alter, robert - anjos necessários - tradição e modernidade em kafka, benjamin e scholem

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ANJOS NECESSARIOSTradifi'io eModernidade en'lKafka,

Benjan'lin eScholen'l

Tradw;aoANDRE CARDOSO

Imago

Page 3: ALTER, Robert - Anjos necessários - tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem

Titulo originalNECESSARYANGELS

Copyright © 1991 by Robert AlterExporta~ao' proibida.

Revisao: Vera L~cia Santana de SouzaFlorine Nazare Pinto

CIP-Brasil. Cataloga~ao-na-fonteSindieato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Alter, RobertAnjos necessarios: tradi~ao e modernidade enl Kalka,

Benjamin e Scholem/Robert Alter; tradu~ao, AndreCardoso. -Rio de Janeiro: Imago Ed" 1992,

168p. (Colc~ao Bereshit)

Conferencias Gustave A. e Mamie W. EfroymsonApresentadas na Hebrew Uni~n. ~ollege-

Instituto Judaico de Relzgwo,em Cincinnati, Ohio, em ma'l'((Ode 1990.Tradu~ao de: Necessary angels: tradition and modernity

in Kafka, Benjamin and Scholem.ISBN 85-312-0263-9

1. Kafka, Franz, 1883-1924.2. Bet"!iamin,Walter, 1892-1940.3. Scholem, Gershom Gerhard, 1897- . 4. Inteiectuaisjudeu-alemaes. 5. Literatura alema - Hist6ria e critica.I. Titulo. II. Serie.

Todos os direitos de reprodu~ao, divulga~aoe tradu~ao sao reservados. Nenhuma partedesta obra poder:i ser reproduzida por fotoc6pia,microfilme ou outro processo fotomecanico.

Direitos adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA.Rua Santos Rodrigues, 201-A- EstacioCEP 20250430 - Rio de Janeiro - RJTel.: 293-1092

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

CDD-830.09CDU - 830(09)

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Para Leo Lowenthal,como presente pelo seu nonagesimo aniversario

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Prefacia11

UMA carrespandencia sabre Kafka

19

DOISSabre naa se saber hebraica

47TR!S

o pader da texta93

QUATRORevelac;aa e memoria

125

Natas159

Jndice165

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Ao eSCl'evereste Iivro, tive a experiencia cativante de teste-munhar a autodescoberta de urn objeto de estudo. A argu-menta~ao nao tomou 0 rumo que eu espcrava, e 0 materialabordado me ensinava coisas novas sobre si mesmo a cadaetapa do caminho.

Kafka, Benjamin e Scholem ja eram alvo constante domeu interesse enquanto crftico desde a decada de 1960.Tive a fclicidade de estabelecer urn rclacionamento cordialcom Gershom Scholem, 0 unico desses tres escritores queme seria cronologicamente possivel conhecer pessoalmen-te. Ele l1)edeu urn grande estimulo em 1969, quando tenteiescrever sobre Benjamin pela primeira vez (os ensaios queescrevi sobre Benjamin e Scholem nessa epoca foram repu-blicados no livro Defenses oj the Imagination. fJJeJesas da imagi-na{:aoJ). Neste ensaio de 1969, apontei para a profundaafinidad espiritual existente entre Benjamin e Kafka, alemde aludil' a uma certa conexao entre os dois e 0 escritor he-breu S. Y. Agnon. 0 primeiro capitulo deste livro procuradescrevel' 0 nexo entre Kafka e Agnon, conforme ele erapercebido pOI'Benjamin e Scholem. 0 que eu nao podia sa-ber 20 alios atras - ja que a correspondencia entre Benja-min e Scholem nao tinha sido publicada e muitas daspalestras tnais importantes do historiador judaico ainda naotinham sido apresentadas - era que Kafka ocupava uma po-si~ao central no mundo interior de Scholem.

Quando 0 Professor Michael J. Cook, representando aHebrew Union College, de Cincinnati, convidou-me para

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apresentar as conferencias Gustave A. e Mamie W. Efroym-son de 1990, pensei que seria possiveI estabelccer uma"triangulac;:ao" entre Kafka, Benjamin e Scholem. Quandosugeri este topico, no entanto, ainda nao sabia muito bemcomo iria desenvolve-Io. Havia uma instigante anomalia, outalvez apenas uma coincidencia, que poderia ser digna deatenc;:ao. Kafka e considerado, com toda razao, como 0 mo-deIo do modernista entre os escritores de prosa. A reputa-c;:aode Benjamin como um dos maio res criticos literariosdeste seculo e um grande observador teorico dos dilemasda modernidade cresce cad a vez mais. A importancia deScholem como um dos principais historiadores da nossaepoca e indiscutivel. BerUamin e Scholem eram amigos inti-mos, e ambos sempre tiveram uma enorme fascinac;:ao pOl'Kafka. Os tres escritores cresceram em familias extrema-mente assimiladas que falavam alemao, e todos eIes se revolta-ram contra os valores culturais de seus pais, procurandorealizar, de maneiras bastante diversas, um encontro pro-fundo com a tradic;:aojudaica que eIes tinham abandonado.

Uma das minhas idCias iniciais era tentar mostrar comoestes tres intelectuais judeu-alemaes, justamente pOl' se si-tuarem num limiar entre a tradic;:ao e a modernidade, fo-ram capazes de desenvolver nos seus respectivos vclculosliterarios uma visao aprofundada dos dilemas da moderni-dade. Nesse sentido, todos eIes eram, como ja indiquei nocaso de Kafka, figuras exemplares, mas nao tipicas. Umpouco dessa intenc;:ao original de descrevel' 0 escritorjudeucomo um modelo de modernismo pode ser percebida nosc~pitulos, a.seguir. No inic~o, ~alvez influenciado peIos auspi-CIOS teologlcos das conferenCias Efroymson, tambem penseiem estudar a relev~ncia ~ue imponantes categorias teologi-cas, como a revelac;:ao, a lll1guagem divina, a lei, e a exegese,teriam para os tres escritores. 0 leitor nao tera dificuldadede identificar aqui os vestigios deste projeto metafisico. No

entanto, 0 que descobri ao percorrer os textos destes tresescritores foi que os dados biograficos e a ambientac;:ao his-torica concreta de seus diversos empreendimentos liter<irioseram de um interesse mais profundo e muito mais reveIa-dores do que qualquer generalizac;:ao conccitual. Ou me-lhor, as categorias gerais so poderiam ser compreendidasde forma coerente se as suas raizes intrincadas estivessemfirmadas na vida dos escritores. Ficou claro, tambcm, quegrandes juizos a respeito do modernismo teriam que dar lu-gar a observac;:6es sobre 0 momenta cultural espedfico vivi-do pelos judeus que falavam alemao nas primciras dccadasdeste seculo.

o que comec;:ou a tomar forma, entao, a medida quefui fazendo uma reIeitura de Kafka, Ber~jamin e Scholcm,foi uma especie de descric;:ao fenomenologica das "estrutu-ras de consciencia" destes intensos judeus pos-tradicionais,nascidos no ambiente da Alemanha moderna. A minIm ar-gumentac;:ao foi deixando de lado as grandes obras de fic-c;:ao,de sintcsc critica e de historiografia - apcsar cle c1as, eclaro, jamais poderem scr ignoradas - para se concentrarnas canas, nos diarios e anotac;:6es, nos escritos gnomicosou fragmentarios dos tres cscritores. A luz dos novos aspec-tos reve1ados pOI' este material, 0 assunto abordado foi to-mando a aparencia de um tesouro encontrado pOI' acaso.Ficou claro que nao havia apenas vagas correspondenciasentre cad a escritor, mas sim uma elaborada rede de ima-gens, conceitos e processos criativos que os unia. Estes ele-mentos em comum, que formam uma espccie de filigranada imaginac;:ao dos tres, nao se Iimitavam a interesses inte-lectuais mais amplos, como a sua afinidade com a cabala.Eles tambem se manifestavam, de forma bastante revclado-ra, em detalhes fortuitos: um estranho interesse pOl' alfabe-tos e pelo ato fisico da inscric;:ao, um fasdnio pela simplesno(.ao de texto e pela ideia de que a texlualidade era 0 vcl-

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culo ~a verdad~, alcm de uma grande atra~ao pela imagemd~ anJos. !udo !SSOme fez perceber algo inesperado _ quea mterartlcula~ao de Kafka, llenjamin e SchoIcm revelavaU1~ladimensao de sua obra que nao era aparente ao se exa-mmar cad a um deles separadamente. Cabe, e claro, aos lei-tores julgar pOI' si mesmos se isso ficou provado comclareza aqui, mas 0 que estou tentando fazer neste livro emos~rar COI~10a nostalgia (depurada de qualquer tra~o desentlmentallsmo) que os tres escritores senti am pdo mun-do conceitual e espiritual da tradi~ao judaica dava, ao mes-mo tempo, um direcionamento especffico a sua escrita,alem de uma clareza especial a sua percep~ao da moderni-dade.

Gostaria de acrescentar que apresento a afinna~ao aci-ma sem a menor pretensao de tel' encontrado a chave magi-ca para se compreender qualquer um desses escritores. Ainfluencia do )u~afsmo .foi obviamente decisiva paraS.cholem, um SIOnista dedlcado e um dos principais histo-nad?r~s cIa mfstica judaica, e h;\ indfcios biograficos consi-deravels de que ela tinha quase a mesma importallcia pal"aKafka, apesar de temas explicitamente judaicos raramenteaparecerem em sua obra ficcionaI. 0 judafsmo tambcm foiuma das ~Tande~ preocu~a~?es de ller~jamin, se bem qued~ forma mtermltente, pnnclpalmente depois que elc deci-dIU se c?ncentrar no estudo da cultura europeia 1II0derna eseu antigo messianismo judaico foi se convertendo numprojeto marxista de reden~ao historica. Dc qualquer manei-ra, 0 fato de me concentrar aqui no pano de fundo da tradi-~ao judaica nao deve sel" entendido como um desprezo pOI'o~tros panos de fundo igualmente importantes: Flaubert,Klerkegaard, e 0 Expressionismo alemao, no caso de Kafka;o ~eokantismo e 0 marxismo, em llenjamin; a filologia ale-ma e (apesar de suas negativas) Nietzsche, em SchoIcm. Oscontextos, COlltOmostram os teoricos contemporaneos, po-

dem se estender £10infinito, e com a gigantesca literaturasobre Kafka e a bibliografia em rapida expansao sobre llen-jamin e (en~ men~r escala). SchoIem, nao I:estam dllvic!as deque ha mUlto mals a se dlzer sobre os dlversos amblentesculturais de cada um deles. I-la, portanto, diversas perspec-tivas pertinentes que nem chegam a ser insinuadas no meutrabalho, que procUl"a apenas definir a matriz judaica dostres escritores. Se esta defini~ao for atingida com algum su-cesso, ela talvez possa nos revelar alguma coisa a respeitodo projeto dos tres escritores, sobre 0 modo como encara-yam a condi~ao moderna, e talvez ate mesmo sobre os dile-mas do judafsmo depois do esfacelamento do mundotradicional da fe.

Eu gostaria de agradecer a Hebrew Union College porterfOl"necido 0 estfmulo para esta pesquisa, £10me convidarpara apresentar as Conferencias Efroymson, e pOI' toda agentileza com que Cui tratado durante a minha estada emCincinnati em marc;o de 1990 (as tres palestras la apresenta-das correspondem basicamente aos capftulos dois e tresdeste livro). 0 capftulo um apareceu numa forma Iigeira-mente diferente em The New Republic, e estou grato aosseus editores pOI' terem me concedido 0 direito de publica-~ao deste material. 0 desenvolvimento deste trabalho foipossfvel grac;as a uma compIcmenta~ao salarial sabaticapaga pelo fundo da Cadeil"a de Literatura Com parada daTurma de 1937 da Universidade da California, em Berke-ley, que tambem cobriu os custos secretariais. 0 manuscritofoi preparado com uma paciencia admiraveI, e uma enonneaten~ao aos detalhes, pOI'Janet Livingstone. Estou especial-mente grato a Michael Bernstein porter lido 0 rascunho eporter me dado um gl"ande incentivo a respeito do valordeste empreendimento, baseado I~;:>conhecimento profun-do que possui do assunto abordado.

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Os versos de "Anjo cercado de camponeses" (copyright1950 de Wallace Stevens) foram retirados de The CollectedPoems of Wallace Stevens [Poemas coligidos de Wallace Stevens],com a permissao de Alfred A. Knopf, Inc. As cita~oes de"Um sonho" sao retiradas de Franz Kajka: The Complete Sto-'lies [Franz Kafka: histG-liascompletas], editado pOl' Nahum N.Glatzer, e foram reproduzidas aqui com a permissao deSchocken Books, publicada pe1a Pantheon Books, uma sub-sidiaria da Random House, Inc., copyright 1946, 1947,1948,1949,1954, © 1958, 1971 de Scho\:ken Books, Inc. 0frontispicio, 0 Angelus Novus de Paul Klee (pena, tinta e pas-tel; 1920) foi reproduzido pOl' cortesia do Museu de Israel,em Jerusalem.

Yet I am the necessary a'ngel of earth,Since, in my sight, you see the earth again,

Cleared of its stiff and stubborn, man-locked set,And in my hearing, you hear its tragic drone

Rise liquidly in liquid lingerings,Like watery words awash; like meanings said

BerkeleyAbril de 1990

Wallace Stevens,"Angel Surrounded by Paysans"

Mas sou a anjo necesscilio da ten'a,Pais pelos meus olhos vedes a tena de novo,

LivH! do duro e teimoso l'ebanho do homem,E pelos meus ouvidos, ouvis seu munnu110 tl1ste

ElgueNe lentamente em liquidos limpidosComo liquefeitas palavl'as pel'didas; como significados ditos

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A CORRESPONDENCIASOBREKAFKA

Aquilo que voce escreveu a respeito de Kafka meconvenceu. Durante as semanas que passei estudando 0

problema com a maior profundidade possivel,ocorreram-me ideias que correspondem exatamente assuas.

Walter Benjamin a Gershom Scholem,3 de outubro de 1931

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o relacionamento entre Wal-ter Benjamin e Gershom Scholem e certamente uma dasmais extraordinarias amizades inte1ectuais do seculo XX.Nao e so que os dois apresentassem um pensamento inova-dol' de primeira linha - Benjamin enquanto crftico, Scho-lem enquanto historiador - modificando os horizontesinte1ectuais de seu campo, ou que tivessem estudado pro-fundamente, durante 25 anos, questoes de ordem inte1ectuale espiritual que ainda parecem ser de extrema importancia;e que alem disso, em nivel de relacionamento humano, a fi-bra moral de sua amizade mostrou-se finne e resistente,apesar das opc;6es pessoais radicalmente opostas que ambostomaram e das circunstancias historicas ang-ustiantes emque viveram. Eles compartilharam as paixoes inte1ectuais deseus anos de estudantes ate 0 fim. Nunca hesil.aram emquestionar um ao outro, mesmo quando as suas divergen- .cias eram dolorosas, como, pOl' exemplo, no momenta emque Ber~jamin decepcionou Scholem ao passar (ainda quede uma maneira ambfg-ua) de uma perspectiva metaffsicapara outra marxista. Nunca deixaram de fazer enormes co-branc;as entre si, pois sempre tiveram as maiores expectati-vas em relac;ao as suas respectivas habilidades. Quaisquerque fossem as suas diferenc;as ideologicas, um sempre sen-tiu uma grande afeic;ao pelo outro, e uma enorme admira-c;ao pela sua intelig-encia. Nos {iltimos 12 anos desterelacionamento, e possive! que Scholem galgasse as vezes 0

pedestal e1evado da autoridade, e que Benjamin permitisse

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que ele desempenhasse 0 pape! de seu superego judaico.. De qualquer maneira, 0 profundo respeito mutuo que sen-

tiam nunca foi abalado, e Scholem mais tarde moslrou pro-funda devo<;ao ao legado p6stumo de Benjamin.

Scholem e Benjamin se conheceram em Berlim, sua ci-dade natal, no vedo de 1915, quando Scholem t.inha 17an os e meio de idade, e Benjamin, 23. Os dois estavam pl'O-fundamente envolvidos nos debates ideol6gicos do movi-mento estudantil alemao daque!a epoca. Ambos cstavamnum processo de intensa rebe!iao contra a com placencia doambiente burgues de judeu-alemacs assimilados cm que vi-viam, e tinham decidido enfrentar 0 mundo com aquiloque Scholem veio a chamaI', nas mem6rias de sua amizacle,de "exigencias radicais" - exigencias que cada um conli-nuou a fazel', a sua maneil'a, pe!o resto cia vida. No caso deScholem, esta rebe!iao ja tinha se manifestado numa totalrejei<;ao a assimila<;ao - que se concretizou na ado<;ao dosionismo, num mergulho no hebraico (lingua que conse-guiu dominar em apenas dois anos) e no eSludo clo Talmu-cle e cle OUlros textos judaicos. Bertiamin, principal mentepOI' causa cia inOuencia de Scholem, cogitou varias vezcs napossibiliclacle cle se dedicar a estes tres campos _ pdo me-nos duranle os 15 an os seguintes - mas nunca conseguiuabandonar 0 estudo das culturas alema e franccsa, No en-tanto, mesmo nos momentos mais entusiasticos cle seu" " ( dnamoro nunca consuma 0 pOI' completo) com 0 comu-nismo, a sua fascina~ao pe!o juclaismo nao esmoreceu _ urnenvolvimento que fazia com que os marxistas, incluinclo 0

seu problemalico amigo Bertolt Brecht, 0 encarasscm comcerta clesconfian<;a.

Nos aliOs quc se seguiram ao seu primeiro cnCOlllro,~el~~min e Scholcm passaram cacla vez mais lcmpo jUlllos,lI1c1ulllclo uma longa temporada entre 1918 e 1919 na Suf<;a- oncle Bel~amin CSlava morando com sua mulhcr, Dora _

A Correspondencia sobre Kafka

em meio a clesaven<;as domesticas diarias, nas quais ~cho-lem acabava se envolvendo inadvertidamente. De.po.ls d~voltar a Alemanha, seus encontros se ton:an~ mals II1tel-mitentes, e 0 volume de sua correspondencla come<;a a

'escer. Os sinais de intimidade nas cartas aumcntam len-CI d d "JT S lolem'"tamente: no inicio, Scholem e chama 0 e ?e'l'l' c 1.. '

depois, de "Caro Gerhard", mas Benjamin ainda se dmge ae!e com 0 pronome formal Sie; s6 em mea~os de 1~2.1 :Ieira utilizar 0 tratamento informal Duo Depois da .emlgl a<;aode Scholem para a Palestina, em 1924,.0 re1aclOnamentoentre os clois torna-se completamente epistolar, c.om .a exce-<;ao de dois breves encontros em Pal:is - 0 pnmell'O em1927, e 0 segundo em 1938, apenas dOJs anos antes de Ben-

jamin se suicidal', ao pensar que estava sendo. ban'ado na. E I d tentava fug"lr da Fran<;afrontelra com a span la, quan 0 ,

ocupada pe!os nazistas. A •

Uma edi<;ao em dois volumes da corresponclcncl~ d~" . d'S] I Theodor Adorno fOJBenJamm, orgamza a pOI c 10 em e. _ .,' .

publicacla na Alemallha em 1966 (e!a all1da nao fo~ tl,~duZI-d . IA) A partir de 1917 a grande maIOJla dasa para 0 ll1g es . ,cartas e endere<;ada a Scholem. Bel~amin, no entanto, pos-

, d n;"'lOpI'cservaram as suasSlua outros correspon entes quc , 'A .cartas com a mesma meticulosidade. A correspondcncla pu-blicacla, entao, nao representa toda a varieclade dc, S~taSco-nexoes epistolal'eso Ja que Scholem guar~ou copl,as ?eapenas cinco das cartas manuscritas que envlOU a .Bel~amll1,

dA • - a 'ece Ben1amll1 tam-a Sua parte cia correspon encla nao ap, I ':J .

b' cI'cI d . d pape'l's (da Inesma manel-cm era um gran e gual a 01 e, ,ra que os dois eram bibli6filos apaixonados), mas quando

. 0 . d 1933 as autoridades na-ele fuglll de BedIm em mal <;0 e , ,. d d ape'l's e nCllhum de-Zistas se apoderaram e to os os scus p" ,

I' d N '] , [ufTa desta vez de Pans,es [OJ preserva 00 a sua ulIma 0" ,.

" ,. de papcls de-em 1940, de deixou para tras mals uma sene ( '.. G' [oram presel-vlclamente confiscados pda eSlapo, que so

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vados por terem ido parar acidentalmente no arquivo doPariseI' Tageszeitung, No fim da guerra, e1es foram transferi-dos para a Russia e, mais tarde, para os arquivos da Repu-blica Democr;itica Alema, em Potsdam, Scholem soube daexistencia desses papeis, e em 1966 obteve uma pennissaopara examina~los nos arquivos da RDA, onde encontrou to-das as cartas que tinha escrito para Benjamin a partir de1933, Prometeram-Ihe enviar fotocopias, mas os caprichosda burocracia comunista intervieram, e so 11 anos mais tar-de, na epoca de seu octogesimo aniversario, as copias fo-ram entregues inesperadamente. POl' causa desseafrouxamento momentaneo de uma burocracia sem rosto,possuimos agora um valioso conjunto de documentos sobrea historia do pensamento moderno, A edi~ao alema, orga-nizada por Scholem, apareceu em 1980, dois anos antes desua morte (agora as cartas podern ser lidas numa versao emingles, que e de modo geral competentet Trata-se de umlivro que combina brilhantes especula~6es e argumenta~6esde ordem filosofica e cultural com a for~a da autobiogra-fia, erguendo um espelho luminoso diante de uma epocasombria.

Mesmo na forma unilateral em que foi preservada, aprimeira fase da correspondcncia, que precede a emigra~aode Scholem, apresenta muitas vezes 0 aspecto de uma dis-cussao infatigavel entre dois universitarios brilhantes, quese estende para alem de um seminario apresentado emaula, Benjamin, obviamente respondendo a uma serie deproposi~6es apresentadas pOl' Scholem em cartas que de-vem tel' sido iguallllente extensas, busca constantementenovas defini~6es e distin~6es, num esfor~o de compreendera teoria do conhecimento de Kant, 0 cubismo e 0 slntus darepresenta~ao na pintura, a teologia de Franz Rosenzweig,a natureza da linguagem, entre outros assuntos, As primei-ras cartas de Benjamin apresentavam uma certa autocon-

A Correspondencia sobre Kafka

cluvida era compartilhada pOl'fian~a arrogante, que sde~ tinha pacicncia para a superfi-

hurn dos OIS AScholem: nen , .. rrofessores e contemporaneos,cialidade da mal0lla de seus os unicos grandes intelectos

, orno se fosselTI . de aglam quase c A cia juvenil que nao delxava ede seu meio (uma extravagan

. - de ser),ter uma certa 1azao . ' . I que cobre os anos entredencla bllatCl a , . ,

A correspon 'm estado de espirito mars so-40 tra os dOls nU

1933 e 19 , mos, mais sombrio, Essa mudan~a. , sate meSlTIO ' d' ,bno, e, as veze , . _ 'dos acontecimentos mun ralS

•• A nCla nao soera uma conseque , d dtagio que tinham atingido nad'S tarnbem 0 e" , Ia epoca, ma , . 1 al'lmentado 0 seu 1I1teecto

, Al nha que tl01a ,sua VIda. A ema b/" Beniamin estava exilado, , D ' as da bar ill Ie, :Jsucumblra as 01(-£ 'd omoJ'ornalista (ree-lance.d nhar a VI a c J'na Fran~a, tentan 0 ga d t contribui~ao do marxista eRecebia tambem uma mo ,es .as 'Ia'is que tinha sido trans-, ' . d PesqulsaS oc < ,ec1etlco Instltuto e I ' e Porem ele dispunha

f . Nov~ OlqU . ,ferido de Frank urt pal a . ue mal !)odia pagar ,pelo, d'- llCOSrecut 50S, qas vezes e tao po . 'l)or causa de sua pobreza

Viasuas ca' las.papel em que escr~ t. em 1931 ja tinha pensado nae constante margll1ahdade, 'g'llnento de Hitler, e1e

"d' COl}l 0 SUIpossibilidade do sUlCI 10, l' a de luna nova g'uelTael'spec IV <

remoia constanteillente a P 0 usa de um gas venenoso,mundial na qual, alvez corn, '

. d .. teOllll1ada,toda a humamda. e .sella ~x "de Berlim a]erusalem" (litulo

Scholem, ctUa J111haIe~a t' stava com os zigueza-d b· fl· p'\rcnl) con 1a

a sua auto IOgra a '. t. dis unha de grande seguran-gues vocacionais de BenJamlO P . 0 de pl'ofessor de

A' no calg~a profissional e economlca Universidade Hebraica, fun-mistica judaica que ocupava n 'd Pa1estina. No entan-

, d ua ch~ga a na , .dada um ano clepol e s , 'isla em que Vlvla era

, d d 936 omu11lda e Sl0n .to, es e 1 a d de ataques assaSS1l10Sb lada pOI' ,on as <', ,

constantemente a . de Scholem tentar se ater apOI' parte dos arab€s, .Ape,sat I formado pOl' arabes e ju-ideia de um Estado bll1aClOn.. ,

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deus, foi ficando cada vez mais claro para e1e que nao ha-veria uma soluc;ao padfica para 0 con£lito entre as duas co-munidades da Palestina, Tudo aquilo que esperara dosionismo, no que dizia respeito a renovac;ao espiritual dosjudeus, parecia estar condenado peIas divisoes internas,pe1a [alta de visao, pe10 extremismo e peIa politicagem exa-cerbada de varios membros do movimento, Isso aconteciaexatamente no momenta em que os judeus da Europa esta-yam sendo vitimas do isolamento e de uma ameac;a crescen-te. Se Benjamin era um caloroso devoto da culturaeuropeia, completamente desiludido com 0 seu futuro,Scholem, pe10 menos em alguns momentos, estava igual-mente desiludido com 0 futuro do sionismo. Assim, apenas60 dias antes do inicio da Segunda Guerra Mundial, eIe es-creve uma carta a Benjamin de Jerusalem, em que diz que aexperiencia dos seis anos anteriores nao deixava nenhumaesperanc;a de que uma revoluc;ao solucionaria os problemasda humanidade. "0 movimento opera.rio, enquanto um fa-tor politico revolucionario, esta mais morto do que 0 cada-ver de um cao, nao adianta manter qualquer ilusao a esterespeito," Isso derrubava as crenc;as politicas de Be,~amin(que, segundo aqueIes que Ihe eram chegados naqllelc tem-po, eIe tinha finalmente abandonado com uma sensa(.ao dealivio, depois do Acordo Molotov-Ribbentrop), Qllanl.O ascrenc;as do proprio Scholem:

.., 0 futuro do judaismo esta completamente envolto em trevas:ele nao pode fingir ser invisivel - inativo e dormente - como ou-tros podem (talvez) tentar fazel', pois ele nao teni mais a base deuma existcncia concreta, da qual ainda dispoem os socialistas der-rotados, Nao somos mais capazes de estabclecer alianc:;as,lima vezque nao ha mais ninguem que esteja interessado em fazer isso.Nao podemos desistir desta gerac:;ao,e ja que nada alem de pala-vras vazias, que nao evocam nada, poderia substituir a Palestinana func:;aoque cia desempenha para 0 judaismo, como poderia eu

A Correspondencia sobre Kafka

- -' -) Nesta escuridao eu s6 sei como fi-ver os anos que estao pOl VII, ,

car calado,3

As cartas de Benjamin e Scholem parecem tel' sido es-- d I'd- . da de formacritas com uma certa sensac;ao e so lao, atul a

estoica, Nao se trata propriamente de um isolamento,. masda solidao do genio que segue sozinho 0 seu cammho,numa direC;ao oposta a tendencia de sua cpoca, [a~endo

, d" " - - t dl'das pela rea1ldade"exigenCias ra Icals que nao sac a en . '

Politica. Em 1930-31, depois de Benjamin abandonar defim-d' d d rendertivamente 0 seu projeto, tantas vezes a la 0, e ap •

hebraico e de ir para a Palestina, Scholem escreveu tre,s ~ar-d' ,. . d a'is t'II'OUcoplastas extraor manas para 0 seu amigo, as qu '

e que aparecem nos dois volumes da B,l'ieje, (~ uma, pe~aque elas nao tenham sido acrescentadas a edlc;ao em mglesda correspondencia bilateral), Na ultima dessas cartas, ,d~-tada de 6 de maio de 1931, Scholem observa com PC~'spICa-cia: "Voce esta mais ameac;ado peIo seu descJo. de

'd d 'd 'comul1lda-pertencer a uma comum a e, am a que seJa a ,I" I I - d I 110lTor cIa s01l-de apoca Iptlca ( a revo uc;ao, 0 que pc 0 ., "

dao, que pode ser percebido em tantas das suas ?bl as,SchoIem, pOI' sua vez, ja tinha procm'ado descobnr umacomunidade no seu retorno ao Siao, Profissionalmente,essa tentativa foi obviamente bem-sucedida, e no final dadeca a de 1930 eleJ'a podia afirmar a Benjamin com orgu-

, " IIho e com toda razao que conseguira reunir uma csco a, . , ., J I' I) I'tl'ca C espl-de Sc 101em" em torno de Sl, em erusa em, 0 I <

ritual mente, apesar de alguns amigos que possuiam umI . er tun es-pensalnento semeIhante ao seu, e e contmuou a s

I ' I ' ., t e tanto quantotran 10 no mn 10 em melO aos slOms as, quas <

B ' . 'd' d d 11130 AlCm dis-el~a 1111 entre os marxIstas na eca a e :J, ,

I I . 'a 'llguemso, n nca ficou claro se e e c legou a se apegal < ,

em Jel'tlsalcm com a mesma forc;a com que sc apegara aBel~anlin na Alemanha.

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A compensar;ao que ambos obtiveram - se e que sepode falar de alguma compensar;ao nesses casos - foi a sen-sar;ao intensa de possuir uma vocar;ao intelectual, que ofere-cia a eles urn lugar na postcridade, pOl' assim dizer, ao invesdo convlvio de seus contemporaneos. Benjamin completou40 an os em 1932; Scholem atingiu a mesma idade em 1937.As cartas que escreveram nessa epoca sac marcadas pelasensar;ao de que chegara 0 momenta de suas vidas em queambos deveriam produzir as obras-primas de que sabiamser capazes. Desde 0 inkio da decada de 1920, Scholem jaabria 0 terreno para uma pesquisa academica modcrna damlstica judaica, at raves de uma serie de profundos estudostextuais e de monografias especializadas. Agora, no dia 28de junho de 1935, informava a Ber~jamin que estava prontopara realizar urn "inventario (...) bastante extenso" desses15 anos de trabalho. "Nao faltarao coisas fantasticas e mui-to fantasticas", dec1arou de forma bem-humorada, "e 0 es-tudioso da historia certamente nao ficara dccepcionado".Seis anos mais tarde, com a oportunidade inesperada ofere-cida pelo convite para apresentar uma serie de palestras emNova 10l'que, em 1938, esse inventario tomaria a forma dolivro Major Trends in Jewish Mysticism [Gmndes cOl'rentesdarnistica judaica], uma das mais importantes obras modernasda imaginar;ao historica. 0 livro foi dedicado a memoria deWalter Benjamin.

Na resposta (9 de agosto de 1935) a carta que anuncia-va 0 projeto que iria se tornar 0 Major Trends, Benjaminapresentou a Scholem um prospecto instigante do livro queele primeiro chamou de Passagen (As passagens d.eParis), e,mais tarde, de Paris, capital do seculo XIX: "Esta obra repre-senta nao so a aplicar;ao filosofica do surrealismo - c, comoconsequencia, sua superar;ao [A1yhebung] - mas tambemuma tentativa de fixar a imagem da historia nos pontosmais insignificantes da existencia - nos detritos da historia,

pOI' assilTl dizer." 0 que Benjamin queri~ dizer c~m esta de-c1arar;ao gnomica talvez possa ser deduzldo atraves dos frag-mentos de Passagen que ele chegou a escrever, e de seusdois ensaios posteriores sobre Baudelaire.

A argumentar;ao que B~njamin emp~'ega em sua apre-sentar;ao cdtica de BaudelaIre segue mUltas vezes um m?-vimento de associar;ao livre, semelhante ao da poeslasun'ealista. Assim, a frenetica multidao parisiense dos poe-mas de Baudelaire conduz Benjamin a turba de carnavales-cos das pinturas de James Ensor, a alianr;a brutal entre apoHcia e os saqueadores nos Estad~s total~tarios, a in;enr;aodo palito de fosforo, da fotografia mstantanea e do ClOema,a partir do qual "0 sensorio humano [e] submetido a umtreinamento comp1exo (...) de uma percepr;ao em forma dechoques". A medida que somos arrastados da. p~e.sia deBaudelaire para os inumeros pormenores da hlstona mo-derna, a associar;ao livre do surrealismo e "superada" - ne-gada, elevada e mantida - pois ela se torna 0 vekulo dealgo que pretende ser uma analise historico-filosofica rigo-

4rosa.Esse projeto era extremamente original, mas se .lev~r-

mos em considerar;ao a existencia conturbada de BenJamlOe as angustiantes oscilar;6es da sua vida interior, nao e de sesurpreender que ele nunca tenha chegado a se realizar.Apenas os seus ensaios sobre Baudelaire, e uma enOl'mequantidade de anotar;6es e fragmentos fascinantes, publica-dos depois de sua morte, em 1982, dao uma ideia de comopoderia tel' sido essa obra. Os fragmentos afodsticos, as ve-zes telegraficos, desdobram os conceitos marxistas de mer-cado, produr;ao, mercadoria e consumidor, apesar defaze-los girar na roda idiossincnitica das especular;6es gno-micas de Benjamin, que podia, as vezes, transformar palhaconceitual em ouro. Os ensaios sobre Baudelaire, com a suadescrir;ao fascinante da "decadencia da experiencia" no am-

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biente urbano moderno - espelhada na nova poctica dochoque de Baudelaire - parecem estar mais proximos deuma aplicac;;ao filosofica do surrealismo, ao se utilizar deuma especie de impressionismo Ifrico, pontuado pOI' aforis-mas audaciosos, para reve!ar 0 inconsciente de uma deter-minada era cultural.

o projeto das Passagens foi 0 centro das atenc;;6es deBenjamin nos ultimos 13 anos de sua vida. Alguns estudio-sos chegaram a conclusao de que a ve!ha pasta que, de acor-do com uma testemunha, e!e agarrava desesperadamenteao ten tar atravessar a fronteira da Espanha, um dia antes dese suicidal', continha um manuscrito inacabado da obra quee!aborava ha tanto tempo (essa pasta desapareceu misterio-samente). Os fragmentos que restaram do projeto das Pas-sagens, no entanto, se parecem com a documentac;;ao e asanotac;,:6essisHicas de um empreendimento impossive!: apli-car a tecnica surrealista da montagem a Paris do seculo~X; ~e modo a fornecer uma analise filosofica do processolustonco, pondo a nu os mitos espurios da sociedade bur-guesa, e acentuando 0 potencial utopico da imaginac;;ao co-letiva.5 Tanto Benjamin quanto Scholem tinham umaenorme fascinac;;ao pOI' fragmentos. Scholem dedicou todaa .sua vida a tentativa de explicar uma doutrina que era in-tnnsecamente fragmentaria, ou, no minimo, assistematica.A.forc;;ad~ sua obra esta no fato de ele tel' conseguido defi-Illr conceltualmente um sistema a partir dessa confusao deretalhos literarios - apesar de alguns de seus crfticos 0 acu-s~rem de impor um sistema onde talvez e!e na verdade naoexistisse. 0 objetivo de Benjamin era 0 inverso: preselvar 0

aspecto fragmentario de seu material atraves da mobilidadeda montagem, combinando repetidas citac;;6escom observa-c;,:6esaforisticas, permitindo que 0 pensamento sistematicosurgisse da propriajustaposic;,:ao. Talvez isso fosse uma tare-fa impossivel, afinal.

Como seria de se esperar, Benjamin, ao contrario deScholem, as vezes era atormentado pOI' duvidas quanto apossibilidade de encontrar alguem que Ihe desse ouvidos, ese perguntava se valeria a pena continual' escrevendo. "0que deixaremos atras de nos algum dia", comentou melan-colicamente, perto do fim de sua vida (em 4 de fevereiro de1939), "aIem das nossas obras com suas paginas fechadas?"No inicio da ultima carta que escreveu para Scholem daFranc;;a ocupada, em 11 de janeiro de 1940, ele insistia, en-tretanto, que seu amigo publicasse as palestras que tinhaapl"esentado em Nova 100"que, assim que fosse POSSIVe!:"Cada linha que conseguirmos publicaI' hoje - nao importaquao incerto seja 0 futuro a que nos a entregamos - e umavitoria arrancada das maos dos poderes da escuridao." Estaexortac;,:ao nao era um gesto retorico vazio. A escrita dosdois representava um esforc;;o resoluto para compreender acomplexa natureza dialetica - um termo muito utilizadopOI' Scholem, sans materialismo - da realidade historica,para definir as estruturas arquitetonicas maravilhosas que aimaginaC;;aodo homem ergue em oposic;;ao,ou sobre, 0 abis-mo da mortalidade e a dissoluc;;ao de valores que subjaz aexistencia humana (vel', pOl' exemplo, 0 estudo de Benja-min sobre 0 drama barroco alemao, e as pesquisas deScholem sobre 0 sabatianismo e a cabala lurianica). Nummomento em que a simplificac;,:aoassassina da ideologia to-talitaria tinha distorcido a realidade historica, utilizandomentiras esquematicas como justificativa para 0 seu progra-ma de aniquilac;;ao, os projetos inte!ectuais de Scholem e deBenjamin cram um ato de resistencia cultural, uma fragiltentativa de preservar um legado valioso que 0 totalitarismopretendia destruir para sempre.

Ha um escritor moderno - talvez 0 maior dos arquite-tos do abismo do seculo XX - que tinha uma profunda afi-nidade com a condic;,:aoespiritual que Benjamin e Scholem

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compartilhavam. Franz Kafka, uma decada mais velho doque os dois, foi de fato 0 pioneiro solitario de toda uma ge-rac;ao de intelectuais modernistas, pelo menos na esfera dalingua alema, apesar de ele certamente nao desejar fundal'nenhuma escola. Ele tambem foi 0 ponto de convergenciados interesses dos dois amigos. Como um modernista rigo-rosamente iconoclasta, ele encarnava com vigor, no ambitoda ficc;ao, a nova poetica da disjunc;ao, da descontinuidade,e da perplexidade obstinada, que tanto fascinava Benjamin.Enquanto um escritor que possuia uma profunda conscien-cia das categorias de uma tradic;ao judaica que nao apresen-tava mais a mesma forc;a, pas a "descoberto 0 poder e aatrofia da tradic;ao e da autoridade teol6gica, foco de inte-resse tanto de Scholem quanto de Benjamin. Scholem, alemdisso, tinha uma grande tendencia a vel' Kafka como um ca-balista tardio, que apresentaria semelhanc;as marcantes comalgumas das figuras esotericas que tinha estudado enquantohistoriador - ideia que chegou a sugerir a Benjamin, e quebem mais tarde apresentou de forma expHcita nas "Dez te-ses a-hist6ricas sobre a cabala" (Harold Bloom aventou a hi-p6tese maliciosa e sugestiva, se bem que tambem enganosa,de que a leitura que Scholem faz da cabala seria em grandeparte deterrninada pela forte influencia anterior de Kafka).6Benjamin e Scholem ja expressavam uma enorme admira-c;ao pOI' Kafka nas cartas que escreveram no final da decadade 1920, quando ainda era diffcil encontrar as suas obrasnas livrarias. Na correspondencia bilateral, a partir de 1933,eles falam de Kafka repetidas vezes. Os comentarios esclare-cedores de ambos os lados culminam na extraordim\ria car-ta - do tamanho de um ensaio - que Benjamin enviou aScholem em Nova Iorque, no dia 12 de junho de 1938. Sen-do ela uma das suas mais interessantes contribuic;oes a crfti-ca da literatura moderna, ele esperava que Scholem amostrasse ao editor Salman Schocken, e talvez 0 ajudasse a

conseguir um contrato lucrativo para publicaI' um livro;mas ela nao deixa de ser uma mensagem intima dirigida aum amigo, sobre um t6pico que era de grande importanciapara os dois.

Essas discussoes a respeito de Kafka vem a tona na cor-respondencia acompanhada pelo fantasma de uma presen-c;a - que as vezes e evocada explicitamente - de umaespecie de irmao gemeo literario, ClUOScontornos talveznao sejam muito nitidos para 0 leitor ocidental comum.Scholem tinha travado amizade com S. Y. Agnon, que viriaa se tornar um dos maiores escritores modernistas hebreus,durante a longa estada de Agnon na Alemanha depois daPrimeira Guerra Mundial. Os do is se mudaram paraJerusa-16m mais ou menos na mesma epoca, e continuaram ami-gos pelo resto da vida. Benjamin 0 conheceu atraves deScholem, em 1920, e se tornou um grande admirador Sell.Ao ler seus contos traduzidos para 0 alemao (alguns delesforam traduzidos pOl' Scholcm), ele se convenceu de queAgnon era um dos grandes mestres da ucc;ao conl.emporft-nea, e passou a aguardar ansiosamente cad a fragmento desua obra que ficasse disponivel em alemao. Beluamin eScholem compartilhavam da opiniao de que havia lima pro-funda aunidade entre 0 imaginario de Agnon e Kafka.Scholem, numa breve observac;ao publicada no }1'irlischeRunrlschau em 1928, sugeriu que a ucc;ao de Agnon realiza-ria uma revisao de 0 p'I'Ocesso, de Kafka: ambos chegavama um sentido apocallptico da realidade atraves da intensarealizac;;ao de uma visao infantil; a ficc;ao de Agnon, entre-tanto, co~seguia ainda apresentar uma possibilidade deredenc;ao. '

Em suas conversas, os do is amigos chegaram a lcvanlar~ p~ssibilidade - ainda que meio de brincadeira - de Ben-J~mlO escrever um ensaio que estabelecesse uma compara-c;ao entre Agnon e Kafka. No dia 18 de janeiro de 1934,

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Benjamin parece sugerir (pelo menos de acordo com a in-terpreta<;;ao que Scholem da a esta frase) que Scholem seencarregasse desta tarefa em seu lugar: "Agnon apresentauma grande maestria em todas as suas obras, e se eu tivesseme tornado 'urn professor em Israel' - coisa tao provavelde acontecer quanto eu me tornar uma formiga-Ieao - eunao poderia deixar de fazer uma palestra sobre Agnon eKafka."

Compara<;;oes entre Agnon e Kafka se tornariam urn lu-gar-comum na critic a hebraica depois da decada de 1950,mas no inicio de suas carreiras, os dois escrilores pareciamradical mente opostos, peIo menos superficialmente. Agnonnasceu de uma familia ortodoxa, allamente cuIta, de umacidade de medio porte da Galicia. 0 grande interesse quedesenvolveu mais tarde pelo alemao e peIa cultura euro-peia, que costumava aparecer de forma camuOada nas suasobras, sempre foi 0 do estrangeiro autodidata. EIe escrevianum hebraico marcadamente arcaizante, baseado nas asso-cia<;;oes e nos valores de tres milenios de lradi<;;ao, muitodistante do aIemao limpido, que anulava as ressonanciashistoricas da lingua, empregado pOl' Kafka na sua obra fic-cionaI. Mais importante, a maior parte da obra de Agnon,no seu primeiro quarto de seculo enquanto escritor - osseus primeiros contos foram publicados em 1905 - pareciauma exibi<;;ao de ventriloquismo realizada pelas vozes datradi<;;aojudaica. Ela se constituia de historias de escribas daTora, estudantes de yeshiva, talmudistas rios e desligadosdo mundo material, artesaos da arte das sinagogas, queeram banhadas peIa complexa doutrina de urn esvanescentemundo de fe. Esse reaproveitamento habilidoso de narrati-vas tradicionais nao apresenta nenhuma semcIhanc,:a obviacom "0 veredicto", 0 pwcesso, "A melamor[ose", e "Na co-lonia penal". Agnon tambem escreveu alguns contos e no-velas em estilo flauberliano que cram ambientados no

scculo XX, e, em 1935, publicou uma obra-prima de caraterpsicologico, A Sir~ple SlO'l~[Uma hisl~'lia simp!es] - mas ess.asobras £linda nao unham sldo traduzldas na epoca de BenJa-min. No mesmo momenta em que Benjamin escrevia aScholem para falar da tenta<;;ao irresistivel de escrever urnensaio sobre Agnon e Kafka, 0 escritor hebreu tinha come-<;;adoa publicar uma scrie de contos desconexos, de carateronirico - "kafkianos" (apesar de ele sempre negar veemen-temente qualquer inOueneia de Kafka) - que mais tarde se-riam reunidos em The Book oj Deeds (0 livw dos alos), masBer~jamin provaveImente nem sabia de sua existcneia. Secompreendermos as conexoes ocultas que Benjamin eScholem viam entre os dois escritores, lalvez se p0ssa expIi-car a ideia que desenvolveram £10longo dos anos de queKafka seria urn escritor judeu pos-tradicional que, mais doque qualquer outro, conseguiu mapear 0 territorio espiri-tual da condi<;;aomoderna.

Na carta de 18 de janeiro de 1934, que ja meneionei£leima, Benjamin mosll'a a sua admira<;;ao pOI' urn pequenovolume de contos de Agnon traduzidos para 0 alemao, queScholem tinha-Ihe enviado. Ele destaca uma historia emparticular: "Ainda nao vi nada nas obras dele tao bonitoquanto 'A grande sinagoga', que considero uma fantasticaobra-prima." A primeira vista, parece estranho que esteconto de duas paginas e meia - nunca traduzido para 0 in-gles - sobre como algumas crian<;;as,£10brincar, descobremuma sinagoga enterrada, tenha causado tamanha impressaono critico que louvava as tensoes modernistas de Kafka,Proust, Brecht e dos surrealistas.8 Gostaria de fazer IllTI bre-ve comentario sobre 0 conto, pois as complicac,:oes embuti-das nesse resgale aparenlemenle ingenuo da harmonia datradic;ao podem nos revclar alguma coisa a respeilo do Kaf-k.aque Ber~jamin definiu como 0 criador de uma Agar/a (en-smamento), desprovida de uma Halalai (lei), e que Scholem

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caracterizou como 0 inventor de uma cabala modcrna e he-n~tica.

o enredo basico de "A grande sinagoga" aponta parauma parabola simples, e talvez nostalgica, sobre a descober-ta da gl6ria espiritual do passado - um sonho bruxuleante,que, apesar de claramente irrealizavel, nunca deixou deexercer um forte fasdnio sobre Benjamin, mesmo no augede sua fase marxista. As crianc;as, ao caval' na encosta deum morro onde estavam - significativamente - fazendouma brincadeira messianica em que fingiam estar recons-truindo 0 Templo antigo, descobrem algumas telhas enter-radas no solo. Logo fica claro que ha um telhado inteiroenterrado um pouco abaixo da superficie do chao. A comu-nidade inteira inicia uma enorme escavac;ao. Quando ela econclufda, a Grande Sinagoga da cidade de Jaslowitz e reve-lada em todo 0 seu antigo esplendor - uma estrutura cujaexistencia.nao passava de uma mera deduc;ao bascada emcertas indicac;6es geograficas retiradas das -res/JoT/.m. dc ve-Ihas autoridades hebraicas. Est.a ressurreic;ao dc' passado re-ligioso e acompanhada pOI' um acontccimclllM llIilagroso.Depois que a const.ruc;ao e desent.crrada pOl' completo, cIes-cobre-se que a porta est.a trancada, e nenhum scrralheiroconsegue abri-Ia. Ouve-se, entao, uma voz cant.ancio la den-t.ro: "Agradaveis sao tuas tendas, 6 Jac6!" (as primeiras pala-vras do culto matinal), e 0 portal se abre.

Bel~amin deve tel' admirado a beleza singela com aqual esta visao de recuperac;ao e transmit.ida, mas crcio queoutras linhas de forc;a do conto, que est.abelecem certasoposic;6es dent.ro da hist.6ria, tamb6n 0 impressionaram.Para comec;ar, as crianc;as nao sao, obviament.e, uma repre-sentac;ao realista das crianc;as de uma heM-r galiciana, massim uma evidente projec;ao idealizada: as suas brillcadeirassac retiradas diret.amente da Bfblia e da Mishna; c1as ini-ciam a "reconst.ruc;ao" do Templo no dia seguinte ao jejum

de Tisha B'Av, que relembra a sua destruic;ao, cantando, en-to Chapinham na lama, 0 hino cia Pascoa cujo primeiroquail , " ,

verso e "0 Todo-pocleroso logo reerguera sua casa . A pro-pria Grande Sinagoga e confundida, el~l diferentes pont.osdo cont.o, com duas estruturas que Ihe sac opost.as. Quandoo te1hado e desenterrado, as pessoas pensam que e1e fazparte do castelo onde 0 senhor local teria prendido todosos amant.es de sua mulher, deixando que eles morressem as-fixiados. Depois, quando os vitrais sao reve1ados, pensamque 0 predio seria uma velha igreja, e os judeus sac tempo-rariamente expulsos da escavac;ao. Assim, antes que a cons-truc;ao sagracia t.enha sido revelacia pOI' complet.o, 0 localem que ela se encontra e marcado, pela imaginac;ao popu-lar, com assassinat.o, promiscuidade, e um culto estranho(que sao os tres crimes capitais, segundo a lei rabfnica). Fi-nalmente, a Grande Sinagoga, livre de seu inv61ucro de ter-ra, surge com 0 mesmo resplendor dos t.empos antigos: "Equando 0 sol de agosto brilhou nos vitrais, todos foram ba-nhados pela sua luz. Tempos antigos - santuarios antigos."

o final do cont.o, no entanto, marca a perspectiva deAgnon como contemporanea a Benjamin e Kafka. A velhaarc a e os pergaminhos da Tora estao em perfeit.o estado deconservac;ao: "E duas pombas esculpidas est.endiam as suasasas, as asas da pomba cobert.as de prata, e um grande livrode orac;6es est.ava colocado sobre 0 atril, um livro de ora-c;6es escrito em couro de veado, com belos caract.eres.Tudo estava no seu lugar, intacto. Apenas a Luz Eterna es-tava quase se apagando." A laconica e engenhosa ambiglii-dade da ultima frase e tfpica de Agnon. Num out.ro toquemiraculoso, a Luz Eterna continuou a brilhar debaixo daterra atraves dos anos. 0 termo ut.ilizado para "se apagar"tambem indica 0 por-do-sol, de modo que a imagem finalanula, de certa maneira, a imagem anterior da sinagoga res-plandecente com a luz do sol. Ha af, provavelmente, uma

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ressonancia com a Bfblia - a "lampada de Deus", que "aindanao tinha se apagado" quando 0 jovem Samuel e chamadopOl' Deus a noite, em lSamuel 3. Um leitor otimista poderiaconcluir que a Grande Sinagoga foi recuperada bem na horade alimental' a Luz Eterna, antes que ela se apagasse definiti-vamente. Uma outra conclusao a que se pode chegar - e quetalvez seja a mais provavcl, dada a constrU<;ao da frase - e ade que a Luz Eterna csta de fato prestes a se extinguir: a ma-ravilhosa renova\=ao do passado oferece um espetaculo como-vente, mas ela chega tarde demais na historia da fe e dacultura - 0 retorno nao pode mais acontecer.

Ao ser exarriil~ada com mais cuidado, "A grande sina-goga", como a maioria dos contos aparentemente tradicio-nalistas do inicio da carreira de Agnon, apresenta nao umainversao do processo de julgamento em Kafka, como Scho-lem argumentou em 1928, mas sim 0 seu funcionamentoinexoravel, sob 0 disfarce da tradi\=ao. Em outras palavras,em Agnon, '0 encanto teologico do mundo da religiao eevocado de forma e1aborada e carinhosa, ao mesmo tempoem que e ironicamente subvertido pOI' dentro. 0 caso deKafka apresenta uma contrapartida a isso: 0 seu cinzcntomundo ficcional, povoado pOI' animais pateticos e burocra-tas mesquinhos (a diferen\=a entre os dois nao e substan-cial), e despojado de todos os ornamentos da tradi\=ao. Aclassica triade judaica formada pela revela\=ao, a lei, e 0 co-mentario, no entanto, praticamente define 0 seu mundoimaginario, cujos protagonistas nao podem abrir mao des-sas categorias, apesar de nao conseguirem compreendc-Ias,tolera-Ias e viver de acordo com elas. Apesar de algumas di-feren\=as radicais no que diz respeito a questoes espedficasde defini\=ao, Benjamin e Scholem compartilharam essa vi-sao' de Kafka ao longo dos anos, conseguindo captar aabrangencia de suas implica\=oes, creio eu, bem mclhor doque qual que I' outro estudioso do escritor.

A Correspondencia sobre Kafka

Eles discordavam de forma acirrad~, pOI' exemplo, no

d" " eito a questao da revela\=ao estar ausente do

que IZla Iesp . dd d K fka como Beniamin indicou no seu ensalO ernun 0 e a,:J .,

1934 sobre 0 escritor, ou de ela estar presente, mas Impossl-

I d Ser realizada, como Scholem argumentou em sua car-ve e .(' -ta de 17 de julho de 1934, recorda~do as mam~estaC;l.oes

. iilistas da cabala (no ultimo capitulo, tentarel exp Icarmals n . .pOI' que esta divergencia em particular parecla tao ~mpo~-tante, principalmente para Scholem). 0 aspecto ~als mal~cante desta troca de ideias sobre Kafka, que co.ntInu.ou at~o ultimo ana da correspondencia entre os do IS amlgos, eque ambos - ainda que discordassem parcial mente em cer-tos pontos - foram capazes de desenvo.lve~ umpensam~~toem comum, onde a perspectiva de BenJamin, um metaflslcodespojado da tradi\=ao, e a de Scholem, historiador de .u~acontra-tradi\=ao mistica, complementavam-se com perfelc;ao.A extraordinaria carta-ensaio que Benjamin escreveu sobreKafka em 1938, examipada contra 0 pano de fundo de umadecada de correspondencia sobre 0 mesmo assunto, surgecomo 0 ponto culminante dessa colabora\=ao, a~es~r d~Scholem fazer algumas obje\=oes a enfase que BenpmIn daao fracasso em Kafka, argumentando que algumas das ca-racteristicas que Benjamin aponta como sendo tipicas ~oescritor eram na verdade intrinsecas a tradi\=ao mistIcacomo tal.

A discussao entre os dois a respeito de Kafka come\=oucom uma extensa carta que Scholem escreveu no dia 1" deagosto de 1931, como resposta a um convite feito pOI' Ben-jamin para compartilhar as suas ideias sabre 0 autor de 0pmcesso (esta carta nao aparece na correspondencia publi~a-cia, mas e1a foi preservada junto com as anota\=oes de Bel~a-min sobre Kafka, e Scholem a reproduz pOl' complcto em .Walte'" Benjamin: a hist6.,.ia de uma amizade).9 Os dois amigostinham uma grande tendencia a pensar em Kafka aU"aVeSde

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aforismas carregados de conteudos metafisicos. Nesse pri-meiro documento da troca de ideias entre os dois, Scholemvolta constantemente aquilo que chama de "0 segredo teo-16gico da prosa perfeita" em Kafka. Eu gostaria de apontarpara 0 fato de que a perfei~ao na prosa e urn aspecto im-portante da afinidade que existe entre Kafka e Agnon.Como ja indiquei antes, eles foram em husca da perfei~aoestiHstica atraves de caminhos opostos, uma vez que Agnonadotou um hebraico classico, que evoca os textos funda-mentais dos primeiros rabinos. Curiosamente, os dois escri-to res foram influenciados pelo severo padrao da prosa deFlaubert, mas os efeitos que atingiram foram bem diferen-tes daqueles do escritor frances. Nos romances de Flaubert,a prosa cuidadosamente modelada e a expressao supremade urn impulso puramente estetico, a marca magistral que 0

artifice imprime no seu produto verbal. Em Kafka e Agnon,como Scholem indicou na carta de 1931, a prosa perfeitarepresenta uma asser~ao da voz da autoridade da tradi~ao,num mundo que nao reconhece mais esta autoridade: "0mundo lingiifstico de Kafka (...), com a sua atra~ao pelo Jul-gamento Final, prov~lVelmente representa 0 prosaico na suaforma mais canonica." Dois an os mais tarde, num poemasobre a obra autobiogra.fica de Benjamin, Rua de mao 11.nica,Scholem faz a seguintereflexao:

Antes todas estradas levavamA Deus e seu nome, de algum modo.Niio somos devotos. [Wir sind nicht fromm.]Permanecemos no Profano,E onde antes havia Deus, agora ha: Melancolia.10

Kafka, para ambos, era 0 unico escritor capaz de fitar 0 co-ra~ao dessa melancolia sem pestanejar, mas que, ao mesmotempo, nao conseguia deixar de vislumbrar 0 vago esbo~oda paisagem dos tempos antigos, assim como K. olha para 0

Castelo atl'aves do nevoeiro e da neve, e, ao meslllo tel~poque nao ve nada, ve tud~:. a inven~ao lumitica de uma cnan-~a louca, e 0 altivo dOnllniO da verdade. _ " .

Benjamin, por sua vez, toma a no~ao do prosalco nasua forma mais canonica", e a liga as formas literarias exe-geticas e narrativas espedficas .da tradi~ao. religiosa. "E natentativa de metamorfosear a vida em Escn~ura que conce-bo 0 significado de 'inversao' [Urnkehr], que tantas parabo-las de Kafka tentam realizar" (11 de agosto de 1934). Asimplica~6es desta intui~ao a respeito da importancia ambf-gua da tradi~ao na obra de Kafka foram elaboradas quatroan os mais tarde, na carta-ensaio: "Kafka tentava ouvir pOl'tras da porta da tradi~ao, e aquele que faz for~a para escu-tar nao consegue ver." A escolha desta imagem e brilhante,nao s6 porque transmite com perfei~ao a rela~ao de Kafkacom a tradi~ao, mas tambem porque varios personagens deKafka de fato se tornam bisbilhoteiros (ou voyeu'rs) que seescondem atras das portas, espionando atl"aves dc frestas erachaduras, tentando montar uma versao clistorcida e in-completa de coisas que talvez nem sequcr estejam sendo cli-tas. No meio disso tudo, continua Ber~alllin, a "consistcnciada verdade (...) se percle". Outras mentes modernas chega-ram a mesma triste conclusao, mas a sua rea~ao mais tfpicafoi a de se prender a algum fragmento daquilo que deseja-yam encarar como a verdade, reconhecendo com pesar queessa verdade nao apresentava mais a coerencia ou a for~anecessarias para ser transmitida. 0 projeto de Kafka eramais radical. "A verdadeira genialidade de Kafka esta nofato de ele tel' tentado fazer algo totalmente inedito: ele sa-crificou a verdade para se ater a transmissibilidade, ao seuelemento agadico." Essa intui~ao-chave abre varias portasda casa assombrada que Kafka construiu cqm a sua fic~ao: asensa~ao de urn "rumor sobre as coisas verdadeiras (uma es-pecie de teologia transmitida atraves de sussurros)", que flu-

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tua pelos contos, pelas parabolas e pelas novelas; 0 fato desua obra parecer permeada de uma loucura estranhamenteassociada a algo semelhante a presenc;as angelicais; 0 exerd-cio ininterrupto da exegese em praticamente todos os as-pectos da narrativa; e 0 paradoxo da "radiante serenidade"de Kafka, ao moldar um mundo ficcional que as vezcs pare-ce convidar a loucura ou ao desespero.

POl' mais que a impressionante carta de 12 de junhode 1938 tenha sido uma cristalizac;;ao de tudo aquilo que osdois homens vinham pensando juntos sobre Kafka duranteos sete anos anteriores, ela nao representou de modo al-gum 0 fim da discussao. Scholem, como ja vimos, nao esta-va completamente satisfeito com todos os aspectosdestacados por Bel~amin; ao mesmo tempo, ele encorajouBenjamin a desenvolver a sua intuic;ao mais importante:"Se voce conseguir descrever 0 caso limite de sabedoria -que Kafka de fato representa - como uma crise na trans-missibilidade da verdade, voce tera realizado algo realmen-te magnffico" (6-8 de novembro de 1938). Como veremosmais adiante, a questao da transmissibilidade, pre-requisitode qualquer tradic;ao, era crucial para todos os tres escrito-res.

Alguns meses depois, Benjamin ja estava elaborandouma nova ideia, que fora apenas insinuada na sua carta-en-saio, na noc;ao de sabedoria degradada em loucura: a deque 0 humor seria 0 grande segredo pOI' tras da ficc;ao mo-dernista - mas obcecada pela tradic;ao - de Kafka. Ele ten-tou colocar esta questao como um desafio ao seu amigo, damesma maneira que Scholem tinha-Ihe desafiado: "Achoprovavel que a chave para a compreensao da obra de Kafkaesteja nas maos da pessoa que seja capaz de apontar pam osaspectos comicos da teologia judaica. Este homem ja existiu al-gum dia? Ou voce seria homem 0 bastante para ser este ho-mem?" (4 de fevereiro de 1939; a enfase e de Benjamin.)

Enquanto essa longa discussao sobre Kafka continuava,o mundo, e claro, estava caindo aos pedac;;os. Os dois ho-mens sabiam muito bem disso, mas raramente tocavam di-retamente nesse assunto em suas cartas. PQr tras de suasdiscussoes, assoma a revolta dos arabes, a proibic;ao pOI'parte da administrac;ao britanica de que os judeus imigras-sem para a Palestina, 0 surgimento do mundo do campo deconcentrac;ao (onde os irmaos de Scholem e de Ikl~amindesapareceram pouco depois de Hitler assumir 0 poder), aKristallnacht, e, final mente, 0 infcio da guerra munclial, queera temida ha tanto tempo. Sobre este pano de fundo som-brio, a discussao a respeito de Kafka representa 0 que ha demais impressionante, do ponto de vista humanfstico, nacorrespondencia entre os dois. Eles nao estavam simples-mente isolados, dedilhando a sua harp a, enquanto Roma,Jerusalem, Paris e Bedim estavam prestes a irromper emchamas, pois havia muito em jogo para des na tenlaliva decompreender Kafka. Os seus projetos intelectuais mais am-plos nao diziam respeito diretamente a nalureza do lotalita-rismo, como aconteceria mais tarde com a sua amiga emcomum, Hannah Arendt, mas ambos viam 0 novo seculoem que tinham atingido a maturidade como uma era naqual tinha sido eliminado 0 amparo oferecido pelas velhasestruturas da crenc;;a, dos valores e da comunidade. Benja-min encontrou a raiz deste processo nas forc;as implosivasgemeas da industrializac;ao e da urbanizac;ao, no seculoXIX; Scholem, seguindo as linhas internas do desenvolvi-mento da historia judaica, via um grande paradigma para aruptura causada pela transic;ao para a modernidade nas su-blevac;oes messianicas do seculo XVII, e no antinomianismora~ical que foi uma de suas consequencias. Nenhum dosdOls acreditava que a humanidade fosse capaz de atravessara selva da existencia sem um compasso metaffsico que a aju-dasse em seu caminho, pois, na sua opiniao, 0 que nos tor-

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na humanos seria a nossa capacidade de viver numa comu-nidade que compartilha da mesma sabedoria, e que temconsciencia da nossa relac;,:aocom uma realidade fundamen-tal. A importancia paradoxal de Kafka, para os dois, esta nasua habilidade de aceitar sem hesitac;,:aoas contradic;,:oesdes-sa ruptura his to rica. Ele se recusa a se desligar do mundodas origens, que e baseado na crenc;,:a,mas nao tem a menorilusao a respeito de sua decadencia acelerada. Ele rcproduzna sua obra - de forma transfigurada e numa espccie de re-verencia perversa - os gestos da tradic;,:ao,sem contudo ridi-culariza-Ia, nem trata-Ia com um sentimentalismo devoto.Ele arranca do centro do horror a possibilidade do humor,e, como Benjamin insinuou no final de sua vida (com a es-peranc;,:ade que Scholem fosse capaz de encontrar uma ana-logia para isso nos anais esotericos da mistica judaica) 0

humor poderia se tornar 0 espelho distorcido onde seriapossivel se tel' um vislumbre de uma das esquivas faces deDeus. Talvez 0 proprio Kafka, como ele mesmo sugeriumais de uma vez em seus diarios e cartas, estivesse tcntandoir mais longe do que a imaginac;,:aohumana era capaz. Ben-jamin e Scholem, com seu intelecto extraordinario, procu-raram compreender 0 objetivo espiritual desta tentativa,que parecia importante 0 bastante para ser empreendida,enquanto 0 mundo tremia sob a sombra da destruic;,:ao.

Kafka, Benjamin e Scholem partiram, de maneiras dife-rentes, para uma experiencia ousada na tentativa de resgataro judaismo, sob circunstancias hist6ricas que dificultavamessa tarefa, tornando-a ambigua, repleta de perigos espiri-tuais, e talvez impraticavel. Eles compartilhavam da sensa-c;,:aode que 0 caminho da assimilac;,:aoque seus pais haviamseguido terminaria num beco sem saida. Percebiam 0 po-der de sustentac;,:aooferecido pela verdade visionaria e a au-tenticidade presente na tradic;,:aojudaica, ao mesmo tempoque temiam que essa verdade e essa autenticidade nao esti-

vessem mais ao seu alcance. De forma paradoxal, 0 pr6prioato de se voltar, au'aves da imaginac;,:ao,para uma tradic;,:aoque recuava no passado, ofere cia a profundidade de umadefinic;,:aoa modernidade de seus projetos literarios, en-quanto romancista, critico e historiador, respectivamente.Para compreendermos melhor a forc;,:adesse paradoxo, epreciso examinar detalhadamente a complexidadc da rela-c;,:aoque eles estabeleceram com a lingua, a interpretac;,:ao, atradic;,:aoe a revelac;,:ao.

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SOBRE NAO SE SABERHEBRAICO

Num sonho, encontrava-me no gabinete de Goethe (...)Goethe se levantou e me acompanhou ate um aposcntovizinho, onde havia uma mesa posta para os meusparentes. No entanto, ela parecia preparada para umnumero maior de pessoas do que 0 necessario. Semdllvida havia lugares reservados para os meus ancestrais.

Walter Bel~amill, RuG. de '//tao lll1ica

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o horizonLe do hebraico, paramil escrilor judeu profundamente assimilado na cullura inte-Icctual alema, pode ser marcado, no senlido literal, de for-ma grMica: 0 hebraico e uma lfngua escrita em estranhas eindecifraveis leU"as quadradas, que, ao contd.rio de todosos sistemas europeus, correm da direita para a esquerda. AIcaldade hislorica dos judeus a obstinada panicularidade deseu proprio sistema grMico po de ser conslalada no seu ha-bito de se aler aos caracteres hebraicos, mesmo quandoconvertem uma das lfnguas que os cercam num idioma ju-daico de caracterfsticas proprias, como aconleceu com 0

{diche, na Europa centro-orienlal. 0 hebraico surge sobre-ludo como uma lingua que oferece novas allernalivas cullu-rais ao escrilor assimilado que estuda a possibilidade derevener 0 seu campo de idenr.idade, e nao creio que de po-deria desempenhar esta func;.:aopsicologica com a mesmafacilidacle, caso fosse escrilo com 0 familiar alfabeto latino.Possuindo os seus proprios caracteres, ao mesmo tempo in-timidadores e convidativos, 0 hebraico pode exercer 0 fasd-nio do exolico, surgindo com a aparcncia de uma lfnguaestrangcira, que c, paradoxalmente, a Ifngua da origem.

Yehuda Amichai, grande poela israclense, conseguec.aptar muito bem a associac;.:aoexistente entre as caracterfs-tIcas cullurais e a grafia, nos primeiros versos de seu "Poe-ma Temporario", publicado recenlemenLe - um poemaque, curiosamente, foi inspirado pcla eclosao da intifada:

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A gralia do hebraico e do arabe vai de leste para oesteA gralia do latim, de oeste para leste;Lingtlas sao como gatos.Nao se pode toca-Ias a contrapclo.'

Amichai e confessadamente um poeta que adora desco-brir as possibilidades metaforicas de todos os objctos decontempla<;ao, mas creio que esta intui<;ao em particularIhe ocorreu com maior facilidade como falante nativo doalemao (de emigrou para a Palcstina junto com os pais aos12 anos de idade), do que ocorreria a um israelense de nas-cen<;a, para quem nao ha, pelo menos a prindpio, olltra al-ternativa lingufstica. Ao transformar a esquerda c a direitaem pontos cardinais opostos, Atnichai aumenta a importan-cia daquilo que esta em jogo no ato da inscri<;ao. Isto e, asHnguas passall1 a ser vistas como se possufssem uma especiede orienta<;ao geo-espiritual. Se derivarmos dessa imagemuma linha de historia cllltural q"e infllli cliretamcnte naquestao da assimila<;ao e da idcntidaclc jlldaic" vcrcnJOSque 0 hebraico corre clo lcste para 0 oeste - cia Bfblia c doTalll1ude, criados nas ten'as dc Israel e cla llabilonia, para aconsciencia dos judeus estaoelecidos na Renania, ou aindamais longe, que acabaram absorvendo a Hngua e a clllturaque os cercavam. As Hngllas escritas com 0 alfabeto latino,pOI' outro lade, se deslocam do oeste para 0 1cste (se ado-tarmos a perspectiva do poema de Amichai, centrada em Is-rael, e ignorarmos 0 Novo Mundo), seguindo os caminhosparalelos da explora<;ao e da conquista colonial. Essa orien-ta<;ao, de acordo com a logic. da segunda imagem empre-gada pOI' Amichai, que e caracteristicamente jocosa, aomesmo tempo que parece anular a figura do individllo, re-flete um direcionamento intrfnseco, organico e inllcxivcl daHngua e da cultura: como 0 pelo do gato, ~o se pode afaga-la na dire<;ao em que ela se expande.

Kafka, llel~amin e Scholem se tornaram escritores ale-maes. No caso dos dois primciros, 0 hebraico permaneceu,de maneil'as diferentes, aquilo de que eu 0 chamei no infciodcste capitulo: apenas um horizonte. Scholem, e claro, mer-gulhou no mundo do hebraico para alem deste horizonte,mas nunca chegou a cortar os seus la<;os com a esfera dalingua alema, enquanto escritor. Numa palestra na Acade-mia de Artes da Bavaria, realizada em Mllniqlle, cm 1974,Scholem declarou tel' passado um longo perfodo afastadoda Hngua alema, e afirmou, com uma certa dose de exage-1'0, que durante muitas decadas depois de sua emigra<;ao deBerlim para Jerusalem, ele trabalhou basicamente em he-braico. Ii verdade que varias das monografias espccializa-das, artigos academicos, e edi<;oes textuais que produziuentre as decadas de 1920 e 1940 foram escritas em hebrai-co, nao so pOI' qucstoes praticas, mas tambem pOI' outrosmotivos que estudaremos mais adiante. Mas a grande sfnte-se dessas duas primeiras decadas de atividade acaclcmica,Majo')' Trends in Jewish Mysticism (1941), foi escrita em ale-mao (e traduzicla para 0 inglcs pOI' George Lichthcim, pri-meiro para a sua apresenta<;ao em Nova Iorque como umaserie de palcstras, e mais tarde para sua publica<;ao em for-ma de livro), assim como 0 fruto de uma pesquisa em gran-de escala, Origins of the Kabbalah [Oligens do. cabala] (1962)(apesar de esta obra ser 0 desenvolvimento de uma versaomenor, em hebraico, de 1948). A maioria dos ensaios de re-visao c interpreta<;ao mais importantcs dc Scholcm lamOCll1foram escritos em alemao, e a unica oora cle grande porteque escreveu originalll1cnte em hebraico (oi a oiografia emdois volumes de Sabbatai Sevi - pOl' motivos clitados pelopelo proprio assunto, que examinaremos adiante.

Nossos trcs escritores (incluindo Scholem, apesar deele anunciar 0 seu afastamento do alemao), entao, mantive-ram uma rcla<;ao necessaria e, pode-se dizer, ate mesmo ca-

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rinhosa com a sua lingua natal. Mesmo assim, des nao dei-x~ral~1 de tel' consciencia da existencia de certas contradi-~oes Internas, especial mente no caso de Kafka e Scholem~:tas. contradi~6es se originavam, principalmente, da cons~ClenCla de que as ralzes de seus pais na cultura alema naoel"am profundas, e ~ram recentes demais para que isso sedesse ~e ~utra manelra. Hermann Kafka nasceu numa shlellda Boem!a, a sua primeira lingua foi 0 tcheco (provavcl-mente mIsturado com urn pOlICO de ldiche), e c1e nuncachego~ a dominar com fluencia 0 alemao que iria utilizarn~ malOr parte de sua vida adulta. Depois de se mudar paraPI a~a, de acabou se tornando 0 prospero dono de urn ar-mannho que empregava diversos vendedores. SegundoFranz Katk I ' '. .a, e e possllla a energla e a detenmna~ao de umhomem que venceu na vida sozinho; mas, como seu filhotambcm indica em Carla ao pai, 0 ara de veneer na vidatambcm implicou na perda de suas ralzes. Arthur Scholelllo p~i de Gerl~ard -: .que mais tarde mudaria 0 nome par~~el shorn, I~1alsproxnno do hebraico - possula uma situa-c;:aofinanc~Ira confortavel, cera proprietario de uma graCi-ca em Bel:llIn que herdara de seu pai, que tinha sido criadon~l.n al~1blent~ ortodoxo, mas abandonou os costumes tra-dlc~onals. EmIl Benjamin, pai de Walter, era um abastadoantlquario e negociante de arte na Berlim da virada do sc-culo. Desses trc~ pais, c1e representava 0 ponto mais c1eva-~o da escala ~oc~al ?urguesa, e as lembran~as que Ikl~amint~nha de sua mfanCla evocam um ambiente suntuoso e umanql~eza cultural muito alcm de qualquer coisa que se pudes-se vlslumbrar nas casas de Kafka e Scholem.

As memorias estranhamente indiferentes que Scholemesc~'eveu sobre os seus anos de juventude, De Be'dim a fern-s~~em, oferecem um contraste marcante ao impressionismoImc? d~s duas cole~6es de fragmentos autobiognlficos deBeruamm, mas nao deixam de apresentar um bom catalogo

ilustrado clas contracli~6es internas do ambiente judeu-alemaodaquda cpoca. 0 nome original do seu avo era SC~lolemScholem. Quando, ja numa idade avan~ada, de se tornou umentusiasta de Wagner, adotou 0 nome de Siegfried. Na sua hl-pide, esta escrito "Siegfried Scholem", no alfabeto latino, e"Scholem Scholem", em hebraico. 0 (jIho de Siegfried, Ar-thur, parece nao tel' recebido um lIome hebraico, e quandode morreu, em 1925, na sua lapide estava escrito apcnas "Art-hur Scholcm" (0 epitMio nao c uma questao sem import,lncia,po is de representa, aunal, a liltima slntese lapidar daquilo quea pessoa foi em vida - nao se esque~am do enfatico gesto dereidentiucac;:ao de Stendhal, ao exigir que uma vcrsao italianade seu nome, "Arrigo Beyle", fosse escrila na sua lapidc. Tere-mos outras ocasi6es para refletir um pouco mais sobre a pre-sen~a de epitauos no imaginario de Kafka e Benjamin). Emsua autobiografia, Scholem rdcmbra 0 Natal de Ell 1,quan-do tinha 11 anos: de encontrou, na arvore de Natal da fa-milia, llln retrato de Theodor I Ierzl enquadrado nllmamoldura preta, Uln presente de seus pais para obscquiar 0

seu intcresse recente pdo sionismo. Esta mistura proll\lscuade identidades era confusa demais para 0 jovem Gerhard,que a partir de entao fez questao de passar 0 Natallonge decasa. A tolerancia de seu sionismo, pdo menos pOI' parte deseu pai, tambcm acabou sendo fragil. Em 15 de fcvereiro de1?17, Arthur, irritado com a deslealdadc a Alemanha queVia 110 sioniSll\o de scu mho, ellviou-Ihc uma carta rcgistra-da, enderec;:ada para a sua propria casa, dando a Gerhardlllll prazo dc duas semanas para dcixar a casa do pai, e naovoltar sell\ sua perll1issao exprcssa2 (depois dc algum tem-po, des acabaram se reconcilian~lo). Arthur Scholcm faziaquestao de exibir a sua salida identidade ale 111 a e seu cle;]i-,gamento de paroquialismos mesquillhos. Seu mho, entre-tallto relel b . . . . d' II ra Ironlcamente que a malOna as pessoa.:;com quem 0 pai se rclacionava socialll1ente cram judias.

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Uma das caracterlsticas mais salientes da intelligentsiaeuropeia moderna, pelo menos a partir de meados do secu.10 XIX, tem sido 0 seu fmpeto de se rebelar contra as suasproprias origens burguesas. A abrangente biografia queSartre escreveu sobre Flaubert, 0 iriiota riafamilia, poclc serenc:uada como um inventario definitivo deste fmpeto, naoso pot'que consegue apontar a sua existcncia de forma cui·dadosa e convincente na carreira de Flaubert, mas tambclI1pot'que expressa de forma veemente, pagina apos pagina, 0

odio do proprio Sartre diante de tudo aquilo que eIe consi·derava falso, desprezfvel e opressor na burguesia. As carac·terfsticas que tornavam odiosos os pais burgueses (mais doque as maes, pelo menos na maioria dos casos) - 0 materia·lismo, 0 conformismo, a complaccncia, 0 esnobismo, 0 de·cora pomposo, a sobriedade do trabalho, a crenc;;a nafamilia, na sociedade e no progresso - ja se tornaram fami-liares atraves da obra de diversos escritores. Estc illlpulsoanl-iburglles C bastante forte em Bel~jalllin, Kafka c Sella-lcm, se bem que, no caso dos dois {I!I-imos, eIe tenlla sc con·centrado no mundo fantasmagorico que exploravalll nassuas obras, enquanto exteriormente conservaram llln estilode vida burgucs (Bertiamin, ao contrario, viveu sua vida asmargens da sociedade, mas isso talvez nao tivesse aconteci-do caso sua dissertac;;ao de Habilitation tivesse sido aceita, eeIe tivesse obtido um cargo na universidade). 0 que eu gos-taria de destacar au'aves da conexao que estou tenlando es·tabelecer aqui e que para os tres - lIIas de forma maissignificativa para Kafka e Scholem - a rebcliao contra asorigens burguesas, essa busca par aquilo que Scholelll cha-mava de "soluc;;oes radicais", estava intimamente ligada auma revolta diante da complacencia e da superficialidadedo projeto paterno de assimilac;;ao, 0 que a tornava aindamais acirrada. It neste aspecto essencial que 0 escritor ju·deu moderno, pOI' causa de sua ambientac;;ao cultural ambf-

Sabre Naa se Saber Hebraica

, um exemplo radical e paradigmatico do escri-gua, se tOInator moderno em geral. ., , ., . . .

K (1, e' 0 crltico mals Implacavcl da mSlpldez e da futl-au"a .lidade do projeto paterno de assimi1<~c;;ao.Em C~,,.taao pal;,de reOete sabre 0 vazio da preservac;;a? superfiCIal de vestl-" de J'udafstn1o, e alimenta a fantaSia de que cas a a seuglOs I" . .., pel'manecido fid aos costullles trac IClonals, a JU-pal uvcsse ' .' ,

d ' ode ria terse tornado lllll ponto em comum cntle(\\smo p . ., ,.'os dois. A crftica mais mCIslva que Kafka fez aqullo que vIa

mo contradic;;oes inevitaveis da assimilac;;ao aparece numaco .carta de 1921,dirigida a Max Brod, e parte, cunosamente,de uma questao linglifstica. Esta passagem ja foi citada va-rias vezes, e com bom motivo, mas c importante retoma-Iaaqui, pois cIa apresenta a definic;;ao ba~ica do ambient? ne-gativo que provocou a tentat-iva do escntor de s~ aproxlmardo lIebraico (Kafka ja se encontrava no filii da VIda, e. cstavaimerso no estudo do hebraico). Ao falar sobre 0 escnl.Or sa-tirico Karl Kraus, Kafka destaca 0 papd quc 0 mfluscheln -o usa do dialeto fdiche-genn;lllico - desempenhava no hu-mor de Kraus, "Esse mal1scheln", dccIara a Brod, "consistede uma apropriac;;ao presun~osa, tacita, e autopiedosa dapropriedade de Olltra pcssoa, algo que nao c adquirido: esim roubado com um gesto relativamente casual". Indo am-da mais longe, Kafka faz uma gcneraliza~ao a respeito docscritor judeu-alemao, que e certamente uma das c1cc1arac;;oesmais impiedosas jamais feitas sobrc a situa~ao ambigua d,9judcu da Diaspora que tenta escrever IIIllna Ifngua crista.Kalka faz men~ao ao comp1cxo de Edipo da dOUIrina psica-nalftica, tao em yoga naquela epoca (de era obvialllente umde seus conhecedores mais profu ndos), mas diz preferiruma outra versao do conOito entre pai c filllo, que estariacentrada no "carateI' judaico do pai". A descri;:ao illlran-t:i-gente que faz das conseqlicncias culturais deste conOito ebastante inquietante:

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A _maioria. dos Jovens judeus que comet;;aram a eSCI"cvcr cm ale-mao qucna. dClxar 0 scu cantter jlldaico para tras, c SCIISpais~prova~'a~n ISSO, mas de uma mancira Iml POIICO vaga (c c essalInprcC1s~o 9UC Ihcs cl'a tao abominavcl). No entanto, as suas pa-tas de t.ras a~nda csta~'am presas ao carater jlldaico do pai, c suaspatas dlantelras sc agltavam no ar, scm cncontrar Ulll t.crrcno fir-n~c. ? desespcro resultante dessa sitllac;:ao tornou-sc a sua ins-I~lrac;:ao (... ). ~ produto dcstc dcscspcro nao podia scr umaIIterat.u~·a alema, pOl' mais quc cxtcrionnente aparentassc sc-Io.Elc~ vlvlan~ ~I~tre trcs impossibilidadcs, quc cu chamo, pOl' acaso,dc lI~lposslbllidades lingi.iislicas (... ). Elas sac: a impossibilidadede n.a~ .escrever, a impossibilidade dc cscrcver em alcmao, a illl-posslbilidade de cscrcvcr de mancira difcrcnle. Tambcm sc podcacrcscentar uma quarla impossibilidadc, a impossibilidadc de cs-crever ...3

A verdade esmagadora contida nesta uitica C obvia-mente [ruto de um exagero, e caso Kafka se enconl rasse emoutro estado de espirito, talvez nao a colocassc de forlllatao sOlllbria. De qualquer maneira, 0 trabalho intelectual deorclem e1evada apresellta uma capacidade surpreelldelltec1~ superar aparentes impossibilidades, coisa que nossostres homens conseguiram fazel', ao se tornarem escritoresalemaes perfeitamente autenticos, e completamente atipi-cos. Scholem conseguiu dominar um bellssimo alelllao aca-demieo, que ia da scca precisao e da minuciosa c1areza naexposit;;ao de aspectos tccnicos complexos, ate 0 uso den.u~nces para cvocar determinaclos estaclos psicologicos, eVlsoes c1e Deus, do homem e da historia. No entalllO, cleaplicava os instrumentos precisos da filologia alellla - anlesde tudo como um mctodo de pesquisa, mas tambclII COIIIOum estilo c1e escrita - a um assunto completamente allti-ge~·manico:. 0 mundo c1esconheciclo e bizarro da mistica ju-dalca, reglstraclo numa quantidade enorme de textosescritos em aramai.co.c hebraico que permaneciam esqueci-dos, e, em sua malOna, afastaclos do estuclo acaclemico da

historia na Alemanha. Beruamin, como observou IIannahArendt, dedicou-se a um projeto semelhante ao de Scho-Icm, ao escolher como tema de sua Habilitation 0 Traue.,.s-piel barroco a~em.ao, um. g~nel.·o 1.listoricamen~e remo~o,que no seu ra~lcahsmo e vlOl_enclablzarros parecla estal~ ta?a margem da hteratura alema, quanto a cabala em relat;;ao ahistoria do judaismo. Apesar de talllbclIl dedicar alguns es-wdos a figura importantissima de Goethe e a esuitorescontemporaneos - como Kafka, Karl Kraus, e seu allligoBertolt. Brecht - e de tel' anunciaclo a Scholem, na decisivacarta (escrita em frances!) de 20 dejaneiro de 1930, que suaambit;;ao era se torn'll' 0 principal estudioso da literawraale ilia, ele dedicou a maior parte de suas energias, nos seusanos de maturidade, ao estudo de csuitores [ranceses, queiam de Baudelaire a Breton e Proust. 0 estilo gncnnico quecriou para expressar a sua visao uitica era uma curiosa lIIis-tura de abstrac;:ao metaGsica e de denso lirismo, altemada-mente opaca e esclarecedora. E possivel que se encont.remprecursores isolados deste estilo na literatma alema a partirdo scculo XVIII, mas ele constituia ullla espccie de prosaque era peculiar a Bel~amin, uma maneira de escrever umalemao autentico de um ponto de partida marginal, semcair na Calha c10 lIla'llscheln. Kafka, que estigmatizava explici-tament.e esta falha, e que na carta c1irigida a Brod pareciaperder a esperanc;:a de evita-la, lapidou cuidadosamcllle UIIIalemao cristalino, telldo como ideal 0 estilo preciso de 11111Flauber!., e talvez utilizalldo tal1l])cl\1 algulllas figuras alem;"ispouco tradicionais - como pOl' exelllplo Kleist - COIllO1110-d~los para a sua prosa. Dc qualquer lIIaneira, ele cOllseguillcnar 0 e[eito de uma IIngl1a estrallhamente isolada de suasraizes historicas. Se a sua ambit;;ao enqllallto estilisla era setornar Um Flauberl. alemao, teriamos de imaginal' um Flau-ber!. que bloqueasse deliberadamente a illOuencia historicade Racine, Voltaire e Rousseau, e recorresse apenas de [01'-

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ma indireta e ocasional a alguma figura da contracorrente,como Bel~amin Constant. Se um dos principais aspectos daliteratura moderna c fazer do ate da escrita uma cerimoniade estranhamento manifesto - que adota como simbolosexternos 0 exilio, a rebddia, a aliena~ao social, e a icono-clastia formal - Kafka, Bel~amin e SChOlelll, ao incorporar,e, ao mesmo tempo, transcender as contradi~6es de suasorigens judaicas, tornaram-se exemplos radicais e, pOl'tanto,paradigmaricos do escritor moderno.

No entanto, ao mesmo tempo em que os tres realiza-yam os seus idiossincraticos projetos literarios em alemao, 0hebraico participava do mundo imaginario de cad a um de-les, cQmo uma espccie de antipoda cultural e lingiilstico. 0caso, de Scholem, pdo menos superficial mente, c 0 maissimples, pois de mergulhou precipitadamente no hehraicoquando jovem, e permaneceu imerso nele. Na ocasiao proforma de seu ba'/' mitzvah, ele gallhou uma cok~ao da I Jist6-'/'ia das j1lrleus, de Heinrich Graetz. Foi a kitura deste autor(que tambclII agiu como um catalisador cia fascilla~ao doKafka adulto pdo judaismo), que despertou 0 seu interessepdo judaismo e sua lingua cUssica, Ele come~ou a estudarhebraico, e logo estava declicando 15 horas pOI' semana aessa atividade, alem das suas tarcfas cotidianas no gymna-shaft. Dotado da vantagem il~usta de possuir um g(':nio paralfnguas - ao contrario da simples facilidade que Bel~jamill eKafka apresentavam - aos 15 an os ja estava estudando 0

Talmude, e aos 17 ja parecia tel' aclquirido 11111 dOllliniocompleto de todos os estratos do hebraico: 0 biblico, 0 rabi-nico, 0 medieval e 0 moderno. I-Iavia, C claro, motivos pr,iti-cos para ele aprender hebraico. Devido a sua liga~ao com 0

sionismo, desde cedo de pensava em emigrar para a Palesti-na logo que tenninasse a sua educa~ao formal, e 0 hebraicoera 0 idioma que teria que empregar neste novo pais.Quanto a sua vocac;;ao, depois de Oertar com a matelllarica

Sobre Nao se Saber Hebraico

c a filosofia, de tomou um interesse pdo estudo da mistica, daica, que exigi a um dominio perfeito do hebraico e deJU , ('d'···· I tsua lingua gemea, 0 aramalco a 1 eta ~n~cla par~ a sua esede doutorado foi a concep~ao cabahstlca d~ hngllagem).Nesse mesmo periodo, no entanto, de tambem c1a\'a umagrande importancia ao .h~braic~ como um vclculo para re-tornar a um mundo espmtual dlferente.

Assim, em 1919, em Berna, onde morava perto deWalter e Dora Benjamin, fez a seguinte observac;:ao, numaanota~ao particular (publicada de po is de sua morte): "aban-donamos, entao, a lingua da nossa inffmcia, e comec;:amos aestudar a linglla da juventude, illlbuida de uma ressonanciainfinita. Naquela cpoca viamos 0 hebraico como a {mica sai-da.'" Numa carta dirigida a Franz Rosenzweig, te610go ju-deu-alemao, pOI' ocasiao de seu quadragesimo aniversario,em 1026, Scholem percebia, numa observa~ao ainda maisrevdadora, uma especie de perigo espiritual explosivo natentativa cle resgatar 0 hebraico enquanto lingua verllacula:"As pessoas nao se dao conta do que estao fazendo. Elaspensam que conseguiram trans formal' 0 hebraico numa lin-gua secular, que simplesmente arrancaram 0 seu ferraoapocaliptico. Mas isso nao e verdade. A secularizac;:ao deuma lfngua e uma expressao vazia, nao passa de Iml clla-vao." Numa carta dirigida a Scholem, um ana e meio antes(20-25 de maio de 1925), Bel~amin indagava 0 que Scholemqueria dizcr ao afirmar que a lingua ressuscitada poderia sevoltar contra aqucles que a empregavam. A carla dirigida aRosenzweig apresenta a resposta lIIais completa a csla Clues-tao, ao imaginal' uma espccie de enredo lIIitico, no qual alingua hebraica c vista como UIII sistema de tubulac;:6es pro-[ulldas conectadas ao abismo - palavra-chave presente emtoda a obra de Scholem - que, ao ser ativado, pro\'ocariauma reaparic;:ao irresistivd das profundezas:

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A lingua e formada por nomes. 0 poder da lingua esla ligado aonome, e seu abismo esta selado denlro do nome. Depois de COI~\I'rar os nomes anligos dia apos dia, nao podelllos lIlais repriluir asua forc;:a. Nos os despertalllos, e cles leriio que se manifeslar,pois foram cOIuurados COIllHilla energia 1Il1lilo grande.S

A concep<,;ao de IIng1.1aque aparece aqui c radicallllen-te oposta a no<,;ao puramente sincronica de lun sistellla ar-bitrario de significantes, que [oi tao in[1uente a partir deSaussure, ate 0 pos-estruturalismo. A lingua e encaradacomo se estivesse calcada no solo poderoso da expericnciahistorica - ou talvez se possa ate mesmo concluir que exis-tem atributos intrfnsecos de uma determinada lingua quepl'ovocam a expericncia historica. Ela nunca abandona aqui-10 que ja absorveu. Pdo contrario, as pro[undas e caracte-risticas percep<,;6es de valor, de tempo e espa<,;o, de Deus,da cria<,;ao e da historia, embut.idas nas palavras ant igas, es-tao sempre a espera, prontas para surgir novamente, parafazer com que a historia aconte<,;a de novo, talvez de [orillaperturbaclora. 1\ palavra (jets, em hebraico, aponta para 0

fim clos tempos, 0 fim da vida na historia do dihivio, e parao fim cla orclem humana que nos e Euniliar, ao contd.rio doalemao Ende, ou seu equivaIente em outras IInguas euro-peias, que se re[ere, antes de tuclo, ao plano mais prosaicoe mundano da geometria, da cronomeLria e dos processosmedlnicos. E impossivcl deixarmos de nos perguular sCScho\em encarava 0 surgitnento de COITentes apocallpticasclentro do sionismo contemporaneo, COIllO,pOI' exelllplo, 0

movimcnto Gush Emunim, como 0 desencadeamcnlo prcvi-sivcl cle potenciais amea\adores illlpllcitos ua pr6pria reLO-mada do hebraico. Dc qualqucr maneira, 0 hebraico,enquanto lingua portadora do peso da revcla\ao e de abis-mos espirituais, assustava-o e, apes'll' de SchoIem se decla-rar um anarquista rcligioso, exercia \un grande [asclniosobre cle (sendo uma antitese da M'IIffenpmche e da amena

I . !)UI'gucsa dos pais 0 hebraico rcpresentava umaell tlll a 'Ul'spmche que dava acesso a um dom~ni? ao mesmo tempoerigoso c desafiador, com a mcsr~a faclhdade.- e. talvez ~~

ronna mais garantida - que 0 haxlxe que Bel~amm expel 1-

menLOUnum determinado momenLO de sua Vida, ou que osson has qlle atormentavam Kafka. . _ .

Se a volta do hebraico apresentava esta dunensao CSpl-riwal e experimental, cia tambcm ~stava illlb:Jida de umamotiva<,;ao ideologica cuja in[1ucIlcla era mUlto clara emSeholem e implicita em Kafka, mas que nao est~va pre~enteem Benjamin, que nunca assumiu ~ma perspe~tIva n~clonaljudaica, para ser a[etado pOI' este upo de c~nslde.ra\~~. Re-firo-me nao ao [ato obvio de que 0 hebralco [01 uuhzadopOI' uma corrente politica do sioni~mo como um instru-mento de rcnascimento nacional, e suu ao poder que 0 he-braico - enquanto lingua original dos judcus - possuia, d~libertar aqucles que 0 utilizavatn de qualqucr c~nstrangl-menta em rcla\ao ao que as naojudeus podenalll cstarpellsando, eoisa que diz IIIais respeilo ;1 nossa tentaliva denos atermos aqui a questao da identidade cultural e daconscicncia historica. Alguns sionistas argumentaram, ~eforma provocativa, que qualquer coisa escrita sobre os JU-deus numa lingua ocident.al nao poderia deixar de tel' umCarateI' apologctico, e c possivel que h~a \Ull grao de verda-de ncssc exagcro. Ao escrever a Beluamin no dia 18. de de-zelllbro de 1935 SchoIem [ala de lUll longo ens,lIo queestava cscrevend~, e que cert.amente seria de grande il~te-resse para seu amigo. EIe explica, no ent.anto, que 0 arugo"so pode ser escrito em hebraico, peIo menos sc 0 autorquiser ficar livre de inibi<,;6es apologcticas". Este ensaio [oipublicado no ana seguinte, num anuario hebreu, com 0 ti~tulo de "Mitsvah haba'ah ba'averah", e so em 1971 de [01

traduzido para 0 ingles, sob a titulo de "Reden\ao pelo pe-cado".6 Esse artigo certament.e seria de enorme interesse

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para Bel~amin, e cIc dc fato foi um marco na carreira deScholem. Foi 0 seu primeiro grande estudo sobre a heresias~batianista, 0 primeiro olhar prolongado que lanc;:ou emdlrec;:ao a este abismo que esta no centro da historia judai.ca, e no qual via uma mistura paradoxal de fon;:as niilistas cantinomianistas de destruic;:ao, e poderes vitais de renova-c;:aonacional. Nao podia ser facil pensar sobre tudo isso emalcmao.

o propdo titulo e formado pOI' um chocante e intradu-zivcl trocadilho .sabatiano, baseado em um conceito origi-nalme~te hebrmco. No Talmude, uma mit:wd, ou seja, 0

cumpnmento de um mandamento divino que, literalmente" d' ,se a at/"aVeSda transgressao", c uma noc;:ao legal: qual e,pOI' exemplo, a situac;:ao Icgal de uma mild, a tenda cerimo-nial prescrita pela biblia, e que c construida com materialroubado? Na redefinic;:ao antinomianista sabatiana, a mitwase da atraves da transgressao POl"quc ao se cometcr inten-cionalmente uma infrac;:ao - seja ela sexual, ritual, ou qual-quer outra - cia passa a ser vista, paradoxalmente, comoum cumprimento do preccito divino. 0 usa do hebraiconao so dava a Scholem a liberdade de lidar com 0 seu mate-rial sem qualquer tipo de constrangimento, mas tambem,como indica 0 titulo que escolheu para 0 artigo, permitiaque e!c trabalhasse com um comp!cxo formado por concei-tos definidos com precisao na tradic;:ao judaica, e f)ue saoquase complicados demais de serelll explicados IIUllla OlltraIil~gua. ? projeto que esboc;:ou em "Redenc;:ao pelo pecado"fOI .realizado em grande escala na biografia de SabbataiSevI, que taml;>cm escreveu em hebraico, em 1056.

Kafka tenlOU se aproximar do hebraico mais ou menosao mesmo tempo em que soube que sua vida estava pertodo fim - uma simultaneidade que talvez nao tellha sido~11er~coincidencia. A sua primeira onda de interesse peloJudalsmo e pela culturajudaica ocorreu no outono de 1911,

quando tinha 28 anos,' ~om a chegada em P~"aga de umacompanhia de teatro Idlche. Kafka ficou .fascmado COI~ 0

grupO, ia assistir ao espetaculo todas as nOltes, ficou ~palxo-nado por uma das alnzes e se lornou um grande amIgo doator principal. Algumas semanas mais larde, eslava !cndoGraetz, e depois a I Iistoire de la litlemture Judea-Allemande deMeyer IsseI' Pines. As anotac;:6es que fez em seu diario nessaepoca estao repletas de refercncias ao teatro idiche, aomundo do folclore e das pralicas religiosas apresentado naspec;:ase a trechos da doutrina do Talmude e do hassidismoque tinha destacado em suas leituras. Kafka lambcm de-monstrou um interesse crescente pelo sionismo, que, comotodos os outros inleresses da sua vida, foi oscilanle e ambi-valenle. Comec;:ou a eSllldar hebraico, sozinho e com a ~u-da de professores paniculares, no filial da primavera ou noinicio do vcrao de 1017 (seu primeiro professor roi 0 Dr.Friedrich Thieberger, urn jovem bastante culto, mho de lllllrabino de Praga).7 No inicio de agoslo de 1017, ele sorreusua prilllcira hemorragia pulnlOnar, que foi diagllosticadaum mes dcpois como uma tuberculose: a doenc;:a 0 matariaem seis anos, aos 41 anos de idade.

A partir desse momento, ao mesmo tempo em que 0seu eSlado de saude precario 0 obrigava a sair constante-mente de licenc;:a case internal' elll diversos sanatorios, assuas canas apresentam varios indicios de um persistenle en-volvimelllo com 0 hebraico. Numa carta de 27 de selembrode 1918, e!c repreende Max Brod por tcr comelido algunserros de hebraico numa carta que enviara a Kafka, mas 0

c10gia por seu esforc;:o geral. No dia 8 de abril de 1920, eledeclara ter consegTlido, com alguma dificuldade, entabular~ma conversac;:ao em hebraico com um vendedor de tapetesJudeu da Turquia, que conhecera em Meran (nao temosceneza do nivel de Oucncia que Kafka atingill no hebraico.Georg L '. .angel, um Judeu secular de Praga que se converleu

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temporariamente ao hassidismo e escreveu um livro chama-do Die Erotih del' Kabbala, I'clatou mais tarde tel' conversadoa~gum~s vezes com 0 amigo Kafka em hebraico, mas c diff-cll ~vahar a confiabilidade deste depoimento). Em julho de1923, ele agradece a ~-rugo Bergmann, seu antigo colega declasse, pOI' ter-Ihe .envlado a primeira carta em hebraico querecebeu da PalestIna (num curioso cruzamento do destinodez an os mais tarde Bergmann se tornaria 0 amante, e de~pois 0 segundo marido, da primeira mulher de ScholemEscha). Tambem no vedo de 1923, Kafka Iia textos em he:braic.o na companhia de Dora Dyamant, uma jovelll de eclu-ca~ao hassfdica da Europa Oriental, que seria 0 seu lillimoamor: Durante 0 ana de 1923, 0 ultimo ana completo desua. VI?a, cle declara que conseguia ieI' IIIUilO pOIICO, e nan~alOna das vezes em hebraico. Num carlao-poslal que en-VIOUa Robert Klopstock de Berlim, no dia 25 de oUlubrode 1923, de escreve que estava Iendo, com algulII es[on;,:o, 0

romance Sliek/wl ve-Kishalon, de Y. I-I. Brenner, avan\andouma pag-ina pOl' dia. "Para mim cle e c1iffeil em lodos os as-pectos, e nao c muito bom".8 0 romance, cujo tflulo em in-~Ics c .Brealldo7~n and Bereavement (Esfacelamento e perda),tmha sldo publicaclo em hebraico cinco anos antes. A difi-culdade a que Kafka se refere e basicamente lingiifslica,mas cia lalvez lenha lambcm urn fundo emociollal, pois secle esperava encontrar algum vislulllbre de esperall\a neslaobra escrila em hebraico modemo, enCOlllrou ao illvcs c1is-so u~n pan?rama de desespero e rruslra~ao que, apesar ciaamblenta~ao em Jerusalem, era eSlranhamellle selllclhanlcaquele em que cle proprio vivia. Do ponto de visla art fSlico,Ka~a nao podia achal' 0 livro muilo bom. A prosa irregu-lar, as vezes aparentemente amorfa, de Brenner, e seu lrata-mento frouxo do en redo e das situa~6es, eram a antflese doideal de precisao formal de Kafka. A permuta~ao enlre aspalavras que formam 0 tftulo da obra intrigava Kafka. No

os-escrito de uma ,carta que escreveu a Klopstock no infeio~e novembro, ele faz a seguinte observa~ao: "Shellhol ve-Kishalon sac do is substanlivos que nao consigo enlendermuito bem. De qualquer maneira, eles sac uma tentativade representar 0 auge do inforlunio. Shehhol significa, li-teralmente, a ausencia de filhos, e pOl'tanto, talvez, esteri-Iidade falta de perspectivas, esfor~o inutil; e Kishalon

, • 9significa, literalmente, trope~ar, call'''. Ele estava certo,do ponto de vista etimol6gico, em rela~ao a Kishalon -que, entretanto, tern ainda 0 sentido mais geral de "fra-casso" - mas cometeu um erro revdador em rcla~ao aShehhol, que na verdade significa "perda pelo falecimentode um filho", um estado que de nao conseguia conceber,pois nunca conseguiu se imaginal' na condi~ao de pai, ne-cessaria para isso. Ao realizar a trarisposi~ao desse termopara a sua pr6pria situa~ao de ausencia de filhos, Kafkacomete um erro Iingufstico ao interpreta-Io como "esfor-~o inlitil", mas nao deixa de ser ficl a realidade sombriado mundo ficcional de Brenner.

Apesar de algumas vezes Kafka se encontrar em Berlimao mesmo tempo em que Benjamin e Scholem estavam naddade, seus caminhos nunca se cruzaram. Kafka, no entan-to, faz uma referenda revdadora a Scholem, numa carta di-rigida a sua noiva, Felice Bauer (22 de setembro de 1916),que Scholem ficou radiante ern descobrir quando a corres-pondencia foi publicada. Felice tinha assistido a uma confe-renda no centro comunitario judaico de Berlim, ern que~ieg~ried Lehmann apresentou um programa de educa~aoJudalca que Scholem achou completamente confuso e pre-tensioso. Na sessao de debates, foi Scholem que levantou aobje~ao mais veemente: "Exigi que as pessoas aprendessemhebraico e fossem direto as fontes, ao inves de perderemtempo com esse tipo de tolice literaria".lo Felice Bauer rela-tou 0 episodio a Kafka, e de fez 0 seguinte comcntario:

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"teoricamente, tenho sempre a tendcncia de apoiar 0 tipade proposta sugerida pOl' I-Ie'/'/' Scholem, que exige 0 maxi.mo e, portanto, nao chega a lugar nenhum. Nao se pode,entao, avaliar 0 valor dessas propostas a pal:tir do resllltadaconcreto que elas apresentam diante de nossos olhos (...)Na verdade, as propostas de Scholcm, pOI' si sos, nao saoimpratidveis" .11

Esta formula~ao paradoxal c tlpica de Karka. I laveda,segundo cle, urn valor de verdade intdnseco, ou uma espe-cie de autcnticidade, que justiucaria a proposta do estudodo hebraico - ou, de fato, qualquer outra proposta - e quesimplesrnettte nao dizia respeito a sua viabilidade pratica.POl' Dutro lado, 0 impraticavel talvez acabasse se tornandoperfeitamente possivd (um prindpio sem 0 qual 0 sionismoe 0 renascimento do hebraico jamais teriam se tornadouma realidade). Esse tipo de raciodnio sobre as exigcnciasde se atingir UIn extrema lingiiistico adquiriu certamentcuma nova intensidade um ana mais tarde, quando Kafkacome~ou a se dcdicar ao cstudo cia hebraico, ao mcsmotempo em que os primeiros sinais de sua doen~a estavam semanifestando.

De fato, pOI' quc teria de come~ado a estudar hebraicocom a proximidade da morte, num pedodo em que estavaescrevendo contos como "0 ca~ador Gracchus", "Um velhomanuscrito", "Urn relatorio para uma acaclcmia", c "Illvcsli-ga~6cs de um cao" - histodas aparclltcmcnte Ilni\'crsais,mas baseaclas numa matriz tcmatica jlldaica - c SCIl (lltimoromance, 0 castelo, que, como scus clois predeccssorcs, pcr-maneccria inacabado? Seus amigos Bergmann e Brod tenta-ram encor~a-Io a emigrar para a Palestina. Esta expcctativaparecia atrai-Io as vezes, mas de sabia que nunca iria con-cretiza-Ia, da mesma mancira que nunca conseguiria se ca-sar (as vezes ele parecia estabelecer uma analogi a entre

. esses dois projetos irrealizaveis). Ja perto do um cle sua

b "0"0 se Sober HebroicoSo re IV'

. c: " u que se contentaria em viver numa regiao deVida, aLUmo . '.. . lleno no suI dcdlcando-se excluslvamente aoclulla mals al , ,swdo do hebraico. .

e Apesar de 0 proprio Kafka nao apresen:ar moUVos ex-Hciws para isso, os in.dk.ios o~jetivos ofereCidos pel as sua~

p d'la'l"ios e os smalS ouhquos que poclemos detectalcartas e, .'na sua obra uccional, indicam que aqullo que 0 atrala nohebraico era semdhante aquilo que au"aia Scholcm. Trata-va-se de uma lingua que remontava a um mundo cOml?leta-mente oposto aquele cia loja e clo apartamento burglles deI-Iermann Kafka, com seu uno verniz de alemao de Praga.Sendo ou nao um cabalista heretico, como insistia Scholcm,Kafka tinha um intcresse profundo pela idCia de rcvda~aoe pelo esfor~o do homem para estauelecer uma liga<;:aocomum mundo transcendental, e, senclo jucleu, ele encarava 0

heul'aico como 0 vdculo primal'io e mais poderoso - a UI'S-

pmche - desse interesse. Num cartao-postal enviado a FeliceBauer em 16 de setemuro de 1916, ele fala da "complcxida-de ouscul'a clo jlldaismo, q"e apresenta tantas facetas impe-netraveis", uma no<;ao que se casava perfeitamente com ~ideia que Scholcm tinha de um abismo amea<;ador embuu-do no heuraico. Acompanhar as palavl'as originais da histo-ria da criaC;ao, dos Salmos, clas profecias de Isaias; fazeruma primeira incul'sao hesitante no labirinto dialctico doTalmucle; pensar na al'ticula<;ao liter<l.ria moderlla cla lin-gua milcllar - nacla disso podia oferecer algum tipo desolu<;ao intelectual ou de salvaC;ao espiritual para um Kaf-ka agonizante, mas permitia que de tivesse contata comalguma coisa que sentia ser autcntica. Despido de qual-quer esperan~a, de se contentou com a verdade, lllna ver-dade fundada numa identidade cultural dentro da qual 0

seu povo tinha concebido, narrado, definido juriclicamen-te, questionado e discutido 0 seu papel no munclo e a suaI'cla<;ao com Deus .

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Dos. nossos trcs esuitores, somente Be,-uamin mantevco hebralco apenas como um horizonte. Dependendo donosso ponto de vista, ou do momento de sua vida que esti.venn~s estudando, a questao e saber pOI' que ele insistiaem nao aprender hebraico, ou, ao contd.rio })or 0lle el• • , -I Cma ,:luerer sabe~' hebraic.o, aUllaJ. E pouco provavcl que aopc;ao ~o hebralco Ihe lIvesse ocorrido se nao fosse pclasua .am~zad.e com Scholem, que data de 1915, quandoBenJamm .tmha 23 anos. Muito mais tarde, numa cartaque se seguiu aquela em que renunciava com tristeza aseus pIanos ?e ir para a Palestina, lle,-uamin declarou quetodo 0 seu mteresse pelo judafsmo vinha de seu amigo,Gerhard (a.lgu.ns estudi~sos recentes de lleruamin apon-tam para smals de um mteresse pelo judafsmo antes deele conhecer Scholem, mas, pelo menos de acordo com 0

ponto de vista do pr6prio lle,-uamin, foi all-aves da in-Iluencia de seu amigo mais jovem que ele veio a se encon-trar com 0 judafsmo). A amizade entre os dois se tornOl!cada vez mais intensa durante os dois 11Itimos anos cia Pri-meira Guen:a Mundia~, e .durante os tres ou quatro anosque se segUlram. ller~pmm come~ou. a estudar hebraicopeIa primeira vez em 1920, mas parou depois de algunsmeses. Cinco anos mais tarde (20-25 de maio de 1925),ele. escreve a Scholem, que ja morava em Jerusalelll hadOis ~nos, para anunciar a sua guinada ern direc;ao aomarxismo, e fala da sua inten~ao de fazel- ullla viagelll aMoscou e de se filial' ao Partido Comunista, "ainda teJl1-porariamente" (coisa que ele nunca chegou a fazer). Noentant~, Moscou e vista como uma alternativa oposta a]~nlsalem, que, naquele momento, era uma opc;ao queamda nao tinha sido descartada: na verdade, as duas cida-des represent~vam safdas radicais opostas pal-a longe domun?o da~ ongens burguesas alemas, do qual Be,-uaminquena fuglr desespelladamente. Ele se encontrava, como

declarou a Scholem, num "terrfvcl conOito de forc;as (mi-nhas forc;as internas), do qual isso [MOSCOll,0 Partido] e 0estudo do hebraico necessariamente participam".

Foi dois anos mais tarde, no verao de 1927, 110primei-1'0 encontro que tiveram depois da emigrac;ao de Scholem,que Bel-uami~1 - depois de ~assar dois m~ses em Mos:ouno ana antenor - chegou malS perto do polo de Jerusalem.As longas horas que os dois passaram juntos em Paris in-c1ulram, segundo 0 testemunho de Scholem, nao s6 discus-saes [ervorosas sobre 0 marxismo, mas tambem umasurpreendente manifestac;ao de adesao a meta do hebraicopOl' parte de llenjamin. Scholem apresentou llel-uamin aJu-dah Magnes, um dos reitores da Universidade IIebraica,que tambelll estava de passagem em Paris. Numa conversaentre os trcs, llel-uamin, de acordo COlli 0 depoilllcnto deScholem, declarou entllsiasticamcntc que "sell interesse es-taria voItado a uma total dedicac;ao a lingua e a literaturahebraicas", que "de acreditava s6 poder at.ingir I\ln novopatalllar int.electual ao se tomar UI1luftico de textos hebrai-COS".12Discut.iu-se a possibilidade de BC1-uamin assumir umcargo no novo departament.o de cicncias humanas da Uni-versidade Hebraica e, quando Magnes volt.ou a Jerusalem,de providenciou uma ~uda de custo que seria paga a llen-jamin para que de puclesse se afastar 0 bastante dc scu tra-balho como jornalista para sc dcdicar ao est.udo dohebraico. Em 26 de junho de 1929, llcl-uamin cscreve aodramaturgo, pocta e editor I rugo von Hofmannsthal, dizen-do que estava estudando hebraico com aunco ha dois me-ses, e que planejava partir para Jerusalem em setembro,oncle se declicaria exclusivamente ao estudo da lingua. Ele1cmbra a Hofmannsthal que quando se conhcceralll, 0 poe-ta austriaco, que era meiojucleu, aurmou enfaticamente aBel~al11in que n500saber hebraico era "ullla grande lacunapcrccptive1 c surpreendellte na sua vida [de llel~jalllin]".

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ANJOS NECESSARJoS Sabre Naa se Saber Hebraica

Depois de alguns meses, entretanto, 0 projeto do he.braico foi definitivamente abandonado. Moscou acabounao sendo 0 polo que afastou Beluamin de Jerusalcm _apesar de de continual' a ser um marxista idiossincd.t-icodurante mais uma dccada - e sim Paris. A carta de 20 de ja.neiro de 1930 que enviou a Scholcm para contar que tinil;jdesistido do hebraico foi escrita em frances. Como de mes·mo explicou, 0 [rances Ihe serviria como "uma espccie dealibi", permitindo que dissesse ao seu amigo algumas coisasque seriam dificeis de se dizer na intimidade de sua lfnguanatal. Creio, no entanto, que ha um outro motivo para a cs-colha do frances: esta lfngua simbolizava a voca<;:ao queBenjamin finalmente tinha escolhido. 0 hebraico tambcll1estava associ ado a uma voca<;:ao, a idCia de se tomar, comoconfessou a Scholcm, urna espccie de Rashi ou ibn Ezramoderno, um exegeta de textos sagrados. 0 frances naoera nem uma Mutlersprache, nem uma Unprache, mas sim lalangue de la civilisation europeenne, que se tornaria 0 sellgrande objeto de estudo. Apesar de afirmar na mesma carlaque pretendia se tornar 0 principal estudioso da literat.uraalcma, 0 grande projeto que menciona, que 0 retcm na EII-ropa e nao Ihe da tempo de se dedicar ao hebraico, e 0 li-vro As passagens de Paris. 0 tit.ulo que acabou escolhendopara esse projeto (que nunca chegou a ser terminado) - Pa·'ris, capital do secula XIX - deixa bast.ant.e clara a sua orienta-<;:aogeoespiritual, enquanto 1II1leuropeu (nao \1111 alemao)que escreve do oest.e para 0 lcst.e. Esse t.itulo mosl ra, c cla-ro, a sua preocupa<;:ao com 0 vc1culo pal pavel da hist.oria -nos fragment.os da obra que foram conservados, elc 0 evocacom uma especie de impressionismo lfrieo mQ."/xisanfe- mastambem reOete 0 desejo de converter a geografia nacionalnuma especie de t.emporalidade. No ambit.o ideal de sellproj~to, Paris nao c a capit.al da Fran<;:a, mas sim de um sc-culo. Elc chega a cidade nao como Illn alcmao marginal

I ' seria forrado a optar pOl' um exilio permanen-(que ogo ~ ,Omo um europeu que se coloca para alcm dos

tc), mas c . .limites impostos pOl' uma perspecl.Jva meramente naclO-

I no um herdeiro da cu1t.ura engendrada nesse ex-na, COIl' 1, 'dinario seculo de transi<;:ao. No fim da c ecac a,t! aOI . ., 1 n . .

d ficou claro que a guerra era lI1evltave , DellJamll1quan 0 . < • , ,",.nao consegulU se convencer a san de PaIlS ate S:I tal de

d 11ais po is era Ii onde se encontrava 0 seu proJet.o, e 0el < , • I' .eu proieto havia se tornado, quase no sentldo re IglOSOs J _ 13

da palavra, a sua voca<;:ao. . . ,. .o que restou do hebralco na obra hterana ;1: BenJa~

min _ principalmente na sua prill1eira fase metafls.lca ~ fOIuma idcia bastante peculiar de lingua. Ele nao p~ha, comoScholem, apontar para a maneira como 0 hebralco. es~a~aimbuido de for<;:as acumuladas ao longo de sua 111sl.Ona,pais nunca chegou a conhecer os segredos hist.oricos destalfngua antiga. Ao inves disso, tomou emprest.ado da cabala_ que conhecia atraves de suas discussoes com Scholcm. ede escritos especulativos e academicos alemaes sobre 0 as-sunto - a no<;:ao de que a lingua seria um instrumento cos-mogonico, nao so enquanto constit.uinte basico da criac;ao,mas tambem como a chave para compreende-Ia (nao t.enhocerteza se Scholem realmente acredit.ava nesta idCia, apesarde de tel' dedicado varias paginas a explica<:ao de suas di-versas articula<;:oes na doutrina cabalista). Beluamin chega,assim, a no<;:ao transnacional e a-historica de uma "lingua-gem enquanto tal" (Sp'mche 71.berhaupt), que e apresentadapela primcira vez no ensaio "Sobre a linguagem enquantotal e a lingl.lagem do homem". A versao inicial dest.e traba-Iho foi escrita em 1916, de po is das primeiras conversas queteve com Scholem a respeito da teoria da linguagem na mis-tica judaica. Esta concep<;:ao de linguagem, que tambemda forma ao desconcertante ensaio "0 oficio do tradu-tor", de 1923, e obviamente mistica. Haveria uma lingl.,a di-

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vina ideal antcrior a deteriora~ao historica espcdfica decada idioma - ideia quc se aproximava muito da mancirapda qual 0 hebraico e apresentado na interprcta~ao rabfni.ca. Segundo 0 proprio BerDamin, a sua an;l.lise scguia ell)grande parte a Bfblia, "ao pressupor a linguagcm COlnouma realidade fundamental, incxplicavel c mfstica, perccptf.vel apenas atraves de sua mani[esta~ao". A linguagcm trans.cende a fun~ao mundana de comunica~ao dentro dasociedade humana, "pois todo 0 corpo da natureza esta im·pregnado de uma linguagem sem nome e muda, residuo dapalavra criadora dc Deus, que c percebida no homem comoo nome que guia 0 conhecimento, e acima dele, como umjulgamento suspenso sobre a sua cabc\a."H Apesar dc hojeem dia estar na moda citar e elogiar as dcclara~6es mais de·lirantes de Benjamin, como se elas [ossent excmplos dc suasintui~6es mais brilhantes, eu francamentc nao sei 0 que di-zer desta afirma~ao - apesar de cia ser uma belissima ima-gem poctica. Estou inclinado a encara.-Ia como umaextravagancia emotiva e incocrcntc dc uma imagina(ao liri-ca que brinca com idcias mfsticas. Em oulras palavras, a tco-ria de linguagem de Benjamin e a transforma~ao daconcep~ao do hebraico aprcscntada pela cabala em umaabstra~ao mctafisica universal, e e cxatamcnte cssa transfor-ma~ao que causa a nossa descren~a. Para um cscritorjudcu-alemao, fazcr uma especula\ao dcssc t.ipo podia rcprcscntaruma alltra saida para 0 terrivcl dikma das tres illlpossibili-dadcs lingiiisticas de Kafka, mas nao, na minha Opilliao,uma saida muito convincente. Se alguma vez BCIDalllin es-capou da angll:;lia dc nao saber hebraico, foi, como vcrc-mos em breve, !10 ambito dos sonhos.

Em setcr:lbro de 1939, depois da ocupa\ao nazista,Bertiamin foi levado para um "campo de trabalho vohlllta-rio" em Clos St. Joseph Nevers, ondc ficou delido durantcquase do is meses. Todas as cartas que enviou do campo, as-

"'0 se Saber HebraicoSabre I,a

naioria de suas carlas durante 0 perlodo da. comO a I <511n ;' Coram escritas cm frances, provavelmcnte para

ocupa~<IO,. tenr~o do censor. Entretanto, uma dessasao chama! a a '5< \ dn . d Gretel Adorno no dia 10 dc outu )1'0 e

cartas, envla a a . , . "d I9

. I como ele mesmo observa no IBlCIO,um up 0193 , un la, .. " 'a ser escrita em frances, pOlS cia relatava um so-moUVO pa!< . , . . dulminava numa frase cBlgmaUca pronuncla a

nho que c .., . , d. '.nessa lingua (Beruamll1 unha se tornado um gl an c amigode Gretel Karplus Adorno dcz anos ~ntes. Em 19~9,ela ~no-. Nova Iorque com 0 mando, Theodol AdOl no,lava em . . . ) A. . alteorico do Instiluto de PesqUlsas SOCialS. passa-prmclp, . d'gem de uma ling'ua para out~'a - ou de um sistema e I~S-cri~ao para outro, que tem sldo 0 centro d~ noss~ atcn~aodesde 0 inlcio _ dcsempcnha um papel prllnonhal no so-

nho dc Bcnjamin. . _ "No infcio da carta, Benjanlln faz qucstao de asslllalal

que 0 sonho que teve enquanto dorlllia cn~ seu enxer?fl~no campo dc delen<;,:aOera de uma beleza tao extraorchna-ria, que ele sentiu a necessidade de compart.ilha-Io com al-gucm, e no final afirma que acordou num cst~do de grandeeuforia. Seria bastante instrutivo cstudar a ongcm dessa cu-foria. No sonho, Bel-Damin esta passeando com um certoDr. Dausse, um medico amigo scu que 0 teria tratado demalaria. Elcs vao dar num fosso, ou cscava~ao (fouille), ccr-cado de estranhos esquifes de pcdra dispostos em pares, eque apresentam a mesma macicz convidativa de camas. Masno exato momenta cm que os dois iam se deitar, eles sedao conta de que os esquifes-cama ja estao ocupados, e en-tao, deixando para tris este estranho local onde ~ sono, amOrle e _ implicitamente - 0 erotismo estao n~l~turados,continuam 0 seu passeio, atravessando uma especlc de Bo-rcsta. Logo chegam a U111telTa\o montado de tabuas, on~eencontram um grupo de llIulheres que de algullla manelraparecem pertencer a Dausse. Belualllin acha algumas delas

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extremamente belas. Ele tira seu chapeu panama, "que her.dei do meu pai", e fica surpreso ao constatar quc ha Uiliarachadura no topo, com trac;;oscIe vennelho na borcla. Issonos traz ao momenta crucial do sOllho.

Enquanto isso, uma das senhoras c01l1ec;oua fazer an;\lises de cali.graCia. Vi que cia cstava seguranclo alguma coisa quc tinha siclo cs-crita por mim, e que Dausse tinha-lhe entregue. A sua habilidademe clcixou um pouco ansioso, com meclo de que alguma caracte-ristica intima minha Fosse revelada. Cheguei mais perto. 0 que vifoi um pano coberto de imagens, e 0 unico elemento gniCico quecOJ~sc~ui distinguir foi a parte de cima da letra d, ClUaponta aCila-cia lIIdlcava uma extrcma aspirac;ao ;1espiritualidaclc. Esse pcclac;ocia !ell'a, al<~mdisso, apresentava Inll pcqueno veu dc bordas azuis,que se estufava contra 0 descnho, como se estivcsse scndo sopra-do por uma brisa. Essa era a lmica coisa que cu conscguia "ler" -o resto cra formado por padroes indistinlos de ondas c nuvcns. Aconvcrsa girou cm torno desta escrita durante algum tcmpo. Naome Icmbro da opiniao das outras pcssoas; por out 1'0 lado, sci quenum dctcrminado momcnto eu disse textualmcnte 0 seguintc:"Trata-se de transformar um pedac;o de poesia numa ccharpe" (EshandcItc sich darum, aus einelll Gcdicht ein IIalstllch Zll ma-chcn). Mal tinha acabado de pronllnciar essas palavras, quandouma coisa fascinantc aconteceu. Reparei que eutrc as mlllhcrcshavia uma, muito bonita, que tinha sc dcitado numa cama. Espc-rando alguma explicac;ao minha, cia fez lUll 1II0villlcnto rapidocomo um raio. Seu gesto durou mcnos de lllll segundo. Ela levan-tou ullla pontinha da coberta que a cuvolvia na call1a. Nao fcz issopara que cu visse 0 seu corpo, mas silll para me mostrar 0 con tor-no do lenc;ol, que dcvia exibir imagcns semelhantcs aquelas queeu teria "cscrito" anos all'as para dar de presente a Dausse. Eu sa-bia 1I1uilobem que a 1I1ulher tinha feito esse movimento.15

N500tenho a menor pretens500 de fazer uma analise psi-canalftica de Ber~jamin, mas a C01~UnC;;5oOdo erotico e da es-crita nesse sonho esta diretamente re1acionada ao nossointeresse em estudar a identidade cultural e as trcs impossi-bilidacles da escrita. A estranha superposic;;ao de eras e 11101'-te, uma Liebeslod que tende mais para Liebe do que para

b Na-ose Saber HebraicoSo re

dode refletir a vis500que Bel~amin tinha do suiddio

To , P 'b'I'd Illa escapatoria. Essa era uma POSSI I I ac e em quecomo UI , .

de ja tinha pensado ante.s, e. que levana a cabo I~lenos de

O depois Isso ex ph can a em parte a sellsac;;ao de eu-um an . .foria que teve ao despertar do sOI~ho. l~cfiro-mc parttcu-

I lte aos atalldes que talllbem san camas, talvezarlllCI ,ocupados pOI' casais de aman:es, e que surgem ~:e novona forma da cama onde se delta a bcla mulher, Ja sem aa arcncia externa de um esquife. 0 chapeu panama ra-chado no topo, herdado do pai de Benjamin, trai, antesde tudo, uma certa sensaC;;5oode embarac;;o social, e n500sepo de deixar de apontar que Bel~amin sente-se como umestranho no grupo que encontrou no terrac;;o. Ao ser pas-sado para 0 filho, este slmbolo do homelll sofisticado ejovial, que sente-se a vontade em mcio a sociedade cle-gante (como certamente era 0 caso de Emil Benjamin), evisto de repente num estado de enorme dilapidac;;ao. Piorainda, 0 chapeu foi desliguraclo - ou talvez transfigura-do, passando do domlnio da moda e do social, para 0 do-mlnio n5oo-social do instinto - pOI' uma lissura querepresenta uma forte imagem da sexualidade feminina:uma fenda (fenle) de bordas avermc1hadas.

Neste ponto do sonho, tem illlcio a estranha interven-c;;aoda escrita, que acaba se tornando um meio de sc deslo-car com sucesso da constrangedora esfera social associadaao pai, para a esfera privada de eros. Bel~alllin telll Illedode que a mulher que est<l fazendo analises de caligrafia(graphologie, tecnica que 0 proprio Bel~amin dominava mui-to bem) descubra coisas sobre e1e que preferia que perma-necessem escondidas. Vemos al um exemplo da tensaoentre 0 desejo de expor e a necessidade de esconder que am~ioria dos escritores sente, e que os escritores judeu-ale-maes talvez sintam com maior intensidadc. No entanto, 0maximo que se consegue vel' dessa escrita e a parte de cima

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ANJOS NECESSARJOS Sobre Nao se Saber Hebraico

dos dd (dd, e claro, escritos a mao), que segundo a analisegrafol6gica, lan<;am-se para 0 allo em busca da espirilualida.de, reOetindo uma lendencia presente na obra lileraria clopr6prio Bel~amin. A presen<;a do d pode tel' sido provoca_da pela proximidade de Dausse, mas ela tambem c a lclrainicial do pseudonimo Detlef, com 0 qual Beruamin assina-va as cartas dirigidas a Gretel Adorno. Ela pode rcpre-sentar, entao, uma especie de assinalura pessoal. Podemosnos perguntar - uma vez que esse sonho em frances, quecontem uma Frase em alemao, lraz a lona a queslao dos sis-lemas de inscri<;ao - se nao seria possivel que 0 d superdc-terminado tambem evoque de forma indireta Deutsch,lingua que marcou 0 ponlo de origem do cscrilor, e que elculiliza com maior freqi-icncia. De qualquer maneira, a escri-la, aqui, e estranhamente execulada sobre tecido, e as liga-<;6es metonimicas enlre 0 tecido e 0 corpo da mulller saobaslanle marcadas na 16gica do sonho, A escrita c transfor-mada numa especie de bordado, uma atividade que COSlU-ma ser associada a mulher, e os [ragmentos visiveis da Ieu'ad possuem pequenos veus de bordas azuis. No mOll1enlOcrucial da revela\;ao, Benjamin recita a enigmatica frase"Trata-se de lrans[ormar um pecIac;,:ode poesia numa ccllar-pc [fichu]", capes'll' dc ja tel' ressaltado que estas palavrasCoram pronunciadas cm franccs, de as lraduz para 0 ale-mao, como que para ler cerleza de que Gretel Adorno en'tenderia 0 seu conleudo com per[eic;,:ao: Es ha1ldel/e sichda'l'um, aus einem Gedicht ein 1-lalst1lch Z1l machen. A fi-chu/ Halstuch c um pedac;,:ode lecido que as mulheres usalllem lorno do pesco<;o, atado, lileralmente, ao corpo deseja-do. 0 enigma da [rase recitada envolve uma visao ul6pica,em que a linguagem se trans[orma num desejo realizado -uma visao, pOI' sinal, que seria per[citamente 16gica para al-gumas correnles radicalmente antinomianas do sabalianis'1110eSludado pOI' Scholell1. A palavra se torna UIII corpa,

I 1enos um malerial que toca 0 corpo, Colocando-au pe 0 n ,

. Icm de todas as tens6es e conOllos provocadosse pal a a . . - -, . I

or di[eren<;as cullurais, 0 ato ~a mscn<;a? nao e mals a ~-p _ m frances, nem hebralco, resummdo-se apenas amao, ne , . r 'b

'ISpura malerialicIade. A sua propna Lorma eXI esua ma ' .sp'II'adio a espirilualidade (correndo de baixo paraulna a '..,. ,

cima, e nao da esquerda para a direila), mas leva aqueleque sonha direto para a cama ~conche~anle da sab?rosasensualidade, como se as barrelras medmdoras da Imguativessem se dissolvido.

o aspecto provocador cIa imagem final da mulher nacama e digno de nOla. Se eSlivcssemos eSludando um eX"Cm-pIa de composi<;ao literaria consciente, ao inv~s d? relalode Ull1sonho, um critico contemporaneo podena chzer quea queslao do ocultamento e da revcla<;ao [oi "ten~al.izada"de forma explicita aqui. Beruamin sente que 0 obJelivo dogeslo Iigeiro da bcla mulher reclinada nao e mostrar 0 seucorpo, e sim os desenhos que cobrem 0 len<;ol em que, ciaeSla envolta: une imagerie que corresponde de alguma ma-neira a escrita formada pOl' imagens bordadas, e parcial-mente onJltas, que se encontram no tecido misterioso. Dequalquer maneira, a evoca<;ao desse momento aprcsentauma sensac;,:ao de voyeurismo muito [orte, como se aquiloque Bel~all1in viu em seu sonho Fosse mais do que merospad roes desenhados no tecido. A mulller ergue de ll1aneiraprovocante uma ponla da coberla, com 0 !.ipo de movill1cn-to rapido que seria ulilizado para of ere eel' um vislumbretentador de algo que costuma ficar escondido. Alem disso,ela e uma bela mulher deilada na cama, ocultando um mis-terio indefinivel do homem que a observa, que, como de~esmo nos diz na Frase que se segue a passagem citada, ave nao com seus olhos, mas com "uma especie de visaoCOlllplementar". Benjamin vive este momenlO de voyeuris-mo, que lenderiamos a considerar apenas provocador,

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ANJOS NECESSARIos Sobre Niio se Saber Hebraico

como uma maravilhosa consuma~ao: e1e emerge do sonhocom uma intensa sensa~ao de felicidade, que 0 mantc.nacordado durante horas a uo, e que e1e procura comparti.Ihar, ao descreve-Ia numa carta para Gretel Adorno - Olltravez uma fusao da euforia com a escrita.

POI'.mais ~ue tudo isso possa nos revelar certos aspec.tos da Vida pSlcossexual de Benjamin, trata-se de uma ma.~ifesta~ao bastante esclarecedora da problematica dahnguagem, da escrita e da experiencia, que estava na basede seu. pensament~. Essa maneira de vcr a linguagem tem asua origem, na ml11ha opiniao, na percep~ao da existenciade cli~eren~as inquiet~ntes que seriam a conseqiiencia deuma sltua~ao de muluplicidade lingiifstica e cultural. Pock-se d~tectar pelo menos alguns sinais de ullla certa scnsa~:aode cliferen~a - vestfgios das il11possibilidades de Kafka _ en-tre Beluamin, que escrevia num alcmao intrincaelo, brilhan-te e apaixonado, .e outros falantes e10 alcmao, que, naosenelo Judeus, pocliam tel' uma outra rela\-ao com 0 seu con-texto cultural. Havia diferen~as desconcertantes enlre cadaIfngua europeia, que faziam com que Beruamin pensassec~l~stanteme~te nos enigmas da tradu\-ao, e numa Ifnguadlvlna de ul1lversaliclade cosmica, que seria invocada de al-guma m:1neira neste ato de transferencia lingiifst.ica" E aique se encontra a diferen\-a fundamenlal entre 0 hcbraicopr~llIitivo, pelo qual se sentia atrafdo, mas que nao consc-gUla aprencler, e todas as Ifnguas escritas da esquerda I)ara

d· . NTa trelta. este sonho que teve no um da vida, todas essasdiferen\as desaparecem. 0 frances e 0 alemao parecemconvergll', tornando-se, talvez, intercambiaveis. No entanto,1l.1aisevidellte do que isso, a escrita deixa de apresentar 0

~'IS~Ode revelar involuntariamente caraclerfslicas pessoaislI1:lI1~asou, como 0 chapcu panama, um delerminado pat ri-mOlllO, para se ~on:ar uma "colc\-ao dc illlagens" ponadoracle uma sensuahclade concreta, livre clo panicularislIlo ill\-

osto pOI' um sistema formal de escrita, e que guarda ape-p a p~I'te de cima cia Icu'a d como vest.fg'io de 11111alfabet.o.nas " .o movimento das leu'as dd para 0 alto talllbcm C 0 I'\nicotra(,;o residual do conccito que BCI~alllin tinha da existenciade uma Ifngua divina. A escrita no t.ecido, pOI' sua vez, naoc mais uma transcri~ao, uma representa~ao ou ullla abstra-(,;ao,e sim uma satisfa(,;ao do desejo. Abela mulher na camanao precisa expor sua nudez, nem realizar um at.o carnalpara, ou com, Ber~amin: mostrar os pad roes desenhadosnos Ien(,;ois da cama ja e 0 bastante, pois eles sao, aunal, apropria escrita dele, um meio de expressao ao mesmo tem-po repleto de signiucado e indecifra.vel, que envolve 0 cor-po da mulher. Fora do domfnio dos sonhos, a escrita c umdos sint.omas permanentes dos dilemas da existcncia Cllltu-ral depois da Torre de Babel. Nenhum escritor apresentavauma consciencia mais profunda desses dilcmas, e dos im-passes a que eles podiam conduzir, do que Kafka, que foialvo da aten\-ao de Bel~amin durante tanto tempo, e quetambcm era fascinado pelo mito de Babel. A cabala proCll-rava superar esses dilemas a sua maneira, ao conceber asformas escrilas do hebraico primitivo como uma chave paratodos os misterios cosmicos. Somente a imagina\-ao onfricade Bel~amin consegue vcr out.ra safda para esses dilcmas,atravcs cia fantasia de uma escrita liberada de todos as codi-gos cullllrais, e que inscreve, como no verso de Blake, ostra\-os do desejo satisfeito.

Dos nossos t.res escritores, c na obra de Kafka que aqueSlao das Ifnguas e do hebraico desempenha 0 papelmais curiosa. A obra de Scholelll rdlcte, c claro, 0 scu mer-gulh,o ,no 1lI1'ndo do hebraico, enquanto mologo, historiadore teonco cia HIl-;sua.Bel~amin as vezes recorre explicitamen-te, na sua obra, a medi ta\-ocs sobre a Hngua cat radi\-aoquc cle nunca chegou a aprcnder, como no ensaio t.ardiosobre Kafka e em "A linguagem como tal e a lingnagcm do

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ANJOS NECESSARIOS

hom~m"., Kafka, pOl' Dutro lado, apesar de seu interessepe~oJudalsmo e pe.la.culturajudaica a partir de 1911, e apc.~al. de seu .esfon;.:o111Interrupto para aprender hebraico nosultImos sels anos de sua vida, afasta rigorosamente de Sll

obra toda referencia a qualquer coisa ligada ao jllclaism~'\com a exce~ao de uma unica hist6ria, "Na nossa sinagoga":que fala cla presen~~ de urn estranho animal na galeria dasmulheres de uma smagoga. Nao ha nada na superficie deseus. romanc.es e de seus contos que aponte para 0 fato de 0

escntor ser J~deu. ~eus pel:so~ag~ns nunca tern nomes ju-deus. As amblenta~oes e as mSl1tUl~oesSaDmoclernas, urba-n~s e ?urocnlticas, como, pOI' exemplo, 0 banco, astnbu,n~ls e 0 apartal~ento c1austrof6bico de 0 pl'Ocesso; ar-quetlplcas, como a Cldade e 0 Castelo, ou os domillios illl-periais da China; fantasticas, como em America, e em varioscontos e fabulas com animais; ou as vezes cristas, como acatedral de 0 ~'I'Ocesso. Nao se trata aqui, na minha opiniao,de uma tentatIva pOI' parte de Kafka de abandonar, ou es-conder, a sua origem judia. 0 que ele estava tentanclo fa-zer - e pode-se dizer que esta e uma das principais fontesd.? estranl~o poder ~e s.ua ~bra - era converter as ques-toes espeClficas da vida Judalca em metaforas dos dilcmasexistenc.iais da humaniclade iiberhaupl, "como tal". COIllOum escntor que se considerava, num aspecto fundamental,urn estranho em rela~ao a cultura alema, ele talvez tenhasenti~o q~e ~.u~ica man~i~'a de contornar ~ perigo de fazeruma aplOpl1a~aO (...) taclta (...) da propnedade de outrapessoa" era tornar a sua pr6pria propriedade alema, e uni-versalmente humana tambem. Apesar de nem todo leitorconcordar com a identifica~ao de temas judaicos propostapelos estudiosos de Kafka, os seus contos e romances enfo-cam const,a.ntemen.te,. e de diversas maneiras, qllestoescom~ 0 eXlho, a aS~l1:l1la~ao,a comunidade amea<;acla, a re-vela~ao, 0 comentano, a lei, a tracli~ao e 0 manclamenlO.

b "0-0 se Saber HebraicoSo re iV'

uitas vezes sao tratados de modo a refletir asEsses temas m ._ neur6ticas de Kafka, sem que com ISSOas suasobsessoes .., . , K fk l' d'. l' - universals se1am dllnmmdas. a a, a em ISSO,IInp Ica~oes :J •. s as articula a reflexoes gerais sobre a cultura e amUltas vezeteologia, principalme~te ~o~ contos.. ..

No que diz respelto a lInguagem, a obi a de Kafka utIlI-alemao para desenvolver uma critica impiedosa a qual-

za 0 , . l' d - dilusao sobre a eficaeia da hngua, mc mn 0 a no~ao equer Urspmche de origem divina, que poderia oferecer a Im-uma . d 0'1'manidade urn apoio mais finne dentro da realIda e. u tI-mo conto que Kafka escreveu, "Josephine, a cantora ou 0

povo dos camundongos", apr~sen_ta uma satira pa;t.icular-mente ineisiva deste tipo de 11usao. 0 tema exphClto doconto e a tensao e a simbiose existentes entre 0 artista e suaplateia, mas, como diversos inte~'pr~tes ja ~~servara~n, e~eapresenta tambem fortes ressonanCIaS tematIcas do Judals-mo, do tipo que indiquei aeima. 0 povo dos camu~dongo.s_ que leva sempre u'ma existencia precaria - precIsa mm-tas vezes de algum tipo de consola~ao, e infantil do pontode vista coletivo (ainda que prematuramente ve1ho) c pos-sui a tradi~ao do canto ("antigamente 0 nosso povo can-tava"), apesar de estar afundado numa era em que amusica esta ausente _ apresenta muitos pontos em co-mum com a hist6ria de dispersao do povo judeu. Por cau-sa da analogia entre 0 verdadeiro canto dos temposantigos e a grandeza da Israel biblica, a revela<;ao da ver-dadeira natureza do canto de Josephine representa naos6 um questionamento da possibilidade de uma arte su-blime, mas tambem uma eritica a ideia de uma linguatranscendental (visao que Benjamin e a cabala tem do he-braico). Os membros do povo dos camundongos se co-municam atraves de pequenos guinchos pateticos, e 0

efeito da arte de Josephine e atingido, eor assim dizer,atraves de urn truque de espe1hos acusticos: e1a tarnbem

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N- se Saber HebraicoSobre ao

so e capaz de guinchar, pois essa e a unica lingua que 0 • facil com 0 passar do tempo, os arqui-. torne mals -povo dos camundongos domina. proJeto se - torre em si mas na constru~aocentram nao na ' d'

A crftica a uma fe exacerbada na lingua e trazida ao tetoS se c~n ara abrigar os operarios. No entanto, IS-proprio registro blblico em "0 brasao era cidade". Essa fa- de uma C1da~e.p _ 'to da ocupa~ao dos bainos levam

-.'tonals a lespel d'bula de uma unica pagina representa uma subversao da his- putas tell I flito sangrento entre as Iversastempo a um contoria da Torre de Babel maior do que e aparente a primeira em pouc.o A _. portanto nunca chega a ser cons-

. hdades tot Ie,' . "1vista. A historia contada no Genesis e um dos gran des mi· naclona' da como um projeto mull pOl''d assa a ser encaratos etiologicos da era primitiva. A versao de Kafka desloca 0 U'Ul a, e p . _ e mesmo assim permanecem presas- postenol es, quPrimitivo para 0 ambito da historia, alterando profunda- gerac,;oes . -b . 0 e 0 unico ponto em que a ver-

, .d de (esse anuUl anIsm B~-l' ) Amente 0 seu significado. Ele comera 0 conto de forma pro- a CI a , completamente fiel a tu ta ..•. - d Kafka se mantem . dsaica: "Os preparativos para construir a Torre de Babel se sao 1e _ do narrador introduz uma perspecllva assusta 0-

caracterizavam, no inicio, pOl' uma organiza~ao bastante efi- conc usao . d .d de 0 seu brasao e um punho fecha-ra para 0 futulo a CI a . a

ciente, ou talvez ate eficiente demais: houve uma preocupa- do or ue "todas as lendas e can~oes que. nasceral~ ness,c,;aoexcessiva com guias, interpretes, alojamentos para os. cid~de ~stao repletas de um anseio pelo dla, anun~lado h~openirios e estradas de comunica~ao, como se dispusessem. em ue a cidade sera destruida pOl' CInCOgo -de seculos para concluir 0 trabalho."16 mUlto tempo, q .''' 17 Nao ha nenhuma

Pes sucessivos de um punho gtgante . 'd 1 dumao tom informativo e sistematico do narrador, c a rapi- . ., onhar nenhum 1 ea elingua pnmll1va com que s, l' "da enumera~ao de exemplos de "ordem", quase faz com d poderia voltar A llstona,unidade original para on e se £,' d'lh dque nos passe despercebido um dos itens da serie, que alte- fl' - t s torna-se uma anna I a ecom seus con' ItOSsangt en 0 , .ra completamente a historia da Blblia: Dobnelschel' - inter- onde nao se po de fugir _ a nao ser atraves de uma d~strUl-pretes. Ao contrado do Genesis, onde a historia come~a c,;aoapocalfptica que traria alivio, mas nao a redenc,;ao, aoquando "todo 0 mundo se servia da mesma lingua e das acabar com tudo. "d ermesmas palavras", nao ha nenhuma lingua universal prima- Num fragmento intitulado "Um sonho , po emos, v.ria aqui, nenhum hebraico primitivo de que Deus teria se uma soluc,;aonegativa, em nlvel individual, para a angust.lautilizado para falar, criando 0 mundo e os homens. A multi- de estar preso num mundo sem qualquer esperanc,;a de Ie-

li id d d r -,. t' . t C' b' te composto para 0p cae as Inguas nao e mats um cas tgo e um 111Sru- denc,;ao. Esse fragmento LOI0 vlament f t b' - d d'd d t t s -' do no final que Kafkamen 0 para TUSrar a am Ic,;ao esme I a os cons ru ore pmcesso, mas acabou nao se encalxan , .

da torre - como no Genesis - e sim um detalhe que faz imaginou para 0 romance. A problematica da lingua ~ malsparte de sua condic,;ao de homens inseridos na historia. A uma vez associada, aqui, a ideia da morte como ~m~ hbe~~a-falta de harmonia que impede a construc,;ao da torre e uma c,;aoe assim como no sonho verdadeiro de BenJamIn, a m-decorrencia da desuniao inerente a natureza humana, e po- gua e'invocada como uma inscric,;ao alfabetica. Joseph K., 0

d I . ,. It' I' 'd d d I' ., .' h estava passeando, e. emos conc Ulr que a propna mUlp ICI a e as mguas p pi otagomsta de 0 p-rocesso, son a quee uma consequencia dessa desuniao. Cer~c:; de que 0 desen- que logo chega a um cemiterio. La, ele encontra uma co;avolvimento da tecnologia [ani com que a ~-ealizac,;aode seu recentemente coberta de terra, que exerce uma estran 1a

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fascina~ao sobre ele. Dois homens aparecem, e colocam sa-bre ela uma hipide sem nenhuma inscri~ao. Vm artista, en-tao, entra em cena. Segurando 0 que parece ser um lapiscomum, ele se aproxima da lapide e come~a a faze I' umainscri~ao:

(...) de escreveu: AQUI jAZ - Cada letra era bem nftida, e dese·nhada com uma grande bdeza. Elas eram entalhadas profunda-mente na pedra, e eram de aura puro. Depois de escrevcr essasduas palavras, de olhou para K. pOl' cima do ombro. K., que esta-va muito curioso para vel' 0 resto da inscrio;;ao,nao deu nenhumaateno;;aoao homem, concentrando 0 seu olhar apenas na pedra.De fato, 0 homem acabou voltando-se novamente, para continual'a escrever, mas nao conseguia ir adiante. Alguma coisa incomoda-va-o. Ele baixou 0 lapis e mais uma vez se voltou para K. Dcsta vezK. olhou pal-a de, e percebeu que 0 homem estava muito cons-trangido, e nao conseguia se explicar. Tecla a sua vivaciclacleante·rior tinha clesapareciclo. Isso fez com que K. tambem se sentisseconstrangiclo. Trocaram um olhar clesamparaclo. Havia algummal-entencliclo terrfvd entre des, que nenhum clos clois conseguiaresolver. Um pequeno sino comeo;;oua tocar inoportunamente nacapda clo cemiterio, mas 0 artista ergueu sua mao num sinal, e 0

sino parou. Pouco clepois de comeo;;oua tocar novamente, clessavez suavemente e sem nenhuma insistencia, paranclo outra vez clerepente. Era como se de estivesse apenas testanclo 0 seu propriotom. K. estava tao aflito com a situao;;aoem que se encontrava 0

artista, que comeo;;oua choral' e ficou muito tempo soluo;;anclocom as maos cliante clo rosto. 0 artista esperou ate que K. se acal-masse, e entao clecicliu,ja que nao tinha outro jeito, continual' ainscrio;;ao.0 primeiro trao;;oque clesenhou foi um alivio para K.,mas era obvio que 0 artista so conseguira esboo;;a-IoCOlliumaenorme relutancia. Alem clisso,0 trabalho nao estava tao bem-aca-baclo, parecia nao haver folha cle aura suficiente. 0 trao;;ose arras'tava para baixo, tenue e hesitante, mas acabou se transformanclonuma letra muito grande. Era um j, e estava quase pronto. Nessemomento, porem, 0 artista comeo;;oua bater 0 pe com raiva nOmonte de terra sobre a cova, levantando poeira em torno cle si. Fi-nalmente K. 0 entendeu. Agora era tarde demais para pedir des-culpas: ele enfiou todos os dedos na terra, que quase nao ofereeiaresistencia, e comeo;;oua cavar. Tudo parecia tel' sido preparado

"a-a se Saber HebraicaSabre jV'

d' . Tinham colocado uma pequena camada de ter-antece encla. -' '. - dcom penas pOl'uma questao de aparencla. um glan e. sobre a cova a .' b' d Ila _ 0 de aredes fngremes e hsas, se abna logo a alxo e a, ebUlac, II P dentro dele flutuando sobre uma corrente suaveK mergu lOU' . d''. tas Ao penetrar nas profundezas 111sona-e baua em suas cos .quis esticou 0 pescoo;;opara olhar para cima, e percebeu que 0 seuve ,'., 110luecorria em grandes leu-as floreadas, na pedla colo-prOpl1O 'cada em cima dele. 18

Encantado com esta visao, ele acordou.

A transposi~ao sistematica da vivenci~ que o. proprioKafka tinha da questao judaica para um velculo unl:ersal e,

.tanto de tra~os cristaos, fica bastante clara aqUi. ComoPOll'oma~ce a identidade religiosa ou etnica de Joseph K.no, . afica bastante vaga, mas 0 cemiterio, com 0 smo que toca n

I So pode ser cristao. Como costuma acontecer nacape a, b' -b de Kafka no entanto 0 detalhe casual da am lenta~aoo ra , , .' ,.

crista nao e explorado pelas suas caractedstlcas:~als tlplcas,mas ao contrario, pe1a sua ressonancia arquetlplca: Jos~ph

, . d b' - 0 smoK. nao precisa perguntar pOI' quem 0 smo 0 1a. .dobra pOI' e1e. 0 desentendimento entre K. e 0 artlsta Ie-

,. d K fka que esta no fundo depresenta uma cena tlplCa e a £, £

I· " "I ia algum mal-en-praticamente todas as suas 11stonas: lav. .tendido terdvel entre e1es, que nenhum dos dOls consegUiaresolver". Se K. tivesse concordado, obedecendo 0 esquema

. . ., .' el eln se submeter apremedltado de uma Justl~a mexOl av , . 'esse papel _ sacrificial? - de boa vontade, 0 artlsta mortua-rio poderia tel' continuado a executar a magia de sua ar~eem bellssimas 1etras de ouro puro. No entanto, dada ~ dlS-paridade entre 0 artista tradicional e seu objeto reca1cltran-te, que teima em se comportar como um indivl~uo, ah· d I" fJ e l'ompe delxandoarmOnla presente na arte a ca Igl a la s ,

. . d didos de seus en-apenas tra~os tremulos e desaJelta os, esp .f: • 'f: , '.' ica da escntaleltes dOUl'ados _ talvez numa metalol a 11onmodernista do proprio Kafka.

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Vejamos agora as implica~oes culturais do foco pecu-liar que 0 sonho poe na inscri~ao das letras. As primeiraspalavras que K. ve, provavelmente entalhadas no topo da 1<i-pide, sac Hier -ruht, "Aqui jaz". 0 deslocamento de Kafkaem dire~ao ao universal, que ja mencionei acima, manifesta-se aqui em nive1literal (no sentido mais rigido do termo).Esse deslocamento nao fica explicito na estrutura temati-ca do conto, mas a pressao que e1e exerce sobre a cons-ciencia do escritor esta longe de ser desprezivel.Refiro-me ao fato de que para Kafka - que estava voltadopara 0 horizonte do hebraico e possuia uma familiaridadepessoal com cemiterios, que provave1mente remontava aocemiterio judeu de Praga - por tras de Hier 'Iuht, que seIe da esquerda para a direita, escondem-se duas leu'as he-braicas, peh nun, que sac lidas da direita para a esquerda.Estas leu'as sac colocadas acima do nome, em quase to-das as lapides judaicas, e sac uma abreviatura de Poh niq-b "A" d "Q d .ar, qUI esta enterra o. uan 0 0 arUsta retoma 0

seu trabalho de inscri~ao, que agora se desenvolve comre1utancia, e de forma imperfeita, por causa da resisten-cia de seu objeto, a primeira consequencia visive1 e umaunica letra maiuscula, 0 j. POl' acaso, essa e a {ll1ica letrado alfabeto latino cujo nome em alemao e quase 0 equi-valente fonetico da letra hebraica correspondente - Jot,em alemao, e yod, em hebraico. Mal temos a chance de li-gar esteJ a primeira letra do inef<ive1nome de Deus (Kaf-ka certamente sabia que 0 J era utilizado para designar 0

redator javista da Biblia, pratica popularizada pelos estu-dos biblicos na Alemanha), po is "final mente K. 0 enten-deu". 0 que e1e entende, obviamente, e que 0 ] e aprimeira letra de seu pr6prio nome, e quando K. se sub-mete a sina de ser enterrado, tudo sofre uma mudan~a ra-dical: a terra se transforma em agua, einer sanftenSt/'omung, uma corrente suave 0 sustenta - imagem que

nos faz lembrar dos ataudes-cama de Benjamin - enquantode mergulha na pr6pria sepultura, e 0 resto de seu nome

Te sobre a pedra em grandes letras floreadas.COI . . - I' hAo contrario do sonho de BenJamm, nao 1a nen umdemento er6tico aqui, a nao ser que, tOl:nado de um fervorfreudiano, um interprete resolva conslderar como tal 0

mergulho no buraco e a ~ensa~ao de esta,r flutuando nO,fi-nal. No sonho de BeQjamll1, Thanatos esta ao fundo, e ~I.OSno primeiro plano; no sonho de K. acon~ece 0 contrano.pode-se encontrar uma liga~ao entre os dOls textos na pecu-liar sensa~ao de euforia associada a inscri~ao de ~etr~snuma paisagem de sarc6fagos: t~nto 0 Walter Beruanllnverdadeiro quanto 0Joseph K. ficclOn~1d~spertam .~n~anta-dos de seus sonhos. No sonho de BenJamm, como Ja VIITIOS,o pai se faz presente au"aves do chapeu p~nam,a. No sonh?que Kafka cria para 0 seu personagem, n~o ha nenh\~m SI-nal de Hermann Kafka, ou de algum eqUlvalente ficCional.o artista do sonho nao pode assumir 0 pape1 de uma fil?urapaterna, pois na vivcncia de Kafka, ~ no seu m:m.do ~m~-ginario, 0 artistico e 0 paterno constltuem doml.nI~s.1 adl-calmente opostos. 0 sistema autoritario ar~ltrano, eaparentemente inflexivel, em que Joseph K. se v~ en,r~dadoem 0 pmcesso e certamente uma proje~ao do pnnClplo p~-terno num aparato social e legal qU,e.se ass~melha a uma h.l-dra. 0 constrangido artista mortuano, aSSIITIcomo os do IShomens anonimos que trazem a 1<ipide, e apenas um do~pequenos funcionarios desse sistema. Hie'/' mht pertenc~ alinguagem do pai, da mesma maneiI"a que 0 ~ome es~ntoabaixo dessas palavras, come~ando com 0 tremulo J ~ es-querda e avan~ado para a direita, e 0 nome que seu pal es-colheu para e1e. As letras representam uma sentcn~a demorte, mas Joseph K., assim como 0 Geo.rg Bel~demann de"0 veredicto", sente um alivio da angustIa trazlda pelo at?de resistir ao se submeter a esta senten~a: quando 0 pn-,

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meiro tra~o da letraJ e escrito, ele experimenta uma sensa-~ao de aHvio, eine Erlosung, que em outros contextos tam-bem po de significar "liberta~ao" ou "reden~ao".

Esta nao foi a primeira vez que Kafka se valcu de la-pides e inscri~6es mortuarias para exprimir a sensa~ao deque 0 seu proprio destino estava bloqueado. Alguns anosantes de escrever "Um sonho", no dia 15 de dezembro de1910, Kafka fez a seguinte anota~ao no diario, sobre seuestado emocional e sua voca~ao de escritor: "E como seeu fosse feito de pedra, como se eu fosse a minha proprialapide. Nao ha a menor brecha para a duvida ou para afe, para 0 amor ou a repugnancia, para a coragem ou aansiedade, em particular ou em geral. Apenas uma vagaesperan~a permanece, mas ela nao e melhor do que asinscri~6es de lapides."19 0 que 0 sonho ficcional faz (atra-Yes, principalmente, do relevo dado ao ato da inscri~aoalfabetica) e converter a Iapide, de um beco sem safda,numa alternativa atraente.

Nao estou sugerindo que "Um sonho" ou 0 processo tra-tern explicitamente da questao da identidade judaica, ou daoposi~ao entre 0 alemao e 0 hebraico. 0 que faz com queJoseph K. chegue a um ponto em que a morte se torna aunica safda sao outras for~as - 0 seu carateI' moral e a suatendencia de fugir de qualquer responsabilidade; a rela~aomanipuladora que estabelece com as outras pessoas e 0 es-tado de total isolamento em que ela 0 coloca; a inseguran~atorturante de sua psicologia destrutiva. Esses fatores ja SaDsuficientes para uma leitura perfeitamente coerente destefragmento, sem qualquer referencia a procedencia judaicade Kafka, A minha inten~ao aqui, no entanto, nao e proporuma interpreta~ao "intrfnseca" do texto, e sim tentar enca-ra-Io como um documento que reOete a condi~ao culturaldo escritor. A "liberta~ao" oferecida pela morte de JosephK. no sonho pode ser determinada pOl' diversas causas pre-

Sobre Niio se Saber Hebraico

o agente da morte neste fragmentotes no romance, mas d' " .sen , I'd da esquerda para a 11elta. a, 1" escn ta I a ,

em partlcu al e aLl' }t e'Uln SI'lllbolo da auto-allena-d} por r:, te'l' '11), t

troca e pe t nun . A • • uportave1 para 0 protagonista~ao que torna a eXIst~nClanl:Sem outros exemplos de suade Kafka, tanto aqUl COI

obra. certa no~ao de es-Os tres escritores apresentan; u~al' gua natal' e1a e fa-

1 - 0 a sua propna m .tranhamento ~m re a~a d de1es como 0 seu mais

'I' enda pOI ca a um, 1ml lar e qu _ As vezes no entanto, e a, " to de expressao, ,fntllno 1l1stlumen te mesmo amea~a-.d desconcertante, ou ae percebl a cdomd~Ca, ra A dec1aradio mais radical e extra-

d r gua a ILelen",<. '" -ora, m . Iin "lstico talvez seja uma anota~aovagante desse maI-estal gu b' d 1911 pouco

. . em seu diario (24 de OulU 10 e , _que Kafka fez. , 'd' 1 ) dizendo que sua maed . d descobnr 0 teatlo I ICle , ,epois eMit . e que a neceSSI-, _ d' . 'ealmente uma '11.. ,e'l, •

J'udla nao po la sel I d' na cel'ta distfmcia pSI-, 1 " t·o· UZlUUl <

dade de chama- a ass11:nmI. edia de ama-la comocologica entre os dOlS, qule 0 tunnP"'losentia essa ambiva-

, ' 'ovave Inen e <

deveria, BenF.mm pI . fundidade, mas a pre-Iencia IingiHstlca com a mesmac p.ltO0 bastante para fazer

ente era LOIe <sen~a dela em sua m 1 _ elo [ranceS como objeto decom que ele trocasse 0 a emao

dP . Izal' as duas lIngl.las na

d ponto e C1l <estudo, chegan 0 ao 1 AI' d'isso indo para alem do. 1 t 0 son 10. em, ,carta que Ie a a d' b 'e a existencia de uma Im-A b' . peu ele me ItOUso Iam Ito eUl0 , , a matriz pennanente,. ..' 'ia que sena <guagem cosmlca pI 11nal <, , naI'lstas e historicas da

d' . - eramente naclO < <de todas as IVlsoes m < d 1 a-0 se da em termos

1 bandono 0 a em[ala. Em Scho em, 0 a. . (j da 'uventude de adota 0biograficos bem def111ldOs"no 1m Jpalestina Ao visitar a

. d' emlgra para a .hebralco e logo epols, e 20 anos depois, descobre queAlemanha em 1946, maIS d d do qual 0 pals ficou

. durante meta e ,nesse melO tempo, l' , , ua lingua natal unha

b 'd a UIll regime tota ItanO, a s <su meU 0 20

d 1· feio e estranho.se transfonna 0 em a go

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ANJOS NECESSARIOS

Creio que esse d C

d" esconiOrto em rela - 'I'

soma 0 a bnlhante h b'l'd d c;ao a mgua alema

Ia I I a e com q ,

um e emento importante d d ,ue a empregavam eo (a mo ermd d d 'modernismo literal'I'o a e esses escritorescostuma osc'l' ' '

mo dentro da obra de u " ~al - as vezes ate mes-

d' m umco escntormo ra Ical em relara-o' r:" - entre um ceticis-

, ( .,-' a eliCaCia d rpratlcamente se aliena f:' a mguagem, da qualt' ' e uma ascmarao I I'entatlva de revelar tod .,- pe a mgua numa, " as as suas pos 'bTd d 'mlmetlcas e esteticas J P Sl I I a es expressivas,oyce roust I I 'exemplos de escritores f : d e - ermann Broch saod ' ascma os pel l' 'etnmento proprio' B k a mgua, as vezes emd J ' ec ett, mesmo s d 'e oyce e Proust leva 0 i I en 0 um dlsdpulolimite maximo No ( mpu so de total ceticismo ao seu

, ,en tanto nem mmms formalistas podem t '. esmo os modernistasgua: ela tem que ser arraner Pdoldcerto a adequac;ao da lfn-" ca a e suas [, ,nalS, em myel da dicdi d ' 01 mas convencio-.,-,0, a smtaxe da i "extrema de Finnegans W; k " maglstlca e, no caso[, cae, ate mesmo 'Iemas, tonemas e pI' "em mve dos mor-'" a aVIas constitul t 'mltlr a visao de d n es, pal a poder trans-

Imun 0 do autor A "

cu tural do escritorJ'ud Al ' peculiar sltuac;ao

leu na emanha ' '

pe a sua lfngua e tradi - I' " (, que e apalxonado, f c;ao Iterana e d . c

plO undamente enral'zad I ' e cel ta torma esta( 0 ne as ao

atormentado pOl' um _ _' ( ,mesmo tempo que ea sensac;ao de diD 'ou verdadeira torna-o d' el enc;a em pOLencial

E' ' (um mo ermsta I'm mvel formal e te " ( com eLra lllail'1scula, , (matico essa se - d ' ( ,

vldlda, principalmente no t' ,n~ac;ao e Identidade di-

Iocante a Imgua' fl '

e ementos oniricos e pa' b'I' ( , e re -euda pel osk ( I a 0 ICOSpres ta, e na sua narrativa e estl'l' en es na obra de Kaf-_, , ' 0 Iconoc1astas' I

c;ao sistematica de Scholel d cd' pe a argumenta-

b.. n, eten endo I

a ellantenahistoriaJ'ud' opape central do, alCa, e pelo est d d' 'que subsumIa sob a rubrl' d "b' u 0 e tudo aqUlloI d ca e a ISlno'" I '-apso a tradic;ao e da de d A' ' pe a Vlsao do co-, ' ca enCia da e ,'A'mm expressa atl'aves d f' _ xpellencla que Benia-"d ' e lagmentos gnA ' :J

etnto da historia" a cha d omICOS,buscando nove e sua natureza oculta,

Sobre Nao se Saber Hebraico

Se viver e escrever nas terdveis tensoes oriundas dosparadoxos da Hngua e uma caractedstica do modernismo,entao este foco peculiar nas diversas formas da palavra es-crita po de ser visto como uma enfase tipicamente judaica,A tradic;ao judaica se perpetuoU sobretudo atl'aVeSda aten-<;aodada a palavra escrita e de sua interpreta<;ao, Indicios li-terarios e arqueologicos indicam que a escrita remonta auma fase primitiva, mas decisiva, do proprio periodo bibli-co, 0 Talmude, apesar de ser designado como a "Toraoral", e estudado e transmitido de gera<;ao em gera<;aocomo um texto escrito, e acabou recebendo um formatotipograficO especial, em que 0 texto e cercado de comen-tarios e supracomentarios subtextuais e marginais, Em ter-mOSvisuais, a tradi<;ao apresenta uma iconografia minima,mas, ern compensa<;ao, ela possui tuna caligrafia abundantee, depois de Gutenberg, uma tipografia criativa, NossoS tresescritores tinham perfeita consciencia da impordncia da es-crita na tradi<;ao judaica, e esta consciencia certamente setorno

uainda mais profunda pdo fato de des terem sido

criados num sistema de escrita que, COiTendo do oeste parao leste, apresentava uma tendencia oposta, Todos os tresaceitavam a no<;ao de que a palavra escrita fornecia a chavepam a identidade, e, talvez, pa>'a um quadro de conheci-mento mais amplo do que 0 da identidade, Scholem, desdejovem atraido pela teoria cabalista da \inguag

em, csLudo

u

textos misticos em que combina<;oes 01.1 pennuta<;oes de le-tras hebraicas conduziam a presenc;a de Deus, enquanto ele-mentos de um sistema teosofico de conhecimento, ouinstrumentoS que induziriam urn transe que, pOl' sua vez, le-varia ao extase, e um dos primeiros textos cabalistico

sque

ele publicou foi um a\fabeto mistico, Kafka e Benjamin fo-ram atraidos de maneiras diferentes para uma epi(ania alfa-betica mas as letras latinas de seus sonho

s- urn ]

incom~leto, a parte de cima de urn cl - sao portadoras

de

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revelac;6es ambfguas, apesar do sonho de Benjamin superaressa ambigiiidade ao criar uma fantasia em que a letra setransforma em materia, e 0 espfrito em carne. Para os tresescritores, de qualquer maneira, as letras formam palavras,as palavras formam textos, e 0 texto e encarado como 0 ob-jeto fundamental do conhecimento - mas se pal"armos parapensar, veremos que esta nao e absolutamente uma conclusao6bvia. Tanto 0 romancista como 0 crftico e 0 historiador secolocam, surpreendentemente, no pape! de exegetas. Mas 0

enorme poder do texto e a conseqiiente importancia daexegese nestes tres projetos literarios e urn t6pico que me-rece uma atenc;ao especial.

Nada se compara ao prazer de chegar a interpretac;:aopenetrante de urn texto.

Gershom Scholem, em carta a Walter Bel"tiamin19 de setembro de 1933

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Uma das pequenas meclitac;oesde Rua de mao unica poe a nu a peculiar relac;ao de Be,~amincom 0 texto, relac;ao de que compartilhavam Kafka e Scho-lem - os tres seriam como 0 Angelus Novus de Klee, deacordo com a interpretac;ao que Benjamin faz dessa pintu-ra: modernisL:'lScom 0 rosto voltado para tras, para a tradic;ao,enquanto os ventos da hist6ria os empurram incxorave1-mente para longe do Eden das origens. 0 trecho a que nosreferimos aqui aparece sob 0 titulo em caixa alta de POR-CELANAS DA CHINA, apesar de a conexao com a Chinas6 ser estabelecida na ultima frase. Benjamin parte, instruti-vamente, de uma analogia entre duas maneiras diferentesde se absorver um texto, baseadas no contraste entre a erapre-tecnol6gica e a era tecnol6gica. "A forc;a de uma estra-da do campo, quando se caminha pOl' e1a, e difcrente dequando se passa sobre e1a de aviao. Da mesma maneira, aforc;a de um texto', quando e1e e transcrito, e diferente dequando e1e e lido." Nas duas frases seguintes, Bel~aminmostl'a como apenas 0 pedcstre e capaz de perceber de mo-mento a momenta as variac;oes gradativas da paisagcm, econc1ui seu pensamento ao aplicar a mesma comparac;ao aocopista e ao lei tor:

Apenas 0 texto transcrito governa a alma da pessoa que se ocupadele, enquanto 0 mero leitor nunca descobre os novos aspectosde seu proprio interior revelados pelo texto - uma estrada abertadentro da selva intedor, que sempre volta a se fechar aU'as de nosquando passamos pOI' e1a: pois 0 lei tor segue 0 movimento de sua

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mente no vao livre do devaneio, enquanto 0 copista a submete aoscu comando. 0 costume chines de copiar os livros ofere cia, por-tanto, uma garaniia inigualavel para a cultura literaria, e a copia euma das chaves para compreender os enigmas da China. 1

Ionia penal", que escreve a senten~a do condenado no seuproprio corpo, com 0 auxflio de uma hOITipilantc cole~aode agulhas.

. Se 0 tra~alho minucioso do escriba e urn modclo per-feHo de fidehdade textual, os tres escritores conheciam umoutro metodo para se aproximar do texto que era tlpieO dacult~ra t~'adi~i?nal, e bem mais proximo de seu proprioproJeto hterano. Este metodo consistia na interpreta~ao.De fato, urn dos aspectos que mais atralam Benjamin eScholem em Kafka era a sua capacidade de por em questaoas categorias tradicionais da interpreta~ao e da interpretabi-Iidade a partir de uma perspectiva completamente moder-na. It justamente este aspecto fundamental de Kafka quetern se mostrado mais resistente as tentativas de copia. Va-rios escritores tentaram imitar 0 usa que ele faz da parabolae. da fa?t~sia; nenhum deles, no entanto, possula 0 excep-clonal znszght de Kafka a respeito daquilo que estava emjogo no d:erdcio da interpreta~ao, e a obra desses escrito-res "kafkianos" tende a ser for~ada e pouco interessante.

o proprio Scholem apresentou Kafka sob essa otica,numa palestra proferida na Academia de Artes da Bavariaem 1974. Durante os anos que se seguiram a sua emigra~aoda Alemanha, conforme explicou a sua audiencia, ele so ti-nha lido real mente tres "Iivros" - isto e, IeI' no mesmo sen-tido do copista de Benjamin, ou como um interprete _"diversas vezes, de cora~ao aberto e tornado de uma tensaoespiritual". Estes tres co~untos de textos foram a Bfblia He-braica; 0 Zoha'r, escrito em aramaieo; e uma cole~ao deobras em alemao, asobras compietas de Franz Kafka. Scho-lem observa que este ultimo grupo de textos apresentavauma afinidade profunda, e peculiar, com os dois primeiros,e ele a descreve da seguinte maneira: "Ha uma especie decanonicidade presente em varias de suas obras, isto e, elaspodem ser submetidas a infinitas interpreta~6es; muitas de-

LeI' sem copiar sempre foi, e claro, a op~ao mais co-mum, devido a sua rapidez e cOlllodidade, mas a separa~aopraticamente universal entre essas duas maneiras de seabOl-dar 0 texto e consequencia de uma inova~ao tecnologi-ca: a inven~ao da imprensa. Assim, um dos frutos da tecno-logia do seculo XX, que possibilita ao homem voar comrapidez e conforto sobre uma paisagem que ele mal chega avel', pode ser uma boa metafora para retratar 0 leitor poste-rior a era dos escribas. A China, enquanto emblema deuma cultura pre-moderna, veiculo, talvez, de uma sabedoriatransmissivel e vital, e uma imagem que Benjamin comparti-lha com Kafka. Para ambos, a China representava um deslo-camento em dire~ao ao judaismo universal, cultura copistaque estava mais proxima a eles, e da qual os dois procll/'a-ram se apropriar em algum momenta: a estranha escritaque corre da direita para a esquerda sobre 0 papiro e subs-titulda pOI' um codigo de escrita ainda mais exotico, e quecorre de cima para baixo. A principal reflexao de Bel~aminneste trecho merece ser sublinhada: 0 texto tern 0 poder derevelar ao leitor "novos aspectos de seu interior", mas ape-nas se ele for assimilado numa velocidade mais lenta e estu-dada, tra~o a tra~o, atraves de um processo descrito,explicitamente, como uma submissao ao seu comando. Haalgo embaralhado, bloqueado dentro do leitor, que 0 textoinscrito pode revelar. Kafka, em uma de suas cartas, descre-ve essa revela~ao atraves da violenta metafora de um ma-chado que quebra 0 gelo, para atingir a zona interiorcongelada do lei tor, e introduz uma especie de parodia sa-taniea deste processo ao criar a /TIaquina infernal de "Na co-

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las, principalmente as mais impressionantes, sac pOl' si sosatos de interpretar;ao.,,2 A distribuir;ao historica e as nature-zas diferentes desses tres exemplos de canone judaico apre-sentados pOI' Scholem nao sao, provavelmente, [ruto doacaso. A Biblia, e claro, e 0 conjunto de textos que marca 0

momenta da origem espiritual. Ela e uma fonte primariainesgotavel, cujas escrituras foram intensamente interpreta-das pOl' todas as gerar;aes subsequentes como a verdadeirarevelar;ao. De todos os textos da tradir;ao pos-biblica, e 0 Zo-Ita-/" que leva 0 ate da interpretar;ao aos seus limites mais ex-tremos, e que se constilui na mais radical possibilidade dereinterpretar;ao, diante da confirmar;ao devota da idoneida-de da primeira revelar;ao. Kafka, 0 lfpico modern iSlajudeu,lcvanta questoes essenciais sobre a validade do ate de illter-pretar;ao, e brinca com a possibilidade aterradora de quetalvez estejamos no fim da linha da interpretar;ao, e de quea revelar;ao esteja ficando cada vez mais para tras. Scholemprecisava desses tres exemplos de canonicidade para definiros limites de seu proprio mundo espiritual.3 0 poder deprovocar interpretar;oes, que Scholem aponta como a prin-cipal caracterfstica da canoi1icidade, e, como veremos maistarde, uma das nor;oes basicas de seu pensamento a respei-to da tradir;ao. Antes disso, no enlanto, e preciso enlenderque a categoria do canonico nao e algo que Scholcm, en-quanto leitor-exegeta, simplesmente impos sobre Ka&a,mas sim uma ideia que 0 proprio Kafka trazia consigo e al-mejava atingir conscientemente na sua escrita.

As observar;oes que Kafka escreveu sobre "0 veredicto"em seu diario, conto que considerava um grande avanr;o nasua obra, sac muito citadas pOI' comentaristas como umguia para sua interpretar;ao. 0 que eu gostaria de destacaraqui nao e 0 conteudo dessas observar;oes, e sim 0 modelode reflexao interpretativa que elas representam. Na entradade 11 de fevereiro de 1913, que comenta a leitura das pro-

vas tipograficas de "0 veredicto" - escrito quase cinco me-ses antes, na noite de Yom Kippur, num unico impulso fe-bril - Kafka registra a sua sensar;ao de que "a historia saiude mim como num verdadeiro parto, coberta de sluei!-a emuco". A metaEora do parto, apesar de tel' outras implica-r;oes fortes, provoca 0 efeito de afastar a produr;ao da histo-ria da vontade do escritor. Depois que ela sai de dentrodele, como consequencia de um processo natural incontro-lavel, ele tem a liberdade de examina-Ia enquanto objeto. Apartir deste momento, a metaEora do parto e deixada delado, e 0 objeto em questao e examinado como se [osse denatureza canonica, e nao ffsica. Eis aqui um trecho que ca-racteriza muito bem esta anotar;ao do diario:

Georg tem 0 mesmo numero de lell'as que Franz. Em Bende-mann, "mann" serve como um refor~o de "Bende", abrindo cami-nho para todas as possibilidades da hist6~'ia, que ~este momentoainda sac imprevisiveis. Mas Bende tambem possU! exalamente 0

mesmo nll\11erOde Ietras quc Kafka, e a vogal e aparecc cxatamen-te nos mesmos lugares que a vogal a ocupa em Kafka. .

Frieda tcm 0 mcsmo numero dc leu'as que F. [Fcllce], e amesma inicial. Brandenfeld tem a mesma inicial de B. [Bauer], ealem disso apresenta uma certa conexao dc significado na palavra

,. " d'" r. l'-' " "] ~"Feld" [i. e., Bauer slg11lfica fazen elro •e l'e.a, campo .

Isso me parece menos interessante enquanto um exer-cicio de auto-analise, do que como indicar;ao de uma deter-minada relar;ao com 0 texto. Cada detalhe, cad a vocabulodo texto aponta para significados ocultos que 0 interprete- mesmo que ele seja a pessoa de quem "saiu" 0 texto -pode apenas entrever. A constituir;ao formal de um, t~xtoapresenta um carateI' multifacetado: s~m~lhanr;asAfo~eucas,o numero e a posir;ao das leu'as, aSSOClar;oessemanllca.s daspalavras, tudo isso tem 0 seu sig1liucado. Kafka,. aqul, el~-contra-se a apenas um passo dos metodos hebralCOS tradl-

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cionais de exegese, como 0 notmilwn (interpreta~ao das pa-lavras como acrosticos de [rases) e a gematria (tentativa deligar as palavras de acordo com 0 valor numerico de suas le-tras constituintes).

No fim de sua vida, numa anota~ao no diario de 16 de ja-neiro de 1922, Kafka chega perto de admitir explicitamenteque a sua ambi~ao tinha sido criar uma nova escritura sagradacom a sua obra - tornando-a 0 objeto apropriado de umaexeges~. Suas palavras sao"obscuras, talvez porque sentisse es-tar tocando num segredo tao profundo, que nem na ptivaci-dade de seus cadernos poderia reve1a-Iopor completo. Depoisde falar do terrive1 isolamento imposto pe10 seu projeto litera-rio, e da sensa~ao de que de 0 havia lcvado a beira da loucu-ra, de muda a mecifora que estava empregando para a"escrita, e ao inves de "busca", passa a falar de urn "assalto",que e1e imagina "vir de baixo, da humanidade", e talvez tam-bem "de cima, ditigido de cima contl'a mim" (esta ultima al-ternativa representa outra maneira de separar 0 ato da escritada vontade do autor, dando a entender que de poderia ser 0resultado de uma revda~ao vinda "de cima"). Kafka conc1ui asua re(]exao nos seguintes termos: "Toda escrita desse tipo eurn assaito contra alguma fronteira; se nao fosse a interven~aodo sionismo, e1apodelia ter se tornado uma nova doutrina se-creta, uma cabala. Ela apresenta alguns sinais disso. E obvio,porem, que seria preciso urn genio inimaginave1 para fincarnovamente suas raizes nos ve1hos seculos e, ao inves de seconsumir pOI'completo, come~ar a llorescer."

o comentario sobre a interven~ao do sionismo e parti-cularmente intrigante. Creio que 0 seu significado maisprovave1 e que a mera possibilidade de realizar politicamen-te a sua natureza judaica tinha, de alguma maneira, afasta-do Kafka de uma total dedica~ao a tarefa mais ambiciosa deconstruir uma ponte de palavras, como tinham feito seusancestrais, que conduzisse ao insondave1 dominio do trans-

cendental: era preciso fixar-se total mente no ausolulO, emesmo uma ligeira olhade1a na dire~ao da esfer"a rc1ativa dapolftica ja era 0 bastante para quebrar a sua concentra~ao.

o que c peculiar, e, eu diria, peculiannente judcll nissotudo c 0 [ato de Kafka colocar a verdadc no plano tcxtual.Os gregos, apesar de tambem possufrem uma tradi~ao tex-tual complexa, ordenavam as coisas de maneira diferente,criando as ferramentas conceituais necessarias para efetuaruma investiga~ao empirica da realidade, (1ue acabaria se tor-nando 0 grande empreendimento ca ci~ncia pura e, maistarde, a matriz da tecnologia ocidental. A grande [or~a e,ao mesmo tempo, a profunda limita~ao da orienta~ao he-braica, que toma como ponto de partida a cren~a na revela-~ao, era a tentativa de deriw.r tudo do texto, e nao domundo a sua volta: "Olhe de um lade, olhe de outro, poisesta tudo la", garante a famosa fonnula(.ao de Ben Bag-Bag,na Mishna Avot. Este e um principio que Scholem estudoudurante toda a sua vida e que muitas vezes fascinou Bel~a-min, mas que Kafka incorporou a sua propria essencia.

Algumas das mais reveladoras express6es da textualiza-~ao da verdade em Kafka sac as suas rellex6es paradoxais arespeito das escrituras - ponto de slla escrita em que se tor-na Ulll exegeta, e em alguns momentos um midrashista, nos"enti51omais ouvio do termo. Apesar de essas pequenasouras em prosa, por si sos, nao rcprescntarem ullla dasmaiores realiza~6es de Kafka, elas ofere cern pistas illlpor-tantes para a compreensao do funcionamento peculiar deseu mundo ficcional. Vejamos, pOl' exemplo, as suas com-plcxas rellex6es sobre a figura de Auraao, um mOlllento desua obra pelo qual Bel~amin tinha uma grande adlllira~ao.Kafka tenta imaginal' 0 Abraao de Genesis 22, pronto paralevar adiante a o[ensa da fe ao respondcr ao terrivel chama-do de Deus, sacrificando 0 seu t'lllico e amado filho. Kafkaesta obviamente inOuenciado pela interpreta~ao int rinseca-

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Mas imagine um outro Abraao. Dm que queria realizar 0 saclificioda maneira certa, e tinha uma nO\;aOda.siLuac;:aoque era, de formageral, correta, mas que, pOl'outro lado, noloconseguia acreditar quefosse ele 0 escolhido - ele, um velho [eio, e 0 jovem sujo que era seufilho. NoloIhe faltava a verdadeira fe, pois ele possuia essa fe. Ele fa-ria 0 sauificio de bom grado, se ao menos conseguisse acreditar queera ele 0 escolhido. Ele tem medo de que, depois de partir com seufilho como Abraao, acabasse se transformando em Dom Quixote nomeio do caminho. 0 mundo teria Lidoraiva de Abraao caso pudessete-Io visto na hora fatidica, mas este aqui tinha medo de que 0 mun-do mon-esse de lir ao ve-Io.5

bel, incluindo a que recebeu 0 titulo de "0 Fosso de Ba-bel", em que as pessoas cavam urn fosso, ou mina (Schlacht),ao inves de construir uma torre, numa farsesca aspirac;:ao in-vertida ("Algum progresso tern que ser feito"). No cntanto,nao e adequado dizer, como fizeram varios criticos, utilizan-do urn jargao literario bastante em yoga atualmente, queKafka "desconstroi" 0 texto biblico. Pelo contrario, a imagi-nac;:aode Kafka se ve atraida pela estrutura do texto biblico,e 0 escritor corre em torno dele, procurando uma brechapOI' onde possa entrar. Ou, passando para a metafora forja-da pOl' Benjamin, procurando uma maneira de tormi-Io urncaminho para dentro de sua propria selva interior. Nao hanada explicitame'-;te engrac;:ado no Genesis 22, mas Kafkaesta con"eto ao mostrar que 0 riso se esconde em meio ashistorias entre as quais esta inserido ("Sara tinha razao derir"). Primeiro Sara riu de incredulidade diante da prames-sa de urn filho. Mais tarde, depois de dar a luz a Isaac("aquele que ri") em Genesis 21, ela declara: "Deus trouxe 0

riso para mim; todos os que souberem rirao comigo [ou"pOI' mim", ou "de mim" - a preposic;:ao em hebraico e urnabismo de ambigiiidade]." Apesar de Deus conceder a ale-gria da maternidade a uma mulher de 90 anos de idade: a.spalavras empregadas na historia dao a en tender que a dadl-va divina tambem pode trazer a reduc;:ao a uma situac;:ao ab-surda, tornando-se urn objeto de zombaria diante dos olhossurpresos do mundo. A audaciosa intuic;:ao de Kafka en-quanto exegeta e 'ver que 0 absurdo resultante da atenc;:aodivina podia ser transferido para 0 proprio sacrificio ~eIsaac. 0 objeto do sacrificio aqui, de'/'schumtzige Junge, 0 JO-vem sujo, soa vagamente como urn personagem retirado deuma piada idiche. Este Abraao, ao contrario daqueles apre-sentados nas outras vers6es criadas pOI' Kafka, vive presoaos aspectos materiais do cotidiano. Ele possui a fe, masnao a autoconfianc;:a necessaria para acreditar que e a ele

mente crista que Kierkegaard faz dessa his to ria. Para con-trabalanc;:ar a terrivel violac;:ao do cotidiano humano que eapresentada na historia da Biblia, Kafka, abandonado a tri-vialidade do real, ao mesmo tempo em que luta mental-mente para a1canc;:arurn ambito transcendental inatingivel,cria uma serie de anti-Abraaos. "Eu posso imaginar urn ou-tro Abraao para mim mesmo", declara, "- ele com certezanunca chegaria a se tornar urn patriarca, e nem mesmo urnver..dedor de roupas'velhas - que estaria pronto para satis-fazer imediatamente a exigencia de urn sacrificio, com amesma diligencia de urn garc;:om, mas que seria incapaz deleva-lo adiante, pois, sendo indispensavel, nao poderia fu-gir-lhe". Entao ele imagina outros Abraaos, inclusive algunsque "nem tinham urn filho, mas ja eram obrigados a sacrifi-ca-lo". No auge do terrar biblico, Kafka descobre 0 grates-co: "Trata-se de coisas impossiveis, e Sara tinha razao derir." A partir dai, passando por outras Abraaos preocupa-dos com a construc;:ao de suas casas, ao mesmo tempo quedesviam os olhos da montanha distante, Kafka chega a ver-san mais profunda, e mais kafkiana, de Abraao:

A abordagem que Kafka faz dos textos biblicos as vezesos subverte por completo, como eo caso, pOl' exemplo, dasdiversas vers6es que criou para a historia da Torre de Ba-

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que Deus se dirige, e tem medo que a tentativa de cumprira ofens a da [e 0 torne motivo de chacota. Kafka descreveesse medo de forma brilhante, atraves do receio de Abraaode acabar se tornando um Dom Quixote - um dos grandesarquetipos do cetieismo moderno, 0 homem dotado deuma fe apaixonada e idealista, mas que s6 consegue vel' qui-meras, condenando-se irremediavelmente a futilidade e aoridiculo.

A sugestao de Benjamin de que os aspectos comicos dateologia judaica poderiam fornecer uma das chaves para acompreensao de Kafka e particularmente pertinente aqui.A inten~ao de Kafka nao e realizar uma inversao clo relatobiblico, como faz com "0 Fosso cle Babel", mas sim, comoja incliquei, penetrar num texto que se apresenta com a [01'-

~a de uma autoriclade inescapavel e, ao mesmo tempo, cles-concertante. 0 procedimento que adota para atingir essefim e basicamente midrashista. A sua marca mais leglve1 e acontemporaneiclade e a concretucle da forma narrativa - 0

Abraao que nao consegue se tornar nem um vencledor deroupas usadas; 0 velho feio, que tem como filho um jovemSlUO;e, na mGshal - ou parabola - miclrashista, que se se-gue ao trecho citado aeima, 0 pior aluno da turma que selevanta de sua carteira sun"ada na ultima fiIeira da sala, para1'ecebe1'um premio que julga tel' sido destinado a e1e. A fo1'-~a penetrante desse procedimento midrashista esta em des-cobri1' facetas ocultas do texto biblic.o, fOljando uma liga~aode significado entre 0 seu mundo distante, e, as vezes, estra-nho, e 0 mundo "moderno do lei tor. No 1'elato biblico, aconfian~a de Abraao no seu clever de obedecer ao Senhordo ceu e da terra nunca e questionacla, e a sua dignidade es-piritual nunca e posta em duvicla, a nao ser que se consicle-re uma exce~ao os do is epis6c1ios da mulher-irma, em quee1e figura como um prevaricador des~eitado. No elltallto, 0

fato de Sara - personagem que ri e da qual se ri - estar ao

seu lado indica que certas indignidades podem estar reser-vadas aqueles que se envolvem com os deslgnos inescruta-veis de Deus. Sao essas indignidades que Kafka (um crentepouco convicto, ou um crente em potencial, que nuncaconseguiu acreditar em si mesmo) toma como ponto de en-trada para os diIemas espirituais expressos no texto biblico.

Se fOssemos colocar 0 seu ponto de vista como umprindpio teol6gico, ele seria formulado mais ou menos daseguinte maneira: a irrup~ao do transcendental no clomlnioinsignificante do humano - "0 assalto cle cima" - sempreprocluz discrepaneias radicais, que 0 homem consegue per-ceber de forma profuncla, cia mesma maneira que tem cons-eieneia da sua insignificaneia. Assim, 0 encontro entre 0

Criador e sua cria~ao muitas vezes esta imbuldo de um po-tencial comico, que pode ir do burIesco de uma ben~aoconcedida a urn SlUeitOimprovavel (a ve1ha Sara que ri defeliciclade com a sua situa~ao absurda) ate a [arsa cruel(como a cena em que Jose, 0 eleito preclestinado, [oge nudos bra~os lascivos da mulher de Putifar - cena que Kafkaimitou cuidadosamente em America).

o brilhantismo peculiar dos romances de Kafka estaem fundir a cria~ao narrativa e a exegese, transforlllando a(jc~ao num constante exerdcio de cOlltell\pla~ao de seuspr6prios significados desconcertantes, oncle um protagollis-ta perplexo e retrataclo em meio ao absurclo cle seus esfor-~os cle contempla~ao. Kafka trata a exegese como ummetoclo cognitivo universal e de caracterlsticas pr6prias, aomesmo tempo que a paroclia, levantando cluviclas quanto apossibilidade dela se basear numa verdade reve1ada. A cele-bre p1'imeira frase de 0 p'I'Ocesso abre 0 livro com uma supo-.si~ao: "Alguem deve tel' caluniado Joseph K., pois uma belamanha ele foi preso, sem tel' [eito nada cle erraclo." 0 crlti-co Stanley Corngold coloca esse [ato na perspectiva con'eta,ao observar que "a narrativa nao se inieia com 0 primeiro

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K. prestou aten~iio. Entiio 0 Castelo tinha-o reconhecido como 0

agrimensor. Isso Ihe era desvantajoso, pOl'um lado, pois significa-va que 0 Castelo ja estava bem-informado a seu respeito, tinha es-tudado todas as contingencias provaveis, e estava aceitando 0

desafio com urn son"iso nos bibios. POl' outro lado, no entanto,isso era bastante vantajoso, pois se sua interpreta~iio estivesse cor-reta, eles tinham subestimado a sua for~a, e ele teria uma liberda-de de a~iio maior do que esperava. E se pretendiam intimida-Iocom a altiva superioridade que assumiram ao reconhece-Io comoo agrimensor, estavam muito enganados; isso 0 deixava um pouco

. d . d 7arrepla 0, e mms na a.

sonagem K., que toma um unico indicio verbal, pass a parauma conclusao que esta longe de ser assegtirada ("Entao 0Castelo tinha-o reconhecido"), e passa a pesar, como lhe ecaracteristico, alternativas contradit6rias ("por um lado","por outro lado"). 0 exame de suposic;6es neste procedi-mento praticamente talmudico - nessa altura de sua vida,Kafka ja possuia um conhecimento preliminar do Talmude- e enfatizado pelo destaque dado as orac;6es condicionais,e por uma declarac;ao explicita, "se sua interpretac;ao esti-vesse con'eta". Escolhi essa passagem como ilustrac;ao por-que ela mostra 0 desenvolvimento de um processoexegetico de forma bastante clara, mas este processo conti-nua ao longo de toda a narrativa de 0 Castelo; ha centenasde trechos aml1ogos a esse. Muitas vezes, como aconteceaqui, K. esta interpretando um verdadeiro texto verbal -trechos de uma conversac;ao no telefone, um bilhete escri-to, um ruido. Em outros momentos, 0 objeto de sua tentati-va angustiada, ou ate mesmo ensandecida, interpretac;ao eum ato, um gesto, ou 0 fragmento de uma informac;ao vi-sual imperfeita: uma imagem vislumbrada atraves de umafresta, a visao, ou a miragem, do pr6prio Castelo se erguen-do a distancia, atraves do veu oscilante do nevoeiro, daneve e da escuridao.

Toda essa atividade exegetica passa constanteinente dodiscurso indireto livre para os dialogos. Se, de acordo como argum,ento engenhoso de Marthe Robert, 0 Castelo foruma especie de recapitulac;ao arquetipica da tradic;ao do ro-mance europeu,8 0 ponto em que ele se afasta de formamarcante dessa tradic;ao e na inovac;ao radical no uso dodialogo. No romance realista, 0 dialogo funciona principal-mente como uma revelac;ao vivida da individualidade, euma representac;ao de como presenc;as individuais distintas

. se imp6em, respondem e afetam umas as outras, definindoo contexto do sistema sociocultural que compartilham en-

acontecimento da trama, mas sim com a primeira interpre-tac;ao deste acontecimento".6 Nos tres romances de Kafka, 0evento esta subordinado a interpretac;ao: e por isso queseus livros san tao inquietantes; e por isso tambem que elespossuem um toque humoristico, mesmo quando parecemameac;adores.

o ultimo desses romances, 0 Castelo, constitui 0exemplo mais marcante de um mundo permeado, ou atemesmo corroido, pela exegese. Nas primeiras paginas dolivro, K. acaba de chegar a estalagem, quando ouve umjovem chamado Schwarzer, que conversa ao telefone comalguem do Castelo, referir-se a ele como 0 agrimensor -exatamente a identidade pela qual tinha se apresentado.o uso dessa unica palavra faz com que e1e mergulhe numturbilhao exegetico:

Os estudos mais recentes tem enfatizado a importanciada tecnica narrativa do erlebte Rede, ou discurso indireto li-vre, no mundo ficcional de Kafka. A sua importancia paraevocar uma realidade exegetica e enorme. Ao misturar aperspectiva temporal e gramatical de um narrador na ter-ceira pessoa com 0 mon610go interior do protagonista, elenos da a ilusao de um ponto de vista bem embasado que econtinuamente minado pela subjetividade hesitante do per-

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tre si. Em Kafka nao ha um sistema compartilhado. Seuspersonagens principais san organismos isolados, e nao indi-viduos. A intera~ao entre personalidades individuais, queda forma ao dialogo realista, e substituida pOI' uma colisaode diferentes pontos de vista exegeticos. Os personagens deKafka, principalmente em 0 Castelo, vivem discutindo outrocando hipoteses sobre 0 que as coisas, ou os textos, sig-nificam. Trata-se de um mundo de conjeturas cuidadosa-mente elaboradas, e que vive amea~ado pela suspeita deque estas conjeturas talvez estejam erradas. "Voce interpre-ta tudo en"ado", a estalajadeira diz a K., num determinadomomento, "ate mesmo 0 silencio das pessoas" (p. 105). Doponto de vista formal, os dialogos nao tomam a forma deum interdimbio acelerado; eles san apresentados como dis-cussoes extensas, em que cada um dos interlocutorcs desen-volve 0 seu argumento durante paginas a fio.

Assim, K., depois de ouvir toda a argumenta~ao deOlga para apresentar as suas suposi~oes sobre a rcla~ao deBarnabas com 0 Castelo, diz concordar com a sua linha deraciodnio, e entao elabora a sua propria interpreta~ao:"Acho que voce tocou num ponto crucial aqui (...) Depoisde ouvir tudo 0 que voce me contou, creio entender a ques-tao com clareza. Barnabas e jovem demais para essa tare fa.Nada do que ele diz pode ser levado a serio, ao pe da letra"(pp. 238-239). Como este ultimo comentario indica, a exe-gese age como um solvente no mundo de Kafka que con"oia base do conhecimento, ate mesmo no momenta em queeste parece prestes a ser revelado ("Acho que voce tocounum ponto crucial"). 0 momenta exemplar em que a exe-gese parece tel' atingido 0 seu ponto zero ocorre numa con-versa entre K. e 0 Prefeito. 0 Prefeito esta exponcIo a suateoria de que uma carta enviacIa pelo oficial Klamm, cIoCastelo, apresenta um significado limitado, pois a IlIcnsa-gem em questao e "apenas uma carta panicular", c nao

uma comunica~ao oficial. K., um exegeta cujo ponto de vis-ta e diferente, fica exasperado com este raciodnio: "Sr. Pre-feito ( ...) 0 senhor interpreta a carta tao bem, que naosobra nada dela alem de uma assinatura numa folha de pa-pel em branco" (p. 92).

Nenhum romancista foi capaz de perceber 0 absur-do, 0 ridiculo, a ansia desesperada do homem enquantohomo significans - 0 animal criador de significados - taobem quanto Kafka. A consciencia que ele tinha da impor-tancia do texto para a cultura judaica certamente contri-buiu em muito para esta intui~ao crucial. A sua obraoscila entre duas possibilidades comicas: uma teologica, ea outra niilista. Se 0 texto examinado real mente for deorigem divina, entao hi de fato um enorme abismo entreAutor e leitor, e 0 ato da recep~ao e necessariamente umabsurclo, ainda que talvez um absurdo frutifero, uma vezque po de servir de alimento ao espirito. Se 0 texto forapenas um amontoado cle palavras escritas ao leu po.ruma criatura inconstante, presa ao mesmo mundo tranSl-torio clo interprete, todas as tentativas de interpreta~aonao poderao descobrir nada alem de uma cadeia infinda-vel de enigmas sem senti do, ou do 'reductio ad ahsurdumcia pagina em branco. Essas duas possibilidades corres-pondem aquilo que Benjamin via como os dois produtoscia "decadencia da sabecloria" em Kafka, e creio que eleest~lVa certo ao afirmar que Kafka nao acreditava muitona primeira alternativa - que Benjamin descreve como"uma especie de comunicado teologico sussurrado, a res-peito de questoes desacreclitadas e obsoletas".9 A segundapossibilidade, de acordo com Benjamin, leva a "loucura",um estado desprovido cia substancia interna da sabedo-ria, mas que reproduz os seus gestos confiantes, transfor-mando, eu acrescentaria, Abraao em Dom Quixote, eMoises em Charlie Chaplin.

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Se Kafka funda todo um mundo ficcional na problema-tica espiritual da interpreta<;ao, reveIando tanto a necessida-de de sua existencia quanto 0 seu absurdo em potencial,Benjamin apresenta uma especie de nostalgia conscientepeIo ideal da interpreta<;ao. "0 comentario e a tradu<;ao",observa em Rua de mao unica, "se rclacionam ao texto damesma maneira que 0 estilo e a mimesis com a natureza:trata-se do mesmo fenomeno estudado de angulos diferen-tes. Na arvore do texto sagrado, eles sao apenas folhas quebalan<;am eternamente ao vento; na do texto profano, eIessao as frutas que caem de acordo com a esta<;ao".l0 Maisuma vez a metafora empregada pOl' Benjamin e utjl paracompreendermos a visao que ele tinha das coisas. Ele imagi-na uma bela correIa<;ao entre 0 texto e a natureza - que po-dem ser encarados, como ja vimos antes, como os tipicosobjetos de estudo das mentes hebraica e helenica, respecti-vamente (se reIacionarmos estes termos aos dois escritoresmais importantes para Benjamin, veremos que Kafka repre-senta 0 exemplo mais completo, em fic<;ao, de um relacio-namento com 0 texto atraves do comentario, e que Proust,sendo um grande estilista e um mestre da mimesis, trata deforma brilhante da "natureza" - ou seja, do comportamen-to moral, do homem inserido no arcabou<;o das institui<;6essociais, do sutil fluxo de consciencia, alem do mundo natu-ral). Ao menos aqui, Benjamin pode vel' uma possibilidadede conexao organica entre 0 comentario ou a tradu<;ao, e 0

texto original: para 0 texto sagrado, cuja reIevancia e atem-poral, 0 comentario e uma folhagem sempre verde, uma ex-tensao viva da arvore eterna (que ja e uma imagemcabalistica) - mas mesmo em reIa<;ao ao texto profano 0 co-mentario pode gerar frutos. A metafora da arvore e das fo-lhas tambem aponta para 0 carateI' secund;irio docomentario, mas trata-se de uma subordina<;ao saudavel eprodutiva.

o que e estranho na Iiga<;aode Ber~jamin com a exege-se e que, alem de pensar sobre ela, de a encarava como umideal de escrita e um modeIo de raciodnio, sem nunca che-gal' a pratica-la. Os seus extraordimirios ensaios sobre Kaf-ka, Proust, Baudelaire, Karl Kraus, e seu longo estudosobre a Trauerspiel barroca, apresentam uma enonne quan-tidade de cita<;6es, mas na maior parte das vezes elas saoutilizadas apenas como ilustra<;6es para especula<;6es meta-fisicas e generaliza<;6es historicas, ao inves de sel'viremcomo textos passiveis de uma interpreta<;ao aU'aves de co-mentarios. Abstendo-se da verdadeira exegese, eIe refletiasobre a matriz linguistica que the serviria de base. Ele erafascinado pela ideia de que as palavras de todos os textos,fossem eIes sagrados ou profanos, podiam nos remeter auma lingua cosmica original, no<;ao que nao se limitou a in-tensa medita<;ao metafisica de sua juventude. Assim, numensaio de 1931 sobre Karl Kraus, escrito em plena fase mar-xista, eIe prop6e a ideia estranha, mas fascinante, de que alinguagem so se consumava na interpreta<;ao dos discursosque entram em jogo no exerdcio da cita<;ao: "Ncla se reOe-te a lingua angelica da qual todas as palavras, afugentadasdo contexto idilico do significado, tornaram-se motes do li-vro da Cria<;ao.,,11

o "livro da Cria<;ao", e claro, e um veIho clicluf cristaona maioria das linguas europeias, mas e tambem, comoBenjamin certamente saberia atraves de Scholem, a tradu-<;ao exata de um texto cabalistico classico, SeJer Yelsira. Vmestudo de sua obra, incluindo as cartas e os textos autobio-graficos, desperta a suspeita de que ele nunca exerceu afun<;ao de comentador pOl'que eIa estaria associ ad a a umaespecie de prospecto messianico particular. 0 proprioScholem chega perto da mesma conclusao ao obsel'var que,para Benjamin, comentar "textos em hebraico da tradi<;aojudaica" representava "uma especie de ponto de fuga utopi-

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" 12 It' d d . , .co. s 0 e, 0 ver a eiro comentano, na sua opiniao, exi-gia uma total dedicaC;ao a textos sagrados, em detrimentodos profanos. Seus representantes tipicos seriam 0 cabalis-ta, e 0 exegeta hebraico medieval. Ii por isso que ao se en-contrar com Judah Magnes e Scholem em Paris, em 1927,ele demonstrou tamanho entusiasmo peIa ideia de apren-der hebraico, e de exercitar ao maximo os seus dons ao co-mentar textos hebreus. No entanto, esse prospecto - porrazoes que ja estudamos - apesar de interessante, era iluso-rio, pois funcionava mais como um balsamo para seu ani-mo, do que como uma meta que eIe estava preparadointernamente para atingir. .

Para Benjamin, 0 exercicio espiritual e cultural do co-mentario estava profundamente ligado a importante ques-tao da capacidade humana de compreender 0 passado, deestabeIecer uma conexao vivida com eIe. Era este, na verda-de, 0 problema basico que cativou a atenc;ao de Benjamin eScholem ao longo de suas carreiras. Essa questao tambemestava implicita em Kafka, cuja obra po de ser entendidacomo a representac;ao definitiva da perda de uma tradic;aoconfiante. Nos seus romances e contos, entretanto, Kafkaafasta 0 problema da exegese de qualquer contexto histori-co, apresentando imagens atemporais do homem preso'num labirinto de mensagens ambiguas, que eIe se sente for-c;ado a decifrar. Para Benjamin, 0 confronto entre exegeta etexto, entre presente e passado, torna-se ainda mais tenso ecomplexo peIo fato de 0 observador do presente poder li-dar apenas com fragmentos, onde os criadores do texto tra-dicional pressupunham haver uma totalidade. Ele faz umaobservac;ao fascinante no livro sobre 0 barroco alemao (ain-da mais se levarmos em conta a sua preocupaC;ao com alfa-betos e escritas exoticas, que ja estudamos acima): 0 textosagrado atingiria a sua forma ideal aU"aves de hieroglifos,isto e, atraves de complexos graficos percebidos visllalmen-

te como uma tot~lidade.13 Nos, por outro lado, habitamosu.m~ realid~de historica e cultural onde toda a experien-CIa e redlizida a fragmentos, e 0 nosso horizonte mental efixado por lIm sistema de escrita alfabetica que tJ:ansfor-ma os textos em conglomerados de letras desconexas. Anossa consciencia, alem disso, nao ve este mundo de frag-mentos como algo natural, encarando-o como uma crise,uma alienac;ao, urn mal-estaJ', uma desorientac;ao radical(esta ideia esta no fundo dos ensaios de Benjamin sobreBaudelaire, Proust, Kafka, e 0 sllrrealismo). Como, entao,poderiamos compreender 0 passado, e comentar a com-pletude de seus textos sagrados? Nas "Questoes introdu-torias de critica do conhecimento", que abrem 0 estudosobre a Traue'l'spiel, Benjamin apresenta uma imagem per-turbadora e pessimista daquilo que os modernos se veemobrigados a fazer com 0 passado: "Da mesma maneiraque urn homem febril transforma todas as palavras queOlive nas imagens extravagantes de seu delirio, 0 espiritoda epoca atual toma as manifestac;oes do passado, ou demundos espirituais distantes, para apoderar-se dc1as e in-corpora-Ias de forma insensivc1 a sua propria fantasiaauto-referente.,,14

Na sua ultima obra, "Sobre 0 conceito da historia", escri-ta na primavera de 1940, alguns meses antes de seu suicidio,Benjamin continuava a pensar nessa ideia pertllrbadora,que parecia ridicularizar 0 ato espiritualmente necessarioda exegese. Agora, no entanto, ele, tateava em direc;ao auma reconciliaC;ao entre estes "mundos distantes" do passa-do e a compulsao do presente de se apropriar de pequenosfragmentos deste pass ado para atender as suas proprias ne-cessidades. "0 passado so pode ser captado", observa noquinto segmento do texto, "como uma imagem que surgeJ'apidamente no momenta em que pode ser reconhecida, enunca mais aparece de novo." 0 processo criativo que Ben-

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jamin descreveu como uma poetica do choque tipicamentemoderna no ensaio sobre Baudelaire e colocado aqui comoo unico metodo que permite que 0 passado ainda permane-c;;ano presente. "Pois toda imagem do passado que nao evista pelo presente como algo que Ihe e pertinente est.aameac;;ada de desaparecer de forma irrecuperavel."15 Elecontinua 0 mesmo raciocinio no segmento seguinte, ao di-zer - mais uma vez utilizando uma metafora que explora 0

carateI' instantaneo da fotografia - que a articulac;;ao hist6-rica do passado nao significa representa-Io "da maneiracomo ele realmente era", mas sim uma tentativa de "reteruma memoria que surge momentaneamente diante de nosnum instante de perigo". Antecipando algumas correntescriticas da historiografia modema, ele sugere que 0 historia-dol' deve descobrir no passado aquilo que esta mudo, repri-mido, e marginalizado, mas que e relevante para asinstancias do presente: "Em cada epoca e preciso fazer umanova tentativa de arran car a tradic;;ao das maos do confor-mismo, que procUl'a apossar-se dela." A explicitac;;ao desteprograma leva a uma das mais famosas afirmac;;6es deste ar-tigo: "0 materialista historico (...) acredita que a sua tarefa, I' ,. I ,,16e escovar a llstona a contrape o.

Apesar de Benjamin uti!\zar esta imagem marcantecomo uma metafora da perspectiva critica do historiador .marxista, David Biale teve 0 born senso de adota-Ia comoepigrafe de seu admiraveI livro sobre Scholem. De fato, se-ria diffeil resumir com maior precisao 0 que Scholem fazcom a historia judaica (esse tambem e urn dos principaismotivos peIos quais ele deve ser considerado urn historia-dol' "modemista", como tenho feito aqui). Mas antes depassarmos para a articulac;;ao que 0 proprio Scholem realizaentre 0 texto e 0 comentario, entre 0 passado e 0 prcscnte,gostaria de observar que a noc;;aode que 0 passado e capta-do como uma imagem momentanea, que surge num mo-

mento de perigo, traz implicac;;6es importantes nao so parao historiador, mas tambem para 0 transmissor da tradic;;ao.A questao aqui e se devemos considerar a tradic;;ao comoalgo intrinsecamente estavel, ou ate mesmo inerte - e, por-tanto, necessariamente limitador - ou como urn processodinamico, como uma luta contra os limites impostos peIassuas proprias origens, a cristalizac;;aodhlamica de sucessivosmomentos de perigo. 0 jovem Benjamin aparentemente ti-nha uma ideia conservadora da tradic;;ao,encarando-a comoalgo fixo e talvez inviolavel, como indicam as suas metafo-ras da arvore e do hieroglifo. Partindo desta concepc;;ao detradic;;ao, 0 comentario nao pode ser nada mais do que umamiragem tentadora, pois 0 modemo, em sua febre espiri-tual, necessariamente deturpara todas as palavras que con-seguir captar. Nao e de se admirar que Benjamin, apesar defascinado pelo ideal da exegese, nunca 0 tenha adotadocomo sua vocac;;ao. No fim da vida, no entanto, eIe come-c;;oua acreditar que este estado febril nao era apenas umsintoma da modernidade, e sim uma condic;;ao permanen-te da humanidade, uma vez que ela esta scmprc imersana substancia perigosa da historia. Esta constatac;;ao secoaduna com as descobertas que seu amigo Gerhard fez arespeito dos judeus do mundo do Mediterraneo do finalda antiguidade, ou da Renania, da Franc;;a, de Provenc;;a eda Iberia da Idade Media. Se a tradic;;ao (incluindo a tradi-c;;aocanonica, no sentido teologico do tenno) e na verda-de uma res posta dinamica ao movimento da historia, seeIa e audaciosa e as vezes revolucionaria no tratamentode seus antecedentes, 0 comentario nao e mais uma ilu-sao. Ele esta sempre a nossa disposic;;ao como um vefeulode inovac;;ao cultural, num sistema dominado peIa conti-nuidade.

Numa simplificac;;ao grosseira,· esta e a conclusao gerala que Scholem chegou a respeito da exegese, depois de

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uma vida inteira dedicada ao estudo de textos mfsticos 'lue. ' ..mmtas vezes sac escritos na forma de comentarios e Sl.pfa-comentarios, e raramente, e apenas de maneira imperfeita,se apresentam como uma exposi~ao sistematica. Alcm dis-so, e1e via uma analogia significativa, ainda que as vezesproblematica, entre a atividade tradicional do comentario eo seu projeto academico pessoal de se tornar urn historia-dor-exegeta. Assim, numa carta que escreveu em 1937 paraSalman Schocken, editor e patrocinador cultural, por oca-siao de seu sexagesimo aniversario, ele admite a naturezaesquiva da hist6ria, e logo a seguir aponta para 0 valor in-dispensavel do comentario como urn instrumento para cap-tar a verdade hist6rica: "A hist6ria, e claro, pode serencarada basicamente como uma ilusao, mas uma ilusaosem a qual e impossfvel captar a essencia das coisas na reali-dade temporal. Para 0 homem de hoje, essa totalidade mfs-tica da 'verdade' (des Systems), cuja existencia se torna ainda~a~s diff~il de ser percebida ao ser projetada no tempo his-t?nco, so pode ser captada com clareza pelo disdpulo legf-tImo do comentario, e no espe1ho singular da ufticafilol6gica. ,,17

As conclusoes de Scholem sobre 0 papd do comenta-rio na tradi~ao judaica encontraram a sua formula~ao de-finitiva numa palestra que apresentou no InstitutoEranos, na Suf~a, em 1962: "Revela~ao e tradi~ao comocategorias religiosas do judafsmo." De todas as obras deScholem, creio ser esta a que mais teria impressionadoBenjamin.

A descri~ao global que Scholem faz da peculiar orienta-~ao do judafsmo em dire~ao a verdade parte de urn terrenofamiliar, mas e aprofundada pOI' definic;.:oespenetrantes. Jaqu.e em termos religiosos e conceituais tudo na tradic;.:aoju-dalca remonta ao Sinai, e e fruto de uma revelac;.:ao,"tudo 0

que po de vir a ser conhecido ja esta depositado num subs-

trato atemporal". Nao podemos nos esquecer de que estedep6sito se daria atraves das palavras. "A verdade", ele con-tinua, "e apresentada de forma definitiva, e e fixada comprecisao". Mais uma vez, eu gostaria de acrescentar que eleesta se referindo a precisao verbal. "A verdade, basicamen-te, s6 precisa ser transmitida." A partir desta perspectiva, afigura que Scholem chama de "aquele que busca a verdade"deve se sub meter ao poder do texto, da mesma maneiraque 0 copista de Benjamin, que se dobra ao seu "coman-do". Como consequencia, nao resta muito espa~o para 0

desenvolvimento de urn discurso autonomo, que nao estejadiretamente subordinado a autoridade do texto revelado:"0 comentci:Jio[a enCase e de Scholem], e nao 0 sistema, e aforma legftima de se chegar a verdade."18

Esta descric;.:aoindica uma postura de subserviencia emrelac;.:aoao texto de origem pOI' parte do transmissor da tra-dic;.:ao,daquele que a recebe, e do comentador. Esta e defato a posic;.:aoideol6gica padrao, ou a atitude consciente,do judafsmo rabfnico. A audacia do argumento de Scholemesta em sugerir que 0 comentario, que se apresenta comoum mere suplemento do texto (uma aplicac;.:ao,extensao ouesclarecimento subordinado a e1e), agiria, na vcrdade,como uma explosiva forc;.:ade transformac;.:ao. De acordocom a formulac;.:aolapidar de Scholem, para 0 judafsmo "averdade tern que ser descoberta no texto", mas uma carac-terfstica dos textos e que esta verdade nunca e evidente, edeve ser sempre descoberta aU"avesde urn processo de co-mentario. Isso equivale a dizer que ha varias verdades notexto que podem ser revel ad as de maneiras diferentes, deacordo com 0 ponto de vista hist6rico, 0 metodo de analise,e as pressuposic;.:oes espirituais e conceituais do intcrprete."0 que antes acreditava-se ser consistente, unificado e fe-chado em si mesmo, agora parece diversificado, multiplo echeio de contradic;.:oes.,,19Esta dinamica e uma caracterfstica

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de ~o?a interpretac;ao, e comec;ou a se manifestar durante 0estag10 ~~ form~c;ao do judaismo pos-biblica, aU'aves dosco~ent~nos lega~s.e homiliares dos primeiros rabinos, que~aIs t~1~e assumInam ~m .aspec~o normativo. A interpreta-c;ao mlstIca, com a sua mSIstenCia na interpretabilidade decad a palavra da Tora Escrita, apenas leva essa dinamica aoseu. extr~mo logico: "a palavra de Deus possui um significa-do mfimto, qualquer que seja a sua definic;ao. Ainda que e1atenha se tor~ado um signa stricto sensu, e seja portanlo umapalavra m~dIata, e1a nao perde 0 seu carateI' de absoluto".S~~do, aS~I~, a de~ignac;ao,m~taforica de Tora oral que sed,a a tl adlC;,a~adqUlre um slgmficado especial, do ponto devIsta cabahstIco, ao substituir a fixidez da escrita pe1a flui-dez, ?a f~la - "exatamente porque qualquer tentativa de es-tablhzac;ao do texto prejudicaria, e acabaria pOl' destruir 0seu e1e~ento d: m~bilidade constante, de progressao e de-senvolvIomento mfimtos, que de outra maneiI'a ficaria petri-ficado" ,_0

S~ em "Sobre 0 conceito da historia" Benjamin pareceassu~nI~'0 pape1 de um tardio historiador de vozes culturaisrepnmIdas, a concepC;ao de texto e de interpretac;ao apre-sentada pOl' Scho1em, pe10 menos a primeira vista, faz comq~e e1e parec;a um teorico literario pos-estruturalista, umadecada antes dessa tendencia se tornar um modismo. 0 tex-to nao pode, e nem deve, ser uma entidade estavel. I-Ia sem-pre u~ a~ismo entre 0 significante e 0 significado, pOl' maisque 0 mterprete tente fecha-Io; ou, conforme outra con'en-te da teoria contemporanea, os significados do texto sac es-tabe1e.cidos de ~orma arbitraria e convencional pelass~cesslvas comumdades de interpretes. Kafka tambcm ante-CIpOUesse ceticismo em re1ac;ao a interpretac;ao, mas comUl~a .sensaC;aode horror e desespero bem diferenle do lomotllnIsta de varios teoricos literarios recentes A e'~r d. BLase 0pensamento de Scho1em, no entanto, esta em outre lugal':

de inicio, e1a se mantem no pano de fundo de ~eu argumen-to, mas acaba ficando claro qu~ e1a e 0 eixo conceitual emtorno do qual todo 0 resto gira. Os estudiosos do judaismoclassico, Scholem observa no inicio do ensaio, viam "a reve-lac;ao nao como um acontecimento unico e bem delineado,mas sim como um fenomeno eternamente fertil, que sedeve trazer a luz constantemente e examinar", 0 grandeempreendimento destes estudiosos, de acordo com esteponto de vista, foi estabe1ecer "uma tradic;ao baseada naTora e que cresce a partir dela, um grande exemplo de re-ceptividade espontanea" ,2\ Os mais recentes teoricos da lei-tura e da escrita tem falado muito da espontaneidade, do'jogo dos significantes", mas um outro termo bisico na for-mulac;ao de Scho1em e a receptividade, ou seja, a respostaapropriada que se deve dar a reve1ac;ac. Seria ingenuo esta-be1ecer uma re1ac;aodireta entre a perspectiva de Scholem,e a visao que os religiosos fundadores (1" tradic;ao tinhamde sua obra, se bem que no final do ensaio os dois pontosde vista praticamente se fundem. Scholem, que em suasconversas sempre fez questao de negar que era um secula-rista, chegando mesmo a exprimir sua descrenc;a em rc1a-c,;aoa viabilidade de uma atitude completamente cctica alongo prazo, nunca deixou de ser um teista obstinado, masheterodoxo _ atitude que correspondia a do jovem Benja-min, e que 0 Benjamin maduro ainda procurava manter.Ele pressupoe a existencia de um absoluto divino do qual ahumanidade ainda esta a procUl'a, e que e1a precisa encon-trar, se quiser tel' uma noc,;aoexata do lugar que ocupa noesquema do universo. . .

Nao creio que Scho1em reivindicaria a excluslvldade dareve1ac,;aopara a tradic,;aojudaica, mas sim que e1e via nestatradic,;ao uma poderosa articulac,;ao do encontro do humanocom 0 divino - "fixada com precisao" - atraves da lingua-gem. Pe10 que indicam alguns de seus comendrios sobre a

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lingua hebraica, e possivel que ele a encarasse como umovd-culo inigualavel para se registrar este tipo de encontro. Osbelos versos cosmoganicos de Genesis 1, e a historia doEden contada nos dois capitulos seguintes, nao seriam, deacordo com 0 seu ponto de vista, simples cadeias de signifi-cantes arbitrarios, ou uma curiosa tape<:aria de antigas len-das folcloricas, misturadas a mitos e historias etiologicas,mas sim um relato de relevancia eterna (pOI' mais antigoque fosse 0 seu idioma) sobre a origem do mundo e do ho-mem, e os dilemas permanentes da condi<:ao moral huma-na. Tanto em "Revela<:ao e tradi<:ao", quanto em Origins ofthe Kabbalah [Oligens ria cabala], Scholem pas em destaque aideia mistica (ele tambem a denominava magica e primitiva)de que a Tora era composta pel os infinitos nomes de Deus,uma lingua divina destituida de gramatica. E improvavelque ele tomasse esta ideia ao pe da letra, mas, como deixouclaro numa carta que escreveu a Franz Rosenzweig em1926, levava muito a serio a no<:ao de que as palavras emhebraico estavam saturadas de uma potencialidade espiri-tual especial: shamayim, ceu; 'lUa~/',vento/ espfrito; tehom,abismo; 'arlamah, terra; tselem, imagem; ria'at, conhecimen-to; e todo 0 res to do inquietante vocabulario das origensempregado no Genesis. 0 significado desse complexo denomes so podia ser multifacetado e, ao longo do tempo, amedida que interpretes posteriores foram examinando 0

texto da perspectiva de seus diversos "momentos de peri-go", novos aspectos surpreendentes se abriram a partir daspalavras e das imagens do texto original. No entanto, 0 ar-gumento primordial de Scholem, na minha opiniao, e queessa abertura nao se realizaria au'aves de umjogo, ou cIa im-posi<:ao de ideias estranhas ao texto, e sim de um estado dereceptividade, de uma aten<:ao cuidadosamente harmoniza-da com as palavras anti gas, que parecem imbufdas de umaautoridade absoluta. E Scholem nao nega essa autoridade.

"Na concep<:ao judaica", de clara na conclusao de seu en-saio, "a verdadeira tradi<:ao, como tudo 0 que e criativo,nao e resultado apenas da inven<:ao humana. Ela possuiuma base firme". Esta declara<:ao cIescreve 0 ponto de vistada propria tradi<:ao, mas Scho1cm nao para ai, e estabcleceuma generaliza<:ao sobre 0 valor permanente da tradi<:ao,utilizando termos cautelosos, mas em ultima analise teologi-cos, que exprimem a sua propria opiniao a respeito decomo a verdade espiritual deve ser encontrada na cultura:"A tradi<:ao e um dos grandes empreendimentos que esta-belecem uma rcla<:ao entre a vida humana e as suas origens.Ela e 0 contato vivo au'aves do qual 0 homem capta verda-des antigas e estabelece uma liga<:aocom elas, passando pOI'cima de todas as gera<:oes, num dialogo onde se da e se re-cebe.,,22Harold Bloom observou em algum lugar que a tra-di<:ao e a mascara de continuidade que a transforma<:aocultural veste, mas Scholem estava convencido de que estacontinuidade possuia uma substancia, pOI'mais que 0 dialo-go hist6rico entre 0 presentc e 0 passado tomassc caminhosimprevisiveis.

Como se pode vcr pela rela<:ao existente entre Bloom eScholem, entre os neomarxistas e Benjamin, ou entre quasetodo escritor de vanguarda posterior a decada de 1940 eKafka, os intelectuais mais recentes mostram uma grandetendencia de transformar esses tres escritores em profetasdos nossos dilemas pos-modernos. Nao e minha inten<:aoaqui menosprezar a importancia desses tres homens para ostempos atuais, mas nao podemos nos esquecer de que e~e.stinham uma liga<:ao profunda com as preocupa<:oes esptrl-tuais da esferajudaico-alema do inicio do seculo XX, princi-pal mente no que diz respeito a um aspecto fu~damental: 0recente despertarjudaico na Russia teve 0 efelto generahza-do de provocar 0 surgimento de uma conscie~ci~ d.e povo_ 0 sionismo e 0 bundismo, 0 hebrafsmo e 0 Idlchlsmo -

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enquanto na Alemanha ele tomou a forma de urn interesserenovado pelo judaismo, de uma busca pOl' Deus. TantoKafka, quanto Benjamin e Scholem tinham contato comMartin Bubel', e apresentavam uma certa simpatia pelo seuprojeto, apesar de terem fcito varias ressalvas, algumas de-las veementes, ao filosofo e seu pensamento. Tanto Bel-ua-min quanto Scholem tinham urn grande interesse pelateologia neotradicional de Franz Rosenzweig (Kafka nao vi-veu 0 bastante para tel' contato com ela), apesar de Scho-lem se opor a sua concep(,;ao peculiarmente eclesiastica dojudaismo. a periodo do pos-guerra, quando Benjamin eScholem iniciaram as suas carrciras, foi uma epoca em queurn drculo de jovens intelectuais se reuniu em torno doFreies Jiidisches Lehrhaus de Rosenzweig, em Frankfurt;em que a psicanalista Frieda Reichmann dirigia urn sanato-rio em Heidelberg onde misturava os prindpios de Freud edo judaismo ortodoxo; em que figuras como 0 tcorico dapsicanalise Erich Fromm, e Leo Lowenthal, urn sociologoda Escola de Frankfurt, se aproximaram, ainda que momen-taneamente, da fe judaica. A visao teologica de mundo queesses pensadores estavam tentando articular formava a basedo pensamento dos nossos tres escritores. No caso de Ben-jamin, ela estava tao entranhada, que nem mesmo 0 a suaadesao ao materialismo dialetico conseguiu apaga-la.,3 Kaf-ka, quc desempenhava 0 papel de urn guia desorientadopara os confusos Scholem e Ber~jamin, apresentava urn ceti-cismo mais radical do que qualquer urn dos dois diante daverdade teologica - coisa de que estavam perfcitamentecientes. au talvez se possa dizer que, na oscila(,;ao dos doisentre a fe e a tradi(,;ao, ele represclltava 0 polo de ceticismomais intransigente. Como Scholem coloca de forma sucilllana llitima das "Dez teses a-historicas sobre a cabala", Kafkacriou uma especie de "cabala heretica", pois ele "revclou afronteira entre a religiao e 0 niilismo".24

a lado da religiao - e nao se trata obviamente da reli-giao em geral, e sim do judaismo, pOl' mais que seu vclculoficcional seja universalizado - e marcado pela excepcionalcapacidade de Kafka de recriar as categorias conccituais eos processos intelectuais da tradi(,;ao religiosa. A exegese,como ja indiquei, e a questao central deste processo, e hauma parabola de Kafka que gira em torno dela onde, ape-sar de estar aberto a todas as possibilidades do niilismo, eletoca na visao de Scholem a respeito da tradi(,;ao e do co-mentario. Esta parabola, "Prometeu", fala de uma historiada mitologia grega, mas a dinamica de interpreta(,;ao queela apresenta e a mesma que orienta as medita(,;oes de Kaf-ka a respeito do Eden, de Babel, de Abraao, do Sinai e doMessias. Sao apresentadas quatro versoes, Sagen, dc Promc-teu. A primeira e apenas a narrativa do mito original. Na se-gunda, Prometeu, enlouquecido pelas bicadas dilaccrantesdas aguias, abra(,;a a rocha ate se fundir a ela. A terccira e aquarta versao transmitem um ceticismo radical: com a pas-sagem do tempo, as aguias, 0 heroi e os deuses sac esqueci-dos; ou entao todos se cansam desse jogo eterno, incluindoos deuses, as aguias e 0 ferimento de Prometeu. Mas essasduas alternativas, que esvaziam a importancia da historia, seopoem aos fatos, pois ainda nos lembramos e nos emocio-namos com todos esses textos que nos remetcm as origens.A parabola conclui, entao, que mesmo depois de Prometeu,os deuses e as aguias terem desaparecido, ainda resta a in-decifravel massa de pedra, que a lenda telHa explic£l.r."Como [a Ienda] partiu de um substrato de verdade, ela ti-nha, entao, que acabar no inexplicavel."25 Apesar das pers-pectivas vertiginosas abertas pela terceira e pela quartaversao de Prometeu, Kafka chega a um Wahl'heilsgm.nrl, um

d d d"· 'd "b fi ""substrato e vel' a e , mUlto pareci 0 com a asc lrmeque Scholem ve como a matriz da tradi(,;ao. Como um Sinaitransferido para 0 Caucaso, ou uma revela(,;ao deslocada

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para a fronteira entre a religHio e 0 niilismo, 0 alicerce daverdade nao po de fornecer respostas tranqiiilizadoras. Masjustamente porque esta verdade e inexplicavel, ela sempreir:i nos compelir a fazer perguntas insistentes. Talvez sejavalido concluir, a partir de Scholem, que este e 0 verdadei-1'0 sentido da revelac;ao original, despida do reconfortanteranc;o beato impasto pela religiao institucionalizada.

REVELA~AOE MEMORIA

Esta e a estranha e misteriosa - talvez ela perigosa, ouentao salvadora - satisfar;ao que hi em escrever: e urnsaito para fora da rale dos assassinos; ever 0 querealmente esti acontecendo. Isso se di atraves de urntipo de observar;ao mais elevado (mais elevado, e naomais agur;ado), e quanto mais e1evado e1efor, e maisafastado da "rale", mais independente ele se torna, maisligado as suas pr6prias leis de movimento, maisimprevislve1, mais alegre, e mais ascendente em suatrajet6ria.

Franz Kafka, Didlios,27 de janeiro de 1922

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verao de 1934, Benja-min fez uma longa visita a casa de campo de Bertolt Brecht,em Svendborg, na Dinamarca. As conversas entre os doisescritores, que Benjamin registrou com condsao em seu ca-deroo, passaram pOI' uma grande variedade de topicos,indo des de a situac;ao do comunismo na Uniao Sovietica,ate 0 estado em que se encontrava a literatura europeiacontempodinea, chegando a obra de Kafka. No inido de ju-lho, Benjamin entregou a Brecht 0 manuscrito de seu en-saio sobre Kafka. Durante tres semanas, 0 dramaturgoevitou tocar no assunto. Quando finalmente quebrou seu si-lendo, fez fortes ressalvas ao estilo episodico do ensaio e aoproprio Kafka, em cuja obra encontrou "algumas coisasbastante IlteiS", perdidas em meio a uma selva de "obscu-rantismo". Benjamin, entao, abriu ao acaso 0 seu exemplardos contos completos de Kafka - parando numa pequenahistoria intitulada "A proxima aldeia" - e sugeriu que osdois testassem os seus metodos de interpretac;ao em urntexto especifico. Brecht nao quis fazer nenhum comentariona hora, mas no fim do mes a discussao entre os dois vol-tou a girar em to!'no de "A proxima aldeia", em mais urncapitulo daquilo que Benjamin chamaria de "urn longo eviolento debate sobre 0 meu Kafka". 0 resultado dessa dis-cussao foi registrado em 31 de agosto numa anotac;ao docaderno, que comec;a com uma das declarac;oes mais cho-cantes de Brecht: a de que 0 ensaio de Benjamin contribuiapara 0 "avanc;o do fascismo judaico", pois aumentava a obs-

No

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curidade em torno de Kafka, ao inves de torna-lo mais claroe de formular "propostas praticas [I] que pudessem ser de-duzidas de seus contos".1 Vejamos primeiro, em sua to tali-dade, 0 texto de Kafka que os dois discutiram:

Brecht afirma que ela e uma replica da historia de Aquiles e a tar-taruga. Alguem que divida a jornada em suas particulas minimas- sem levar em considera<;ao a possibilidade de haver um aciden-te - jamais chegara na proxima aldeia. A propria vida e curta de-mais para esta viagem. 0 erro, no entanto, estaria neste "alguem".Se a viagem e enganosa, 0 viajante tambem e. Se a uniformidadeda vida [or descartada, 0 mesmo deve acontecer com a sua brevi-dade. Nao importa 0 quanto e1ae breve, pois a pessoa que chegaa aldeia nao e a mesma que partiu.3

pa da viagem e impossivel de ser completada. Alem disso,ele combina 0 velho paradoxo do movimento infinitamentedivisivel e do ponto de chegada inatingivel com urn segun-do paradoxo sobre a descontinuidade humana: "Se a via-gem e enganosa, 0 viajante tambem e." au seja, nao hanenhum motivo filosofico convincente para se acreditarque 0 "eu" continuo do vi~ante seja mais do que uma ilu-sao de sua consciencia, pois nossa personalidade, assimcomo as moleculas do nosso corpo e da nossa mente, mudaconstantemente ao longo do tempo. Nenhum ato, portan-to, chega a ser completado pela pessoa que 0 iniciou. Naose pode negar que esta interpretac;ao seja inteligente, e elase casa a tendencia de Brecht para procurar elementos"praticos" em Kafka - se nao praticos do ponto de vista po-litico, como sugeriu na conversa que teve com Benjamin,pelo menos uteis para uma rellexao filosofica. Reduzir 0

aspecto enigmatico de Kafka a urn paradoxo pUl'ament~logico e uma maneira de se eliminar 0 e1emento de obscun-dade. a grande problema desta interpretac;ao e que Kafkanunca foi de fato urn escritor filosofico (ao contrario, pOI'exemplo, de urn de seus imitadores mais inte1igentes - masmenos marcante que 0 escritor de Praga - J. L. Borges). agrande foco da atenc;ao de Kafka eram os dilemas da expe-riencia humana, e nao a perplexidade provocada pe1as defi-nic;6es da ontologia e da epistemologia. Em "A proximaaldeia", nao ha 0 menor sinal de que 0 avo tenha submeti-do a viagem a uma analise logica, dividindo-a em etapascada vez menores (como no ve1ho paradoxo de Aquiles e atartaruga), ou de que a continuidade do jovem enquantosujeito esteja sendo questionada.

A interpretac;ao que Benjamin faz da parabola retomauma implicaC;ao do texto que foi ignorada pOl' Brecht, e are1aciona de forma peculiar, mas reve1adora, a uma de suaspreocupac;6es basicas:

Meu avo costumava dizer: "A vida e incrive1mente curta. Quandoolho para tras, a vida me parece tao curta, que mal consigo enten-del', pOl' exemplo, como umjovem pode resolver ir ate a proximaaldeia, sem tel' medo que - mesmo sem sofrer nenhum acidente- nem a extensao normal de uma vida feliz seja 0 bastante para

I . ,,2comp etar a vIagem.

Tanto Brecht quanto Benjamin apresentam interpreta-c;6es surpreendentes para esse pequeno quebra-eabec;as pa-rabolico. A leitura de Brecht e engenhosa e inte1ectual e ade Benjamin, intuitiva e baseada na livre-associaC;ao. Parachegar a sua conc1usao, Brecht ignora urn aspecto bisico daestrutura discursiva do texto, que e fundamental para a in-terpretac;ao de Ber~jamin: 0 fato de a parabola ser apresenta-da como a [ala de um ve1ho, 0 avo, inserida no discurso deurn jovem, 0 seu neto.

Brecht transforma "A proxima aldeia" num enigma delogica. Ele faz isso ao central' sua analise no unico pontoem comum entre a parabola de Kafka e 0 paradoxo deAquiles e a tartaruga: 0 fato de se considerar que cada eta-

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Quanto a mim, dou a seguinte interpretac;ao: a verdadeira medidada vida e a mem6ria. Retrospectivamente, ela atravessa a vida coma ve10cidade d<;~m raio ..?om a mesma rapidez com que se vol-tam algumas pag.m.as,e1aJa I:e:uou da pr6xima aldeia para 0 pon-to em que 0 vlaJante decldlU partir. Aque1es cujas vidas setran~formaram numa escrita, como os ve1hos, gostam de ler estaescnta a~ena.s para tr~s. S6 assim e1esse encontram consigo mes-mos, e so aSSllTI- fugmdo do presente - a sua vida pode ser COI11-

preendida.8

ria e tradic;:ao, e de suas discussoes sobre 0 narrador e sobreo decHnio da aura, sendo pOl' fim resumida, com uma clare-za ideogramatica, na meditac;:ao sobre 0 Angelus Novus deKlee. 0 que e singular na sua analise e que ele tenha asso-ciado essa ideia a escrita, ou melhor, a transformac;:ao davida em escrita, coisa que nao esta sequel' insinuada en-quanto imagem, ou enquanto tema, no texto de Kafka.

A escrita exercia uma influencia tao peculiar sobre aimaginac;:ao de Benjamin, que ela logo deixa de ser umasimples metafora, para assumir urn valor de verdade na in-terpretac;:ao que ele faz do canto de Kafka. A leitura da pa-lavra escrita e introduzida como uma alegoria do rapidomovimento para tras da memoria ("com a mesma rapidezcom que se voltam algumas paginas"), mas logo a seguir elase transforma numa afirmac;:ao literal a respeito da situac;:aodas pessoas de idade: a vida delas se torna uma escrita, queso pode ser decifrada corretamente se lida de tras parafrente, att chegar ao comec;:o.Essa estranha noc;:aotern mui-to em comum com varias ideias que estavam prescntes nopensamento de Benjamin durante toda a sua vida: a prima-zia da linguagem em relac;:ao ao ser; 0 poder do texto en-quanto urn sinuoso caminho que conduz ao eu interior;uma misteriosa escrita bordada, que representa a supremarevelac;:ao do "eu" (que, como ja vimos, corresponde a visaode uma inscric;:ao mortuaria reveladora da identidade e dodestino, no sonho de Kafka); e talvez, tambem, a percepc;:aodo hebraico como urn velculo para a descoberta de 'umaidentidade oculta, lida de tras para frente, da esquerda paraa direita, ou a partir dos dilemas de uma maturidade cultu-ral europeia, de volta para urn revelador ponto de origem.

Se Benjamin coloca sobre a fragil estrutura de "A pr6-xima aldeia" uma carga de significado maior do que elapode carregar, e porque 0 passado e 0 futuro, que saD ob-viamente as antfteses tematicas da parabola, estao em cons-

A. grande intuic;:ao de Bertiamin a respeito de Kafka,que podemos perceber nao so aqui, mas tambem em outroslugares, e que mesmo as suas aparentes abstrac;:oes estaomoldadas sobre 0 arcabouc;:o de uma intensa experienciaconcr:ta ..Ao ,c?ntrario de Proust, outra grande figura dopanteao hterano moderno de Benjamin, Kafka raramenteapresenta urn personagem em pleno ato de se relembrar,ma~ a di~ens~o implfcita da memoria - pessoal, cultural eraclal- e crUCial na sua obra. No ni'vel de analise mais sim-ples, "A proxima aldeia" indica que quanto mais velhos fica-mo~, maior fica a ,nossa memoria, e 0 tempo parece passarmals depressa, ate chegar a urn ponto em que 0 avo malconsegue imaginar uma quantidade de tempo suficiente -"~ vida me parece tao curta" - para se realizar uma viagem~ao bre~e:. apenas as ilusoes da juventude fazem com que 0

jovem Vlaja.nte pen~e q~e ha tempo 0 bastante para chegarao seu d:stIno. Benjamin, no entanto, ao reparar na ligac;:aoque 0 avo estabelece entre a sensac;:ao da vida ser curta e 0

ato de.I'olhar para tras", chama a atenc;:ao para 0 fato deCJ,ue0 lmpulso da lembranc;:a, rapido como urn raio, afasta-nos do nosso ponto de chegada, orientando-nos de voltapara 0 ponto de partida: e so ai' que 0 verdadeiro "eu" podeser descoberto. -Essa ideia, na minha opiniao, determinatodo 0 mundo conceitual de Benjamin, e esta no fundo daleitura que faz de Kafka e de Proust, de sua visao de histo-

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tante tensao no seu pensamento. 0 seu marxismo, erguidosobre 0 alicerce das suas reflex6es anteriores sobre 0 idealmessianico judaico, deveria tel' apontado para a realiza~ao deum futuro utopico. Ha, no entanto, poucos sinais na sua obrade que de tenha imaginado de forma concreta um projeto dereden~ao historica como esse. Pdo contrario: como Scholeme Kafka, de era fascinado pelo passado, nao apenas pda ma-neira como de se desenvolveu de forma dinfunica ate 0 pre-sente (apesar de esse ser um de seus interesses basicos), mastambem pelo fato de eIe representar um caminho tortuosoate as OIigens arcaicas. A ultima obra que escreveu, "Sobre 0

conceito da historia", e uma tentativa derradeira - ainda lon-ge de um resultado satisfat61io - de reconciliar a ideia de fu-turo com a sua fixa~aopelo passado.

Essa tentativa de retorno as origens era a expressao ba-sica da rebeliao contra 0 patrimonio burgues alemao, queja mostramos estar presente nesses tres escritores. 0 con-ceito cultural que orientava este legado, como George Mos-se observou, e a ideia de Bildung - uma educac;:ao moral eestetica gradual, que respondia as exigencias de uma disci-plina social sempre voltada para 0 futuro, e que tem em vis-ta a pessoa de sucesso que 0 homem culto tem 0 potencialde se tornar. Em abril de 1937, num momento em que 0

ideal burgues da Bildung e 0 sonho (que the era concomi-tante) de uma simbiose entre os judeus e os alemaes esta-yam arruinados, Martin Bubel' apresentou uma palestra naFrankfurt Lerhaus intitulada "Bildung und Weltanschauung".Bubel', que sempre defendera essa simbiose, agora fazia al-gumas ressalvas a fixac;:aono futuro impllcita na Bildung, ese perguntava se 0 ponto de partida nao seria tao importan-te quanto 0 ponto de chegada.5 Benjamin e Scholem ja seestavam preocupados com 0 ponto de partida duas decadasantes. A linha de pensamento que os dois adotaram - Scha-lem no proprio material que estudava, e Benjamin como

uma especie de modelo para a organizac;:ao da temporalida-de - seguia a estrutura imanente da tradic;:aojudaica. Tudose originaria do momenta fulgurante da revelac;:ao, que sereproduz ao longo do tempo atraves dos diversos reflexos erefrac;:6es da exegese. Todo esse sistema esta centrado numgrande ponto de origem, pOI' mais que interpretes mais re-centes apresentem uma "espontaneidade" surpreendente eaudaciosa. Ate mesmo 0 prospecto da redenc;:ao, que e umdemento vital da tradic;:ao, e uma projec;:ao para 0 futuro dorelato do Eden, contido na revelac;:ao. Essa orienla~ao emdirec;:ao ao passado e diferente do mito grego de uma idadede ouro, pois 0 seu momento crucial nao se encontra nomito do Eden, e sim no evento dinamico da revelac;:ao, quecoloca desafios constantes para as gera~6es posteriores, fa-zendo com que das procurem elaborar e absorver 0 seu sig-nificado atraves de um processo continuo de interpretac;:ao.Tambem nesse ponto, nossos tres modernistas-padrao deorigem judaico-alema Gustamente pOl'que a tradic;:aojudaicatinha um enorme peso no seu imagimlrio) apresentam umexemplo radical de uma tendencia comum ~n.tre ~s moder-nistas: 0 retorno voluntario as raizes tradlclonals de ummundo prestes a se dissolver na incoerencia. Es.ta e uma ca-racterislica basica das obras de Joyce, Pound, Eliot e Mann.

Uma prova da integridade criativa de Kafka e 0 fa~o dede representar essa profunda preocupac;:ao com as ongenssem 0 menor sinal de nostalgia. Posso ilustrar essa afirma-~ao au'aves de duas de suas parabolas, uma que lida com aideia de revela~ao, e outra com a de inlerpreta~ao. "Umamensagem imperial", escrita em 1917, na epoca em, queKafka come~ou a estudar hebraico, parece uma para~olamidrashista classica, ou uma mGshal, ao estabelecer (a1l1daque implicitamente) uma analogia entre a .monarquia terre-na e 0 Rei celeste. 0 Imperador, em seu 1eltOde morte, sus-surra a um de seus emissarios uma mensagem que, como

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acontece com toda reveIal,;ao (no sentido espiritual do~~rmo), ,e "~est~nad~ somente a voce". A narrativa da pa-Iabol~, .a pnmelra vista, parece se concentrar em aspectosesp~c .•als. No centro esta 0 Imperador, no meio de seuspalacIos con:entricos, <.=erc.adopeIa luminosa insignia so-lar .de seu remo; na penfena, "escondendo-se na distanciamal~ remota", esta 0 .suj~ito para quem a mensagem e~esu~ada. 0 mensag~lro Imperial inicia a sua viagem domtenor p~~a 0 extenor, passando por escadarias, corre-dores e pa:lOs que se multiplicam ao infinito, e que porsu~ vez estao ~ercados pelo burburinho e peIa multidaoagttada da capital. Quando a parabola chega ao fim a im-possibilidade de se entregar a mensagem nao e mais rep-resentada ~penas peIo espal,;o, mas tambem pelo tempo:o mensagelro segue seu caminho labirfntico aU'aves de in-finitos palacios e patios, "e assim por milhares de anos"(l.lnd so weiter durch jahl'tausende) levando uma mensag'em"d I 'e urn 10mem. mono", que ele nunca conseguira cntre-~ar. A enorme Ilnportancia da mensagem nunca c ques-tlona~a afi~al, ela fO~'a enviada pelo proprio~mP:~,ador, e nao el:a ~?stmada a ninguem alem devoce, que ouve a hIstOrIa. No entanto, essa parabola

descreve uma revelal,;ao anunciada, mas nao consumada.Voce realmente precisa da mensagem, sem a qual acabarapOl' definhar, mas jamais ira recebe-Ia. E ao contrario darnashal do Rei da midrash rabinica, essa historia ficcionalfaz urn jogo niilfstico - ou talvez nietzschiano? _ com 0seu referencial teologico, pois a mensagem eternamentere~ardada nao parte de um Deus vivo, e sim, como desco-bnmos com algum choque no final da penultima frasede um homem morto.6 "Uma mensagem imperial", entao:mosU'a de forma marcante como Kafka estava ligado aoprocess? da tradil,;ao - sempre voltado para um momen-to dommante e revelatorio do passado - sem, no entan-

to, permitir-se a seguranl,;a e 0 consolo oferecid.os pela tra-dil,;ao.

"0 novo advogado", que confronta de forma mais ex-plfcita 0 presente com 0 passado, e que lida com a exegeseao inves da reveIal,;ao, converte a desarticulal,;ao recente datradil,;ao numa comedia do absurdo. 0 advogado do tituloe 0 Dr. Bucefalo - 0 famoso cavalo de Alexandre, 0 Gran-de - transformado em membro do tribunal e estudante dalei. Muita coisa mudou, observa 0 narrador, desde os tcm-pos antigos, quando urn heroi podia sonhar em conquistartodo 0 mundo conhecido. "Hoje em dia - nao se po de ne-gar - nao existe mais nenhum Alexandre, 0 Grande." Podehaver ainda muitas espadas erguidas nesse mundo de divi-saes e de trail,;aes mesquinhas, mas nao existe mais nin-guem que possa chefiar 0 caminho para a india. Bucefalonao pensa mais em disputas armadas, nem na luta pelo im-perio. "Sob a placida luz de uma lampada, com os flancosja desacostumados com as pernas de um cavaleiro, livre, elonge do clamor da batalha, dc Ie e vira as paginas dosnossos Iivros antigos.,,7 Esta imagcm final pode ser um re-flexo quase inconsciente do quarto livro das Viagens de Gu1-liver. De qualquer maneira, e1a transmite a sensal,;ao deuma discrepancia triste e inevitavel. Os grandes atos dopassado nao podem mais ser repetidos. De fato, talvez sejame1hor que e1es sejam deixados de lade, pois esta renunciapoderia acarretar no abandono do domlnio da espada, emtroca do menos excitante - mas mais civilizado - dominioda lei. Se a lei deve ser aplicada, e preciso estuda-Ia c com-preende-Ia com cuidado, e e isso que Bucefalo procura fa-zer no final da parabola. No entanto, a imagcm doadvogado quadrupede virando as paginas dos Iivros com aspatas dianteiras e um pouco risIve1, e nao inspira muitaconfianl,;a. Afinal, 0 que este velho cavalo poderia entenderdas nossas leis antigas? Mcsmo que a mensagem imperial

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chegasse ate nos, seriamos capazes de compreender 0 se"fi " uslgnIlcado!'

Benjamin viu no bizarro jurista Bucefalo urn emblema~o ~undo pos-~radi<;::o de Kafka. "0 caminho para a jus-tl<;:ae 0 aprendlzado , e!e observa no final do ensaio so-bre Kafka, reproduzindo uma ideia central do judafsmorabfnico, agora aplicada especificamente a Bucefalo. Elereconhece, no entanto, que os valores e os costumes tra-dicionais sofrem aqui uma transfigura<;:ao profunda, eprovavclmente irreversfve!: "E, no entanto, Kafka nao seatreve a ligar a este aprendizado as promessas que a tradi-<;:aoincorporou ao estudo da Tora. Os pmfessores quedescreve no conto sac sacristaos que perderam a sua casade ora<;:ao, e os alunos sac estudantes que perderam a suaescritura sagrada."8 Este ultimo comentario, como vcre-mos mais adiante, provocou urn longo debate epistolarentre Bel~amin e Scholem, em que discutiram se os pcr-sonagens de Kafka estariam privados de sua escritura sa-grada, como "Uma mensagem imperial" parecc indicar,ou se estavam diante de uma escritura sagrada que naoconseguiam comprcender, como se poderia conduir apartir da imagem final de "0 novo advogado". A primei-ra vista, a discussao entre os'dois po de parecer girar urntorno de um detalhe sem importancia, mas vale a penapensar no que poderia estar em jogo na oposi<;:ao entre aausencia de uma revela<;:ao e uma reve!a<;:ao incompreen-sfvel.

Antes de entrarmos em qualquer considera<;:ao a esterespeito, vamos rclembrar os diferentes caminhos all'aVeSdos quais os dois chegaram a ideia da revela<;:ao.0 caminhode Scholem foi construfdo atraves de palavras escritas, decomentarios e supracomentarios que remontavam a Bfblia- que, pOI' sua vez, C uma sequencia de palavras em hebrai-co, "depositadas num substrato atemporal" pOI' volta do

rimeiro mileni , .E.C. Benjamin, como ja vimos, tambem~ra fascinado pODrressaideia tipicamente judaica da verdadeenquanto escrit 11, mas a palavra escrita desempenhou umpape! secundar~~ n? caminho i~te!ectual que trilhou emdire<;:ao a expe~omCla da reve1a<;:ao.0 cerne de seu pensa-mento a respeit....c>rlareve!a<;:aoera 0 conceito de aura, queestudou ao 10magGdos ultimos 11 anos de sua vida. Aaura, como dec::]rua numa nota do ensaio "A obra de artena era de sua r pro.clutibilidade tecnica", de 1936, esta in-til11amente asst([)ooda ao domfnio do sagrado, repre-

,,9 C b'dsentando "0 vall or de culto da obra de arte. once I aem termos espallcilis, a aura implica numa distancia invio-lave!, numa ce U inacessibilidade (0 mais perfeito para-digma desta n~c;ao seria 0 Sinai, no momenta da teofania- um promon Olio saturado de aura: "Nao deveis subirna montanha, :.•le1n tocar nos seus limites. Todo aque1eque tocar na 1TlllO tanha sera morto"; txodo 19, 12). MasBenjamin pens"avt na aura basicamente em termos tem-porais: urn objetlllimaginado adquire um valor sobrenatu-ral, proximo dm Slgrado, pois esta enraizado na memoria.Assim, no en aill sobre Baudelaire, ele define a auracomo "as associ:ia~es que, habitando a mbnoi're involontai-'re, tendem a s~ ;grupar em torno do objeto da percep-<;:aO".1O0 prin ipal palco de atua<;:ao da aura, pOl'tanto,seria a conscie )eu individual, e nao a experiencia histori-ca ou coletiva.

Ha, no en1l.taI1to,diversas analogias estruturais entre adefini<;:aode auua e Benjamin e a imagem do Sinai envoltoem raios e tm 00, concebido pela tradi<;:aojudaica comopalco da reve1a _<;:;;'D.Em ambos os casos, a potencia da ver-dade se encontJtra no passado, e tem que ser captada, ou"recuperada", d:lestepassado (da mesma maneira que Benja-min concebe a mtm6ria, em "A proxima aldeia", correndocomo urn raio em dire<;:ao a um ponto de origem revela-

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dor). Alem disso, a verdade e os valores da tradic;;ao se ma-nifestariam atraves de sua irrupc;;ao no ambito do mundano,e nao seriam ditados pela vontade humana - Benjamin naoassocia a aura a memoria pura e simples, mas sim a memo-ria involuntaria, que surge do inconsciente. Alem disso,tudo aquilo que e lembrado dessa maneira torna-se uma es-pecie de manancial semantico inesgotavel, produzindo umnumero infinito de significados, ideia que se apr.oxima mui-to da maneira pela qual Scholem descrevia a concepc;;ao ca-balistica da Tora. "Pois um evento vivido e sempre finito",dec1ara Benjamin em um ensaio sobre Proust, "- pelo me-nos se ele for confinado a uma unica esfera da experiencia;um evento relembrado e infinito, pois e apenas uma chavepara tudo aquilo que aconteceu antes e depois dele".l1

o que se conc1ui desta enfase na forc;;aepifanica da me-moria e que a experiencia estetica em geral e, antes detudo, 0 mais forte e 0 mais sutil instrumento mnemonicocriado pela cultura. "Na medida em que a arte almeja 0belo", Benjamin observa em relac,;aoa Baudelaire, "e, aindaque em pequena escala, 0 'reproduz', ela 0 conjura (assimcomo Fausto faz com Helena) do ventre do tempo" .12 A su-gestao de uma tentativa de recuperar de algum tipo de pas-sado arcaico e arquetfpico pode parecer nao se adequar aatenc,;ao que Proust da a memoria individual, mas Benjaminpercebe que a experiencia proustiana implica na revelac,;aode leis universais da existencia humana e da relac;ao entre aconsciencia e a temporalidade como tal. 0 que acontece,em pequena escala, no indivfduo que detem 0 poder revela-dol' da mernoi'l'e involontai'l'e, tambem acontece no ambito damemoria racial, simbolizada pela conjurac;ao de Helena, noFausto de Goethe. 0 arcaico, enquanto fonte normativa eestetica, exerceu uma enorme fascinac;;ao sobre varios mo-dernistas. Se aceitarmos a noc;ao de Benjamin de que 0mundo ficcional de Kafka representa um "mundo pre-his to-

rico" de antigos gestos misteriosos, entao esta fascinac;;aotambem estaria presente neste escritor (Benjamin provavel-mente ficaria intrigado com a novel a "Edo e Enam", queAgnon escreveu em 1950, e onde se insinua ~ue 0 persona-gem principal seria quase um Fausto, .ao conJ~rar uma belae enigmatica mulher de um passado amda m~ls remot~ q~ea Grecia de Helena). Scholem, sempre atraldo pelo abls-mo", remete a fascinac;;ao pelo arcaico a experiencia da tra-dic,;aojudaica. Ele faz isso de duas maneiras: desco~ri~~ouma cadeia de textos esquecidos, que recuam na hlstonamilhares de anos; e, como uma especie de arqueologo filo-logico, revelando a influencia de mitos antigos, anterioresao monotefsmo, na mfstica judaica.

Benjamin obviamente acreditava que a ~emoria ~aqui-10 que esta oculto no ventre do tempo podIa se mamfestarde diversas maneiras, mas a unica que Ihe era acessfvel pes-soalmente era a experiencia estetica, que ele tendia a asso-ciaI' a percepc;;ao do deja vu - a parte que toea ao recq~tor,'digamos assim, do fenomeno da aura. Na entr~da de 23 dedezembro de 1926 do DidJio de Moscou, depols de vel' UlllCezanne extremamente belo num museu, ele faz 0 seguintecomentario: "Na minha opiniao, quando contemplamosuma pintura, nao entramos no seu espac,;o; na verdade, eeste espac,;o que se atira sobre nos, principalmente, em al-guns pontos espedficos. Ela se a~l~e ~m cant?~ e angulosonde acreditamos poder vel' expenenClas cruClals do passa-

f '1' ,,13do; ha algo de inexplicavelmente -ami lar nestes. pontos.",A partir dessa percepc;ao pessoal do poder sugestlvo do dipvu, Benjamin via um saber coletivo (se bem que um saberdo qual ele mesmo nao podia participar diretamente) naorientac;ao da tradic;ao judaica em direc;ao aquilo que for~revelado no passado. "Sabemos que os judeus estavam prO!-bidos de investigar 0 futuro", ele escreve no fin~1de "Sobreo conceito da historia". "Mas a Tora e as orac;oes Ihes pre-

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gam a pnitica da recorda~ao."14 Havia duas conexoes queeIe achava diffceis de estabe1eceL Vma era a passagem dofoco no passado para a expectativa dos judeus em re1a~ao auma reden~ao futura - um paradoxo que apresenta no fimde "Sobre 0 conceito da historia", sem encontrar uma solu-~ao satisfatoria para 0 problema. A outra era 0 deslocamen-to d~ ~evela~~o particular e estetica do deja vu para amemona coletlva da revela~ao, que a tradi~ao judaica toma-va como sua matI·iz. A segunda dessas questoes dizia respei-to ao debate entre ele e Scholem sobre 0 papel da revela~aono mundo ficcional de Kafka.

Como ja indicamos antes, BCI"tiamine Scholem troca-ram uma intensa cOITespondencia sobre Kafka a partir dofi~al da ?ccada de 1920. No infcio do verao de 1934, Benja-min envlOu a Scholem um primeiro rascunho de seu cnsaiosobre Kafka, que foi publicado no final do mesmo ana nojornal sionistaJij,~ische Run(/schau. Tendo em vista 0 quantoesse assunto era Importante para os do is, nao e de se sur-p~'~ender que Benjamin estivesse ansioso para saber a opi-mao de Scholem a respeito de seu ensaio, nem queScholem respondesse com urn profundo entusiasmo, ape-sar d~ levan tar uma obje~ao, que beirava a indigna~ao, emrela7ao ~ um ponto bastante espedfico. Scholem ji\ tinhatrazldo a tona a questao da revela~ao em Kafka tres anosantes, numa carta de 1Q de agosto de 1931, na qual falava~o "m~mdo Iingiiistico" de Kafka con~o urn exemplo doprosalco na sua forma mais canonica". b Ele sugeriu, entao,

q~_eKafka na~ p~rtencia realmente a literatura alema (opi-mao que Ber~.p.mln aparentemente compartilhava, a julgarpelos seus ensalOS sobre Kafka), e que era preciso coloca-Iosobre 0 pano de fundo do Livro de Jo, "dentro do conti-nuum da literatura judaica". Ao insistir que Benjamin ado-tasse esse raciodnio na sua analise, ele deu vazao a suaapreensao - que veio a ser confirmada pelo que Bel"tiamin

escreveu - de que "a interpreta~ao pode se tornar tao eso-terica quanto 0 assunto de que trata" Ua vimos que Brecht,com seu criterio de utilidade para as massas, ressentiu-sedesse carateI' esoterico). "A luz da revela~ao", observouScholem, "nunca brilhou com tanta for~a quanto aqui. Estee 0 segredo teologico da prosa perfeita". Tanto Bel"tiaminquanto Scholem utilizavam termos tao esotericos ao falarde Kafka, que um era obrigado a perguntar para 0 outro 0

que ele realmente queria dizer, e nao devemos tel' muitasesperan~as de que outra pessoa algum dia seja capaz de es-clarecer as suas duvidas. A carta de Scholem nao explicaqual seria a fonte e a natureza da revela~ao em Kafka, e aunica indica~ao de seu conteudo - Scholem estava obvia-mente se referindo a 0 p'I'Ocesso - e a breve declara~ao deque "0 Julgamento Final e (...) uma lei marcial". Mas nascartas que escreve a Benjamin a respeito do ensaio sobreKafka, Scholem apresenta uma visao ainda mais radical doconteudo da revela~ao. Eis aqui uma declara~ao en fatica,que fez numa carta de 17 de julho de 1934:

o mundo de Kafka e 0 mundo da revela~ao, mas de uma revela-~ao vista, e claro, de uma perspectiva que a reduz ao seu propriovazio. Nao posso aceitar a sua refuta~ao deste aspecto (00') A nao-realiuu;ao do que foi revelado e 0 ponto em que uma teologia C01~

retamente entendida (00') coincide de forma mais perfeita comaquilo que oferece a diave para a compreensao da obra de Kafka.o problema, meu caro Walter, nao e a sua ausencia num mundopre-animista, mas sim 0 fato de que ela nao pode ser realiuula. Itsobre esse texto que teremos de chegar a urn acordo. Estes alunosde que voce fala no final nao perderam a sua Escritura (00'): eles- d 'f' I 16nao conseguem eCIra- a.

Benjamin, como seria de se esperar, queria maiores ex-plica~oes sobre 0 vazio da revela~ao. Ao mesmo tempo, elerebateu 0 esoterico com 0 esoterico, apropriando-se damesma imagem na resposta que escreveu em 20 de julho de

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1934, onde falava, de forma inescrutavel, da tentativa deKafka de "encontrar seu caminho para a reden~ao" a partirda "costura interior" do vazio. Qualquer que fosse 0 signifi-cado destas palavras, ele nao via muita importancia na dis-tin~ao que Scholem insistia em fazer entre a ausencia e aininteIigibiIidade da revela~ao, como deixou claro numa car-ta que escreveu tres semanas mais tarde (11 de agosto de1934): "Nao faz diferen~a se os alunos a perderam [a Escri-tura], ou se eles nao conseguem decifra-Ia, pois sem a chavepara a sua compreensao, a Escritura nao e mais Escritura, esim vida. Vida conforme ela e vivida na aldeia aos pes da co-lina em que 0 castelo foi construido.,,17 A resposta de Scho-lem, datada de 20 de setembro de 1934, representa 0 pontoem que ele chega mais perto de explicar a sua enigmaticaideia de revela~ao, ao mesmo tempo que defende a impor-tancia da distin~ao entre aquilo que esta perdido, e aquiloque e indecifravel:

Voce me pel'gunta 0 que entendo pelo "vazio da l'evelac;:ao"?Eu 0

entendo como urn estado em que a revelac;:aopal'ece nao ter signi-ficado, em que ela ainda esta presente, ainda tern validade, masnao ternsignificado. Urn estado em que a riqueza do sentido se per-deu, e aquilo que esta no processo de aparecer (pois a revelac;:aoeurn processo desse tipo) nao desapareceu, apesar de tel' sido redu-zido ao ponto zero de seu conteudo, por assim dizer. Este e obvia-mente urn caso duvidoso do ponto de vista l'eligioso, e nao sepode ter cel'teza de que algum dia ele va de fato se concretizar.Decididamente nao posso concordal' com a sua opiniao de quenao importa se os alunos perderam a sua "Escritura", ou se elesnao conseguem decifl'a-Ia. Considero este urn dos maiores errosque voce poderia cometer. Quando falo do vazio da revelac;:ao,fac;:oissojustamente para deixar bem clara a difel'enc;:aentre estasduas posic;:oes.18

escreveu um mes antes - 0 que pode refletir uma certa am-bivalencia de sua parte, que corresponderia aos dois ladosda sua defini~ao paradoxal de Kafka como um escritor nafronteira entre a religiao e 0 niiIismo. 0 "ponto zero" da re-vela~ao evocado aqui representa a religiao colocada a beirado niiIismo, e Scholem nao sabe se isso vai "de fato se con-cretizar". POl' outro lado, na carta de 17 de julho, 0 vazio e,conseqiientemente, a i~possibilidade de realiza~ao da reve-la~ao presentes em Kafka sao entendidos como um exem-plo extremo e paradigmatico daquilo que e descrito, combastante enfase, como "uma teologia CO'I'retamente entendi-da" - isto e, teologia em geral, e nao apenas uma teologiakafkiana. A revela~ao nao era apenas uma ideia da tradi~aojudaica que Scholem estudava enquanto historiador, massim algo que ele via, com toda a seriedade, como um fen6-menD fundamental da existencia humana. A natureza radi-cal desta concep~ao de revela~ao fica bastante clara na suaopiniao (baseada na cabala) de que apenas os mecanismosinstitucionais e arraigados da religiao nos Ievam a imaginal'que a revela~ao possui um conteudo cIaramente decodifica-vel. A no~a0 de vazio que aparece na carta de 17 de julhode 1934 p~:rte de uma ideia expressa aforisticamente numartigo pubiicado um ana e meio antes - um aforisma queimpressionol;l profundamente a Benjamin: "0 concreto ab-soluto nunc£:. pode ser realizado" (vel' a carta de Benjaminde 28 de fevereiro- de 1933). Duas decadas mais tarde, Scho-lem repetiria essa ideia como uma defini~ao de revela~aoem "Revela~ao e tradi~ao", e afirmaria: "A ideia cabalisticade tradi~ao esta baseada na tensao dialetica presente nesteparadoxo: e justamente 0 absoluto que provoca 0 surgimen-to de reflexos infinitos nas contingencias da realiza~ao."lg Ainvoca~ao do vazio quebra a ideia convencional de que a re-vela~ao deveria ser algo fixo e bem definido. Scholem pr~vavelmente esta'ia sob a influencia da cosmogoma

Ha, na minha opiniao, uma pequena, mas importantediferen~a entre a formula~ao acima e a carta que Scholem

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cabalfstica, na qual 0 Infinito, 0 'Eyn SoJ, transforma-se nomundo, atraves da media~ao do 'Ayin, 0 vazio primordialdivino. 0 fato de os pupilos, advogados, estudantes e vitimasda lei, apresentados pOl' Kafka, examinarem escrituras incom-preensiveis, e, entao, apenas uma versao moderna daque1eque sempre foi 0 processo autentico de se receber a reve1a~ao- ou, em outras palavras, uma tentativa de olhar para 0 ladoobscuro da reve1a~ao, conforme e1a e entendida na cabala,pOl' mais que este lado obscuro possa estar camuflado sob afecundidade exuberante da interpreta~ao cabalfstica.

o objetivo de Scholem nesse debate com Benjamin emostrar que 0 mundo em que vivemos possui urn poder se-mantico basi co, mas que, ao mesmo tempo, ele tambem einescrutavel: ha sempre alguma coisa em pleno "processode aparecer", emergindo dos fundamentos do ser e se im-pondo sobre nos pela pura for~a de sua validade, mas queafinal nao possui urn significado que possa ser compreendi-do com clareza. Dizer que os estudantes perderam a sua Es-critura Sagrada era admitir algo que Scholem, 0 anarquistareligioso, nao estava disposto a admitir: que nao ha nenhu-ma conexao plausivel entre a consciencia humana e 0 sersupremo. Ele costumava relaeionar Jo a Kafka, nao so pOI'causa dos temas do julgamento e da justi~a inescrutave1,mas tambem, creio eu, pOl' causa da visao heterodoxa queJo tinha da revela~ao. E a reve1a~ao, afinal, que afasta as du-vidas de Jo. Quando 0 Senhor proclama a sua poesia noseio da tempestade, somos tomados pOI' uma visao eston-teante de puro poder cosmico (onde se revel a a pura belezado poder) que rompe todas as estruturas humanas, inclusi-ve a imagem apresentada pela Biblia de uma cria~ao hierar-quica e antropocentrica.

Quando Scholem diz que a luz da revela~ao brilha naobra de Kafka, creio que ele nao esta se referindo apenas arepresenta~ao ficeional do fenomeno da revela~ao, mas

tambem ao registro, numa "prosa petfeita", de uma expe-Tiencia de Tevelar;iio pOl' parte de Kafka - uma revela~ao quee exigente, evasiva, desconcertante, e que corre em dire~aoao seu ponto zero intrfnseco, definido pela sua validade ab-soluta e sua auseneia de significado. Esta no~ao vai de en-contro a ideia de criar uma nova cabala e de ser tornado deassalto pOl' pensamentos vindos de cima ao escrever, queKafka anotou no seu diario; e certamente isso que Scholemtinha em mente mais tarde, ao falar de Kafka como urn ca-balista heretico. Para Scholem, sempre preso ao modelo docomentario de velhos textos hebraicos, portadores de urnpoder polissemico abissal, era faeil vel' em Kafka urn exege-ta do vazio, inserido numa linha continua (se nao no fim dalinha) de ousados misticos judeus. Benjamin, na decada de1930, ja concebia a for~a revelatoria do passado mais comouma floresceneia da aura, arrancada das profundezas damemoria pOl' uma experieneia estetica, do que como umairrup~ao do absoluto na linguagem humana. Ele nao conse-guia, entretanto, detectar nenhuma realiza~ao de aura naobra de Kafka. 0 que, pelo contrario, chamava a sua aten-~ao em Kafka era a drainatiza~ao da aliena~ao do homemem rela~ao a si mesmo e aos outros, que ele assoeiava expli-eitamente ao einema e a fotografia, metodos de reprodu~aotecnica que logo poria em destaque ao escrever sobre a per-da da aura nos tempos modernos. Para Benjamin, entao,vendo 0 protagonista de Kafka isolado da fonte sagrada dovalor, incluindo 0 seu equivalente estetico da aura, era faeilchegar a conclusao de que os estudantes nao possuiam maisuma Escritura Sagrada, ou que se eles possuiam urn textoindeeifrave1 que passava pOI' uma Escritura Sagrada, issoera a mesma coisa que nao possuir Escritura nenhuma.

Scholem, Benjamin e Kafka assumiram posi~6es dife-rentes, e que nao permaneceram inaIteradas no caso de ne-nhum de1es no territorio indefinido entre a tradi~ao,

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religiosa e a cultura secular moderna. Nao e facil descreveras suas posturas. Scholem dedicou sua vida ao estudo detextos religiosos. Pelo menos num determinado momento,ele chegou a experimental' as tecnicas cabalistas de medita-c;ao, para atingir urn estado de transe. A profunda interpre-tac;ao da historia judaica que ele desenvolveu defendiaimplicitamente a validez do encontro com a transcenden-cia, sobre a qual estava baseado 0 judaismo. Ao mesmotempo, ele era urn estudioso academico do misticismo, enao urn mistico, como sempre fez questao de explicar emsuas entrevistas. As ferramentas que utilizou para com-preen del' a historia judaica foram aquelas oferecidas pelainvestigac;ao empirica, ligadas ao ambito dos valores secula-res. Benjamin, como insistia Scholem, possuia a mentalida-de de urn metaffsico e, obviamente, sempre foi fascinadopelos conceitos misticos e as doutrinas da tradic;ao judaica.Apesar desse interesse pela religiao nunca tel' sido descarta-do pOI' completo, depois que Benjamin abrac;ou 0 marxis-mo, eles permaneceram como uma especie de fantasmasintelectuais, como urn conjunto de conceitos, imagens esimbolos poderosos que expressavam uma profunda nostal-gia pela tradic;ao, num filosofo que tinha se colocado paraalem dos Iimites que eles impunham (0 que nos faz lembrardos plangentes versos finais do poema de Scholem sobre aRua de mao unica de Benjamin: "Nao somos devotos. IPer-manecemos no profano, IE onde antes havia Deus, agoraha: Melancolia."). A relac;ao de Kafka com a experiencia re-ligiosa e a mais paradoxal das tres. Os interpretes ja reduzi-ram a sua obra a uma mera autopsicobiografia, ou a umaalegoria sociopolftica ou religiosa, mas 0 empreendimentoque ele tentou realizar atraves dela era muito mais ousado ecomplicado: e!J.tregar-se (ou conquistar atraves da imagina-c;ao) a urn dominio transcendental no qual talvez nao conse-guisse acreditar, ou que, caso fosse digno de fe, poderia se

tornar hostil ou perverso. Scholem, ao vel' a "luz da revela-c;ao" na prosa de Kafka, percebia que 0 atormentado 1'0-

mancista tinha entrado num confronto mais direto com 0

ambito do teol6gico do que ele ou Benjamin, e no fundo epOI' isso que os dois amigos 0 encaravam como urn escritormoderno "canonico". No entanto,justamente pOI' causa doc~rater dire to desse confronto, tambem hi urn aspecto denegac;ao do transcendental na escrita de Kafka, uma especiede revelac;ao satirica e impiedosa das simulac;oes do trans-cendental. Esse aspecto negativo e insinuado na segundacarta que Scholem escreveu para Benjamin sobre 0 vazio darevelac;ao, onde e1e destaca a ideia de urn ponto zero e sepergunta se uma coisa assim realmente seria possivel.

No meio de toda essa preocupac;ao com a doutrina lu-minosa da tradic;ao judaica, nao e de se admiral' que a figu-ra de anjos perpasse, as yezes de forma explfcita e as vezesdissimulada, 0 mundo imaginario desses tres escritores. Po-demos tel' ao menos uma noc;ao provisoria da posic;ao queos tres· ocupavam nesse territorio espiritual indefinido, aoestudar a visao liter;iria de urn anjo pOI' cada urn deles. Em1921, Benjamin adquiriu 0 Angelus Novus de Paul Klee, umapintura a oleo colorida com aquarela que tinha ficado pron-ta no ana anterior. De acordo com Scholem, Benjamin fi-cou com 0 quadro pelo resto da vida, como uma especie detalisma espiritual e urn foco de meditac;ao. Depois de mor-reI', Benjamin deixou a pintura para 0 seu amigo, e ela per-maneceu na sala de estar de sua casa na Rua Abarbanel, emJerusalem, ate 1989, quando a viuva de Scholem a dooupara 0 Museu de Israel: No infcio de 1920, Benjamin deci-diu usaI' 0 titulo da pintura como 0 nome do jornal deideias que pretendia fundal'. Hi diversas referencias ao anjode Klee na correspondencia entre Benjamin e Scho~e~: Em19 setembro de 1933, Scholem anexa a uma carta dmgtda aBenjamin urn 'poema comp?sto de sete quadras rimadas, in-

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titulado "Gruss yom Angelus" (Saudac;.:oesde Angelus).20 0poema, que representa a fala do anjo, parte do quadro deKlee ("Ocupo urn nobre lugar na parede"), e depois passapara as meditac;.:oesdo anjo sobre a sua vocac;.:ao.Ele se iden-tifica no inicio como ein Engelsmann, urn homem-anjo, maso componente humano lhe interessa bem menos do que asua origem divina: "aquele mundo (...) medido, profundo eclaro", cujo mensageiro ele e, e para onde, olhando paratd.s, ele deseja volta I'.A quinta estrofe, onde fica claro 0 de-sejo do anjo de voltar ("Minhas asas para voar preparadas, /Ficaria feliz em voltar"), foi adotada pOI' Benjamin comoepigrafe da nona tese de "Sobre 0 conceito da historia",que estudaremos em breve. 0 poema de Scholem realc;.:a0carateI' celestial do anjo, que e mais Engel do que Mann, esua missao de anunciac;.:ao(ve'l'kunden), evitando transforma-10 num emblema de qualquer papel ou empreendimentohumano. Levando-se em considerac;.:ao aquilo que ja obser-vamos a respeito da ideia de reve1ac;.:ao,a ultima quadra deScholem e especial mente sugestiva:

tentativa de converter aquilo que e1e e e proc1ama em siste-mas humanos de significado. Assim como na r~velac;.:ao.~mKafka e na cabala, e1e apresenta 0 poder vocaUvo da dlVln-dade que se dirige a humanidade, mas nao possui nenhumSinn nenhum sentido ou significado.

Apesar de os anjos serem tradicional e epistemologica-mente mensageiros (tanto em hebraico quant~ em greg~),como re1embra 0 poema de Scholem, as reflexoes de BenJ~-min sobre 0 Angelus Novus na nona tes.e de "Sobre 0_concel-to da historia" afastam 0 anjo do ambIto da reve1ac;.:aoe dasmensagens divinas. Eis aqui 0 seu texto completo:

feh bin ein unsymboliseh Dingbedeute was ieh bin.Du drehst umsonst den Zauben-ingJeh habe keinen Sinn.

Uma pintura de Klee intitulada "Angelus Novus".mostra urn anjoque parece estar prestes a se afastar de alguma COlsa9-ue e~cara fi-xamente. Seus olhos estao arregalados, sua boca esta abel ta, ~uasasas estendidas. 0 anjo da hist6ria deve ter 0 mesmo aspecto. 0seu rosto esta voltado para 0 passado. Onde per~e~emos ~m de-sencadear de acontecimentos, de ve apenas uma umca catast~ofe,que nao para de acumular destrol¥0s sobre destrol¥os, e dep~ls osatira a seus pes. 0 anjo gostaria de ficar, despertar os n~Oltos, ereconstruir 0 que foi destruido. Mas uma tempesta~e :O~Ia do Pa-raiso; 0 \lento bate em suas asas coni tamanha vlOlencla,.~u~ 0anjo nao consegue mais fecha-Ias.Essa tempestade 0 empUlIa me-xoravelmente em direl¥ao ao futuro, para 0 qual as s~as c~stas es-tao voltadas, enquanto a pilha de destrol¥0s2~obeate 0 ceu. Essatempestade e 0 que chamamos de progresso.

Sou uma coisa anti-simb6Iica,Que s6 significa 0 que eu sou.Giras em vao 0 and magico,Nao tenho nenhum sentido.

Nao faz muita diferenc;.:ase tomamos 0 anjo da mane~raque Benjamin 0 apresenta, como uma alegoria geral da l~-flexibilidade com que se deve acompanhar 0 desenvolv1-menta da historia - "Onde percebeinos um desencadear deacontecimentos, e1e ve apenas uma unica catastrofe" - ~use vemos ne1e, como sugeriu Rolf Tiederr~a~n nu~ ~~sal~circunspecto, uma representac;.:ao do matenahsta hlstonco.o que importa e que a tensao entre 0 passado e 0 futuro,que, como ja vimos, ocupa um lugar fundamental no pensa-

Este e.urn anjo tipicamente monoteista, que se opoe a pres-Suposlc;.:aoda mitologia (da qual os anjos se originam) deque a realidade pode ser representada como uma rede deimagens e historias que transmitem urn significado coeren-te. 0 anjo "anti-simbolico" de Scholem resiste a qualquer

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Revelafiio e Memoria

. - de anlo no diirio no dia 25fk· sua Vlsao :J •

Ka a reglstrou a d omo uma narrativa em pn-dejunho de 1914. Apresenta ac h de uma historia que

. l' ce 0 rascun 0melra pessoa, e a pal e eC'el'iunao desenvolver. r ou que pI' i'ele nao chegou a tennlua , d um quarto alu-O ' dol' oocupante e

para publicac;ao. nan~.,. . dando de um lado para. d dla lOtellO an .gado, unha passa 0 a '. de agitarao e tedlO. Umlma mlstUIa ""

o outro no aposento, mI' c'la um acontecimento. er e e pIesen ,pouco antes de al).Oltec , . no teto de reboco. ,. EI 'cebe um tlemor

extraordmano. e pel d e depois virias ondasd· . s racha uras,

branco. Surgem lvels. . d que dao ao teto uma'd . las e doma as, .

de luz colon a, amal e . h vel' algumas coisas pal-~ . "PareCla aestranha transparencla. " De repente um brac;o se-

. d 1 rcndo entrar. drando aCllna e e, que sa 0 teto e 0 narra ord d prata atraves ,

gurando uma espa a e . 1 libertarao". Aconte-" . - 'ada para a mIOla "" .•ve nele uma VlsaoenVl 1 - Num acesso de Vlolen-, . . 1da reve ac;ao.ce enta~ 0 estaglO ClUCIa . . 0 lustre de bronze do. . d' b :\ mesa, allancaCia, 0 nana 01 so en, hora 0 teto se abre.. 1 - Na mesma ,teto, e 0 aura ao claD.

. de altura (eu a tinha calculadoNa luz tenue, ainda a uma gl~n d tunica azul-violeta, amarradamal) desceu lentamente um anJ,o e t tado pOI'asas brilhantes e

, dEle ela sus en d'dcom um cordao doura o. da com 0 brac;;oesten I 0,gurava a espamacias como a seda, e se . I' I" pensei. "Ele estava voan-

, - . 1 "Um anjo, en ao. , . I'd dna poslc;;aohonzonla . .' '. e na minha mcredu I a e eu. . - ° dla mtellO, ' Q d sdo em mmha dlrec;;ao • ." 13aixeios olhos. uan 00nao percebi. Agora ele.fal~·a~~ml~~da estava la, pairando algunsergui novamente, 0 anJo, e.a 10, e fechado novamenle). No en-

. d t (que tin 1a s figumetros abalxo 0 Ie 0 '. d 'dade' era apenas uma I -d m anjO e vel· ,tanto, nao se tratava e u . de algum navio, do tlpO que

. . t la da ploa .ra de madeira pm ac d tavernas de marinhell'os.d 10 telO as .. decostuma ser pendura 0 I . 1 sido montado de modo a serVIIo punho da espada tin 1a d" t'lda Eu tinha arrancado a

d era elle . . hcandelabro, recolhen 0_a c " ficar 00 escuro. Eu ainda un alampada eletrica, mas oao que~I~, coloquei a vela 00 punho dauma vela, entao subi num~ ca teld1a,ate tarde sob a luz fraca do

d· fiquel sell a 0espada, a acen I, e. 23anjo.

mento de Benjamin, atinge 0 seu climax aqui, ameac;andodesmantelar todo 0 raciodnio que ele estava tentando mon-tar sobre 0 objetivo e 0 carateI' do processo historico. Estaimagem da historia como uma pilha de destroc;os que atin-ge 0 ceu e como uma catistrofe continua reflete, obviamen-te, 0 momenta que Benjamin vivia: a primavera de 1940,quando a maior parte da Europa estava sob a sombra dasuistica, e Stalin e Hitler tinham se unido num pacto assas-sino. No entanto, 0 terrivel estranhamento em relac;ao a umpassado harmonioso, que tinha suas bases, em ultima aml1i-se, na velha historia hebraica da expulsao do Eden, era urncomponente importante do pensamento de Benjamin des-de a decada de 1920. E dificil deixar de entender a ultimafrase, "Essa tempestade e 0 que chamamos de progresso",como uma amarga ironia, apesar do lado marxista e messia-nico de Benjamin provavelmente procurar vel' nela urn sen-tido mais positivo. De qualquer maneira, 0 anjo, umaespecie de refugiado atonito do mundo do simbolismo reli-gioso, nao se encontra num eixo vertical entre 0 celestial eo terrestre, como no poema de Scho!em, mas sim num eixotemporal entre 0 sonho da origem paradisiaca e 0 prospec-to inconcebivel - ou seria ele urn pesadelo? - daquilo quese encontra no fim da longa catastrofe da historia. A ima-gem apresentada aqui e mais radical, mais violenta, do queaquelas que Bertiamin evoca em seus ensaios sabre a litera-tura e a cultura modernas. Ela provoca, no entanto, umefeito semelhante: 0 foco na iconagrafia da tradic;ao servepara definir mais claramente os desastres da modernidadesecular - a erosao da expericncia, a decadencia do saber, aperda de uma visao redentora e agora, em 1940, 0 dominiouniversal do genoddio. 0 anjo, aqui, nao vem anunciar umhomem-anjo, mas sim observar 0 homem, e esta metaforica-mente dotado do terrivel poder de vel' tudo despido de ilu-saes.

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Assim como "Vma mensagem imperial", essa e umahisto~ia pos-tradi~ao, que trata obviamente da revela~ao.Ela difere do conto, no entanto, ao recriar a imagem e asensa~ao da experiencia visionaria, ao mesmo tempo quemostra como ela e frustrada. Essa frustra~ao parece inevita-vel para 0 personagem de Kafka, que habita urn mundoque tin.ha perdido definitivamente 0 dom da profecia (alias,era aSSIm que os rabinos descreviam a sua propria realida-de). Pod~-se descrever essa historia, em linhas gerais, comoa narratlva de uma epifania angelica que se transformanuma anedota sem gra~a. A revela~ao inicial do anjo eacompanhada de toda a parafermilia tradicional: vibra~oesslsmicas, cores iridescentes, urn acesso de frenesi naquelequ.e a ~ontempla, uma espada de prata estendida. 0 pr6-pno anJo veste roupas esplendidas, e possui asas brilhantes.o anjo de Kafka, que deveria trazer uma mensagem de li-berta~ao, porta uma espada (assim como a Estatua da Li-~erdade do primeiro paragrafo de Amhica), pois Kafka er~Incapaz de evocar uma imagem de reden~ao ou gratifica~aoque nao apresentasse tambem uma amea~a em potencial.Neste caso em particular, a presen~a da espada tambem edeter~inada pOI' uma tradi~ao iconografica, que remontaao aruo que segura uma espada diante dos portoes doEden, quando Adao e Eva sac banidos. Este anjo, assimcomo 0 de Benjamin, talvez fosse urn refugiado do par'also,mas sem a capacidade de olhar para tras: a rela~ao que exis-t: entre ele, e. 0 domlnio das origens .divinas e igual a rela-~ao melancohca entre a figura de madeira presa no teto databerna e 0 mar.

o mecanismo da revela~ao a que Kafka da tanta aten-~ao na primeira parte da historia serve como uma ilustra-~ao vlvida da sucinta defini~ao que Scholem da a revela~aocomo algo "no processo de aparecer". 0 que acaba apare-

cendo, obviamente, e algo que nao pode comunicar nadapara 0 narrador, ao contrario das suas expectativas, e simurn bloco de madeira esculpido, urn mere artefato humanobastante tosco. 0 peso dessa decep~ao e enfatizado pOI'uma transi~ao gradual para domlnios cada vez mais prosai-cos: nao so a figura celestial e essencialmente terrestre, mastambem parece tel' sido arrancada do vasto e imponentereino do mar, para ser levada para 0 ambiente mundano, etalvez urn tanto sordido, de uma tabema de marinheiros. Anarrativa que come~ou com uma enorme dignidade teologi-ca se toma uma farsa cruel. Retomando a parabola de Kaf-ka que estudamos acima, 0 Abraao que estava prestes areceber a visita de urn anjo transforma-se nao num DomQuixote, e sim num Sancho Pan~a, que sabe muito be~que 0 gigante e apenas u~ moi?ho ?~vento. e que DulcI-neia e uma camponesa sUJa, cUJo hahto chelra a alho. 0anjo, com a sua fragil promessa de re~e1a~ao, e associ~do amemoria cultural, mas descobre-se mms tarde que de e ape-nas uma reliquia do passado, urn traste de uma .era de nave-ga~oes ja desaparecida, e que na epoca de EdIson passa aser utilizado como mere objeto de decora~ao.

No entanto, e tlpico de Kafka - urn pos-tradicionalistaque de alguma maneira ainda escre:ia "sob a luz da reve1a-~ao" - que a historia nao acabe aqUl. 0 nan'ador, ~e?do ar-rancado a fonte de ilumina~ao modema, tecnologIca, doquarto, nao quer ficar no escuro (ainda que a narrativa naoforne~a grandes detalhes, esta imagem da busca de uma luzna escuridao possui fortes conota~oes arqu~tlpica~ e r~eme-te a uma enorme quantidade de versos bfbhcos, na~ so ~osSalmos como tambem de outros livros: "0 Senhor Ilumma-ra minha escuridao", "Vma das lampadas de Deus e a almado homem", "Aque1es que caminhavam na escu.ridao viramuma grande luz", e assim pOI' diante). Se 0 anJo, .reve1adocomo urn objetosem vida, nao pode fornecer atlvamente

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uma iluminar;ao espiritual, e1e pode se tornar um utensfliopara a transmissao da luz. Assim, 0 narrador pega a sua uni-ca vela, coloca-a no punho da espada do anjo e fica sentado- nao sabemos 0 que pretendia fazeI' - "ate tarde sob a luzfraca do anjo". A historia termina, se e que realmente este eo seu fim, sem que se permita alimental' nenhuma ilusao arespeito do verdadeiro carateI' do anjo. Ainda assim, ha 0

sinal de uma reversao paradoxal, Umkehl', na sua conclusao.Houve, afinal, uma especie de manifestar;ao milagrosa, ain-da que ela tenha se tornado uma grande decepr;ao. A luzfraca que fornece um tenue conforto ao narrador na noiteescura e atribufda ao anjo, e nao a vela. Do ponto de vistaformal, trata-se af de uma substituir;ao metonfmica muitocomum na fala coloquial. No entanto, a propria posir;aoque cIa ocupa, como ultima frase do texto e imagem que fe-cha a narrativa, confere-Ihe um peso especial. 0 al~o, ape-sar de nao ser nada mais do que urn artefato popular, aindafornece luz, embora fraca, para a alma que se encontra naescuridao.

Esta imagem de amarga ironia e tfpica de Kafka, e e df-ficil imaginal' outro escritor moderno capaz de reproduzi-Iade forma convincente (Beckett poderia tel' imaginado 0

anjo de madeira, mas nesse caso 0 pavio nao se acenderia).Como sfmbolo, no entanto, de uma escrita judaica moderna(que se caracteriza, de acordo com as palavras memoraveisdo proprio Kafka, como "um assalto contra as fronteiras"),a imagem do homem sentado ate tarde da noite sob a luzfraca do anjo e uma representar;ao adequada do projeto in-telectual nao so de Kafka, mas tambem de Be~amin eScholem. Todos os tres, ao abandonarem a tentativa com-pIacente de se assimilar ao seio da burguesia alema, ficaramfascinados pdo mundo das origens judaicas, com seus in-sondaveis misterios teologicos. Eles temiam que a volta asodgens nao fosse mais possfvel e que onde antes havia

Deus, agora houvesse apenas MelancoJia. De qualquer ma-neira, e1es acreditavam que nao havia um substituto moder-no adequado para 0 profundo vocabulario espidtual que ostransmissores da tradir;ao erial'am na sua busca pela verda-de - era obvio que ele nao poderia ser encontrado na tec-nologia, na ciencia, na estetica, na psicanalise, e nem nomarxismo (nem Benjamin acreditava nisso). Restava-Ihes re-fietir pelo res to da vida sobre as ideias, atos e imagens datradir;ao, sobre 0 verdadeiro texto da Bfblia, a ideia daTora, 0 processo do comentario, as milenares historias doEden, do patriarca e a faca do sacdffeio, da montanha darevelar;ao, e sobre a promessa do Messias. Assim, a figurado anjo podia ~e tornar um velculo para se imaginal' 0 vazioparadoxal da revelar;ao; a tempestuosa expulsao da humani-dade do parafso, e sua inclusao na histoda; 0 carateI' iluso-rio da visao aguardada, e sua fnigH permanencia. 0 anjosilencioso de Kafka nao fala nem hebraico, nem alemao,mas, atraves da intervenr;ao humana, segura uma vela paraaqu~le a quem surgiu. Tanto em 0 Castelo e vadas parabo-las de Kafka, quanto na abrangentc historiografia de Scho-lem, e nas reflex6es gnomicas de Benjamin sobre 0 proprioKafka e outros escritores, ainda brilha algum vestfgio doreino transcendental que a tradir;ao tinha tanto empenhoem compreender.

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1. Walter Benjamin, BrieJe, ed. G. Scholem e T. Adorno (Frankfurt,1966).

2. 0 original alemao e Walter BenjaminjGenhom Scholem Briefwechsel1933-1940 (Frankfurt, 1980). A versao em ingles, de onde foramretiradas todas as cita<;.:oes,e The ConY!spondenceoj Walte1"Benja-min and Ge1:shomScholem 1932-1940 [A con-espondencia de WalterBenjamin e Gershom Scholem, 1932-1940], tradw;:ao de Gary Smithe Andre Lefevere (Nova 100"que,1989) (de agora em diante sed.citada como Correspondencia Benjamin-Scholem).

3. C01TespondenciaBenjamin-Scholem, p. 255.4. Walter Benjamin, 1lluminations, tradu<;.:aode Harry Zohn (Nova

lorque, 1968), p. 177.5. Para uma reconstitui<;.:aopaciente e devotada do excentrico pro-

jeto marxista de Beruamin, ver Susan Buck-Morss, The Dialects ojSeeing: Walter Benjamin and the A1WdeS Project [as dialetos doolha,-: Walte1"Benjamin e 0 projeto das Passagens] (Cambl-idge,Mass., 1989).

6. Harold Bloom, Ruin the Sac1Y!dthe Tmths [Dest1ui~aodas ve,-dadessagmdas] (Cambridge, Mass., 1989), p. 168.

7. Jildische Rundschau, 4 de abril de 1928, p. 202.8. Este conto pode ser encontrado em S. Y. Agnon, Contos completos

(em hebraico), vol. 2 (Tel Aviv, 1953), pp. 361-364. A tradu<;.:aopara 0 ingles e minha.

9. Gershom Scholem, Waite?' Benjamin: The Story oj a Friendship[Walter Benjamin: a hist6ria de uma amizade], tradu<;.:aode HarryZohn (FiladeIfia, 1981), pp. 169-174.

10. Con"espondenciaBenjamin-Scholem, p. 81.

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18. Ibid., pp. 400-401. ., . .19. Franz Kafka, The Diaries, 1910-1923 [Os dWl:0S, 1910-1923], ed ..

Max Brod, traduc;:ao de joseph Kresh e Martin Greenberg (Novalorque, 1948-49), p. 29. ,'.,

20. Discurso para a Academia de Artes da Bavana, reproduzldo emcOd Davar, pp. 59-60.

1. Yehuda Amichai, "Shir Zemani", in Gam ha'e15l'Ofhayah jla'am yadpetu~tahve'etsha'ot (Tel Aviv, 1989), p. 139. A traduc;:ao para 0 in-gles e minha.

2. 0 texto completo da carta foi publicado em Betty Scholem eGershom Scholem, Muttel' und Sohn in Briefwechse~ 1917-1916(Munique, 1989), p.13.

3. Franz Kafka, Letters to Friends, Family, and Edito1'S [Cartas a ami-15os,parentes e editores], traduc;:ao: Richard Winston e Clara Wins-ton (Nova lorquc, 1977), pp. 288-289.

4. Gershom Scholem, cOd Daval' (Tel Aviv, 1989), p. 53.5. Ibid., pp. 58-59.6. 0 original em hebraico foi publicado em Kneset, 2 (1937), 347-

392. A versao em ingles foi inc1uida em Gcrshom Scholem, TheMessianic Idea in Judaism [0 ideal messilmico no judaismo] (Nova100'que, 1971), pp. 78-141.

7. Para uma descric;:aode Thieberger, vel' Johannes Urzidil, ThereGoes Kajka [La vai Kafha], traduc;:ao de H. A. Basilius (Detroit,1968), pp. 97-118.

8. Kafka, Letters to Fl'iends, p. 390.9. Ibid., 395.

10. Gershom Scholcm, Fl'Om Berlin to Je111Salem [De Bedim a Je111sa-lbn], traduc;:aode Harry Zohn (Nova lorque, 1980), p.79.

11. Franz Kafka, Letters to Felice [Car/,as a Felice], traduc;:ao de jamesStern e Elizabeth Duckworth (Nova 100'que, 1973), p. 505.

12. Gershom Scholem, Walter Benjamin: The StO'ly of a Hiendship, tra-duc;:aode Harry Zohn (Filadelfia, 1981), pp. 137, 138.

13. Leo Lowenthal faz uma observac;:aosemelhante sobre a decisaode Benjamin de permanecer em Paris em "The Integrity of theIntellectual: In Memory of Walter Benjamin" ["A integridade dointelectual: em memoria de Walter Benjamin"], in Benjamin: Phi-losophy, Aesthetics, HistO'lY [Benjamin:fllosofla, estetica, his/aria], cd.:Gary Smith (Chicago, 1989), p. 252.

14. Walter Benjamin, Reflections, traduc;:ao de Edmund jephcott(Nova 100'que,1986), pp. 322, 331.

15. Walter 13enjamin,Bliefe, ed. G. Scholem e T. Adorno (Frankfurt,1966),2:830-831.

16. Franz Kafka, The Com/Jlete S/01ies [Contos com/lletos], eel.: N. N.Glatzer (Nova lorque, 1971), p. 433.

17. Ibid., p. 434.

1. Walter Benjamin, Reflections, traduc;:ao de Edmund jephcott(Nova lorque, 1986), p. 66. .

2. Gershom Scholem, cOd DavG1' (Tel AVIV,1989), Pb 304·U

· C I3. Agradec;:oao professor Michael A. Meyer ~a l~e n~~ mon t ~-

lege, Cincinnati, pela sua sugestao ~ r:spelto aqUi 0 que es anapOI' tras desta escolha de textos canolllcos .. , . .

4. Franz Kafka, The Dimies, 1910-1923 [Os dlal:oS'G1910-b1923(]Ned ..Max Brod, traduc;:ao de joseph Kresh e Martlll reen erg ova100'que, 1948-49), p. 215. , .

5. Franz Kafka, Pal'ables and Paradoxes [Parabolas e paradoxos], ed ..N. N. Glatzer (Nova 100'que, 1961), pp. 43-45.

6. Stanley Corngold, Franz Kajka: The Necessity of Fonn [Franz Kajha:a necessidade dafonna] (Ithaca, 1988), p. 23~. . . ,

7. Franz Kafka, The Castle [0 Castelo], traduc;:ao de Willa MUI1e Ed-win Muir (Nova 100'que, 1969), pp. 7-8. .Marthe Robert, The Old and The New: From Don _Qulxote to Kafha

8. [0 velho e 0 novo: de Dom Quixote a Kaflw], traduc;:ao de Carol Cos-man (Berkeley, 1976). _

9. Walter Benjamin, Illuminations, traduc;:ao de Harry Zohn (Nova10rque, 1968), p. 147.

10. Benjamin, Reflections, p. 68.11. Ibid., p. 269. . zd I . ,12. Gershom Scholem, Walter Benjamin: The St01

1Y204-if~2~nel sup, tla-

duc;:aode Harry Zohn (FilacIelfia, 1981), pp'. . .13. Walter Benjamin, The Oligin oj Gennan TragzOcDbrama [(OLrt15e~n~o

drama bannco alemiio], traduc;:ao de john s orne on re ,1977), p. 175.

14. Ibid., p. 53.15. Benjamin, Illuminations, p. 257.16. Ibid., pp. 257, 258-259.

Page 82: ALTER, Robert - Anjos necessários - tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem

17. Citado em David Biale, Gl!1"ShomScholem: Kabbalah and Countl!1~Hist01) [Genhom Scholem:. cabala e contra-hist61'ia] (Cambridge,1979), p. 76. A tradw;:ao e de Biale; 0 texto da carta em alemaofoi reproduzido em ibid., 215-216.

18. Gershom Scholem, The Messianic Idea in Judaism [0 ideal messiti-nico nojudaismo] (Nova IOI'que, 1971), p. 289.

19. Ibid., p. 290.20. Ibid., pp. 295, 296.21. Ibid., p, 287.22. Ibid., p. 303.23. Richard Wolin observa em Walter Benjamin: An Aesthetic Redemj)-

tion [Walter Benjamin: uma redenr;iioestetica] (Nova IOI'que, 1982)que nao se pode fazer uma divisao nftida entre uma fase metaff-sica.e outra marxista em Benjamin, pois certas questoes e ideiasdo perfodo anterior continuam a se manifestar em anos poste-riores.

24. Gershom Scholem, "Zehn unhistorische Satze libel' Kabbala", inJudaica, vol. 3 (Frankfurt, 1973), p. 271.

25. Kafka, Parables and Paradoxes, p. 83.

14. Benjamin, Illuminations, p. 266.15. Esta carta foi reproduzida pOI'Scholem em Walter Benjamin: The

St01) of a F1'iendship, tradw;:ao de Harry Zohn (Filadelfia, 1981),pp. 169-174.

16. C01-/'espondbtcia Benjamin-Scholem, pp. 126-127; a enfase e deScholem.

17. Ibid., p. 135.18. Ibid., p. 142; a enfase e de Scholem.19. Gershom Scholem, The Messianic Idea in Judaism (Nova IOI'que,

1971), p. 296.20. a texto em alemao do poema, precedido de uma tradur;:ao desa-

jeitada para 0 ingles, aparece na Cor/'espondbtcia Benjamin-Scho-lem, pp. 79-81. as versos citados no texto foram traduzidos pOI'mlm.

21. Benjamin, Illuminations, pp. 259-260.22. Rolf Tiedemann, "Historical Materialism or Messianism? An In-

terpretation of the Theses 'On the Concept of History'" ["Mate-rialismo hist6rico ou messianismo? Uma interpretar,;ao das tesesde 'Sobre 0 conceito de hist6ria'''], in Benjamin: Philosophy, Aes-thetics, History, ed.: Gary Smith (Chicago, 1989), pp. 175-209.

23. Franz Kafka: The Diaries, 1910-1923 [Os did-rios, 1910-1923], ed.:Max Brod, tradur,;ao de Joseph Kresh e Martin Greenberg (NovaIorque,·1948-49), pp. 291-292.

1. Walter Benjamin, Reflections, tradur,;ao de Edmund Jephcott(Nova IOI'que, 1986), p. 208.

2. Franz Kafka, The Complete Stories [Contos completos], ed.: N. N.Glatzer (Nova IOI'que, 1971), p. 404.

3. Benjamin, Reflections, p. 209.4. Ibid., pp. 209-210.5. Citado pOI'George Mosse em Gmnan Jews beyondJudaism Uudeus

alemiies para albn dojudaismo] (Bloomington, 1985), p. 36.6. Kafka, The Complete Stol'ies, pp. 4-5.7. Ibid., p. 415.8. Walter Beruamin, Illuminations, tradur,;ao de Harry Zohn (Nova

Iorque, 1968), p, 139.9. Ibid., p. 245.

10. Ibid., p. 188.11. Ibid., p. 204.12. Ibid., p. 189.13. Walter Benjamin, Moscow Dim) [Did-lio de Moscou], tradur,;ao de

Richard Sieburth (Cambridge, Mass., 1986), p. 42.

Page 83: ALTER, Robert - Anjos necessários - tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem

Adorno, Gretel, 72-73, 76, 77Adorno, Theodor, 23, 73Agnon, S. Y., 33-35; "Edo e

Enam", 139; "A grande sina-goga", 35-38

Alemao, 22, 51-53, 55-58, 78, 80,87,88-89

Amichai, Yehuda, 49-50Angelus Novus (Klee), 95, 131,

147-51Assimila~ao, 22, 44, 49, 50, 54,

132-33,154

Baudelaire, Charles, 29-30, 111,113,137

Bauer, Felice, 65, 67Becket, Samuel, 90, 154Benjamin, Dora, 22, 59Benjamin, Elnil, 52, 53, 74-75Benjamin, Walter: aprendizado do

hebraico, 64-71; aura, 137-40,145; compreensao do passa-do, 112-15, 150; cOITespon-dencia, 23-25, 27-28, 31,139-40, 141-42, 143, 147; Did-rio de Moscou, 139; sobre aexegese, 96-97, 109-15, 133;sobre 0 hebraico, 70-72, 111,131; inicio da amizade comScholem, 21-23, 24-25; sobreKafka, 31-32, 39-43, 44, 109,127-32, 1235-37,140-45; sobre

.a linguag'em, 70-72, 76, Ill;

marxismo, 21-27, 29, 68-70,114,131,150,155; "A obra dearte na era de sua reproduti-bilidade tecnica", 137; "Oofi-cio do tradutor", 71; Oligemdo drama ban'oeo alemao, 57,112; sobre as origens, 130-31,133; projeto das Passagens,28-30, 70-71; sobre a revela-~ao, 13645; Rua de mao uniea,40, 110, 146; "Sobre 0 concei-to da historia", 113-15, 118,132, 148, 149-51; "Sobre a lin-guagem enquanto tal e a lin-guagem do homem", 71, 79;sonhos, 73-79, 86-87; suicidio,23, 25, 30, 74; sobre a textua-lidade, 91, 95-96; sobre a tra-di~ao, 112, 115, 155

Bergmann, Hugo, 64, 66Biale, David, 114Biblia, 81-83, 97, 102·05, 140-41,

142, 144, 152, 153Bloom, Harold, 32, 121Borges,]. L., 129Brecht, Bertolt, 22, 57, 127-29Brenner, Y. H., 64Broch, Hermann, 89Brod,~ax,55,63,66Buber ~artin, 121, 132Buck-~orss, Susan, 159n5Burguesia, 54, 60, 67, 68, 132

Page 84: ALTER, Robert - Anjos necessários - tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem

Cabala, 32, 39, 59, 71, 91, 100,118, 143, 144; Zohar, 97-98

Canonicidade, 40-41, 97-99, 100-01, 142-43

Caracteres, vel" Inscrit;:aoComentario, ver ExegeseCorngold, Stanley, 105

Dom Quixote, 102-04, 109, 153Dyamant, Dora, 64

Eliot, T. S., 133Escrita, ver Inscrit;:aoExegese,92,96-123,133

Fausto (Goethe), 138Flaubert, Gustave, 40, 54, 57Fragmentos, 29-30, 112, 113Fromm, Erich, 122

Hebraico, 27, 49-92,119-21Historia, vel· Benjamin: tentativa

de compreender 0 passado;Scholem: tentativa de com-preender 0 passado

Hofmannsthal, Hugo von, 69

Inscrit;:ao, 49-50, 74-79, 83-88, 90-91,95-96, 112-13, 131-32

Interpretat;:ao, ver Exegese

Kafka, Franz: e Agnon, 33-35,38, 40; America, 80, 105, 152;aprendizado do hebraico, 55,62, 67; sobre a Biblia, 101-05;"0 brasao da cidade", 81-83;Cal'ta ao pai, 52, 55; 0 Castelo,

41, 80, 105-08; correspon-dencia, 55-56, 96; Diarios, 63,87, 98-101, 150-54; elementoscomicos em, 42-44, 103-04,105; 109, 135; sobre a exege-se, 99-109, 118-19, 123-24,135, 136; "0 fosso de Babel",103, 104; "]osefine, a canto-ra", 81; sobre a linguagem,80-82; "Uma mensagem impe-rial", 133-35; enquanto mo-dernista, 31-32, 85, 98; "Nacolonia penal", 96; "Na nossasirtagoga", 79-80; "0 novo ad-vogado", 135-36; "0 veredic-to", 87, 98; "Prometeu",123-24; "A proxima aldeia",127-32; sobre as origens, 132-35, 138-39; sobre a revelat;:ao,123-24, 134-35, 151-55; "Urnsonho", 83-88; sobre a textua-lidade, 99, 109; 0 processo, 80,83, 87, 88, 105, 141; visao dohebraico, 67

Kafka, Hermann, 52, 55, 87Klee, Paul, vel'Angelus NovusKleist, Wilhelm von, 57Klopstock, Robert, 64Kraus, Karl, 55, 57,111

Langer, Georg, 63Linguagem, 49-63Lowenthal, Leo, 122, 160n13

Magnes,]udah, 69, 112Mann, Thomas, 133Memoria, 130, 137-40, 153Meyer, Michael A., 161n3Midrash, 101, 104, 133Modernidade, 22, 89, 96, 115,

150-51

Modernismo, 54-55, 57, 85, 90,114, 133, 138

Mosse, Georg, 132

Passado, compreensao do, ver emBenjamin; Scholem

Pines, M, 1., 63Pound, Ezra, 133Proust, Marcel, 89, Ill, 113,

130, 138

Reichmann, Frieda, 122Revelat;:ao, 38, 39, 98, 101, 123,

134-55Robert, Marthe, 107Rosenzweig, Franz, 24, 59, 122

Sartre, J. P., 0 idiota da familia,54

Schocken, Salman, 32, 116Scholem, Arthur, 52-53, 54Scholem, Escha, 64Scholem, Gershom: aprendizado

do hebraico, 58; compreensaodo passado, 114-21; corres-pondencia, 24, 26-27, 141,142, 147; De Berlim a jeniSa-lbn, 25, 52; "Dez teses a-histo-ricas sobre a cabala", 32,122-23; sobre a exegese, 98,115-21, 133; Gmndes C017"entesda mistica judaica, 28, 51;

"Gruss vom Angelus", 147-48;sobre 0 hebraico, 58-62, 119-21; infancia, 52-53; inicio daamizade com Benjamin, 21-22; sobre Kafka, 39-40, 44, 97-98, 140-45, 146-47; cnquantomodernista, 114; sobre as ori-gens, 132-33, 139-40; Origemda cabala, 51, 120; "Redent;:aopelo pecado", 61-62; sobre aI'evelat;:ao, 116, 118-20, 122-24, 133, 140-46; "Revelat;:ao etradit;:ao como catcgorias reli-giosas do judafsmo", 116-21,143; Sabbatai Sevi, 51, 62; so-bre a textualidade, 116-21; so-bre a tradit;:ao, 114-21, 155;Waltel· Benjamin, a hist61'ia dewna amizade, 23, 40

Scholem, Siegfried, 53Sionismo, 22, 26, 27, 53, 58, 60,

63,66,100,121Surrealismo, 28-30, 113

Textualidade, 91, 101, 109, 110,116-21

Thieberger, Friedrich, 63Tiedemann, Rolphe, 149

Page 85: ALTER, Robert - Anjos necessários - tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem

Robert Alter, renomado exegetabiblico, especialista em literatu-ra hcbraica e professor de litera-tura comparada da Universida-de da California, investiga trespersonalidades judaicas que es-creviam em alemao, mostrandocomo eIas, antes tao marginais,se tornaram centrais para toda anossa cultura. 0 autor analisa asinOucncias sofridas e exercidasmutuamente pOI' Franz Kafka,Walter Benjamin e GershomScholem, e a maneira como docaldo de cultura germanojudai-co em que se encontravam mer-gulhados cmergiu 0 interesse rc-novado pelo estudo cientfficoda mistica judaica.