas cigarras, estendem-se dentro das minhas incertezas. Eu sou um menino sem voz, podem fazer de mim o que quiserem. O mundo é feito de chumbo, como o ar e o tempo. A minha mãe tem voz. As palavras soltam-se-lhe da boca por uma espécie de encosta, são uma espécie de rochas: já sabes o que tenho para te dizer. As palavras acertam-me numa espécie de peito. A minha mãe agarra a mão do Ilídio com toda a força, passa os dedos por dentro dos dedos dele. [...] A minha mãe diz que é uma mulher, que espirra e tosse como as outras pessoas. [...] Sinto que o meu rosto se derrete. Escorre-me a testa à volta dos olhos, escorre-me o nariz e a boca pelo queixo. A minha mãe diz que estão cansados de andar às escondidas, que já ninguém tem idade para isso. E ficam à espera. Não sei quanto tempo dura esse silêncio. As cigarras. Sorrio porque sei que, assim, o momento pode terminar, mas não sei se quero sorrir. Quero sobreviver. [...] talvez não seja sequer uma revelação, talvez seja apenas um sinal da minha incapacidade de interpretar detalhes. (p.280-281)

Esta tensão de querer sobreviver em meio às incertezas, tendo de

conviver com “as cigarras”, o “ruído dentro de si”, isto que há dentro dele, que não é

possível distinguir, mas que ele tenta a todo o tempo identificar, deixa-o perdido em

suas aflições, refletindo sobre a sua existência e “Esse ter de refletir é a mais

profunda melancolia de todo o grande e autêntico romance” (LUKÁCS, 2009, p.86).

Numa de suas reflexões, em uma das suas frequentes notas de rodapé, ele reflete a

respeito deste ruído que trazia dentro de si e afirma:

Não é ruído. É um entrançado de mundo, uma mistura. [...] É difícil explicar, cansativo de descrever e custa ter isto dentro de mim, mas não é ruído, não é caos. É possível encontrar uma ponta e começar a desembaraçar todos esses sentidos, ordená-los por palavras ou por qualquer outro código. Antes, quando era mais pequeno, quando esse novelo começou a entrançar-se, acreditei que tinha sido por esse motivo que a minha mãe decidiu chamar-me Livro. (p.273-274)

Ao fim desta reflexão – mais uma vez acerca da sua origem, desta vez,

da origem do seu nome – surge, talvez, a chave para compreendermos qual o meio

que Livro usará para empreender sua busca pelo autoconhecimento: a palavra.

Chamar-se Livro não pode designar outra coisa senão a capacidade de se exprimir

por meio de palavras. E é justamente por meio de palavras que o narrador tentará

percorrer o caminho por seu autoconhecimento. Resta-nos, por conseguinte,

examinar como se dará essa busca, ou melhor, de que forma ele utilizará a

linguagem para realizar a peregrinação.

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Ao refletir sobre a origem do seu próprio nome, sobre o que motivou sua

mãe a chamá-lo Livro, o narrador acaba por elaborar uma reflexão maior, que

contempla a origem do próprio livro, seu homônimo, num processo de mise-en-

abyme42, atingindo um grau mais profundo da mimesis literária, conforme explica

Hutcheon (1984, p.12): “romances então começam a refletir sobre sua própria

gênese e crescimento. O espelhamento envolvido começa a minar o realismo

tradicional em favor de um nível mais introvertido de mimesis literária”43. Assim, este

sistema de narrativa em abismo – em que se configura metaficção, visto que, por

meio dele, a narrativa mostra-se autorreferente e autorreflexiva – leva o protagonista

a pensar em como a obra e seus elementos se constituem, para desvendar o

incômodo ruído que constitui este indivíduo problemático e assim, tentar alcançar o

autoconhecimento: “[...] eu tentava calar com ruído o ruído que trazia dentro de mim,

que me constituía. Eu sabia que me faltava uma direção” (p.273-274).

É preciso atentar para o fato de que Livro é uma personagem sem

contornos definidos. Como ocorre desde o modernismo, este sujeito é fragmentado,

inquieto, e ele se firma no texto por meio do seu discurso, que, também, inquieta-se,

fragmenta-se, esfacela-se. Conforme explica Gomes:

[...] mesmo no caso em que as personagens podem se constituir em “cópia” de seres humanos, esvaziam-se de componentes físicos e psíquicos, concebidos a priori, ganhando a sua presença no mundo através do seu discurso. Daí que a posição extrema da personagem no romance contemporâneo seja a da voz que se enuncia e que busca, entre discursos, a sua localização no Universo. (GOMES, 1993, p.120)

Gomes explica ainda que dessa rarefação de contornos das personagens

– do narrador-personagem, no caso de Livro –, resulta a rarefação do enredo.

Assim, as narrativas assumem o fragmentário, e isso tem como consequência a compreensão do romance não mais como uma estrutura fechada, que exibia a ordenação clássica dos movimentos agônicos da existência humana. Os romances tornam-se, às vezes, conjuntos de imagens isoladas, anotações soltas, iluminações súbitas, tranches de vie,

42 Mise-en-abyme ou narrative em abismo é “todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a obra que o contém” (DÄLLENBACH, 1979, p.18), ou seja, narrativas que experimentam um processo de espelhamento. 43 No original: Novels then begin to reflect and to reflect upon their own genesis and growth. The mirroring involved begins to undermine traditional realism in favour of a more introverted literary level of mimesis.

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monólogos que aparentemente não levam a parte alguma e que ignoram, de modo proposital, possíveis desfechos, o desfilar de figuras autonomamente concebidas, que provocam no leitor uma comoção diferente daquela provocada pela narrativa tradicional. (GOMES, 1993, p.120)

Não é ocasional, portanto, que a narrativa assuma contornos

metaficcionais. Por ser autorreflexivo, o discurso, na obra, é a encenação da sua

angústia. A trama mescla as categorias genológicas, e, quando o narrador identifica-

se, deixa de ser linear, não apresenta enredo definido, desestrutura-se, emaranha-

se, materializando a angústia deste sujeito que está no limiar entre a tradição e a

pós-modernidade. É na e pela escrita, portanto, que o narrador, de fato, enceta a

sua busca. Ao redigir o romance, ele resgata a história dos moradores da vila, numa

clara referência à tradição portuguesa, aliando-a ao resgate da sua própria história,

com caráter autorreflexivo e autorreferente, voltada para o próprio fazer literário,

afinal, trata-se da história de um Livro.

Livro tenta resgatar as memórias, aprender com suas atitudes, refletir

sobre as escolhas. Num de seus longos e importantes devaneios a respeito da vida,

ele se vale de uma comparação sobre utilizar o metrô de Paris para aludir às

escolhas de que caminho seguir, das decisões que deve tomar, da substância

fundamental de sua busca e da provável impossibilidade de encontrar uma saída,

um destino possível:

Esforço-me por não esquecer. Em todos os momentos, desenvolvo trabalhos dentro de mim para ter sempre presente aquilo que aprendi. Muitas vezes, tento sobrepor memórias e perceber, perante situações concretas, qual o ensinamento que tem mais valor naquele caso. Por um lado, por outro lado. Dar um passo pode ser fruto de uma decisão complexa. Há a possibilidade de seguir para a direita ou para a esquerda, posso continuar em frente ou voltar para trás, desfazer. Cada escolha lançará uma cadeia de resultados. Mal comparado, é como acordar na estação Sèvres-Lecourbe e não ter mapa do metrô, nunca ter estado ali, não saber sequer onde se está, não saber sequer o que é o metrô. Ter de aprender tudo. Ao fim de algum tempo, com sorte, conversando com pedintes cegos, tocadores de concertina, talvez se consiga chegar à conclusão que se quer ir para a estação Ourcq, esse é o lugar onde se poderá ser feliz, mas como encontrar o caminho sem mapa, sem conhecer linhas e ligações? É possível arrastar a vida inteira no metrô de Paris e nunca passar por Ourcq. É também possível passar por lá e não reconhecer que é ali que se quer sair. (p.232)

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Esta é uma das grandes questões da busca: pode ser que nunca se saiba qual o

caminho seguir, ou nunca passe pela saída correta, ou, talvez, passe por ela sem

saber que é ali que se deve ficar. Mas, ainda assim, Livro não desiste da busca.

É possível perceber, por meio deste trecho que

a voz assume a condição de um herói em busca, partindo numa aventura aberta a todas as possibilidades. Mais ainda, essa voz, lutará contra os ecos do discurso convencional e contra as sutis armadilhas da arte de contar, dentre elas, a técnica dos efeitos sobre o leitor, os lances de busca da verossimilhança etc. Nos casos mais extremos dessa ficção, o doloroso parto da voz pode se constituir no tema central do romance. (GOMES, 1993, p.124)

É o que observamos em Livro. A voz do romance é assumida pelo

narrador – mesmo a voz da primeira parte, que parece ser uma voz onisciente – e

suas palavras procuram substituir este vazio causado pela sensação de não ter um

lugar seu, de não se conhecer de fato, procuram ser o caminho para a busca do

conhecimento de si. A voz deste narrador perde, assim, o estatuto de onisciência

suprema e passa a ser mais uma voz entre outras vozes da narrativa – vozes com

as quais a dele se funde –, uma voz que, angustiadamente, se contamina com o

clima de desalento do romance (GOMES, 1993). Este clima de desalento afeta a voz

do narrador e extrapola para a temática do texto. Segundo Linda Hutcheon,

Muitos textos tematizam [...] a inadequação da linguagem em veicular um sentimento, em comunicar um pensamento, ou mesmo um fato. Normalmente, este tema é introduzido como uma alegoria da frustração do escritor diante da necessidade de apresentar, apenas por meio da linguagem, um mundo que ele próprio cria e que deve ser atualizado por meio da leitura.44 (HUTCHEON, 1984, p.29)

Em Livro, é possível notar que o narrador questiona sua própria voz e,

também, questiona a sua capacidade de utilizar as palavras para dar voz a tudo o

que ele pretende dizer:

Existe o que quero dizer e existe a minha voz. Nem sempre o tom da minha voz corresponde ao que quero dizer e, mesmo assim, molda-o tanto como

44

No original: Many texts thematize [...] the inadequacy of language in conveying feeling in communicating thought, or even fact. Often this theme is introduced as an allegory of the frustration of the writer when faced with the need to present, only through language, a world of his making that must be actualized through the act of reading.

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as palavras que escolho. Sou menos dono da minha própria voz do que destas palavras, indexadas em dicionários que já estavam impressos antes de eu nascer. Quando reparo na minha voz, parece-me sempre demasiado aguda e juvenil, incerta, imprópria para afirmações sérias. A minha voz é como este livro: capa, papel, peso medido em gramas. O que quero dizer também é como este livro: mundo subjetivo, existente e inexistente, sugerido pelo significado das palavras. (p.252)

Nesta citação, duas questões são abordadas: as palavras utilizadas pelo

narrador na construção textual e a voz como elemento de representação da

narrativa. Pensemos, primeiramente, a respeito das palavras por ele usadas no

processo de escrita. O narrador, em sua incessante busca, como vimos, acaba por

buscar nas palavras o autoconhecimento. Por esse motivo, a narrativa tem como

uma das suas principais características, se não a principal, a metaficção. É o

universo das palavras, o único referencial do narrador peixotiano, a única forma

possível de tentar atingir seu objetivo maior. Porém, ao lançar mão desta escrita que

procura se explicar, ele também se depara com a impossibilidade, visto que

questiona o próprio poder representativo da linguagem, mas, ao mesmo tempo, dela

depende para expor tal questionamento. “Assim, a voz é obrigada a lutar com as

palavras quando estas se tornam convencionais e estratificam o discurso” (GOMES,

1993, p.123), mas a luta esvazia-se, já que não é possível alcançar a linguagem

capaz de traduzir seus sonhos de liberdade, de totalidade, de completude.

Avaliaremos, agora, o outro ponto exposto pelo narrador no trecho

supracitado, em que ele afirma que nem sempre o tom da sua voz corresponde ao

que ele quer dizer, bem como em outras passagens do texto, uma dúvida é

levantada ao leitor: a voz do texto é do narrador, simplesmente, ou, de alguma

forma, revela a voz do autor? O narrador tem voz autônoma, ou o autor mascara sua

voz no narrador que o representa? Maria Lúcia Dal Farra explica que:

[...] Booth, ultrapassando a noção de narrador, vai se deter no exame desse ser que habita para além da máscara, e do qual, segundo ele, emanam as avaliações e o registro do mundo erigido. Manejador de disfarces, o autor, camuflado e encoberto pela ficção, não consegue fazer submergir somente uma sua característica – sem dúvida a mais expressiva – a apreciação. Para além da obra, na própria escolha do título, ele se trai, e mesmo no interior dela, a complexa eleição dos signos, a preferência por determinado narrador, a opção favorável por esta personagem, a distribuição da matéria e dos capítulos, a própria pontuação, denunciam a sua marca e a sua avaliação. (DAL FARRA, 1978, p.20)

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Este autor, que está nos bastidores, mas interfere todo o tempo,

implicitamente, na narrativa, é revelado no texto peixotiano. Podemos notar que,

além de ter sua figura constantemente exposta no texto, de forma sugerida – “tanto

mais que me estou a referir a um autor que vem logo antes de Pessoa nas estantes

alfabéticas das bibliotecas...” (p.240), “Não há mais escritores que tenham nascido

na nossa vila” (p.242) –, ou mesmo de forma mais ‘explícita’ – “A 4 de setembro de

1765, exatamente duzentos e nove anos, contabilizados ao dia, antes do nascimento

deste ex-parceiro de agostos, agora travestido de escritor...” (p.243)45 –, sua falta de

experiência para tratar de um assunto sobre o qual não tem domínio, porque, afinal,

não viveu, é textualmente explorada:

É por isso que me indigna que ele46, nunca tendo passado pelas dificuldades da imigração, se tenha atrevido a tocar no assunto. Até porque, se aborda o tema, é para o tratar de forma superficial, não retratando nunca aquela que foi a vivência de milhões de portugueses. Não se pode falar daquilo que não se conhece, falta o testemunho privilegiado. (p.240-241)

Sabemos, porém, que o narrador também afirma contar uma história que

não viveu: “Eu não estava lá, mas sei que foi assim...” (p.234); e é justamente essa

pobreza de experiência, tanto do autor quando do narrador que o reflete, que os

“impele a partir para frente, a começar de novo” (BENJAMIN, 1994, p.116).

Além disso, ao refletirmos a respeito da relação do narrador com o autor

implícito, podemos afirmar que existe uma espécie de espelhamento que é,

sugestivamente, exposto na narrativa. Em alguns momentos, o narrador critica a

obra escrita por Peixoto, como vimos acima, mas logo depois, assume a escrita do

mesmo romance, numa espécie de “fusão” propositadamente “confusa”:

Ao longo da escrita deste livro que estás a ler, tenho sentido que gostaria de poder fazer o mesmo com o que sei. No campo, num fim de tarde, estender esse conhecimento no ar, em pazadas, e assim separar aquilo que presumo, daquilo que foi mesmo. Por mais efeito que possa ter aquilo que presumo, é aquilo que foi mesmo que chega ao lagar, que alimenta. Aquilo que foi mesmo não é necessariamente aquilo que aconteceu. É algo muito mais importante, é a verdade. Sim, já sei, o que é a verdade? Sim, já sei, não sei.

45 José Luís Peixoto nasceu em 04 de setembro de 1964, portanto, na data citada no trecho em destaque. 46 Aqui, “ele” remete justamente a esta ideia de autor implícito, visto que a crítica que configura esta passagem do texto está direcionada ao fato de o autor, mascarado por este narrador que se diz autor do romance, escrever sobre a imigração vivida por uma geração anterior à sua.

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Peço-te desculpa por este comentário, folhinha. Sem tristeza, por favor. Não o leves a mal, folha de oliveira. Precisei de fazê-lo para, depois, ser capaz de o esquecer. Nasceste num ramo, longe da culpa, mas espero que o possas tentar entender como se fosses eu. (p.258)47

Mais uma vez, o narrador aborda a questão da necessidade de escrever o

romance para buscar a verdade – entendemos aqui a noção de verdade como algo

amplo, tanto como a verdade interior deste sujeito, algo que ele desconhece, mas

que motiva sua busca infindável, como a verdade da própria narrativa. A escrita do

romance, comparada no trecho à separação das azeitonas e folhas, no lagar, é a

forma que ele encontra de expurgar a culpa que sente desde que atropelou a

senhora portuguesa e buscar sua verdade, mas, também, de procurar compreender

qual a verdade do próprio texto, já que este, tal qual a personagem Livro, também

procura um sentido para si. É, então, por meio da metaficção que a essência do

romance tenta ser alcançada. Ao olhar para si, a narrativa almeja encontrar a

verdade, não a que de fato aconteceu, mas uma mais importante, aquela que

mostraria o porquê deste vazio de sentido da própria existência da personagem,

refletido na escrita.

No fragmento supracitado, o narrador estabelece ainda um “jogo” textual

com o leitor, mais uma forma de atentá-lo para o caráter ficcional da narrativa –

estratégia metaficcional que, mais uma vez, rompe com a distância estética

(ADORNO, 2012) entre leitor e escritor (seja ele o narrador ou o autor implícito),

exigindo do leitor contemporâneo tornar-se “um co-partícipe, uma espécie de co-

autor, na medida em que, além de interpretar os fatos, também ativa a imaginação,

ao organizar os dados que lhe são fornecidos” (GOMES, 1993, p.120). Assim, todas

as instâncias narrativas – sobretudo o leitor que, veremos, é peça chave para o

desvelamento do autoconhecimento de Livro –, cooperam com a trajetória do

narrador que, no romance contemporâneo, volta a ser um herói em perene busca.

Aos poucos, o próprio narrador mostra que a participação do leitor na história é

essencial para alcançar seus objetivos.

Em meio à descrição de Constantino na secretaria do asilo, Livro

dramatiza uma pergunta do leitor: “Como é que tu, tendo nascido e crescido na

França, dominas tão bem o português?” (p.265) e, em seguida, elabora uma espécie

de conversa com este leitor:

47 Grifos nossos.

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Costumam pôr-me essa questão e não tenho dificuldade de responder, mas estares a colocar-ma assim, através deste livro, tão de repente, desrespeitando as dimensões leitor/narrador/autor, não me parece adequado. [...] Por outro lado, essa é uma questão apenas intuída, o que lhe retira alguma credibilidade. Por outro lado ainda, chegou em má altura, interrompeu a descrição do Constantino na secretaria do asilo e pode trazer alguma confusão a outros leitores, simultâneos ou futuros, mais acostumados aos postos tradicionais do leitor, do narrador e do autor. (p.265-266)

Deste modo, fica claro ao leitor que deve de fato participar do texto, afinal, ele não

pode ser esse leitor que ocupa o posto tradicional, ou jamais saberá ler a obra.

Hutcheon explica que:

Textos explicitamente narcisistas tornam este ato [de tomar parte em uma situação narrativa] autoconsciente, integrando o leitor no texto, ensinando-o, pode-se dizer, como tocar a música literária. Como um músico decifrando o código simbólico de uma notação musical, o leitor está envolvido em um processo criativo, interpretativo, no qual ele aprenderá como o livro é lido.48 (HUTCHEON, 1984, p.139)

Em Livro, o narrador reconhece a importância do leitor no seu processo

de busca, tanto que, ao fim do romance, agradece a participação do leitor: “Mas tu

ainda estás aí, olá, eu ainda estou aqui e não poderia ir-me embora sem te

agradecer” (p.282). Este agradecimento mostra o reconhecimento do narrador/ autor

implícito à importância da atitude do leitor diante deste texto. Se, ao ser impelido a

participar do texto, o leitor não tomar consciência da sua responsabilidade em

decodificar a leitura – deixando de lado a mera fruição para, autoconscientemente,

estabelecer novos códigos de interpretação a este texto –, se o leitor tiver a postura

de um “leitor ingênuo”, o texto não pode atingi-lo e, consequentemente, a busca pelo

autoconhecimento por meio da linguagem não se efetiva. Por esse motivo, ao fim do

romance, o narrador não só expõe sua gratidão, bem como desnuda os processos

de escrita do romance para o leitor, esclarecendo alguns pontos levantados no

decorrer do romance: 48 No original: Overtly narcissistic texts make this act a selfconscious one, integrating the reader in the text, teaching him, one might say, how to play the literary music. Like the musician deciphering the symbolic code of musical notation, the reader is here involved in a creative, interpretative process from which he will learn how the book is read.

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Aí e aqui ainda é o mesmo lugar. Sinto-me grato por essa certeza simples. A paisagem, mundo de objetos, apenas ganhará realidade quando deixarmos estas palavras. Até lá, temos a cabeça submersa neste tempo sem relógios, sem dias de calendário, sem estações, sem idade, sem agosto, esse tempo encadernado. As tuas mãos seguram este livro e, no momento, nas tuas mãos, é manhã. Nas tuas mão, a minha mãe, o Ilídio e o Cosme estão no lugar de cima, ouve-se os passos, as cadeiras a serem arrastadas. Nas tuas mãos, a vila descansa e Paris é tão longe. Às vezes, penso em ti sem te dizer. Mesmo esses pensamentos invisíveis estão agora nas tuas mãos. Seguras o meu nome. (p.282)

Por meio da integração da ficção com a realidade, o processo de escrita é

exposto e narrador e leitor identificam-se. Isso ocorre porque o texto metaficcional

não negligencia o mundo real em relação ao ficcional, mas elabora uma

autorreflexão sobre sua própria condição de artefato textual, envolvendo o leitor

contemporâneo no processo. De acordo com Diana Navas:

Paradoxalmente, a metalinguagem constrói um mundo ficcional com maior ligação com a realidade, já que a história vai se completando com a leitura, transformando o leitor em co-autor ou co-produtor, ao mesmo tempo em que desconstrói a expectativa primeira do sujeito em relação ao texto, já que este desafia o leitor, apresentando-lhe novas regras, e exigindo dele, portanto, outra postura interpretativa. (NAVAS, 2013, p.156)

À medida que o leitor vai adentrando na história, ainda que todo o tempo

seja alertado para a ficcionalidade do texto, sobretudo pela utilização da

metalinguagem, ele dá vida à obra de arte e os procedimentos de leitura e escrita se

equivalem, já que um não existe sem o outro e, novamente, o narrador de Livro

reconhece este processo de espelhamento, de integração entre o leitor e a obra

literária:

Agradeço-te por teres aceitado que este livro se transformasse em ti e pela generosidade de te teres transformado nele, agradeço-te pela claridade que entre por esta janela e por tudo aquilo que me constitui, agradeço-te por me teres deixado existir, agradeço-te por me teres trazido até a última página e por seguires comigo até a última palavra. (p.282-283)

Sem o respaldo do leitor, a busca pelo autoconhecimento não pode ser

alcançada, pois é o leitor que possibilita a existência do livro. Ademais, o narrador

tem no leitor uma espécie de cúmplice da sua busca, pois, ao aceitar transformar-se

o leitor (amador) na obra literária, que não deixa de ser ele próprio, Livro (cousa

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amada) “por virtude do muito imaginar”49, mesmo sem que se estabeleça contato

entre ambos, como ocorre no soneto camoniano, a angústia deste acaba por

contaminar aquele.

O leitor, ao mergulhar na intrincada história de Livro, contaminado pelo

poder da palavra, não consegue “sair da leitura” sem ter sido contagiado pela

errância do narrador. Por isso, o leitor angustia-se, questiona-se, partilha da

inquietude do narrador e este se torna grato. Talvez, este seja o único consolo

possível, saber que alguém compartilha da mesma agonia.

Entretanto, não é só esta relação de alteridade entre o leitor e o livro que

é alvo de reflexão do narrador ao final do romance. Outra ligação metalinguística é

desnudada por Livro: “Este livro que estás a ler e que estou a escrever, onde

estamos, é exatamente o mesmo que a minha mãe me pousou nas mãos, como na

primeira frase. Também esse livro era este. O início também é agora” (p.282). Ao

tornar possível, por meio da ficção, a fusão do livro que está sendo escrito, com o

livro que está sendo lido, com o objeto-livro que foi dado a Ilídio por sua mãe,

posteriormente repassado a Adelaide e, ainda, ao próprio narrador, a obra se

multiplica, pois um livro está inscrito dentro de outro livro que está sendo escrito por

um narrador chamado Livro, desdobrando-se em múltiplas possibilidades, em mise-

en-abyme. É como as bonecas tchecas, babushkas, que se encaixam uma dentro da

outra até que a menor, feita de madeira maciça, sugere a infinidade do processo,

visto que não pode ser aberta.

A estrutura do romance, então, apresenta-se de forma cíclica e o

narrador, refletido no próprio romance, indica como, mesmo quando o romance é

narrado em terceira pessoa, está presente todo o tempo na história. Livro é o nosso

narrador errante, o nosso herói problemático, que viaja por toda a narrativa em

busca de autoconhecimento:

A metáfora da viagem que se traduz como imagem da busca (os heróis, afinal, estão sempre em busca) torna-se mais complexa no romance português contemporâneo, quando se desloca do universo das personagens para o universo do narrador. Em vez de este se comportar como mero condutor de narrativas, agora, ele é um ser complexo, que procura um sentido para sua existência. O narrar é a aventura errante, a que as vozes se entregam, no afã de encontrar o próprio lugar no mundo.

49 Referimo-nos aqui ao soneto camoniano cujo incipt é “Transforma-se o amador na cousa amada”, que trata da temática do amor platônico.

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Com isso, toda a massa do romance ganha intenso dinamismo, pois os elementos estruturais tornam-se mais elásticos, de modo a permitir o livre movimento dessa entidade. (GOMES, 1993, p.123)50

Esta aventura errante, porém, não encontra seu desfecho no final efetivo

do romance, justamente devido a esta circularidade. O desfecho expressa-se antes,

na própria encenação da linguagem, nos seus múltiplos desdobramentos, na

materialização da angústia do narrador e do leitor deste romance que não finda no

ponto final.

A elasticidade dos elementos estruturais que dão dinamismo ao romance,

conforme citou Álvaro Cardoso Gomes, atinge o ápice em Livro, já que o narrador é

a personificação da própria obra, criando uma espécie de ‘voz soberana’, a voz do

romance que se faz sozinho, não mais a voz do autor por trás do texto, como se

acreditava tradicionalmente. Segundo Roland Barthes, o autor ‘morre’ para dar vez a

uma escrita que “é a destruição de toda a voz, de toda a origem [...] esse neutro,

esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco

aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que

escreve” (BARTHES, 2004, p.57).

Embora, na segunda parte do romance, a figura do escritor apareça como

personagem com certa frequência, parece que tal procedimento, ironicamente,

afasta o autor, essa pessoa “do tamanho das outras” (p.281), do romance. Além de

aparecer como personagem secundária e não possuir traços que o caracterizassem

como ser ‘real’, o escritor é alvo de duras críticas no texto. Diana Navas explica que:

Denunciando, a todo momento, o processo de construção narrativa, o autor estaria a apontar-nos, por meio da personagem autora de mesmo nome, o fato de que aquilo que a tradição convencionou denominar autor, não é senão uma construção discursiva. Uma personagem que, assim como as demais do romance, nasce ao mesmo tempo em que seu texto. (NAVAS, 2013, p.181)

Retomando a teoria barthesiana a respeito da morte do autor, é

importante notar que o crítico francês enfatiza que “é a linguagem que fala, não é o

autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia [...], atingir aquele ponto

em que só a linguagem atua, ‘performa’, e não ‘eu’” (BARTHES, 2004, p.59). É o

que ocorre em Livro. Se pensarmos, por exemplo, que a primeira parte do romance

50 Grifos do autor.

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é narrada por um narrador onisciente, mas que, posteriormente, a jovem

personagem Livro assume a narrativa também desta parte, ao mesmo tempo em

que declara não ter a vivência e a experiência necessárias para contar essa história

(experiência esta que o autor empírico também não possui), deparamo-nos com a

morte do autor, do romancista tradicional – a morte deste sujeito uno, que detém

todo o conhecimento e o controle do texto. Com ele, morre também a verdade

absoluta, a resposta acabada, o texto ideal, com início, meio e fim. Como declara

Benjamin:

O romancista segregou-se. O local de nascimento do romance é o indivíduo na sua solidão, que já não consegue exprimir-se exemplarmente sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar. Escrever um romance significa levar o incomensurável ao auge na representação da vida humana. Em meio à plenitude da vida e através da representação dessa plenitude, o romance dá notícia da profunda desorientação de quem vive. (BENJAMIN, 1983, p. 60)

A crise do sujeito – angustiado por não conseguir obter as respostas da

sua procura, por não atingir o autoconhecimento, visto que ele já não é um sujeito

unificado – que não consegue expurgar os fantasmas que o inquietam, repercute

num romance também em crise, pois, por mais que tente se [re]conhecer na própria

escrita, constata que sua busca é vã. A narrativa, ao voltar seu olhar para si, põe-se

à beira do abismo, mas não morre – entra em crise, assume seu caráter

fragmentário, perde sua linearidade, concebe novas estruturas, recusa o mero

ludismo.

Em Livro, essa crise infindável, essa impossibilidade de encontrar uma

resposta para sua busca pela autognose – tanto da personagem Livro, como do

próprio romance, que como vimos, acabam por ser um só –, culmina na insistência,

na repetição, na circularidade labiríntica do romance: “Se acaba conforme começa é

porque não acaba nunca” (p.282). Em suma:

A metaficção representa, sim, a busca da identidade, mas ao mesmo tempo define essa busca como agônica: dizer quem sou é uma necessidade que me exige sair de mim para poder me ver, o que é uma impossibilidade. Corro atrás da minha própria imagem, portanto, da minha própria origem, como a serpente urobórica corre atrás da sua própria cauda. (BERNARDO, 2010, p.52)

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Considerações Finais

José Luís Peixoto é um importante autor da contemporaneidade

portuguesa. Como vimos, sua obra inscreve-se na pós-modernidade sem abandonar

a tradição. Trata-se de um autor ligado à geração precedente, sobretudo a António

Lobo Antunes e José Saramago, compondo com eles e outros importantes autores,

o que chamamos aqui de literatura contemporânea51 portuguesa.

Lobo Antunes e Saramago, bem como outros autores da mesma geração,

têm como traço comum em suas obras, a apropriação da História de Portugal –

muitas vezes uma História bastante recente para eles –, para, com olhar cáustico e

desencantado, desconstruí-la. Embora Peixoto olhe com certo distanciamento para

essa História, cuja realidade ele não experimentou, muitos pontos de sua narrativa

assemelham-se à literatura dos autores finisseculares recentes. Além da revisitação

à tradição portuguesa, Peixoto também explora temáticas políticas, religiosas e até

geográficas, como o fato de Portugal parecer um país afastado do mundo, de forma

irônica e desolada.

Não há exaltação do modelo tradicionalista de vida por meio dos

escritores contemporâneos, mas uma análise e desnudamento do modo de vida

tradicional, revelando seus valores (muitas vezes deturpados), as formações

familiares, a hipocrisia religiosa, os hábitos, enfim, toda a estrutura dessa sociedade.

Em Livro, Peixoto desvela a pequena vila do Alentejo de forma magistral. Aborda

temáticas duras, como o abandono do menor Ilídio; o aborto da velha Lubélia; a

pedofilia e o estupro, dos quais a mãe de Ilídio foi vítima e seus algozes foram o

padre e o seu pai; a cruel separação do casal apaixonado Adelaide e Ilídio; a

convocação dos jovens para a guerra, como aconteceu com Cosme; e, por outro

lado, temas carregados de lirismo, como o primeiro amor de Ilídio e Adelaide; a

amizade verdadeira entre Galopim, Ilídio e Cosme e o amor paternal de Josué por

Ilídio.

Na segunda parte do romance, quando algumas personagens já estão

morando em Paris e o narrador se apresenta, é que a tensão entre a ruralidade e o

cosmopolitismo se instaura e a história transita entre o rural e o urbano, entre a

tradição e a contemporaneidade. Nota-se que, por intermédio da escrita, mais

51 Por vezes, tratamos de literatura pós-moderna, sem distinção de sentido entre os termos.

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especificamente da metaficção, a experimentação individual transforma-se em

universal. Livro é a personagem que melhor representa essa tensão e acaba

absorvendo-a de forma conflituosa, visto que, por estar nesse entremeio, já não

consegue se reconhecer. Por mais que tente resgatar suas origens, ele é um sujeito

típico da contemporaneidade, esfacelado, e a busca que ele empreende para tentar

recuperar a hipotética unidade perdida, mostrar-se-á inútil.

Este insólito narrador recupera a história original dos seus pais, desde a

infância, restaura todo o caminho que eles fizeram até o reencontro, mas isso não é

suficiente para que ele alcance a sensação de pertencimento que ele não possui.

Sua história é lacunar: não teve um amor real, foi criado por um homem a quem

nunca chamou de pai, tampouco sentia amor por ele, e com quem a relação sempre

foi rude – até pelo fato de saber que Constantino representava seu maior medo, por

ser um homem, ao mesmo tempo, culto e vazio – projeta em sua mãe suas

frustrações e, ao perceber que ela tem vida própria, mais uma vez encontra-se

sozinho, além de ver no seu pai biológico, Ilídio, apenas um estranho. Ao fim do seu

intento, a única pessoa em quem ele parece confiar, depositar alguma esperança é

no leitor. Assim, estabelece-se entre eles uma relação de cumplicidade e o leitor

passa a ser coautor do romance e, de certa forma, partícipe da vida de (ou do) Livro.

Ao analisar o percurso desse herói problemático, notamos que a forte

carga metalinguística carregada por seu nome – que acaba por sugerir que narrador

e obra são um só –, revela outra busca, ainda mais profunda, no plano linguístico, a

busca errática do próprio romance pela sua identidade. A escrita, assim como o

sujeito que se reflete nela, é fragmentada, truncada, conflituosa. No âmbito do texto,

esta procura instaura-se no revelar do avesso da tessitura narrativa, na

demonstração do sua própria poiesis, ou seja, através da metaficção, que apresenta

o processo e o produto de forma especular:

A desconstrução metaficcional [...] oferece também modelos precisos para o entendimento da experiência contemporânea de mundo como uma construção, um artifício, uma teia de sistemas semióticos interdependentes [...] Ao mostrar-nos como a ficção cria seus mundos imaginários, a metaficção ajuda-nos a entender como a realidade que vivemos no dia-a-dia é similarmente construída, similarmente “escrita”.52 (WAUGH, 2003, p.18)

52 No original: Metaficcional deconstruction [...] has also offered extremely accurate models for understanding the contemporary experience of the world as a construction, an artifice, a web of interdependent semiotic systems. […] In showing us how literary fiction creats its imaginary worlds,

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O olhar para o mundo interior do narrador e do texto, simultaneamente,

denuncia a aventura ousada, arriscada de tentar expurgar os fantasmas que

inquietam o sujeito e desvendar o próprio universo das palavras. Mas, nem mesmo

essa busca consegue obter resultados profícuos. O texto perde sua narratividade,

seu enredo fica mutilado e, ao assumir a errância do narrador, entra numa crise

irrecuperável.

Assim como ocorre com o narrador, também ao romance o leitor aparece

ao final como uma possibilidade de saída desse labirinto. O leitor é solicitado a

desfazer as amarras do emaranhado da tessitura narrativa. Porém, ao deparar-se

com a angústia do texto, o leitor, que ganha status de coautor e também se aflige,

partilha da consternação, da inquietude que já tomou o narrador e o texto. A

investida última deste romance pós-moderno de resgatar a tradição para,

novamente, reaver as origens, leva o texto a tentar uma circularidade, a retomar a

primeira frase do texto – mais uma vez por meio de uma estratégia metaficcional –,

mas também fracassa. O que fica é a insistência numa via sem saída, a repetição da

falha e, nem mesmo o fim da agonia é possível.

metafiction helps us to understand how the reality we live day by day is similarly constructed, similarly ‘written’.”

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