josé p. castiano - referenciais da filosofia africana. em busca da intersubjectivação

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REFERENCIAIS DA FILOSOFIAAFRICANA:EM BUSCA DAINTERSUBJECTIVAÇÃO

José P. Castiano

prefácio deRogério J. Uthui

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Colecção Horizonte da Palavra

F i c h a t é c n i c a

Título:REFERENCIAISDAFILOSOFIAAFRICANA:

EMBUSCADAINTERSUBJECTIVAÇÃO

Autor:JoséP.Castiano

Revisão:HipólitoSegulane,JoséTomo,Nilza,GersonMuchevo

Tiragem:1500exemplares

1ªedição,Agosto2010

Capa:Publifix,Lda.

Fotodacapa: JoséP.Castiano

Paginação:Publifix,Lda.

Impressão:Kadimah-CapeTown

Registo:6423/RLINLD/2010

ISBN:9789024796526

SociedadeEditorialNdjira,Lda.

UmaeditoradogrupoLeya

Av.JuliusNyererenº46,r/c.,Maputo

Email:[email protected]

www.editora-ndjira.blogspot.com

www.leya.com

Esta obra foi publicada pela UDEBA,Universidade de Desenvolvimento da Educação Básica na Província de Gaza, Moçambique.

Índice

Prefácio (por Rogério José Uthui) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Parte I

Objectivação e Subjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Parte II

Referenciais de Objectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45Referencial I: As Etnociências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50Referencial II: A Etnofilosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64A Ontologia da «Força Vital» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66Filosofia por trás da Religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80A Crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94A Crítica Radical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106Crítica da «Crítica» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

Parte III

Referenciais de Subjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121Referencial III: A Afrocentricidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124Referencial IV: O Ubuntuismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147Da Descolagem Conceptual à Descolonização . . . . . . . . . . . . . . . . . 171

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Parte IV

Referenciais de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187Referencial V: A Liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192Referencial VI: A Interculturalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 220A Construção de Espaços de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . 231Universidade como Espaço de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . . . . 243

8 Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação

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Devo profundo agradecimento a muitas pessoas que deram suascontribuições materiais e espirituais que, no seu todo, tornaram a pre-sente obra possível. Queeneth Mkabela chamou a minha atenção parao afrocentricidade e o ubuntuismo como referenciais teóricos e práti-cos ensinando-me a celebrar o espírito das coisas africanas. O reitorRogério Uthui, que tem uma impressionante predisposição para umbom debate, tomou os destinos da nossa Universidade Pedagógicadeclarando que quer fazer dela, uma das melhores em África. ComSeverino Ngoenha e Filimone Meigos fiz longos passeios peripatéti-cos na linda marginal de Maputo e demonstraram ambos que umaamizade pessoal pode ser também edificante para a academia. Devo àscolegas Felizmina Mathombe, «dona» Alexandrina, Valéria, Tânia,Conceição, dona Arlinda, Khensani, Celeste, Sr. Fernando, Sr. Carlos eSr. Bernardo muita cumplicidade, reconfortante paciência e com-preensão silenciosa sempre que tive de «sumir» para reflexões e leitu-ras (recordam-se dessas ocasiões?). As colegas da DC, Amélia Lemose Paula Cruz, foram pacientes e cúmplices dos meus sumiços e, emsilêncio, via nelas um olhar benévolo e profundamente reconfortante.A delegação da UP-Montepuez proporcionou uma semana de refle-xão naquelas maravilhosas terras quando me convidou para umapalestra sobre Diálogo entre Culturas; pois, foi lá onde escrevi as pági-nas derradeiras deste livro. As minhas irmãs, os meus irmãos e fami-liares Belinha, Genito, «tia» Paulina, Sandra, Florêncio, Elsa, Simão,Isabel, Manuel, Dó, Agostinho e outros proporcionaram, cada umdeles e sempre que nos encontrámos, momentos agradáveis de refle-xão sobre aspectos culturais e políticos; as suas opiniões sobre esses

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assuntos iluminaram mais do que poderão imaginar algumas dasideias defendidas neste livro. Os meus filhos Jubel, Zildo e Ivandroestiveram sempre presentes em cada parágrafo que escrevia; na verdade, enquanto escrevia, imaginava a tentar explicar-lhes cadaparágrafo. Agradeço à Nilza, ao Tomo, ao Sengulane e ao Gerson porterem-se prontificado a rever o manuscrito e por o terem feito deforma muito responsável.

Os meus pais deram-me o prazer e a responsabilidade de nascernesta maravilhosa África, continente do futuro.

Não teria começado um livro com este tema sem aqueles inciden-tes que, embora curtos e breves, fazem-nos aceitar o desafio que osmesmos nos colocam. É este o caso de uma pergunta disparada porHildizina Dias (a «caçadora de paradigmas», como eu em silêncio achamo) que, na verdade, me estimulou a pensar durante anos sobre oassunto que acabei por responder neste livro e em alguns artigos.Dizem que há paradigmas científicos em África ou paradigmas afri canos —disse ela um dia olhando atentamente para mim — Não os vejo; ondeestarão? Engoli em seco porque não tinha resposta, pelo menos naquelaaltura, para lhe mostrar os «paradigmas» africanos no sentido de Kuhn,que ela certamente empregara. Pensei ser óbvio ela não os puder «ver»,porque não os há, pelo menos enquanto africanos ou da ciência africana.Justamente naquele sentido eu não podia responder. Mas apressei logouma resposta para mim mesmo: «quem deve procurar estes paradigmassomos nós mesmos, trata-se de uma responsabilidade intelectualnossa!» O certo é que eu acabei não procurando «paradigmas» africa-nos. Adoptei o termo «referenciais». Também acabei reduzindo asminhas reflexões não para a Ciência Africana, mas confinando-as apenaspara a área da filosofia africana. Talvez esta pergunta da Hildizina este-ja a pairar no seio de muitos dos nossos intelectuais…

Para responder a esta e outras questões que trato neste livro tiveo apoio de alguns colegas que me emprestaram seus livros quase que«eternamente». Este é o caso de Paulus Gerdes e Emília Afonso,ambos à frente do Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências(CEMEC) da UP. Agradeço-lhes também os «debates» informais ilu-minantes sobre algumas das posições minhas defendidas neste livro.Um abraço carinhoso a todos os colegas da Universidade Pedagógicapelo vosso maravilhoso espírito de luta e justiça social.

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É aos meus estudantes dos cursos de licenciatura e de mestradoem ensino da filosofia (alguns deles são colegas no Departamento deFilosofia) que devo a motivação para este livro. Algures em 2007,convidaram-me para uma palestra onde, do nada (porque não era otema e nem vinha a propósito), comecei a defender a necessidade de,nós docentes de diferentes cadeiras, difundirmos cientistas africanoscomo um dos caminhos para desenvolver o gosto pelo pensamento eciência produzidos por africanos. Na referida palestra, eu apelara osdocentes universitários para que se esforçassem em incluir obras cien-tíficas escritas por africanos em cada uma das cadeiras que leccionam.O que diferenciava uma aula de filosofia, de sociologia, de matemáticaou de outra disciplina qualquer a decorrer em Moçambique e, diga-mos, duma aula a decorrer numa capital europeia? — perguntava eu. E, como resposta, apelava: devemos começar por introduzir temassobre África e, o mais importante, autores africanos nos nossos planosde estudos. Ou seja, temos de começar a introduzir no debate aca -démico, nas nossas universidades, obras escritas por pensadores e cientistas africanos para dar a oportunidade ao nosso estudante decon frontar-se com referenciais teóricos africanos, defendia eu.

Depois da palestra, colegas docentes, sobretudo estudantes, cha-maram-me à responsabilidade, dizendo mais ou menos assim: nós nãoconhecemos africanos que escreveram sobre isto ou aquilo e nemtemos textos [em português] que podem suportar teoricamente asnossas teses. Na impossibilidade de eu poder apresentar textos quesaciassem a fome que eles diziam ter em conhecer o pensamento filo-sófico africano [em português], pensei em responder resumindoalguns referenciais que achei serem suficientemente sistematizados.

Este livro, portanto, pretende dar respostas não acabadas aosestudantes de filosofia e aos colegas docentes que buscam referenciais«africanos» e que, na base deles, pretendam embarcar num diálogointersubjectivo. É a minha contribuição no combate pela intersubjec-tivação da filosofia profissional africana!

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Prefácio

Por Rogério José Uthui

«…Na verdade imaginava a tentar lhes explicar o sentido decada parágrafo…» refere o autor nos agradecimentos aos seus filhos,quase a começar…ou a concluir. E aqui reside, talvez, o primeiro cho-que com que nos deparamos ao ler o livro «Referenciais da FilosofiaAfricana: Em Busca da Intersubjectivação» de José Paulino Cas tia no(J. P. Castiano como gosta de ser chamado).

É que o livro é escrito na tentativa de «explicar» aos filhosmenores de idade, o significado de cada parágrafo e ao mesmo tempo,tentar alinhar uma perspectiva teórica para a ciência do conhecimentoafricano.

A exposição, desenrolada aqui com objectivo duplo, de atingirtanto o estudante iniciado em filosofia (ou outras ciências), como os«filósofos profissionais», obriga de certa maneira a seguir a metodo-logia das conversas socráticas, com discurso de método de permeionuma mistura com uma desorganização organizada sui generis, como aciência do caos.

A propósito do caos. Sou físico de formação e aceitei de bomgrado o desafio de prefaciar um livro não clássico, como é o de filoso-fia africana, sem a avaliação prévia necessária, da confusão que iriatrazer, nem das dificuldades que iria enfrentar. Assim, e para diminuiro caos, irei escalonar as minhas ideias em secções.

Aviso desde já que serei longo porque leigo na matéria.

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Do Autor

O perfil académico de José Castiano é o de um pensador irreve-rente. Professor de História de sua formação básica, formado naFaculdade de Educação — I, da Universidade Eduardo Mondlane(presentemente temos o que se pode chamar Faculdade de Educação II),cedo passou pelas escolas de distritos de Sofala, Manica, Inhambane,etc. tendo tido oportunidade de olhar para aspectos essenciais do dia --a-dia das populações rurais de Moçambique.

O percurso académico posterior incluiu, a Licenciatura em Filo -sofia (Universidade de Greifswald) e o Doutoramento em Sociologia(Universidade de Hamburg), ambos com a especialidade na área deeducação.

A origem modesta talhou-lhe o carácter, a frequência da alta-roda do conhecimento mundial aguçou-lhe o método e o contacto per-manente com a Natureza e as populações rurais, disponibilizou-lhe oobjecto de estudo científico.

J.P. Castiano é desde 2005 Director Científico da UniversidadePedagógica, onde contribui com opiniões importantes para o desen-volvimento do ensino de pós-graduação e da investigação na insti -tuição e no país. Talvez esta seja a sua maior contribuição para oestabelecimento de conhecimento novo e para o protagonismo cientí-fico que merecidamente detém.

Na reforma do currículo para o ensino básico de há 5 anos atrás,o Ministério da Educação e Cultura introduziu uma inovação: inspi-rando-se numa ideia geralmente aceite em todo o mundo e num discurso político mais virado para a auto-estima e valorização do na -ci onal, decidiu-se que uma percentagem substancial do tempo lectivopassaria a ser dedicada a aspectos de currículo local.

Se a ideia foi oportuna, já a sua implementação não tem sido con-seguida sem muitos desafios. E os desafios residem, em primeirolugar, na definição de quão locais são os aspectos que, muitos profes-sores empreendedores na matéria consideram prioritários entraremsob essa umbrella: os locais geográficos?, o clima?, a fauna?, os con-tos?, os provérbios, as técnicas de cultivo?, o que mais?

Os desafios estendem-se ainda para as outras áreas ou conceitos,ou ainda, permito-me o estrangeirismo, approaches: quem é a fonte

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principal desse conhecimento? Como se transmite? Para quê transmi-ti-lo? E, talvez, a pergunta vencedora…O que é que o aluno, o(a)comunidade/aldeia/país ganham em introduzir esse currículo local?

Acredito que os problemas de défice epistemológico nesta áreaque o J.P. Castiano cedo abraçou para tema central de sua «investiga-ção-para-a-vida» impeliram-no a procurar, viajar, conversar comvelhos, jovens e comunidades, criar redes de investigadores nacionais,regionais e internacionais (incluindo fazer parte do corpo editorial daINDILINGA, uma Revista de Sistemas de Conhecimentos Indígenas,sediada na Universidade de Kwazulu Natal).

E, acredito, que, em tentando sistematizar os inúmeros «objec-tos» de valor extraordinário para a sua colecção de currículo local,incluindo a omnipresente gonadzololo — planta afrodisíaca muitousada na zona central do país, Castiano esbarrou-se neste défice teóri-co subjacente a toda a vontade política de trazer a perspectiva localpara o currículo global da escola primária (uma perspectiva glocalcomo diz o próprio autor).

Assim, este livro aparece para dar cobro à falta de um quadroteórico e, até, para legitimar a iniciativa pragmática de estudo de con-ceitos e práticas locais no ensino.

Não nos admiremos, pois, se dentro de pouco tempo, nos apa -recer um livro teórico-pedagógico sobre o currículo local citandoextensivamente o presente livro.

Será, definitivamente, uma grandiosa contribuição epistemológi-ca para a filosofia do ensino ou, mesmo, para o ensino da filosofia.

Da Objectivação e Subjectivação

O autor recuou para os primórdios do Renascimento Africano,com a luta pela abolição da escravatura no século XIX naquela que foi,talvez, a maior nação esclavagista — os Estados Unidos da Amé rica— para começar a análise da génese e, porque não, do genótipo daprimeira tentativa de inscrição de qualquer referencial africano nolivro humano do conhecimento da modernidade.

Nesta análise J. P. Castiano fundamenta a necessidade que desdesempre se sentiu de legitimar o discurso do escravo, neste caso um

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discurso abolicionista, através da subjectivação, ou seja, da colocaçãodo próprio escravo no centro do discurso, ou, melhor ainda, como osujeito do discurso. Pegando o para o exemplo concreto de Mo çam -bique, o autor não esconde o seu desalento com a forma como se pro-cessou o processo de objectivação no nosso país.

Analisando o trabalho do incontornável Padre Henri Junod, mis-sionário suíço que viveu longos anos do final do século XIX e iníciosdo século XX no sul de Moçambique, Castiano questiona i) o métodoetnográfico, ao pôr em causa a apropriação de conhecimento alheio(popular) pelo missionário, chegando ao cúmulo de influenciar a taxo-nomia vegetal e animal da região; ii) o plágio e o baixo rigor científicoda obra de Junod, em termos modernos, baseado no facto de não reco-nhecer a existência prévia de qualquer saber e, de forma indivi dua -lista, e de desprezo até, pelas principais fontes de saber que eleinvestiga; iii) o espírito aventureiro científico de Junod ao interferirinclusive na taxonomia social, geográfica e política da região: inven-tou usos e costumes comuns a certos grupos e até criou tribos eetnias (a «tribo» tsonga, no caso).

Neste capítulo introdutório, Castiano coloca a questão pós-mo -der na que se atribui ao surgimento de uma certa geração cheetah denovos africanos, pouco interessados em serem objectivados, no sen -tido de «…não permitirem que alguém escreva a sua história de mo -men to ou, mais interessante, que alguém mantenha o seu futurorefém do passado histórico dos libertadores». Esta é uma citação dolivro do economista Africano Ayittey.

Embora Castiano defenda mesmo a intersubjectivação (falaremosmais adiante desta ideia), uma achega apenas a esta tendência pós-moderna de certos economistas e politólogos tentarem dar um novocurso à história Africana (de novo uma tentativa de objectivação), aotentar de forma muito radical fazer a ruptura, baseados em análiseseconométricas, entre o estágio actual de desenvolvimento do conti-nente negro e o seu passado de continente-colónia.

A perspectiva, para mim, é bastante clara, e persegue três princi-pais objectivos: i) retirar a culpa do colonizador pelo atraso sócio-eco-nómico africano; ii) desacreditar e demonizar os governos africanospós-independência e, acima de tudo, iii) desvalorizar os movimentos delibertação e os nacionalistas africanos de meados do século passado,

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afim de preparar um terreno mais fértil com a geração cheetah, parauma cultura global. Em suma perpetuar uma terceira morte da naçãoafricana, se assumirmos que a primeira morte deu-se aquando daescravatura (com a desnaturalização e morte nalguns casos física), asegunda com a inédita Conferência de Berlin em que a régua e esqua-dro se destruíram nações (e não tribos) e agora a tercerira, que é aaculturação e a negação do EU, pelos tais cheetah.

Dos Referenciais de Objectivação

Castiano aponta dois referenciais ou, até, duas tendências impor-tantes da objectivação, isto é, do estudo dos assuntos africanos (povos,etnia, clãs, culturas, religiões, crenças, etc.): as etnociências e a etnofi-losofia. A tendência unanimista, isto é, generalizadora de certascaracterísticas que se atribuem a certos grupos sociais africanos, é aprática comum, senão o método de trabalho destes referenciais. Maisainda, a tentativa de se olhar para a sociedade africana com «óculoseuropeus», constitui, talvez, a maior fraqueza destas disciplinas cien-tíficas.

O autor explora e questiona de forma bastante metódica e filosó-fica vários aspectos adjacentes a toda a argumentação apresentada:

Até que ponto os estudos africanos são realmente africanos? Porserem feitos por africanos ou por serem sobre África?

Porquê a aberrante distinção entre sociologia e antropologia? A antropologia, que literalmente significa «estudo do homem», seestabelece como o estudo da sociedade do homem atrasado, do africa-no. O próprio termo já deve ser visto numa perspectiva de objectivaros «atrasados». O método adoptado, é ainda mais desolador: há umanotória «pressa» científica em agrupar ou seja, descobrir característi-cas semelhantes, atribuir um nome e rotular os povos africanos.

Os dois approaches assumem-se antagónicos, ao tentar, clara-mente, minimizar, desconsiderar e ridicularizar o atrasado, por umlado e, por outro, de sobrevalorizar, idolatrar, humanizar. Por exem-plo, a análise do reverendo Mbiti sobre as religiões africanas, coloca-as num patamar romântico e humanista exagerado ao descortinar as «suas cinco principais características»: associadas às tradições,

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«eternas» (este termo é meu, para referenciar que uma vez membrodessa religião, nunca te reconverterás), não expansionistas, naturalis-tas, não messiânicas nem apocalípticas.

A tentativa maviosa de inscrever nas ciências naturais positivas oconhecimento local existente e em uso pelas diferentes comunidades,ocorre com deturpações claras de método científico e de objecto deanálise. Castiano questiona o real papel das etnociências e, pior ainda,o real objectivo ao tentar descortinar os conhecimentos, julgadoslatentes pelos etnocientistas, existentes nas comunidades. A célebre«Escola Moçambicana» de Etnomatemática liderada pelo Pro - fessor Paulus Gerdes é também posta em causa.

Até que ponto as ciências positivas, convencionais, ocidentais deuma maneira geral, não se chamam também «etno», tendo em contaque, nalgum instante, surgiram de um certo lugar geográfico e depoisse afirmaram universalmente através de um processo muito longo queinclui, interalia, a satisfação de uma grelha cada vez mais sofisticadade legitimação. Para as ciências convencionais existe uma série de ins-tituições dedicadas (desde universidade, academias de ciências, agên-cias de registo de patentes e etc.) que legitimam o conhecimento e ocatalogam devidamente, enquanto que para as etno-ciências, restam-nos apenas dois métodos: o livro do etno-cientista escrito à lupa daciência ocidental ou, mais importante talvez, a aplicação incondicionalde um certo conhecimento por uma certa comunidade. A questão damedicina tradicional esclarece melhor este problema: um nyanga ébom se tiver muita afluência de pacientes para o consultarem. E, jáagora, será que a tentativa de se formalizar a AMETRAMO (As so -ciação Moçambicana de Médicos Tradicionais) e as práticas de medi-cina tradicional em Moçambique pode ser vista como um esforço(neste caso encomendado por círculos de poder) para legitimá-lausando as instituições da ciência convencional?

A generalização de D’Ambrosio de que «… o programa das etno-ciências não deve se limitar ao estudo do conhecimento em si, mas simalargar-se para o tipo de estudos que contemplem sobretudo a dinâmicacultural na qual esses conhecimentos se desenvolvem e dos quadrosconceptuais internos usados em cada cultura…. », é bastante oportuna.

No referencial da etnofilosofia, Castiano navega através de umnaipe variado de obras e autores de diversas épocas, desde Tempels,

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o fundador, com a sua teoria de «Força Vital», John Mbiti e o tratadosobre as religiões africanas e a filosofia, para terminar num «close--up» sobre o «Struggle for Meaning» de Hountondji. Neste referen-cial, Castiano mostra-se inconformado com esta perspectiva de inscri-ção do conhecimento africano e tranquiliza-se com a crítica-crítica de«Hountondji II», que estabelece uma fundação muito importante queCastiano mais tarde usa para apoiar o seu nóvel paradigma de inter-subjectivação.

A grande contribuição epistemológica deste capítulo, considerocomo sendo a periclitante chamada de atenção para a necessidade deuma análise cuidada do discurso moderno dos clichés globalizantestais como: desenvolvimento; desenvolvimento sustentável; objectivosde desenvolvimento do milénio; pobreza; pobreza absoluta, só paracitar alguns e a forma como eles se enquadram no discurso maisnacional e aglutinante como: unidade nacional, pátria, povo moçambi-cano, etc. Um eminente antropólogo, por sinal missionário, radicadono Niassa há mais de 30 anos, tendo estudado um dos dialectos doEmakhuwa, e tendo traduzido a bíblia, organizado uma colectânea decontos nessa língua (não me recordo dela), teria chegado à conclusãode que, nesse dialecto, o conceito de «riqueza» não existia. Ora aperspectiva moderna de associar o desenvolvimento ao desempenhoeconómico, à acumulação de riqueza e melhoria do índice de desenvol-vimento humano, pode ser ab initius posta em causa por este pequenoclã falante desta língua… e, até que ponto a pulverização sistemáticade estudos sociais direccionados a pequeníssimos grupos da popula-ção, ou seja, a micro-etnografia feita até ao nível das «dez casas» podecontribuir para melhor conhecermos o Povo Moçambicano e sua cul-tura ou, pior ainda, para adicionar um bloco de unidade no edifício daNação Moçambicana?

Dos Referenciais de Subjectivação

O afrocentrismo e o ubuntuismo aqui apresentados como referen-ciais de subjectivação baseiam-se em pressupostos bem diferentes.Enquanto no primeiro, segundo Asante, se «… colocam ideias africanasno centro de qualquer análise que envolve a cultura e o comportamento

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africanos», o segundo é um movimento mais aberto, que acomoda semremorsos valores «estrangeiros» de forma construtiva.

Estes dois referenciais e exactamente na sequência em que sãoanalisados no livro, mostram claramente a sequência lógica do desen-volvimento do conhecimento africano, tendo em conta o passado decolonização e marginalização secular do continente. Não espanta,pois, que o afrocentrismo seja coetâneo do proto-nacionalismo e donacionalismo africanos, fases muito importantes na longa luta pelalibertação de África.

Assim, os referenciais de subjectivação na filosofia africana são,de facto, uma teorização das diferentes fases de tomada de consciênciae de acção para a liberdade do continente. Tão somente.

O contrário, de resto, seria de estranhar. Vladimir Lenine, funda-dor do Estado Soviético, quando indagado, certa vez, porque motivoos fundamentos da filosofia libertária do operariado na sociedadecapitalista, o marxismo, haviam sido desenvolvidos por filósofos «bur-gueses» respondeu mais ou menos nos seguintes termos: «nos palá-cios pensa-se de forma diferente do que nas palhotas», ou seja, odesenvolvimento mais amplo, menos militante, se quisermos, do pen-samento científico, só será possível depois de vencermos a fase dasnecessidades básicas: da fome e da pobreza em geral, da liberdadepolítica e da liberdade intelectual.

Apenas a liberdade política é uma realidade para toda a África,porém, a pobreza é ainda um grande desafio para todos e, em algunspaíses, mesmo a liberdade intelectual não foi conseguida.

Para este quadro dominado por muitas prioridades básicas emÁfrica, o ubuntismo, genuinamente africano que é, tem razões muitomais fortes para se impor:

A fraqueza «fundamental» que Castiano aponta da ausência de«… um texto ou um conjunto de textos fundadores (do ubuntuismo,entenda-se)…» é talvez uma força, uma vantagem pois isso atestapara a sua origem popular, como o são os provérbios, contos, canções,etc. e, portanto, facilmente assimiláveis por todos e mais provavel-mente expressando a sabedoria popular;

Sendo ele originário do movimento de consciência negra, da teo-rização dos propósitos dos movimentos de libertação da África do Sule da influência de intelectuais africanos na diáspora durante o regime

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de apartheid, o ubuntuismo é, na sua essência, uma espécie de Pen ta -têutico de Moisés para os sul-africanos, o Livro das Leis Divinas daBíblia.

Tendo origens claramente tradicionais o ubuntu mostrou-se umateoria muito válida para remendar o tecido social da África do Sulpós-apartheid através do princípio de reconhecimento da culpa indivi-dual e perdão colectivo que caracterizou a Comissão de Verdade eReconciliação dirigida pelo emblemático Arcebispo Desmond Tutu.

Da Intersubjectivação

Pois claro. A escola moçambicana de Filosofia Africana, nestelivro retratada por J.P. Castiano e Severino Ngoenha, sendo ela deestabelecimento mais recente, beneficia-se claramente de todo omanancial teórico secular das diferentes escolas bem como do facto deos seus precursores terem tido protagonismo privilegiado nas princi-pais transformações político-sociais ocorridas no país desde a inde-pendência em 1975. Ela desenvolve uma visão mais pragmática para aFilosofia.

Ngoenha introduz o «paradigma libertário» da Filosofia Afri -cana, caracterizando a existência do Homem africano como um per-manente processo de procura pela liberdade e apelando para umaciência filosófica mais interventiva para o processo de desenvolvi -mento.

Castiano, sem discordar deste pressuposto, especifica as quatroliberdades que a Filosofia Africana deve atingir (o essencialismo ouunanimismo, a religião, debate da validação ou não da oralidade e, porfim, a língua). Em suma, a Filosofia Africana deve-se libertar de serafricana.

Ele vê como único caminho para a Filosofia Africana a criação deespaços de intersubjectivação, através da abertura a um diálogo siste-mático intercultural filosófico.

Desta maneira a escola moçambicana é pela «glocalização» daFilosofia tornando-a, ao mesmo tempo, mais interventiva a nívelsocial e epistemológico. Ela deve se debruçar sobre os problemasactuais de desenvolvimento do continente.

Prefácio 21

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Um Ganho Marginal das Teorias «Castianianas»: um Olhar

às Teorias Globais de Desenvolvimento para o Continente

Africano

Facto 1: Fukuyama declarou o fim da história, assumindo quetodos os grandes debates que haviam surgido ao longo do desenvolvi-mento da sociedade humana haviam se esgotado e marcou o início deuma nova era.

Facto 2: A partir de meados da década 70 do século passado, asprofundas crises económicas, salientando-se a grande crise de endivi-damento acelerado dos países do terceiro mundo, fruto do desenvol-vimento da economia de mercado e da adopção incondicional domodelo de desenvolvimento sócio-económico baseado nas leis domercado, levaram os economistas a pensarem em modelos de recupe-ração (reajustamento económico) únicos e padronizados, para venceras crises.

Facto 3: Em 1982, na Conferência Anual do Banco Mundial,declarou-se a morte de outras quatro categorias: a ideologia (ao seconstatar que havia acabado a afronta que as teorias marxistas eoutras faziam ao capitalismo); o desenvolvimento (no sentido ante-riormente acolhido de que o desenvolvimento era resultado de umaplanificação pelo estado, direccionada ao crescimento económico.Assumiu-se que, dali em diante, o mercado livre seria o único modeloque sobreviveria); a inflação (tendo em conta que as hiper-inflações detrês ou mais dígitos na América Latina e de dois dígitos na maiorparte dos países desenvolvidos haviam sido controlados e trazidospara apenas um dígito graças ao ajuste automático do mercado) e ageografia (com a eliminação de todas as barreiras de deslocação físicae com a aparente convergência a nível dos ideais gerais do mercadoem todo o mundo).

Estes factos justificaram a imposição tácita (e nalguns casos força-da) de um único modelo de desenvolvimento para o mundo, baseadoem indicadores econométricos e independente das diferentes realidadessociais, económicas, políticas e geográficas dos países. O continente

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Africano entrava assim para mais uma longa etapa de objectivação.Aliás, como sempre.

Os modelos padronizados de reajustamento económico das insti-tuições de Bretton Woods mostraram-se pouco mais que inválidospara solucionar qualquer problema de recuperação económica nospaíses em desenvolvimento. Em Moçambique, por exemplo, guarda-mos ainda na memória e são visíveis no dia-a-dia os efeitos da morteditada ao sector industrial de caju e à expressiva indústria ligeira.

Noutros lugares do globo a iconização do mercado falhou ecolapsaram alguns dos símbolos do capital. Nos países de mercadolivre nacionalizaram-se bancos…!

Nos países em desenvolvimento, para se atingirem os objectivosde desenvolvimento do milénio, as economias deverão imprimir umcrescimento económico ininterrupto da ordem dos dois dígitos, coisaque, sinceramente, não irá acontecer em muitos dos países visados.Assim, este conceito de desenvolvimento deve estar desajustado: odesenvolvimento não pode ser analisado apenas como uma empresatecnocrática.

Parafraseando Robert Mugabe que diz que «…o ensino superioré um assunto sério demais para o deixarmos nas mãos dos professoresapenas…», querendo dizer que é necessário abrir as universidades aodiálogo com toda a sociedade para a definição da agenda do ensinosuperior, o conceito de desenvolvimento é sério demais para se redu-zir à perspectiva econométrica de todas as teorias existentes.

O contexto, a história, a cultura, os valores, são categorias que,quando trazidas para o conceito de desenvolvimento, contribuem paraa legitimação e estabilidade, tornando-se em parâmetros importantesna competitividade do país na economia global.

A intersubjectivação da Filosofia Africana aqui proposta porCastiano e a necessidade de ela ser interventiva e resolver os proble-mas actuais com que o continente se depara, de acordo com Ngoenha,são aqui chamados para, sem paixões, ajudar no desenho de um pro-jecto de desenvolvimento real da África… que irá trazer consigo tam-bém, o desenvolvimento da própria FILOSOFIA MUNDIAL.

Prefácio 23

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PARTE I

OBJECTIVAÇÃO E SUBJECTIVAÇÃO

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Já no período mais sombrio da história dos negros, mais concre-tamente durante a escravatura nos Estados Unidos, encontramosreferenciais de objectivação e de subjectivação. Ambos referenciaisprocuram dar conta do lugar do negro-escravo na sociedade norte --americana. Pois, se por um lado temos abolicionistas brancos queprocuram representar os interesses dos escravos na sua luta paraserem livres do sofrimento e da humilhação que o homem branco --esclavagista lhes submetia, encontramos, por outro lado, uma partedos aboli cionistas brancos a fazerem esforço em incluir, nas suasmanifestações anti-esclavagistas, os próprios escravos e ex-escravos«fugidos». Os escravos e ex-escravos são incorporados nas manifesta-ções organizadas pelos abolicionistas num esforço de emprestarautenticidade às reivindicações nas quais o escravo é o objecto e as suascondições de vida são objectivadas em discursos elaborados.

Se, por um lado, os abolicionistas brancos em inúmeras reuniõese manifestações repudiam as condições desumanas sob as quais osnegros escravos vindos de África vivem e se solidarizam com a «causanegra», por outro lado, esses homens e mulheres que sofrem outinham sofrido na sua alma e pele a humilhação de serem escravos,numa sociedade em que todas as outras cores são homens livres,fazem um esforço teórico em serem sujeitos na elaboração de um dis-curso cuja legitimação provinha da pretensa autenticidade original depessoas sofredoras. Trata-se, portanto, de esforços de subjectivação quehomens e mulheres fazem, mas somente à medida que o espaço paracontarem as suas heroicidades lhes é dado e controlado pelo abolicio-nista. O discurso do esforço de subjectivação, nestas circunstâncias de

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controlo, deve obedecer às regras e à ordem preestabelecidas. Nãorestam dúvidas que os escravos ou ex-escravos convidados para fala-rem nas manifestações dos abolicionistas apresentavam-se comoautênticos, como a prova, como sujeitos das narrativas sobre as condi-ções em que vivem.

Não restam dúvidas que as condições de vida dos escravos sãopés simas. Eles são submetidos, nesta altura, às condições mais mise-ráveis e desumanas que a mente humana pudera um dia imaginar (eque «não vamos esquecer o tempo que passou»), como nos conta oescravo Frederick Douglass(1). Segundo ele os escravos trabalhamdurante todo o dia nas plantações, são chicoteados várias vezes semrazão plausível. No Verão e no Inverno, não interessa, andam quasesempre descalços. Eles possuem, para todo o ano, uma calça de linho,

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(1) Frederick Douglass (1818-1895) é um escravo negro nascido em Tuckahoe (Ma -ry land) nos Estados Unidos. A mãe, Harriet Baley, é também uma escrava per-tencente ao Capitão Aaron Anthony. Nunca conhecera o seu verdadeiro pai.Segundo ele, este teria sido «provavelmente um white man” ou a sua mãe nuncaquisera revelar quem era o seu pai. Frederick desconfia, no entanto que fosse opró prio capitão. Entretanto, como é ‘norma’ nesses dias, os filhos dos escravosassumem o nome do seu senhor. Assim, o nome completo dele era FrederickAugustus Washington Bailey, nome dado pela sua mãe e que mais tarde ele corta-ra o apelido Bailey mudando para Douglass. Em 1825, com apenas sete anos,Frederick foi vendido a um novo senhor (Hugh Ault) como escravo doméstico.Aqui teve a sorte de ser ensinado o alfabeto pela esposa do seu novo dono (o quedepois foi interrompido abruptamente porque, segundo o seu dono, «if you teachthat nigger how to read, there would be no keeping him. It would forever unfit him to bea slave. He would at once become unmanageable, and of no value to his master. As tohimself, it could do him no good, but great deal of harm. It would make him discontentedand unhappy» [Douglass 1982,78]). Ele conta que, depois do alfabeto, aprende aler e a escrever com os miúdos brancos alunos a quem ele aliciava para tal. En fu -recido por ele ter aprendido a ler e a escrever, o seu dono manda-lhe para as plan -ta ções na Filadélfia. Após algumas tentativas falhadas, Frederick consegueescapar, em 1838, para o norte (Nova York), onde, já como um homem livre,torna-se um membro activo de um grupo abolicionista dos negros da escravatu-ra. Transformou-se num leitor muito activo para a Massachusetts Anti-SlaverySociety, em nome da qual viajou para muitos estados e para a Inglaterra para falarsobre o abolicionismo. Escreve a sua autobiografia intitulada Narrative of the Lifeof Frederick Douglass, an American Slave e, em 1847, começa uma carreira de jor-nalismo editando e publicando os seus próprios jornais. Na sua autobiografia, eleclassifica o facto de ter aprendido a ler e a escrever como sendo o início de uma«caminhada da escravatura para a liberdade».

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uma camisa e um casaco leve que pouco serve para se protegerem dofrio. Eles dormem no chão. A sua alimentação é constituída quasesempre por mush (grãos de milho fervido) e poucas vezes por carne.Os escravos estão constantemente sob o perigo de serem vendidos anovos donos, dos quais tomam o seu «novo» nome, dado que este éum sinal de pertença ao seu dono. O consolo encontram nas cançõesdo período nocturno, muitas das quais com letras de duplo sentido e,por trás das quais, expressam o seu sonho de liberdade. As suasangústias são expressas em narrativas orais e dramáticas, uma vez quenão sabem ler e nem escrever (Douglass 1982, 71 pp.).

Para o público, no entanto, são os brancos abolicionistas que, porsolidariedade, articulam de forma escrita e oral, as dramáticas e humi-lhantes condições em que os negros escravos vivem. Os negros escra-vos, as suas condições de vida, a sua desumanização são objecto nosencontros e nos escritos dos brancos abolicionistas e que, por issomesmo, são considerados «progressistas». Entretanto, os própriosabolicionistas brancos, cedo se dão conta que faltam as vozes internasdos próprios escravos, e que faltam também testemunhos vivos dospróprios escravos, para complementar às suas vozes e escritos.

Na óptica dos abolicionistas, os negros deveriam ser incorpora-dos nestes encontros e manifestações, já que a sua presença ao vivodaria «credibilidade» e autenticidade aos seus esforços de lutaremcontra a escravatura. W. M. Lloyd Garrison — um abolicionista queescrevera o prefácio do Narrative — conta que, quando participou naConvenção Anti-Escravatura em Agosto de 1841 em Nantucket, nãopôde esconder a sua «alegria» ao saber que Frederick Douglass, empessoa, iria prestar um testemunho sobre a escravatura:

«(Douglass) era uma pessoa desconhecida para quase todos osmembros daquela agremiação; mas, tendo escapado recentementeda sua casa-prisão no Sul, sentindo a sua excitante curiosidade paraperceber os princípios e as medidas do abolicionismo — do qual,enquanto ainda escravo, ele havia ouvido vagamente falar — ele foiinduzido para participar na convenção.» (Cfr. Douglass 1982,33)

A participação em carne e osso dos próprios escravos nas con-venções e manifestações organizadas pelos brancos abolicionistas

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empresta uma tónica realista ao movimento, tanto mais que os parti-cipantes, muitas vezes, se fazem em lágrimas ao escutar os eloquentese estarrecedores relatos sobre o tratamento desumano a que o negro --escravo está submetido por parte do seu «senhor» branco. Garrisonconfessa:

«Nunca esquecerei a sua [de Douglass] primeira intervenção naconvenção — a emoção extraordinária que provocou na minhaalma — a impressão poderosa que criou num auditório muitocheio, completamente levado pela surpresa — os aplausos que seseguiram do início até ao fim da sua intervenção. Penso quenunca odiei a escravatura tão intensamente como naquele mo -men to.» (Cfr. Douglass 1982,34)

Escutar as histórias da escravatura pela boca do próprio ex-escra-vo fugido era algo «especial» e muito mais convincente. A manifesta-ção seria também uma espécie de palco de representação, um espaço deapresentação de discursos de objectivação e de subjectivação.

Neste processo, os próprios escravos tomam consciência de quedeveriam ser eles próprios a contar ao mundo da época e ao posteriorsobre o seu sofrimento, e não outros. Até que isso não sucedesse, oabolicionismo liderado pelos brancos continuaria a correr o risco deser pretty much the same (Douglass 1982,8). Havia que incluir umanarra tiva crítica a partir dos próprios afro-americanos para não con -tinuar a ser a «mesma coisa». Assim se explica o surgimento, entre1820 e 1860, de narrativas escritas pelos ex-escravos e publicadas emdiversas edições americanas2, tendo estas sido traduzidas para outraslínguas como o alemão, o céltico, etc. São narrativas que dão contadesta instituição peculiar americana, a escravatura, na sua complexida-de, nos seus efeitos físicos e psicológicos e exigem, de forma inequívo-ca, a abolição da tirania. O padrão das narrativas dos ex-escravos équase comum: começa-se por descrever as atrocidades da escravatura,

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(2) Refiro-me especialmente às obras The Interesting Narrative of the Life of OlaudahEquino or Gustavus Vassa, the African publicada em 1789, A Narrative of Moses Roper’sAdventures and Escape from American Slavery publicada em 1837, The Narrative ofWilliam Wells Brown e The Narrative of Solomon Northup estas últimas publicadasem 1847. Estas narrativas foram vendidas aos milhares, ainda naquela altura.

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logo descreve-se a «longa e heróica marcha» da fuga dos escravospara a liberdade e, finalmente, explica-se a natural aderência e dedica-ção aos princípios e objectivos do abolicionismo.

Os relatos que o escravo Frederick Douglass e outros escrevem,indicam que os negros americanos tomam consciência de si no senti-do de que não devem continuar a ser meros objectos das acções liberta-doras dos brancos abolicionistas; em outras palavras, não podemcontinuar eternamente a ser objectivados se quisessem ser livres àsemelhança das outras raças vivendo nas Américas. Eles próprios,numa fase primária, prestam suas declarações oralmente (como «tes-temunhos» vivos) e depois, constroem a sua própria narrativa crítica,ou seja, passam a ser sujeitos na construção do discurso sobre a suacondição de existência social e política como escravos.

Mais uma vez, reparamos que de um esforço de objectivação pas-sou-se para um esforço de subjectivação da condição material e inte-lectual dos afro-americanos. É esta a tendência geral na forma comoos africanos entram na chamada História Universal? E será que asub jectivação é o fim? Como é que a filosofia africana, como uma dis-ciplina que pretende resumir o tempo no conceito (emprestando adefinição hegeliana) ou, se quisermos, uma filosofia que o seu trabalhoé o de criar conceitos, como pretendem Deleuze e Guatari, se deuconta destes referenciais narrativos na sua evolução e que lugar esta-tutário ocupam hoje estes referenciais de objectivação e de subjectiva-ção? São algumas perguntas que me inquietam ao longo deste livro.

Ainda para lá da história no tempo colonial, desta vez o «palco»não é dos abolicionistas americanos mas sim Moçambique, deparamo --nos com o mesmo cenário de objectivação sobre como os nativos afri-canos vivem e pensam, pelos europeus, desta feita missionários. Umexemplo bastará.

E vamos pegar o exemplo de Henri-Alexandre Junod, um missio-nário suíço que estuda e divulga a mensagem da missão suíça emMoçambique e na África Austral nos séculos XIX e XX. Junod não ésomente missionário como também interessa-se pelas línguas locais,pela geografia, pela botânica e fauna e, enfim, pelos hábitos e costumesdos povos desta região austral africana. Junod tem um particular pra-zer em coleccionar borboletas e plantas da região outrora conhecida

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como Delagoa Bay (hoje Maputo, depois de ter sido Lourenço Mar -ques). Hoje ele é conhecido como tendo «descoberto» muitas plantas«novas» durante os anos que viveu nesta região. Ele é também reco-nhecido como um dos pioneiros da exploração botânica da região daÁfrica Austral, chegando a corresponder-se com muitos botânicosfamosos da sua época. (Harries 2007,150).

A dedicação de Junod pelas espécies das plantas faz-lhe merecerser perpetuado na denominação de uma boa parte delas. Tal é o casodo género Junodia Praxis e é também o caso de cerca de trinta plantasdiferentes, incluindo a Gladiolus Junodi. Na floresta do que é hoje aMarracuene é atribuído a Junod ter descoberto «lagartas raras e umgrande número de escaravelhos da madeira» e uma «variedade deárvores e arbustos». Conta-se que foram necessários somente seteanos para Junod poder reunir cerca de 184 espécies diferentes das 200espécies de borboletas, mais de metade da totalidade das espécies quena altura se crê que a África Austral poderia ter. Ele dá nome a 479es pécies de escaravelhos, entre os quais o Psammodes Junodi, gafanho-tos e louva-a-deus. Esta actividade teria sido tão intensa que muitosinsectos e plantas ostentam hoje o nome de Junod, o da sua esposa, odas muitas estações missionárias da Missão Suíça, etc.

Enquanto o museu de História Natural de Neuchâtel lhe enviafrascos, instrumentos de dissecação, cianeto e redes, Junod fornece devolta a este museu uma imensa variedade de animais, insectos, mo -luscos, em troca de «alguma remuneração» (Harries 2007,154). Nosre gistos do museu nota-se que Junod, somente em 1911, teria envia -do uma preciosa colecção de Hemiptera e, em 1912, 187 insectos dogé nero Orthoptera e Hymanoptera. Conchas do mar, ovos e ninhos,ouriços-do-mar, cobras, lagartos, rãs, um crocodilo e vários mamífe -ros tam bém fizeram parte da encomenda enviada por Junod paraNeuchâtel.

Como seria possível que um só homem pudesse ser capaz derecolher tantos ouriços, ovos, ninhos e outros animais e plantas por aífora? A resposta é muito simples: Junod não podia prescindir da ajudae dos bons préstimos dos nativos que vivem na região e que a conhe-cem muito bem. Estes prestam mais do que «ajuda» ao nosso cientis-ta. Conta-se que, por exemplo, num belo dia de 1891, «um dosassistentes trouxe-lhe uma magnífica borboleta Swallowtail» e que

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este «tinha apanhado a borboleta na floresta de Morakwene [hojeMarracuene]»; Junod rapidamente mandou-a para a África do Sulpara a sua identificação e classificação. Esta borboleta foi baptizadapelo nome Papilio Junodi, conhecida hoje por Swordtail de Junod(Harries 2007,152 p.). Conta-se ainda que em Rikatla ele tem mais difi-culdades em descobrir espécies raras, mas em dois anos, ele treina«nativos inteligentes» que lhe auxiliam a reconhecer insectos exóti-cos e a descobrir os seus habitats. Entretanto os «nativos inteligentes»não eram colectores cegos. Eles possuem os seus próprios nomespelos quais denominam os insectos e a sua própria forma de classifica-ção dos escaravelhos e outros animais. E, o que parece ser maisimportante para Junod, os nativos possuem uma certa «noção deordem» nesta classificação dos animais. Junod fica particularmentefascinado com a semelhança da classificação nativa com a europeia emgéneros e espécies de animais e plantas.

Vejamos como nos conta Harries:

«Junod descobriu que os indígenas tinham muito que ensinar aoscientistas europeus sobre a utilidade das plantas. Em diversasocasiões ele convidou os nativos para o seu museu onde, em trocade uma moeda, eles lhe forneciam os nomes locais e os usos dasplantas. (…) Junod reconheceu que os adivinhos (aqueles que pre-diziam o futuro), e gobelas (os habilitados em fazer exorcismosaos espíritos maus) possuíam um conhecimento complexo dosanimais e plantas usados no desenrolar das suas profissões. Junodadmirava especialmente as mulheres velhas e os nangas, oucurandeiros especialistas, cujo conhecimento das propriedadesmedicinais, nutricionais e mágicas das plantas constitui umaforma rude de classificação.» (Harries 2007,156)

Até hoje existe no museu etnográfico em Neuchâtel uma «farma-copeia ronga»! Até hoje a glória de ser «sábio» e «cientista» cabe aJunod: quem se interessará pelo papel dos numerosos informantes,adivinhos, gobelas, «nativos inteligentes»? Serão eles também sujei-tos do conhecimento ou simplesmente intermediários, mesmo saben-do que informaram muito bem sobre os escaravelhos da sua terra?Hoje não conhecemos os nomes dos «nativos inteligentes» e nem

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sabemos exactamente em que cada um deles teria contribuído para aelaboração teórica e para as descobertas do seu grande mestre e cien-tista Junod. Como vimos acima, as referências a estes homens emulheres são sempre breves, sem nomes. Sabe-se apenas que são«informantes» do grande mestre.

Se nos permitirem uma breve comparação, Livingstone tambémé considerado pela historiografia eurocêntrica como o grande conhe-cedor do vale do rio Zambeze que até hoje, em sua homenagem, existeuma cidade na República da Zâmbia que ostenta o seu nome. Ele teriaoferecido o espólio (em termos de conhecimento e objectos materiais)à rainha da Inglaterra. No entanto, o que não é dito, é que ele andavacom cerca de cem «informadores» e «ajudantes» locais que lhe iamalertando sobre os perigos, mostram caminhos da sua marcha e aju-dam a identificar coisas valiosas do vale. Estes informantes ficam anó-nimos na História. Se existem alguns relatos com os seus nomes noslivros de história, estes estão nas notas de rodapé.

Regressando a Junod, é sabido que ele dedicara muito do seutalento a escrever sobre os usos e costumes dos bantu. Como elerecolhia informações sobre esta matéria? Encontramos aqui, denovo, o mesmo método de usar informantes. José F. Feliciano, que em1996 prefacia o livro de Junod, classifica o método de trabalho deJunod por «antropologia social moderna», isto é, trabalho de campoprolongado por vários meses, observação participante e com recur-so a «informadores locais». Junod, a propósito, escreve: «os meusdocumentos não são livros: são testemunhas vivas, os indígenas...».Os informadores principais, segundo o próprio mestre Junod(1996,23pp.), são três: o primeiro é «um ronga de Nondrwana» cha-mado por Spoon e que domina a «arte de deitar os ossinhos», temimaginação muito viva e um sentido mitológico mais desenvolvidoque qualquer um dos outros informadores. O segundo informador éTobana, uma personagem importante no clã Mpfumu. Este possuiconhecimentos profundos dos usos da corte e do tribunal. Pela bocadeste Junod informa-se sobre o «sistema tribal dos Rongas». O ter-ceiro é um homem de nome Mankhelu, filho mais velho de Xi lu -vana, antigo chefe do clã Ncuna. É ao mesmo tempo general doexército, médico principal do curral real, um dos conselheiros dorei, adivinho convicto, sacerdote da fa mília, que domina, portanto,

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«as concepções obscuras do espírito bantu». Mankhelu dominatambém a «técnica de deitar os ossinhos» e é bom «fazedor de chuvas».

Para além desses três «informadores» de qualidade, Junod usa osfiéis da missão de Xiluvana para os seus estudos. Como conhece bema língua, Junod pôde compreender a maior parte das coisas que lhediziam. Junod diz que uma das vantagens que tem com os fiéis assentano facto de estes terem sido «pagãos» antes de terem sido convertidospara a igreja. Daí que estes adultos haviam praticado os ritos sobre osquais são interrogados: «podiam descrevê-los melhor do que ospagãos sem educação, pois encontravam-se já a uma certa distância devida antiga e podiam julgá-la de maneira mais independente», ajuízaJunod (1996,22).

Entre os fiéis da missão é Viguet (nome de um professor de teo-logia de Lausannne que o «velho» recebera no baptismo), que forachefe duma aldeia «Tsonga» (nome de «tribo» do sul da África que opróprio Junod «inventara»), quem dá informações sobre os mistériosda vida familiar e sobre as cerimónias de iniciação. Há ainda outrosvelhos informantes como Maewew (poeta), Simeão Gana, Mbhoza,etc. Os alunos também são tomados como fontes de informação: todasas terças-feiras Junod organiza uma reunião «durante a qual um delesdevia contar uma história, descrever um costume, ou então contar umconto indígena.» Junod conseguiu, através destas «reuniões», colec-cionar mais de cem contos locais.

Aqui também as mesmas perguntas se colocam: o saber do velhoViguet (do qual hoje não se sabe o seu nome original), os poemas deMaewew, os saberes do Simeão Gana, Mbhoza, Makhelo, Tobana emais outros, onde estarão hoje fossilizados? Claro que por trás dasabedoria de Junod e divulgados pelos inúmeros livros de Junod. O saber destes informantes está, de certeza, por aí espalhado oucomo notas de rodapé. Esses velhos e jovens foram objectivados, ouseja, tornados objectos embora na sua condição de sujeitos do conheci-mento. Dito doutra forma, eles nunca foram apresentados comosujeitos do seu saber sendo-lhes reservado o lugar de apareceremcomo ilustrações (em forma de fotos), como «provas» da autenticida-de das informações contidas nos Usos e Costumes e noutros escritosdivulgados por antropólogos missionários e coloniais. Por mais boa

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intenção que Junod tivesse (e teve) essas figuras dos «nossos» sábiossão testemunhas da existência de uma sociedade primitiva atrasada(ainda fora da história do espírito humano, como diria Hegel) para láda Europa, sociedade essa que interessava estudar, conhecer, enfim,objectivá-la. O termo objectivá-la é empregue aqui em dois sentidos:no primeiro, tornar a sociedade primitiva objecto de estudo; nosegundo, é que mesmo ela não existindo, tinha que ser construídatornando-a real, objectiva.

No livro Africa Unscheined o economista africano Ayittey defendeduas teses cuja novidade não reside tanto no seu conteúdo mas sim,quanto a mim, na constatação que ele faz da existência de uma nova«classe» de africanos a quem ele deposita a esperança de serem sujeitosdo desenvolvimento em África. Ele chama essa nova classe por cheetahgeneration (Ayittey 2004, XIX). Segundo a primeira tese de Ayittey, osproblemas africanos devem ser resolvidos por eles próprios e essesdevem deixar de culpar constantemente ao Ocidente pela existênciadesses problemas no seu continente. De facto, para Ayittey, não sejustifica continuarmos hoje a olhar para os erros que nós própriossomos responsáveis como sendo ainda efeitos da escravatura, do colo-nialismo ou do neocolonialismo. Continuarmos a apresentar a Áfricacomo vítima de um conluio colonial e neocolonial é praticar uma«ortodoxia externalista», diz ele. Esta ortodoxia já perdeu a sua legi-timidade e validade como um discurso a que se deve prestar algumaatenção.

Na sua segunda tese Ayittey repara que a África deve ser desen-volvida pelos africanos usando o seu próprio modelo de desenvolvi-mento, e não um modelo copiado dos Estados Unidos, nem da Rússiae nem de um outro país qualquer.

Embora todo o seu livro procure demonstrar a classe camponesaafricana e as suas formas de vida rural como a fonte a partir da qual onovo modelo africano de desenvolvimento deverá ser reinventado,Ayittey constata que nas zonas urbanas a geração dos cheetah é muitodiferente da geração libertadora. Ele escreve que esta nova geraçãonão tem nenhuma relação com o velho paradigma colonial, não seinteressa muito que lhe seja sempre recordado as condições da escra-vatura pelas quais os seus antepassados passaram e muito pouco seinteressa pelo que os nacionalistas pós-coloniais como NKrumah,

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Kenyatta ou Kaunda projectaram para a África. Os cheetah têm a certeza de uma coisa: que os líderes actuais são corruptos e que ossistemas de governação que estes líderes montaram em África violamsistematicamente os direitos humanos. Como nasceram já numa Áfri-ca independente, não têm interesse em ser permanentemente recorda-dos que houve um sistema colonial ou mesmo escravatura em África.De que lhes servirá isso afinal? Por isso não entram no «jogo» do dis-curso que pressupõe haver um conluio dos antigos colonialistas eimperialistas para, seja como for, prejudicarem o desenvolvimento docontinente negro. Não têm tempo e nem energias para pensarem emtermos de teorias conspirativas contra África.

Esta mesma geração não se senta e espera que o Ocidente façaalgo para e por ela. Também não fica sentada à espera que o Go ver -no-do-dia faça algo por eles. Não esperam que o emprego lhes sejadado pelo Governo, por uma ONG ou ainda caia do céu. Lançam-sediariamente à rua para começarem um pequeno negócio, apertam-sediariamente nas ruas da cidade para conseguirem vender qualquercoisa, lutam para estudarem nas escolas nocturnas e formar-se nasfaculdades, preocupam-se por ensinar às pessoas como devem sobrevi-ver neste «mundo selvagem». Na verdade eles nasceram na selvaonde cada um luta diariamente para sobreviver. É uma geração deempreendedores que vêm o seu futuro não hipotecado na política, senãonas suas próprias mãos e no trabalho árduo. Estes são os sujeitos doseu próprio destino. Não permitem que sejam objectivados nos doissentidos: que alguém escreva a sua história de momento por eles eque alguém mantenha o seu futuro refém do passado heróico doslibertadores.

O mais importante é que estes mobilizam a tradição ou a moder-nidade somente à medida que uma ou outra oferecem um leque depossibilidades de progresso e sobrevivência. O saber e o seu uso, paraeles, só têm sentido se lhes coloca no ideal do progresso.

O erro da hippo generation — assim chama os cheetah à geraçãodos «velhos» libertadores que hoje se transformou em capitalistas,traindo eles os seus propósitos iniciais — é não ter a coragem de con-fiar nos mais jovens a liderança das nações africanas. Por causa dodiscernimento que esta geração tem em usar as oportunidades parasobreviver, porque de facto estes não olham os meios para atingirem

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os seus fins, a geração dos hippo teme que não tenham bebido suficiente os valores nacionalistas que orientaram o processo daslutas de libertação.

Essa geração nova dos cheetah representa também um novo esfor-ço de subjectivação. Paradoxalmente, não é nesta geração e nos seusideais que a filosofia profissional africana busca a sua inspiração paraas suas lucubrações intelectuais. Os olhos da filosofia africana estãovirados, pelo contrário, ou no passado tradicional tentando reformu-lá-lo em função do presente, ou no ocidente onde pensa encontrar osmodelos para o pensar filosófico e o seu ensino formal. Com este livroqueremos celebrar o esforço de intersubjectivação como uma novaperspectiva do que-fazer filosófico que está no interior da própria filo-sofia africana. A procura deste esforço de intersubjectivação é feita apartir do interior dos próprios esforços de objectivação e de subjecti-vação. Estes últimos são também aqui celebrados como referenciaisda filosofia profissional africana na sua marcha de auto-inscrição nahistória universal do pensamento filosófico. Ao fazer isto, pensamosprestar a estes esforços de criação de uma significação simbólica afri-cana (objectivação, subjectivação e intersubjectivação) a devida home-nagem que merecem na academia africana. É um lugar que estesreferenciais devem ocupar para além das linhas divisórias conceptuaise das diversas críticas que eles têm sofrido ao longo dos tempos e porparte de diversos pensadores.

A tendência na elaboração intelectual-académica africana, pelomenos no que diz respeito às ciências sociais e humanas, e à filosofiaem particular, sobre a sua condição de existência na história do pen-samento, nos últimos três séculos, é caracterizada por tentar conferirautoridade simbólica ao imaginário colectivo africano. O que estevesempre em causa é, no fundo, a busca da liberdade e o reconhecimentodo sujeito africano como actor social e da sua própria história; ou seja,esteve sempre em jogo a legitimidade do filósofo africano em serquem elabora o discurso sobre a significação simbólica que dê contado reconhecimento dos africanos como actores da sua história e dasua identidade como africanos. Este livro dá conta de como este esfor-ço pela captação do espírito africano no contexto geral da históriauniversal, esforço este feito pelos africanos e pelos pensadores euro-peus em África, jogou aos africanos ora como simplesmente objectos

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de estudo, ora destacou-os como sendo sujeitos da sua própria histó-ria e suas próprias formas de pensar. A pretensão subjacente do livrovai, porém, mais longe: mostrar que ao mesmo tempo que se faz esteesforço, há simultaneamente um esforço de intersubjectivação queacompanha aqueles. Assim, a intersubjectivação como referencial nãodeve ser entendida como um ponto de chegada da filosofia profissio-nal africana. Ela esteve sempre intrínseca. O que este livro faz érecontar a filosofia profissional africana, a partir da perspectiva dosesforços de intersubjectivação.

No centro das reflexões da filosofia africana sobre a sua condi-ção de existência na história e na época contemporânea, ou seja, no centro das diferentes formas das tentativas da «auto-inscrição»(Mbembe 2001) dos intelectuais africanos na história universal, re -pou sam três eventos-eixo: a escravidão, o colonialismo e a globaliza-ção. Nestes eventos-eixo o intelectual africano — mesmo que, nestasduas últimas entre como membro da elite — participa como umaespécie de porta-voz da condição dos africanos na história da huma-nidade como escravos, colonizados e globalizados. É, assim, naturalque a preocupação fundamental e o eixo do que-fazer filosófico (orale escrito) seja a fundamentação da liberdade, ou seja, o «paradigmalibertário», como sustenta Ngoenha (2005).

Em relação a estes três eventos-eixo nasceram duas tendênciasacadémicas referenciais (quasi paradigmáticas) na filosofia profissionalafricana. A primeira tendência referencial da auto-inscrição africanana história do pensamento filosófico, que chamamos de objectivação,nasce da ideia de que, como consequência da escravidão, da coloniza-ção e da globalização, o Eu-africano se alienou a si mesmo a ponto dese tornar estranho ao seu próprio corpo. O discurso sobre a condiçãoda sua própria existência, o discurso sobre sua identidade enquantoafricano, é feito, entende-se, a partir do lugar que a história ‘univer-sal’, elaborada predominantemente numa perspectiva do Ocidente, oreserva. É essa a base do eurocentrismo no qual o africano sofre umduplo processo de objectivação: por um lado, como objecto da História(e não sujeito), construído pela historiografia moderna; por outro, pelaretomada desse mesmo discurso por parte das elites académicas afri -canas. O Ocidente, nesta historiografia, apresenta-se como uma posi-ção de localização histórica e científica, como o centro referencial do

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saber tecnocientífico e axiológico. O centro epistémico é ocupadosucessivamente pelo senhor dos escravos, pelo colonizador e final-mente pelo globalizador. Este sujeito apropria-se de todas as -referên-cias simbólicas e tecnocientíficas, incluindo as que encontrara nascolónias, reelaborando-as e disseminando-as de acordo com o lugar eo estatuto que reserva ao ‘outro’ africano, como escravo, colonizado eglobalizado.

A segunda forma auto-referencial da filosofia profissional africa-na tenta contrapor-se à criação eurocentrista e externa do discursosobre a condição de existência do africano na «história universal»,refugiando-se num discurso do imaginário tradicional, de nostalgiaem relação aos antepassados e de idolatria às chamadas tradições afri-canas. Mais do que isso, esta forma auto-referencial busca e rebusca asua legitimidade nessas tradições a partir das quais prefere e escolheelaborar as suas significações e fixar identidades homogeneizantes.Trata-se, desta feita, do referencial da subjectivação. Este referencialtenta recentrar o sujeito africano perante a sua história e a si mesmo.O afrocentrismo e o ubuntuismo apresentam-se neste livro como osesforços de subjectivação ou seja de recuperação das tradições e dosvalores africanos ‘depositados’ nas comunidades africanas tentandoconstruir e, por vezes, reconstruir um discurso ‘autenticamente’ afri-cano.

No entanto, por mais paradoxal que pareça, mas nem por issosurpreendente, ambas tendências referenciais (objectivação e subjec-tivação) na filosofia profissional africana representam, no fundo ecomo dissemos acima, um esforço de negação do estatuto de inferio-ridade, de periferia e de subalternização do negro-africano na histó-ria; ao mesmo tempo é um esforço de afirmação que procura revelara necessidade assim como o imperativo da subjectivação do pensa-mento a partir dos imaginários tradicionais locais. Os dois referen-ciais da filosofia africana representam ainda, socorrendo-me nocamaronês Eboussi-Boulaga (1977), a crise do Muntu em identifi -car-se com a sua própria História (alienação) e a desconfiança na suaprópria capacidade de produção de um saber relevante ao seu meio.Representam a oscilação entre a objectivação e a subjectivação doMuntu perante as dinâmicas da transformação. A exaltação domoderno e do tradicional representa a expressão da crise interna da

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identidade, uma crise ontológica e epistemológica do Ser africano3

(Mamdani 1997,152).Para mim, filosofia é diálogo argumentativo. Ou seja, filosofia só

ganha sentido e significado se ela for elaborada num contexto de umdiálogo intersubjectivo. Entretanto, para que a filosofia possa evoluir,ela, entanto que processo, deve ser efectivada na forma de diálogoentre sujeitos; esta interacção entre os sujeitos ou diálogo deve ser nabase tanto de textos escritos como orais. No caso de textos orais,estes devem ser transcritos para incluí-los no diálogo argumentativo.Mas a existência de textos escritos não é uma razão suficiente paraexcluir os textos orais do debate argumentativo. Pelo contrário, ostextos que deveríamos puxar para o diálogo argumentativo devemser, como única condição ou critério, textos críticos. Porque filosofia é,pela sua natureza, um diálogo crítico intersubjectivo. Vejo os textosfilosóficos como sendo o resultado de uma apropriação individual, sis-tematizada mas sobretudo crítica dos diferentes argumentos expres-sos no espaço de diálogo. Assim, para mim, o texto é filosófico se,desde o ponto do seu autor, esse mesmo texto (escrito ou oral) tratade questões consideradas como sendo «fundamentais» para avançar omesmo diálogo e, desde o ponto de vista dos outros participantes nodebate, o mesmo texto é visto como tratando questões fundamentaispara a análise dos fenómenos, processos ou interpretações em causa.O que estou a sublinhar é que um texto filosófico é sempre resultadoda intencionalidade do autor em escrevê-lo como tal, mas também elese torna realmente filosófico quando os destinatários, os contra --arguentes, leitores ou ouvintes, o aceitam como filosófico ou têm aimpressão que está «cheio de sabedoria» ou ainda que ele «trata dequestões fundamentais» da vida.

O texto filosófico, para além de reconhecer ou tomar conta dosoutros textos filosóficos escritos e orais sobre o mesmo assunto, deve

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(3) Sobre a crise ontológica e epistemológica Mamdani (1997,52) escreve: «Onto logi callywe need to ask: What is Africa? A multiplicity of ‘races’? Who is an African? A ra cial being?(...) If to transcend the legacy of colonialism this racial identity and to humanize fully con-struct of ‘African’, and if this is not to turn into mere posture, do we not need to ask: What isthe historical process that makes of us, Africans. The ontological question is tied to that ofepistemology. To do African Studies is to be profoundly subversive of the tradition of Africanstudies. It is to redefine the study of Africa as a study of ourselves in a post-apartheid world».

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também reflectir uma atitude crítica perante o assunto em causa. E, para mim, uma atitude crítica é aquela que vê/interpreta a realida-de não como algo absoluto ou como uma necessidade, mas como con-tingência, ou seja, uma alternativa da sua forma de aparição (doalemão: Erscheinung) perante as nossas categorias de entendimento.Daí resulta que a essência de uma crítica filosófica é a de apresentarsempre alternativas de interpretação, de discursos sobre uma deter-minada realidade social, cultural, política e económica. Se eu quiserser resumido, a filosofia tem, por um lado, um momento contemplati-vo hegeliano de Zeitgeist (espírito da época), ou seja, o «resumo dotempo (histórico) no pensamento» e, por outro lado, um momento crí-tico marxiano de ímpeto para «transformar a sociedade». Qualquerdestes momentos é igualmente importante para o crescimento dodebate argumentativo filosófico. Não é por acaso que Marx, criticandoa filosofia de Hegel, por ele considerada «contemplativa», proclamaque die Philosophen haben die Welt nur... interpretiert, es kommt drauf an,sie zu verändern, ou seja, os filosófos, até agora, limitaram-se a inter-pretar o mundo, o desafio agora é transformá-lo. Marx reconhece,sem dúvida, que para que a filosofia possa contribuir no processo daconstrução de um mundo melhor, a contribuição da própria filosofiadeve ser feita após uma profunda reflexão e interpretação da singula-ridade do «seu» tempo histórico; dos «tempos da filosofia», diriaNgoenha.

Pelo que foi sugerido anteriormente resulta que aquele que tenhaa pretensão de escrever um texto filosófico pesa sobre ele uma triplaresponsabilidade. Em primeiro lugar ele tem a responsabilidade teóri-ca de escolher os assuntos que pretende pôr ao debate e daí reflectirsobre o que foi e é dito por colegas filósofos seus sobre o mesmoassunto; esta é uma responsabilidade que se impõe ao autor obrigan-do-o a entrar num diálogo argumentativo com os outros de forma fiel,honesta e justa em relação aos argumentos esgrimidos pelos outros.Ele deve ter a certeza máxima que compreendeu os argumentos dooutro para poder, de seguida, expor os seus. Em segundo lugar, oautor do texto filosófico deve ter a responsabilidade de clarificar o seuponto de vista e argumentar a favor dele usando os recursos intelec-tuais e culturais ao seu alcance; os seus pontos de vista devem seracerca das questões que ele escolher como sendo fundamentais para o

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debate com os outros. O filósofo deve ter a certeza sobre os pressu-postos básicos da sua argumentação e clarificá-los no texto escrito ouoral. Em terceiro lugar, o autor do texto filosófico tem a responsabili-dade social no sentido de que, o que ele escreve ou diz, deve aparecercomo sendo relevante para os contemporâneos e para as futuras gera-ções; acho que quando um autor se põe a escrever um texto que pre-tende ser filosófico tem sempre um público a sua frente com o qualdialoga. Na maior parte, o público são outros académicos e, muitasvezes, os seus próprios estudantes. Os textos que resultaram no livroDiscurso Filosófico da Modernidade de Habermas, os textos que fazemparte do livro African Religions de Mbiti, a própria obra da Filosofiada História, Fenomenologia do Espírito, de Hegel, ou ainda o textoTempos de Filosofia de Ngoenha, em todas estas obras os seus autoresconfessam que escrevem para os estudantes e em debate com eles;então a responsabilidade social resulta daí mesmo: que o autor saibaque já não será dono absoluto do seu texto ou da sua fala e que seráduplamente responsabilizado, pelo texto que escreveu (ou pelo quedisse) e pelo conjunto de interpretações orais e escritas que daí resul-tarem. Assim, para mim, o autor do texto filosófico pode reclamar aelaboração do texto ou da fala, mas já não pode reclamar a autoriaindividual do pensamento nele expresso. Pois, o pensamento expressono texto ou oralmente, para ser filosófico, deve dar conta dos outrospensamentos, melhor, deve evoluir dos textos e ditos dos outros tex-tos e ditos aceites como filosóficos.

Este último público de estudantes explica a metodologia que uti-lizo na escrita deste texto: em certas partes, o texto é escrito emforma de diálogo com os autores em estudo, particularmente comAsante, Hountondji, Ngoenha, Wiredu, Mbiti, Oruka, Ramose eoutros que constituem referências principais para suportar as minhasideias. Na verdade, em muitas partes do texto eu estava a conversar,estava em diálogo com os autores: procuro perceber os seus pontos devista, em algumas circunstâncias recorrendo às suas biografias parailuminar certas formas de pensamento e ideias que defendem, noutrascircunstâncias adiantando a minha opinião ou contrastando com algu-mas opiniões de outros filósofos e pensadores. Foi por esta razão quedecidi usar o «nós» na escrita deste livro, ao invés do «eu» (comoHountondji prefere escrever nos seus textos) ou a terceira pessoa

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(como Ngoenha). O «nós» pareceu-me suficientemente adequado eplausível por uma convicção que, de resto, procuro defender nestelivro com o termo intersubjectivação.

O «nós», efectivamente, parte da convicção de que o conheci-mento não se constrói no cogito individual, como Hountondji pareceem algum momento querer sublinhar, mas sim do diálogo com osoutros, mesmo que aparentemente estejamos a cogitar sozinhos nonosso canto. Acredito que o crescimento intelectual filosófico ésomente possível quando dois ou mais sujeitos entram numa interac-ção «intersubjectiva». Naturalmente que esta interacção só é efectivaquando seguida ou entremeada por momentos de reflexão individual.Mas é o momento e o espaço de intersubjectivação que é fundamentalpara o desenvolvimento da filosofia, creio. É esta crença no poder dodiálogo intersubjectivo que tento fundamentar e defender neste livro.E é esta crença que me impeliu a escrever «nós», daqui em diante.

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PARTE II

REFERENCIAIS DE OBJECTIVAÇÃO

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Os diferentes povos africanos, enquanto olhados como colectivi-dades — sejam elas chamadas por «tribos», «etnias», «clãs» ououtros nomes construídos — foram e são objecto de estudo das ciên-cias sociais, naturais e humanas. Em muitos casos, como defendeHountondji (2008), o estudo das questões africanas foi e está confina-do nos chamados Centros de Estudos Africanos. Estas ciências, indepen-dentemente da sua natureza, poucas vezes resistiram à tentação detratar os chamados «assuntos» africanos numa perspectiva unanimis-ta, ou seja, supondo que todos ou quase todos os falantes de umadeterminada língua africana pensam mais ou menos da mesma manei-ra, adoram e obedecem aos mesmos deuses, acreditam nos mesmosprincípios, seguem, sem poder de resistir, os mesmos rituais tradicio-nais, etc. Esta tem sido uma posição epistémica de partida de quem,de forma aberta ou velada, põe como sua tarefa estudar «povos primi-tivos» como seu objecto. Assim o fizeram os primeiros antropólogos eassim procedem ainda hoje as diversas correntes etnocientíficas queestudam os saberes nas «culturas locais» ou tentam descobrir pedaçosde conhecimentos científicos aparentemente escondidos por trás daspráticas e dos artefactos culturais.

Esta forma de «pesquisar» os povos africanos é objecto de muitapaixão, mas também de muita crítica. Muita paixão porque, sem dúvi-da, através de muitos estudos, em especial dos estudos da área daantropologia e das etnociências, foi e são ainda fixadas e inventadasmuitas tradições ou são supostamente «descobertos» muitos «conhe-cimentos científicos» implícitos entre os aldeões. Estas «descobertas»científicas no seio de povos indígenas não deixaram de ser fascinantes

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para os próprios cientistas assim como o eram e são para o públicoconsumidor, na sua maioria ocidental, desta maneira de produzirconhecimento pretensamente científico.

Noutros casos, porém, esta forma de «fazer» ciência tem mereci-do muitas críticas que questionam principalmente as razões de seestar a «desenterrar» os saberes, os hábitos e os valores julgados tra-dicionais num contexto considerado por desactualizado na Áfricamoderna e progressista. De que nos servirá hoje saber, por exemplo,que em África já havia uma geometria muito «avançada» na épocaantiga no Egipto, que o grande Zimbabwe teve uma arquitectura etécnicas de construção admiráveis ou que o computador foi inventadopor um africano? Será que é suficiente, para cultivar a motivação, aautoestima e o orgulho dos africanos hoje no campo das ciências,«desenterrar fantasmas» do passado? No fundo, estas questões levan-tam o problema do sentido e do significado destas «ciências» que, naperspectiva hodierna, nos parece estarem circunscritas ao velho para-digma de tentar demonstrar que «os africanos também tiveram e têmciência», à semelhança de outros povos, em particular dos ex-coloni-zadores europeus.

Entretanto, urge perguntar com Hountondji, quão «africanos»são os ditos «estudos africanos»? Por exemplo, responde o próprioHountondji, por história africana entende-se normalmente o discursohistórico sobre África, e não necessariamente um discurso históricoproveniente de África ou produzido por africanos. Na mesma ordemde ideias, a sociologia ou a antropologia africanas significam a socio-logia ou a antropologia de África enquanto genitivo objectivo, ou seja,um discurso sociológico ou antropológico sobre África e não uma tra-dição sociológica ou antropológica desenvolvida por africanos emÁfrica. Da mesma forma, a linguística africana é entendida como oestudo de línguas africanas e não necessariamente um estudo feito porafricanos. Para ilustrar esta sua opinião, Hountondji termina com umexemplo, quanto a nós, muito claro: «imaginemos», «escreve ele» umgrupo de académicos africanos que estudem Japonês, por exemplo, ouInglês, Alemão ou Português. Deles não se dirá que estão a contribuirpara o desenvolvimento de uma tradição de uma investigação linguís-tica em África, mas sim que estão a produzir uma linguística japonesa,inglesa, alemã ou portuguesa» (Hountondji 2008,151).

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Criticadas ou adoradas o que é certo é que a antropologia colo-nial, a etnofilosofia e, mais recentemente, as diversas etnociênciasobjectivaram e continuam a objectivar aquilo que os seus praticantespensaram e pensam que esses «povos» ou «culturas» são e sabem. Ouseja, objectivam a subjectividade dos sábios e outros especialistas queencontram e entrevistam nas colectividades e culturas tradicionais.Na maior parte dos estudos, os sujeitos destes conhecimentos perma-necem anónimos e silenciosos nos relatórios de campo ou nas obrascientíficas que se publicam como resultado dos estudos e estadias no«campo». O que fica desses povos e culturas são afirmações objecti-vantes tais como: «os Akan pensam assim», «os Tsonga acreditamque a chuva é símbolo de isto ou daquilo», «entre os Macuas é comumfazer-se e cumprir-se estes ou aqueles ritos», ou, como recentementetive a ocasião de ouvir um antropólogo a defender que entre os falan-tes de uma língua do Norte de Moçambique não existe a ideia da«riqueza», razão pela qual, diz o mesmo antropólogo, estes falantesnão se preocupam muito pela sua evolução material.

Ora, estas asserções são objectivações que os antropólogos e osetnocientistas fazem ao que pensam ser as características, hábitos esaber de certos povos que estudam.

Como fizemos menção acima, nesta segunda parte do livrovamos analisar dois referenciais de objectivação, nomeadamente asetnociências e a etnofilosofia. O nosso ponto de vista é que, apesar detodas as críticas levantadas, estes referenciais (e o debate em seuredor) contribuíram significativamente para a edificação do que cha-mamos hoje o conjunto do pensamento africano. Na base destes referenciais foram feitos muitos estudos africanos que estão nas pra -teleiras de muitas bibliotecas do mundo. O nosso objectivo principalnesta parte do estudo é, portanto, celebrar o contributo destes referen-ciais no conjunto das ditas ciências africanas.

Defendemos na quarta parte deste trabalho, no entanto, a tesesegundo a qual, o que de facto as etnociências (incluindo a etnofilosofia)têm como desafio fundamental, é abrir espaços de intersubjec tividade (aoprocesso de criação dos «espaços» chamaremos por intersubjectivação)para interagirem com os saberes que julgam encontrar nas ditas culturaslocais e criarem, a partir desta interacção, referências epistémicas novas.Defendemos que o cientista africano que beneficiara de formação

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académica formal não deve tratar estes saberes simplesmente como seuobjecto de estudo, mas sim cultivar uma abertura epistemológica sufi-ciente para, a partir dos quadros epistémicos sugeridos pelos sábios dasdiversas culturas, modificar os seus próprios pressupostos teóricos.

É este o sentido do exame que vamos fazer em seguida às etno-ciências e à etnofilosofia: celebrá-las como referenciais de objectivaçãodignas de um espaço no processo de intersubjectivação da filosofiaafricana.

Referencial I: As Etnociências

Celebremos, primeiro, as etnociências na sua condição de referencialteórico que procura auto-inscrever-se na história do pensamento africano,ou, como Masolo (1995; 2000) defende, na busca da identidade africana.

Na sua origem, o movimento das etnociências tem muito a vercom a evolução da antropologia. E nos seus métodos e conteúdos tam-bém. Na Inglaterra por exemplo, o nascimento da antropologia comouma disciplina independente dentro da British Association for theAdvancement of Science (BAAS), em 1884, é precedido por «muitas difi-culdades» relativamente à sua validação enquanto conhecimento cien-tífico próprio. A razão dessas dificuldades é muito simples: os estudosetnográfico-antropológicos são apresentados, dentro da Association,nos encontros dos biólogos, geólogos, geógrafos ou ainda dos botâni-cos. A Association já existia, no entanto, desde 1831. Quando J. C.Pitchard e T. Hodgkin, naquele ano, apresentam os seus trabalhosantropológicos, é sob a égide da Zoologia e da Botânica. Embora naaltura o termo «etnociência» ainda não tivesse sido formalmenteintroduzido na burocracia académica e universitária, na realidade essas«ciências» já se dedicam a explorar as características dos «outrospovos» fora da Europa, ou seja, dos «povos nativos», cada uma naperspectiva metodológica da sua disciplina (Sillitoe 2004,10p.).

No dicionário etnológico de Panoff e Perrina4 define-se etnociên-cia como «(...) o ramo de etnologia, que se dedica a comparar os con-

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(4) Segundo a página electrónica http://www.ime.unicamp.br/~lem/publica//e_sebast/Etno.pdf. (consultada a 06/11/2008).

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ceitos positivos das sociedades exóticas com os que a ciência ocidentalformalizou no quadro das disciplinas constituídas». Esta definição, noentanto, nos sugere colocar as seguintes perguntas: O que são conhe-cimentos «positivos»? O que seria então um conhecimento «negati-vo»? O que seria uma «sociedade exótica»? Existe uma ciênciaocidental diferente de outras ciências, digamos oriental, austral, afri-cana, etc.? Portanto, não há dúvidas que os termos «positivo» e «exó-tico» denotam uma posição eurocentrista e preconceituosa, típica doinício do século passado, imbuída nas correntes de natureza positi -vista.

A primeira disciplina a ser prefixada por etno foi a botânica. Istoacontece em 1895. Depois seguiu-se a etnozoologia por volta de 1914.Mas o termo genérico «etnociências» foi então cunhado por GeorgePeter Murdock em 1950. As etnociências juntam, então, disciplinascomo a etnolinguística (considerada como instrumental para exploraros saberes indígenas), a etnobotânica, a etnozoologia, a etnoastrono-mia, etc. Segundo Hountondji, de facto, o termo etnociências é usado,na altura, especialmente por um grupo de etnógrafos da Universidadede Yale que estava ávido em lançar uma «nova etnologia», como sinó-nimo de folkscience.

O prefixo etno — que se refere à etnia — quer sublinhar que setrata do tipo de saberes de um determinado grupo de pessoas quecomungam a mesma cultura, que tem uma língua própria, hábitos ecostumes comuns, etc. Ou seja, um grupo de pessoas com característi-cas específicas que o diferencia dos outros grupos. Assim, a ideia bási-ca da etnociência parte do pressuposto que cada grupo lê o mundo, i.e.constrói o seu conhecimento sobre os fenómenos naturais e sociais eas respectivas perspectivas de interpretação, de forma diferente emrelação a outros grupos culturais. «Etno» refere-se então aos siste-mas de conhecimentos e cognições típicos de uma dada cultura. Emgeral a etnociência propõe-se «descobrir a ciência que está oculta» ouque está implícita nas culturas.

Em Moçambique, o ramo mais desenvolvido das etnociênciasactualmente é o da etnomatemática. Segundo Gerdes (2003,505),que nos oferece um relato circunstanciado do desenvolvimento da etnomatemática, os primeiros estudos histórico-etnomatemáticosmoçambicanos começam em 1978 com o projecto de pesquisa

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denominado Conhecimentos Empírico-Matemáticos das PopulaçõesBantu. Mais tarde, em 1989, este projecto teria sido desdobrado emdois projectos distintos: o da etnomatemática e o da história damatemática em África.

Desde o seu início em Moçambique, os estudos no ramo da etno-matemática e da etnociência em geral, estão ligados aos estudos curri-culares, isto é, à sua aplicação no ensino5. Lamentavelmente até agorasó foi ao nível universitário (UEM, UP e ultimamente a UniversidadeCatólica). Os temas abrangidos são: sistemas africanos de numeração,história da numeração falada, fontes escritas e orais da numeração econtagem nas línguas nacionais, métodos populares de contagem, etc.A colectânea Explorações em Etnomatemática e Etnociência em Moçam -bique (1994) veio alargar o campo de estudos para as etnociências emgeral ao incluir áreas da etnofísica (Interpretações Tradicionais de Tro -voa das e Relâmpagos em Catembe, Perspectivas em Etnofísica), da etnoquí-mica e etnobiologia.

Na tentativa de definir a etnomatemática, Gerdes (1989) escre-ve que esta: «tenta estudar as ideias matemáticas nas suas relaçõescom o conjunto da vida cultural e social». Vemos nesta definição ainclinação das etnociências estudarem os conteúdos científicos‘depositados’ nas culturas locais. Antes (1987) o próprio Gerdescunhou de «Mate má tica Oprimida» aquela desenvolvida em paísesem vias de desenvolvimento, onde pressupunha a existência do ele-mento opressor: sistema de go verno, pobreza, fome, etc. Em 1987,Gerdes, Craher e Harris utilizaram o termo «matemática não --estandartizada» para diferenciar a etno ma temática da matemática académica. Outro termo usado por Gerdes (1995) foi «matemáticaescondida ou congelada», quando estudava elementos geométricos ede cálculos nas cestarias produzidas em diferentes regiões deMoçambique. Mais tarde, porém, é o próprio Gerdes (2007,189pp.)que arruma vários conceitos «provisórios» de etnomatemática queforam propostos por oposição à matemática académica/matemática

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(5) Isso deve-se, sem dúvida, ao facto de Gerdes, considerado o pai da etnomatemáti-ca em Moçambique (já há expressões como a «Escola Moçambicana da Etno ma -temática») esteve sempre ligado ao Ensino Superior como Director da Faculdade deEducação e, mais tarde, como Reitor da Universidade Pedagógica de Moçambique.

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escolar. São eles: matemática nativa, sócioma temática de África,matemática informal, matemática no ambiente sociocultural (afri-cano), matemática espontânea, matemática oral, matemática oprimida, matemática não padronizada, matemática escondida,matemática congelada, matemática popular, matemática do povo,matemática codificada em sabedoria e matemática implícita e nãoprofissional.

Porquê é que as ciências académicas não se chamam também poretnociências? Ou por outra, porque é que, partindo do pressupostoque todo o conhecimento é cultural e que ele nasce num contexto perfeitamente localizável, a etnomatemática não se chama simples-mente «matemática africana», «matemática bantu», «matemáticaamericana» e por aí em diante? Donde vem o direito de chamar, porexemplo, «filosofia» aos estudos feitos por Platão na República que sedebruçava sobre os gregos e por «etnofilosofia» (termo que, comoveremos, foi cunhado por Hountondji e que, por sua vez, teve inspira-ção em Nkrumah) ao estudo realizado por Mbiti e Kagamé entre ospovos africanos?

Tentando procurar respostas para este dilema, Gerdes (2007, 191 p.)parece confinar a definição da etnomatemática ao «domínio da investi-gação» com a função de reflectir «a consciência da existência de mui-tas matemáticas, em certa medida específicas de determinadas (sub)cul -turas» (it. meu). Sendo assim, ou seja como domínio da investigação,ela pode ser considerada como a parte das etnociências que estuda asideias científicas de povos «não letrados»; esta definição de «etnociên-cias» pode concluir-se a partir da compreensão de Gerdes, a partir dasua definição sobre a etnomatemática.

Assim, considerando a etnomatemática como um domínio deinvestigação, Gerdes prefere falar de movimento etnomatemático paraexpressar exactamente o envolvimento de uma parte de matemáticosprofissionais em investigar os fenómenos matemáticos, e por exten-são, os fenómenos científicos na sua relação directa com o meio cultu-ral. Como um movimento, a etnomatemática teria o seguinte pro gra-ma: primeiro, alargar o conceito de matemática onde se incluem ocontar, localizar, jogar, etc.; segundo, enfatizar os factores socioeconó-micos na sua disseminação; terceiro, considerar a matemática comouma actividade universal no sentido de que todo o homem e cultura

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têm conhecimentos matemáticos específicos; ou seja, ela é um produtocultural; quarto, desmistificar a aparência quase geral que existe,segundo a qual a matemática escolar/formal tem a sua origem oci-dental e, portanto, é importada, enquanto na realidade ela tem umaorigem africana ou asiática; quinto, reconstruir o pensamento mate-mático que tenha resistido à marginalização colonial e ocidental;quinto, oferecer alternativas e estratégias de incorporar os conheci-mentos etnomatemáticos no currículo escolar e sétimo, desenvolveruma perspectiva teórica crítica na educação matemática, influenciadapela pedagogia do oprimido de Freire (Gerdes 2007,194 pp.).

O desenvolvimento da etnomatemática a partir dos anos 70 emMoçambique é, sem dúvida, devido ao papel de Paulus Gerdes. Nassuas palavras, diz ele que explora mais o ramo simétrico-geométrico,ramo este que Gerdes considera ter permanecido esquecido nos livrosda história da matemática de muitas culturas. O que Gerdes faz com a«sua» pesquisa é fechar este «esquecimento» ao tentar compreenderas formas do pensamento geométrico envolvidas nos artefactos cultu-rais, pensamento este «implícito» nos padrões seguidos no fabrico deesteiras, cestos, porta-moedas, etc. São vários aspectos desta perspec-tiva analisados e divulgados por Gerdes, tais como «aspectos da arit-mética e ornamentação geométrica nos cestos» de diversos povos,análise de «padrões-de-fita entrecruzadas por mulheres» no Congo,«cestaria e geometria na cultura Makhuwa» em Moçambique e estu-dos comparados de «quadrados dentados concêntricos e de padrõesplanares compostos de quadrados dentados concêntricos».

O segredo do desenvolvimento deste ramo de investigação pare-ce ter sido o facto de os cientistas envolvidos terem privilegiado acriação de espaços de debate e de troca de ideias, que mais adiante,neste livro, denominamos como espaços de intersubjectivação — emvolta de um «mestre». É nestes espaços onde as ideias dos mestres ouícones de uma determinada área têm a possibilidade de ser debatidas,desenvolvidas, modificadas, iluminadas em novos ângulos ou mesmo,não poucas vezes, desafiadas. Talvez seja por isso que podemos admi-tir a ideia de que a etnomatemática seja um movimento e não exacta-mente uma corrente de pensamento. No caso de Moçambique, opróprio Gerdes encubou, em seu redor, discípulos como é o caso deM. Cherinda, A. Ismael, D. Soares, A. Mapapá, M. Baloi, F. Lobo,

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A. Matonse, C. Pires e outros em Moçambique. Alguns deles conti-nuam a esforçar-se em investigar nos diversos ramos das etnociências.Outros limitam-se a abraçar simplesmente a carreira da leccionação,sem, no entanto, fazerem aportes substanciais para além do seu traba-lho de doutoramento, ou ainda, o que seria desejável, sem (ainda) daraportes que desafiam a estrutura básica cultivada pelo «mestre». Háfalta de um debate epistemológico em volta das etnociências, ou seja,não se equacionam as condições dos seus resultados enquanto conhe-cimento «científico», mas sobretudo não se equaciona o estatuto epis-temológico do sujeito do conhecimento dito tradicional no quadro daprodução científica geral. Voltaremos a este assunto mais adiante nocapítulo da intersubjectivação.

Em 1995, um grupo de docentes, que podemos considerar comoos precursores da etnomatemática e das etnociências em Mo çam -bique, sob a direcção de Gerdes, publica uma colectânea de artigos devárias áreas das etnociências. A colectânea intitula-se por Explorationsin Ethnomathematics and Ethnoscience in Mozambique.

Baloi (1994) escreve, nesta colectânea, um artigo onde pretendeaferir o grau de crenças tradicionais entre os estudantes de física. Elechega à conclusão de que «99% dos estudantes daquela disciplinaacreditam genuinamente ou são influenciados por formas tradicio-nais na interpretação que fazem sobre os fenómenos físico-naturais»,especificamente trovoadas, faíscas, arco-íris, e outros. Para confirmaresta conclusão, Baloi fez também um estudo de campo sobre as inter-pretações dos mesmos fenómenos na Catembe e em Marracuenetendo chegado às mesmas conclusões, desta feita no que concerne àpopulação rural habitante naqueles locais. O seu artigo, porém, temuma nota positiva que interessa destacar: Baloi menciona os nomesde os todos seus «informantes» a quem entrevista, evitando assim,mas somente em parte, uma generalização excessiva de termos como«os Rongas acreditam que as trovoadas são provocadas para causarinfortúnios». No entanto, ele cai na armadilha de não subjectivar osconhecimentos ou as interpretações, ou seja, não informa que o fula-no X disse isso e aquilo e, em contrapartida, o sincrano Y não con-cordara com isto e aquilo. Em outras palavras, Baloi não mostra asdiferenças de interpretações entre os aldeões que entrevistou ficandoa vaga impressão de que «todos» acreditam nas forças sobrenaturais

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que estejam por trás da ocorrência das trovoadas e outros fenómenosnaturais.

Entretanto, o movimento da etnomatemática espalha-se pelasAméricas, Ásia, Oceânia, Austrália, Europa e África, segundo nosconta Gerdes. A considerar pelo seu objecto de estudo, nas Américasestudam-se os sistemas numéricos, as representações numéricas naarte da pedra, sistemas de calendários, a utilização de números emcontos e ritos e alguns aspectos da geometria entre os índios, povosindígenas daquele continente. No sul das Américas, no Brasil, tam-bém há estudos relacionados com a «matemática na vida quotidiana»das populações das favelas, em camponeses sem terras, em jogos decrianças, entre os índios, etc. O próprio Gerdes dirige um estudosobre a aritmética e a decoração geométrica dos cestos de índios doBrasil. O ramo da matemática educacional também desenvolveu-semuito nos Estados Unidos, sobretudo tendo em conta os contextos(multi)culturais e os conhecimentos matemáticos de grupos profissio-nais (vendedores de roupa e alfaiates, como exemplos). Olhando-secom um pouco mais de atenção, com estes estudos matemáticos nasfavelas ou no quotidiano, abandona-se um pouco o terreno da defini-ção clássica de cultura. Pois, neste caso, já introduzimos os elementosclasse e estatuto social na ideia de cultura e não necessariamente a lín-gua como critério básico para definir o etno.

Em África, em particular, desenvolvem-se também diversos estu-dos tais como a contagem, a medição, o cálculo do tempo, etc.Também encontramos estudos sobre as ideias matemáticas entre oscaçadores San no Botswana, sobre os sistemas de numeração africa-nos na Nigéria, no Burundi, no Botswana, no Ruanda e em outros paí-ses. Gerdes informa-nos que a Universidade de Ahmadu-Bello naNigéria é aquela que é «muito dinâmica na estimulação da investiga-ção etnomatemática». Em todas as regiões é notória a organização emequipas dos seguidores do movimento da etnomatemática e o seuenvolvimento na organização de conferências regionais, continentaise até mesmo internacionais onde se debruçam sobre diversos temasmatemáticos, melhor, etnomatemáticos (Gerdes 2007,196pp.).

Na etnofísica, é o mesmo Baloi que continua hoje com os em -briões que lançara antes e que fizemos referência; assim, na Uni versi -dade Pedagógica, sob a direcção do Baloi e Cupane, reemerge um

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grupo de pesquisa neste campo. Por exemplo, num seminário sobre apesquisa no campo das etnociências organizado pelo Centro deEstudos Moçambicanos e Etnociências (CEMEC) desta Uni ver si -dade, este grupo de investigadores apresentou um tema sobre Tecno -logia Tradicional no Exemplo de Instrumentos de Caça. Eles partem dahipótese de que, descrevendo os casos específicos de algumas armadi-lhas tradicionais conhecidas localmente (limitam-se a Maputo anali-sando instrumentos denominados por lithaka, nxthamu e nteve eoutros de Tete como ukonde, cemphe, candandari, mulapu, diva, thinga,chibambu e ulimpo), tratadas como «tecnologias indígenas», podemestabelecer uma relação de analogia/transferência com as suas aplica-ções técnicas modernas, ou seja, «tecnologias modernas». Ambos e asua companhia de assistentes pensam ter demonstrado, por exemplo,que as competências cognitivas e as habilidades que se requer paraaprender a fazer armadilhas (nomeadamente desenhar esboços efabricar) no âmbito das tecnologias indígenas, são as mesmas que umestudante precisa dominar para desenhar e montar, por exemplo, umcircuito eléctrico de um relé electromagnético, desta feita no ensinoformal.

As lições ‘etnocientistas’ que se podem tirar deste estudo são, decerto modo, óbvias. O que estaria no centro das atenções, neste caso, éaquilo que se chamou por «formas de conhecimento» e não exacta-mente o conteúdo ou as habilidades exigidas para o fabrico de um eoutro artefacto tradicional ou moderno (reconhecer a estrutura, mon-tar, desenhar e representar esquematicamente). Com estes exemplospensa-se ter demonstrado que o que as etnociências deveriam fazer ébuscar evidenciar as competências cognitivas que são accionadastanto num caso como no outro, submetendo o conteúdo a essas com-petências. Porque, argumentam, quando as formas do pensamentoque estão na base de um determinado conteúdo (neste caso das arma-dilhas ou dos circuitos eléctricos) estão claras, por consequência osconteúdos que se escolhem para que se alcancem as respectivas com-petências tornam-se irrelevantes. Dito de outra forma, na educação oque é importante são as competências e a escolha dos conteúdos paraatingir determinadas competências é um aspecto secundário. Assim,conteúdo «relevante» para a aprendizagem do aluno é aquele quederiva do seu meio cultural, social e material. Como o trabalho foi

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apresentado tendo como epicentro o ensino da física numa perspecti-va chamada de «culturalmente sensível», o grupo conclui que umprofessor que seja culturalmente consciente tem maior autonomia emescolher conteúdos de ensino que também sejam culturalmente maisadequados para abordar as matérias na sala de aulas. Pensa-se que osalunos tenham maior motivação na aprendizagem da física por esta-rem a tratar assuntos respeitantes ao seu imaginário cultural.

Estas breves conclusões, embora tiradas do campo da etnofísica,parecem estar a corroborar com as de Gerdes. Este, como dissemos,procura fundamentar a possibilidade da existência e a necessidade dapesquisa das etnociências pela busca e descrição das «formas de pen-samento científico» (traduzidos em termos educativos seriam «com-petências») nas diversas culturas. Cultura é entendida, neste caso, nasua dimensão antropológica positivista. Ou seja, o estudo das etno-ciências baseia-se na análise das tecnologias ou formas de conheci-mento científico que estão por trás dos artefactos. Até aqui, pela formacomo expusemos as etnociências, notamos que elas se dedicam e selimitam ao nível da interpretação de factos e de processos verificáveis.O problema está no facto de que este mundo cultural que as etnociên-cias tomam como campo de pesquisa, está carregado de asserções comconsiderandos metafísicos de cariz tradicional. Por outra, coloca-se aquestão da validação destes considerandos metafísicos que escapamaos olhos dos etnocientistas, ou melhor, conteúdos que são decanta-dos pelos critérios positivistas que dominam os procedimentos dasetnociências. Sobre este problema voltaremos mais tarde.

Há, porém, cientistas que se dedicam às etnociências procurandoreflectir para além dos conteúdos da própria ciência assim como paraalém dos artefactos que manuseiam nas pesquisas do campo. Isto é,para além dos considerandos que se limitam aos factos e proces -sos. Estes invadem, assim, o campo da epistemologia. D’Ambrosio(2008), por exemplo, defende que o ponto de partida para os estudos(etno)ma temáticos deve ser colocado no questionamento sobre o con-ceito de matemática e o respectivo objecto de estudo. Ou seja, para eleé tão importante estudar a história da matemática (conteúdos) comotambém a filosofia da própria matemática (epistemologia). Ele notaque, em relação à história das etnociências (da etnomatemática emparticular), a análise de memórias, práticas, monumentos e outros

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artefactos onde estejam inscritos vestígios ou documentos históricos,depende muito da forma de interpretação que, por sua vez, dependeda ideologia subjacente, isto é, de uma forma de filosofia da história.Pois, para ele, houve «distorções» causadas por dois processos subse-quentes: as «descobertas» europeias e a consequente colonização dospovos não-europeus. Ambos processos tiveram como resultado a mar-ginalização de todo tipo de conhecimento produzido por pessoas eestudiosos que provêm dos países considerados periféricos. Portanto,a contribuição destes países na história das diversas ciências e nodesenvolvimento tecnológico é vista como sendo marginal, emboraseja hoje inegável a sua contribuição para o avanço daquelas.

Assim, para ele:

«Ao historiador das ciências e da tecnologia cabe, não apenas, orelato dos grandiosos antecedentes e consequentes das grandesdescobertas científicas e tecnológicas, mas, sobretudo, a análisecrítica que revelará acertos e distorções nas fases que prepara-ram os elementos essenciais para essas descobertas e para a suaexpropriação e utilização pelo poder estabelecido.» (D’Ambrosio2008,34)

Nesta citação notamos a preocupação do autor em procurar sub-meter o avanço da ciência ao tribunal da crítica no intuito de trazer àluz conhecimentos marginalizados que no entanto teriam sido, numcontexto de poder, apropriados pela ciência ocidental, ou pelo menosnão fazem parte do edifício da construção dos saberes consideradoscomo sendo de natureza científica. A intenção do tribunal da crítica aque as ciências «normais» são submetidas permanece a de evidenciaras etapas do desenvolvimento (destas mesmas ciências) nas quais osconhecimentos produzidos pelos pensadores e sábios pertencentes aospovos marginalizados foram «queimadas» da historiografia da produ-ção do saber.

D’Ambrosio, considerado o pai da etnomatemática, diz-nos que éexactamente por isso que foi projectada a etnomatemática: buscarentender o fazer e o saber matemático de culturas marginalizadas.Assim, para ele, intrínseco a este programa está também a «exposi -ção mútua de culturas» (D’Ambrosio 2008,35). Segundo o mesmo, o

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programa da etnomatemática não deve limitar-se ao estudo do conhe-cimento em si. Ele deve sim alargar-se para o tipo de estudos quecontemplem sobretudo a dinâmica cultural sob a qual estes conheci-mentos se desenvolvem assim como alargar-se também para o estudodos quadros conceptuais internos usados em cada cultura. Isto é, oprograma das etnociências deve alargar-se para o estudo das «catego-rias (teóricas) próprias de cada cultura».

O mesmo D’Ambrosio, vai mais longe afirmando que a «disci-plina denominada Matemática (…) é, na verdade, uma Etno mate -mática que se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebidoimportantes contribuições das civilizações do Oriente e da África»(2008, 38). Assim, falar da matemática em contextos culturais diver-sos impli ca analisar, por exemplo, conceitos usados para a quantifi-cação e classificação, números e formas, relações e inferências. Claroque este estudo não é válido por si mesmo, dizemos nós. Há sempreum fim que pode ser considerado de político em tudo isto. E estemomento manipulável (político por isso mesmo) pode verificar-se,por exemplo, na passagem necessária do concreto para o abstracto.Para ensinar o número dois em contextos culturais diferentes, porexemplo e tendo em conta que o «dois» é um símbolo abstracto, nãoé a mesma coisa se objectivamos o número dois em duas maças e/ouduas batatas-doces. Este momento de «exemplificação» é cultural-mente manipulável.

A exemplificação, portanto não é neutra, como a primeira vistaparece ser. Ela carrega em si relações de poder. D’Ambrosio mostradesta forma a sua inclinação para defender o «texto multicultural»intersubjectivo, assunto que voltamos a debater no último capítulodeste livro. Por enquanto basta dizer que, quanto a nós, vemos muitapossibilidade de textura intercultural a partir dos avanços da etnoma-temática no campo da intersubjectivação.

Entretanto, podemos, desde já, adiantar o seguinte: o estudo dascategorias específicas de cada «cultura», como D’Ambrosio correcta-mente nos sugere, deve ser seguido por uma introspecção reflexiva daprópria ciência em causa, seja ela matemática, biologia, física, filosofia,etc. Ou seja, ao exercício da compreensão das categorias usadas emcontextos culturais, deve seguir-se uma reflexão epistemológicainterna no seio de cada ciência no sentido de aferir até que ponto as

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ditas «categorias próprias de cada cultura» desafiam o próprio quadroconceptual ou os pressupostos epistemológicos de cada ciência.Efectivamente, como veremos na última parte deste livro, as catego-rias culturais que se engajam no debate, podem sugerir novos mode-los e perspectivas de interpretação. A condição básica é, porém, omantimento de uma «abertura epistemológica» da ciência normalpara com estas sugestões a partir das culturas consideradas margi-nais aos sistemas de conhecimento formais.

Hoje, pelo mundo fora, são vários os ramos das etnociências.Estas para além da etnomatemática, já incluem a etnomusicologia, aetnomedicina, a etnopsicologia, a etnohistória, a etnopsiquiatria, etc.Existem, por exemplo, estudos na etnomedicina sobre os conceitosnativos de doença, sofrimento, dor, cura e daquilo que se considera«bem-estar». Há estudos etnopsicológicos sobre a importância dasdiferentes emoções nas diferentes sociedades e sobre a maneira comoas crianças aprendem a senti-las. Da mesma forma até há estudosetno-estéticos sobre a mitologia, a música, a arte, a tonalidade e oambiente da vida quotidiana.

Em cada um dos ramos mencionados existe uma extensa pro -dução que constitui uma verdadeira reserva de dados interessantes e louváveis em termos científicos. No entanto deve colocar-se as se -guin tes questões que consideramos, antes de tudo, fundamentais: qualé o sentido destas disciplinas? Qual é o seu uso real? Qual é o benefí-cio que têm as populações locais destes estudos sobre os seus saberes?Ou só beneficiam as sociedades ocidentais e ao próprio estudioso epouco as populações locais detentoras destes mesmos conhecimentos?Ou por outra e questionando ainda mais a fundo: constituem as etno-ciências verdadeira alternativa metodológica e em termos do conteú-do do saber coleccionado para o processo da reapropriação do saberpelos seus produtores locais?

Mesmo com boas intenções, como as que expusemos acima pondoD’Ambrosio como seu proponente, as etnociências não escapam àsgarras do poder político. Efectivamente, as etnociências unem-se como político no acto da ‘descoberta’ ou redescoberta das culturas ditaslocais. Estas, anteriormente olhadas como marginais e não favoráveisaos programas sociais desenvolvimentistas, são, de repente, descober-tas como tendo algo a dizer no contexto destes mesmos programas

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de desenvolvimento e na chamada ciência normal. Isto determina quealguns estudiosos comecem a prestar maior atenção, ou melhor, a pro-curar coerência e lógica interna existente nos saberes locais, aparen-temente muito comprometidos com o que chamamos atrás de«considerandos metafísicos». Assim, torna-se fácil o novo papel ins-trumentalista das etnociências relativamente às políticas desenvolvi-mentistas, nomeadamente o de procurar encontrar um sistema noconjunto dos saberes locais para que sejam mobilizáveis para os pro-gramas sócio-políticos.

De facto, as etnociências, pela forma como são praticadas emMoçambique (e em África em geral), ainda continuam marginais emrelação à prática académico-científica, embora os seus proponentesestejam cada vez mais a serem convidados para exporem os resulta-dos dos seus estudos ao nível internacional. Não obstante a isso, osestudos das etnociências e os seus resultados continuam a ser encara-dos como produtos exóticos e folclóricos, pelo menos por uma boaparte da academia, e com um certo sentimento de ironia por parte dapolítica educativa. É uma situação em que «todos» reconhecem aimportância da sua introdução no sistema do ensino e em outras áreascomo medicina, direito, agronomia, mas quando se tratar de dar pas-sos concretos no desenho de estratégias para a sua implementação, asreticências por parte das políticas sectoriais aumentam.

Um outro elemento que concorre directamente para o aumentodas «reticências» é a prevalência de uma certa visão antropológica,segundo a qual os saberes locais são uma espécie de «ciência popu-lar». Esta visão ainda não foi ultrapassada por uma boa série de inte-lectuais e cientistas africanos. Eis algumas das razões que sustentameste juízo: a primeira é que ainda reina a ideia de um «saber localdepositado nas comunidades», ou seja, a ideia de um saber «colectivo»que supõe que toda a comunidade cultural «sabe» a mesma coisa. Osindivíduos detentores dos saberes (fabricadores de cestos e outrosartefactos) que as etnociências estudam e procuram captar, poucaspossibilidades têm de emergir para além do local em que vivem eacima do seu millieau ou ecossistema cultural. As etnociências aindaapresentam o conhecimento no jeito de «ciência sem cientistas». Atéeste ponto o etnocientista é apenas uma espécie de «colector» dossaberes locais/tradicionais, sem mencionar individualmente (em

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alguns dos casos somente reconhece colectivamente) a fonte das suasinformações. Até que, na mente do etnocientista, o que ele recolhe são«informações» e não exactamente saberes ou conhecimento.

Uma outra razão, adiantada desta feita por Hountondji (2002,35), é que as etnociências não colocam, em primeira linha, a «ques-tão da verdade» quando estão perante os ditos saberes locais/tradi-cionais. O que fazem é descrever e deixá-los intactos. Sob este pontode vista, as etnociências inscrevem-se, portanto, no projecto inicialda Antropologia (o estudo de outras culturas) e não conseguem, porisso, deixar de beneficiar às sociedades ocidentais porque é paraesses países para onde fluem os resultados conseguidos pelas etno-ciências nos seus estudos etnográficos. Parte do conhecimento acumulado na etnomatemática e educação, por exemplo, parece sermais conhecida, depositada e usada em universidades e escolas doestrangeiro que pelas escolas moçambicanas. Dito doutra forma: aescola moçambicana ainda não se apropriou, para o seu própriobenefício, dos resultados das pesquisas em diversas áreas das etnociências. Por isso, a questão quem se beneficia realmente da etnociência deve ser claramente respondida, dizendo que são associedades do ocidente.

Se repararmos na forma como as diversas etnociências preten-dem produzir o conhecimento seja ele matemático, filosófico ou emrelação à natureza e à sociedade, facilmente notamos que ele se ins-creve no quadro conceptual e teórico da produção científica ocidental;assim também estudos científicos são feitos com base em referenciaisteóricos da chamada ciência universal e a sua respectiva disseminaçãoé condicionada ao domínio das línguas da herança colonial.

Um desafio que se coloca às etnociências é o de chamar para osespaços de debate académico (universidades, institutos de pesquisa,conferências, seminários, etc.) aos detentores dos saberes ou espe-cialistas «étnicos», locais ou tradicionais em diversas áreas dosaber. Só assim, pensamos, é que os diversos ramos das etnociênciasserão capaz de descentrar-se dos referenciais eurocêntricos abrindoespaço para que os detentores dos saberes tradi cionais se expo-nham por si mesmo e, com isso, desenvolvam a capacidade de argu-mentação e do uso da palavra nas áreas onde o etnocientista, ora seapresenta como fiel e único intérprete, ora como porta-voz das

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comunidades epistémicas locais, perante a comunidade científicainter- e transnacional.

Referencial II: A Etnofilosofia

Um ramo particular, diríamos mesmo um ramo especial, dasetnociências é a chamada etnofilosofia. Este ramo das etnociências éespecial porque, combatido por uns, venerado por outros, os pensado-res africanos não conseguem desembaraçar-se dele, exactamente poreste apelar ao seu passado.

Vamos, em seguida e à luz da ideia e do desenvolvimento da cha-mada filosofia africana em geral, mostrar como os diversos povos afri-canos foram «objectivados» por estudos que vamos chamar deetnofilosóficos. Assim, se seguirmos a cronologia proposta por Karp& Masolo (2000,1p.), a filosofia africana conheceu três fases de elabo-ração. A primeira, que começa nos anos 70, tem como seu centro deatenção a crítica de como as categorias coloniais são reproduzidasinadvertidamente pela forma como as várias correntes da etnofilosofiatentam dar-se conta dos conteúdos filosóficos existentes nas culturasafricanas; por outro lado a filosofia africana, nesta fase é tida comotentando argumentar em torno do nacionalismo africano procurandofundamentar os supostos valores africanos a partir de culturas especí-ficas.

Na segunda fase, que os autores situam nos anos 80, acreditamque a filosofia africana empenha-se em desenvolver uma filosofia dacultura, termo que ambos emprestam de Kwame Appiah, filosofia estaque tenta resgatar os recursos culturais existentes nas culturas afri-canas, mas ao mesmo tempo ser críticas em relação a essas mesmasculturas. Desta feita os tópicos da filosofia africana passam a girar emtorno do exame das chamadas tradições africanas assim como dopapel dos intelectuais africanos na esfera pública. Também pertence aesta fase o escrutínio da relação entre os sistemas de conhecimentochamados indígenas e seu papel em relação no desenvolvimento decada país e do mundo em geral. Os autores localizam a terceira fasenos anos noventa, nos quais a política do conhecimento representa oepicentro da reflexão filosófica. Esta viragem inscreve-se no esforço

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que a filosofia africana faz em responder e teorizar a crise dos estadospós-coloniais.

Como se depreende desta cronologia proposta por Karp &Masolo, directa ou indirectamente a questão da postura da filosofiaafricana em relação às ditas culturas africanas permanece em todas asfases. Entre outros assuntos permanentes destacam-se os seguintes:qual é o estatuto dos saberes indígenas, que se supõe estarem «implí-citos» nas culturas africanas, no quadro do desenvolvimento da ciên-cia moderna? Assim também, e derivado disto, pergunta-se sobre oestatuto dos detentores desses saberes — chamados sábios — no qua-dro da intelectualidade africana e no quadro das instituições formaisacadémicas.

Esta parte pretende reexaminar o estatuto que tivera as reacçõescríticas dos filósofos africanos, formalmente treinados, em relação àetnofilosofia. Porém é importante notar, logo de partida, dois aspec-tos. O primeiro, que o termo etnofilosofia não provém dos seus prati-cantes, senão que foi popularizado — e não ‘cunhado’ como muitossustentam — e definido pelo filósofo de Benin Paulin Hountondji, nosseus escritos críticos a este empenho filosófico; a estas críticas volta-remos mais adiante. O segundo aspecto refere-se ao significado e aosentido do termo estatuto. No contexto da nossa análise, esse termonão é usado em termos de ‘regulamento’ que rege um Estado, socie-dade ou uma corporação qualquer, como vem definido em qualquerdicionário. Este termo é aqui empregue como um recurso para anali-sar até que ponto essas críticas dirigidas às primeiras tentativas feitaspelos filósofos africanos em «extrair» conteúdo filosófico a partir dediversas esferas culturais, como sejam da religião (Mbiti), da lingua-gem (Kagamé), etc., têm para o desenvolvimento duma ou da(s) filoso-fia(s) dita(s) africana(s). Portanto, trata-se aqui, de facto, de aferir umaespécie de impacto que estas críticas têm no desenvolvimento desteramo das etnociências. Assim, o nosso objectivo, que pode ser consi-derado de político, é de defender a continuidade da prática da etnofilo-sofia, mas considerando os elementos críticos internos e inerentes aprópria filosofia e despidos do pressuposto de estarem «implícitos»nas culturas. Enfim, não somos apologistas da posição de «descobri-dor» assumida pelo etnocientistas, mas sim da posição epistémica deum dialogador, num esforço para a intersubjectivação.

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Uma terceira nota preliminar é também importante: trata-se deaclarar a nossa ideia de filosofia. Se voltarmos ao sentido etimológicoda palavra filosofia é «amor pelo saber». No entanto, nós fazemosuma tónica especial no termo amor e não assim tanto no termo saber.Assim, devemos deixar clara a nossa posição logo a partida: que nãoexiste saber ou conhecimento sem que haja o sujeito deste mesmosaber ou conhecimento. E isto é válido tanto para as culturas ditasmodernas como também para as culturas ditas tradicionais africanas.O que isto quererá dizer? Quer dizer que o mais interessante para nósé a actividade de filosofar, ou seja, a procura (ou amor pela busca)desse saber que implica uma certa clareza metodológica e uma certaconstância no que-fazer filosófico, do que propriamente na chegada aum saber acabado.

Examinemos agora, em breves linhas, a chamada tradição etnofi-losófica. E aqui emprestamos a definição de Appiah (1997,138) queconsidera etnofilosofia como sendo uma «tentativa de explorar e sis-tematizar o mundo conceptual das culturas tradicionais de África.»Esta definição, segundo o próprio Appiah continua a dizer, adoptalogo a partida, uma abordagem «folclorista» porque tenta, nas suaspalavras, «compilar a história natural do pensamento popular tradi-cional sobres as questões centrais da vida humana.» (Idem) Comoetnofilósofos são apontados Placide Tempels, Marcel Griaule, AlexKagamé e John Mbiti, cada um tendo-se proposto em fundamentar aexistência de filosofia nas culturas africanas usando caminhos dife -rentes.

A Ontologia da «Força Vital»

A autoria do texto considerado como «fundador» da etnofilosofiaé atribuída ao padre belga Placide Tempels. Este escreve a FilosofiaBantu. O texto de Tempels tem sido, ao longo das fases do desenvol-vimento da filosofia africana, um pretexto recorrente por parte devários filósofos africanos, para promoverem uma forte discussão sobrea essência do que hoje se considera por filosofia africana. É um dostextos que mais influencia este debate dividindo toda uma geração depensadores africanos entre pró-tempelsianos e anti-tempelsianos.

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Para uma melhor conversa sobre este autor, entretanto, comece-mos por um pequeno resumo do seu pensamento: para Tempels, apalavra ‘filosofia’, no caso dos povos bantu, pode ser substituída por‘metafísica’ ou ‘ontologia’. De facto, ele usa indiscriminadamente essestrês termos.

A tese principal de Tempels destaca a existência de um pensa-mento metafísico entre os povos bantu. Segundo ele, a concepção davida entre os bantu está centrada num valor cardinal que ele julgouencontrar nesses povos, nomeadamente a força vital.

Na ideia de Tempels a força vital é espécie de uma realidade invi-sível que está por trás de todas as coisas que existem mas que estaforça é suprema no homem. Porque este homem pode reforçar a suaforça vital usando as outras forças vitais tanto dos homens como dasoutras criaturas ou coisas. Portanto, os termos tempo, mudança, azar,sorte, morte, vida, etc. são concebidos pelos bantu, segundo Tempels,a partir de uma realidade metafísica, força vital, que está presente emtodos esses casos. O que é particular aqui é que, como dissemos, ohomem pode interferir na interacção entre as diferentes forças vitais.E a capacidade de interferência do homem depende do conhecimentoque ele tem sobre as várias formas de interacção entre as diferentesforças vitais. Assim, conhecimento equivale ao saber ou poder influen-ciar a direcção da interacção entre as forças.

Concretizando: seguindo este raciocínio de Tempels, o detentor,ou o sujeito do saber nas sociedades bantu, é aquele que domina, nosentido de poder manipular, a relação entre as forças. Ainda segundoesse raciocínio, a categoria força é comparável à categoria «ser» (Seinou Being na tradição filosófica ocidental). Tempels pensa assim terdemonstrado, recorrendo à comparação, que os bantu possuem umaontologia, uma metafísica, enfim um pensar filosófico.

Vamos tentar compreender este autor por passos. Placide Tem -pels começa por colocar-se a seguinte pergunta básica: por onde devecomeçar aquele que genuinamente pretende estudar e compre enderos «povos primitivos»? (Tempels 1959,17) E a resposta que Tempelsdá-se a si mesmo é simples e complexa ao mesmo tempo. É simplesporque diz que «todo aquele que queira estudar os povos primitivosou évolués deve desistir da ideia de chegar a conclusões cientificamen-te válidas enquanto for capaz de perceber a sua metafísica», ou seja, a

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sua ontologia. (Tempels 1959,16) Por outras palavras, para Tempelsantes de se fazer qualquer estudo linguístico, sociológico, antropoló-gico, psicológico, jurídico ou ainda de uma outra ciência qualquer, épreciso estudar a ontologia, a cosmologia, a lógica, enfim a filosofiaque provavelmente está «escondida» por detrás do comportamento,dos valores e das ideias dos povos primitivos.

Até aqui a resposta parece muito simples e clara: que o estudo dafilosofia dos «povos primitivos», na sua versão metafísica, deve prece-der qualquer outro estudo em outras áreas científicas.

Entretanto, esta resposta, que parece simples, torna-se complexase olharmos para as intenções de Tempels, intenções estas que, emgrande medida, são ditadas pelo contexto histórico em que a sua obrafoi escrita.

E vamos tentar reduzir a complexidade do pensamento tempel-siano. A obra foi publicada pela primeira vez em 1945 no Congo, coló-nia belga com o título La Philosphie Bantoue6. A preocupação docolonizador belga era, portanto, melhor dominar aos povos primitivosafricanos do Congo. A dominação deveria ser de tal forma que, paraser efectiva, tinha necessariamente que compreender o lado físico eespiritual do «homem primitivo». Placide Tempels quer demonstrarcom a obra que, para melhor dominar ao homem colonizado, se deveprimeiro começar por dominar a sua alma, a sua mente. Pois, pergun-ta-se ele, quantas pessoas totalmente civilizadas podemos encontrarentre os nativos do Congo? (Tempels 1959,19).

E Tempels responde àquela pergunta anotando a existência demuitos africanos «materialistas» que, na sua óptica, não perderam assuas tradições ancestrais mesmo depois de terem entrado em contac-to com a civilização ocidental: the majority, however, remain “muntu”under a light coating of white imitation, a maioria, contudo, permanecemuntu mesmo que pareçam estar a imitar o homem branco, diz-nosTempels. O muntu pode falar em belga, pode comer como ele, podevestir-se como o homem branco, pode sentar-se à mesa e comer comfaca e garfo como o seu colonizador, pode até ter lido muitos livros

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(6) Em algum momento neste livro discutiremos, baseado em Hountondji, a confu-são linguística entre os termos «filosofia» e «sistema de pensamento» a que otítulo desta obra nos conduz.

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ocidentais, ou mesmo ter vivido na Europa por algum tempo, mas oque vai ser decisivo para dominá-lo é conhecer a alma deste muntuporque The gulf dividing Africans and Whites will remain and widen solong as we do not meet them in the wholesome aspirations of their ownontology (Tempels 1959,18), ou seja, o fosso da divisão entre os africa-nos (negros!) e os brancos (europeus!) vai permanecer ou mesmoaumentar enquanto nós (europeus, é claro) não dominarmos a suaontologia.

Tempels submete, assim, o missionarismo ao seu papel de auxiliar o Estado colonial para melhorar a administração do terri -tório e das almas que habitam este mesmo território. Só assim sepode compreender a «confissão» que Tempels faz na introdução daPhilosophie Bantoe: todos os missionários, magistrados, administra-dores coloniais, indivíduos que ocupam postos de direcção, «todosnós falhamos» por ainda não termos alcançado a alma «deles» (afri-canos). Esta «falha», a de não terem começado por explorar a onto-logia bantu, teve como consequência o poder limitado em ensinar aobantu a assimilar os ensinamentos dos brancos, especialmente os de ordem espiritual. Limita-se assim o crescimento intelectual dobantu para ele ascender à categoria de civilizados: «somente se nóspartirmos da verdade, do bom e do estável nos costumes dos nativosestaremos capazes de guiar os africanos em direcção a uma verda-deira civilização bantu.» (Tempels 1959,19) E Tempels vai aindamais longe ao asseverar que as igrejas podem ter uma arquitecturanativa, podem introduzir as melodias africanas na liturgia, podemusar vestimentas inspiradas localmente, mas a dominação real só seefectivará «quando adaptarmos o nosso espírito aos espíritos deles».Vemos, pois, que a via de conhecer a filosofia bantu para dominar asua alma e assim auxiliar às pretensões de dominação branca sobreos povos africanos, é muito complexa. Exige uma interpretação maisdeta lhada.

Porém, a missão de Tempels é muito clara: é a de demonstrar aoocidente que os povos primitivos bantu possuem um sistema de pen-samento; e todo aquele que deixar transparecer que estes povos nãotêm filosofia, estaria, na prática, a excluir estes homens e mulheres dacategoria de seres humanos. A «nossa missão» é destacar os elementosdo pensamento bantu, classificá-los e sistematizá-los «de acordo com

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o sistema ordenado e com as disciplinas intelectuais do mundo ociden-tal» (Tempels 1959,14). Em suma, o bantu e a sua ontologia deviamser introduzidos na ordem conceptual e religiosa do saber ocidental.Mas para isso tinha primeiro que ser elevado à categoria de umhomem também pensante.

Elevar ao bantu para uma categoria de homem pensante devecomeçar, segundo Tempels, por mostrar a sua metafísica. Isto porquepara Tempels, a metafísica estuda a realidade que existe em todas ascoisas e em todos os seres; é a metafísica que permite chegar a umarealidade comum de todas as coisas; e para chegar a esta realidadecomum será necessário, de acordo com Tempels, «eliminar todas asformas da realidade que pertencem à uma categoria singular do Ser»;é imperioso ainda deduzir os elementos que explicam a natureza doreal, do Ser. Neste caso trata-se de encontrar o elemento que constituia base da ontologia bantu. Para Tempels este elemento é a força(Tempels 1959,34).

A noção ‘força’ corresponde para o bantu o mesmo que a noção‘Ser’ para o europeu. Isto explica porquê é que, aos olhos do nossoautor Tempels, a ontologia bantu apresenta-se como sendo fundamen-talmente dinâmica e, pelo contrário, a ontologia europeia seja estática.

«Nós podemos conceber a noção transcendental do ‘Ser’ separan-do-a do seu atributo, mas o bantu não pode fazê-lo com a ‘força’.‘Força’ no seu pensamento é um elemento necessário do ‘Ser’.Não existe nenhuma ideia entre os bantu do ‘Ser’ divorciado daideia da ‘força’. Sem o elemento ‘força’, ‘Ser’ não é concebível.»(Tempels 1959,34)

Assim, onde o europeu vê o ‘Ser’ ou pensa nele, o homem bantupensa em ‘força’, diz-nos Tempels. Mas esta força não é um atributodo ‘Ser’ necessariamente: just as we have, so have they a transcedental, ele-mental, simple concept: with them «force», with us «being», ou seja, talcomo nós (os europeus) temos, também eles (os bantu) possuem umconceito transcendental, elementar e simples: para eles «força», paranós «Ser» (Tempels 1959,36).

Entretanto, existem vários tipos de forças: divina, celestial, ani-mal, humana, vegetal, a dos objectos materiais e a que emana dos

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minerais. Mas a força que emana do homem, do muntu, esta é «vital».Aliás, tendo em conta que força é para o bantu o que Ser é para oeuropeu, então resulta daí que o ‘Ser’ humano é, para o bantu, uma«força vital». Por isso Tempels conclui que «muntu significa forçavital»; aliás, o muntu é uma força vital para o bantu. Vital force is thereality which, though invisible, is supreme in man, isto é, a força vital é arealidade que, embora invisível, é suprema no homem. Somente aforça vital é que está dotada de inteligência, diferentemente dasoutras forças. Aliás, inteligência ou sabedoria, como veremos, significaa capacidade do homem usar a sua força vital para influenciar àsoutras criaturas. Bintu, ou seja ‘coisas’ (na língua Sena pinthu), sãotambém forças (ou seja: fazem parte do Ser), mas não estão providen-ciadas de razão. Deus, «o grande muntu», não as dotou da força vital,isto é, da razão, da inteligência.

Da mesma forma que todo o Ser é força, a categoria força incluitodo o Ser, desde Deus, os homens (vivos e defuntos), os animais, asplantas e os minerais. Tempels reconhece, entrementes, que os bantunão usam na sua linguagem quotidiana a categoria «força» significan-do «Ser». Bem pelo contrário, usam-na aplicada às coisas. Mas mesmoassim, diz-nos Tempels, ela é susceptível de ser deduzida como umacategoria metafísica ou como uma abstracção filosófica (1959,36).Neste passo, com esta ‘confissão’ tempelsiana, notamos que, de facto,Tempels está a objectivar o pensamento metafísico dos bantu. Pois, aoadmitir que eles próprios não usam como categoria metafísica, isto é,como um elemento comum por trás de todas as coisas, Tempels está adizer-nos que esta é uma dedução sua. É ele que está a extrair e a abs-trair o conceito de força como categoria fundamental da ontologiabantu. Embora querendo falar a partir de uma visão bantu (Tempelscompreende-se a si mesmo como uma espécie de mensageiro dogenuíno pensamento bantu para o ocidente), o que ele acaba fazendo éuma objectivação dos bantu.

Entre os bantu não existe o conceito ‘Ser’ imaginado como subs-tâncias que estejam lado a lado com outras substâncias de uma formaautónoma e independente. O estado normal das forças é o de estarema influenciar-se mutuamente numa relação ontológica. Esta relaçãodas forças é comparável à relação de causalidade nos termos da filoso-fia europeia porque o bantu vê a relação causal entre dois fenómenos

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como estando a emanar da natureza própria das coisas criadas porDeus. Uma força superior vai sempre influenciar a uma força inferior.A observação, melhor o estudo, da forma como essas forças actuam nanatureza das coisas é o que, segundo Tempels, constitui as «ciênciasnaturais» para os bantu. Assim, ciência não seria mais nada do que oestudo sobre as forças e sobre a sua mútua influência. Aquilo que oseuropeus chamam de «magia» africana, não passa de uma imaginaçãosua perante a incapacidade de compreender a ontologia bantu das for-ças. Se o europeu abandonasse a ontologia do Ser e adoptasse a onto-logia das forças — e esta mudança de posição epistemológica não temnada a ver com o primitivismo destas sociedades — seria já capaz denão achar tão ilógicas e supersticiosas as explicações que recebe dosnativos sobre determinados fenómenos naturais. Esta parece ser aconclusão a que chegamos quando lemos Tempels, especialmente noseu papel de porta-voz fiel da «filosofia bantu».

Há uma clara hierarquia entre as forças, diz-nos Tempels. Acimade todas as forças está Deus, o grande espírito criador de todas as for-ças, pois Ele dá a existência, o poder de sobrevivência e de aumentar aprópria força a todas as criaturas vivas e não-vivas. Depois de Deusos bantu imaginam a existência dos pais fundadores dos seus diferen-tes clãs, os archipatriachs, a quem Ele teria transmitido a Sua forçavital com o poder de influenciar o futuro todo. Estes constituem oprincipal elo de ligação entre o homem e Deus, segundo Tempels. Osarchipatriacs são considerados divinos porque, sendo imortais, são umaespécie de seres espirituais; já não têm nomes próprios. A essesseguem os mortos do clã que servem de ligação entre os pais funda-dores espiritualizados e os vivos; é através destes últimos que ainfluência às gerações vivas é feita.

Tempels imagina que a seguir estão os homens-vivos que, por suavez, estão estruturados segundo uma hierarquia de forças tambémmuito bem definida: o «mais velho» do clã ocupa a parte superior por-que é este que garante a ligação entre os antepassados e os vivos. Estelugar do mais velho é ocupado obedecendo às leis divinas, e não huma-nas. É o mais velho que reforça a sua «tribo» e todas as forças inferio-res, nomeadamente dos animais, das plantas e dos minerais. Segundo onosso padre Tempels, esta hierarquia divina rígida entre os bantuexplica a razão porque os nativos nunca chegaram a reconhecer os

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chefes impostos pelos governos coloniais, continuando a confiar e aobedecer ao seu «mais velho» na direcção das questões fundamentaisda sua «tribo».

Embora a vida esteja centrada no homem, os bantu, segundoTempels, têm um respeito profundo pelos mortos, porque in the mindsof bantu, the dead also live, isto é, na mente do bantu, o morto tambémvive (é um morto-vivo, dir-nos-á Mbiti mais adiante). Os bantu acre-ditam que estes mortos ainda não perderam a sua força vital por formas que continuam ainda naquele estado de existência a influen -ciarem a vida dos vivos já que eles supostamente parece possuíremmaior conhecimento sobre os segredos da vida e a forma como as for-ças interagem entre si. A partir desta sua posição pedestal de morto --vivos têm o maior poder de intervenção na vida dos vivos embora,note-se, com uma força vital diminuída por serem defuntos.

Na interpretação de Tempels, o homem branco é visto pelosbantu como um novo fenómeno que não estava previsto na sua hierar-quia ontológica das forças; porém e não obstante a isso, ele foi incor-porado na hierarquia bantu como um «grande mestre das forçasnaturais» dado que ele domina a tecnologia; esta tecnologia teria«impressionado» tanto ao bantu chegando a admitir que o homembranco fosse «mais velho», por isso uma força superior que supera aforça vital de todos os africanos; a tecnologia é assim comparada como «feitiço», ou seja, uma capacidade muito extraordinária de influen-ciar outras forças que ultrapassa a capacidade de todos os feitiços dosafricanos.

Na escala mais baixa na hierarquia das forças estão os animais, asplantas e os minerais que, segundo Tempels, teriam sido criados porDeus somente na perspectiva de estes servirem para aumentar a forçavital do homem enquanto este estiver vivo. Assim, aqueles são conce-bidos somente na sua condição de forças ao serviço da força vital, omesmo que dizer ao serviço do homem.

Neste ponto Tempels pensa ter descoberto as leis ontológicas dasua teoria de interacção entre as forças. No fundo, como dissemos, sãoleis que ele impõe aos bantu. A primeira lei é que o homem, nãoimporta se morto ou vivo, pode directa ou indirectamente aumentarou diminuir a força de um outro homem. A segunda lei reza que aforça vital do homem vivo pode influenciar directamente às forças

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inferiores (animais, plantas e minerais); daí segue a terceira lei queTempels formula: o ser racional (espírito ou vivos) pode agir indirec-tamente sobre os outros homens comunicando a sua força vital às forças inferiores referidas acima. Esta acção é considerada como«efectiva» salvo casos que se tentar aplicar sobre um outro ser huma-no vivo que possua uma força vital maior. Isto quer dizer que, para osbantu e segundo o porta-voz da sua filosofia Tempels, as forças infe-riores nunca por si mesmas podem agir sobre as forças superiores a simesmas na hierarquia geral das forças. Deve sempre haver uma forçasuperior à sua (neste caso um homem com poderes para tal) que devecomandá-los para perpetuarem os seus empreendimentos.

Daqui deriva uma importante conclusão de Tempels: que, entreos bantu, um sábio é aquele que domina a verdade, ou seja, domina asformas de influenciar as outras forças. Assim, um verdadeiro conheci-mento é ontológico no sentido que resulta do conhecimento das leisontológicas das forças; é uma inteligência das forças, da sua hierar-quia, coesão e interacção. E quem pode dominar estas leis são somen-te os mais velhos. Os jovens não podem saber nada sem o auxílio dosmais velhos. Por isso, conclui Tempels, o jovem pode estudar ou pro-curar a verdade por si mesmo, pode até ler muito, mas ele chegarásomente ao conhecimento e não à sabedoria. O estudar ou ler muitonão significa o mesmo que sabedoria; só leva ao domínio da técnica,mas não ao conhecimento da interacção ontológica das forças.

Chegamos assim ao que se designa por curandeiro. Para Tempels,este não é mais do que alguém que possui uma clara visão sobre asforças naturais e da forma como elas interagem entre si. É um homemque tem o poder de seleccionar as forças da natureza para influenciar(aumentar ou diminuir) a força vital dos outros homens. Mas estesomente pode fazê-lo após ter sido iniciado, isto é, instruído nestesentido. A instrução do iniciado começa, porém, depois de o seu tutorter a máxima certeza que este não vai usar o conhecimento que temdas forças que actuam na natureza em prejuízo dos outros homens ouda comunidade.

Parece-nos que todo este exercício de Tempels foi para chegar àseguinte pergunta que ele mesmo formula e responde positivamente:têm os bantu um conhecimento que possa ser considerado racional,isto é, não mágico? Equivale a perguntar se eles têm filosofia no

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sentido de eles terem um pensamento que pode ser considerado críc tico. Pois claro que, pensa Tempels, os bantu (também) são racio-nais: então não preparam armadilhas para caçarem? Não entrelaçamas cordas para fazerem os seus cestos? Não escolhem os melhores ins-trumentos para a caça? E não preparam os seus assaltos aos animaisque precisam para caçar? Enfim, não usam uma certa lógica humanapara planificar estas actividades todas? Embora nestas actividades osbantu nunca abandonem as suas crenças em forças metafísicas, istoporém não significa que eles sejam irracionais. Na perspectiva tem-pelsiana, o facto de os bantu acreditarem nestas forças e agirem nabase delas não nos pode autorizar a falar de «magia» em vez de«razão» pois eles «sabem muito bem» que o aprontar uma boa canoaou armadilha de caça ou um outro objecto qualquer, depende tão --somente das suas próprias capacidades e não duma força metafísicaexterior a si mesmo.

A ontologia bantu apoia-se, por isso, numa forte observação danatureza donde deduz a possibilidade para o seu uso. É desta filosofiabaseada na observação que eles (os bantu) derivam as suas acçõessobre a natureza e a sociedade.

Se é assim, isto é, se os bantu têm uma filosofia, então eles sãocríticos. Para Tempels é inconcebível falar-se de uma filosofia que nãoseja crítica (Tempels 1959,60). Isto não significa que eles estejam cor-rectos em todas as suas observações: «é totalmente outra questãoverificar se as suas observações foram feitas correctamente ou não; ouse as suas deduções têm ou não erros de raciocínio. Um sistema defilosofia pode ser chamado por ‘crítico’ mesmo que tenha sido provadocomo falacioso», remata-nos Tempels. Pois, os bantu chegam a con-clusões razoáveis dentro do seu sistema filosófico, e é neste contextoque devemos considerar ser um sistema crítico. Então «nós não com-preendemos a causalidade no contexto da nossa metafísica do Ser e obantu também no âmbito da sua metafísica das forças? Então porquêconsiderar o sistema ocidental como crítico e o dos bantu acríticosirracional?», pergunta-se Tempels com eloquência na defesa da suafilosofia bantu.

Depois de atribuir uma filosofia aos bantu, Tempels, no seu últi-mo capítulo e depois de desenvolver a psicologia e a ética bantu deri-vadas da sua ontologia, explora a possibilidade de usar esta filosofia

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bantu para melhorar a missão de civilizar o bantu: […] we shall beobliged to revise our fundamental ideas on the subject of “non-civilized peo-ple”: to correct our attitude in respect of them, somos (nós europeus) obri-gados a revisitar as nossas ideias fundamentais sobre o sujeito dos«povos não-civilizados» para corrigir a nossa atitude a seu respeito,propõe-nos ele (Tempels 1959,109).

Com a sua ontologia o padre Tempels pensa ter capturado a almado bantu. Restaria agora cumprir a última missão: civilizá-lo. Poroutras palavras, tornar a colonização dos «povos primitivos» maisdócil. Para isso há a necessidade de acreditar que os «povos primiti-vos» não são uma tábua rasa. Eles já possuem uma matriz ontológicade pensamento a partir da qual podemos pensar nas melhores formasde aproveitar para o «nosso» propósito de trazê-los para a civilização;também teremos que deixar o pressuposto pedagógico de que «esta-mos» a tratar com «crianças grandes» às quais devemos educar.

Para o padre Tempels civilizar significa dar atenção ao homemafricano e não em primeira linha à industrialização, à introdução deuma economia a moda europeia ou ao aumento da produção pois estespodem concorrer para a destruição da civilização africana que impor-ta conservar a todo custo. Um verdadeiro projecto de missão civiliza-cional põe à frente de tudo a educação do espírito humano, neste casodos bantu:

«... é um crime contra a educação impor à raça humana uma civi-lização desprovida de filosofia, da sabedoria prática ou de aspira-ções espirituais; seria ainda uma maior ofensa desprover aospovos do seu património, em que somente na posse do qual pode-ria haver um ponto inicial para uma civilização mais elevada.»(Tempels 1959,113)

Mas, podemos encontrar na sabedoria bantu um ponto de partidaestável a partir do qual se pode construir uma civilização bantu?Pergunta-se padre Tempels. É claro que podemos encontrar esteponto de partida: a própria força vital constitui este ponto dado que afinalidade última a partir da qual todo o muntu dá sentido às suasacções é o aumento (ou ainda a protecção) da sua força vital! Pelaforça vital ele está disposto até a morrer, se for necessário: então não

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usa ele as raízes, os amuletos e os rituais espirituais para aumentar asua força vital? Não será essa uma prova suficiente para concluir queo muntu nunca estará disposto a abandonar a sua ontologia paraabraçar uma outra que lhe é imposta? Os brancos já deveriam ternotado que o muntu, independentemente do massivo investimento naeconomia e na missionação cristã, não está disposto a abandonar a suafilosofia de vida. Também os brancos já deveriam ter notado que omuntu conserva basicamente os seus valores cujo substrato são as leisontológicas que expusemos acima. A força vital permanece o únicoelemento básico da vida do muntu.

Mesmo que existam os que correm atrás dos bens materiais quea civilização europeia traz, ou os que andam a procura do confortodaquela civilização, o que este quer é, no fundo, ser tratado com res-peito e dignidade e não como um monkey (macaco), conclui o nossoPlacide Tempels.

Para Tempels os europeus brancos não deveriam esquecer umpormenor importante, nomeadamente que desde a sua chegada à Áfri-ca, os bantu enquadraram-nos a partir da única perspectiva que selhes oferecia: a sua ontologia de forças. Isto é, a partir dela, considera-ram os europeus como seres superiores porque estes dominam as for-ças da natureza uma vez terem demonstrado a sua superioridadetecnológica. Então, o que o bantu pôde querer, no fundo, é partilharcom o homem branco esta sabedoria para ele poder aumentar a suaprópria força vital. The natural aspiration of the Bantu soul was thereforeto be able to take some part in our superior force, isto é, a aspiração naturaldos bantu foi, portanto, poder ser capaz de tomar uma parte da nossa(dos europeus) força superior. Portanto, o que os bantu vão de certezareceber com um sentimento de gratidão muito profundo é a «nossasabedoria» que, na perspectiva dos bantu, será «a nossa capacidade deaumentar a força vital.» (Tempels 1959,116)

Mas por outro lado, se o branco quiser ter algum sucesso na suamissão de civilizar aos povos bantu, deve apresentar-lhes o que ofere-ce em troca, nomeadamente a educação e a missionação, como algoque pode aumentar a força vital dos bantu. A Weltanschauung, os ideaisda vida, o sistema moral ou qualquer outra coisa que «quisermos»que os bantu aceitem, deveriam ser ligados à ideia do aumento daforça vital.

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Em suma: The Bantu can be educated if we take as starting pointtheir imperishable aspiration towards the strengthening of life, ou seja, osbantu podem ser educados [civilizados] se nós tomarmos comoponto de partida a sua aspiração permanente em fortificar a vida!Enfim: a fórmula para civilizar os bantu já foi encontrada, e encontra-da pelo nosso Placide Tempels.

Podemos perguntar ao padre Tempels se os próprios bantuconhecem esta fórmula final: «Não!», teria respondido o ilustre mis-sionário: «se perguntares a um muntu normal na rua se já ouviu falarde qualquer coisa chamada de força vital, naturalmente ele virar-se-ápara ti e fará uma cara surpresa». Mas, e esta é a ideia que o padreTempels nos parece querer a todo custo dizer, este mesmo muntu vaicomportar-se em todas as fazes da sua vida individual e na comunida-de como se estivesse a obedecer às leis ontológicas da força vital. Ouseja, a fórmula científica (filosófica, neste caso) está basicamente«implícita», «escondida», «congelada» por trás do seu comportamen-to à espera que um etnofilósofo (ou um etnocientista hoje) a venhadesvendar, revelar e contá-la para a comunidade científica.

Será o caso e o momento para voltar a perguntar: quem de factoestá a filosofar? O padre Tempels que descobriu a fórmula para o cum-primento da missão de civilização ou o muntu que se comporta nabase de uma fórmula para ele desconhecida mas que se manifesta«implicitamente» no seu comportamento?

Após o texto fundador da etnofilosofia de Tempels, publicado,como dissemos, em 1945, surgiram várias outras tentativas de confir-mar a ideia de Tempels. Marcel Griaule escreve, nesta senda, a obraDieu d’eau, entretiens avec Ogotommêli publicada três anos mais tarde,em 1948. Trata-se de um texto que contempla uma longa entrevistaque Griaule, etnólogo francês, fez ao velho Ogotommêli membro dopovo Dogon do sul do Mali. Nesta entrevista o velho Ogotommêli fazincursões sobre a cosmologia, a metafísica e religião dos Dogon.Encontramos nesta obra de Griaule (ou de Ogotommêli?) a tentativade equivaler a obra de Tempels entre os Bantu, desta feita, porém,relacionando com as regiões culturais da África Ocidental particular-mente do Sudão, dos Camarões e do Chade.

Segundo Griaule, ou por outra, segundo Ogotommêli tal e qualcomo é transcrito, a existência só pode ser compreendida a partir da

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existência de Amma que é o Deus supremo e o princípio geral detodas as coisas do universo e do movimento. Este terá criado o Nom -mo que é a palavra, a água e o calor ao mesmo tempo. Pro vavel menteo calor seria o responsável pelo desenvolvimento do movimento ou damudança das coisas. Sem querer entrar muito nas incursões deOgotommêli, notamos aqui que o Nommo apela à teoria cosmogónicade Anaximandro que justificou racionalmente a existência de todas ascoisas a partir do Apeiron.

De novo, notamos em Griaule três aspectos que podemos tornarfrutíferos para o nosso propósito: primeiro é a metodologia de demons-trar a existência da cosmogonia a partir de um apetrecho conceptualfundacionista grego. A segunda: de facto quem é o autor dessas ideias?Será, Griaule que transcreveu a entrevista e a publicou em forma delivro? Ou será Ogotommêli, o «sábio» da cultura Dogon (que por sinalmorreu pobre)? A terceira: levanta-se a questão até que ponto o saberde Ogotommêli está em si ao nível da conceitualização filosófica (críti-co), ou coloca-se apenas ao nível da descrição dos costumes e tradiçõescom alguns momentos explicativos.7 Esta última questão levanta umaoutra ainda mais premente, e que, por extensão, deverá ocupar o traba-lho prático da filosofia num contexto das culturas africanas, nomeada-mente qual é a posição do filósofo (neste caso exemplificado emGriaule) ao «transcrever» o discurso dos sábios e letrados (neste casoexemplificado por Ogotommêli)? Deverá o filósofo que transcreve assu-mir uma posição conceptual da filosofia puramente académica na qualele foi treinado seguindo o questionamento cosmológico, epistemoló -gico e ético? Ou assumir uma posição que implica adoptar um quadroconceptual que de alguma forma, emerge a partir do discurso deOgotommêli (etnofilosofia)? Só para adiantar uma outra posição dofilósofo que seria possível nós assumirmos como filósofos (como aliás,como veremos, Kwasi Wiredu assume). Esta seria induzir «situações eespaços narrativos» nos quais o próprio Ogotommêli se viria na neces-sidade de entrar num diálogo crítico intersubjectivo. Ora, este últimoaspecto discutiremos mais adian te, na última parte deste livro.

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(7) Mais tarde, neste livro desenvolveremos aquilo que, por hipótese de trabalho cha-maremos como níveis de narrativas científicas que são, também por hipótese, (1)descritivo, (2) explicativo ou explanatório e (3) justificativo ou conceitual-crítico.

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Devido à similitude do projecto metodológico e epistemológicode Alexis Kagamé em relação a Tempels não iremos alongar muito naanálise deste. Segundo Masolo (1995,84pp.), Kagamé pertence a umageração intelectual africana que se impôs a si mesma a tarefa de darmaior fundamento às hipóteses levantadas por Tempels: descobrir oSein nos Bantu, desta feita, através da análise das categorias da lin-guagem. Nas suas obras de maior impacto — La Philosophie Bantoe,Ruandaise de l’être (1956) e La Philosophie Bantu Comparée (1976) —Kagamé busca as categorias filosóficas que expressam o Sein na estru-tura linguística dos povos Bantu. Ele «descobre» uma estrutura simi-lar em todas as línguas Bantu que gravita em torno da radical Ntu,pensando com isso ter descoberto o conceito equivalente ao Sein ouBeing. Em volta dessa radical Kagamé desenvolve uma série de ilaçõesde ordem metafísica, ética, psicológica até mesmo teológica. No qua-dro deste ensaio Kagamé só nos interessa por aquilo que foi conside-rado fulcral no empenho filosófico em contextos culturais africanos:que é o problema da comparação conceptual a partir de substratoslinguísticos diferentes. Assim, em relação à pergunta anteriormenteposta (nomeadamente se o filósofo deve ou não recorrer a uma posi-ção intrínseca ou extrínseca na busca dos conteúdos filosóficos nasculturas) Kagamé, em nosso entender, opta pelo enxerto do conceitoacadémico ocidental Sein ou Being numa tradição cultural linguísticadiferente, que é a Bantu, ao equivaler a radical Ntu a toda discussãoontológica em volta do Ser.

Filosofia por trás da Religião

A mais citada obra na academia africana do reverendo John S. Mbitié, sem dúvidas, African Religions and Philosophy, publicada em 1969. É importante perceber que esta obra foi concebida e escrita sob opano de fundo das aulas de filosofia que o autor dava nas universi -dades de Makerere (Uganda) e de Hamburg (Alemanha). Isto expli-ca, por um lado, a fragmentação do texto em vários capítulos etemas na tentativa de dar uma ideia geral da forma como os africa-nos pensam filosoficamente a partir dos conceitos e práticas tradi-cionais religiosas; explica também, por outro lado, o imperativo de

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ser filosoficamente etnocêntrico: Mbiti tinha de demonstrar aos estu-dantes europeus que os africanos têm uma outra forma de pensar e deconceber o mundo em que vivem; enfim, esta mistura de público euro-peu e africano torna compreensível a tendência de Mbiti em expor afilosofia africana duma forma muito folclórica, mesmo que escondidapor trás de práticas religiosas.

Como que antevendo as críticas etnofilosóficas (particularmentea crítica unanimista de Hountondji) que iria ser feito responsávelpelos seus colegas, Mbiti começa ele próprio por ser muito apologé -tico: logo nas primeiras páginas do African Religions ele assevera que,na sociedade africana, há muitas práticas e crenças religiosas, porémnão formuladas sistematicamente sob forma de dogmas na base dasquais esperamos que um africano aceite seguir. As pessoas simples-mente assumem as ideias e observam as práticas em família e emcomunidade. No entanto, avisa-nos Mbiti (1969,3), quando ao longodo seu texto diz que esta ou aquela sociedade ou comunidade «acredi-ta» nisto ou naquilo, ou, quando «pratica» este ou aquele rito não sig-nifica que todos os membros naquela sociedade ou comunidadesubscrevam a tal crença ou pratiquem o mesmo rito. De facto nãopode haver unanimidade alguma na prática dos ritos nem nas crençase nem ideias, alerta-nos Mbiti.

A falta de unanimidade nas práticas e nas crenças explica-se,segundo Mbiti, pelo facto de não haver nas religiões africanas credosa serem recitados; em contrapartida os credos estão escritos nos cora-ções das pessoas individualmente e cada um vive o credo da sua reli-gião provavelmente de forma diferente.

Só que, esta pequena ‘desculpa’, não lhe fez escapar da nossa clas-sificação de ter sido um dos principais construtores do referencial deobjectivação no quadro da auto-inscrição dos africanos na história dopensamento. Vamos por partes.

Segundo Mbiti (1969,2), filosofia africana refere-se à compreen-são, atitude da consciência, lógica e percepção por trás da maneiracomo os povos africanos pensam, agem e falam em diferentes situa-ções da vida. Essa definição da filosofia africana justifica-se, segundoMbiti, pelo facto de os sistemas filosóficos que os diferentes povosafricanos seguem não terem sido ainda formulados. O trabalho de umfilósofo africano, deduz-se, é o de ser capaz de formular pensamentos

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filosóficos, que podem ser encontrados na religião, nos provérbios, nastradições orais, na ética e na moral de uma determinada sociedade.Para Mbiti os provérbios devem merecer uma atenção especial porqueo seu conteúdo filosófico é principalmente contextual ou situacional.

Embora a ideia com que se fica quando se lê as críticas feitas aMbiti (Masolo e Ngoenha) é que aquele (Mbiti) confunde religiãocom filosofia, não conseguindo separar ambas conceptualmente, noentanto, pensamos nós, que o próprio Mbiti (1969,1p.) tenta sim dife-renciar os dois conceitos, se lermos com atenção devida o seu texto.Para ele, religião pode ser discernida em termos de crenças, cerimó-nias, rituais, etc. No entanto, segundo Mbiti, o pensamento filosóficonão é facilmente destacável. Filosofia refere-se à forma como os povosafricanos compreendem os diferentes aspectos da vida. A filosofia está«por trás» do pensamento e da acção de toda a pessoa e o estudo dasreligiões tradicionais traz-nos para essas áreas da vida dos africanosonde, através da palavra e da acção, poderemos estar em condições dediscernir a filosofia «escondida». Para descobrir esta filosofia escondi-da teremos que fazer um grande trabalho de interpretação do quepodemos estar a observar e a ouvir, assevera-nos Mbiti.

Assim, Mbiti estava profundamente convencido que os conteúdosfilosóficos nas culturas africanas revelam-se por baixo dos conceitos,práticas e linguagem das religiões tradicionais africanas. Segundo ele,a experiência africana com as religiões é o espaço privilegiado paraderivar a cosmovisão dos africanos em relação à vida, em relação àsentidades metafísicas e também em relação aos valores principais queorientam os africanos. Para ele, religião é parte da herança africanaque remonta a séculos da história humana em África. Daí que ao for-mular conceptualmente a experiência religiosa estamos necessaria-mente a encarnar não só o presente dessa experiência como tambéme, sobretudo, uma grande parte da carga do passado tradicional e —quanto a nós inexplicavelmente (sobre este aspecto voltaremos maisabaixo) — uma pequena parte do futuro.

Porquê será que Mbiti «escolhe» a religião para fonte das suaslucubrações filosóficas, ou seja, a esquina a partir da qual se deve pro-curar discernir os conteúdos filosóficos no meio de tudo o que os afri-canos pensam, dizem e fazem? Em nossa opinião, esta escolha pôdeser por duas razões. A primeira é a mais óbvia e não precisa de muito

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fundamento: é a de que Mbiti é reverendo e teólogo e ensinara acadeira Religião Comparada, como dissemos atrás, nas universidadesde Makerere e de Hamburgo. A segunda razão é, porém, a mais pro-funda e por isso a mais interessante.

Mbiti (1969,4p) adianta, a partir do estudo comparado sobre asreligiões, cinco particularidades na forma como os africanos se mani-festam religiosamente. Sobre a primeira particularidade já fizemosreferência quando definimos a filosofia na sua óptica: Crenças e práti-cas não devem ser separadas nas tradições africanas. Esta particulari-dade deriva do facto que destacamos acima, nomeadamente da suaopinião de que as religiões africanas não estão escritas nos papéis (à semelhança da religião cristã, por exemplo), mas sim nos cora -ções, nas mentes, na história oral, nos rituais que as pessoas praticam. E, consequentemente, as personagens religiosas não são padres, massim os rainmakers (fazedores-de-chuva), idosos que orientam as ceri-mónias e mesmo reis. Toda a gente tem, em algum momento, umacarreira religiosa, escreve Mbiti referindo-se com «toda gente» aosafricanos. Assim, estudar as religiões africanas não é somente estudaras ideias que os africanos provavelmente têm sobre Deus e os espíri-tos; é também e sobretudo estudar a jornada de vida de cada indiví-duo que é o responsável formal para a orientação das diferentescerimónias que fazem parte da vida de uma comunidade.

A segunda peculiaridade das religiões africanas, adiantada porMbiti, é a de que elas não têm, à partida, a pretensão de serem univer-sais. Confinam-se à comunidade que servem, seja ela de dimensão«tribal» ou «nacional». Cada religião está ligada à terra, à comunida-de e a um contexto determinado. Assim também a sua propagaçãopara comunidades para além do seu contexto original é quase difícil,mesmo que algumas ideias possam duma ou doutra forma influenciarcomunidades circunvizinhas. No entanto, para a sua plena propagaçãofaltaria às religiões africanas um missionário ou missionários quetivessem na sua mente este horizonte, como vimos na primeira parti-cularidade. Na perspectiva de Mbiti, no contexto das religiões tradi-cionais africanas, «um indivíduo não prega a sua religião para umoutro». Contudo propagam-se. A propagação das religiões tradicio-nais africanas não se faz, contrariamente ao que acontece no caso dasreligiões universalistas, de forma intencional, senão espontaneamente

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através de migrações, dos casamentos, das conquistas, etc. A partirdesta peculiaridade Mbiti tem a certeza de que estará a ser fiel aopensamento contextualizado, ou seja, que diz respeito à sociedade oucomunidade em estudo.

A terceira particularidade das religiões africanas descrita porMbiti é muito curiosa: é que, segundo ele, não existe conversão deuma religião para uma outra. Isto explica-se porque, como já nosreferimos atrás, cada comunidade tem a sua própria forma religiosa dese manifestar e estas manifestações decorrem ao longo de todosmomentos principais da vida. Assim, «exportar» determinada religiãode uma comunidade para uma outra implicaria também exportar todoum modo de vida. O membro de um conjunto de crenças religiosas«nasce» na respectiva comunidade; não se «converte» para passar apertencer a ela. Em jeito de ironia Mbiti acrescenta dizendo que oseuropeus que se dizem convertidos para uma determinada religiãoafricana, o que fazem de facto é somente observar alguns rituais afri-canos (como por exemplo deitar bebida no chão para venerar os ante-passados [que antepassados?]) e pensam estar assim a pertenceràquela religião; seguir rituais não é converter-se. Com esta caracterís-tica Mbiti mostra uma outra face do que comummente se denominapor «naturalismo» das religiões africanas. Pois, o naturalismo delasnão reside somente no facto de procurar simbolizar deuses nos seresnaturais tais como montanhas, árvores, animais, etc.; para Mbiti,implicitamente, o naturalismo deve-se também ao facto de que osmembros de uma determinada religião ‘nascem’ nelas e ninguém(nenhum africano, compreenda-se) pode mudar de religião, ou seja, irprofessar uma outra religião tradicional, neste contexto. O homemafricano nasce naturalmente religioso e está condenado àquela religiãoprofessada pela comunidade em que ele porventura terá a sorte ou oazar de ter nascido.

Desta forma de compreender o naturalismo religioso dos africa-nos (a partir do nascimento dos seus membros) deriva a quarta parti-cularidade das religiões africanas, segundo Mbiti: não pode nascer, noseu seio, nenhum fundador e muito menos um reformador. Os quetêm o privilégio de ser considerados como uma espécie de fundadoressão, de facto, os heróis, os líderes e outras pessoas que tenham gran-jeado uma certa fama em outras esferas da vida política, social ou do

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saber. Ou seja, independentemente de uma pessoa (neste caso umherói ou um líder ou ainda um rei) ter feitos religiosos ou não, ele éautomaticamente integrado na história do mundo religioso da comuni-dade em que ele vive. Em alguns casos esses líderes políticos ouheróis, obtêm um estatuto quase-divino no quadro das ideias e práticasreligiosas tradicionais. Os seus feitos são vistos como estando a cum-prir uma missão mandatada por Deus.

Um último aspecto — a quinta e última particularidade — é que,dito de forma mais simples, nas religiões africanas não existe paraísono qual teremos uma vida plena e nem um inferno onde teremos uma«vida horrível depois da morte». Dito de forma mais complexa, Mbitidiz-nos que, embora em todas as tradições religiosas africanas existaa ideia de uma vida após a morte física, esta crença, porém, não levaaos africanos a cultivarem a esperança de um futuro glorioso paraalém da vida que levam aqui na terra. Assim, para os africanos, viveraqui e agora (mas de uma forma honrosa e boa) torna-se muito maisimportante e interessante para a ética religiosa. Mesmo a vida espiri-tual após a morte é concebida, de certa forma, numa perspectivamaterialista: os antepassados mortos ainda comem e bebem connosco,intervêm nas nossas vidas e falam connosco; às vezes são mesmocapazes de nos visitar em casa. As tradições religiosas africanas estãomais preocupadas com o Homem do passado e do presente e muitopouco com o Homem do futuro. Não há, portanto e segundo Mbiti,nas religiões tradicionais africanas uma espécie de esperança mes -siânica, ou o contrário, uma visão apocalíptica. Deus, na perspectivadestas tradições segundo Mbiti, está numa relação utilitarista e prag -mática com o Homem africano, e não numa relação rigorosamenteético-espiritual.

Pensamos que nesta última peculiaridade reside a razão funda-mental pela qual Mbiti escolhe a leitura da filosofia a partir da reli-gião (melhor dito, da religiosidade) africana. É uma troca muitogran de dos termos: o que Mbiti talvez tem no horizonte, na nossainterpretação, é mostrar que, na perspectiva das religiões tradicionaisafricanas, é Deus que deve servir ao Homem e não o Homem servir aDeus, segundo a tradição cristã e islâmica. O Homem africano recorrea Deus quando O precisa para justificar as suas actividades ou actos;dito em outras palavras, o pensamento religioso no contexto africano,

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seria o reflexo de práticas e de desafios que o homem tem na vida enão em primeira linha um caminho para um futuro melhor e prodi-gioso no paraíso colocado para além das nossas vidas. Nesta ordemde ideias, o «salto» que Mbiti parece fazer da religião para a filosofia— o que Ngoenha e outros filósofos africanos criticam — está,tomando a perspectiva de Mbiti, mais que justificado: a religião afri-cana constitui uma fonte para aferir as formas particulares de reflexãodos africanos sobre as questões cruciais da sua vida individual ecomum, intelectual e espiritual. Não admira, pois, que Mbiti declareno African Religions o seu método como sendo simultaneamente «des-critivo» e «interpretativo». Seguindo a tradição etnográfica, ele mos-tra, primeiro, como os africanos fazem as suas cerimónias e ritos, ouainda como estes seguem as suas tradições milenárias (descrição)para, segundo, ele próprio mostrar ou evidenciar que conteúdos filo-sóficos estariam por trás destas tradições (interpretação). Este cami-nho para a objectivação dos africanos podemos considerá-lo comosendo «clássico» porque é notável que o mesmo tem sido largamenteseguido por pensadores e intelectuais africanos. Primeiro deve dizer --se como o africano faz as coisas de uma forma «diferente», paradepois justificar que ele pensa assim (ou ainda pior, que ele tambémpensa assim!).

Passemos agora a examinar o conceito a partir do qual Mbitiobjectiva, incrusta, inscreve a forma como os africanos pensam, ageme falam dos seus projectos: o conceito de tempo. O conceito de tempoé central para Mbiti. A noção do tempo, pode deduzir-se, é a placagiratória de toda a obra African Religions. Por isso é que Mbiti, no seucapítulo inicial, The Concept of Time, começa por esclarecer este con-ceito. De novo, porém, para a compreensão do conceito de tempo emMbiti, teremos de começar a examinar a sua ideia de religião.Religião, esclarece-nos Mbiti (1969,15), é um fenómeno ontológico.Isto quer dizer que, a vida do indivíduo e da comunidade, na perspec-tiva tradicional africana, está, em todas as suas fases e dimensões,intimamente inserida na religião e guiada por ela. Pois, a religião estápresente desde o período pré-natal até depois da morte. O Homemtradicional africano vive num universo religioso. Tanto o mundocomo todas as actividades do homem são vivenciadas e experimenta-das a partir do seu significado religioso (religiosidade): os nomes das

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pessoas têm um significado religioso. As pedras e outros objectos nãosão somente objectos vazios, mas sim religiosos. O som do batuquefala uma linguagem religiosa. O eclipse do sol ou da lua não é somen-te um fenómeno natural, mas um fenómeno que fala para a comunida-de que o observa, avisando sobre uma possível calamidade. O ponto éque, diz-nos Mbiti, para os africanos, toda a experiência de vida é umfenómeno religioso, o homem africano é um Ser que vive profunda-mente num universo religioso.

No entanto, continua Mbiti, o que distingue a religiosidade afri-cana é o seu antropocentrismo, diferentemente do teocentrismo divul-gado pelos missionários europeus espalhados por toda a África. Istonão quer dizer que os africanos não (re)conheçam Deus. Bem pelocontrário! Deus é visto como uma entidade que está na origem (géne-se) do Homem e das coisas em volta deste. Ele é o criador de tudo e,nesta perspectiva, Ele ocupa o primeiro lugar na ordem ontológicaafricana. Abaixo de Deus encontramos os espíritos que são uma espé-cie de seres super-humanos cuja proveniência, no entanto, é atribuídaa seres humanos que morreram «faz muito tempo». Depois dos espí-ritos, i.e., em terceiro lugar, mas não por isso o menos importante,está o Homem. Nesta categoria Mbiti inclui os homens vivos e osainda-por-nascer. O Homem está no centro da chamada Ontologiaafricana. Na quarta posição encontramos os animais e plantas (seresbiologicamente vivos que não sejam humanos) e que são consideradoscomo fenómenos naturais. Na quinta e última posição estão os fenó-menos e os objectos inanimados que, juntamente com os animais eplantas, proporcionam o ambiente em que o Homem vive, providen-ciam meios de existência ao Homem.

Todas estas categorias ontológicas formam um sistema solidárioque não pode ser interrompido ou cortado, continuamos a interpretarMbiti. O que mantém este sistema a funcionar, duma forma ordináriae solidária, é aparentemente uma força, poder ou energia que permeiatodo o universo ontológico. Deus é a entidade que controla, em últi-ma instância, esta força, mas os espíritos têm acesso a uma (ou em)parte dela (não esqueçamos que estes pertencem a pessoas mortas já«faz muito tempo»).

No entanto, poucos homens têm a capabilidade de conhecer comoestas forças agem podendo, a partir deste conhecimento, manipular ou

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usá-la a seu favor ou ainda a pedido de um outro homem a favor dele.Estes homens também podem usar estas forças para o bem ou para omal da comunidade inteira. Estes homens são os curandeiros, feiticei-ros, adivinhos, pastores, etc. dependendo dos casos e do tipo de forçasque dominam.

Chegado a este passo Mbiti começa por tentar estabelecer a rela-ção entre esta Ontologia e o sistema religioso para justificar a suaproposta antropocêntrica. Para estabelecer esta relação Mbiti pensaque é central perceber o conceito africano de «tempo» que, segundoele, é básico para perceber os restantes conceitos religiosos e filosófi-cos dos africanos; segundo ainda Mbiti, esta noção ajuda-nos a perce-ber as crenças, as atitudes, as práticas e, de forma geral, a entender avida não só tradicional como também a moderna dos africanos.

Mbiti explica que a noção de tempo, entre os africanos, refere-sea uma espécie de um conjunto de eventos que ocorreram no passado,os eventos que (provavelmente) estão a ocorrer no presente e aqueleseventos que estão imediatamente por ocorrer. O que não ocorreu ou oque não vai ocorrer imediatamente, portanto os eventos não contidosno conjunto, são simplesmente «no-time», diz-nos Mbiti. Entretanto,aquele tipo de eventos que se tem a certeza absoluta de que irão ocor-rer, e isto particularmente no campo dos fenómenos naturais, portan-to inevitáveis, caem na categoria de «tempo potencial» (potential time).De acordo com Mbiti, a consequência mais significativa desta formade classificar os eventos ou fenómenos naturais e sociais, é conceber --se o tempo como um conceito bi-dimensional, com um passado longo,um presente e virtualmente sem futuro. Ou seja:

«O conceito linear do tempo no pensamento ocidental, com umpassado indefinido, presente e um futuro também indefinido, épraticamente inexistente no pensamento africano. O futuro [nopensamento tradicional africano] é virtualmente ausente porqueos eventos que estão nele ainda não aconteceram, ainda nãoforam compreendidos, portanto não podem constituir tempo. Se,contudo, eventos futuros dão-se como sendo certa a sua ocorrên-cia, ou fazem parte do ritmo inevitável da natureza, eles consti-tuem somente o tempo potencial, e não o tempo actual.» (Mbiti1969,17)

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Por isso, diz-nos Mbiti, o tempo actual implica e contém automa-ticamente o passado. O tempo, entre os africanos, move-se em direc-ção ao passado e não ao futuro, como é o caso na concepção ocidental.Esta orientação bi-dimensional do tempo (presente e orientação parao passado) domina a forma como o africano compreende-se a simesmo enquanto indivíduo, como ele compreende a sua comunidadecultural e o compreende o universo como um todo. O tempo deve serprimeiro «experienciado» para que ele faça sentido para o africano.Assim, por exemplo, um indivíduo só pode ser efectivamente com-preendido na medida em que se desvendar a sua história, isto é, reve-lar a sua ligação com os seus antepassados. Uma pessoa só o é comotal quando tem toda a carga dos seus antepassados consigo. A pessoanão é qualificada em termos do seu futuro ou do que provavelmenteestá a preparar para o seu futuro, simplesmente porque estes eventosainda estão por ocorrer. Portanto, segundo Mbiti pensa perceber osafricanos, não tem muito sentido qualificar uma pessoa na base de umfuturo hipotético, «ainda por vir».

Para compreendermos a noção de tempo que Mbiti julga ter des-velado entre os africanos, na sua dimensão cronológica, há dois con-ceitos importantes a explicar: são os conceitos do Sasa e do Zamani. O Sasa cobre o período-presente; é o período de preocupações imedia-tas durante o qual se cruzam as existências individual e colectiva daspessoas que estão vivas no mundo material; podemos entender o Sasacomo o período da experiência pessoal com a sua própria existência.Nesta perspectiva, o futuro (no sentido de ser algo por vir) seriaextremamente breve e imediato. Isto é assim dado que, explica-nosMbiti, qualquer «evento futuro», para ter algum sentido e significado,deve ser imediato porque as pessoas devem ter a certeza que ele vaiocorrer. Os eventos, para fazerem parte do Sasa, ou seja, para fazeremalgum significado ou terem algum sentido, devem estar quase a ocor-rer, ou estarem no processo da sua realização; ou ainda devem estarno horizonte da experiência actual. Quando, pelo contrário, intui-seque um evento está num futuro longínquo, então ele estará fora dohorizonte experimental, assim também não faz parte da realidade.Este provável evento está para além do real, isto é, do Sasa. Não fazsentido pensar nele. Resumindo: o Sasa abrange o tempo que, visto nosentido ocidental e linear, é o «período-agora», ou seja, o período que

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está «perto», onde o «perto» e o «agora» incluem igualmente umcerto futuro (imediato).

O Sasa não é matematicamente e nem é numericamente mensu-rável. Quanto mais velha a pessoa for, mais longo é o seu Sasa. Umacomunidade tem também o seu Sasa, que é maior que o Sasa indivi-dual. Abreviando: Sasa é o período em que é possível o indivíduo euma determinada comunidade tomar a consciência da sua existênciae, na base dela, projectar-se para o futuro e para o passado. Temosassim uma dimensão temporal completa (futuro imediato, presentedinâmico e passado ‘experienciado’ [vivido]). Mbiti chama-o tambémde Micro-Time (Idem,22). O importante neste conceito mbitiano é adimensão ‘experienciada’ ou ‘vivenciada’ do tempo Sasa.

Entremos agora no domínio do Zamani. Este conceito, como dis-semos, é também importante para a teoria de Mbiti. Ele volta a abor-dá-lo no capítulo final do African Religions para explorar o contextodimensional no qual os africanos procuram encontrar novas identida-des (African personalities).

O Zamani, traduzido para uma concepção ocidental de tempo,contempla somente o passado. Entrementes, na perspectiva africana esegundo Mbiti, é um passado que, em si mesmo, contém o seu próprio passado, presente e futuro, mas numa escala longa quaseinter minável. Assim, diz-nos Mbiti, em algum momento o Zamanisobre põe-se ao Sasa, sendo este, uma parte daquele. Expliquemo-nos:antes de os eventos serem incorporados no Zamani, eles devem tertido a sua realização e actualização no Sasa. Zamani vai para além doSasa e projecta-se para um período em que nada mais pode acontecer.É um tempo final de tudo, sejam fenómenos naturais ou eventossociais, em que tudo é absorvido. Mbiti assim resume a relação entreos dois termos:

«Ambos, Sasa e Zamani têm qualidade e quantidade. Pessoasreferem-se a ele como grandes, pequenos, curto, longo, etc., emrelação a um fenómeno ou evento particular. Sasa liga geralmen-te os indivíduos ao ambiente imediato. É o período de vida cons-ciente. Por seu lado, Zamani é o período do mito, dando asensação de fundação ou ‘segurança’ para o período do Sasa»(Mbiti 1969,23).

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O Zamani congrega em si todas as criaturas por formas a daruma sensação de harmonia no universo das coisas e do Ser.

Estas duas diferentes noções de tempo têm, de acordo ainda comMbiti, consequências na conceitualização (africana) de História, davida humana e da morte/imortalidade. De acordo com ele, a História«anda» para trás, isto é, do Sasa para o Zamani, do momento expe-rienciado para um longo período em que nada pode ser experienciado.Na concepção tradicional africana, a História não se move para frente,ou seja, para um futuro de progresso ou para o «fim do mundo comotal». Daí que, pode inferir-se, não haja muito espaço, entre os africa-nos, para ideias ou noções de felicidade, de liberdade, de progresso edo desenvolvimento. Da mesma forma que não há ideias ou noçõesapocalípticas do mundo e de fatalidade. Não existem «tempos deouro» implantados no futuro e nem é possível imaginá-lo. O tempo deouro está somente no Sasa. Portanto não pode também existir umfuturo radicalmente diferente do que o que actualmente está a servivenciado e experienciado no Sasa.

Isso explica, segundo Mbiti, a «dificuldade que os africanos tra-dicionalmente têm em planificar o futuro da sua comunidade e denutrir ideias de uma esperança messiânica». Isso explica também acausa porque o Zamani é colocado no domínio mitológico sem, noentanto, conter mitos apocalípticos que evoquem a destruição oudegeneração do mundo no futuro.

Em relação à vida humana o esquema é o mesmo: baseia-se noSasa de cada um que inclui fenómenos ‘experienciados’ tais como nascimento, puberdade, ritos de iniciação, casamento, procriação,envelhecimento, morte e entrada na comunidade dos espíritos. Nacomunidade o ritmo do Sasa também gira em volta das experiênciasque as pessoas fazem nos ciclos da actividade económica relacionadacom o trabalho na terra (período de lançar sementes, do cultivo, dacolheita, da secagem e outros) e da caça. Os momentos-âncora doSasa dos individuais e das comunidades são marcados por via dosritos e das cerimónias (religiosas). Estas emprestam uma sensação deharmonia em torno de todos estes eventos que dão corpo e sequênciaao tempo.

A morte e a imortalidade também são explicadas por Mbiti apartir dos mesmos conceitos (Sasa e Zamani). O desaparecimento

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físico de uma pessoa é, na perspectiva tradicional africana, uma passa-gem paulatina do Sasa para o Zamani. De facto, quando uma pessoamorre, a sua passagem pela vida terrena é recordada pelos familiarese amigos que a conheceram, chamando-a pelo seu nome, recordando oseu carácter, o seu modo de pensar e seus feitos. Em alguns momen-tos, a pessoa morta «aparece» perante os adultos vivos que o conhece-ram (nunca perante crianças!). Mbiti denomina esta «pessoa» comothe living-dead; esta é uma pessoa que desapareceu fisicamente, masque vive ainda na memória das pessoas vivas que a conheceram; oliving-dead influencia a vida e o comportamento das pessoas-vivas,com particular incidência nos filhos e noutros membros da família dapessoa «desaparecida». A imortalidade da pessoa é mantida, nestecaso, pela continuidade física dos seus progenitores que vão transmi-tindo as qualidades dos fisicamente desaparecidos aos mais novos. Osmais velhos seriam, nesta lógica, os que têm o maior Sasa e, por isso,os que têm a memória mais longa dos living-dead.

Com o passar do tempo o living-dead passa para um tempo paraalém do Sasa. Esta passagem é atingida, segundo Mbiti, quando numacomunidade já não existem pessoas vivas que se recordam do living --dead pelo seu próprio nome. Então completa-se «em pleno» o pro-cesso da sua morte e entra no reino da «imortalidade colectiva». Esteé um estado espiritual em que o living-dead deixa de ser propriedadede uma família e passa para a comunidade de espíritos que já não têminfluência directa nos vivos. Esta comunidade de espíritos está entreDeus e os homens. Portanto, para além desta comunidade de espíritosninguém mais pode alcançar. É por isso, conclui Mbiti, que nas reli-giões africanas, as actividades e orações estão focalizadas nas relaçõesentre os vivos e os espíritos dos defuntos.

Dissemos que, para Mbiti, o conceito de Zamani explica a ten-dência actual da filosofia africana de se orientar para o passado, ouseja, de buscar os seus fundamentos na Identidade, mesmo que sejapara projectar e fundamentar a Liberdade. Assim, para ele, tanto anegritude como as correntes que advogam a personalidade africana, osocialismo africano entre outras que surgiram, estão, na verdade, aprojectar este futuro no quadro do Sasa. Por outras palavras, o queMbiti nos quer dizer é que, o facto de a filosofia africana ter des -prendido, até agora, muito tempo e energias da sua auto-inscrição na

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história universal do pensamento filosófico, buscando a sua identidadeenquanto filosofia no passado, constitui uma clara demonstração dasua teoria sobre a tendência africana em projectar-se mais longamen-te para o passado, e pouco para o futuro.

Não obstante ao facto de estarem ainda muito amarradas ao Sasa,acrescenta Mbiti, há nessas correntes um esforço muito grande nosentido de projectarem o futuro. Ele conclui também que, na busca dofuturo, a filosofia deveria basear-se na religião dado que esta tem umagrande influência na nossa vida enquanto africanos. Sobre o papel dareligião na intersubjectivação iremos debater no último capítulo destelivro, tanto mais que filósofos actuais, como Ngoenha (Cfr. 1993,137pp.)8, reconhecem o papel especial que as igrejas podem ter nos pro-cessos sociais e políticos actuais dos nossos países, sobretudo nocampo do cultivo de certos valores como tolerância, paz e reconcilia-ção, valores estes vistos como muito importantes se tivermos emconta a diversidade cultural nos países africanos, como Moçambique.

No quadro da dissertação que vimos fazendo em torno da etnofi-losofia como referencial de objectivação, Mbiti interessou-nos pordois aspectos: primeiro, e este é um aspecto comum a todos etnofiló-sofos, é o recurso à estratégia de explicar a filosofia a partir do que eleconsidera uma esfera fundamental da cultura africana, a religião. Umsegundo aspecto, embora não directamente relacionado com Mbiti,mas derivado dele, é o facto de a sua teoria sobre as religiões africanasapontar momentos críticos em relação às tradições africanas, consubs-tanciadas no seu conceito limitado sobre o tempo. De facto, se adop-tarmos a óptica de Mbiti, olhando para a «sua» noção de tempo entreos africanos, haveríamos de perceber as dificuldades que aparentemen-te as tradições africanas têm em projectar o desenvolvimento eco -nómico, social e político; enfim em projectar devidamente o seupróprio futuro, o seu sonho de sociedade que vá para além de «pro-gramas de eliminação da pobreza absoluta». Embora reconhecendo

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(8) Ngoenha dedica-se à questão «futuro» da África («qual é a melhor maneira depensar o futuro?») confrontando, nos últimos capítulos do seu livro Das Inde -pendências às Liberdades, os modos de equacionar esse futuro por via da profecia(ou seja, por via da religião) e por via da utopia (ou seja, por via da filosofia).

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este objectivo (acabar com a pobreza) como sendo nobre, ele carece,no entanto, de uma clareza de projecto de sociedade que se quer cons-truir.

Radicalizando a tese de Mbiti podemos inferir que a confronta-ção excessiva com o passado e as tradições culturais no contexto afri-cano, faz com que aparentemente haja dispêndio de muita energiaintelectual, energia essa que poderia ser melhor investida se a mesmafosse para além das estratégias de resolução de problemas hodiernosdo continente. A era do sonho africano parece ter chegado ao fim.Assim este questionamento nos obriga a pensar qual pode ser o senti-do e o significado da pesquisa etnofilosófica e, por extensão, de todasas pesquisas nas etnociências. Uma das críticas fundamentais aomovimento da etnofilosofia, que pretende ser «radical», vem do filó-sofo moçambicano Severino Ngoenha. Mas a crítica que despoletouum movimento crítico desusado em torno da etnofilosofia e, por dila-tação, em torno de toda a questão do conceito e identidade da filosofiaafricana, veio do filósofo do Benin, Paulin Hountondji.

Examinemos, primeiro, estas críticas à etnofilosofia dado o lugarmerecido que esta ocupa no debate sobre o desenvolvimento posteriorda filosofia africana.

A Crítica

Mas antes de nos concentrar no criticismo posterior de Houn -ton dji, notemos a reacção crítica sistemática em relação ao livro deTempels, e por extensão à etnofilosofia, feita anteriormente porCrahay. Este escreve já em 1956:

«Vamos falar com franqueza: se não queremos comprometer ogrande projecto de filosofia em África, confundindo o uso técnicodeste termo com o seu uso vulgar, e reduzir a filosofia para umasimples visão do mundo, temos que reconhecer que até agora nãoexiste nada que se possa considerar de filosofia bantu. O queexiste certamente é uma visão do mundo coesa e original parti-cular dos bantu, o cérebro da sabedoria.» (Crahay, cfr. Mudimbe1988,156)

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Vemos, neste parágrafo, que Crahay denuncia Tempels afirman-do que filosofia implica reflexão intelectual que não deve ser con -fundido com uma Weltanschauung, isto é, uma visão sobre o mundoque nos rodeia. Filosofia reflecte sobre a experiência humana, semno entanto reduzir-se a ela. Tempels teria, segundo Crahay, con -fundido as duas coisas tratando-as indiscriminadamente no seulivro. Crahay nega assim que a Bantu Philosophy de Tempels mereçaum lugar nas prateleiras de filosofia. Tendo como ponto de partidaesta obra de Tempels, Crahay interroga-se sobre as condições e pos-sibilidades da existência de uma filosofia africana. Interroga-se, por-tanto, sobre a legitimidade do título de Tempels: merecia ele serchamado de «filosofia»? Crahay não se interroga sobre a pertinênciae a importância da obra tempelsiana mas antes, como nos diz Mu -dim be (1988,155), o que lhe interessa é mostrar os limites da obrade Tempels.

Segundo Crahay, Tempels vulgarizara o sentido do termo filoso-fia ao confundir o vivido e o reflectido, entre a vida dos bantu e assuas reflexões, denominado filosofia ao vivido e não se concentrandoparticularmente nas reflexões dos próprios bantu. Embora tratandocom termos metafísicos, ontológicos e psicológicos, Tempels não teriasido muito rigoroso no tratamento conceptual dos termos.

Para Crahay filosofia é uma reflexão que apresenta característi-cas precisas. A filosofia, segundo ele, é explícita, é analítica, exerceuma crítica e autocrítica radical e é sistemática; ao mesmo tempo ela éaberta, sustenta-se na experiência humana e, como tal, relevante paraos próprios homens. Partindo desta definição de filosofia, o queCrahay de facto critica é que não podemos e nem devemos suporhaver uma espécie de filosofia implícita, imediata e intuitiva, comoTempels nos quer fazer engolir no caso dos bantu. A linguagem filo-sófica não é da experiência, mas sobre a experiência. De facto, o queTempels faz não é filosofia; ele, com o seu livro, mostra apenas a«possibilidade» de existência de uma reflexão de índole filosófica emÁfrica. Enfim, Tempels não distingue entre uma «visão do mundo»(Weltanschauung) e a prática da filosofia (Cfr. Mudimbe 1988,156).

Crahay, devido às suas propostas relacionadas com a chamada«descolagem conceptual», vai interessar-nos mais adiante. Por agoradeixemo-lo descansar.

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Vejamos antes o que fica e ficará inscrito na história da filosofiaafricana como sendo «crítica unanimista», crítica esta formulada pelofilósofo do Benin, Paulin Hountondji. Desde já, porém, é necessárioaclarar a nossa posição básica: é imperativo aclarar duas consequên-cias opostas provocadas pela chamada crítica unanimista de Hounton -dji no desenvolvimento posterior da filosofia africana. Se por um lado,e nisso reside o lado positivo das consequências, os problemas levanta-dos por Hountondji em relação à etnofilosofia, e às etnociências emgeral (Hountondji 2008,149pp.), provocaram uma onda de reflexãosobre o que deve ser filosofia africana e o seu papel no contexto dedesenvolvimento, por outro, e este é o lado negativo em nosso ver, ini-biu, de certa forma, o desenvolvimento de reflexões filosóficas, parti-cularmente de carácter oral e tradicional, que, sem essa crítica teriamsido hoje a base do «diálogo de racionalidades» que Hounton dji, nosúltimos tempos, tanto reclama a sua falta. Em outras palavras, a nossaavaliação é a seguinte sobre a intervenção de Hountondji no debate:reorientou positivamente o projecto de desconstrução do discurso oci-dental sobre África no qual os africanos entravam como mais oumenos um prolongamento da ciência e filosofia ocidentais, acrescen-tando o prefixo etno para ganhar a sua legitimidade neste debate.Mas isto somente é o lado positivo da moeda. Por outro, o que é umapena, não podemos calcular o atraso que sofreu o projecto de constru-ção de um quadro conceptual, ou pelo menos de um debate em tornode novos quadros conceptuais, sugeridos pelas elaborações tradicio-nais, a partir do qual os filósofos africanos alimentariam um debateem torno de questões ontológicas, epistémicas e éticas baseadas nareavaliação daquilo que Ngoenha chama de «imaginários culturaiscolectivos» dos nossos povos. Talvez Hountondji, neste último senti-do, tenha adiado bastante a passagem de testemunho de uma geraçãode filósofos africanos da desconstrução para uma geração de filósofosda construção. Mas, ressalvamos, Hountondji só pode ser feito res-ponsável pelo que escreveu e não pela história da interpretação dasideias que muito claramente escreveu e defendeu com uma admirávelcapacidade de acrescentar argumentos em volta dessa crítica unani-mista.

Após esta breve nota introdutória sobre a nossa posição, passe-mos, agora, a conversar com Hountondji sobre a sua crítica unanimista

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baseados, primeiro, na obra The Struggle for Meaning. Esta é umaespécie de autobiografia intelectual de Hountondji, onde ele narra ascircunstâncias em que chegou às ideias centrais da sua longa carreiraintelectual como filósofo, portanto uma espécie da versão norte-ame-ricana de the making of. Nesta obra Hountondji faz uma confissão inte-ressante quando escreve:

«O meu método em todos os casos [da escrita e apresentações dosseus artigos e livros] foi sempre o mesmo. O método consistiu,em primeiro lugar, em tomar nota da questão apresentada reco-nhecendo a sua espontaneidade e a sua legitimidade aparente,depois mostrando desconfiança através da exploração dos para-doxos, e depois, finalmente, formulando, por trás das questõesmal formuladas, o problema real» (Hountondji 2002,84).

Este é o caminho seguido por Hountondji para desconstruir odiscurso da etnofilosofia e seria por ele seguido fielmente na sua car-reira. Vamos, em seguida, seguir este método no percurso de Houn -ton dji I (que corresponde à primeira fase da crítica) e de Hounton -dji II (que corresponde ao período da auto-reflexão e do alargamentode parte dos seus argumentos).

Talvez faça sentido, antes, olharmos para algumas notas biográ-ficas de Paulin Hountondji. Não restam dúvidas que a obra deste filó-sofo do Benin marca uma viragem na página da historiografia dafilosofia africana não só devido à já mencionada crítica unanimista daetnofilosofia, mas também pela simplicidade e brilho dos seus argu-mentos nos seus textos. Provavelmente será raro encontrar, na litera-tura filosófica africana, um estilo de escrita ao mesmo tempo simplese profundo, conversador e erudito. Não admira pois que a sua obraAfrican Philosophy se tenha tornado uma espécie de «bíblia dos anti-etnofilósofos», como diz Mudimbe (1998,158). Segundo este autor olugar que merecidamente Hountondji ocupa no pedestal da filosofiaafricana deve-se a vários factores: Hountondji estudara na ÉcoleNormale Supérieure, uma das mais prestigiadas instituições de ensinodo mundo, situada em Paris na não menos famosa rue d’ulm. Estaescola produziu alguns dos cérebros mais brilhantes do nosso tempocomo por exemplo Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre, Raymond Aron,

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Althusser. Uma outra razão é que ele trabalhou em contextos dife -rentes que estimularam o seu pensamento e a sua carreira académica: nas uni versidades do Benin, da Alemanha, da França e Zaire. Foi, poralgum tempo, ministro da educação no seu país. Hountondji militatambém em várias organizações internacionais de filosofia e cientí -ficas em geral. Uma delas é a CODESRIA, um espaço privilegiado dedisseminação de ideias pela África e pelo mundo em geral. Actual -mente retirado, dirige um centro de pesquisa no Porto Novo, umacidade próxima de Coutonou a capital do Benin.

Comecemos, como dizíamos, pela análise da essência da críticahountondjiana à corrente de ideias e metodologias que o próprioHountondji popularizou no debate filosófico como sendo a Etno filo sofia9,para depois vermos a dimensão das consequências da sua intervenção.

Comecemos por analisar primeiro, com Hountondji, os conceitosem causa, nomeadamente os de etnofilosofia e de filosofia africana.Por etnofilosofia Hountondji entende como sendo «trabalho etnológi-co com a pretensão de ser filosófico» (1996,34), ou seja, diz-nos ele,uma forma popular do Weltanschauung pertencente supostamente aosafricanos. Assim sendo, para o filósofo do Benin, os etnofilósofosTempels, Kagamé, Mbiti e outros, longe de estarem a prestar um ser-viço no domínio da filosofia, o que fazem é uma recolha etnográfica dedizeres populares arrumando-os, após a recolha, em «caixas clássicasda filosofia» como sendo a cosmologia, a ontologia, a epistemologia, aética, etc., com o intuito de mostrar ao mundo que os africanos tam-bém sabem filosofar.

Esta noção de etnofilosofia — que muitos críticos de Hountondjiclassificam por «elitista» e, quanto a nós, com alguma razão — com-preende-se se a ligarmos à noção de filosofia africana que Hountondji

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(9) Neste ponto julgamos ser importante fazer notar que Hountondji procura salien-tar não ter sido ele a introduzir o termo etnofilosofia no debate. Hountondji de -fende-se, no prefácio à edição inglesa do African Philosophy, na sua publicação emsegunda edição de 1993, dizendo que o termo «etnofilosofia» é «mais antigo» doque transparece no debate. Ele afirma aí que, após a primeira publicação do seuartigo onde toma a crítica unanimista da etnofilosofia nos meados da década de70 do séc. XX, leu a autobiografia de Kwame Nkrumah onde este confessa que,depois de ter completado o seu mestrado em filosofia na Universidade da Pensil -vânia em 1943, matriculou-se num curso que era denominado Etnofilosofia.

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nos dá. E são duas definições sobre filosofia ligeiramente modificadasque vamos encontrar em Hountondji. A primeira, a tal que é conside-rada como sendo «elitista» pela crítica que se seguiu, é dada na versãoinicial do artigo escrito em 1969 e publicado em 1970 na revistaDiogène intitulado An African Literature. Como o próprio título diz,Hountondji escreve: By ‘African philosophy’ I mean a set of texts, speciallythe set of texts written by Africans and described as philosophical by theirauthors themselves, ou seja, «Por ‘filosofia africana’ entendo o conjuntode textos, especialmente o conjunto de textos escritos por africanos econsiderados como sendo filosóficos pelos seus próprios autores»(Hountondji 1996,33 [it. meu]).

Esta definição, como dissemos, trouxe muitos problemas e debateno seio dos africanos que até então se consideravam filósofos, mas queHountondji entende que são no fundo «etnógrafos com a pretensão deser filósofos». E aí começa, pois, o problema. Pela definição do próprioHountondji, um texto mereceria estar nas prateleiras da filosofia afri-cana se os autores cumprissem duas condições básicas: serem africa-nos (uma definição geográfica) e terem a pretensão de escrever umtexto «filosófico». Ora, uma olhada aos títulos dos chamados etnofiló-sofos basta para ver que muitos cumpriam estes requisitos: Mbiti temno título do seu livro o termo African Philosophy assim também Kaga -mé, Tempels e outros mais. Então, sob este ponto de vista, estes etno-filósofos cumprem os dois requisitos para que o que escreveram sejaconsiderado, por definição do próprio Hountondji, como textos com odireito de pertencerem às prateleiras de «filosofia africana». Aliás,ainda hoje e independentemente da «expulsão» declarada por ele,estas obras ocupam com pleno direito as prateleiras de filosofia africa-na nas bibliotecas e mediatecas espalhadas pelo mundo fora. Esteaspecto (i)lógico, ou seja, definir e aplicar limitadamente a própriadefinição, é o lado menos problemático da ‘inibição’ (redução de mui-tos filósofos à categoria de etnólogos) que este artigo provocara nodesenvolvimento do pensamento africano. Voltaremos a este aspectomais adiante. Antes, porém, examinemos a ‘reparação’ ou o ligeirorecuo que o nosso autor Hountondji faz à sua própria definição.

A definição melhorada — portanto, a segunda — foi escrita peloautor no prefácio à segunda edição da sua obra African Philosophy, em1996, ou seja, cerca de três décadas e meia mais tarde. Ele escreve:

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Much controversy would have been spared if I had written more cautiously,“By ‘African philosophy’ I mean the set of philosophical texts produced (whet-her orally or in writing) by Africans”, ou seja, «(M)uita controvérsia seriapoupada se eu tivesse escrito com mais cuidado, que «por filosofia afri-cana entendo o conjunto de textos filosóficos (sejam eles orais, sejamescritos) produzidos por africanos».» (Hountondji 1996, xii)

Logo no parágrafo seguinte, o autor continua ainda muito apolo-gético, ao reconhecer:

«A minha frase inicial (do artigo de 1969) não tinha, de facto, umsignificado profundo. A intenção não era colocar a questão: sobque condições um texto é filosófico? Eu tinha como única inten-ção, por razões de clarificação, colocar duas questões inevitáveisantes de testar a solidez da resposta proposta: (1) qual é o modode existência da filosofia? Resposta: a do texto ou de um conjuntode textos (‘set of texts’), a de parte ou partes de um discurso explí-cito. (2) O que significa ‘africano’ na frase ‘filosofia africana’?Resposta: alguma coisa africana é o que foi feito por africanos.»(Hountondji 1996, xii)

A questão para Hountondji, naquela altura do florescimento daetnofilosofia, não era, segundo ele próprio, «escapar» à discussãosobre os conteúdos que os que ele chamara por etnofilósofos arrola-vam nas suas obras e que estavam a fazer furor no seio dos filósofosafricanos; a intenção, ele confessa, foi sim «começar um debate» sobrea identidade da própria filosofia africana (I had to postpone it, «tinha deadiar [o debate]», diz ele referindo-se ao debate sobre os conteúdosque a chamada etnofilosofia propunha). No entanto, Hountondji, pelomenos no domínio da sua pretensão, tinha razão: ele queria libertar afilosofia africana das amarras da tradição oral, do tradicionalismo, istoé, do hábito de uma filosofia africana que, logo à sua nascença e àsemelhança da tradição, só transmite consenso. Queria impedir odesenvolvimento de uma filosofia africana que, no seu entender, esta-va prestes a crescer com uma imagem anti-filosófica e contraditóriacom a própria definição de filosofia: uma que não contém em simesma a possibilidade de debate crítico em torno dela própria, deuma filosofia de «todos os africanos». Em outras palavras, a intenção

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de Hountondji era «desmistificar o conceito de uma África» homogé-nea no pensamento.

De qualquer forma, anos mais tarde Hountondji apresenta-nosuma definição de filosofia africana menos «elitista» que, desta feita, jáinclui «textos orais», ou seja, uma literatura filosófica oral (oratura);esta que os filósofos formalmente treinados como Kagamé, Griaule,Mbiti e outros teimaram em trazer, com muito labor diga-se de passa-gem, em texto escrito.

Uma pergunta a este passo é, a nosso ver, pertinente: o que terámudado? O que terá impelido ao grande pensador a honestamentemudar de posição que ele próprio classifica de ‘ligeira’ mas que, quan-to a nós e como dissemos na nota introdutória, teve consequênciasalgo problemáticas no desenvolvimento do debate sobre o nascimentoda filosofia africana?

Mas antes de prosseguirmos, voltemos ao texto original parareexaminar em que consiste a entretanto famosa crítica unanimista10

que Hountondji faz ao movimento da etnofilosofia dentro da filosofiaafricana.

De facto Hountondji queria «aprofundar» e «alargar» para ocampo da filosofia o criticismo que Aimé Césaire já havia submetido àobra Bantu Philosophy do padre Placide Tempels. O criticismo deCésaire é, porém, limitado porque situa-se apenas no domínio da «po -lítica». Senão vejamos. Césaire havia já denunciado que Tempels tinha«desviado» a atenção do mundo inteiro dos problemas políticos fun-damentais dos povos bantu colonizados ao «elevá-los» para um pata-mar em que já possuem uma «fantasia filosófica», bem longe darealidade deprimente da exploração e da humilhação. Tempels, naóptica de Césaire, teria desviado as atenções do público dos proble - mas reais dos bantu para uma dimensão metafísica, inventando, ele

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(10) O termo «unanimismo» foi emprestado de Jules Romains, escritor francês, queusara-o para significar duas coisas: primeiro, para estigmatizar a tendência deuma ilusão da existência de ‘unanimidade’ a que somos tentados quando lemosqualquer história intelectual de uma determinada cultura; segundo para signifi-car «a exploração ideológica desta ilusão» para qualificar ou fazer juízos sobre opresente e deduzir o futuro, ‘confessa’ Hountondji mais tarde na obra The Strug -gle for Meaning publicada em 2002 na sua versão inglesa (título original em fran-cês: Combats pour le Sens: Une Itinéraire African).

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próprio, as categorias ontológicas que julgava pertencerem aos povosbantu, mostrando que mesmo pobres e oprimidos, estão também, àsemelhança dos seus homólogos europeus, aptos para pen sarem filo-soficamente, embora eles próprios inconscientes deste facto.

Esta crítica de Aimé Césaire apresenta-se plausível, mas não sufi-cientemente profunda, na óptica de Hountondji. Ela ignora, de facto, oproblema teórico por trás da ‘descoberta’ ontológica de Tempels.Segundo Hountondji (1996, 37p), a ideia de emitir uma auto-inscriçãosegundo a qual existiria, entre os povos bantu, uma ‘filosofia escondi-da’ à qual todos eles, inconsciente e colectivamente, aderem, não éposta em causa por Césaire nos seus escritos: The theory therefore remai-ned much alive, a teoria, por conseguinte, permaneceu bem viva, diz-nosHountondji. Pois, para este, a filosofia africana não poderia continuar ase auto-inscrever na história do pensamento universal com aquela faceque a etnofilosofia estava a tentar desenhar e disseminar: a de umafilosofia que consiste numa busca imaginária de algo imutável, colecti-vo, comum a todos os africanos, que está de forma latente e escondidono seu subconsciente. Assim, «desmistificar» a filosofia, libertando-ado espectro tradicional, apresenta-se para Hountondji ser a tarefa maisurgente para aquele momento histórico. Não era ainda tempo para seperder em debates supérfluos. Era preciso libertar a filosofia das amar-ras de um tradicionalismo sem sentido para o seu próprio futuro.

Hountondji (1996,60) escreve o seguinte sobre o «mito do unani-mismo primitivo»: a crença de que nas sociedades primitivas, ou seja,nas sociedades não-ocidentais, toda a pessoa está quase sempre deacordo com a outra. Como consequência, segue-se que nestas socieda-des não pode haver nunca crenças ou filosofias individuais, massomente sistemas colectivos de crenças. A palavra ‘filosofia’ é entãousada para designar cada sistema de crenças.

Este é, digamos, Hountondji I. O Hountondji II já admite que afilosofia pode conter textos orais. Voltemos então à pergunta que nospusemos um pouco mais atrás: o que terá ocasionado esta viragemnas suas concepções?

A resposta a esta pergunta deve ser dividida em duas partes: a pri-meira diz respeito às releituras posteriores que Hountondji faz ao «conjunto de textos» escritos pelo etnofilósofos; a segunda tem a vercom as críticas, ou melhor, o aceso debate que a sua definição provocara.

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Quanto à primeira parte Hountondji esclarece, no seu livro TheStruggle for Meaning, publicado em 2002, no capítulo The Time forRereadings, que a atenuação que faz sua tese inicial «de alguma formaexagerada» teve dois factores: o primeiro factor que, graças à (re)lei-tura posterior de comentários sobre a obra de Tempels, particular-mente da leitura de Fr. Smet deu-se conta que o título original (que opróprio Tempels dá à sua obra) em holandês Bantoe-filosofie «poderiamuito bem ter sido compreendido como ‘pensamentos filosóficos dosbantu’ no qual ‘filosofia’ não teria o sentido de ‘realidade dada numacultura estudada, mas como uma grelha de leitura, um modelo deinterpretação livremente escolhido pelo analista» (Hountondji 2002,198). Para completar esta ‘salvação’ às intenções do Padre Tempels,Hountondji diz-nos também que, das leituras que faz ao mesmo Smet,notou que o ambiente político em que Tempels escrevera a sua obracausou muitos transtornos ao próprio. Deu-se conta que Tempelsdedicou-se genuinamente na defesa dos direitos políticos e ao bem-estar dos africanos tendo provocado a ira dos colonizadores belgas.Nestas circunstâncias havia que relativizar os qualificativos que fizeraa Tempels…

Por outro lado, a releitura de outros etnofilósofos tais comoAlexis Kagamé, Kwame Nkrumah e Senghor foi na base de «novosolhos», segundo o próprio Hountondji. É uma leitura que, desta vez,não tem como objectivo examinar, nos textos destes filósofos, os ele-mentos que o fizessem revelar a filosofia por trás dos costumes e pro-vérbios, mas sim visava descobrir «elementos para uma avaliaçãoobjectiva das constantes nas nossas culturas». Hountondji pretendiaagora «ver», nestes textos, elementos da herança milenar neles conti-dos para assim poder criticar livremente. Embora reconhecendo que,sob este ângulo, a releitura da etnofilosofia dera-lhe luz para poderapreciar o seu valor intrínseco na colecção de provérbios, na descriçãodas formas de pensar, este porém não era o domínio da filosofia. Umapesquisa ao pensamento africano com uma orientação metodológicapositivista-antropológica só poderia ser um primeiro e necessário pas -so para o posterior cogito filosófico.

Hountondji julga assim ter começado uma etapa de nova leiturados textos etnofilosóficos, desta vez, não com o intuito de revelar asformas pelas quais estes petrificam as culturas africanas, mas sim para

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mostrar «porquê e em que sentido o etnofilósofo está correcto»: erapreciso prestar atenção às regularidades culturais («cultural cons-tants»), às continuidades que foram objectos de interesse por partedos etnofilósofos, assegura-nos ele. Como resultado da releitura,Houn ton dji confessa que decidira então juntar uma pesquisa queabraçasse a parte empírica (pesquisas de campo) com a parte trans-cendental. Tinha que mergulhar profundamente nas culturas man-tendo a «cabeça de fora» porque, justifica-se Hountondji (2002,205),procurar as nossas raízes culturais nunca foi e nunca será tornaressas mesmas raízes uma casa-prisão, em África e em nenhuma partedo mundo.

A segunda parte da resposta à questão que estamos a debater, asaber, o que terá originado a relativização do conceito da etnofilosofia? tem a ver com o facto de que, após esta sua definição sobre filosofiaafricana, ele sofrera três tipos de críticas dos seus parceiros filósofosafricanos. Uma boa parte de filósofos duvida a natureza eminente-mente geográfica da definição de filosofia africana que Hountondjidefende, dizendo que a nacionalidade ou a pertença ao continente afri-cano não pode ser uma condição suficiente. Havia, segundo estes, queassegurar-se que o filósofo defendesse uma causa africana. Comopoderemos dizer que um determinado texto pertence à filosofia afri-cana se o autor escreve totalmente sobre Descartes, Kant ou Hegel edebate assuntos relacionados por eles? Será que só pelo facto de eleter nascido africano é a condição suficiente para tal? Estas e outrasperguntas semelhantes são colocadas ao filósofo de Benin.

O segundo grupo de críticas ataca a parte da definição hountond-jiana que submete à intenção do autor para se classificar um textocomo filosófico: desde que o classifique por si mesmo como sendo filo-sófico! Também aqui, alguns pensadores africanos defendem que estanão é uma condição suficiente. É necessário também que esse texto,argumenta-se, se submeta ao teste dos outros filósofos. O nosso autorestava a ser muito subjectivista, acusa-se.

Mas a objecção mais forte, segundo o próprio Hountondji, con-testa o facto de ele ter excluído a literatura oral. Aqui é que teria sidoo cúmulo do elitismo desta definição, argumenta-se. Ele ignora, comesta sua posição, o manancial e potencial de sabedorias populares eculturais que estariam nas cabeças e mentes dos velhos nas aldeias e

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mesmo nas cidades. Sobre este aspecto, Odera Oruka, como veremosmais adiante, distingue «sábios filosóficos» (sages) de «filósofos».

Hountondji defende-se destas críticas apresentando dois argu-mentos: o primeiro sustenta que, embora aquela seja logo a primeirafrase do seu artigo e tivesse uma estrutura formal de uma definição,trata-se simplesmente de uma «declaração preparatória» e não de umadefinição em tanto que tal; o segundo argumento que ele apresenta éque aquela frase deve ser lida mais por aquilo que ela quer rejeitar doque o que supostamente afirma: não poderia continuar a permitir que aauto-inscrição da filosofia em África na história do pensamento fosseconfundida com uma simples literatura filosófica afri cana. Ou seja, afrase pretende, naquela altura em que foi escrita, «cor tar radicalmen-te» a ideia de que saberes implícitos, escondidos, congelados existemsupostamente nas mentes de todos os povos bantu, como propalam osetnofilósofos. Portanto, aquela «definição», que no fim de contas não oé, pretende chamar atenção para não se pôr no mesmo saco textos lite-rários, por mais saberes que estivessem por trás deles, com textos crí-ticos filosóficos. Não tem, na altura, a intenção de excluir toda aliteratura filosófica oral, mas sim de sublinhar a importância do textoescrito para o desenvolvimento do debate filosófico em África.

Olhando o desenvolvimento da filosofia num plano mais amplo, oHountondji II é aquele que se desculpa por ter «exagerado» a suadefinição: ele escreve que I would probably not use the same words today(Hountondji 1996, xii). Mas a desculpa veio tarde! Em nossa opinião,pelo carácter central que a crítica unanimista ocupou no debate filosó-fico após a sua publicação; ela provocou, pois, uma viragem nessedebate de tal natureza radical que os filósofos passaram a digladiar-seentre eles à busca da sua própria identidade. Passou a ser centraldebater-se sobre o conceito duma filosofia africana do que a desenvol-ver-se uma agenda de carácter metafísico, epistemológico, ético, etc.da filosofia. O efeito daquela «definição», que ao fim e ao cabo acabounão sendo, foi perverso mesmo em relação ao que Hountondji, elepróprio, pretendia, nomeadamente «alargar» e aprofundar a críticaque Césaire faz à etnofilosofia; Césaire denunciava, recordamos, o des-vio que Placide Tempels fizera dos problemas políticos (opressão,emancipação, colonialismo, etc.) para dedicar-se à caça de uma ontolo-gia la tente dos povos bantu. Hountondji também queria, ao denunciar

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o unanimismo primitivo em que caíra a etnofilosofia, no fundo, lutarpelo pluralismo de ideias, pela democracia. Só que não foi essa a con-sequência deste debate sobre a identidade da filosofia que Hountondji,com a sua crítica fundamental, provocara. Em contrapartida, ele pro-vocou o início de uma época de uma filosofia que passara a olhar maispara o seu próprio umbigo do que para os problemas sociais, umaépoca de auto-justificações sobre o que merece ou não ser consideradocomo «texto filosófico» ou passar a fazer parte das prateleiras da filo-sofia africana. Enfim, iniciou uma época de maior distanciamentoentre filosofia académica africana e a filosofia africana dos sábios quedeveria partir de um quadro conceptual usado por individualidades esábios iletrados vivendo nas zonas rurais e urbanas. Ninguém, talvez,poderá fazer contas de quantos novos filósofos abandonaram a pes-quisa filosófica a partir das culturas tradicionais com receio de serem«acusados» de estarem a abraçar a causa unanimista.

Ficou, em nossa opinião, adiado para mais tarde o desafio da«descolagem conceptual» defendida por Crahay, que fizesse emergiruma filosofia africana já livre da carga das tradições.

Hountondji reduziu a filosofia à intenção do autor em classificar oseu próprio texto como sendo «filosófico»; ele reduziu a filosofia à análi-se do seu conceito, à epistemologia, denuncia o filósofo moçam bicanoNgoenha, mais tarde. «O que importa doravante, não é pro curar umafilosofia africana, mas antes uma reflexão sobre a pos sibili dade de pensarfilosoficamente a nossa realidade africana» (Ngoenha 1993, 8), este é osentido da «crítica radical» à etnofilosofia que podemos ler na obra deSeverino Ngoenha, a quem vamos interpretar, a seguir.

A Crítica Radical

A base da interpretação da crítica ngoenhiana à etnofilosofia vaiser a sua obra Filosofia Africana: das Independências às Liberdades publi-cada em 1993. Nesta obra Ngoenha entende que o compromisso dafilosofia é com o «futuro» — ele chama de «missão futuro» — e nãocom o passado. Assim, «[é] ... legítimo que nos interroguemos sobreo lugar da filosofia na problemática da construção do futuro». O futu-ro para ele afigura-se como um conjunto de projectos, de possíveis, de

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esperanças, de liberdades. É preciso dedicarmo-nos ao futuro porquesenão o nosso futuro será igual ao passado. A tarefa, portanto, é des-mistificar o futuro. Mas para isso é necessário, antes, desmistificar opassado. Nas suas próprias palavras, a questão que aborda neste livroé: «que relação existe entre o passado que constitui o objecto das nos-sas querelas, e o futuro que constitui a pedra angular do nosso deve-ser filosófico?» (Ngoenha 1993,102)

O compromisso com o tema ou projecto «futuro» encontramo-lo jáem Ngoenha na sua primeira obra escrita durante os anos 1990 e 1991,publicada em Maio no ano seguinte, intitulada Vico e Voltaire: DuasInterpretações Filosóficas da História do Século XVII. Este livro também étema da sua tese de doutoramento. Especializado em FilosofiaModerna, a formação intelectual de Ngoenha foi feita entre a Itália(Roma) e França (Paris). Na Itália estuda teologia e filosofia nasUniversidades Urbaniana e Gregoriana. Depois de se dedicar a Vico vaipara Paris onde usa a apetrechada biblioteca do Centro Europeu deInvestigação Interdisciplinar para ler em francês as obras do seu segundoautor: Voltaire. É nesta obra onde Ngoenha começa a preocupar-se como sentido e o fim da história. Confrontando-se com problemas daFilosofia da História apresentados na perspectiva de Vico — que nassuas palavras faz uma «demonstração civil racional da providência di vina na história social» — e na perspectiva de Voltaire — a quemNgoenha ‘acusa’ de ter secularizado a teodiceia, ou seja, fazendo da teo-logia da história a «matriz directa da filosofia da história» (Ngoenha1992,206), Ngoenha sublinha várias vezes que a leitura da história sófaz sentido se indagarmos esta mesma história a partir da historicidadedo homem de hoje e do futuro; aqui também encontramos, emboraescondido por trás dos autores que interpreta, luzes daquilo que elemais tarde irá com mais nitidez chamar de «paradigma libertário».

Curiosamente Duas Interpretações foi a única obra que Ngoenhaescreve tendo em vista a história universal. As obras seguintes11 são

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(11) De entre as várias obras de Ngoenha contam-se Vico e Voltaire: Duas Interpre ta -ções Filosóficas da História do Século XVII (1991), Por uma Dimensão Moçam bi canada Consciência Histórica (1992), Filosofia Africana: das Independências às Liber dades(1994), O Retorno do Bom Selvagem (1996), Mukatchanadas (1997), Axiologia eEducação em Moçambique (2000) e Os Tempos da Filosofia, Filosofia e Democraciaem Moçambique (2004).

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todas no domínio da filosofia africana ou sobre Moçambique, a suapátria. Embora nos seus tempos de estudante em Roma vivesse entreestudantes da África Ocidental, especialmente da Nigéria, que já lhefalavam de temas e filósofos africanos, embora estes mesmos estudan-tes, na sua maioria, escrevessem temas sobre a filosofia africana eNgoenha já na altura se quisesse envolver no debate africano, teveque ver o seu sonho adiado porque o seu tutor insistira para que«adiasse» esse seu ímpeto legítimo: tinha antes que ler muito bem atradição filosófica ocidental, para depois dissertar sobre filosofia afri-cana. «O desvio foi muito bom para o meu crescimento intelectual»— disse-me Ngoenha numa manhã quente de Março à beira-mar emMoçambique, horas antes de partir para a Suíça onde leccionava Filo -sofia da Interculturalidade na Universidade de Lausanne.

Com a sua insistência no projecto futuro, Ngoenha deixa logoclaro que o reexame do que é a etnofilosofia assim como das críticasque esta corrente filosófica foi recebendo, deve ser feito em função deum projecto futuro de sociedade. Em outras palavras, Ngoenha parecequerer dizer que não vamos escavar as nossas tradições, costumes pas-sados, lendas, sabedorias, etc. somente por um puro exercício intelec-tualista. Ele nota que, contrariamente à preocupação das sociedadesafricanas com a construção de futuro mais aberto, a filosofia africanaaparece mais preocupada em escavar uma direcção contrária. A etnofi-losofia é a expressão máxima desta viagem para o passado. Mas não sãosomente os etnofilósofos que caem nesta armadilha. Segundo Ngoenha,mesmo os seus críticos mais acérrimos como Towa, Hountondji eEboussi-Boulaga não ficaram «totalmente livres» da tentativa de olharmais para o passado: qual é a razão desta dedicação da filosofia africanapelo passado? Porque é que a reflexão filosófica, que se quer voltada aofuturo, deve necessariamente gravitar em torno de um discurso etnoló-gico? Eis a preocupação central de Ngoenha neste livro.

A missão da filosofia africana é, portanto, reinterpretar o estatutoda modernidade e da tradição em função do projecto (futuro) de socie-dade. É em conformidade com este projecto futuro Ngoenha decidefazer uma «crítica radical» à etnofilosofia.

Ngoenha começa por classificar como «pensadores críticos» aFranz Crahay, Eboussi-Boulaga, Marcien Towa e finalmente Houn -ton dji. Segundo Ngoenha (1993,89), para Hountondji vai o mérito de

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ter sido o primeiro a fazer uma «crítica sistemática» à etnofilosofia. A partir desta crítica a que Hountondji submete à etnofilosofia,Ngoenha constata que a noção de filosofia africana tem uma «mudan-ça teórica fundamental», porque a filosofia deixa de ser uma visãocolectiva do mundo — como queriam os etnofilósofos — para passara ser uma espécie de trabalho laborioso de análise de textos escritospor africanos e africanistas e considerados por eles próprios comosendo textos filosóficos. «A definição da filosofia africana como litera-tura filosófica africana, serve para libertar o projecto de uma históriade filosofia africana, um projecto que seria impossível na linha deorientação da etnofilosofia», conclui Ngoenha avaliando positivamen-te a crítica hountondjiana.

Entretanto Ngoenha assevera que a crítica desses «pensadorescríticos», particularmente a hountondjiana, à etnofilosofia, emboraseja «salutar no quadro da luta contra a negritude, porém não é radi-cal (it. meu)». E considera que a definição de filosofia em Hountondjiinscreve-se ainda numa «orientação eurocêntrica». Apoiando-se emAmady Aly Dieng, Ngoenha assevera que «[...] o uso do termo etno-filosofia por [...] Hountondji é a consequência lógica da sua falta deatitude crítica para com a orientação eurocêntrica da filosofia univer-sitária».

Em primeiro lugar, na sua argumentação em oposição a Houn -ton dji, Ngoenha acha que «resta saber se esta literatura deve serentendida no sentido rigoroso da palavra ou se nela se deve incluir,para além do número de textos escritos, também, a palavra não escri-ta», ou seja, a tradição oral (Ngoenha 1993,90). Se assim for, entãonão podemos apelidar de «filosofia» os «mitos» dos povos Dogon,Diola, Yoruba, Serere, Bantu, etc. O que Ngoenha parece estar a ques-tionar é a seguinte pergunta que ele próprio classifica como sendo um«problema complexo»: será que o facto de, na tradição oral, o espíritoestar de tal maneira preocupado em preservar, que é incapaz de umaatitude crítica, retira todo o estatuto que a literatura oral pode pos-suir de portadora de elementos filosóficos?

Para Ngoenha, a literatura oral não exclui por si toda a possibili-dade de se exercer uma atitude crítica, reconhecendo, porém que sejaum facto que a literatura oral «fecha a crítica num espaço limitado»que concorre para uma cultura tradicionalista. Mas Ngoenha pensa

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também que isto não significa que a filosofia como uma activida -de intelectual não seja possível numa sociedade de tradição oral (Ngo enha 1993,92). Os contos morais, as lendas didácticas, os aforis-mos africanos, os provérbios, podem e devem, segundo Ngoenha, ser-vir de «documentos filosóficos», ou seja, como pontos de partida parauma reflexão crítica e livre e, a partir daí, descobrir-se uma «novaestrutura teórica para a história da nossa filosofia» (Idem). Assim,segundo o nosso autor, o facto de não haver (melhor: de não ter havi-do) uma transcrição não tira a possibilidade de estas sabedorias teremum valor intrínseco filosófico, afinal Sócrates entrara na história dopensamento filosófico porque alguns dos seus discípulos se preocupa-ram em transcrever o que ele somente andou a dizer!

No entanto, Ngoenha (1993,93) assevera-nos que a existência deuma filosofia africana depende, em primeira linha, da existência defilósofos africanos que escrevem. Ela não vai existir na base da recolhade «migalhas» filosóficas espalhadas pelas tradições africanas. Porqueno momento que houver textos escritos, estes poderão se submeter aoexercício de uma actividade crítica séria e sistemática. A transcriçãodos saberes em textos aparece assim como sendo um momento neces-sário para aquilo que Ngoenha chama de «necessidade de libertar odiscurso» (Idem). Está assim claro que, para Ngoenha, uma filosofiaafricana é um projecto de futuro.

Pensamos ter compreendido que, para Ngoenha, o importantenão é ater-se ao facto de ser texto escrito ou texto oral que funda-menta a filosofia africana, mas sim a criação de condições para a aber-tura de espaços críticos, para espaços de um verdadeiro debate emtorno dos problemas africanos. Ele mesmo classifica de ser um pro-cesso «aberto e descontínuo», este processo do nascimento da filoso-fia africana.

Pois, para Ngoenha, a filosofia «é uma investigação perene, quese faz através de textos, os quais nos permitem e servem de elementosde confrontação e de discussão quer entre nós africanos, como com oresto do mundo» (it. meus).

Partindo deste conceito de filosofia, a crítica mais profunda à etno-filosofia, que pensamos ter entendido da obra de Ngoenha, reside nofacto de ela ser apenas uma «dilatação» e não uma «superação» ao con-ceito de filosofia (Ngoenha 1993,94). Pois, ao limitar-se a interpretar

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as instituições, os costumes, as crenças, as lendas, os contos e osmitos, e em procurar identificar a ligação, a coesão, a estrutura dossistemas de pensamentos indígenas, o que de facto a etnofilosofia faz éestender («dilatar») o conceito ocidental de filosofia para passar aincluir formas de pensamento locais tradicionais, enfim a esfera dacultura, quer sejam os mitos, a religião, a arte, a poesia, etc. Esta dila-tação do conceito de filosofia que a etnofilosofia faz teve uma conse-quência, no nosso entender grave: a inclusão de obras literárias,provérbios, mitológicas, etc. no conjunto de obras filosóficas africanas.Alargou-se o volume de textos considerados como sendo de naturezafilosófica, sem no entanto proceder-se à «ruptura epistemológica»que deve haver entre o pensamento tradicional e a filosofia, rupturaesta, necessária.

Uma segunda crítica importante que Ngoenha faz à dita etnofilo-sofia — desta feita apoiando-se em Marcien Towa — é que ela, aoenveredar por uma via de facilidade para fazer economia de tempo emtécnicas e nos métodos da sua investigação, acaba não sendo nemetnologia e nem filosofia:

«Com efeito, a etnofilosofia expõe objectivamente as crenças, osmitos, os ritos depois bruscamente, esta exposição objectiva ésubmetida numa profissão de fé metafísica sem se preocupar emconfutar a filosofia ocidental, nem fundamentar a razão da suaadesão ao pensamento africano. Por conseguinte, a etnofiloso -fia acaba traindo ao mesmo tempo a filosofia e a etnologia, poiso etnólogo descreve, expõe, explica, mas não se comprometequanto ao fundamento do que expõe e explica. Ela trai tambéma fi losofia porque a pedra angular que lhe permite fazer umaescolha entre as diferentes opiniões é antes de mais a pertençaou não à tradição africana, enquanto que a exposição filosófica ésempre uma argumentação, uma demonstração e uma confuta-ção.» (Ngoenha 1993, 95)

De facto, em nome do projecto de africanidade, a etnofilosofia,em termos metodológicos, ficou dogmática abandonando o sentidocrítico que é a essência da filosofia. É assim que Ngoenha, apoiando-se em Marcien Towa, advoga que (também) a filosofia africana deve

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retomar o «valor intrínseco» da filosofia (i.e. no sentido europeu) parase libertar do passado. Por valor intrínseco entende-se a universalidadeou o carácter universal da filosofia enquanto um livre pensar crítico eimparcial e, a partir daí, reflectir sobre o papel que deve desempenharem relação ao destino dos africanos.

Por último, Ngoenha usa Eboussi-Boulaga para retomar a ques-tão do porquê tanto «entusiasmo repentino» da filosofia africana emreivindicar uma filosofia especificamente africana. Reformulando aquestão nós diríamos: Porquê este exercício exagerado de auto-com-preensão e auto-justificação?

Vamos seguir os passos de Ngoenha na sua interpretação do«crítico» da etnofilosofia, Eboussi-Boulaga; Ngoenha usa-o paramostrar que a etnofilosofia é um «projecto falhado e encalhado nopassado». Assim, Eboussi-Boulaga, referido por Ngoenha, concluíraque, de facto, a etnofilosofia é um conjunto de textos escritos cujopúblico escolhido são os homens da ciência ocidental (entnólogos,antropólogos); o etnofilósofo luta por ser reconhecido como tal peloocidente. E é nisso que ele acumula o seu mérito: em trabalhar, acu-mular, arquivar o material tradicional sob a forma de filosofia, usan-do categorias filosóficas aparentemente escondidas nos mitos, nosprovérbios, nos contos, etc. Estes conteúdos filosóficos estão láescondidos à espera de serem desvelados pelo etnofilósofo. Com aetno filosofia, o sentido de filosofia passou a ser o de desvelar, tornarvisível o que está escondido, cunhando tudo o que julga descobrircom uma terminologia semelhante. A etnofilosofia mais se parececom um jogo de busca de semelhanças entre os provérbios, lendas,mitos tradicionais com a filosofia ocidental, no qual o sujeito desta«filosofia escondida» é anónimo: É uma filosofia sem filósofos. Pois,não é o sábio que está no que-fazer filosófico, senão o próprio etnofi-lósofo que traduz o que ouve em filosofia. O sábio africano é aqueleque sempre filosofou sem saber que o está a fazer. Assim, a relaçãodo homem africano com a filosofia ficou condenada com o passadoedílico, inquestionável e incapaz deste muntu se projectar para ofuturo ou mesmo sem este futuro que as sociedades africanas tantoreivindicam serem donos.

Neste passo, Ngoenha recorre-se à grande tese de Eboussi-Bou la -ga, segundo a qual a etnofilosofia representa a «crise do munthu»:

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«Com este tipo de projecto, a etnofilosofia não fez se não revelarque a filosofia africana não é outra coisa que a ‘crise do munthu’.Os seus filósofos não fazem se não usar uma linguagem abstrac-ta, sem um real conteúdo histórico e sem lugar de referência pre-ciso. Portanto, é necessário superar este tipo de filosofia.»(Ngoenha 1993, 99)

Portanto, o projecto de «superar» a etnofilosofia como projectode filosofia africana é levado a sério por Ngoenha. E ele realiza estasuperação em dois passos. O primeiro passo, segundo Ngoenha, é umitinerário crítico, metódico e dialéctico. Ou seja, a tomada de cons-ciência de como usufruir das nossas tradições tomando o cuidado denão cair no etnologismo. A tradição deve ser uma espécie de «utopiacrítica e mobilizadora do presente» com vista à realização da liberda-de do homem africano. Por isso a tradição deve inscrever-se num qua-dro de um movimento para a autonomia. Falar da tradição comoutopia crítica é, para Ngoenha, falar duma tradição que não é inimigada modernidade, ou seja, não limitá-la a uma projecção do passado,mas idealizar o seu lugar no presente e futuro do homem africano.Devemos pôr a tradição ao serviço da liberdade, da emancipação e«transformá-la num instrumento para fugirmos da nossa situaçãoactual.» (Cfr. Ngoenha 1992, 99 p.)

A fuga da tradição para o futuro, ou seja, a submissão da tradiçãoem função de um projecto futurista passa, para Ngoenha e como osegundo passo, pela «crítica da crítica»; isto é, pela confrontação críti-ca com os críticos da etnofilosofia. Para esse segundo passo Ngoenhaapoia-se em Ollabiyi Babalola Yai, Amady Aly Dieng, Ngoma Binda eem Tshiamalenga Ntumba.

Apoiando-se em Babalola Yai, Ngoenha afirma que é preciso uma«discussão radical» com Hountondji porque ele, apesar da crítica quefaz, tem uma definição eurocêntrica de filosofia que, por isso, «respon-de negativamente à questão da existência de uma filosofia africana»(Ngoenha 1993,101) Pois, para Hountondji, a filosofia é um conjuntode textos intencionalmente escritos e classificados como sendo filosó-ficos. Ngoenha responde que «[...] a intenção não faz filosofia»(Ngoenha 1993,102). Em segundo lugar, o filósofo de Benin submeteo projecto filosofia como resultado de análise de um discurso sobre a

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ciência, porque a filosofia para aquele só será possível enquanto refle-xão em torno dos problemas e temas específicos da ciência. O queHountondji faz, para Ngoenha, é a redução da filosofia à epistemolo-gia (discurso sobre a ciência). Ngoenha critica esta redução no quadroda sua pretensa «crítica radical» à etnofilosofia e aos seus críticos. Porfim, para Ngoenha, e desta feita apoiando-se em Binda, defende quenão faz sentido a crítica unanimista que Hountondji faz à etnofilo -sofia. Pois, que não exista uma unanimidade de pensamento numasociedade, «é uma verdade banal» e não tem um fundamento rigoro-samente filosófico. Criticando esta ideia de unanimismo, Ngoenha ter-mina dizendo que embora se deva reprovar o facto de Tempels terconsiderado o pensamento dos Luba-Shanbakadi como sendo detodos os bantu é preciso, porém, reconhecer «um conjunto de traçoscomuns a todos os homens da área cultural Bantu».

Para além disso, é preciso também uma discussão radical comTowa. Na óptica de Ngoenha, Towa não hesitara estender a tese deHountondji tentando mostrar que os «textos» de filosofia existiram jáno antigo Egipto (posição que Appiah não partilha). O Egipto abrira ocaminho para a filosofia africana, tendo em conta não só a sua influên-cia para o logos grego, mas também e sobretudo pelo desenvolvimentoda ciência naquele reino africano. Para Ngoenha, este caminho críticode Towa é uma imitação e «imitar um modelo não é fi lo sofar».

Chegamos assim a um ponto com o qual introduzimos Ngoenha,nomeadamente que a crítica que os «críticos» Hountondji e Towafazem à etnofilosofia é «salutar», porém não radical. Porque o uso dotermo etnofilosofia por ambos, e para esta crítica Ngoenha apoia-seem Aly Dieng, é consequência lógica da falta de uma «atitude crítica»por parte deles para com a orientação europeia universitária do con-ceito de filosofia. Ao serem a-críticos abandonam o terreno da própriafilosofia. Senão vejamos: quando estudamos os poemas parnasianosou os mitos pré-socráticos fazemos etnofilosofia? pergunta-se Ngo -enha apoiando-se nas interrogações adiantadas por TshiamalengaNtumba. Ngoenha pensa ter assim denunciado a falta de coerênciadestes críticos ao cunharem unilateralmente de etnofilosofia ao que osafricanos fazem ao estudarem os seus provérbios, mitos, dizeres, etc. e não fazerem o mesmo quando se trata de filósofos europeus que estudam as suas próprias culturas.

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Na «investida» final contra os críticos da etnofilosofia (crítica dacrítica), Ngoenha apoia-se na chamada corrente hermenêutica africa-na. Esta corrente propõe a interpretação da filosofia africana a partirda confrontação com a religião, com os mitos e com a questão da lín-gua. Aqui trata-se de uma releitura da tradição «[...] não para re -construir o pensamento antigo como tal, mas para reactualizá-lodentro do contexto dos novos sistemas de maneira a torná-lo presen-te de uma maneira eficaz» (Ngoenha 1993, 105).

Para os hermeneutas africanos, toda a filosofia que se pretendacomo tal não deve começar por outro canto senão pela interpretaçãodas tradições africanas. Não se dar conta das tradições seria uma ati-tude muito irresponsável para com a África moderna. No entanto,esta confrontação com a tradição deve ser tomada como um patrimó-nio africano, isto é, deve ser feita tomando em conta a África pre -sente.

Crítica da Crítica

Vamos, de seguida, fazer um breve esboço da crítica da crítica àetnofilosofia e, por extensão, às etnociências; entretanto, antes disso, énecessário notar que, pelas conversas tidas anteriormente com asobras de Hountondji e Ngoenha sobre as suas críticas à etnofilosofia eàs etnociências, procuramos destacar que ambos almejam libertar afilosofia das amarras de um pensar que se quer filosofia, mas que defacto, e eles aqui têm razão, trata-se de uma antropologia que quer(re)inventariar os hábitos e costumes dos povos africanos e apresentá-los como sendo «filosofia africana». E isto, segundo ambos, amarra afilosofia africana ao passado e não consegue, segundo uma boa tradi-ção europeia de filosofia, contribuir para o «projecto futuro», comoNgoenha gosta de dizer.

Entretanto uma crítica é legítima: no seu projecto crítico, os crí-ticos não souberam ou não puderam elevar-se para além de des -construir o discurso etnocêntrico e unanimista da etnofilosofia e dasetnociências e entrar num diálogo com as culturas que eram o objectode estudo dos etnofilósofos e objecto de crítica dos críticos. Expli ca -mo-nos: o que os críticos fizeram foi elaborar um discurso crítico a

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partir de fora, ou seja, de um quadro conceptual e de uma cultura filo-sófica eminentemente ocidental, sem quererem entrar no debate sobreas propostas de conteúdos e dos conceitos que, enfim, as etnofilosofiaspropunham. Fizeram sim um debate intercultural, mas não argumen-tam a partir de uma posição intracultural. E, por isso mesmo, acaba-ram por violar as regras do próprio debate intercultural entre umafilosofia com carga ocidental com uma filosofia que queria despontarcomo africana. Mais precisamente, a filosofia dos críticos não é feitado interior, senão do exterior, com insuficiente base cultural a partirda qual ela poderia emergir como um saber próprio no debate. Des -construíram, chamaram a atenção para a liberdade da pseudo-filosofiaafricana, sem no entanto (ainda) construírem um quadro conceptualinterculturalmente estruturado. Pois, como nos assevera Mudimbe:

«A crítica filosófica à etnofilosofia não é o reverso da escola deTempels e Kagamé. Ela é um discurso político sobre filosofiacom o fim de examinar os métodos e as condições para praticarfilosofia em África. Como uma tendência, ela deriva as suas con-vicções do seu estatuto como um discurso que está firmementeligado à tradição filosófica ocidental como uma disciplina e àsestruturas académicas que garantem institucionalmente as práti-cas filosóficas aceites. Como tal, a crítica à etnofilosofia pode sercompreendida como subsumindo dois pressupostos: por um ladoa reflexão sobre os limites metodológicos da escola de Tempels eKagamé e, por outro lado, as práticas e obras africanas susten -tadas pelos sujeitos e tópicos ocidentais […] [trad. minha]»(Mudimbe 1988, 154).

Na verdade, as razões para explicar essa falta de base culturaldos críticos são muito complexas. Vamos adiantar algumas razõespara que o que parecem ser as explicações das ‘deficiências intercultu-rais’ dos críticos.

Em primeiro lugar, os críticos parecem estar a fazer um esforçogenuíno por contextualizar a filosofia, mas ao mesmo tempo notamosque há um excessivo uso ‘colonizado’ da razão ou da racionalidade.Esta fé na razão ou na racionalidade na sua dimensão de reflexão filo-sófica nos parece não lhes deixar ver a possibilidade de um filosofar

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aparentemente irracional existente nas comunidades locais. Nestesentido falamos do uso ‘colonizado’ da razão. De facto, no imperativode, como justificam, universalizar a filosofia africana no sentido de elapoder, junto às outras filosofias continentais, também oferecer alter-nativas de respostas aos problemas ‘mundiais’, tornam-se presos emprocurar fundamentar uma filosofia africana na base de cânones daracionalidade e não das racionalidades. É uma obsessão racionalista deapresentar a filosofia como uma reflexão sistemática e crítica. Ou poroutra, é a pressa de chegar a uma filosofia africana que também sejaracional que, por razões de credibilidade, se sente obrigada a dialogarprimeiro com a filosofia ocidental e, em segundo lugar, com o que-fazer filosófico ‘escondido’ por trás das culturas africanas e dos seussábios. Trata-se de uma filosofia crítica que parece estar a ser pregui-çosa em pensar para além das fronteiras da racionalidade, embora,reconheça-se, alguns dos seus representantes, como é o caso deHountondji ultimamente, estejam a fazer esforço em dialogar com ossaberes chamados «endógenos». Desta feita, os críticos procuram simapresentar propostas interessantes de gerir a diversidade culturaldentro do continente africano, mas a sua pretensão pan-africana nãolhes permite digerir esta mesma diversidade a partir de dentro dasculturas.

Em segundo lugar, a filosofia dos críticos parece ser uma filosofiaenvergonhada. Pois, se por um lado esforça-se por mostrar soluções oualternativas de interpretação da realidade social e intelectual africana,por outro, é notória a sua inconsistência, até mesmo recusa, em quererelevar-se a partir do mesmo «imaginário cultural colectivo» dos mes-mos povos que tem a pretensão de querer libertar; e esta vergonhanota-se pela sua metodologia académica de insistir num debate a partirde textos escritos, quase recusando-se ao trabalho de transcrição dotexto oral, à boa maneira platónica que, graças a isso, conseguimossaber o que Sócrates andava a apregoar pelos mercados de Atenas.Curiosamente, esta insistência no cultivo de uma cultura filosóficaescrita, realiza-se num contexto cultural em que a palavra apresenta-se como sendo a que mais alcance tem. Enfim, os críticos reconhecemque existem ‘colegas’ de filosofia nas aldeias, mas não chamam essesmesmos colegas para a mesa do debate, à semelhança dos etnofilósofos.Estes, ao menos falavam em nome dos colegas nas aldeias. Podemos,

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portanto, sustentar que os críticos fogem à intersubjectivação da filo-sofia profissional africana.

O que explica a vergonha? É sem dúvida a insistência em filoso-far numa língua que uma boa parte do seu público não domina. Nosseus textos, a título de exemplo, está cheio de itálicos de palavras econceitos das línguas grega, latina, alemã, francesa e pouco encontra-mos algumas ‘distracções’ suas em incluir conceitos de línguas endó-genas. Isso nos faz mostrar que o seu público preferido é o públicointernacional e não os seus próprios povos. Porém, não queremosdizer com isso que devemos começar a escrever e filosofar em línguasafricanas, uma exigência que não seria realista. O que se busca aquisão as possíveis causas da aparente ambiguidade dos críticos emtomarem posições culturais a partir das quais poderiam argumentar eparticipar na globalização. Que será de um filósofo que não encarna oimaginário conceptual a partir do ponto de vantagem que a sua cultu-ra lhe põe à disposição, perguntamos com a ajuda de Asante. Portan -to, a terceira constatação crítica é o facto de os críticos ainda seremextrovertidos em relação ao seu público.

Porque, forçados pelas circunstâncias históricas da educaçãocolonial francesa, inglesa e portuguesa, o seu público é exterior (e nãointerior) então tem dificuldades em sistematizar o que se desenvolveucomo a filosofia Yoruba, Zulu, Banyaruanda, Sena da mesma formaque articulam facilmente com os termos da filosofia grega, clássicaalemã, francesa ou americana. Ou seja, dialogam com as filosofias dasculturas dominantes, mas têm dificuldades em tomar conta das filoso-fias dominadas. Mais uma vez: fecham-se assim ao horizonte maisaberto intra- e intercultural horizontal. Filosofam pela vertical e nãopela horizontal pois isto é inerente ao próprio esforço de dupla des-construção crítica em relação ao domínio ocidental e ao tradicionalis-mo que parece desbotar das etnofilosofias e etnociências. Os asiáticosparecem ter tido mais sorte. A experiência intercultural africanaainda permanece um projecto adiado para uma pretensiosa filosofiaafricana. A emergência de uma filosofia africana baseada e inspiradanas culturas ficou adiada devido à emergência de ‘libertar’ a filosofiada sua colonização. Auto-colonizou-se!

Enfim, os críticos não conseguiram auto-inscrever-se como umaproposta concreta de uma corrente filosófica africana, ou seja, não se

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profilaram como uma «escola» filosófica com um discurso próprioalternativo que ultrapassasse a «crítica» que exercem à etnofilosofia.Bem pelo contrário, com as suas críticas adiaram o processo de ama-durecimento do imaginário colectivo e individual para se apresenta-rem como «filosofias». Os críticos, na verdade, adiaram o processo deamadurecimento do diálogo intercultural concentrando os seus esfor-ços na desconstrução das «ameaças» etnocêntricas na filosofia afri -cana.

A emergência de um novo horizonte conceptual viria vincar, noentanto, com o afrocentrismo e a filosofia ubuntu, uma nova aventuraque muitos filósofos apressaram-se por adjectivar por uma espécie de«nova» etnofilosofia.

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PARTE III

REFERENCIAIS DE SUBJECTIVAÇÃO

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Olhando para o futuro da Igreja, referindo-se ao regime racistado apartheid na África do Sul, dizia Desmond Tutu nos inícios da dé -ca da de 60:

«Prevaleça ou não a política do apartheid, o povo africano vai, nospróximos 20 anos, ter que começar a criar seus próprios líderestanto na esfera eclesiástica como noutras. Eu tenho esperança deque haverá um dia em que estudantes africanos de teologia vãosentar em frente de docentes africanos de teologia, respondendoperante um director africano. Se esse dia chegar […] será o pre-lúdio para coisas maravilhosas.» (Cfr. Allen 2006,71)

Tutu advoga, com estas palavras, que «coisas maravilhosas»haveriam de acontecer em África, i.e. não só na teologia mas em todasas esferas. Estas coisas maravilhosas passariam, segundo ele, necessa-riamente pela presença de africanos como actores principais e nãocomo simples objectos. Numa leitura pouco mais atenta pode ver-seque Tutu reclama duas coisas: primeiro que nós africanos até entãotínhamos sido somente «objectos» da história e, segundo, é um impe-rativo que nos tornemos «sujeitos» da nossa própria história. Ou seja:a um esforço de objectivação deve passar-se para um esforço de sub-jectivação.

O discurso moderno sobre as ciências impôs uma lógica dicotó-mica que se pretende ser universal segundo a qual o conhecimento éuma espécie de dança entre o sujeito cognoscente e o objecto a serconhecido. Sob o ponto de vista da história das ciências humanas e

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sociais (filosofia, teologia, antropologia, história, geografia, sociologia,etc.) a imagem criada foi a de que os povos primitivos são o objecto deestudo. Interessava saber como o outro pensa, age, reage, vive, etc.

Entretanto, esta mesma história do pensamento e das ciênciasestá repleta de exemplos que ilustram a tentativa deste objecto revol-tar-se da sua condição de objectivado. O desejo de se auto-inscrevernesta história como sujeito discursante sobre a sua própria condição étão velho como o desejo do sujeito que se quer cognoscente. Emoutras palavras, a história de narrativas científicas da objectivaçãodos africanos na história é tão velha como a história das narrativas desubjectivação, nas quais este mesmo sujeito africano revela-se a simesmo como tal e nega ter sido «descoberto».

Neste capítulo conversamos com dois referenciais de subjectivaçãoque achamos suficientemente «paradigmáticas» e actuais como for-mas da auto-inscrição dos africanos na história do pensamento: trata-se dos referenciais da afrocentricidade e do ubuntuismo, sendo, sob oponto de vista geográfico, o primeiro originariamente da diáspora nosEstados Unidos e o segundo da região austral africana, mais particu-larmente da África do Sul. Entretanto, esta dispersão geográficaquanto à sua origem não significa que ambas não se tenham influen-ciado. Como veremos, textos importantes do ubuntuismo fazem refe-rências, alguns de forma explícita e outros de forma implícita, àcorrente afrocêntrica.

Porque o nosso método é de «conversação» com os textos eautores, e não propriamente o da exposição histórica dos pensamen-tos, escolhemos dialogar com aqueles que conviemos serem os «repre-sentantes» destes dois referenciais da auto-inscrição na história dopensamento.

Referencial III: A Afrocentricidade

Antes de nos embrenharmos na afrocentricidade vamos, em bre-ves linhas, descrever o ambiente teórico que o antecede nos EstadosUnidos, país onde esta corrente se desenvolve.

A filosofia afro-americana foi marcada por complexos contextossociais, envolvendo particularmente várias formas de descriminação

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racial a que os negros americanos, descendentes dos escravos, eramsubmetidos. Melhor, esta filosofia é marcada pela resposta e pelanegação àquela condição e pela busca de estratégias de luta contra ainferiorização social do negro. Não admira, pois, que o problema dabusca da identidade dos afro-descendentes seja recorrente nos seustextos.

O debate em torno da identidade pode compreender-se na pers-pectiva de dar conta da situação de ambiguidade e ambivalência dosnegros entre serem «africanos» e serem «americanos» ao mesmotempo. A forma de abordar e resolver as tensões resultantes destaambiguidade e ambivalência foi, naturalmente, variando consoante osindivíduos. Contudo, independentemente da posição, o problema cons-tante na filosofia afro-americana é a busca de resposta sobre como asse-gurar a liberdade individual e da «raça negra» numa sociedade que nãoparecia estar disposta a reconhecer o negro. A filosofia afro-americanaé uma filosofia nascida na luta contra duas formas de descriminação:contra a descriminação racial que marca a sociedade americana e con-tra a sua descriminação no seio da própria filosofia americana; pois,quando se fala de «filosofia americana» refere-se praticamente à contri-buição dos filósofos americanos brancos com o pragmatismo ou com ofuncionalismo e quase nunca aos filósofos afro-americanos que aindacontinuavam a lutar com a sua própria identidade.

Como dissemos, a primeira presença africana no país «onde tudoé possível» foi marcada pela sua escravatura e, intrinsecamente, pelaluta para alcançar a liberdade individual e colectiva dos negros. Seruma «pessoa livre» era um objectivo básico dos negros por volta de1850. Frederick Douglass é talvez o escravo mais conhecido na lutapela abolição da escravatura que, como referimos na introdução aolivro, eternizou as suas amargas experiências em livro.

É óbvio que as estratégias para alcançar a almejada liberdadeeram diferentes no seio dos diversos movimentos afro-americanos.Essas diferenças são particularmente visíveis na intelectualidadenegro americana no período que vai desde 1880 e 1915: a estratégia«acomodacionista» de Booker T. Washington contrasta a de umW.E.B. DuBois que iniciara o Movimento Niagara para contracenarcom os efeitos de Washington e exigir uma «cidadania americanatotal» para os americanos afro-descendentes.

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Em termos de movimentos dos negros de maior expressão napromoção dos direitos civis para os negros são incontornáveis aNational Association for the Advancement of Colored People (NAACP),que nascera da separação do Movimento Niagara, e a National UnionLeague. Ambos movimentos foram formados em 1909 e 1910 respecti-vamente visando usar meios legais (protestos) para exigir a observa-ção dos Direitos Civis em particular os que dizem respeito àeducação, ao emprego e à habitação condigna.

Apesar dos avanços na economia americana — em grande partefruto da industrialização e do crescimento da classe média americana— poucos negros conseguiram subir na escala social. Mas é no seiodesta pequena elite negra da classe média que voltam a desenvolver-se, entre 1940 e 1960, os grandes movimentos dos «Direitos Civis».A sua estratégia agora está entre a «assimilação» e a «acomodação».

Os assimilacionistas afro-americanos partiam de um pressupostosegundo o qual na federação dos Estados americanos já se haviadesenvolvido condições políticas, sociais, económicas e culturais sufi-cientes e apropriadas para a integração efectiva (assimilação) dosafro-americanos e, portanto, as organizações afro-americanas deve-riam assimilar estes objectivos gerais da sociedade americana semexigir especificidades baseadas na cor, raça, cultura e religião. Osnegros, tal como outros grupos sociais e culturais, devem obedecer àpolítica «oficial» e aceitarem ser assimilados por eles.

Por seu turno, os acomodacionistas tiveram uma agenda diferen-te. Reunidos em torno dos ideais de Booker Washington, estes assu-mem que a melhor estratégia para a sua integração não era desafiardirectamente a hegemonia política e económica dos brancos porqueestes já estavam estabelecidos; os negros só poderiam avançar adop-tando estratégias mais subtis de preparar aos afro-americanos paraassumirem, a longo prazo, a liderança política e económica; o que osnegros deveriam fazer é formar e exercitar um bom carácter e assu-mir responsabilidades através da educação; através da educação osnegros chegariam, «honestamente» ao topo da política e da economia.

A estratégia de DuBois era diferente. Intelectual brilhante, DuBoispropõe o que Outlaw chama de «integração pluralista» (Outlaw, s.d.,27). Este seria um tipo de integração social que manteria a diversida-de étnica, política e económica de cada grupo. Para DuBois, os negros

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deveriam poder articular e apropriar-se da sua identidade baseada nasua «raça», sendo a raça para ele um conceito principalmente históri-co, social e cultural e pouco ou nada mesmo de natureza biológica.

Naturalmente que classificar o pensamento destes homens assi-milacionistas ou acomodacionistas por «filosófico» é um risco porqueeles próprios, exceptuando DuBois, não tinham recebido uma educa-ção filosófica e, quando articulavam estas estratégias, não o fizeramcom base na prerrogativa filosófica.

Embora o primeiro afro-americano a doutorar-se em filosofia(Leroy Locke) surgisse somente em 1918 (pela Universidade deHarvard), de facto só podemos falar do florescimento de uma filosofiaafro-americana nos anos 70 do século XX. É neste período em quesurgem tentativas de articular uma filosofia que fosse Black ou Afro-American. Mesmo no seio da American Philosophical Association (ASA)o reconhecimento de uma disciplina especial denominada por AfricanaPhilosophy só viria a efectivar-se em 1987. Isto apesar de todos esfor-ços individuais e colectivos dos seus membros. Esse representa oreconhecimento de um campo discursivo específico dos praticantesafro-americanos de filosofia.

As formas de divulgação desta filosofia são fundamentalmenteduas. Através dos livros e nas universidades negras. Os livros para-digmáticos desta altura são sem dúvida Philosophy Born as Struggle:Anthology of Afro-American Philosophy from 1917, uma colectânea edi-tada por Leonard Harris e a obra Afro-American Philosophers, umacolectânea produzida por Percy Johnston. Os artigos inseridos nestasduas colectâneas são produto de leituras nas sessões especiais daASA. A segunda forma é nas universidades negras como a TuskegeeUniversity e a Morgan State University.

Naturalmente que existem várias outras obras de filosofia afro-americana cujos autores são Robert Williams, George Garrison,Cornel West, Charles Frey, etc. que surgem entre 1970 e 1980. Mas omais estranho é que estes autores escrevem sem incorporar o manan-cial filosófico que cresce no continente que eles reclamam pertencer: ocontinente africano. Estes filósofos afro-americanos escrevem semdar-se conta do debate entre os seus discípulos em África ou na diás-pora. A distância com a situação e a condição de vida dos africanos emÁfrica pode ter condicionado esta lacuna; por outro lado, podemos

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colocar a hipótese de que o espírito americano de auto-suficiênciapode ter tomado conta também dos afro-americanos. Afinal estes filó-sofos vivem nos Estados Unidos (e não em África), onde tudo parecevaler para se manter a autonomia do indivíduo.

É na tentativa de recuperar esta lacuna, nomeadamente o isola-mento da filosofia afro-americana do debate dos seus colegas filósofosafricanos em África ou na diáspora, que se deve compreender asincursões teóricas de Molefi Asante. A Afrocentricidade e a Africo lo -gia que ele propõe são produtos de uma tentativa de recentrar Áfricae o seu debate epistemológico na inteligência americana, particular-mente na teoria literária, sociologia, história, arte, música e retórica.Afrocentricidade é, como veremos, um conjunto de princípios que nosdeve guiar, assim crê Asante, como africanos se quisermos articularou produzir conhecimento de natureza científica em qualquer área.Também como veremos, o seu «inimigo» declarado é a forma euro-cêntrica de fazer ciência que predomina entre os afro-americanos.Mais do que uma filosofia, a afrocentricidade, por isso mesmo, é umacrítica ideológica e uma sociologia do conhecimento com elementosde filosofia entrementes. Vejamos em detalhes.

A afrocentricidade como corrente de pensamento nasce na Amé -rica do Norte e é liderada por Molefi Asante, o seu principal mentor.Este pertence à Temple University onde lecciona. Porém, segundo elepróprio, os pressupostos históricos para o florescimento da afrocen-tricidade como uma linha epistemológica estão ligados às figuras deCheikh Anta Diop e Martin Bernal.

Para Anta Diop a origem e o berço da humanidade assim como aemergência da civilização do mundo devem ser procurados em África.O Egipto é a mãe da civilização mundial. A civilização egípcia é especi-ficamente negra. Ela evoluiu e floresceu de tal forma que se tornoureconhecível como a base do humanismo de toda África. Por conse-guinte, a África não é só a origem da civilização como também o ber çodo desenvolvimento social, cultural, científico e político. Anta Diopaponta como sendo características comuns de toda África o matriarca-do, a espiritualidade, o humanismo e o pacifismo. Estas e outras ideiasestão plasmadas no livro The African Origin of Civili zation. Nele repisaque seria no Egipto e na África Antiga, sobretudo na cultura faraónica,onde os africanos do século XX podem encontrar a sua inspiração e o

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suporte político, cultural, científico e sobretudo psico ló gico que neces-sitam para lutarem pelo desenvolvimento do seu con tinente. Aindasegundo ele, o lugar que a Grécia ocupa na história do pensamentocientífico filosófico, deveria ser ocupado pelo Egipto Antigo12.

No entanto é Martin Bernal, de origem britânica, que desenvolvee aprofunda a tese diopiana de recentramento do Egipto Antigo naHistória Universal das civilizações. Bernal publica, em 1987, o pri-meiro dos dois volumes do seu livro Black Athena. Bernal distingue oque chama de «modelo antigo» do «modelo ariano» da interpretaçãoda história da antiguidade grega. No modelo antigo de interpretaçãoda história nota-se a grande influência das culturas africanas e asiáti-cas, principalmente a egípcia e a fenícia, na civilização grega13. Noentanto, como resultado de uma reinterpretação racista da história, omodelo antigo é substituído pelo modelo ariano. Este modelo, segun-do Bernal, teve duas fases. Na primeira, desde a revolução francesa atéa primeira metade do século XIX, os historiadores ingleses, franceses ealemães, mas sobretudo os últimos (por isso que ele denomina de aria-na), esforçam-se por mostrar uma Grécia romântica, com ideias ori -ginais, autónoma, criativa, dinâmica, mas sobretudo branca. É assimque, deliberadamente, académicos europeus de renome elaboram uma historiografia onde a Grécia é o berço da civilização universal e do pensamento filosófico14. O mesmo autor afirma que, a partir

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(12) Hountondji, no livro The Struggle for Meaning, conta uma história interessanteacerca de um dos encontros que teve com Cheik Anta Diop. Diz ele que, numaconferência em Copenhaga, depois de ele ter apresentado uma comunicação sobrea crítica unanimista que fez à etnofilosofia, Diop, que era um dos assistentes,levantou-se da cadeira e foi ao quadro onde apresentou, em detalhes, as origensegípcias de todo o quadro conceptual e da temática filosófica na Grécia Antiga.

(13) Bernal escreve sobre o modelo: “The Ancient Model in Antiquity treats the attitudesof Greeks in the Classical and Hellenistic periods to their distant past. It considers thewritings of authors who affirmed the Ancient Model, referred to Egyptian conquest ofthe Argolid and Phoenician foundation Thebes” (1987, 22).

(14) Referindo-se ao resumo sobre o capítulo Hellenomani I: The Fall of the AncientMo del, Bernal escreve: «Although racism was always a major source of hostility to theAncient Model and became a mainstay of the Aryan one, it was matched in the 18th andearly 19th centuries by an attack on the significance of Egypt from Christians alarmedat the threat of the religion or ´wisdom` of Egypt. These Christian attacks challengedGreek statements about the importance of Egypt, and boosted the independent creativityof Greece in order to diminish that of Egypt.” (Bernal 1987, 31).

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sen si vel mente de 1880, o modelo ariano entra na sua segunda fase, a«extremista». Nesta, no seu entender, há «negação sistemática» dequalquer influência africana ou asiática na civilização grega. SegundoBernal, entre 1880 e 1945 dá-se a final solution, a solução final. Poresta data, mais exactamente em 1980, são publicados dois artigospelos alemães Julius Beloch e Salomon Reinach nos quais reclamamabertamente que a civilização grega era puramente «europeia»,enquanto os fenícios, não teriam contribuído em nada para o desen-volvimento da cultura helénica (Bernal 1987, 34).

A Afrocentricidade de Asante

Molefi Kete Asante, cujo nome original cristão é Arthur LeeSmith, dedica uma boa parte da sua obra teórica para fundamentargnoseológica e axiologicamente a ideia da afrocentricidade. Entrevárias publicações onde ele expõe a afrocentricidade destacam-se TheAfrocentric Idea (1987, reeditada em 1998), e Kemet, Afrocentricity, andKnowledge (1990). Em seguida, vamos expor a obra de Asante basean-do-nos na ‘conversa’ em volta destas duas obras, que julgamos funda-mentais. Aliás, a retórica de Asante em todas as suas obras é tãorepetitiva e circular que, consideramos, bastam estas obras para teruma ideia precisa da sua teoria.

Para uma melhor compreensão, vamos expor a teoria de Asantedividindo-a em três partes. Na primeira parte apresentamos umAsante que quer desconstruir os «mitos eurocentristas» dos quais osintelectuais africanos, segundo ele, devem livrar-se por meio do queele rotula por «acções libertadoras»; na segunda parte apresentamosa essência da afrocentricidade entanto que corrente epistemológica; e na terceira parte procuramos mostrar a recepção desta correntepelos intelectuais africanos, a ‘passagem do testemunho’, da ÁfricaAustral, particularmente da África do Sul, e como estes intelectuaisadoptam a afrocentricidade como fundamento para a chamada filoso-fia ubuntu.

O objectivo central da exposição que vamos fazer da teoria deAsante é o de mostrar o caminho que ele percorreu para aquilo queele ostensivamente chama de «crítica radical» à tradição eurocêntrica

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da prática científica, tradição esta que ele classifica de ser «ideologia».Esta ideologia eurocêntrica, nas suas palavras, manifesta-se numamáscara universalista nas áreas da comunicação intercultural, retóri-ca, filosofia, linguística, psicologia, educação, antropologia e história.Segundo Asante, a sua crítica é radical no sentido de que ela sugereuma «viragem», ou seja, uma perspectiva alternativa nas formas deinterpretação até aqui disponíveis: it is about taking the globe and tur-ning it over so that we see all possibilities of a world where Africa […] issubject and not object, ou seja, trata-se de levantar o mundo e rodá-lo detal sorte que vejamos todas possibilidades do mundo em que África éo sujeito e não mais o objecto. Por outras palavras, Asante pensa que,ao fazer esta reviravolta, não só providencia uma perspectiva de inter-pretação radicalmente nova dos fenómenos, como também cria umaoutra realidade (Asante 1998, 1p).

Para consubstanciar a necessidade desta crítica radical, Asanteparte da ideia de que a produção teórica actual, muito particularmen-te nas ciências sociais, está poluída por mitos espalhados pelo euro-centrismo, tanto mais que a maioria dos cientistas sofrera uma espéciede lavagem de cérebro eurocentrista durante a sua formação nas uni-versidades e outras instituições de ensino. Essa «lavagem do cérebro»teve como resultado a criação de certos mitos que não os permitemver para além das lentes eurocêntricas.

Os «mitos euroncentristas» preponderantes nas práticas científi-cas são, segundo Asante, o universalismo, a objectividade e as tradi-ções clássicas (Asante 1998,10). Esses mitos fazem com que uma boaparte de teóricos africanos, e também europeus, continuem a usar for-mas e métodos «provincianos» de interpretação da realidade fenome-nológica, sem, no entanto, eles próprios estarem conscientes disso.Daí que a afrocentricidade deva, primeiro, tratar de desmistificar estaforma tradicional de interpretar os fenómenos naturais, políticos,sociais e culturais, para depois apresentar uma teoria radicalmentediferente e nova, ou seja, a afrocentricidade.

Iniciemos a leitura do chamado mito do universalismo. Este con-siste, em poucas palavras, em produzir interpretações ‘científicas’sobre os fenómenos da realidade com uma pretensão originária deestas interpretações serem válidas para todas as regiões culturais,portanto universais. Para Asante, os cientistas de todas as áreas, são,

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no fundo, uma espécie de produtores de diferentes interpretações dosfenómenos naturais, sociais, políticos e culturais. Assim, estes produ-tores de interpretações científicas, vestidos de lentes eurocentristaspor defeito de formação universitária também eurocêntrica, produ-zem-nas a partir de uma pretensão universalista e, por isso, não estãodispostos e nem estão em condições teóricas de ‘localizar’ as suasinterpretações. O termo «local», com o qual nos vamos confrontarmais adiante, é muito importante para compreender a teoria afrocên-trica de Asante. Para já basta indicar que o termo «local» serve paradesignar os referenciais culturais, a partir dos quais, segundo Asante,qualquer cientista deve produzir as suas propostas de interpretaçãoda realidade e dos seus fenómenos.

Para Asante, o mito do universalismo eurocêntrico manifesta-seem diversas áreas tais como nas metodologias de pesquisa, na filoso-fia, na história, na literatura, etc. Nos métodos de pesquisa cientí -fica, o mito do universalismo manifesta-se na tradição positivista.Para Asante, o positivismo é uma «situação intelectual terrivelmen-te triste» para os cientistas. O positivismo, para o nosso autor, éuma posição filosófica iniciada por Saint-Simon e Auguste Comte noséculo XIX e que ainda até hoje perdura como o modo predominantede interpretação da realidade e é na base dos seus postulados quequalquer interpretação nova deveria ser classificada por ‘científica’.Positivismo significa, para ele, simplesmente o que existe e que deveser aceite tal e qual como é; é uma posição que nega ir para além dodado, para um patamar desconhecido como é o caso das posiçõesinspiradas pela teologia ou pela metafísica (Asante 1990, 3).

O positivismo fechou as portas às interpretações alternativas darealidade fenomenológica; ele implantou uma visão de sociedade tãomecânica e estruturada que todo o conhecimento produzido no con-texto actual, para que ele seja considerado verdadeiro, ético e científi-co, tende a ser controlado e dominado por interpretações positivistas.Qualquer asserção, para ser considerada como de natureza científica,precisa de poder demonstrar com factos ou provas, sem os quais caifora do círculo científico. A esta forma positivista de interpretação defactos e de administração da prova, não interessa o «local cultural», apartir do qual o cientista produz as suas interpretações, observaAsante a partir da sua posição afrocêntrica.

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Assim, por insistir numa posição universalista, o positivista nãoreconhece, e nem está disposto para tal, a posição ou o «local cultu-ral» eurocentrista em que se encontra submerso. Desta forma, nãoadmira que, devido a sua tendência de universalizar a validade dassuas interpretações, o positivista tenda a não reconhecer o discursodo ‘outro’, ou mesmo a excluir todo o discurso científico que aparen-temente esteja fora dos seus princípios. Por isso, o discurso positivistapode ser considerado como sendo hierárquico, na sua essência.

Asante defende que esse discurso hierárquico (a «retórica») positivista possui três características: controla o território da retóricaatravés da definição, estabelece ritos de iniciação auto-perpétuos esufoca discursos opostos (Asante 1998,34). Estas três característicasemprestam ao discurso positivista uma natureza dominante em rela-ção aos discursos de natureza diferente da sua.

Asante acha que a definição tem um papel central na prática cien-tífica no contexto eurocentrista. Pois, segundo ele, o debate, naquelecontexto, não pode ocorrer se os termos da comunicação (ou seja, asdefinições) não estiverem claras entre os arguentes. Em outras pala-vras, a definição cria a ordem no discurso, na argumentação. Mas,prossegue Asante, o estabelecimento de uma ordem na base da defini-ção pode criar um curto-circuito para posições opostas, a não ser queestas, por alternativa, criem condições para modificarem os seus pró-prios termos para entrarem no debate. Uma outra alternativa de asposições alternativas ou oposições poderem ser incluídas no debate,portanto não serem excluídas, é a de manipularem os padrões decomunicação para este efeito. Assim, ao exigir a definição dos concei-tos em causa, o positivista não só estabelece a ordem segundo a qualse hierarquizam as interpretações diferentes, como também determi-na os termos da discussão, o seu resultado assim também concentranas suas mãos o poder. As condições epistemológicas para o seudomínio sobre os outros discursos estão, logo à partida, controladas,conclui Asante. Uma vez a ordem que o discurso deve tomar estar jáestabelecida, também estão automaticamente criadas as condiçõespara que a perspectiva eurocêntrica da ciência tenha o poder de«exterminar» as outras perspectivas. Mas este poder, na opinião donosso autor, não é visível à vítima, enquanto esta continuar como vítima. Assim actua o discurso da definição: it prevents choice, evita a

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escolha. A imposição de uma visão e o extermínio do outro deve serconfrontado a partir dos seus fundamentos teóricos, conclui Asante(1998, 35).

O estabelecimento de ritos de passagem que se auto-perpetuam(self-perpetuating initiation) é a segunda característica da retórica cien-tífica eurocêntrica. O que isto quer dizer? O cientista é iniciado nasua ‘educação’ com a obrigação de ter um cometimento com a verda-de que se lhe apresenta como algo fixo, sagrado. Ele é obrigado,assim, desde logo, a aderir a uma determinada posição intelectual.Assim, as regras do discurso estão formalmente preestabelecidaspara qualquer nova pessoa que quer iniciar uma carreira científica,independentemente da natureza da sua mensagem. Aquele que nãoobedecer às regras (portanto, sendo percebido que está a faltar à ver-dade) será imediatamente eliminado dos locais dos discursos científi-cos e do direito de emitir mensagem que tenham aquele poder. Esteestá condenado a ficar na audiência, para sempre calado, mesmo quegrite. E, supondo mesmo assim que o nosso iniciante na ciência con-tinue a gritar da audiência para o pódio, o iniciado que não obedeceuàs regras da verdade (entendida no sentido eurocêntrico, é claro), asua posição será sempre hierarquicamente inferior dentro da ordemdo discurso preestabelecido. O rito de iniciação científica é estrutural enão individual; ou seja, explica-nos Asante, pode ser possível que uminiciante da audiência grite tanto que consegue fazer passar os seuspontos de vista ou teorias como sendo verdadeiros e, assim, ele pas-sar para o lado do pódio, será desta feita a sua vez de impor as suasregras às outras vozes opostas. Este, outrora iniciado nos ritos, supe-rou a pessoa ou as pessoas, mas não a estrutura do discurso. Aqui sevê, mais uma vez, a razão pela qual Asante acha que a crítica ao euro-centrismo deva ser radical, isto é, deve incidir sobre a estrutura daretórica, e não sobre os indivíduos. Daí que seja importante ao inicia-do da audiência, neste caso ao afrocentrista, perceber que a sua van-tagem estrutural lhe é proporcionada se ele discursar a partir da sualocalidade, ou seja, do seu «local cultural» (culturalidade). Este nãodeve cair na «armadilha» do positivista em querer discursar a partirda sua posição porque nunca romperá o círculo, a ordem. Se não rom-per o círculo estabelecido, o nosso iniciado irá sempre discursar apartir de uma posição africanista e não afrocêntrica. Sobre a diferença

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que Asante faz entre o discurso científico africanista e o discurso cien-tífico afrocêntrico, uma diferença que parece crucial para ele, voltare-mos mais adiante. Por agora basta adiantar que o africanista é aqueleque discursa sobre a África usando lentes do eurocentrismo enquantoo afrocentrista o faz a partir dos valores que o seu «local cultural»lhe permite fazer.

A terceira característica do discurso hierárquico positivista,segundo Asante, é a de sufocar os discursos opostos (stifling of oppo-sing discourse). Para percebermos esta característica deve retomar-se oque foi dito anteriormente, nomeadamente, o facto de a obediência aorito de iniciação por parte do iniciado (para evitar ser excluído) seruma questão estrutural e não individual. Assim, partindo desta carac-terística, Asante explica que em todas as instituições a posição nopoder não é permanente; daí que elas procuram garantir a sua exis-tência permanente através da «denúncia a todos os pontos de vistaque se opõem através da confrontação directa, ou através de subterfú-gios (ataques indirectos) ou através da criação da ilusão de que a opo-sição tem canais de expressão abertos, canais que, na realidade, sãocontrolados pela ordem estabelecida» (Asante 1998,36). Em muitoscasos o discurso científico dominante pura e simplesmente procuraignorar o outro, isto é, argumentando que não existe oposição, que oque está em causa é simplesmente ‘uma questão de perspectiva’ e nãode essência.

Não admira, pois, que o discurso eurocêntrico na historiografiatenha silenciado ou ignorado o outro, declarando-o simplesmentecomo «primitivo». Nesta ordem de ideias, o primitivo está hierarqui-camente numa ordem inferior, o que quer dizer que não é capaz dereconhecer e discursar em torno da verdade, não cumpre com os ritosde iniciação científica e que o seu discurso, no fundo, não é oposto aomoderno, mas simplesmente atrasado historicamente (pré-histórico).Para além disso, como na visão eurocêntrica a prossecução da verdadeé uma questão moral, então o primitivo, por não ter a capacidadedesenvolvida de reconhecer a verdade, aparece sempre como um amo-ral. Assim, a sua inferioridade se perpetua, enquanto continuar a ope-rar no círculo e na ordem estabelecida pelo mito da universalidade dodiscurso científico espalhado pelo eurocentrismo. A liberdade do dis-curso denominado por «africanista» só será assim possível se este

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romper o cerco da ordem do discurso e montar uma estrutura quepermita também ele discursar a partir do seu «local».

Asante dá-nos vários exemplos de leitura onde, segundo ele, seaplica o mito do universalismo eurocêntrico. Na literatura, por exem-plo, o mito do universalismo está patente nos escritores de origemocidental, porquanto que, quando escrevem, tendem sempre a consi-derar o romance como uma forma universal de expressão, esquecendoque este não existe em muitas culturas como a forma representativapredominante (Asante 1998,3). Um outro exemplo dado por Asante éno âmbito do discurso feminista moderno. Segundo ele, predominanesta esfera a fundamentação marxista sobre as desigualdades sociaiscom base no sexo; pois, segundo o marxismo, as desigualdades entreo homem e mulher são produto da ordem estrutural capitalista-indus-trial onde uma força de trabalho mais flexível (os homens) é que temmaior capacidade de criar capital do que as mulheres. Esta explicação,embora considerada parcialmente correcta, segundo Asante, peca portentar impor-se como a única explicação universal para as desigualda-des entre ambos os sexos. A crítica radical usando uma perspectivaafrocêntrica seria, na óptica de Asante, olhar para este fenómeno apartir de valores tradicionais africanos como a harmonia, a justiça, aequidade e não a partir de uma perspectiva de oposição dos contrá-rios, da dicotomia entre o homem e mulher, como o marxismo preten-de propor de uma forma universalista etnocêntrica.

Se alguma coisa perdeu-se, recorda-nos Asante (Idem, 8), essacoisa é a capacidade de evocar a centralidade cultural tradicional afri-cana na análise dos fenómenos sejam de natureza social, sejam denatureza política; isto é, teríamos sido desviados da nossa própria pla-taforma básica que é o nosso espaço cultural. Esta plataforma dar-nos-ia a possibilidade de mostrar que a afrocentricidade tem tanto devalidade de explicação ou de interpretação dos fenómenos como a tema forma de interpretação eurocentrista, incluindo, por exemplo o mar-xismo.

A segunda «acção libertadora» da afrocentricidade, a qualAsante faz repetidamente questão de sublinhar, é a desconstrução domito da objectividade, mito este espalhado e defendido pela ciência eexportado pelo ocidente para os outros locais culturais. São dois pressupostos básicos que estão por baixo da chamada «objectividade

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científica». O primeiro diz respeito à existência, no acto ou no proces-so do conhecimento, de dois elementos para que haja a produção doconhecimento científico: o sujeito e o objecto de conhecimento, o cog-noscente e o conhecido; o segundo pressuposto, e é este que interessaa Asante, é que o sujeito «mantém uma distância mental» do sujeitode estudo (Asante 1990, 111). Essa distância que o sujeito deve a todocusto manter é a fonte da objectividade. O cientista deve no máximoevitar que preconceitos, ideias preconcebidas, crenças suas e outrosídolos interfiram no processo do conhecimento.

Para o nosso autor, porém, este segundo pressuposto constituiuma ilusão. Porquê deveria um pesquisador querer manter esta dis-tância mental com o seu objecto de análise? Esta separação ou distân-cia, embora desejável na perspectiva metodológica afrocêntrica, elaporém deve ser vista como sendo «transitória». Talvez o termo apro-priado não seja distância mas sim «descentramento», adianta Asante.Mesmo nos próprios eurocentristas, quando lidos atentamente, nota-se quase sempre existirem valores por trás dos seus textos.

O problema central reside no facto de o eurocentrismo tentarfazer com que a objectividade científica seja considerada um critériouniversal para a prática científica, numa situação em que a própriaciência tem dificuldade em enquadrar, em interpretar e sistematizaros dados empíricos de realidades culturais diferentes, especialmentecomo a africana. De facto toda a ciência é um conjunto de asserçõescom a pretensão de serem objectivas. Ou seja, toda a ciência reduz-sea uma questão de discurso, no qual o mensageiro (o cientista) tentafazer passar a sua mensagem como sendo verdadeira e objectiva. Noentanto, segundo Asante, citando Daudi (Cfr. Asante 1998,39), todo oconhecimento é político, não porque o conhecimento tem sempre consequências políticas ou possa ser aproveitado politicamente; ésimplesmente porque ele é sempre gerado sob determinados con -dicionalismos sociais e políticos, ou seja, num contexto de poder aoqual o cientista não se pode excluir. Qualquer acção humana, incluin-do a ciência, é um acto político, ou melhor, é politicamente condicio-nado. De facto, como vimos no ponto anterior, o eurocentrista usa umdiscurso hierarquizante que tem como fim controlar os outros dis-cursos vindos da periferia, sob a capa do universalismo da objecti -vidade.

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Asante (1998,24) resume dizendo que, numa leitura mais atenta,o que muitas vezes se considera objectividade, não é mais do que uma«subjectividade colectiva europeia».

A terceira «acção libertadora» que o afrocentrista deve encetar éa destruição do mito eurocêntrico das civilizações clássicas do pensa-mento, da Grécia Antiga em particular. A tese básica desta acçãolibertadora pode ser resumida da seguinte forma: a humanidadedesenvolveu-se primeiro em África e é por isso que os africanos têmuma espécie de prioridade cosmológica e cronológica sobre os outrosgrupos humanos; a primeira civilização do mundo é a egípcia, a queAsante denomina de Kemet. Esta é uma civilização especificamentenegra, porque os seus fundadores teriam vindo do Sul do continente;a cultura civilizacional egípcia é a base para fundamentar hoje a exis-tência de uma única cultura dos africanos, isto é, Kemet forma o refe-rencial para a esfera de valores espirituais e da tecnologia comuns detodo o continente; de facto, segundo Asante apoiando-se em Diop, asinvenções egípcias devem ser a fonte para compreender o desenvolvi-mento científico da Grécia Antiga e, desta forma, de toda civilizaçãocontemporânea; a unidade espiritual e cultural da África de hoje deri-va da fonte inicial do Egipto Antigo e estende-se para os negros nadiáspora nos Estados Unidos.

Asante pensa que a propagação da cultura egípcia para o resto daÁfrica tenha sido uma «difusão», enquanto a propagação da cultura edo saber da África para a Grécia Antiga e para a Europa tenha sido um«roubo». Consequentemente, segundo o mesmo autor, ao longo da his-tória houve conspiração por parte das academias do Ocidente para sis-tematicamente apagar-se da história do pensamento e esconder acontribuição dos académicos africanos no que diz respeito aos saberes evalores, ou então, quando não puderam esconder, optaram pela inferio-rização e marginalização desses saberes e valores. Por isso, para Asante,é importante reapropriar as fontes originais dos saberes e dos valoresafricanos para ganhar forças e inspiração na luta contra todas as ten-dências de marginalização e de subalternização do lugar que Áfricaocupa na história universal do pensamento. Ele fundamenta a necessi-dade de encarar a afrocentricidade como sendo principalmente umaespécie de «atitude» básica para resgatar e reavaliar a experiência daÁfrica com a (sua) história universal e com o pensamento no seu geral.

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O que é o Egipto afinal? Como se justifica que ele seja o berço dacivilização humana e não a Grécia Antiga? Porquê se torna importan-te hoje para os afrocentristas sublinhar a necessidade de voltar àGrécia para se afirmar como corrente? Vamos abordar estas questõesa partir do livro Kemet, Afrocentricity and Knowledge de Molefi KeteAsante.

Em termos gerais a obra Kemet está dividida em três partes:«interiores», «anteriores» e «exteriores». Na primeira parte (interio-res) Asante expõe as referências intelectuais da teoria afrocêntrica; éonde Asante expõe os fundamentos — daí o termo «interiores» —cosmológicos, epistemológicos, axiológicos, estéticos, políticos emetodológicos da afrocentricidade. Discutiremos estes aspectos maisadiante. A seguir, na segunda parte dos anteriores, são expostas ascivilizações antigas africanas, com o Egipto no centro das quais, paramostrar os antecedentes da afrocentricidade. Na parte final (exterio-res), Asante dedica-se a analisar particularmente o problema daliberdade do negro, a partir de uma perspectiva da educação afrocên-trica.

Para compreender o Egipto e o seu papel na teoria afrocêntricade Asante, vamos dialogar com os «anteriores». E, como tivemos oca-sião de referir anteriormente, esta ‘tese’ de Asante em re-centrar oEgipto na história clássica é uma continuidade do que Anta Diop eMartin Bernal já fizeram. O que é de facto novo em Asante é a funda-mentação mais filosófica que este empresta à sua escrita sobre oEgipto: «A origem de toda a especulação africana na religião, arte,ética, costumes morais e estética são derivadas do sistema de conheci-mento encontrado no Egipto Antigo. E até certo é esta origem, maisdo que a grega, que tem um impacto mais profundo no mundo oci-dental», defende Asante (1990,47).

O legado dos egípcios ao mundo é, pois, muito mais profundo doque a história nos ensina. Em primeiro pode notar-se ao nível dosprincipais conceitos que usamos hoje. Se por um lado os conceitoscomo meteorologia, biografia, biologia, geologia, aeronáutica, astro-nomia, filosofia, teoria, comédia, etc. são geralmente derivados, na suamaioria, do seu uso na Grécia Antiga, também não é menos certo que a história da ‘dívida’ desta Grécia para com a língua usada nacivi li zação antiga faraónica está pouco contada. Segundo Asante, a

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herança egípcia penetrou na que hoje se chama de civilização ocidental,penetração esta que se faz através da Grécia, particularmente noscampos da literatura, da oralidade, da poesia, dos rituais de enterrodos mortos, dos mitos da procriação, etc., isto tudo para além docampo da história das ciências e da tecnologia. Quem pois não conhe-ce as famosas pirâmides (ou, no mínimo, nunca ouviu falar deles) e ostemplos do vale dos reis que orgulham todos os africanos hoje?Também, como africanos, sentimos o ritmo original inspirado peloEgipto nas danças e na música, na literatura e até na natureza calma erespeitosa da interacção entre os africanos quando estão em conversae em outras circunstâncias. Da mesma forma os costumes como osfestivais, as cores, a vibração, o apelo à dieta alimentar, o movimento etudo isto que fazemos para nos comunicarmos com os deuses, faz-nosrecordar as longas cerimónias ao longo dos bancos do rio Nilo. Nasciências o Egipto, contrastando com os bárbaros do Este europeu, é oberço na arte, astronomia, geometria e filosofia, particularmente daética. Os povos do Kemet parecem ter pensado em todos os aspectos da acti-vidade humana, pois devemos a eles não só as bases da ciência comotambém os pensamentos sobre formas de organização social como amonarquia e os respectivos ritos éticos, religiosos, educacionais, etc.que envolvem este tipo de organização política. O legado do Egiptoestende-se até ao campo da simbólica e de ícones como sinais supre-mos. Enfim, remata-nos Asante, há uma «misteriosa perfeição e bele-za» que devemos ao Egipto Antigo e que «estampa» o que chamamoshoje a civilização africana.

O que a Grécia explorou mais do Egipto foi porém o campo deideias, particularmente o das ideias filosóficas. Começa-se, por exem-plo, pelos nomes dos deuses gregos que foram ‘emprestados’ doEgipto, seguindo-se também os conceitos, as conexões entre os con-ceitos e até o ambiente, a atitude e o temperamento mítico-reflexivosque acompanham as sessões de debate destes temas mitológicos.

O que é que, segundo Asante, teria contribuído para que a Civili -zação Egípcia se tornasse tão central para as civilizações mundiaisposteriores? São dois factores naturais: a água que corre no rio Nilo eo sol. Estes dois factores, no entender do nosso autor, estão no centroda compreensão das áreas como a cosmologia, a medicina, a religião, aorganização social e naturalmente a agricultura.

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Graças ao rio Nilo o Egipto se tornou uma civilização. Este rioatravessa hoje vários países e culturas, como sempre o fizera. As áreasque o rio atravessa sempre transmitiram um senso de «segurança»,«estabilidade» e «optimismo» ao mundo antigo. A atmosfera e a geo-grafia ao longo do Nilo providenciaram um isolamento apropriadopara as reflexões. Os grandes projectos de irrigação, ou seja, os pro-jectos de «gestão da água», podem ser considerados como os primei-ros projectos nacionais para o desenvolvimento da agricultura numaescala maior. Não admira pois que se tenham desenvolvido ciênciascomo a matemática, a geometria juntamente com a agrimensura e aestética em volta do Nilo.

Por sua vez, o sol também joga um papel importante para a com-preensão da Civilização Egípcia: a sua intensidade, o calor, a luz, sãorelacionadas directamente não só com as actividades económicas agrí-colas e de transporte ao longo do rio, mas também com a cosmologia,construção de templos, medição do tempo, posições éticas, a justifica-ção dos rituais, etc. O culto ao sol, realizado na Heliópolis, «Cidade doSol», ocupava o centro dos rituais egípcios. Em volta das cerimóniasao sol (o nascimento, a sua ‘viagem’ pelo céu durante o dia, o entarde-cer e o pôr-do-sol, a noite, a intensidade da sua luz, etc.) estruturaram-se simbologias diferentes: cores, estátuas, hieróglifos, hierarquiasparoquiais, enfim, todo um sistema religioso e simbólico que daria azosao desenvolvimento de pensamentos filosóficos sistemáticos. Todosestes rituais e o que simbolicamente representam estão minuciosamen-te colectados por Asante na perspectiva de demonstrar a precedênciado Egipto às civilizações actuais (Cfr. Asante 1990, 54 pp.).

No entanto fica a questão: para que nos serve hoje ressuscitarestes ‘fantasmas’? Segundo Asante há duas razões básicas para que oafrocentrista permita-se a este ‘recuo’ na história: a reconfirmação (re-confirmation) e o desligamento (delinking). Por reconfirmação, Asantequer dizer que todo o estudioso ou cientista africano deve comprome-ter-se intelectualmente com a ideia diopiana da unidade do pensamen-to africano; especialmente ele deve mostrar o seu comprometimentopara com os símbolos e conceitos básicos surgidos no Egipto Antigoda mesma forma como o faz qualquer «filósofo» formalmente educadoque começa por aprender a filosofia ocidental a partir dos conceitos eem debate com os considerados «primeiros filósofos» da Grécia

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Antiga. Por outras palavras, Asante exige que todo o pesquisadorafricano ‘confirme’ a sua aderência à afrocentricidade abordando qual-quer tema que estiver a pesquisar usando, como sua fundamentaçãoteórica, o arsenal intelectual oferecido pelo Egipto Antigo. O Egiptodeve ser a sua fonte a partir da qual deriva todo o pensamento e com-portamento. O desligamento significa, por seu lado, que estudos defenómenos e processos que ocorrem em África ou nas regiões ondevivem africanos na diáspora, o estudo principalmente da história daÁfrica e a abordagem de todas as ciências deixam de ser simplesmenteapêndices ou anexos do projecto intelectual moderno eurocêntrico,isto é, cessam de ser periféricos e marginais para passar para o centro.É preciso ‘desligar-se’ do centro, melhor do que se considera comocentro da produção científica moderna — o Ocidente.

As duas razões para iniciar qualquer estudo a partir da «nossa»civilização clássica africana estão interligadas e podem aumentar rapi-damente o auto-conhecimento da nossa história, aumentando assim anossa auto-estima como africanos, sujeitos do nosso passado e presen-te. Ambas, ou seja a reconfirmação e o desligamento, constituem acondição para a recuperação da dignidade dos africanos, sobretudo oorgulho sobre a nossa auto-inscrição na história da humanidade,somando e inventariando os aspectos positivos e as conquistas dosafricanos nas diversas áreas da ciência.

Asante dá, em seguida, exemplos da aplicação da re-confirmaçãoe do desligamento nas diversas áreas das ciências, dando particularênfase à linguística, literatura («oratura») e mitologia/filosofia. Énestas que Asante pensa ser o lugar onde os africanos podem buscaros fundamentos para a sua auto-inscrição positiva na história intelec-tual; ou seja, daquilo que ele chama de «presença africana na história»intelectual (Asante 1990, 57). Assim, qualquer estudo sobre Áfricadeve ‘confirmar’ a sua afrocentricidade começando obrigatoriamentepelo estudo na língua do Egipto Antigo, à semelhança do que aconte-cia com o estudo do latim em épocas anteriores que era obrigatório,especialmente para quem quisesse estudar as humanidades. Assim sedeve proceder na astronomia, geografia, história, e assim por diante.Só desta forma é que poderá configurar-se, a partir da sua origem efundamento, um quadro conceptual afrocêntrico que seja válido paraser aplicado no resto das ciências. Esta parece ser, quanto a nós, a

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contribuição de Asante para o debate que, no continente africano eentre os filósofos africanos, ficou conhecido por «descolagem concep-tual» iniciado por Crahay. Sobre esse voltaremos mais tarde no últimocapítulo. Para já basta dizer que Asante confunde língua e linguagem,pois, quanto a nós, para filosofar ou fazer ciência não importa em quelíngua se faz.

Por seu lado, o desligamento deve começar por desmistificar edepois por recentrar o Egipto na história. É preciso desmistificar, porexemplo, o mito de que a Grécia é o berço do saber universal mos-trando como muitos sábios gregos tiveram o ímpeto de viajar para oEgipto porque consideravam, naquela altura, este território como afonte do saber e do conhecimento. E a história está repleta de exem-plos de helénicos e persas que atravessaram o mar para serem inicia-dos nos templos egípcios em diversas matérias. Entre esses sábioscontam-se figuras como Homero e Orfeu, mas também Tales deMileto, Pitágoras, Solon e Platão. Tales, por exemplo, teria aprendidoa astronomia e a geometria no Egipto Antigo.

Ao reescrever a história devolvendo o lugar central do Egiptonela, estaremos ao mesmo tempo, segundo Asante, a lutar contra atentativa dos historiadores antigos e modernos em dividir o continen-te africano e os africanos por isolarem o Egipto do resto da África; ouseja, defender que o Egipto é uma civilização clássica para os africa-nos como o é a Grécia para os europeus, é defender a unidade africana.

Passemos agora para o segundo momento onde expomos a teoriada afrocentricidade. Na Afrocentric Idea Asante escreve que, na aventu-ra da afrocentricidade, não se encontra sozinho: as suas fontes de ins-piração são as ideias de David Walker, W.E.B. DuBois, Ida B. Wells,Cheikh Anta Diop e George James. Ele confessa que se considera«diopiano» (Asante 1998,xv). Mais adiante porém, ele reconhece querecebe um ímpeto teórico de Wade Nobres (que se concentrou noestudo do estado e condições psicológicas dos oprimidos) e deMaulana Karenga (que, segundo Asante, interessou-se em desenvol-ver teorias de reconstrução cultural dos oprimidos [Asante 1998,20]). De facto, os livros de Asante são, em algum momento, demasia-damente recorrentes a estes autores.

Afrocentricidade significa literalmente «colocar ideais africanosno centro de qualquer análise que envolve a cultura e o comporta-

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mento africanos» (Asante 1998,2). Assim, a afrocentricidade, paraalém de se ver a si própria (melhor, na óptica de Asante) como umateoria de ciência, auto-inscreve-se também e sobretudo como umafundamentação axiológica ao pretender, ostensivamente, ser a fontede inspiração para guiar o comportamento e o estar-entre-outros dosafricanos.

O conceito de place15, local, posição cultural e epistémica a partirdo qual o cientista argumenta, é central para a afrocentricidade, por-que o local é o contexto no qual se situa o discurso. Na nossa inter-pretação, para Asante, o place é uma categoria que informa nãosomente a posição epistemológica mas também a posição ética do filó-sofo. O afrocentrista, diz-nos Asante, olha para o local a partir doqual o saber é produzido como o elemento fundamental pois é dondeele deve derivar e orientar todas as suas preocupações intelectuais.Todo o conhecimento é resultado da ocasião do encontro entre o seusujeito e o place. Este deve dar-nos a orientação necessária para deri-var dele os ideais e os valores que estarão no centro da pesquisa cien-tífica. Daqui deriva que o afrocentrista não deve questionar-se sobre acentralidade dos ideais e valores africanos, mas sim procurar dizer-nos de que valores se trata (Asante 1990,5). O que Asante propõe-nosaqui é que não devemos questionar a nossa identidade como africanos,porque este é um dado adquirido, mas, como africanos, devemos estarconscientes de que é a partir desta identidade que devemos começar afundamentar as nossas preocupações científicas. Entretanto, reconhe-cer apriori a nossa identidade significa manifestá-la no que-fazer cien-tífico. E a forma de manifestá-la é usar códigos, paradigmas, símbolos,motivos, mitos africanos na escrita científica com o objectivo de refor-çar a centralidade dos ideais e valores africanos no exame de dadosque, no processo da pesquisa, recolhemos. Ou seja, o afrocentristanota-se não só pelo apelo que faz aos valores africanos, mas sobretudopelo uso consciente e sistemático da simbologia africana e outros ele-mentos culturais. Ele demonstra ser africano, para além de anunciarsê-lo. Pensamos que estas são as estratégias centrais com as quaisAsante pensa estar a desafiar o eurocentrismo: não pondo em debate a

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(15) Num outro momento Asante emprega indiscriminadamente os conceitos «posi-ção», «lugar», «espaço» e «termo» para significar o mesmo.

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identidade, e exigindo ao mesmo tempo a manifestação desta identi-dade através do uso consciente dos símbolos africanos disponíveis nahistória.

A posição cultural e o uso dos seus símbolos para fazer ciência éimportante, porque desta forma diferencia-se um africanista dum afro-centrista. Um africanista realiza «Estudos Africanos», ou seja, fazestudos sobre África usando lentes eurocentristas. Uma pessoa queestuda a economia da Tanzânia numa universidade qualquer não podeser considerada como afrocentrista: de facto, esta pessoa é um econo-mista com conhecimentos sobre a Tanzânia nos quais aplica pressu-postos e métodos económicos aprendidos naquela universidade àquelepaís africano. Em contraste, um afrocentrista usa a experiência africa-na e os valores culturais que o place põe à disposição para analisar omesmo fenómeno. Nesta perspectiva ele sempre estará em condiçõesde encontrar «novidades» num local ou numa perspectiva científicana qual o africanista poderá dizer que não há nenhuma. SegundoAsante, os resultados conseguidos a partir de uma perspectiva afro-cêntrica serão tão «profundamente revolucionários» no campo doconhecimento, que serão, de facto, novos conhecimentos (Asante1990,8). A novidade, portanto, só pode ser possibilitada pelo uso dasvantagens que o place nos dá.

O place informa-nos sobre as questões cosmológicas, epistemoló-gicas, axiológicas e estéticas que o afrocentrista deve assumir peranteo questionamento de todos os fenómenos que pretende analisar.

Nas questões cosmológicas deve ter-se em conta a posição dosafricanos no mundo perguntando-se, por exemplo, qual é a posiçãodas culturas africanas na confrontação com o cosmo? Quais são ossímbolos da orientação africana no seu relacionamento com o cosmo?Esta forma de questionar levar-nos-ia a temas concretos da cosmolo-gia tais como a questão das percepções sobre o lugar que a raça negraocupa na sua relação com as outras, a questão das tendências comunsdos africanos em termos de percepções, atitudes e predisposições psí-quicas (informadas pela cultura), a questões do género e libertação damulher analisando as percepções sobre o lugar reservado para ela, apartir do place, e finalmente a questões que derivam da posição socialobjectivadas em classes sociais. Ou seja, se percebemos bem, o queAsante propõe-nos aqui, não é uma análise de questões cosmológicas

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colocadas pela filosofia clássica, que lhe parecem colocadas numaperspectiva demasiado universalista, mas sim localizá-las por formas apodermos tornar perceptível o lugar que os africanos ocuparam eocupam no mesmo cosmo.

A noção do place é aplicada também na axiologia. As questõesaxiológicas têm a ver com a noção da verdade. Aqui sublinha-se que averdade não deve ser entendida no seu atributo de ter um carácter deuniversalidade «não localizada». Bem pelo contrário, ela deve estarsubmetida ao local, ou seja, às questões éticas uma vez que o que seconsidera verdade é sempre funcional ao contexto e não absoluta nosentido de universal. O que é bom é verdadeiro e não ao contrário.Portanto, a verdade submete-se ao bem. Portanto, um afrocentristainforma-se primeiro sobre o valor ético de um facto ou atitude para acomunidade, por exemplo. Ele não pergunta primeiramente se é ver-dadeiro, pergunta-se sim, se é bom ou belo. Localizar significa istomesmo: dar primazia ao axiológico em relação ao saber em si.

Em suma podemos dizer que, na perspectiva epistemológica, aintencionalidade da afrocentricidade, tal e qual o seu fundador Asanteparece pretender mostrar, teria nascido da consciência sobre a neces-sidade, por um lado, de desmarginalizar os saberes produzidos poracadémicos africanos e da necessidade, por outro, deles próprios obte-rem o monopólio na produção dos discursos sobre o sentido e os sig-nificados da realidade histórica e contemporânea africana. Embora aafrocentricidade possa ser considerada, pela sua génese e essência,uma denúncia crítica contra objectivação exógena do lugar e estatutodo africano na História, de facto, como dissemos já anteriormente, elaé uma tentativa de subjectivação do ser africano. Isso percebe-sequando Asante exige que qualquer empreendimento científico ou aná-lise que se queira fazer sobre os fenómenos africanos, para ser coeren-te, deve ser feito a partir das posições epistemológicas do afrocen-trismo; assim também ele prescreve o que o cientista deve fazer e poronde deve começar a olhar o seu objecto de análise. Esta é a conse-quência do posicionamento científico informado pela afrocentricidade.

Ainda na mesma perspectiva, isto é, o nível da ciência, o objectivoda afrocentricidade é fundar uma ciência baseada nos valores africanos,recorrendo a um quadro conceptual também genuinamente africano.Esta intencionalidade pode comparar-se com a alegoria da caverna

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platónica na qual a afrocentricidade é a luz que desacorrenta os africa-nos da contemplação eterna das sombras para a contemplação domundo real, das ideias e da essência das coisas. Acredita-se que todos osafricanos partilham elementos culturais comuns: «nós temos um únicosistema cultural africano que se manifesta na diversidade [...] nós res-pondemos ao mesmo ritmo do universo, às mesmas sensibilidades cos-mológicas, à mesma realidade geral da história» (Asante 1998,104).

Explorar a possível passagem do testemunho da afrocentricidadepara a filosofia ubuntu, que tem o seu epicentro na África do Sul e éabraçada por outros filósofos da África Austral não foi uma tarefafácil. Há poucas evidências de ligações institucionais e pessoais entreos defensores da corrente afrocentrista americana e os cultores doubuntuismo, embora a suspeita de ter havido contactos físico e inte-lectual entre eles não possa ser deixado totalmente de fora. Para jávamos explorar algumas ligações individuais destes contactos para,após termos olhado mais detalhadamente para a filosofia ubuntu,explorarmos as evidências conceptuais da passagem do testemunho.

Referencial IV: O Ubuntuismo

Enquanto o afrocentrismo, que discutimos anteriormente, pareceser baseado numa negação-desconstrutiva (subjectivação-desconstru-tiva) do outro ocidental (ou mesmo até estar obcecado com esta nega-ção), parece-nos que o ubuntuismo ou a filosofia ubuntu, que vamosexpor, aparece como uma afirmação-construtiva do eu (subjectivação-construtiva). Pensamos que a filosofia ubuntu-africana aparece comum horizonte teórico que dá uma certa consistência na justificaçãoontológica, epistemológica e ética para a subjectivação, ou melhor,para o movimento da subjectivação. Na nossa exposição usaremosindiscriminadamente os termos «ubuntuismo» e «filosofia ubuntu».

A respeito da filosofia ubuntu como referencial devemos reconhe-cer, logo de início, uma fraqueza fundamental: a ausência de um textoou de um conjunto de textos que se podem considerar como funda -dores e incontornáveis para o seu estudo. Existe sim uma série depequenos artigos, alguns que valem a pena ter em conta, porque

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tentam sistematizar o pensamento que passou a ser cunhado como«filosofia ubuntu», e, ao lado deste, existem também textos que sóusam o termo ubuntu de forma ‘oportunista’ porque, digamos, semmuito conteúdo que se pode adjectivar de filosófico, mas é usado otermo a todo o custo.

Parece-nos justo construir a nossa conversa em torno do ubun-tuismo a partir de três pontos: as avenidas da sua divulgação hojeonde exploramos de forma ligeira as possíveis zonas de contacto comos americanos negros; em segundo lugar olharemos para as origensdesta filosofia estabelecendo a sua ligação com o movimento daConsciência Negra de Steve Bico e em terceiro lugar ressaltarmos osaspectos essenciais ontológicos e éticos da filosofia ubuntu. Por últi-mo, esta jornada vai dar-nos o direito de fazer uma pergunta que nosparecerá óbvia: não será o ubuntuismo uma nova etnofilosofia?

As origens do ubuntuismo não são muito fáceis em seguir. Comoiremos constatar mais adiante, esta falta de claridade deve-se por umlado à grande mistura entre os propósitos dos movimentos de liberta-ção na África do Sul em ressaltar as condições desumanas que osnegros vivem no tempo do apartheid, a tentativa de se intelectualisara necessidade de libertação do negro, a partir de uma base mais oumenos teórica que acabou por ser o movimento do Black Consciousnessliderado por Steve Biko; e finalmente a possível influência que intelec-tuais sul-africanos tiveram durante o seu tempo na diáspora.

Entre os intelectuais sul-africanos que expõem a filosofia ubuntuhoje, alguns o fazem de forma directa (Desmond Tutu, Ramose,Mkabela, Luthuli, Goduka, Moiketsi Letseka, Pitika Ntuli, etc.) eoutros que o fazem de forma mais ampla e indirecta referindo-se maisaos valores ubuntu no contexto da filosofia africana (Higgs, Vilares,etc.).

Embora de forma lateral, importa perguntarmo-nos sobre ospossíveis contactos, individuais e institucionais, entre a Black Theologydos Estados Unidos, o Black Counsciesness na África do Sul e o floresci-mento do ubuntuismo no mesmo país.

Num artigo publicado em homenagem aos 50 anos da morte deSteve Biko, Mbeki reconhece, embora sem o desenvolver, ter havidouma certa ligação «filosófica» entre o movimento do Black Counscious -ness e os movimentos negros nos Estados Unidos (Mbeki 2007, 24).

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Também numa entrevista pessoal16 feita por nós a dois filósofos sul-africanos (Mkabela e Higgs) reconhecem ter havido «algum» con-tacto entre os sul-africanos e os negros americanos, embora mostran-do-se muito relutantes em mostrar uma influência teórica muitodirecta. Ambos preferiram mostrar que a África do Sul moveu-se emdirecção à filosofia ubuntu mais por pernas próprias do que pelos seuscolegas americanos com mais experiências em teorizar a situação donegro.

Mkabela, por exemplo, admite que tenham havido ligações maispessoais tanto mais que o seu mentor PC Luthuli, que nunca pisara aAmérica, escreve muito do Black Oriented Education e defende a neces-sidade de uma Philosophy of Life baseada em «valores africanos» tives-se lido muito Asante e outros. No entanto, segundo ela, «traços muitofortes» existiram com a América no seio daqueles que lá estudaram eviveram. Tal é o caso de Herbert Vilakazi, Maphalele e Pitika Ntuli.Estes, por volta dos meados dos anos noventa, dissertavam em públi-co sobre a afrocentricidade e o renascimento africano.

No entanto ela admite também ter havido muito contacto entre omovimento negro americano e o sul-africano somente após 1999,quando foi lançado o movimento do African Renaissance (à frente doqual estão Pitika Ntuli e Sbu Ndebele, ambos pertencentes antes aoPan African Congress [PAC]). Este é o espaço político que precipita adivulgação do ubuntuismo como base de valores africanos para orenascimento de um continente inteiro. Os encontros do AfricanRenaissance realizam-se anualmente com uma forte participação denegros americanos que cruzam o mar para conviver no seu continen-te-mãe com os outros «irmãos». É aqui onde os termos «passadocomum», «valores compartilhados», «africanidade» «ubuntu» eoutros vão preparando caminho para uma filosofia mais elaborada,sem no entanto deixar de ser política.

A divulgação dos ideais africanos e da identidade toma maiorceleridade no meio académico, quando Pitika Ntuli consegue atravésdo African Renaissance, financiamento do primeiro número da revista

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(16) A entrevista decorreu em Março de 2009 em Livingstone, Zâmbia, à margem deum seminário de pesquisa. O que se segue são informações colectadas destasentrevistas.

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científica Indilinga: The African Journal of Indigenous KnowledgeSystems, cuja editora-em-chefe é ainda hoje a Q.N. Mkabela. Estarevista pretende ser a plataforma científica para a divulgação doconhecimento indígena africano e contém sempre uma série de textosque tentam aplicar os valores ubuntu nas diversas áreas tais como apolítica, a gestão empresarial, a pesquisa, etc.

Entretanto, segundo Mkabela, o que teria contribuído origina-riamente para o posterior desenvolvimento do pensamento e dosrepresentantes do que mais tarde seria o ubuntuismo foi o que elachamou de Community of African Thought. Este grupo de intelectuaisbaseou-se na Zululand University, mais conhecida por Ngoye, uma universidade para os negros e localizada na profunda área rural doKwazulu Natal. O grupo reunira no seu seio historiadores (Mapha -lala, Jabulani), sociólogos (p.e. Vilakazi), filósofos (p.e. Joe Ndaba) eestudiosos da religião. Estes chegaram a formar uma comunidade depensadores em volta dos escritos de Luthuli. É pela pena de PCLuthuli que são escritos os livros Philosophical Foundation of Edu -cation e Black Oriented Education que, como dissemos, muito timida-mente falam de ubuntu, mas falam de uma «filosofia da vida baseadaem valores africanos». Mais tarde, o mesmo Luthuli escreve comMkabela, nos finais dos anos noventa, o livro Towards an AfricanPhilosophy of Education, que mais valeu pela fundamentação que dá àeducação a partir de valores africanos. Neste contexto revisita-semuito as teorias da Pedagogia do Oprimido de Freire. Vilakazi conti-nuou a explorar também o pensamento africano em várias palestras eartigos, principalmente na sua vertente política da construção doestado democrático pós-apartheid a partir de uma combinação devalores africanos e do marxismo ortodoxo. Pitica era um activistacultural que casou muito bem os valores culturais com a luta políticado movimento do African Consciousness.

É importante realçar que este grupo, durante os seus estudos naera do Apartheid (isto é, princípios dos anos noventa), anda pela Uni -versidade dos Zulus a ler livros «mais ou menos proibidos» deAsante, Odera Oruka, Ngugi Wa Thiongo e até mesmo a pedagogiada libertação de Paulo Freire. Particularmente a leitura deste últimoparece ter tido uma grande influência no grupo. A South AfricanSociety of Education (que mais tarde tentaram transformar o «South»

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com o adjectivo «Southern», mas sem muito sucesso), uma organiza-ção que reúne professores e docentes universitários negros, seria umdos palcos para a divulgação dos «valores africanos» através da edu-cação. Embora os temas privilegiados não tivessem, à primeira vista,muito a ver com o ubuntuismo (a sua agenda era mais constituída pordebates em torno do ensino em línguas maternas, educação multicul-tural, educação religiosa, currículo adaptado, etc.), foi este no entantoo primeiro palco de lucubrações de carácter filosófico em torno daeducação do negro na base dos «seus» valores.

Uma outra avenida de contactos com os americanos, que nos foiinformada pelo professor Philip Higgs, pode ser explorada através doInstitut for African Studies da Cornelia University nos Estados Unidos.Este instituto é dirigido pelo Professor Cassie Lomumba e se interes-sa muito pelo que se passa em África chegando a organizar «expedi-ções» de negros americanos para a África do Sul. A acrescentar a esteinstituto está o papel da Internacional Society for Comparative Education,uma sociedade americana que se reúne duas vezes por ano e convidascholars da educação da África do Sul. Philip Higgs, professor naUniversity of South Africa (UNISA), participara duas vezes nas reu-niões. Moiketsi Letseka e Ramose, tendo sido este último, por algumtempo, chefe do departamento de filosofia, também fazem parte dogrupo da UNISA. O Letseka estudara em Londres e Ramose, depoisde cerca de 40 anos na Bélgica, acabou exilando-se no Zimbabweonde publicara o seu livro-mãe African Philosophy through Ubuntu(1999). Sobre este livro conversaremos mais adiante. Este grupo daUNISA, graças aos meios que tem à sua disposição, convida professo-res de renome em filosofia africana destacando-se Kwasi Wiredu. Estevisitou a UNISA em 2002 a partir dos Estados Unidos, Universidadede Michigan onde trabalha.

Esta «geração» que descrevemos atrás é a que mais ou menostenta, nas suas diversas versões, divulgar a filosofia ubuntu comoparte da filosofia africana e universal. Entretanto não seria justo pas-sar para os assuntos directos do ubuntuismo como filosofia sem antescelebrarmos e prestar tributo ao movimento e, de certo modo, pensa-mento da Black Counsciousness. Na verdade, foi este pensamento deSteve Bantu Biko que viria a inspirar politicamente e teoricamente oscultores do ubuntuismo, de que nos referimos acima.

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Biko nasceu em Tylden, Eastern Cape, África do Sul, em 1946.Por razões da sua intensa actividade política, mais concretamente nadenúncia do apartheid como um regime de discriminação sistemáticado negro na África do Sul, Biko não chega a terminar o curso de medi-cina que frequenta na Universidade do Natal, no seu campus deWentworth em Durban, uma secção reservada para os estudantes‘não-europeus’. No mesmo ano da sua matrícula (1966), Biko filia-se aoNational Union of South African Students (NUSAS), uma organizaçãoentão dominada por estudantes brancos. Frustrado com esta organiza-ção, Biko funda, com outros estudantes negros, a South AfricanStudent’s Organization (SASO), cuja missão primeira é combater o com-plexo de inferioridade dos estudantes negros. Em 1972 Biko abandonaa Universidade e começa a trabalhar como activista para a BlackCommunity Programs em Durban. No mesmo ano lança a Black People’sConvention (BCP) cuja bandeira é promover a consciência negra.

Em 1973 Biko foi proibido falar em público, publicar artigos nosjornais e viajar para fora da sua aldeia natal. São os estudantes orga-nizados em torno da SASO e da BCP que, em Setembro de 1974 e nãoobstante às dificuldades de articulação política naquele tempo, organi-zam uma manifestação conhecida por Viva Frelimo Rally que visa cele-brar o reconhecimento da FRELIMO como Governo legítimo deMoçambique. A manifestação foi banida pelo ministro da justiça doregime do apartheid. Embora ela tenha sido realizada e culminara coma prisão de muitos líderes do BCP. Em Setembro de 1977 é preso etorturado até a morte. Este assassinato provoca fortes manifestaçõesde repúdio ao nível nacional da África do Sul e internacional.

A fonte espiritual do movimento Black Consciousness é, sem dúvi-da, a Black Theology (Teologia Negra); esta surge para dar conta dasituação precária vivida pelos negros nos Estados Unidos da Amé -rica. O representante proeminente desta teologia é James H. Cone,professor de teologia na Union Theological Seminary em Nova YorKque publica, em 1969, o livro-fundador da Black Consciousness intitula-do Black Theology and Black Power. Em 1975 ele volta a publicar umanova obra com o título God and the Oppressed.

É através da University Christian Movement (Movimento CristãoUniversitário [UCM]) da África do Sul que a Teologia Negra americanaganha maior inserção no seio dos negros sul-africanos com formação.

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A UCM foi formada em 1967, dando aos negros a grande oportunida-de de se reunirem e debaterem sobre a sua situação de oprimidos esobre as estratégias para a libertação. A UCM funcionava nas instala-ções universitárias. Em 1968, na conferência realizada em Stutter -heim, a UCM consegue reunir 40 negros estudantes representandotodos os campus universitários principais que albergavam estudantesnegros. Steve Biko representa a SASO.

Nos meados de 1970 a UCM designa Sabelo Stanley Ntwasa como mandato especial de encorajar aos estudantes negros sul-africanos aestudarem e a escreverem sobre a Teologia Negra. O resultado foi apublicação, em Londres, do livro Black Theology: The South AfricanVoice editado por Basil Moore em 1973. É neste livro que Biko contri-bui com o artigo Black Consciousness and the Quest for a True Humanity.

Uma outra linha de inspiração intelectual da Black Consciousnessconstituem as leituras da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire.Embora banido, este livro circula nos bolsos de estudantes que seemprestam e organizam-se em sessões de leitura e interpretação. A mesma sorte também mereceram os livros de Franz Fanon, parti-cularmente Os Condenados da Terra e Peles Negras, Máscaras Brancas.Os estudantes negros interessavam-se por tudo o que pretendia anali-sar a situação do oprimido para poderem compreender e explicar asua própria situação.

O que é então a Black Consciousness, isto é, a «Consciência Ne -gra»? É numa série de artigos compilados num livro chamado por I write what I like (na verdade foi sob este título que o próprio Bikopublicou as suas crónicas entre 1969 e 1972) que encontramos a defi-nição. Vamos concentrar-nos mais em três dos seus artigos, nomeada-mente The Definition of Black Consciousness, Black Consciousness and theQuest of True Humanity e What is Black Consciousness? todos incluídosno livro mencionado.

Biko começa por recusar a «tese» daqueles que ele chama por«brancos liberais» segundo a qual o maior problema da África do Sulé o sistema do apartheid e que, portanto, a sua «antítese» é uma posi-ção de luta «não-racial». Biko acha que o não-racismo é uma definiçãoambígua. Para ele a tese, portanto o ponto de partida para a luta,estava mal formulada porque os brancos liberais desejavam dizer aos

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negros que a integração racial seria a melhor saída. Para Biko a BlackConsciousness define a situação de forma diferente: a «tese» não é oapartheid, mas sim o racismo branco que era muito forte; daí que a«antítese» deve ser uma forte solidariedade entre os negros que sãovítimas do racismo branco. E a Black Consciousness tem por missãofazer crescer a solidariedade entre os negros: aumentar a sua cons-ciência sobre a sua condição de vítimas da opressão branca. Os negrosdevem dar-se conta que a sua condição de oprimidos não é resultadode um «engano» casual, senão que é um acto deliberado dos brancos.Portanto, a libertação do negro não vai ser possível por via da morali-zação do branco para corrigir o seu erro.

Segundo Biko, a própria ideia da integração parte de um pressu-posto enganoso. A teoria moralista da integração assume que tudoestá bem com o sistema; somente há alguns aspectos que devem sercorrigidos na sua gestão. Biko teme que o termo «integração não --racial» estivesse a esconder (ou fosse transformar-se) uma «assimila-ção» dos valores brancos pelos negros. A luta da Black Counsciousnessdeveria começar por aqui: erradicar alguns conceitos falaciosos dasmentes do homem negro, sendo a ideia da integração a cardinal nestaerradicação.

Daí que Biko define a Black Consciousness como uma «atitude daconsciência» e «uma forma de vida» que mobiliza tudo o que de posi-tivo pode emanar do «mundo negro». A sua essência é a união detodos os «irmãos» negros em volta da causa que está por detrás dasua condição de oprimidos: a cor da sua pele. É a blackness da sua peleque dita a condição de eterna servidão dos negros. Então a filosofiada Black Consciousness deve basear-se no group pride, ou seja, no orgu-lho dos negros enquanto grupo. Liberdade é a habilidade de não dei-xar definir-se a si próprio através de um outro grupo poderoso, massim somente a partir da própria relação com Deus e a natureza cir-cundante. Liberdade deve ser a capacidade de o homem negro testaras suas próprias possibilidades de desenvolvimento usufruindo detudo o que a natureza lhe oferece. E para alcançar este direito de serlivre, o homem negro deve poder recorrer a todos os meios ao seualcance. Num extracto do seu julgamento em Maio de 1967 respon-deu da seguinte forma sobre a Black Consciousness:

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«Basicamente penso que a Black Consciousness refere-se ao homemnegro e à sua situação, e eu penso que o homem negro encontra-sesubmetido às duas forças neste país. Em primeiro lugar ele é opri-mido pelo mundo exterior através de uma maquinaria institucio-nalizada, através de leis que o restringem de fazer certas coisas,através de difíceis condições de trabalho, através de salários bai-xos, através de condições de vida muito difíceis, através de umaeducação muito pobre, esses são todos aspectos exteriores ao pró-prio negro; e, em segundo lugar, e este nós vemos como o maisimportante, o homem negro desenvolveu ele mesmo um certo esta-do de alienação, ele rejeita-se a si mesmo precisamente porque elejulga que tudo o que é do branco é bom, noutras palavras, eleassocia o bom ao branco.» (Biko 2004, 110 p.) [trad. minha]

Se a arma mais potente que podemos encontrar nas mãos doopressor é, portanto, a própria consciência do oprimido que se inferio-riza e se aliena, então a luta deve começar por despertar esta mesmaconsciência. Pois, segundo Biko, se alguém está livre no coração,nenhumas algemas feitas por um outro homem podem prendê-lo àservidão, mas se a mente desse alguém é manipulada e controladapelo opressor, então o oprimido não terá possibilidade de enfrentar opoder do opressor.

Biko admite que o conceito de «valores» deve ser desmontado,sobretudo a tendência constante dos brancos em mostrarem que sernegro é ser automaticamente de um estatuto social inferior; ou seja, épreciso combater o complexo de inferioridade mostrando que a«nossa» cultura, a «nossa» história e formas de vida não são inferio-res só porque os europeus assim o querem. Para Biko, os missionáriosbrancos estão na vanguarda desse processo de inferiorização donegro, porque eles propalaram a ideia de que vinham «civilizar e edu-car» aos negros; então, só assim pensa alguém que crê na existênciade sociedades primitivas.

Um dos textos que procura, de forma bastante sistemática, orien-tar o leitor a compreender o que é a filosofia que reclama ser adjecti -vada por ubuntu é do filósofo sul-africano Mogobe Ramose, professorde filosofia africana, publicado em 1999, em Harare, a capital do

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Zimbabwe. Este conjunto de textos foi compilado num livro chamadoAfrican Philosophy through Ubuntu; no fundo, os textos levam-nos aadoptar uma perspectiva ‘ubuntuista’ ao descrever áreas diferentescomo sejam a religião, a medicina, o direito, a política, a ecologia e aglobalização. Vamos usar, em seguida, a estrutura deste texto comoreferencial dos esforços de subjectivação.

Ramose começa por querer demonstrar que o ubuntu é a base ou fun-damento da filosofia africana17. Esta base ou fundamento deve ser procu-rada na Ontologia, na Epistemologia e na Ética ubuntu-africana que,segundo Ramose (1999, 49), são aspectos de uma e da mesma realidade.

Para ser sistemático, comecemos pela parte da Ontologia ditaafricana. Segundo o nosso autor, o termo ubuntu é composto por duaspalavras, o prefixo ubu e a raiz ntu (ubu-ntu). O termo ubu evoca aideia de Ser em geral. É um Sein (Ser) indiscriminado antes da suaErscheinung (manifestação), ou seja, de manifestar-se ou aparecernuma forma concreta ou de um modo concreto de existência comouma entidade particular. Mas, mesmo como Sein indiscriminado, a suatendência é de se manifestar incessantemente numa forma e modoconcretos. Neste sentido, o ubu está sempre orientado para se mani-festar no ntu. Por isso, a separação feita acima do termo ubuntu, ésomente ao nível linguístico e não ontológico. Sob o ponto de vistaontológico não há nenhuma divisão entre o Ser e o Aparecer, entre oSein enquanto essencia e da Erscheinung enquanto suas formas de apa-rição concretas. (Esta separação só existe na concepção e tradiçãocartesiana, dualismo que Ramose quer refutar como sendo válido paraa Ontologia ubuntu-africana). Não há, pois, uma separação radicalentre eles e nem se pode pensar estarem em oposição. A separaçãosugerida antes é simplesmente no campo da língua.

Pelo exposto, resulta que ubu-ntu é a categoria epistemológica eontológica fundamental no pensamento dos povos bantu, expressandoo ubu uma compreensão generalizada da realidade ontológica do Serenquanto Ser, e o ntu assumindo formas e modos concretos de exis-tência num processo contínuo.

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(17) Geograficamente, Ramose localiza o espaço de influência da filosofia ubuntu doDeserto Núbio até ao Cabo da Boa Esperança e do Senegal a Zanzibar. Ramoseadopta a posição de Tejada (Ramose 1999, 50).

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Na óptica de Ramose (1999,51), há ainda que diferenciar o termoubu do termo umu nas línguas bantu. Enquanto o ubu expressa o Serna sua forma mais geral, o umu expressa o Ser mais específico que,junto ao ntu, portanto umuntu, expressa um Ser específico, o Serhumano — enquanto político, religioso e sobretudo enquanto umaentidade moral. O que destaca o umuntu é, entre outras, a sua morali-dade, a sua experiência e a sua sabedoria sobre verdades. Em outraspalavras, na caracterização do Ser humano está no centro não o actode o ser, mas sim a sua actividade como homem. Isto é o mesmo quedizer, a forma como se comporta e o poder que tem em penetrar nasverdades da vida usando, a sua experiência.

Voltemos ao termo ubuntu. Segundo Ramose, o ubu pode servisto como algo parecido como o das Werdende (o que está para apa-recer), se emprestarmos um termo usado na filosofia alemã. Ou seja,implica uma ideia de movimento constante e eterno, enquanto o ntuseria das Gewordene, ou seja, o que temporariamente apareceu ou tor-nou-se. Um, no entanto, não pode conhecer a sua existência sem ooutro. Assim, esta característica de existência precária e temporalnão nos deixa poder falar de ubuntuismo, porque o ismo, segundoRamose (1999,51), «daria a impressão errada de que estamos a tratarverbos e nomes como fixos e como entidades separadas que existemde forma independente» entre elas. Ao nível estritamente linguístico,o ismo iria sustentar-se numa estrutura baseada na separação entre osujeito, o verbo e o objecto, separação essa que é impensável se adop-tarmos uma perspectiva ubuntu-africana. Aqui está a explicação dochamado holismo na epistemologia (formas de conhecimento) afri -cana.

Passemos, assim, para a segunda parte da filosofia ubuntu-africa-na, ou seja, da epistemologia. Nesta óptica, o ponto de partida comque Ramose nos coloca é interessante: sem a palavra do umuntu, oubu- estaria condenado ao silêncio total. Assim, a palavra do umuntuestá irremediavelmente ligada ao ubuntu, para expressar as condi -ções de existência do ubuntu. Em outras palavras, toda a actividadeexpres siva e comportamental do umuntu (ser humano) é uma busca derelevar e revelar a condição de existência do ubuntu e, tanto no domí-nio da epistemologia assim no da ontologia, tem o seu foco directo noubuntu. Digamos que o umuntu tem um compromisso naturalmente

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indissociável com o ubuntu. Só assim se compreende a expressão africana Eu sou porque tu és, que sublinha que a nossa existência comoindivíduos só se pode compreender através dos outros membros dacomunidade; a nossa humanidade só é possível manifestar-se ao reco-nhecermos a humanidade dos outros. Portanto, um comportamentohumano é a base das relações entre os homens.

Do referido acima derivam características éticas do ubuntu. Com -portar-se de uma forma humana significa, portanto, em primeira linha,respeitar ao outro, ser indulgente, paciente, ter atitudes correctas eorientar toda a nossa energia para o outro (altruísmo). A asserção«aquele é um homem» significa sobretudo o seu lado ético: que ele secomporta com humanismo, respeita os outros, escuta os outros, épaciente, cultiva o perdão e a compreensão entre os homens.

Por outras palavras: não basta a existência do Ser (humano) paraser reconhecido como humano. É necessário que o Ser se torne, portan-to que apareça como humano para termos o ubuntu. Porque o juízoético sobre alguém é que determina a sua posição social e legal. A pessoa deve estar constantemente, através do seu comportamento, aprovar que possui ubuntu.

Este último aspecto pode ser reformulado para fundamentar oprincípio da política em termos de filosofia segundo o qual, a fonte e ajustificação da acção do soberano é o seu povo. O soberano deve serjulgado a partir do seu ubuntu, ou seja, da forma respeitosa, carinhosa,afável e desinteressada como ele trata os seus súbditos. Numa pers-pectiva do ubuntu não há justificação para que soberanos ou pessoascom poder possam ter atitudes autoritárias e desumanas para com osoutros. De acordo com esta forma de ver as coisas, a esfera da políticae do direito (enquanto acto de legislar) devem ser justificadas a partirdo princípio ubuntu. Aliás, devem encontrar no ubuntu o seu funda-mento e sua constante inspiração.

Será o ubuntuismo uma reedição da etnofilosofia? Esta questão deolhar para o ubuntu como a «reedição contemporânea da etnofiloso-fia» foi sugerida, de novo, pelo próprio Hountondji em Dezembro de2006 aquando da sua estadia na Universidade Pedagógica em Maputo.Perguntado o que ele achava da filosofia ubuntu ele disse que esta era,em parte, uma reedição do que Senghor e outros africanos fizeram outentaram fazer nos anos 50 do século XX ao fundarem o movimento

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da negritude. É uma forma de etnofilosofia na sua versão unanimista.Mas, segundo o próprio Hountondji, com uma grande diferença:enquanto a etnofilosofia e a negritude foram produzidas pelos seusautores dentro de uma lógica de «extraversão», a filosofia ubuntu nãoé. Ela é introvertida no sentido de que o seu endereço já não é somen-te o exterior, mas também o desenvolvimento das próprias culturasafricanas da África do Sul.

Para ilustrar a introversão deste discurso, vamos ‘conversar’ comuma professora universitária de origem Xhosa, Ivy Goduka. Delavamos explorar um artigo deveras interessante, intitulado African//Indigenous Philosophies: Legitimizing Spiritual Centered Wisdoms wit-hin the Academy (2000,63pp.).

Goduka considera-se uma indígena Xhosa, proveniente da pro-víncia sul-africana de Eastern Cape. Nas palavras dela, ela reclama ser«uma intelectual indígena, uma curandeira (izangoma), uma visionária(imboni), uma filósofa (ikncuba buchopo), uma sonhadora (umphuphi) euma mulher Xhosa bem versada nas formas de conhecimento indíge-nas [...]» e em certa maneira uma iniciada em filosofias indígenas esabedorias espirituais, como ela própria chama o que reclama praticar(Goduka 2000,65).

No artigo referido ela considera que, como intelectual Xhosa,deve usar o seu direito de ser uma voz indígena africana para, comoela diz, falar do seu coração e do coração dos outros velhos (ooKhokho) dasua aldeia natal, kwaManxeba, eHeshele. São velhos que segundo elasão depositários (custodians) da sabedoria espiritual. Ela reclama odireito da sua língua, isiXhosa, o seu modo de pensar, de falar e deescrever, a sua cultura e os seus valores espirituais, que estão enraiza-dos no que ela denomina por indigenous epistemes, serem validados naacademia e universidades como tendo um estatuto próprio, autónomoe autêntico.

Partindo deste ‘direito’ Goduka quer apresentar alguns princípiosda filosofia indígena africana dos bantu Xhosas, dos seus saberes espi-rituais e das suas concepções sobre o mundo. Esses princípios, pensaela, devem ser incluídos na academia praticada nas universidades, istoé nos currículos e nas pedagogias.

Embora ela reconheça que o continente africano seja imenso, nãosó em termos do seu tamanho, mas também e sobretudo no que diz

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respeito às culturas, às línguas faladas e à diversidade étnica, Godukainsiste que existe também uma unidade que é fundada na nossa formade conceber o mundo, na relação espiritual para com o ambienteassim como nas práticas cultural-religiosas dos africanos. Partindodeste ponto, a sua intenção é, portanto, formular os princípios queformam o substrato das filosofias indígenas africanas e da sabedoriaespiritual, seguindo aquilo que Cheikh Anta Diop chamara por pro-found cultural unity dos africanos por baixo da aparente diversidadedas suas culturas.

Ela chama-nos ainda a atenção de que os princípios das filosofiascomuns (shared philosophies), da sabedoria espiritual e das concepçõessobre o mundo que as culturas africanas partilham, dependem, na suadefinição e aplicação, da vida, do acesso à terra e outros recursos, dalíngua e cultura dos grupos específicos. Por outras palavras, as comu-nidades são influenciadas pelo grau de assimilação individual ou gru-pal com relação às tradições culturais europeias.

O que Goduka nos quer dizer é, que na sua formulação e aplica-ção, os princípios (que vamos evidenciar em seguida) dependem pro-fundamente, por um lado, do ambiente social e natural em que cadacomunidade epistémica vive e, por outro do grau de exposição a quecada indivíduo ou grupo foi sujeito às instituições modernas de socia-lização, particularmente da educação, religião e medias.

O primeiro princípio sublinha que a responsabilidade individualpela interioridade (for one’s innerself) é uma jornada para a auto-purifi-cação (journay to self-healing). É um princípio que, segundo Goduka,mostra o caminho individual para uma paz interna connosco mesmo ecomeçar assim com a autopurificação. Ou seja, e isso é o que este prin-cípio parece querer fazer transpirar, antes que o indivíduo possaentrar e começar relações (saudáveis e significativas) com os outros,deve estar em paz com eles e perceber a nossa responsabilidade comeles; cada um deve primeiro aprender a viver a sua vida interna deforma saudável, pacífica e apaixonada. No plano moral, este princípioimplica conhecer as imperfeições individuais e tentar superá-las. Noplano do corpo e da saúde individual, significa comer, dedicar umtempo específico para o repouso, exercitar e meditar. Acima de tudoevitar (ou mesmo abster-se) o consumo (excessivo) do álcool, fumar econsumir drogas que podem destruir a vida social.

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O segundo princípio repisa a responsabilidade colectiva em cuidar amãe terra. Este princípio deriva do facto de haver uma compreensãogeral de que a Natureza é o resultado da criação do Grande Espírito eque os nossos antepassados nos legaram essa Natureza. Entre as ofe-rendas dos antepassados contamos as plantas medicinais que servempara os momentos em que estamos saudáveis ou estamos doentes.Goduka anota que há uma grande diferença no princípio que os euro-peus e os africanos seguem para cuidar a terra como elemento daNatureza: enquanto aqueles acham que a terra pertence às pessoas,nas culturas africanas as pessoas pertencem à terra. Assim, nas nossasculturas as pessoas não possuem a terra; pelo contrário, procuramviver em harmonia com ela. «Nós não nos podemos separar da terra,das plantas, das árvores, dos minerais, das pedras e outras coisas quesão parte da nossa Natureza», remata-nos Goduka, certamente refe-rindo-se aos Xhosas.

O terceiro princípio revela que há inter-relação, inter-conexão einterdependência entre os homens e as criaturas vivas e não-vivas. É o prin-cípio que, segundo Goduka, nos diz que não há nada que existe queseja ou esteja isolado. Em contrapartida, segundo este princípio, tudoestá relacionado com todos os seres vivos e não-vivos. Este princípiose pode verificar nas relações no seio das famílias africanas onde aunidade de linhagem é horizontal (inclui membros da família alargadae do mesmo grupo étnico) e vertical (inclui os espíritos dos antepas-sados já mortos, os vivos e os que estão-por-nascer). À família perten-cem ainda certos acidentes criações da mãe Natureza como árvores,plantas, animais, etc.

Por trás desta noção alargada de família, segundo Goduka, está anoção mais ampla da realidade como uma unidade de coisas em inter-relação, inter-conexão e interdependência entre os produtos da criação(seres humanos, seres vivos, plantas e animais e também seres não-vivos).

A outra dimensão da unidade que tem grande impacto nas nos-sas vidas (que está implícita na concepção sobre a família expostaacima) é a inter-relação entre as forças vitais e espirituais dos ante-passados, independentemente de serem considerados malignos oubenignos, com os actos e valores morais dos vivos.

O quarto princípio sublinha que as identidades individuais e fami-liares não estão separadas do contexto sociocultural e espiritual. Identidades

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não são algo baseadas numa categoria abstracta da auto-consciência.Pelo contrário, elas são constituídas em relação a um certo número decrenças, padrões comuns de comportamento assim como certasexpectativas e práticas culturais. A famosa sabedoria popular africanaI am because you are [eu sou porque tu és] reflecte, segundo Goduka, abase racional para fundamentar a inter-relação entre as categoriasdiferenciadoras (raça, classe, género, etnicidade e outros), entre osujeito e o objecto e entre o racional e o intuitivo.

Da mesma forma, o indivíduo e a comunidade estão estreitamen-te relacionados culturalmente, socialmente e espiritualmente. Godukailustra isso mostrando que os nomes cristãos que a maioria de nósrecebeu não têm significado para a nossa herança cultural, a nossaancestralidade e identidade cultural. Não fazem parte do nosso patri-mónio cultural.

Neste ponto lembro-me de um incidente que testemunhei queparece dar algum sentido a este princípio formulado por Goduka. Foiem Dezembro de 2005 quando Hountondji estava em Maputo.Encontrávamos fora da sala de conferências quando ele perguntoupelo nome de um colega meu da universidade que nos acompanhava.F. Meigos, respondeu o meu colega. Este apressou-se a justificardizendo que, na realidade o nome verdadeiro tradicional é Kanda.Notei que ele ficara embaraçado por o nosso filósofo não ter conse-guido vislumbrar a proveniência familiar africana pelo nome.Significava que havia o sentimento de que uma parte da sua identida-de havia sido roubada por causa do nome?

A Natureza, as criaturas vivas e não-vivas são o fundamento da reali-dade espiritual. Assim reza o quinto princípio das filosofias indígenasafricanas e da sabedoria espiritual que Goduka anuncia-nos. Ela crêque o elemento básico dessas filosofias é a ideia de que o espírito estáno seio da existência de todas as coisas. O espírito existe na Natureza,nas coisas vivas e assim também nas coisas não-vivas. Deste modo, asfilosofias indígenas africanas têm como temática básica do seu filoso-far a vida e a natureza do espírito que se move dentro de nós e emnossa volta. Para a nossa autora, as culturas e as tradições africanasrodam em volta do estabelecimento da comunicação com as váriasformas da manifestação da espiritualidade. A linguagem, o pensamen-to, as rezas, os sonhos, os rituais, as danças, o desporto, o trabalho, a

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arte, entre outras acções humanas são consideradas como diferentesformas de manifestar a espiritualidade.

Goduka chama finalmente atenção para a importância e necessi-dade de os intelectuais africanos engajarem-se seriamente no desen-volvimento destes princípios, porém, de acordo com a sua origemcultural. E defende que, qualquer engajamento intelectual que faça-mos para com a nossa própria cultura indígena e para com a sabedo-ria espiritual nela contida, temos de estar conscientes do facto que,implicitamente, estamos a fazer uma confrontação com as experiên-cias históricas individuais e colectivas que fizemos e fazemos com asupremacia dos sistemas colonialistas, capitalistas, imperialistas,racistas e opressores do passado e do presente. A dominação teria,segundo ela, culminado com o aniquilamento do nosso direito de serindígena, ou seja, com a negação da existência das nossas culturas,dos nossos valores espirituais, perca da nossa terra e das nossas iden-tidades. A dominação negou sobretudo o direito das nossas criançasaprenderem hoje a nossa cultura, as nossas tradições espirituais eoutras coisas nas escolas e nas universidades. Em suma, segundoGoduka, o africano sofre hoje as consequências históricas da negaçãoe do genocídio do seu corpo, intelecto e espírito. O intelectual queestudar as filosofias e os saberes espirituais indígenas deverá, portan-to, ter sempre na mente o contexto de dominação do passado e dopresente.

Entretanto achamos importante a este passo fazer constar que,recordando ao comentário de Hountondji sobre a filosofia ubuntu esobre o renascimento africano da África do Sul, esta forma de dis-cursar no mínimo não é extrovertida, senão, como também já fizemosquestão de deixar anotado e pelo menos nos seus objectivos, intro-vertida. Consideramos esta ser uma proposta muito interessante emdirecção á solidificação de uma epistemologia que tenha como baseos saberes locais. Mas, adiantamos desde já, que ela peca pela dema-siada tendência ao tradicionalismo, ou pelo menos por estar adja-cente nestas posições um tradicionalismo nas culturas africanas(neste caso a Xhosa) não tomando em conta o quanto mesmo elaevoluiu e se transformou. A tradição, ou melhor a sua preservação,não pode ser um objectivo em si. A sua preservação e prática devesaber mostrar, usando argumentos e na prática, que os saberes

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diversos oferecem melhores soluções para os problemas da Áfricahodierna.

Um outro aspecto crítico destas ideias de Goduka reside no factode que, implicitamente, a autora considera que o «saber espiritual»está nas mãos dos velhos, dos ookhokho. Por agora basta responderque, nas nossas visitas de estudo pelas aldeias, encontramos conside-rável parte de jovens detentores de saberes locais/tradicionais; estesjovens conhecem essas tradições com mais segurança que os velhos.Na África de hoje, já não basta ser velho para ser detentor de saberesválidos ou relevantes para o desenvolvimento da própria cultura ecivilização africanas.

Uma boa parte da literatura ubuntu tem vindo a destacar, porém,a sua dimensão ética, como são os casos de Broodryk (2002),Nyaumwe & Mkabela (2007), Mkabela & Luthuli (s.d.).

De acordo com Broodryk (2002, 26), por exemplo, o ubuntuismodefine-se como uma cosmovisão tradicional africana baseada nosvalores de um humanismo intenso, carinho, partilha, respeito, com-paixão e os respectivos valores associados, valores esses que visamassegurar uma vida comum feliz e humana no espírito familiar.Valores seriam, nesta óptica, os fundamentos básicos de forma comouma pessoa acha que a sua vida e a dos outros deveriam ser vividas,influenciando as escolhas, as atitudes e os objectivos de cada indiví-duo na comunidade.

Assim, para Broodryk (2002, 32) existem valores fundamentaisdo ubuntuismo e outros valores associados. Os valores fundamentaissão o humanismo (valores associados: calor, tolerância, compreensão,paz, humanidade), carinho (valores associados: empatia, simpatia,ajuda mútua, caridade, amizade), altruísmo (valores associados: ofertaincondicional, redistribuição, abertura, atitude de «mão aberta»), res-peito (valores associados: cometimento, dignidade, obediência, ordem,predisposição para cumprir normas sociais) e compaixão (valoresassociados: amor, coesão, informalidade, perdão, espontaneidade).

Nesta perspectiva ética, o ubuntuismo põe muita ênfase na edu-cação insistindo que as crianças devem ser educadas a dar o poucoque possuem aos outros e que só dando é que receberão de volta.Deve assegurar-se a cultura da partilha e da compaixão nas crianças.Elas devem também ser educadas a amar o próximo, mostrando

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carinho e um amor respeitoso aos parentes, aos membros da famíliaalargada, aos amigos e aos mais velhos. Na educação ubuntu constituium ritual muito importante introduzir às crianças a todos os mem-bros da família alargada desde muito cedo por formas a que elasconheçam e respeitem a cada um deles na base do conhecimento quetenham do lugar de cada um na hierarquia familiar. Este carinho erespeito revelam-se nos gestos (abraços, sorrisos, cumprimentos,preocupação pela saúde da pessoa e dos seus familiares, etc.). A crian-ça deve também ser ensinada a dar-se conta da presença de outrosmembros da família e da comunidade, celebrando esta presença, ouseja, mostrando muita alegria pessoal ao vê-los. Expressões comohoyo-hoyo, sabuwonani, etc. são demonstrativas da devoção com que osmembros de uma comunidade reconhecem e celebram a presença deuma pessoa visitante ou que se cruza com eles no caminho.

Um outro valor, deveras muito importante e que uma pessoaubuntu presa em cultivar com devoção, é a capacidade de perdoar.Perdoar pressupõe o exercício de empatia e de simpatia para com ooutro. O perdão é tido como divino. Ele parte da ideia de que todoscometemos erros, mas estes devem ser vistos como lições para o serhumano não repeti-los. O perdão está muito ligado à tolerância, pois éuma das condições básicas para uma vida em comum entre pessoas dediferentes origens mas que se reconhecem e celebram o facto deserem humanos acima de tudo.

É interessante constatar como é que, no caso sul-africano emesmo após a queda do apartheid, esses valores ubuntu foram mobili-zados para despoletar o espírito ‘nacional’ do povo sul-africano nareconciliação com o passado racista da minoria branca para com amaioria negra. De facto, apelou-se aos valores tradicionais do ubuntuque a Comissão da Verdade e Reconciliação, dirigida por DesmondTutu, tivesse algum sucesso na árdua tarefa de introduzir princípiosde uma justiça restaurativa e não restituitiva ou de retaliação.

Efectivamente, o modelo de reconciliação sul-africano baseou-seem três passos fundamentais, dos quais dois (primeiro e último) sãoacções/atitudes que deveriam ser tomados pelos perpetradores ebeneficiários do regime racista do apartheid (confissão/reconhecimen-to da culpa e restauração) e o segundo passo é uma acção que deveriaser tomada pela vítima (perdão).

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Assim, em primeiro lugar, os responsáveis pelo apartheid deve-riam confessar os seus males: «aqueles que perpetraram o mal devemestar prontos para dizer ‘ferimos pessoas ao cometer injustiça, tiran-do-vos das vossas casas e terras para os homelands, ao dar aos vossosfilhos uma educação inferior, por negar-vos a vossa dignidade, os vos-sos direitos humanos», diz Desmond Tutu (Cfr. Allen 2006, 342).

Em segundo lugar, as vítimas estão perante o imperativo de per-doar dado que os agressores «são também filhos de Deus e eles preci-sam da nossa ajuda para que recuperem a humanidade/humanismoque perderam. Sim, de facto essas pessoas são culpadas de monstruo-sidades, de coisas diabólicas, mas estas coisas não os convertem neces-sariamente em monstros e demónios. Se se tivessem convertido emtais, significaria que eles não poderiam ser chamados à responsabili-dade pelos seus males. Os monstros não têm responsabilidade moral»,escreve Tutu (Idem,355). Neste passo apela-se muito ao ubuntu nosentido de compaixão e reconhecimento do próximo na sua qualidadede um ser humano porque, quem não consegue perdoar, não é humano.

A terceira acção pertence, como indicamos, de novo ao agressor.Os que cometeram erros no passado devem estar em condições derestituir. Tutu diria: «Se eu roubei a tua caneta, não posso resistir emdizer ‘por favor perdoa-me’. Se ainda tenho a tua caneta e eu estourealmente arrependido, eu tenho que ser genuíno em mostrar o meuarrependimento restituindo a tua caneta» (Idem, 342). Portanto, não éa restituição do objecto roubado ou da acção perpetrada que estão emprimeira linha, mas sim a restauração de uma situação de convivênciahumana entre pessoas que se odiavam.

Há ainda outro aspecto que se sublinha como sendo um valor quefoi facilitado pelo espírito ubuntu. É que a reconciliação não implicaevitar a confrontação entre as pessoas que estiveram em camposopostos. Em outras palavras, reconciliação não significa fazer pazescom o mal, com a imoralidade, com a injustiça, com a opressão e nemcom o vício. Pelo contrário, reconciliação implicava exercer o dom dapalavra ao seu mais alto nível, apelando para a profunda qualidadehumana existente tanto no opressor como no oprimido, porque ambosprecisam de ser libertados da opressão.

O ubuntu apela ao humanismo. Segundo Tutu, este termo apela,em última instância, o que distingue homens dos animais: a qualidade

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de ser humano. Embora pareça ser uma tautologia, esta expressãoquer sublinhar que, uma pessoa com ubuntu:

«[…] é conhecida como tendo qualidades de compaixão e de sergentil, que usa as suas energias em nome dos fracos, que não tiravantagem pessoais da fraqueza dos outros mais fracos; em suma,a pessoa com ubuntu tem caridade, trata aos outros como elesverdadeiramente são: seres humanos. Se faltam estas qualidadesao homem, mesmo que seja um chefe, falta-lhe a integridade fun-damental para ser um ser humano. Tu podes ter muitos bens,podes ter muito poder e uma boa posição social, mas se tu nãotens ubuntu, não tens quase nada». (Cfr. Allen 2006, 165)

É importante sublinhar, do nosso lado, que estas qualidades éti-cas defendidas em nome do ubuntu, constituem o alicerce para o prin-cípio de uma ‘nova’ forma de justiça: a restaurativa. Esta, sublinha-se,é uma prerrogativa de um tipo de justiça da jurisprudência tradicionalafricana na qual a preocupação central não é a retribuição ou a puni-ção do infractor, mas sim e no espírito do ubuntu, curar as chagas,focalizar as iniquidades, as desigualdades, enfim, a restauração dasrelações e dos valores humanos quebrados. É um tipo de justiça queprocura reabilitar a vítima e o predador; a este último, compreende-se, deveria ser-lhe dada a oportunidade de ser reintegrado na comuni-dade que ele, com os seus actos bárbaros no passado, ofendera.

Numa avaliação rápida podemos dizer que, para este caso, osvalores defendidos pelo ubuntu foram mobilizados para equipar aspessoas a fim de poderem olhar para os seus torturadores e opressoresdo tempo do apartheid como «humanos» e para poder perceber poreles próprios que os seus antigos torturadores e opressores precisamde ajuda das antigas vítimas para poderem recuperar a sua humanida-de temporariamente perdida. Os mesmos valores empoderaram aossobreviventes das torturas dos agentes do apartheid a tomarem o con-trolo das suas vidas, a tomarem iniciativa sobre a sua própria vida, aoinvés de se vitimizarem eternamente. Enfim, esta experiência crioucondições para inscrever-se na história do mundo, uma experiênciaafricana na aplicação dos seus valores e princípios inspirados no ubun-tu para resolver os problemas modernos. Mas como é isso possível?

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Como resposta, Nyaumwe e Mkabela (2007, 153) parecem ter,no nosso entender, alguma razão ao resumirem da seguinte forma oubuntuismo hoje. Na essência — escrevem eles — ubuntuismo cons-titui ambas as coisas, uma descrição factual do estar-com-outros e umcódigo de conduta que procura articular o respeito e a compaixãopara com o outro. A filosofia moral ubuntu, sublinham ainda, é fun-cional para as pessoas vivendo em comunidades precisamente porcausa do seu poder em criar a cooperação e unidade entre as pes-soas.

Num artigo intitulado Revisiting the Traditional African CulturalFramework of Ubuntuism, publicado no Indilinga, uma revista científicaque se notabiliza por publicar o conhecimento indígena africano,Nyaumwe e Mkabela (2007,152pp.) têm como propósito reexaminar oquadro conceptual da filosofia ubuntu à luz dos desafios modernos.Mais precisamente, procuram mostrar que, longe de os valores tradi-cionais que constituem o âmago duma tal filosofia estarem «ultrapas-sados», estes mesmos valores podem constituir um repositório derecursos conceptuais mobilizáveis para o aprofundamento das demo-cracias modernas em África. Ainda mais exactamente, procuram mos-trar que a máxima do ubuntu que diz munhu munhu ngewane (xiXona)e umuntu ngumuntu nbantu (xiZulu) [«uma pessoa o é somente no seiodas outras»] pode ser hoje muito bem reabilitada para resolver osproblemas modernos.

Ao fazerem isto, propõem estender o ubuntu da dimensão damoral — que temos enfatizado até agora — para uma outra, nomea-damente a da filosofia social. Advogam que, em vez de se cair no tra-dicionalismo, é necessário que esses valores sejam incorporados nodiscurso sobre a África pós-independência, mostrando a sua validadecomo alicerces sobre os quais a África moderna se pode erguer.

O primeiro passo que vêm para este propósito é fazer com que osafricanos, sobretudo os jovens, tenham a oportunidade de apreciar osvalores culturais africanos para eles próprios poderem encantar-se,fazerem as suas escolhas e orientarem conscientemente a sua condutasocial a partir desses valores. Ou seja, acham que o des conhecimentodos valores africanos é o factor principal para que haja a impressãogeneralizada entre os próprios africanos de que esses valores (entre osquais destacam o humanismo, o colectivismo, a cooperação, o carinho

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para com o outro e o respeito) não são válidos ou mobilizáveis parareconstruir uma sociedade africana baseada nele.

Segundo Nyaumwe e Mkabela, os valores democráticos que sedevem defender hoje nas sociedades modernas, nomeadamente ainclusão, a negociação, a transparência e a tolerância, não estão emcontradição com os valores e as práticas tradicionais nas comunidadesafricanas. Pelo contrário, o indaba ou o hurukuro, (ou seja, o exercícioda palavra nas comunidades africanas) promovia a capacidade de bus-car consenso para decisões colectivas, embora o teor do consenso aquinão seja necessariamente baseado no ponto de vista da maioria, comoé a norma nas democracias ocidentais. O consenso, nas condições afri-canas, é procurado sempre com o objectivo último de alcançar umamaior coesão entre os membros de uma comunidade, e não de dividi-los em bancadas de ‘maioria’ ou da ‘minoria’. Esta coesão é confirma-da pelas expressões como tiri tose, sisonke, simunye, ou seja, «estamosjuntos». Este valor de coesão não deve ser deixado morrer em nomeda democracia. À luz da filosofia ubuntu pode-se sempre lembrar aosnossos parlamentares hoje, a necessidade de cultivar este valor.

Um outro valor que pode ser recuperado, na óptica dos doisautores, é o espírito de cooperação entre os membros de uma comuni-dade e sociedade. Efectivamente, segundo eles, a morte, na ópticadesta filosofia prática, é considerada como um fenómeno sagrado e,como tal, toda a comunidade deve respeitá-la e participar nas cerimó-nias quando ela acontece. Porque morrer é considerado como o meioatravés do qual uma pessoa passa a ser um antepassado, então estapassagem deve ser compartilhada, cuidada e celebrada não só pelosvivos como também pelos mortos. Assim, quando a morte ocorrenuma família, toda a comunidade une-se para prestar ao morto umamudança de casa decente para que, uma vez como antepassado, a pes-soa que ‘partiu’ possa continuar a cuidar dos vivos. E este ‘cuidar’pode assumir várias formas: por exemplo, quando se evocam os ante-passados para providenciarem chuva para uma boa colheita, para pro-porcionarem boa saúde aos vivos (especialmente aos recém-nascidos),entre outras orações.

A solidariedade social e o espírito da ajuda mútua são tambémpraticados pela forma como, nas comunidades africanas e no espíritoubuntu, os mais jovens e prósperos membros tomam conta dos mais

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fracos, especialmente dos velhos e das viúvas. Aos velhos é lhes atri-buído automaticamente um status social elevado, sendo tratados comrespeito em todo o lado. É frequente haver jornadas colectivas (team-working) para a construção de casas para as viúvas e prestar visitasorganizadas e periódicas para saber da sua saúde. Estas actividadessolidárias que juntam pessoas próximas e voluntárias para ajudar aosmais fracos na construção ou nas actividades agrícolas, são denomina-das, em algumas línguas Bantu por mushadirapamwe, shosholoza, ilima(Nyamwe & Mkabela 2007, 155).

As jornadas de solidariedade social descritas acima não são sóorganizadas para ajudar aos mais fracos (velhos e viúvas). São tam-bém organizadas por grupos de famílias num determinado período deactividade económica como a sacha, o plantio ou a colheita; o ilima,por exemplo, é organizado por um grupo de pessoas que vão demachamba em machamba para se entre-ajudarem em tarefas árduas,de acordo com um calendário rotativo preestabelecido.

A divisão de tarefas neste contexto comunitário fascina aos doisautores que temos vindo a citar. Por exemplo, em preparação do ilima,as ‘velhas’ preparam bebidas tradicionais para se beber conjuntamen-te. A bebida tradicional deve ser consumida em conjunto porque éconsiderada como sendo força de união dos membros da comunidade,vivos e não-vivos, sendo particularmente um sinal de agradecimentopara estes últimos. Os não-vivos são os primeiros a provarem, gestoque se concretiza com o entornar uma parte dela para os defuntos. Oscunhados ou os que estão em perspectiva de o ser devem dirigir ostrabalhos para mostrarem qualidades de afinco ao trabalho, honesti-dade, perseverança, etc. As mulheres cuidam da bebida e da comida.Há rituais próprios que cada membro deve cumprir.

Este espírito ubuntu de entreajuda, solidariedade, hospitalidade,simpatia e empatia é levado para o Ocidente pelos emigrantes africa-nos, sejam eles trabalhadores ou estudantes. No estrangeiro é fre-quente os africanos organizarem encontros independentemente dasua proveniência em termos de país. São essas actividades comunitá-rias, inspiradas pelo espírito ubuntu, que possibilitaram o crescimentoda consciência duma África unida e o consequente nascimento demovimentos independentista à escala continental nos anos 60, recla-mam Nyaumwe e Mkabela (2007, 157).

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Entretanto, continuam os nossos autores e com razão, voltar aosvalores tradicionais tal e qual como foram descritos anteriormente,«não é prático». A maioria dos africanos de hoje já não vive segundoos princípios e formas de vida comunitárias, mas, como resultado damodernização, segundo formas de vida muito individualizadas. Porém,a solução que advogam, parece ser contraproducente com o propósitoque têm: acham que se deve restaurar a filosofia moral do ubuntu para,segundo eles, «mostrar às gerações mais jovens os benefícios do ubun-tu por forma a poderem começar a apreciar a contribuição da filosofiamoral africana para com a humanidade e misturar estes com os aspec-tos positivos da cultura ocidental» (Nyaumwe & Mkabela 2007, 161).Para esse desafio vêm a escola como sendo a instituição pela qual sedeve começar a educar os mais jovens no espírito ubuntu.

Os autores não adiantam ‘fórmulas’ mais abertas em termos decomo aplicar estes valores na perspectiva da democracia moderna.Não adiantam, por exemplo, propostas práticas sobre a forma como sedeve organizar um parlamento ou uma assembleia inspirada no indaba(conselho, reunião, assembleia). Também não dizem nada sobre comomobilizar pessoas para actividades parecidas com o ilima no contextoda fábrica ou de um bairro citadino. No entanto, o seu ponto maissugestivo é o de querer mostrar que, numa fase preliminar, deve-seromantizar os valores tradicionais inspirados pela filosofia ubuntupara permitir aos mais jovens tomarem consciência dos seus benefí-cios e recorrerem a eles para enfrentarem o individualismo exacerba-do das sociedades capitalistas modernas. Fixemos isto: ro man tizar osvalores tradicionais é uma fase necessária para o desenvolvimento dafilosofia moral africana!

Da Descolagem Conceptual à Descolonização

O projecto de Tempels pode ser considerado como sendo duplo:em primeiro lugar, mostrar aos europeus que os africanos têm filoso-fia levando-os a conhecer a alma dos bantu e estimular os estudosetnográficos no interior da África. Em segundo lugar, Tempels queriainiciar ou iniciou, de forma implícita, a elaboração de um quadro con-ceptual da filosofia bantu (estudo da força vital), embora apoiando-se

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numa ontologia bantu comparada com o estudo da ontologia da filo-sofia europeia (estudo do Ser enquanto Ser). De facto, Tempels elabo-ra toda a chamada filosofia bantu nas vertentes metafísica, ética,epistemológica, política, a partir do conceito central de força vital.Nesta perspectiva pode-se considerar que Tempels teve o mérito deiniciar implicitamente em torno daquilo que mais tarde se viria acunhar de «descolagem conceptual» da filosofia africana.

Voltemos agora a acordar Crahay. Este certamente não queriaopor-se a este projecto quando, a 19 de Março de 1965, pronuncia umdiscurso em Kinshasa que meses mais tarde foi publicado na revistaDiogenes sob o título Le Décollage Conceptuel: Conditions d’une Philoso -phie Bantoe. Crahay queria sim mostrar as condições para o nascimen-to, descolagem, da filosofia africana.

Antigo estudante de filosofia e de psicofisiologia na Universidadede Louvain em Paris e de Liège, onde ele obteve o doutoramento emfilosofia em 1954, Crahay ensina lógica e filosofia moderna europeianos anos 60 numa universidade católica em Kinshasa.

Crahay, como dissemos algures neste livro, acha que o PadreTempels confunde «filosofia» e a Weltanschauung dos bantu. Alémdisso Crahay vê na obra de Tempels somente uma possibilidade de«descolagem» da filosofia africana; entretanto, a obra de Tempels,ainda não é filosófica africana e nem podia ser. Como ainda dissemos,para Crahay, somente estamos perante uma filosofia, quando há umdiscurso de reflexão sobre a experiência humana, mas não a descriçãoda própria experiência.

Para Crahay são cinco as condições e as possibilidades para aexistência da filosofia africana. Primeiro: deve haver um corpo de filó-sofos e intelectuais africanos a viver e a trabalhar num ambiente cul-tural africano mas abertos ao mundo; ou seja, para que a filosofiaexista e se desenvolva é preciso que hajam filósofos entusiasmados emcriar e recriar a filosofia; «filosofia só vive com e em filósofos», comodiria Ngoenha. Segundo: é preciso usar bem, mas de uma forma críti-ca, as reflexões da filosofia académica ocidental, porque através da suaprática e paciência poderia promover-se em África um pensamentofilosófico que cruze todas as culturas africanas. Terceiro: fazer uminventário dos valores africanos, mesmo que, numa primeira fase,incluam atitudes, categorias e símbolos; o inventário deve porém ser

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selectivo, isto é, somente aqueles valores devem ser tomados em contaà medida que eles «dariam que pensar». Quarto: temos que fazer umaruptura radical entre a consciência reflectiva e a consciência sobre osmitos; isto permitiria introduzir a dicotomia necessária para a des -colagem conceptual; de facto, a diferenciação entre o sujeito e o objecto do conhecimento, entre o Eu e o Outro, entre o natural e o so - bre natural, no interior da prática filosófica africana permitiria estatornar-se analítica e reflexiva, o que a etnofilosofia não conseguiu. E quinto: os africanos devem escolher claramente as suas opções emtermos de sistemas filosóficos adequados aos problemas africanos;este foi o caso, por exemplo, a escolha do marxismo como sistemafilosófico para ser o suporte das lutas em África.

Assim, segundo a interpretação de Outlaw (s.d.,24), Crahay criti-ca Tempels por não ter escrito um livro sobre a filosofia, mas sim umlivro com o «ímpeto» de ser filosófico. Tempels teria ficado na inten-ção de apresentar uma versão africana de filosofia, sem o conseguir.Aceitar que Tempels escrevera um livro de filosofia bantu, seria admi-tir que não havia filosofia, ou pelo menos, admitir que esta encontra-va-se implícita e imanente, mas não explícita e analítica, antes deTempels a ter «descoberto».

Para Crahay, para que falássemos de uma filosofia africana, serianecessário que os filósofos africanos se dissociassem de cinco elemen-tos que até lá eram partes constituintes na forma e no conteúdo dopensamento africano que se apresentava a si mesmo como sendo filo-sófico.

São as seguintes dissociações que Crahay impõe como condiçõesnecessárias para a «descolagem conceptual» da filosofia africana: emprimeiro lugar Crahay exige da filosofia a dissociação do sujeito doobjecto através da reflexão; isto é, Crahay exige uma dissociaçãoentre o «Eu» e o «Outro». Em segundo lugar a dissociação do naturale do supernatural, da acção de natureza técnica da acção da fé, do con-creto e do abstracto ou ainda do objecto do nome dado ao objecto. Emterceiro lugar a dissociação entre o conceito de tempo e de espaço.Em quarto lugar Crahay pretende que haja uma dissociação da liber-dade corporal que deve evoluir para um conceito natural de liberdade,ou seja, para um conceito de liberdade que seja a síntese da liberdadecorporal, a faculdade de decidir e a assumpção da responsabilidade

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individual sobre as próprias acções no que diz respeito às possíveisconsequências da acção que sejam racionalmente previsíveis. Por últi-mo e em quinto lugar a dissociação do culto do colectivo para o cultoda diferença. (Cfr. Outlaw, s.d., 25)

Crahay temia que Tempels, ao declarar que teria encontrado aessência da filosofia bantu, não havia porém cumprido com estas con-dições para que a filosofia africana pudesse descolar conceptualmente.

Mais do que o conteúdo da crítica de Crahay, principalmente noque diz respeito à importante chamada de atenção para se diferenciarentre filosofia e Weltanschauung, aquele histórico artigo seu fica nahistória da filosofia africana por ter iniciado uma análise mais filosófi-ca em torno da obra de Tempels; Crahay preparou assim o caminhopara uma crítica mais sistemática da etnofilosofia que teria comoparadigma a crítica unanimista de Paulin Hountondji.

Ao mesmo tempo, este artigo de Crahay teria o impacto de abrirum debate ainda mais amplo que ocupou muitos filósofos africanosdurante um tempo considerável a despenderem energias para encon-trar uma resposta: é o debate em torno da pergunta se existe umafilosofia africana e quais seriam as suas tendências. É o debate sobre aidentidade da própria filosofia africana, debate este que acabaria pordesaguar num movimento de auto-reflexão, de autoconsciência e daauto-inscrição da filosofia africana no contexto universal do pensa-mento filosófico. Este debate ocupou toda uma geração que se preocu-paria em cunhar as formas da auto-inscrição da filosofia africana nahistória universal do pensamento filosófico.

É neste debate que Odera Oruka, por exemplo, inscreve comoreferenciais, quatro «tendências» (trends) da filosofia africana, nomea-damente a etnofilosofia, a sagacidade filosófica (philosophic sagacity), afilosofia nacionalista-ideológica e a filosofia profissional-académica.Por seu lado e ainda no âmbito deste debate, a dupla Semet eNkombe inscrevem também quatro tendências da filosofia africana: aideológica, a tradicional, a escola crítica e a sintética-hermenêutica.Embora ainda haja outras tentativas de agrupar ou de tipificar astendên cias/referenciais da filosofia africana — por exemplo, as pro-postas de Mudimbe e de Masolo — no contexto do nosso assunto demomento, a descolagem conceptual da filosofia africana, ficaremospor aqui.

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Quase trinta anos antes do pronunciamento de Crahay expondoas condições e as possibilidades para a descolagem conceptual dafilosofia africana viria a nascer em Gana, em 1931, Kwasi Wiredu, ofilósofo que pensamos ter levado a sério o projecto proposto porCrahay. Wiredu lê os seus primeiros livros de filosofia ainda na esco-la primária. Interessa-se pela lógica pois, nesta tenra idade, lê TheEssentials of Logic de Bernard Bosaquet. Mais tarde lê o livro que tal-vez mais o influenciou na sua vida e nas suas concepções filosóficas:Os Últimos Dias de Sócrates, um livro que contém quatro diálogosescritos por Platão. Estuda filosofia ocidental na Universidade deGana, a partir de 1952. Porém, por curiosidade individual, descobrena mesma altura a sua paixão pela filosofia africana. Wiredu prosse-gue os seus estudos em filosofia analítica mais tarde na Universidadede Oxford. Gradua-se em 1960 com o tema Knowledge, Truth andReason. Wiredu gosta de ler David Hume, John Dewey e ImmanuelKant, entre outros, é claro.

Escusa dizer-se que pertence à geração de filósofos africanoscomo Hountondji, Mudimbe, Eboussi-Boulaga, Odera Oruka, com osquais se ombreia hoje no patamar da filosofia continental.

Kwasi Wiredu, como dissemos, dedica-se a temas da filosofia afri-cana, especialmente na área da lógica e epistemologia. Viria a serconhecido pela sua paixão por um tema específico dentro da filosofiaafricana: o que ele mesmo chama de conceptual decolonization, ou seja, adescolonização conceptual da filosofia africana. Com este seu projectofilosófico de descolonização conceptual Kwasi Wiredu coloca-se acimae para além do debate já obsoleto sobre se existe ou não uma filosofiaafricana. Ele usa todas as ferramentas filosóficas, especialmente alógica, a filosofia da linguagem e a epistemologia para mostrar que épreciso «descolonizar» a forma de filosofar dos africanos para queuma verdadeira filosofia africana possa abrir alas no panorama inte-lectual.

Wiredu reconhece que o projecto é «longo» e «complexo» por-que, para além de abranger todas as culturas africanas, ele terá quefazer uso de todas as disciplinas, a começar pela língua em que faze-mos ciência. A descolonização conceptual não se deve limitar à filoso-fia, senão que deve abraçar as disciplinas tão vitais como a história,estudos literários, antropologia, e outras consideradas como ciências

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ideográficas. Aqui, como é lógico, interessa-nos a versão filosófica doprojecto.

Vamos basear-nos, para expor Wiredu, num pequeno mas muitosignificativo artigo seu, Toward Decolonizing African Philosophy andReligion, publicado na revista on-line African Studies Quarterly18.

Logo no primeiro parágrafo do artigo Wiredu define o que é des-colonização para ele: By decolonization, I mean disvesting African philo-sophical thinking of all undue influences emanating from our colonial past.Ou seja, por descolonização quero significar o desvestir o pensamentofilosófico africano de todas as influências que parecem quase infinitasdo passado colonial. E Wiredu repisa que o elemento mais importanteé considerar que a influência do passado colonial é «quase infinita»porque não seria possível (e nem desejável) rejeitar tudo deste passa-do, baseando-se na simples justificação de ser uma «herança colo-nial», portanto que tudo dela deveria ir ao lixo.

Para Wiredu o ponto de partida para a descolonização deve serprocurado na língua. É na língua que começa o problema, e muitomais exactamente na língua de instrução dos africanos que foi dife-rente das línguas vernaculares. Africanos foram forçados (não esco-lheram) a estudar as ciências por via das línguas coloniais, e énaquelas línguas que os intelectuais africanos continuam ainda hoje aproduzir conhecimentos científicos.

Ao estudar filosofia em inglês, por exemplo, o africano, em ter-mos conceptuais, «ocidentalizou-se». Independentemente se ele sedebruça sobre a filosofia europeia ou se estuda assuntos africanos dafilosofia, este africano que o faz em Inglês, «desafricanizou-se» no quediz respeito à articulação dos termos filosóficos. Por isso, diz-nosWiredu, uma descolonização na filosofia é necessariamente umempreendimento conceptual. A descolonização conceptual não deveser entendida somente como uma doutrina crítica ao colonialismo; aparte mais importante do projecto é exactamente o esforço de con-ceptualização, embora aquela seja necessária. A noção «crítica» éusada por Wiredu para significar em primeira instância um «exameda validade» e pouco «exame da invalidade» na aplicação de conceitos

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(18) Por se tratar de uma versão baixada da internet, usam-se as referências das pági-nas correspondentes.

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filosóficos em línguas europeias em contextos de culturas africanas.Segundo Wiredu: «isso sugere que, ao examinar as formações concep-tuais no nível do discurso técnico [da filosofia], os filósofos [africanos]devem também manter um olhar crítico nas intimações conceptuais daslínguas nativas nas quais eles trabalham» (Wiredu s.d., 2).

Não admira esta posição de Wiredu: ele centra o que-fazer dafilosofia, enquanto disciplina académica, na análise e no exame deconceitos e de quadros teóricos; ou seja, no exame crítico na formacomo certos conceitos são aplicados tendo em conta o meio cultural.Assim, a duplicidade do empreendimento crítico do filósofo africanocoloca-se, por um lado, na perspectiva da sua obrigação como filósofoprofissional e, em segundo lugar, na perspectiva de ser um filósofoafricano, membro de uma comunidade linguística, que, portanto, quere deve exercer a sua disciplina a partir do quadro conceptual que esseseu meio cultural sugere.

Do que foi sugerido acima, resulta que, para Wiredu, African phi-losophy consists of both a traditional and a modern component, isto é, afilosofia africana é composta por elementos tradicionais e modernos.O imperativo para a descolonização, como consequência, é aplicávelpara as duas direcções, nomeadamente para a filosofia africana profis-sional e para a filosofia africana de inspiração tradicional (como oubuntuismo, por exemplo).

Entretanto, se aceitarmos que filosofar nas condições africanas énecessariamente passar pela análise conceptual, então teremos deadmitir que é precisamente aí que o continente africano está em des-vantagem comparado à filosofia europeia. Segundo Wiredu, na filoso-fia contemporânea praticada em África há pouco ensino das cadeirasde lógica, da filosofia da matemática e da filosofia das ciências. Tam -bém são poucos os filósofos que se especializam nestas áreas. Esta éuma desvantagem «cardinal» para desenvolver a tradição de análisede conceitos, um empreendimento que a filosofia africana deveriatomar a sério. Assim, Wiredu acha que a saída é «domesticar» essasáreas da filosofia, ou seja, sem importá-las do ocidente, mas ter umaatitude intelectual mais aberta para absorver o máximo a tradição doocidente nestas áreas.

A lógica, em particular, haveria de contribuir imenso na avalia -ção dos argumentos esgrimidos pelos nossos velhos nas aldeias em

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termos de validade das suas asserções. Porque, segundo Wiredu, osprincípios da lógica da não-contradição (non-contradiction) e o daexclusão do meio (excluded middle), estão ambos patentes nas disputasque os velhos nas aldeias fazem (ele dá exemplos do povo Akan doGana). Não obstante a isso, não existe em Gana, e por extensão emÁfrica, um estudo formal da lógica. Daí resulta que, na tradição filo-sófica africana, não se desenvolveu o hábito do estudo da lógica comouma disciplina formal; esta lacuna afecta, por sua vez, as iniciativas deestudos filosóficos das culturas particulares a partir da perspectiva dalógica. Assim, um dos passos principais para a descolonização seria ode «domesticar», no sentido de apropriar-se, estas disciplinas paraserem bem dominadas pelos filósofos africanos.

Wiredu insiste muito na possível confusão de se considerar «des-colonização conceptual» com a atitude comum em alguns filósofosafricanos, segundo a qual deveríamos abandonar todas as disciplinasfilosóficas que recebemos do ocidente. Pelo contrário, a descoloniza-ção implica também uma espécie de «confirmação» da aplicabilidadede conceitos ocidentais no seio dos sistemas de pensamento africanos.Encontrar esses momentos de «confirmação» prova, pelo contrário, aexistência de elementos do pensamento que cruzam todas as culturas(cross-cultural elements), enfim a existência de categorias universais nasculturas africanas.

Wiredu dá um exemplo do elemento transversal às culturas, queportanto tem uma validade universal. Tomemos a lógica, convida-nosele. Se, por exemplo, a forma mais simples requerida de condicio -na lidade para definir a relação entre a premissa e a conclusão de umargumento válido deve envolver a noção da necessidade, esta formaserá da mesma maneira em todas as culturas, incluindo as africanas.Ele não imagina, portanto, haver qualquer cultura sob a face da terra,onde não exista a exigência de haver necessariamente coerência entre a premissa e a conclusão para provar a validade de um certo argu -mento.

Como se pode depreender, a questão principal em Wiredu nãoestá em rejeitar (então é africanista) ou a aceitar (então é uma mentecolonizada) a aplicabilidade ou não dos conceitos ou do quadro teóri-co ocidental. A chave da questão para Wiredu é o desenvolvimentoduma atitude centrada na «devida reflexão», ou due reflection, que se

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deve fazer sempre antes de aceitar-se um determinado conceito ouquadro teórico explicativo.

Para o caso de estudos no campo da filosofia africana, Wiredupensa que chegou o tempo para investir a sério na sua descolonização.É preciso, segundo ele, realizar estudos intensivos sobre os elementosculturais que jogam maior importância na estruturação das significa-ções na Weltanschauung africana. E nisto, o estudo da língua é funda-mental. Seria uma pura quimera esperar que alguém possa estudarfilosofia num determinado grupo cultural, sem dominar bem a línguaque é falada por esse mesmo grupo. Não obstante a isso, Wiredu nãofecha as portas para o estudo da filosofia de um determinado grupocultural aos não-falantes da língua em causa. Mas, e esse é o seuponto principal, não é possível falar de filosofia africana sem fazeranálise de conceitos; e isso obriga o filósofo a confrontar-se com asquestões linguísticas, nem que sejam simplesmente de tradução.

Um segundo passo, que parece ressaltar de Wiredu, é o que elemenciona como sendo necessário fazer-se «estudos pluralísticos» emtorno de certos conceitos fundamentais, nomeadamente «pessoa»,«vida-depois-da-morte», «Deus», «espírito» e «moralidade», portan-to a metafísica. Embora «trazidos», enquanto conceitos, por religiõeseuropeias, verifica-se uma proliferação de estudos pluralísticos taiscomo «Noção de Pessoa nos Yoruba», «Concepção Akan de Deus»,etc. Desses estudos deve resultar o enriquecimento da filosofia com asdiferentes formas de conceitualização das entidades metafísicas emcausa.

Entretanto, admite Wiredu, os conceitos fundamentais referidosacima são apenas preliminares e secundários. São preparatórios para odebate da grande questão. A verdadeira grande questão para o debateque deve tomar primazia nos estudos pluralísticos é a da noção deverdade e da sua validade. Para Wiredu esta questão é de crucialimportância na filosofia africana.

E para chegar a esta questão temos, de novo, de reexaminar osconceitos básicos da filosofia, em particular a noção do «Ser». Ora,quanto a esta questão, é-nos dito por Tempels que o que é «Ser» paraa ontologia europeia, para a ontologia africana bantu é «força vital».Daí surge uma «verdade» placativa de Tempels: Ser é força e força éSer!

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Wiredu diz que tentou traduzir esta expressão que Tempels achade cardinal para a sua língua, o Akan, e o resultado foi «zero»: the the-sis cannot be expressed in my language, namely, the Akan language spokenin Ghana and in Ivory Coast, isto é, esta tese não pode ser expressa emAkan, língua falada no Gana e na Costa do Marfim (Wiredu s.d.,6).Kagamé teria tido o mesmo resultado ao tentar traduzir o mesmopara a língua bantu banyaruanda. Porque? Porque naquelas línguas(akan e bantu) o equivalente ao Ser requer sempre um complementoque indaga «ser o quê?» ou «estar aonde?». Assim parece ser impossí-vel defender uma ontologia bantu ou akan baseada em qualquer coisaequivalente ao «Ser» na concepção europeia.

Assim, chegamos a uma «verdade ontológica» que estava somen-te na cabeça de Tempels, uma verdade que, pelo contrário, é simples-mente impossível expressar na língua akan. No entanto, o pior aindavem aí: é que ao expressar esta «verdade» Tempels inscreve-a na his-tória da filosofia como se ela servisse para todos os africanos. Os afri-canos são inscritos como se tivessem um unanimismo filosófico, nomínimo no que diz respeito à ontologia. É desta forma que Wiredudefende que «todos os africanos que disseminem a tese defendida porTempels sem confrontar-se com os aspectos conceptuais, estão sim-plesmente a publicitar a sua mentalidade colonial no seio de todosaqueles que têm olhos para ver» (Wiredu s.d.,6).

Wiredu dá este exemplo de Tempels para mostrar que a descolo-nização conceptual na filosofia africana que defende, não deve empur-rar-nos ao outro extremo: o do unanimismo dos povos africanos. Bempelo contrário, ela deve orientar-nos para a diversidade dos sistemasde pensamento entre os africanos ao mesmo tempo que nos mostra ocaminho para a universalidade.

Aqui está, pensamos, o ponto de partida do qual nos iremos ser-vir para defender a necessidade da intersubjectivação na quarta partedeste livro. Pois, no seu afã de fugir do quadro teórico da filosofia oci-dental, tanto os referenciais da objectivação (parte II) como os refe-renciais da subjectivação (parte III) não puderam evitar cair numcerto unanimismo. A proposta de descolonização conceptual deWiredu dá-nos pistas fundamentadas para a busca de referenciais daintersubjectivação no seio da própria etnofilosofia, no seio, digamos atítulo de exemplo, da filosofia ubuntu.

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As «pistas» para a defesa da intersubjectivação tornam-se sobre-tudo mais claras se tivermos em conta a seguinte posição de Wiredu.Ele assevera que o facto de chegarmos à conclusão de que a noçãoexistencial «Ser» não existe e não é adaptável ao meio linguístico dosAkan e dos bantu, não significa necessariamente que estas não preci-sem deles; esta impossibilidade pode significar que estas línguas pre-cisam de ser «suplementadas» por expressões metafísicas mesmo quefornecidas pelas línguas europeias. Afinal não incorporamos nas nos-sas línguas conceitos tais como «internet», «website» da electrónicanas línguas africanas ou outras? Porquê deverá ser diferente no que-fazer filosófico?

Esta possibilidade de abertura dos sistemas de pensamento para aincorporação de conceitos de outras culturas e formas de pensamentodiferentes (com o objectivo de se enriquecer culturalmente, nos con-ceitos em particular), é a possibilidade, dizemos, para um alinhamentointercultural ou, se quisermos, para a fundamentação dos referenciaisda intersubjectivação na filosofia africana.

Um outro ponto de Wiredu nos parece importante sublinharquando falamos da descolonização conceptual. Partindo do mesmoprincípio que nós chamamos de «abertura», Wiredu não põe de partea possibilidade de existência da «filosofia comunal». Defender, porexemplo, que os Zulu ou os Sena têm esta e aquela concepção de ver-dade, não quer necessariamente dizer que todos os Zulu ou Sena queapanhemos na rua vão responder todos da mesma forma à pergunta«o que é a verdade?». Segundo Wiredu, essas crenças filosóficascomunais são resultado de consensos, da junção de hábitos durantemuito tempo que se teriam sedimentado na mente das pessoas indivi-dualmente nas comunidades, dos pensadores locais em particular. O trágico para África é que a história dessas ideias perdera-se notempo com os seus respectivos produtores não havendo hoje rastosdevido à cultura da oralidade.

Perante esta «tragédia» Wiredu acha que é da responsabilidadedos filósofos africanos contemporâneos cavar debaixo das crençascomunais para descobrir uma espécie de racionalidade adjacente.Parecendo paradoxal, sobretudo se tivermos em conta que esta équase a mesma justificação da etnofilosofia, esta posição justifica-seporque, ainda segundo Wiredu, os modelos de exposição na filosofia

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africana estabelecidos por escritores como Tempels, que directamenteou indirectamente trabalhou em prol da colonização da mentalidadeafricana, descreve a filosofia comunal africana como um dado adquiri-do, inquestionável para a consciência africana.

Uma outra razão para que nos dediquemos às filosofias comunaisé a mais nobre (para nós): trata-se de estudar o pensamento daquelesindivíduos que mais contribuem para o dito pensamento comunal. Sãopessoas singulares que pensam sobre diferentes matérias da vidacomunal, tentando dar sentido à história e à vida das suas comunida-des. Os seus pensamentos possuem, sem dúvida, um valor acrescenta-do ao empreendimento da descolonização conceptual.

Wiredu termina com as seguintes palavras: «[…] nós em Áfricanão temos outra opção senão incluir nos nossos projectos, com urgência,o programa da descolonização de perseguir o universal pela via do parti-cular» (Wiredu s.d.,9). Wiredu chama isso de strategic pluralism, pluralis-mo estratégico, isto é, partir de estudos particulares para demonstrar auniversalidade de todas as culturas, ou melhor, a possibilidade da univer-salidade de todas as culturas, as africanas incluindo, é claro!

Sanya Osha é um dos maiores conhecedores da obra de Wiredu.A sua mais recente grande obra publicada em 2005, sob a chancela daprestigiada Council for Development of Social Science Research in Africa(CODESRIA), leva o título sugestivo de Kwasi Wiredu and Beyond.Nesta obra Osha aborda criticamente o pensamento de Wiredu aquem que ele rotula de «talvez o maior filósofo africano em vida coma possível excepção de Paulin Hountondji e V.Y. Mudimbe» (Osha2005,iii). Quase toda a obra de Osha centra-se em expor e em apre-sentar o alcance do projecto teórico de Kwasi Wiredu de «descoloni-zação conceptual». Para Osha, o engajamento de Wiredu com adescolonização conceptual «estende o âmbito do discurso filosóficoem África para além do debate já gasto sobre a existência ou não dafilosofia africana» (Idem).

Não obstante a este patamar que Osha coloca a contribuição filo-sófica de Wiredu no pensamento africano, ele faz também críticasassinaláveis no que diz respeito aos limites do seu pensamento, parti-cularmente em relação ao caminho que este toma para dar exemplosda descolonização conceptual na filosofia africana.

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Comecemos pelo fim. Embora parecendo apenas de passagem,Osha chama atenção que o que Wiredu tenta vender como descoloniza-ção conceptual não passa apenas de uma, nas suas palavras, «recontex-tualização conceptual»; a proposta de Wiredu em reexaminar osconceitos como condição para a libertação da filosofia africana é umexagero denominá-la de descolonização. No máximo é um reexamesobre as distorções que a introdução das teorias ocidentais no contextocultural africano provocara, portanto apenas uma recontextualização.

Os argumentos que Osha apresenta são vários e complexos.Vamos tentar resumi-los.

Osha começa por destacar a diferença entre a descolonização naperspectiva dos seus principais mentores políticos (Franz Fanon,Kwame Nkrumah, Leopold S. Senghor, Julius Nyerere e Sekou Touré)e na perspectiva teórica que Wiredu defende. Efectivamente, Fanon eos outros desenvolveram o termo descolonização num contexto dedominação colonial e em que se debatiam com a necessidade de liber-tar fisicamente o continente e as pessoas vivendo sob aquela domina-ção. Logo, por esses «tios espirituais» da descolonização estaremengajados numa luta anti-colonial, é óbvio que usem este conceitocom uma carga de violência física. Para além disso, a descolonizaçãoestava investida pelo projecto pan-africanista de Unidade Africana,daí que o seu mandato tivesse fortes cores políticas. Todo o arcabouçointelectual ou filosófico de um Fanon ou de um Nkrumah foi usadopara ir ao encontro daquilo que era a prioridade continental: a liberta-ção física da terra e dos povos.

Em Wiredu a descolonização torna-se um projecto intelectual,isto é, conceptual. Embora nobre, este projecto intelectual, para Osha,tem o seu lado problemático nos seus argumentos (Osha 2005,65pp.).

Quais são esses problemas? Osha começa por atacar o argumentocentral de Wiredu, segundo o qual, a descolonização deveria começarpor reanalisar a adequação dos conceitos ocidentais, quando impostosem culturas africanas, tomando como ponto de partida a língua akan àqual Wiredu pertence. Wiredu faz uma análise linguística dos signifi-cados que tomam os conceitos «verdade» (The Concept of Truth in theAkan Language) e «mente» (The Akan Concept of Mind), explorando asdiferentes significações que eles ganham nas culturas africanas (akan)e no ocidente (inglês). Sobre este «vai-e-vem» de Wiredu, Osha acha

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que ele cai numa espécie de «hesitação epistemológica» em váriosmomentos da sua análise.

Segundo Osha, o que de facto Wiredu faz é uma simples compara-ção de conotações destes conceitos em inglês e na língua Akan, duaslínguas que Wiredu domina muito bem (ele é Akan do Gana e estudouem Oxford). Mas daí para frente Wiredu não chega a «nenhuma realsignificação universal», como ele pretende, diz-nos Osha.

Osha defende que Wiredu perdera a coerência na sua argumenta-ção por ter minimizado os factores distintivos da cultura oral e dacultura escrita; Osha aponta que as diferenças entre estas duas cultu-ras tendem, no geral, a ser minimizadas pela maioria dos escritoresafricanos no seu afã de demonstrar que toda a África tem uma culturaque a identifica como continente, mas diferente da europeia.

Em primeiro lugar está a diferença na documentação. Nas cultu-ras orais africanas o arquivo de informações e do conhecimento é feitoem forma de reflexão discursiva com todos os seus constrangimentosda oralidade, enquanto no contexto europeu é de forma «inter-tex-tual». Assim, o pensador africano pós-colonial, quando confrontadocom os estereótipos da escrita colonial, reage violentamente contra oque considera de conceitos ocidentalizados ou modernos; erradamen-te, muitas vezes considera-os somente como produtos do colonialismoe do ocidente; assim, compreende-se facilmente a queda que o escritorpós-colonial tem em adoptar uma posição «nacionalista» ou «etnofilo-sófica». O resultado deste posicionamento é o que vemos em Wiredu:um emaranhado de «análises conceptuais» que acabam por ficarmuito aquém do almejado porto-destino, a descolonização.

Para Osha as estruturas conceptuais filosóficas ocidentais embre-nharam-se de tal forma nas diversas formas da consciência africanaque o assunto da descolonização conceptual torna-se muito mais com-plexo e que, portanto, vai para além do simplismo de Wiredu.

Um segundo problema da descolonização conceptual pela formacomo Wiredu o trata é visto por Sanya Osha como um problema doseu «limite»: «onde podemos estabelecer o limite?» — pergunta-se Osha. A descolonização acaba com a descoberta das dissonâncias concep-tuais, quando aplicadas no seio dos povos outrora oprimidos ou ficatotalmente satisfeita com uma resistência à epistemologia nos moldesconceptuais europeus? Porque Osha tem a certeza que Wiredu toma

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partido pela segunda opção, então ele conclui que este, com o seu pro-jecto de descolonização conceptual, alinha, tal como o fazem Fanon ecompanhia, numa «subversão» contra o ocidente, embora desta feitade natureza epistémica. Então, concluímos nós, Osha quer mostrarque Wiredu está a cumprir uma agenda política também.

De facto, lendo atentamente os textos de Wiredu, ele parte edeclara esta agenda política, usando a filosofia. Pois, como dissemosantes, o fim último de Wiredu é a possibilidade de encontrar os luga-res conceptuais comuns, ou seja, a possibilidade da universalidade dasculturas; um outro fim adjacente de Wiredu, mas que para nós é deextrema importância, é o enriquecimento das culturas africanas comconceitos que, embora não havendo no domínio das suas línguas, sãoimportantes para o seu próprio desenvolvimento.

Osha continua a sua incursão, tentando mostrar que a noção dedue reflection, tão central para o projecto de Wiredu, é também proble-mática. O problema reside no facto de que, segundo Osha, qualquertentativa de reflectir sobre a pertinência do uso de conceitos prove-nientes do ocidente, terá que obedecer a métodos que requerem evi-dências empíricas, para serem resolvidas. Dito de forma mais simples,Osha parece querer dizer que teríamos que recorrer a perguntas ouentrevistas, neste caso, a um grupo significativo e representativo dosAkan, para ‘comprovar’ a aderência dos falantes desta língua às dife-rentes interpretações dos conceitos em causa. Para Osha, portanto,este tipo de estudos não coaduna com apriorismos, com pré-juízos.Por isso é que Osha fala de «recontextualização» ao invés de «desco-lonização» conceptual ao projecto de Wiredu.

Dando prosseguimento às suas incursões no mundo do pensa-mento de Wiredu e recolocando a questão dos limites, Osha remata asua argumentação mais ou menos como se segue. Wiredu chega àconclusão que os Akan não concebem a mente como uma entidadeque pertence à pessoa! Ou que o conceito de «criação» como o actoem que Deus cria o mundo a partir do Nada não existe entre os Akan!Ou ainda que a noção de «natureza» pura e simplesmente não existeand so what? Onde queremos chegar com esta constatação? Oumelhor: para onde queremos ir após esta conclusão?

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PARTE IV

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“O problema real não é falar sobre África, mas falar entre africa-nos». É com este apelo que Hountondji dá o remate final à sua críticaunanimista à etnofilosofia no artigo History of a Myth inserido naAfrican Philosophy (Hountondji 1996, 54). Naturalmente que ele serefere aqui ao debate de natureza filosófica, aquele que deve ocorrerentre os filósofos africanos. Para compreendermos este apelo, deve-mos lembrar o carácter restritivo daquilo que ele considera literaturafilosófica, após ter revogado ligeiramente a sua noção inicial de filoso-fia africana no prefácio que escreve à segunda edição do mesmolivro19.

A ideia de que a condição para o crescimento da filosofia africanaé a comunicação e o alargamento do debate também é defendida porSeverino Ngoenha. Para este a nova filosofia africana «deve ser procu-rada filosofando em equipa entre os africanos e com os filósofos deoutras raças e continentes» (Ngoenha 1993, 109). Esta nova filosofiaque Ngoenha defende é aquela que está comprometida com a verdade,uma filosofia que faz uma «nova apropriação das verdades já conheci-das e presentes. Esta nova filosofia da procura das verdades antigas eactuais só pode ter como método a discussão em colaboração e nãoindividualmente», assevera Ngoenha (Idem).

(19) Recorde-se que a primeira edição do African Philosophy de Hountondji foi publi-cada, em francês, em 1976. Aqui referimo-nos ao prefácio à versão inglesa publi-cada 1984. Neste prefácio Hountondji sente-se na ‘obrigação’ de rectificarligeiramente a definição inicial à luz de críticas feitas e de novos conhecimentosa que ele chegara. Estas modificações são retomadas, mais tarde, no livro Struglefor Meaning.

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Nós concebemos por intersubjectivação o processo em que, como ofilósofo de Benin reclama, os sujeitos do conhecimento entram em diá-logo, em debate, em concordância e em discordância. Partimos da ideiacentral que, como dissemos algures, filosofar é estar a caminho e nãopropriamente a chegada a um fim, a um acordo. Para nós a essência doque-fazer filosófico reside na «caça aos mitos» da época; isto equivaleao mesmo que dizer que a essência da filosofia é a de desmistificarideias ainda não acabadas, preconcepções, processos, etc. Desmistificarsignifica, neste contexto, trazer à luz elementos novos, ou elementosque até então estavam no substrato de qualquer fenómeno ou processo.Filosofar é um processo de clarificação de argumentos a favor damelhoria das condições da própria existência humana. É a criaçãointersubjectiva de novos conceitos e quadros teóricos que estejam maisajustados à vida comum colectiva no presente e no futuro.

A clarificação de posições só se faz em debate com outras posi-ções, com outros argumentos. Aliás, o próprio argumento trazido aodebate, só pode ser respeitado como tal, portanto como sendo algodiferente de uma opinião não aprofundada, só e somente à medida queeste mesmo argumento toma em conta outros argumentos integran-do-os no seu seio. O argumento, para ser considerado válido como tal,deve conter os argumentos contrários ou, no melhor dos casos, aque-les argumentos que iluminam certos aspectos até então subentendi-dos. Assim, um filósofo é, de certa forma, um mensageiro de outrospensamentos e argumentos, mas que ele os integra e reelabora na suaargumentação. Um filósofo é aquele que esclarece-se e esclarece osargumentos dos outros, antes mesmo de esgrimir os seus. Está emconstante diálogo consigo mesmo e com os outros.

Digamos: O processo de confrontação de argumentos é um pro-cesso de intersubjectivação em que dois ou mais sujeitos arguentesentram em debate, interagem entre eles, integram-se mutuamente.

O processo da intersubjectivação da filosofia africana passanecessariamente pela criação de valores e atitudes que levem aoreconhecimento do outro como um interlocutor válido, como umsujeito com dignidade e conhecimento. Há intersubjectivação quan-do o Eu reconhece o Outro e está predisposto a escutar, a argumen-tar com este Outro. Por isso vejamos antes quem é esse Outro nocontexto do pensamento africano. O discurso que dá conta da luta

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pelo auto-reconhecimento do Eu é elaborado em torno de um eixoúnico: a sua liberdade. Por isso que Ngoenha e outros filósofos afri-canos não hesitam em reconhecer a busca da liberdade como aessência do pensamento político filosófico africano: «a busca daliberdade está intrinsecamente ligada ao pensamento africano», dizNgoenha.

Entretanto, em nosso ver, o discurso filosófico africano que seconcentra na liberdade como paradigma, embora certo, centraliza-sedemasiado no Eu. É urgente que a filosofia africana, e aqui referimo --nos especialmente à filosofia profissional ou académica africana, torne --se intersubjectiva, centrando-se no Outro também. A filosofiaafricana pre cisa de descentrar-se do sujeito. Mais exactamente, elaprecisa con centrar-se no Outro que argumenta a partir de uma posição culturalmente diferente. Cultura, avisamos desde já, não é compreendida aqui de forma essencialista, isto é, na sua acepçãoantro pológica de língua, religião, hábitos, lendas, etc.

A nossa acepção de cultura é filosófica, ou seja, como «segundanatureza» do ser humano. Assim, a filosofia africana deve ser futura-mente construída tendo em conta a necessidade de reconhecer como oOutro (também) constrói a sua segunda natureza. Para que a filosofiaafricana académica possa abrir-se para dialogar com o Outro, ela pró-pria deve dar um passo em frente. Ela precisa desenvolver uma atitu-de filosófica para com as tradições no sentido de ver e aprender comque conceitos e referenciais as tradições em causa constroem a segun-da natureza.

Numa primeira fase, explicaremos como a filosofia africana devecompletar a sua própria liberdade, libertando-se do seu próprio passa-do. Porque, na nossa opinião, a filosofia africana, seja ela olhada a partir do lado dos que idolatram as tradições, como é o caso das etno -ciências, do afrocentrismo, do ubuntuismo, etc., tanto pelo lado dosque querem e lutam por ela libertar-se destas tradições, em ambos oscasos, todavia, as tradições continuam a ser referências. Então, se éassim, urge perguntar, o que a própria filosofia tem no seu interiorque não a deixa conviver «em liberdade» com as suas próprias tradi-ções? Ao responder a esta questão, pensamos poder completar o passoque o paradigma libertário ainda não deu: pensar os mecanismos delibertar a própria filosofia do passado. Até agora, os defensores deste

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paradigma sustentam, e com razão, a liberdade do homem africano apartir do horizonte da sua condição de historicidade (escravo, coloni-zado, globalizado). Libertemos, pois, a própria filosofia africana, pri-meiro.

Entretanto, a libertação da própria filosofia africana precisa deser concluída pela «abertura» conceptual que ela deve fazer em rela-ção às culturas locais também cunhadas como sendo «endógenas» porHountondji. Só depois de ela própria libertar-se de todos os precon-ceitos internos, estará em condições de deixar-se deleitar pela riquezaconceptual que as tradições e as culturas milenares diversas insistemem ensinar aos filósofos profissionais na academia africana. Na segun-da parte tratamos da interculturalidade como condição para a plenaliberdade do que-fazer filosófico africano. A atitude intercultural dia-logante vai completar a intersubjectivação da filosofia africana portentar sugerir uma «abertura» conceptual e não uma «descolagem»ou «descolonização» como querem Crahay e Wiredu, respectivamente.

No fundo, a necessidade de intersubjectivação é um problemapolítico que se tornara um imperativo a ser reflectido e fundamentadodo ponto de vista filosófico. Por isso, a intenção secundária deste capí-tulo é abordar o problema do fechamento ao diálogo com o Outro, aosargumentos dos outros, fechamento este que parece estar a ameaçaras nossas sociedades africanas no processo da sua democratização edesenvolvimento sócio-económico.

Referencial V: A Liberdade

Falamos de liberdade como uma condição que unicamente o serhumano possui, o de agir livremente. Este agir livremente significasempre «consciência da necessidade», isto é, a liberdade de agir nabase do conhecimento que possui sobre as leis que condicionam a suaacção perante a Natureza (por exemplo a lei da queda livre dos cor-pos), para agir consoante a sua fantasia (tempo livre), agir consoantea sua vontade (decisão sem constrangimentos); também podemosfalar em liberdade, quando falamos da possibilidade do ser humanopoder agir sem coerção ou impedimento, poder determinar-se a simesmo com base na sua consciência e, acima de tudo, após uma

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reflexão. É por causa desta «consciência da necessidade» que o serhumano possui a possibilidade de liberdade.

Um aspecto importante da liberdade é o da consciência que, nor-malmente, consubstancia-se na capacidade e no direito natural que oser humano possui de poder expor e defender as suas opiniões, sejamelas de ordem religiosa, política, ou outras.

Dito isto vamos abordar, de seguida e rapidamente, o problemada liberdade como uma necessidade de reconhecer o Outro como serhumano que é também «livre» como Eu. Este aspecto da liberdade é oque está na causa da opressão do Outro quando o Eu não reconheceao Outro enquanto ser humano. Neste caso falamos da falta de huma-nismo, se quisermos recuperar o ubuntuismo neste lugar.

Há duas formas ou dimensões principais de reconhecimento doOutro: trata-se do Outro colectivo, portanto como uma categoriasocial, e o Outro individual, portanto como uma categoria ontológica,enquanto ser humano antes de ser um ser social. A confusão entreestes dois Outros tem originado, quando pretendemos dialogar semos distinguir como deve ser, «debates poluídos» na nossa praça públi-ca. Esta poluição sucede principalmente por não se discernir comalguma clareza a relação entre estes dois Outros. São questões ligadasao tratamento das identidades que serão em seguida problematizadasusando os vários pontos veiculados no actual debate sobre as multi-,inter-, e pluriculturalidades, enfim, questões sobre a intersubjec -tivação.

Quando falamos do Outro colectivo referimo-nos à ideia cons-truída de «identidades sociais colectivas» que são baseadas na reli-gião, gender, cultura étnica, «raça», sexualidade, etc. É a este tipo doOutro colectivo que os etnocientistas e os etnofilósofos se referem nassuas pesquisas. Estas identidades colectivas, como assinala Appiah(1994,166p.), são de «algum modo heterogéneas» dado que a suaimportância não é igualmente atribuída pelas pessoas que as ostentamou as defendem. Assim, a identidade baseada na religião requer aadopção de uma crença e o seguimento das práticas e rituais adjacen-tes à religião escolhida. Por seu lado, as identidades com base no gen-der e na orientação sexual (homo- ou heterosexualidade) dependem da natureza que outorga somente dois tipos diferentes e impõe nor-mas e padrões de comportamento e de vestir próprias. As identidades

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colectivas de «raça» e cultura têm outra origem comum: é que sãoconstruções feitas pelo homem a partir de elementos objectivos dife-rentes particularmente da cor ou tonalidade da pele (no caso das«raças») ou da língua e hábitos e costumes e outros (para o caso dasidentidades étnico-culturais).

No mundo de hoje, porém, as tendências em fixar e politizar asidentidades colectivas baseadas na religião (extremismo) e na cultura(etnocentrismo) de uma forma essencialista merecem a nossa maioratenção. Somente desta forma é que se pode explicar o facto de o pré-mio Nobel Amartya Sen, em particular no livro Identidade e Violência,tenha dirigido correctamente um veemente ataque às teorias essencia-listas do «choque civilizacional» de Samuel Huntington. Neste livroAmartya Sen tenta demonstrar, usando argumentos bem elaborados,como as identidades essencialistas baseadas em dicotomias religiosasentre o Cristianismo e o Islamismo podem ser perigosas para a paz nomundo; ele também demonstra que a identidade baseada na religião éapenas uma forma ou dimensão das diversas identidades que estãodisponíveis no mundo actual; de facto, diz ele, cada homem assumesempre uma identidade «híbrida» e, muitas vezes, a identidade que elemais escolhe está ligada à sua profissão, nível de escolarização, bairroonde habita, clube de desportos que adere, e raras vezes está confina-da às características religiosas ou etnolinguísticas. O facto de havertendência exagerada de se destacar estas duas identidades (religiosa eétnica) no mundo de hoje, mostra como estas são propensas a umamanipulação política por parte de alguns dirigentes mundiais, parti-cularmente com interesses hegemónicos.

As identidades sociais são construídas paralelamente com a iden-tidade individual de cada ser humano; de facto, cada ser humano podeser classificado como moralmente bom, inteligente, carinhoso, invejo-so, perspicaz, tolerante, problemático ao mesmo tempo que essemesmo ser humano é negro, branco, asiático, muçulmano, cristão,homossexual, homem, mulher, etc. Embora as duas identidades secruzem num mesmo indivíduo, não existe porém nenhuma relação decausalidade directa entre ambas. Ou seja, em nossa opinião, a relaçãoentre as duas dimensões é pouco definível, não é lógica. Por exemplo,o facto de uma pessoa decidir ser católica, não faz dela, por princí -pio, mais inteligente ou menos inteligente, mais simpática ou menos

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amável por causa desta decisão. Da mesma forma que uma família pordecidir seguir os preceitos religiosos muçulmanos, não fará dos seusmembros moralmente melhores que aquelas provenientes de famíliashindus, animistas, etc. Assim também o esquema funciona em relaçãoàs etnias: encontramos nas etnias Ibo, Sena, Macua, Ndau e por aífora uma distribuição igual de pessoas ambiciosas ou bondosas comoem quaisquer outras etnias e nacionalidades europeias. Se o caso fosseo contrário, então seria válido dizermos que os membros desta oudaqueloutra etnia são «preguiçosos», «avarentos», «trabalhadores»,«inteligentes», etc. Da mesma forma que, entre os colonialistas portu-gueses nem todos (talvez muitos deles) não fossem pessoas más, ava-rentas ou vingativas. Fazer este tipo de relação directa entre ambasdimensões de identidade seria uma das maiores absurdidades donosso tempo. Por isso não iremos ocupar-nos mais acerca da relaçãopossível entre as duas identidades.

Interessa-nos, entretanto, explorar as condições em que as identi-dades colectivas entram numa relação intersubjectiva, sem res tringir aintersubjectivação a uma relação entre culturas, estas enten didas nosentido antropológico. Em outras palavras, sem nos limitar à definiçãoantropológica da cultura, embora considerando esta como parte prin-cipal para o diálogo intersubjectivo, interessa-nos aqui, tão-somentefundamentar as condições históricas do diá logo com o Outro. E vamostratar este Outro na sua dimensão his tórica (historicidade) e na suadimensão subjectiva (como gnosis). Para as condições históricas africa-nas o Outro será o asiático que primeiro visitou e instalou-se no nossocontinente e o Outro-europeu que veio para ficar e dominar a terra eos homens, ambos enquanto identidades colectivas.

Desde muito cedo o Eu-africano teve que conviver com váriosOutros que chegam pelo mar adentro, ou seja, viu-se na circunstânciahistórica de ser hospitaleiro do Outro que vinha carregado de produ-tos de troca e das suas próprias instituições religiosas e políticas.Comecemos, portanto, pela dimensão histórica do encontro do Eu --africano com os Outros.

O primeiro foi o Outro árabe e depois seguiu-se o Outro-euro-peu; actualmente o Outro é o concidadão e o epistémico. Vamos traçareste percurso de investimento do Eu para reconhecer os Outros.

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O Eu-africano reconhece o Outro-asiático num primeiro momen-to pelo interesse deste nas trocas comerciais. Quando este Outro-asiá-tico chega à costa do Oceano Índico, traz na sua bagagem es peciariasda Ásia e outras mercadorias (às quais os portugueses chamaram por«quinquilharias» para mostrar a superioridade do seu «negócio»). O interesse para o encontro entre ambos estava claro: negociar. O valor máximo que este Outro-asiático traz é a troca de «quinqui-lharias». Esta torna-se uma relação baseada na troca de objectos e elaobjectiva-se a partir da posse destes objectos e não muito mais queisso. É por isso que este Outro deixou, sem impor (porque se tivesseimposto deixaria muito mais vestígios), muitos rastos da culturamaterial que vai desde a comida, passando pelo vestuário e até aarquitectura. De facto, as populações africanas, par ti cularmente as dolitoral oriental, conservam ainda hoje muitos vestígios da presençaasiática: fortalezas, nomes, roupas, comida, línguas, religião que con-vivem lado a lado com as construções, com os nomes, com a moda,com a culinária, com as línguas e religiões locais africanas. O Eu-afri-cano soube, sem muito esforço, integrar o Outro-asiático no seio dasua própria cultura. O Eu-africano mostra assim que a sua civilizaçãoé uma das mais elevadas em termos de «abertura» para com as outrasculturas. O Eu-africano, neste primeiro encontro com o Outro-asiáti-co, não só comprou as mercadorias, mas também absolveu e adoptou acultura e as instituições que estavam por trás destas mercadorias. É assim que encontramos hábitos, costumes e até línguas e religiõesde origem asiáticas entre os povos habitantes na costa do OceanoÍndico. O Eu-africano teve, neste primeiro encontro multi-cultural,muita abertura para as coisas e as culturas de fora. Esta abertura doEu-africano para com as línguas, culturas e instituições dos Outrosvisitantes é a marca particular do encontro entre culturas que emnenhum outro continente podemos encontrar com esta magnitude. A abertura do Eu-africano foi de tal ordem que rapidamente se trans-formou em inter-cultural.

Foi a primeira prova de encontros de intersubjectivação: os povosafricanos souberam abrir as suas casas e instituições culturais paraacomodar, hospedar e até mesmo apropriar-se dos outros hábitos ecostumes até então alheios. O Outro-asiático visitante não confundiuesta abertura cultural, esta hospedagem natural do Eu-africano,

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vendo-a como uma declaração de inferioridade das suas instituiçõeslocais, das suas línguas e religiões. Assim, o Outro-asiático pôde fixar --se nas terras africanas passando a fazer parte do Eu.

Este encontro dialogante de intersubjectivação com o Outro-asiático foi interrompido por um outro encontro que veio logo aseguir. Trata-se do encontro com o Outro-europeu. Este novo encon-tro foi de natureza política e não comercial. O novo Outro-europeuintroduz no encontro duas noções que poluíram o diálogo de parcei-ros intersubjectivos: são as noções de propriedade privada e de naciona-lidade. São estas duas noções que mudaram por completo o ambientenatural de diálogo entre as culturas passando agora para uma espéciede diálogo que era, de facto, um monólogo.

Rousseau tinha razão quando, no seu Discurso sobre as Desigualda -des, sustenta que o primeiro passo, a acção mais primitiva que provo-cou as desigualdades entre os homens, foi dado quando pela primeiravez um homem cercou um pedaço de terra e gritou: isto é meu! Defacto, o Outro-europeu, quando chegou, viu imensa terra africanaaparentemente desocupada e, na sua mentalidade de apropriação, pen-sou que não pertencia a ninguém. Primeiro foi ao longo da costa ondefoi demarcando pedaços de terra deixando sinais de que ele teria porlá passado. Depois começou a exploração do interior seguindo ora osrios, ora os traços do ouro, ora o traço dos escravos. Por onde passou,foi demarcando, dividindo, apropriando-se das terras e das suas gen-tes. Foi dizendo: Isto é nosso! Referindo-se com o termo «nosso» à suanação portuguesa, francesa ou inglesa. E a divisão das terras africanasentre os Outros europeus ocorreu à força. Com a sua força brutal,com o seu exército, com a sua aparente superioridade científica, oOutro-europeu foi medindo, foi montando igrejas, postos de observa-ção, fortalezas, foi olhando e classificando os solos, as plantas, os ani-mais, os minerais, o homem, os costumes, enfim tudo caiu debaixo dasua lupa e cruz.

Começaram assim as campanhas de conquista e de ocupação. O Eu-africano transformara-se de um parceiro comercial, primeiroem escravo, depois em trabalhador forçado colonizado e por fim emsubdesenvolvido. O Outro-europeu foi substituindo o «primitivo»pelo «civilizado» porque assim achava ser a sua missão nos tristestrópicos. Para civilizar o Eu-africano, o Outro-europeu usa o ferro nas

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mãos do soldado e a cruz nas mãos do missionário numa aliança pro-movida pelos estados europeus. Civilizar significa, na visão do Outro --europeu, que o Eu-africano deveria abandonar os seus espíritos, assuas línguas, as suas tradições, os seus hábitos, as suas instituições ereligiões para passar a aderir mais facilmente às instituições e cultu-ras europeias.

Era preciso dominar o corpo e a alma, primeiro do escravo edepois do colonizado. E, como Biko nos fez ver, e de certa forma tam-bém Franz Fanon, a parte mais dramática e profunda da dominaçãofoi a «alienação da consciência». Para melhor dominar criaram-se aomesmo tempo uma maquinaria institucional através da qual se res-tringiram as liberdades fundamentais ficando estas reservadas aoscidadãos europeus coloniais e, o mais importante, através dos diferenteselementos do aparelho ideológico (sistema de educação, religião,informação, etc.) o Outro-europeu criou condições para que o Eu-afri-cano rejeitasse-se a si mesmo, inculcando neste o sentimento de infe-rioridade. Este sentimento leva ao Eu-africano a rejeitar-se a simesmo negando as suas próprias tradições e instituições. Há um pro-cesso de inversão de valores no fim do qual, segundo Biko, encontra-mos um Eu-africano que, na sua condição colonial, considera «quetudo o que é do branco é bom»; noutras palavras, o critério para aSittlichkeit (moralidade, urbanidade) pode vir somente do Outro-euro-peu. A inferiorização do Eu-africano a ponto de aliená-lo da sua reali-dade é a parte mais profunda da dominação que constituiria osubstrato para que ele renegue a sua própria identidade.

Assim, o Eu-africano é declarado «cidadão» de uma outra comu-nidade portuguesa, francesa, inglesa ou outra qualquer de origemeuropeia, locais onde aquele nunca esteve. Mas é um cidadão desegunda classe, apesar do processo de assimilação, no qual a Igreja foio braço direito do Estado.

Para o caso de Moçambique, o Estatuto Missionário, que viria aser publicado a 5 de Abril de 1941, especifica que «as missões católi-cas portuguesas são consideradas instituições de utilidade imperial esentido eminentemente civilizador». Ainda de acordo com ele, aIgreja Católica em Moçambique passa a ser a «moralizadora do indí-gena» no processo da sua assimilação. O «Ensino Indígena» — entre-gue completamente às mãos da Igreja Católica — passa a ser o meio

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através do qual o Outro impõe ao Eu-africano a sua moral e a sua iden-tidade nacional; o Outro-europeu determina que o ensino deve «civili-zar e nacionalizar o indígena por meio da língua portuguesa e gradualapreensão da doutrina e moral cristã»; «moralização» é o abandono daociosidade e a inculcação do espírito do trabalho nos futuros trabalha-dores e artífices para que produzam o suficiente para as suas necessi-dades básicas e para suportar os respectivos encargos sociais. «Na cio-nalizar» significa que o Eu-africano deve abandonar todas as formasda sua identificação tradicional e passar a comportar-se na base dospadrões morais e éticos de um cidadão de segunda classe.

Para que o Eu-africano abandone a sua identidade, o Outro-euro-peu passa a obrigar-lhe a aprender e falar oficialmente o português,inglês ou francês conforme for o caso, a participar nas actividadesreligiosas, a cantar o hino nacional e as canções da metrópole colo-nial, a aprender a moral e a doutrina cristã e outras actividades quevêm reforçar e consubstanciar a política nacionalizadora e missioná-ria. Eduardo Mondlane comenta em Lutar por Moçambique: «Os por-tugueses acreditam que há mais probabilidade de um africano (deMoçambique) se tornar português completo se ele for católico»(Mondlane 1975,70).

O Outro-europeu apropria-se das outras identidades, pior, insti-tucionaliza esta alienação por decretos. Só assim é que se compreendeque em 1917 o Outro-europeu promulgue a Lei do Indigenato. Estalei define literalmente como «indígena» o «[…] indivíduo da raçanegra ou dela descendente que pela sua ilustração e costumes não sedistingue do comum daquela raça». Para este deixar de ser indígena oEu-africano, no caso de Moçambique e outras colónias portuguesas,deve abandonar tudo o que o «não o distingue do comum daquelaraça», ou seja, alienar-se a si mesmo e assimilar o ser-português. Édesta feita que os requisitos para deixar de ser indígena e passar a serconsiderado, por lei, como «assimilado» são fixados: abandonar osseus usos e costumes «pretos», falar, ler e escrever português, sermonógamo e ter uma profissão que garanta o seu sustento e dos quedele dependem. Para além disso, o Eu-africano agora assimilado, deveapresentar «documentos comprovativos» de ter deixado a sua condi-ção de indígena; tais como um atestado passado pelo administradoronde este confirma todos os requisitos formulados anteriormente,

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uma certidão de instrução primária de primeiro grau, uma certidão decasamento civil ou de compromisso futuro para a monogamia.

Ao mesmo que o Outro-europeu introduz no Eu-africano o con-ceito de Nação pela via da assimilação, ele vai também inculcando aideia de que as identidades encontradas em África circunscrevem-se a«tribos» e «etnias». As supostas tribos e etnias não têm formas de sereconstruírem e ocuparem um espaço no contexto legal da criação da«cidadania» colonial, assim pensa o Outro-europeu. Este constrói atribo e a etnia como espaços identitários marginalizados duma formaambivalente: por um lado constrói um discurso que mostra o carácterretrógrado destas referências identitárias; e ao mesmo tempo mantémesta identidade latente para despertá-las quando seria necessário«dividir para reinar».

Em suma, os encontros pré-coloniais do Eu-africano com oOutro-asiático são de carácter material, tendo sido baseados no res-peito mútuo dos sujeitos. Em contrapartida, o encontro entre o Eu-africano e o Outro-europeu traduziu-se em dominação do corpo e daalma. Não existe espaço para o reconhecimento da dignidade do Eu-africano. Por isso que o Eu-africano começa a pensar em mudar osmeios para reconquistar o seu reconhecimento, a sua dignidade, enfima sua liberdade como sujeito da sua história e pensamento.

A liberdade do Eu-africano torna-se um valor intrínseco à suaprópria existência como sujeito no contexto da escravatura e na condi-ção de colonizado. A liberdade que se clama não tem somente um sen-tido material de luta pela sua independência económica e pela suaautonomia política em proclamar a sua própria identidade. A liberdadeque se quer vai muito mais além da independência e da autonomia20: éa liberdade epistémica. Ou seja: a liberdade do sujeito africano de falarpor si, de construir o seu próprio discurso sobre a sua condição deexistência. É a liberdade de ser livre em negociar a sua entrada namodernidade. Trata-se da liberdade de ter o direito de ser sujeito dasua história e do pensamento sobre si mesmo, que, quanto a nós, é oprimeiro passo para o referencial da intersubjecti vação.

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(20) No fundo este é o tema a que Severino Ngoenha se dedica no seu já em si suges-tivo título Das Liberdades às Independências. Este livro é uma história do pensa-mento africano seguindo o chamado paradigma libertário.

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No campo da exigência da liberdade física e económica, o Eu-africano prepara-se hoje com muito afinco para a sua liberdade episté-mica. Esta nova batalha libertária é expressa da seguinte forma porMeneses num artigo introdutório do caderno Epistemologias do Sul:«No norte global, os ‘outros’ saberes, para além da ciência e da técni-ca, têm sido produzidos como não existentes e, por isso, radicalmenteexcluídos da racionalidade moderna. A relação colonial de exploraçãoe dominação persiste nos dias de hoje, sendo talvez o eixo da coloni-zação epistémica o mais difícil de criticar abertamente» (Menezes2008, 5).

A luta pela liberdade epistémica do Eu-africano desafia hoje oparadigma moderno das ciências. Este paradigma, como nos dizSousa Santos (2008,15pp.) é caracterizado por «perguntas fortes» querecebem também respostas aparentemente fortes ao modelo da ciên-cia moderna cheia de certezas. O paradigma «emergente», segundo omesmo autor, é caracterizado por «perguntas fortes» e por «respostasfracas» aos problemas epistémicos. O Eu-africano, na luta pela sualiberdade epistémica, desafia, hoje como nunca o fez na condição colo-nial, com mais abertura e ousadia ao paradigma das epistemologias doNorte. A liberdade epistémica tornou-se um tema sério no seio dafilosofia africana. Mas, neste ensaio, não nos preocupa a relação Nortee Sul e como é que ela é tratada na filosofia africana. Estamos concen-trados sim na análise dos pressupostos para a autolibertação da pró-pria filosofia africana.

Tanto Hountondji como Ngoenha justificam o fundamento dafilosofia africana a partir do horizonte da luta pela liberdade; emboraambos fundamentem esta liberdade a partir de perspectivas diferen-tes, todavia não são antagónicas. O aspecto comum em ambos é,porém, o de unicamente admitirem que um projecto pode ser conside-rado filosófico africano, quando ele revê o passado e as tradições afri-canas unicamente na condição deste projecto ser feito em função dofuturo. Ou melhor: quando o passado e as tradições são chamadaspara o campo filosófico somente enquanto subordinadas à «missãofuturo melhor», como Ngoenha chama à utopia filosófica. A condiçãode olhar para trás é, pois, quando essas lucubrações filosóficas, estãointrinsecamente ligadas à melhoria da vida das populações africanasem função de projectos sociais.

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Para Hountondji, the great issue at stake in the critique of ethnophilo-sophy, the principal objective, is the liberation of the future [a grande ques-tão em jogo na crítica à Etnofilosofia, o principal objectivo, é alibertação do futuro] (Hountondji 2002, 125). Ou seja, a filosofia e osfilósofos africanos têm que se libertar da carga do passado a que aetnofilosofia lhes submetera; o intelectual africano deve ser liberto doimperativo de se dedicar somente a assuntos etnológicos e seus deri-vados. E também deve ser liberto para poder abordar temas filosófi-cos que eram de tradição da filosofia ocidental. Assim se compreendeque Hountondji veja essa sua crítica como um projecto de libertaçãodo futuro da própria filosofia. A etnofilosofia estava a fechar-se ou aconfinar o desenvolvimento da filosofia num ghetto, num beco semfuga para o futuro.

O projecto libertário hountondjiano contém várias dimensões da«libertação da filosofia futura». A primeira dimensão é a da «desmis-tificação» da ideia sobre África e sobre os africanos. A África tinhaque ser reduzida a aquilo que ela de facto é: apenas um continentecom características meramente de natureza geográfica; da mesmaforma, africanos são aqueles que nasceram no continente africano. A concepção dominante de África e dos africanos, uma concepção emque dominam o mito e a mitologia, tinha que ser «demolida» pararestabelecer a «verdade simples e óbvia que África é, acima de tudo,um continente, e que o conceito de África é empírico e geográfico,mas não metafísico» (Hountondji 1996,66; 2002, 126). A África, paraHountondji, é um continente e não um sistema de valores ou umacorrente de pensamento apriori. A determinação predominantementemetafísica da África, como queria a etnofilosofia, condenava a África aum passado e constitui um «obstáculo para a libertação dos africa-nos». A recusa a um congelamento de uma África que se define meta-fisicamente é o primeiro passo de libertação da África e dos africanos.

A segunda dimensão da libertação corresponde à libertação doconceito de filosofia, desdogmatizando o próprio conceito. A busca dafilosofia africana deveria ser feita numa perspectiva histórica e nãosistémica, ou seja, filosofia deveria ser definida na dimensão da suahistória e não de um sistema filosófico fechado. Colocando a filosofiaafricana numa perspectiva histórica (e não sistemática), Hountondjipensa estar certo que iria deslocar a filosofia de uma concentração no

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seu passado idílico para o futuro. Para que ela, a filosofia africana,possa ir para além dos aspectos fenomenais na sua auto-inscrição nahistória universal do pensamento, é necessário que ela própria se des-dogmatize. Desdogmatizar seria libertar a filosofia para que ela vápara além da análise de mitos, de crenças e das tradições; e tenha a«coragem para um novo começo», escreve Hountondji.

A terceira dimensão libertária da crítica hountondjiana à etno -filosofia apoia-se na sua tese subjectivista da filosofia. SegundoHountondji, «libertar a filosofia do futuro significa também devolverao indivíduo os seus direitos e responsabilidades, possibilitá-lo aaprender a pensar de novo por si mesmo em vez de buscar refúgio,como a etnofilosofia convida-o a fazer, por trás dos pensamentos dosantepassados» (Hountondji 2002, 128). Hountondji mostra umaobsessiva necessidade de eliminar qualquer vestígio de um pensamen-to colectivo e destacar o sujeito como o ser pensante. O projecto deinscrição da filosofia africana, na perspectiva de Hountondji, é o desubjectivação no qual o indivíduo toma a responsabilidade das suasopiniões e, nas suas palavras, em que o indivíduo «alimenta debatesautênticos baseados numa confrontação livre de ideias e na busca daverdade […]» (Idem).

A defesa de um futuro pluralista, a quarta dimensão hountondjia-na da libertação do futuro da filosofia africana, procura afastar os pre-conceitos do unanimismo que tendem a induzir a ver-se a Áfricasub-sahariana como uma sociedade primitiva ou semi-primitiva, ondetodos estão sempre de acordo com os outros. Esta tendência de mini-mizar as mudanças internas em África, de mostrar uma África essen-cialmente unida, que nem sequer coloca a possibilidade de haver umpluralismo ideológico no nosso continente, tinha que ser também com-batida intelectualmente. Os etnofilósofos queriam manter um sistemade pensamento próprio dos africanos cuja característica principal é aausência de diferenças no passado, no presente e no futuro. Pior doque isso, essa forma de ver a África sem mudanças tendia a ser ummodelo teórico que os próprios africanos subscreviam nas diversasformas da sua auto-inscrição na filosofia universal. Hountondji vê ovalor da sua crítica à etnofilosofia na contenção dos filósofos africanosperante o que ele chama de unanimist temptation, a tentação do unani-mismo. A sua crítica veio alertar os africanos a resistirem à tentação

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unanimista a que muitos africanos estavam a cair, quando tentavamescrever sobre a África.

A crítica hountondjiana veio, em quinto lugar, libertar o própriofilósofo africano, compreendido na sua dimensão geográfica. Ou seja,apoia e inclui na filosofia africana a investigação de temas da filosofiaeuropeia pelos africanos. A filosofia deixa de estar confinada a temassupostamente africanos, mas que na verdade não são mais do quetemas que respondiam ao projecto antropológico da (neo)coloniza-ção epistemológica. Para ser reconhecido como um filósofo «autênti-co», o africano não tinha mais que se dedicar somente aos eternoshábitos, costumes, provérbios, etc. supostamente dos africanos.Mesmo que seja somente na tentativa genuína de sistematizar o pen-samento filosófico escondido nesses hábitos, costumes, provérbios,etc. o filósofo africano deve ser liberto para poder dedicar-se livre-mente a Platão, Husserl ou a um outro qualquer pensador europeuou asiático, sem correr o risco de deixar de ser considerado como«filósofo africano». Assim, o filósofo africano liberto de se limitaraos temas africanos, ganhará uma dimensão universal no seu pensar,o que lhe colocará à altura do que os seus colegas são de facto: pen-sadores livres, no sentido de que perseguem os seus interesses cognitivos sem considerandos regionais, étnicos, religiosos ou lin-guísticos.

Hountondji resume muito bem o seu projecto libertador dizendoque, na verdade, teve que lutar em duas frentes ao tentar explorar apossibilidade de uma filosofia africana autêntica e livre: uma frenteera lutar contra os defensores da etnofilosofia e a outra frente era aideologia da superioridade europeia que estava profundamente im pre -gnada no debate sobre a filosofia africana. Estas duas frentes poluíamo debate (Hountondji 2002, 137). E ainda poluem!

Este projecto libertário da filosofia africana de Hountondji é con-tinuado e, quanto a nós, radicalizado, por Ngoenha em todas suasobras, com particular insistência na obra Os Tempos da Filosofia.Vamos expor o que ele chama de «paradigma libertário» do pensa-mento africano baseando-nos nesta obra já que é nela onde pensa eleter fornecido «os fundamentos para um pensamento libertário da filo-sofia africana». Ngoenha expõe os «fundamentos» usando como panode fundo o processo intricado da construção da democracia em

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Moçambique. A pergunta, à qual procura respostas naquela obra, é«que significa lutar pela liberdade hoje?».

Convém iniciar dizendo que o conceito de filosofia em Ngoenhabaseia-se mais em Marx, embora ele comece por discutir a visão con-templativa e comedida de um Hegel, que comparava a filosofia com acoruja que só vem depois de «tudo acontecer», ao entardecer. DiePhilosophie kommt in der Dämmerung, diz Hegel.

Para Ngoenha porém, e desta feita seguindo de perto as pegadasde Marx, a filosofia deve ser interventiva: a filosofia não só deveinterpretar o Mundo — o que Hegel já teria feito — mas ela devesobretudo transformar o Mundo procurando oferecer aos homens asmelhores alternativas ao alcance para interpretar e para agir sobre asua própria História. Isto equivale dizer que um filósofo digno de talnome deve sempre perguntar-se sobre o seu papel diante dos proces-sos nacionais e continentais de África e do mundo. Ngoenha defende ointervencionismo do filósofo no debate nacional de tal forma quechega a escrever: «digo muitas vezes que lamento ter nascido tarde enão poder ter aderido naquela luta [de libertação nacional deMoçambique] que continua nos meus olhos justa».

Ao escrever Os Tempos da Filosofia Ngoenha tem como intençãodesafiar aos intelectuais a trazerem suas reflexões sobre as questõesfundamentais relativamente ao «novo» sentido que pode ter hoje«lutar pela liberdade» num quadro em que todos os países africanosestão politicamente livres e suposto estarem a construir a democracia.Ele pergunta-se: Como devemos militar e lutar por este sonho deliberdade? Quais são as nossas armas e quem são hoje os inimigos daliberdade? Quais são os constrangimentos de hoje à liberdade dosafricanos e qual é o papel da filosofia na maximização das liberdadesdemocráticas dos indivíduos e dos povos assim como na sua participa-ção política?

Para Ngoenha, a filosofia africana é chamada a mostrar as luzesque iluminem o caminho dos povos africanos para a maximização doscampos das suas liberdades políticas, sociais e económicas. Aliás esegundo ele, se há uma filosofia que desde o seu surgimento temcomo sua essência a «busca da liberdade», esta é a filosofia africana; étanto assim que Ngoenha declara que ela sempre foi marcada por umparadigma libertário. Vejamos nas suas próprias palavras:

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«Se existe um substracto filosófico que está na origem axiológicade Moçambique é, sem dúvida, a busca da liberdade. Aliás, abusca da liberdade caracteriza a história de África no últimoséculo. Se quisermos ser mais exaustivos, diremos que desde asua criação-invenção (para parafrasear Mudimbe), através de umprocesso de apropriação identitária geneticamente exógena, aÁfrica, nascida nas diásporas, caracteriza a sua existência pelabusca da liberdade.» (Ngoenha 2005, 34)

Com estas frases, Ngoenha quer transformar a condição da exis-tência da africanidade num problema filosófico. Ou seja, ele sugere-nosabordar a condição de existência dos africanos hoje a partir de numaperspectiva filosófica. Isto significa abordar as questões intrínsecasque impedem aos africanos o gozo das suas liberdades fundamentaisporque, para Ngoenha, «o valor máximo que deve orientar as nossasacções [enquanto filósofos] é a liberdade».

Ele explica o que denomina por «paradigma libertário» nosseguintes modos: «O substrato filosófico do pensamento africano é,sem dúvida, a busca da liberdade, devido à situação categorial de opri-mido/escravo/colonizado/subdesenvolvido na qual os povos africa-nos se encontram a seguir ao encontro/choque com o ocidente [...]».(Ngoenha 2005,74)

E mais adiante, no mesmo livro, Ngoenha volta a precisar maiseste seu pensamento:

«As diatribes da história africana, as vicissitudes existenciais pri-meiro e do pensamento em seguida, deram à política africana,mas também à sua filosofia um cunho muito particular a que euchamo de libertário [destaque meu]. A natureza dos estados afri-canos (se quisermos ir mais longe diremos negros), quer sejamos da Serra Leoa e da Libéria, primeiro, e depois, os do Gana eCongo são, na essência, libertários: contra a escravatura primeiroe contra o colonialismo em seguida, aos quais durante séculos osnegros estiveram submetidos. A filosofia africana emerge destefundo comum de busca de liberdade. Se existe um paradigma[...] do pensamento e da filosofia africanos como eles se desdo-braram historicamente, esse paradigma chama-se a busca da

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liberdade. Não de uma liberdade metafísica ou moral, mas deuma liberdade política. Não podemos pensar a África nem sob oponto de vista político, nem filosófico perdendo de vista o para-digma libertário que deve ser a referência e o critério de julga-mento das nossas lucubrações intelectuais e das nossas opçõespolíticas.» (Ngoenha 2005, 75)

Ngoenha radicaliza esta sua proposta de paradigma do pensa-mento africano propondo que a «busca da liberdade» seja o elementoou critério avaliador sobre a pertinência das reflexões filosóficas nocontexto africano hoje; ou seja, qualquer lucubração de natureza filo-sófica deve ser julgada como tal a partir da conclusão sobre em quemedida estas reflexões filosóficas «alargam» ou não o campo da liber-dade dos africanos. Por isso Ngoenha quase que ‘obriga’ a todo o filó-sofo africano que se quer dignar deste nome a abordar assuntosrelacionados com a construção da democracia no continente africanoe no mundo. Ele afirma:

«As nossas reflexões e opções em torno do liberalismo e dademocracia devem ser subordinadas a esta busca secular da liber-dade. Devem ser analisadas não em função da dinâmica mundial(mesmo se não a podemos ignorar), mas subordinadas à nossabusca secular e histórica. Só na medida em que um regime políti-co, um sistema económico, colaboram para incrementar a esferaparadigmática da nossa busca histórica é que eles podem ser ava-liadas positivamente.» (Ngoenha 2005, 75 p.)

Pensamos assim que o singular em Ngoenha é o facto de ter ele-vado a busca da liberdade como o valor mais alto do que-fazer filo -sófico no contexto do nosso continente africano e nos contextospar ticulares nacionais. Em nosso entender, ao estabelecer uma espé-cie de criteologia deste género para a avaliação do que é ou o quedeve ser uma reflexão filosófica africana, Ngoenha, para além de radi-calizar o critério, também politiza-o. O que ele de facto faz é submetera toda uma empresa filosófica na história dos africanos e hoje ao queele chama de «valor intrínseco» do filosofar, ou seja, o valor da liber-dade. Uma causa muito nobre, mas precisa de ser ainda reenchida de

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conteúdos que respondam aos problemas filosóficos colocados pordiversos referenciais da auto-inscrição dos próprios filósofos africanosna história do pensamento filosófico do seu continente.

Estando parcialmente de acordo com o critério «busca da liber-dade» como condição básica e primária da busca filosófica no contex-to africano sugerido por Ngoenha, vamos, em diante, responder a estedesafio alargando o campo das liberdades necessárias à filosofia africa-na tornando frutíferas as preocupações sugeridas pelos referenciais daobjectivação (etnofilosofias e etnociências) e pelos referenciais da sub-jectivação (afrocentricidade e ubuntuismo).

As preocupações sugeridas pelos referenciais de objectivação e desubjectivação precisam de respostas elaboradas a partir de uma pers-pectiva do paradigma libertário. Estas preocupações são intrínsecas àprópria filosofia africana.

Encontramos filosofia por trás do essencialismo da ontologiacomo a de Tempels? Ou a filosofia africana deve continuar presa àbusca ontológica para afirmar a sua identidade especial como nos ésugerido pelo ubuntuismo? Ou vamos buscar a filosofia por trás dasuposta extrema religiosidade dos africanos, como nos propõe Mbitie, como parece sugerir o nosso colega Manuel Moto com o termo«teologia filosófica» (Cfr. Moto 2008,183pp.)? É uma exigência exis-tencial da própria filosofia africana estar presa às religiões africanas eimportadas? Será que a filosofia não pode existir, melhor libertar-seda religião? Estaremos condenados, enquanto africanos, a procurarfilosofia por trás dos mitos, provérbios, hábitos e costumes dos povose sábios locais? O filosófico africano só poderá advir dos mitos e pro-vérbios não importando se o seu conteúdo é uma continuidade ouuma ruptura com o mito? Teremos filosofia a partir do escrutínio dosconceitos «filosóficos» em línguas vernaculares segundo o queKagamé nos parece querer sugerir? Ou ainda podemos falar de umafilosofia africana que nascerá da missão platónica de transcrever osdizeres dos chamados «sábios filosóficos» como Oruka queria?

Pensamos que, ao mesmo tempo que a filosofia procura revelar asfronteiras às liberdades políticas dos cidadãos nacionais e africanos(como Ngoenha sugere), ela mesma deve, simultaneamente, combateros constrangimentos internos (no interior da própria filosofia) à sua

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própria liberdade. O combate contra os constrangimentos à sua própria liberdade vai permitir que a filosofia africana esteja prontapara o exercício da intersubjectivação. E é na busca destas liberdadesintrínsecas à própria filosofia africana que pensamos alargar e apro-fundar o desafio colocado pelo paradigma libertário da filosofia. Istoleva-nos às cinco liberdades intrínsecas que condicionam a existênciade uma filosofia africana. Para ser mais exacto, são liberdades quecondicionam a existência de uma filosofia crítica africana.

Comecemos pela primeira: a necessidade da filosofia africana liber-tar-se do essencialismo ou do unanimismo (como Hountondji chama àtendência das etnofilosofias buscarem a essência do pensamento colecti-vo africano). Com efeito, o primeiro passo libertário da filosofia africanaé libertar-se a si mesma da propensão de tender a dedicar-se a assuntosque as seguintes frases nos sugerem: «os afri canos pensam assim», «osyoruba acreditam que…», «a essência da ontologia dos sena/ronga//macua é esta», «os bantu acreditam que…», etc. A filosofia deve man-ter-se vigilante a este tipo de busca filosófica onde uma comunidadeganha a capacidade de pensar, o que é filosoficamente uma aberração. É certo que um colectivo pode agir de certa forma e essa sua acçãocoordenada ser informada por certos hábitos e costumes, certas crençascolectivas e mesmo certos ideais políticos comunitários. O problema daetnofilosofia reside, no fundo, no facto de não ter conseguido isolar aacção ou as acções coordenadas do pensamento individual dos membrosde uma determinada comunidade linguística ou territorial. Por suposta-mente ou realmente um grupo de pessoas comungar os mesmos hábi-tos tradicionais ou crenças religiosas não advém daí que todos elespensam da mesma forma. Em cada grupo e em cada situação há semprevozes diversas ou mesmo críticas à forma como as coisas são feitas.Mesmo os «velhos» supostos de estarem em condições de orientar certas cerimónias e/ou ritos de iniciação, religiosos, familiares, etc.manifestam discordâncias nas suas interpretações sobre os mesmosfenómenos e processos. De outra forma não se justificariam os «lon-gos» debates que antecedem o início de certas cerimónias. De facto, ounanimismo existe somente na cabeça do (etno)filósofo.

Hountondji tem razão ao querer libertar a filosofia do seu passa-do e olhar para a filosofia em termos de «projecto futuro», tal comoNgoenha faz com a sua «missão futuro» da filosofia. O essencialismo

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só amarra a filosofia a um passado idílico, sobretudo se esse passadonão for desenterrado somente na medida em que ele apresenta solu-ções para os problemas modernos ou encerra alternativas válidas depensar a projecção de uma utopia social. Se encontrarmos no passadofórmulas para melhorar e alargar o debate político entre os moçambi-canos, ou entre os africanos em geral, pois vejamos como aplicar estasmesmas fórmulas no aprofundamento das nossas jovens democracias;se encontrarmos na tradição ou nas culturas locais formas efectivasde comunicação para a prevenção de doenças como a malária, o SIDA,as diarreias, etc. pensemos pois em como, usando tecnologias moder-nas de comunicação, podemos melhorar essas formas locais de comu-nicação para fazer chegar a mensagem de forma mais clara paramudar o comportamento das pessoas; se estivermos de acordo que osvalores tradicionais nas comunidades conduzem à situações em que aspessoas são mais solidárias, mais respeitosas, mais humanas, pois pen-semos então o que significa usar estes mesmos valores como substra-to para desenhar as nossas instituições políticas de forma maissolidária, mais humana e mais justa; se viver na palhota sem acesso àágua canalizada ou potável, sem energia, sem divisões que garantam aprivacidade individual, etc. é um atributo da pobreza, não chamemosentão «pobre» à arquitectura africana também, ou seja, «modernize-mos a palhota» mantendo a forma, melhorando as condições de vidadentro da ordem arquitectónica que nos é sugerida pela tradição;também podemos pensar em modernizar os nossos padrões estéticosa partir das interessantes «descobertas» da etnogeometria, dos pa -drões nos cestos e nas esteiras tradicionais; há muitos outros exem-plos que se podem dar para demonstrar como devemos olhar para astradições, desenvolvê-las sem cair no essencialismo ou no unanimis-mo, ou melhor, libertando-nos da tentação ao essencialismo que sejacego ao projecto futuro intrínseco da filosofia.

Passemos para a segunda dimensão da qual a filosofia africanadeve-se livrar: a religião. Mbiti, como vimos, propõe que vejamos areligião em África como estando intricada num conjunto de práticas enão com o que está escrito nos papéis em forma de doutrina. A reli-gião, segundo ele, está escrita nos corações, nas mentes, na orali da -de e nos rituais das pessoas. Consequentemente, os nossos padres em África são os fazedores da chuva, são os mestres-de-cerimónias,

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confundem-se com os reis, enfim, são os detentores de saberes espe-ciais nas aldeias. O africano está assim «condenado» a ser religiosoporque, sendo a religião um conjunto de práticas intricadas natural-mente em todas as actividades do quotidiano, não há como o africanopoder escapar dessas actividades.

Entretanto se, segundo Mbiti, a filosofia africana deve procurar-se por trás da religiosidade naturalista do homem africano, resulta daíque para ele a filosofia reduz-se às reflexões sobre o significado e osentido destas mesmas práticas, reflexões estas que passam necessa-riamente por ser informadas pela religião. Nesta ordem de ideias, atarefa da filosofia segundo Mbiti nos propõe seria, primeiro, descreveras práticas religiosas dos homens africanos e, segundo, interpretarestes mesmos a partir da visão religiosa dos africanos.

Porém é o mérito de Mbiti que também o condena. De facto, oseu mérito foi o de procurar relacionar, ou melhor explicar, a filosofiaa partir duma esfera fundamental cultural humana que é a religião;neste sentido constitui um mérito, porque não busca uma essênciaontológica inventada como Tempels o fez. Mas ao mesmo tempoencontramos em Mbiti uma confusão grande entre o conceito de reli-gião, suas práticas e justificações das mesmas e o conceito de filosofiacomo reflexão crítica sobre os factos e práticas.

A filosofia africana não deve estar presa às profecias religiosas.Como sublinha Ngoenha no livro Das Liberdades às Independências, seadoptarmos uma visão futurista, a religião faz profecia e a filosofiautopia. Isto significa que a filosofia deve-se «libertar» da religião paraque a própria filosofia não se veja na contingência de espalhar profe-cias e se concentre em elaborar utopias.

A filosofia africana deve libertar-se de ser considerada africanapelo facto de estar a debater com muita insistência sobre a tradição.Ela, enquanto filosofia, deve tratar de questionar assuntos; enquantoafricana deve tratar assuntos que dizem respeito (mas que não se limi-tam) à África. Nós pensamos que já é momento para a filosofia africa-na libertar-se a si mesma do debate tradicionalista. O debate tradi cio-nalista é aquele que tende a mistificar em vez de desmistificar, tende aidolatrar os hábitos e costumes tradicionais, em vez de questionar acontemporaneidade dos valores que estariam no seu substrato; enfim,é um debate poluído pelo misticismo. Para a filosofia africana avançar

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um pouco mais na sua própria liberdade (porque está presa ao debatetradicional) ela deve acender o fogo libertário interno que queime osmitos que a prendem ao tradicionalismo e assim poder concentrar-sena busca de respostas a assuntos que dizem respeito ao futuro.

Quando falamos da filosofia africana, coloca-se sempre o proble-ma do papel da oratura dos sábios africanos para a criação de um sis-tema filosófico. Quando falamos de oratura ou, mais precisamente defilosofia que é praticada de forma oral, referimo-nos à pratica da filo-sofia que está situada nos espaços intersubjectivos dos sábios africa-nos. Historicamente este espaço refere-se ao pensamento das pessoasque vivem nas zonas rurais e que não possuem uma escolarização for-mal e moderna e, por consequência, não têm a possibilidade de escre-ver o seu texto. No entanto, embora não o escrevendo, esses sábiostêm uma palavra a dizer sobre diferentes questões que se levantamem torno do sentido da vida. E dizem-na em forma de oratura.

Para a compreensão mais clara sobre a distinção entre o sábio e ofilósofo recorremos à famosa distinção feita por Kant, quando afirmaque Wissenschaft ist organisiertes Wissen, Weissheit ist organisiertes Leben,ou seja, ciência é conhecimento organizado, enquanto sabedoria é vidaorganizada. Aqui estão claros os pontos do cruzamento e do distan-ciamento entre o cientista e o sábio. O ponto do encontro é a «organi-zação», ou seja, ambos pensam a vida ou o conhecimento de umaforma estruturada. A sua preocupação é organizar a vida e o conheci-mento (sobre ela). O que os distancia é o objecto da sua organização:enquanto um está preocupado pelo conhecimento o outro está maispreocupado pela vida. De facto surge aqui uma questão, nomeada-mente, a de saber se poderá existir conhecimento que, em primeiralinha e em última instância, não se preocupe pela vida humana. Assim,podemos aproveitar Kant para definir que um sábio é aquele que sepreocupa por conhecer a melhor forma de organizar a vida de umadeterminada comunidade. Quando falamos de «organizar a vida» nãoquer dizer que o seu conhecimento se limite ao tema vida. Muitasvezes ele vai para além disso. Mas o termo organizar a vida quer sig-nificar que o sábio faz da vida o objecto principal do seu pensamentonão se limitando, porém, a parar por aí. O que, de facto, pode distin-guir estes sábios dos filósofos profissionais é o facto de eles usaremmaioritariamente a oratura para se comunicarem.

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Em torno da problemática da oratura se tem levantado muitasquestões a saber: os dizeres orais ou provérbios africanos podem serconsiderados filosofia ou não? Ou é filosofia o conjunto de textos dainterpretação filosófica da oratura que deve fazer parte do corpus dafilosofia africana? Ou ainda ambas? Qual é o papel do filósofo africanoprofissional perante estes dizeres? Transcrevê-los ao estilo deGriaule? Interpretá-los com base na ordem discursiva formalmenteestabelecida da filosofia como uma disciplina académica, seguindo,desta feita, as pegadas de Tempels e Kagamé? Ou entrarmos num diá-logo intersubjectivo entre os sábios e os filósofos profissionais?

Por isso, a terceira dimensão libertária que a filosofia africanadeve empreender consigo mesma diz respeito à libertação do debatesobre a oratura nas culturas africanas e sobre o seu papel. Em relaçãoa isto, os filósofos africanos têm tido dois pressupostos: por um ladofilósofos africanos que defendem que o debate filosófico pode ser feitosomente ou fundamentalmente na base de textos escritos. Re cor -demos aqui a sua definição de filosofia como um «conjunto de textos»escritos com a intenção de serem filosóficos por parte do autor e quesejam aceites ou classificados pelos outros como legítimos para iremparar nas prateleiras da filosofia. Por outro temos filósofos africanosque bem entendem que a «verdadeira» filosofia africana está «escon-dida» por trás dos provérbios, dizeres, contos, lendas africanos. E que,portanto, a verdadeira filosofia está na oratura; daí que um exercícioimportante de resgate da filosofia escondida ou implícita deveria serfeito pelos filósofos profissionais. Este exercício de resgate tem sidofeito de duas formas: através de uma transcrição textual de entrevis-tas (caso do velho Ogotommêli feita por Grioule) ou então através deum exercício de interpretação daquilo que julgamos haver nessas culturas que tenha um sentido filosófico. Este último é o caso deTempels, Kagamé e outros, cunhados como sendo da corrente etnofi-losófica.

Embora achando que, de facto, Hountondji teve um ponto impor-tante ao insistir no texto escrito, achamos porém que esta insistênciatem a ver com a forma de filosofar, sem dizer muito o conteúdo doacto de filosofar. Sobre os conteúdos pensamos encontrar melhorespropostas e melhor oportunidade de genuinidade se adoptarmos umainclinação da etnofilosofia. Assim, o filósofo profissional africano,

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quanto a nós, para elaborar o seu sistema, deve inspirar-se nos textosda oralidade cultural presentes nos dizeres, sem porém limitar-se aeles. Mais, a parte da oralidade que deverá ser o ponto de partida dofilósofo que pretenda desenvolver a filosofia africana, deverá ser aque-la que expressa um sentido crítico em relação à situação e não aquelaque somente reproduz. Mais ainda, o filósofo profissional deverá sercapaz de chamar ao debate o detentor dos saberes para que ele pró-prio seja capaz de expressar os seus argumentos. Ou seja, o filósofoprofissional tem, quanto a nós, uma dupla responsabilidade (ou umduplo sentido hermenêutico) em relação aos saberes filosóficos tradi-cionais: uma transcrição interpretativa desses saberes com base nocânone e métodos analíticos da própria filosofia (o que acarreta certosmomentos de objectivação) e criação fóruns de disseminação dossaberes onde os detentores dos saberes filosóficos tradicionais podemmostrar a sua argumentação, inclusive ter oportunidade de desenvol-vê-la. Chamaremos a estes fóruns espaços de intersubjectivação.

O grande debate aqui e que faz parte da filosofia africana é aforma como esta se vai elevar (libertar-se) para acima do mito da ora-lidade. E neste sentido a Sage Philosophy, tal e qual foi formulada porOdera Oruka, constitui um bom exemplo que podemos chamar àmemória aqui.

Segundo Oruka, a palavra Sage Philosophy refere-se ao «homemou mulher sábio». Esta mulher ou homem podem possuir, segundoainda Oruka, uma oralidade filosófica que pode ser feita mesmo poruma pessoa que não tem noção de Filosofia e que nunca viu a porta daescola. Com base no carácter de expressão oral do pensamento africa-no, os europeus teriam visto os africanos como não sendo capazes defilosofar. Uma vez que a Filosofia requer rigor, pensamento racional,os europeus, especialmente no tempo colonial, pensavam que os afri-canos não eram capazes de criar um sistema filosófico. Oruka fazmenção ao livro Not yet Uhuru, publicado em 1967, onde OgindaOdinga, conta que encontrara-se com um europeu que lhe dissera:«Olha Odinga, a tua cabeça não está feita para pensar; ela só servepara cumprir ordens». Isto é um exemplo da atitude herdada e que nofundo ainda mantemos; esta atitude explica, em parte, a maneiracomo tem sido encarado o papel da oralidade pela maioria dos filóso-fos profissionais africanos ligados ao ensino nas universidades.

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Odera Oruka, considerado como sendo o fundador desta correntefilosófica em África, defende que, nestes termos, embora a oralidadetenha existido há muito tempo em África, ela é hoje encarada, espe-cialmente no seio dos filósofos africanos, de uma «nova» forma. O queimpulsionou esta nova forma de encarar mais seriamente estes sabe-res nos anos 1990 foi sem dúvida a conferência sobre o meio ambienteno Brasil em 1992 onde o conhecimento dos chamados «povos indíge-nas» foi objecto do interesse do mundo, particularmente entre osinvestigadores da filosofia, na investigação tecnológica e nas ciênciasnaturais. A partir daí os investigadores interessam-se em saber oconhecimento dos «povos indígenas» em várias áreas que abarcam osseus costumes, as suas tecnologias, a sua ciência entre outras. O que énovo na sage philosophy é a sua ênfase na verdade e na crítica contidano saberes tradicionais destes homens e mulheres que não foram àescola e que se podem encontrar espalhados no campo e nas cidadespor toda a África e em outras partes do Mundo. Embora a investiga-ção tenha iniciado com Oruka no Quénia, hoje a filosofia oral é tidacomo uma das fontes principais para uma filosofia africana.

Nas suas investigações sobre a oralidade filosófica, Oruka selec-cionou aquelas pessoas sábias que nunca tinham frequentado escolasmodernas formais porque ele achava que o pensamento expresso porelas não sofrera nenhuma influência europeia e assim se poder defen-der o seu pensamento como sendo genuinamente africano.

Antes do desenvolvimento da sage philosophy em África, o estudoe a pesquisa sobre o pensamento africano era realizado segundo osmodelos de análise e conceitos europeus. Agora com a emergênciados projectos de pesquisa nesta área, cada vez mais filósofos profis-sionais africanos chegam à conclusão que «de facto aqui está umexemplo típico da contribuição africana para a Filosofia». Oruka,defendendo esta forma de praticar filosofia, sustenta que «as mesmaspessoas quando se confrontam com os conteúdos da sage philosophynotam que ela não é menos filosófica, menos racional ou ainda menosprofunda do que a filosofia clássica europeia que antes tinham apren-dido».

Nos nossos contactos com os filósofos profissionais ainda nota-mos a presença de uma certa «desconfiança» que têm para com a ora-lidade como fonte para o seu empreendimento filosófico. Esse temor

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explica-se de duas formas: por um lado, porque o seu treino própriocomo profissionais de filosofia não foi feito na base de textos oraistradicionais. Portanto explica-se aí uma certa atitude de afastamento.Por outro lado, a perspectiva de serem chamados como novos etnofi-lósofos parece ser de pouco agrado. Isto só mostra que a «batalha»para libertar os profissionais de filosofia africana do mito da oralidadeainda é muito longa. O conforto de argumentar com textos escritossobrepõe-se, hoje, ao desconforto de ter de aprender filosofia com umsábio que não foi à escola e que fala uma língua que o nosso filósofoprofissional não domina.

Mas o que é um sábio que deve ser o «colega» de debate para o filó-sofo profissional? O sábio é uma pessoa geralmente idosa que detémum conjunto de conhecimentos que o autoriza a emitir juízos sobre overdadeiro, sobre a moralidade, sobre o estético e a espiritualidade nasua comunidade ou sobre a vida em geral; é uma pessoa que, usandoesta autoridade conferida pelos seus conhecimentos, geralmenteinfluencia naquilo que pode ser considerado certo ou errado, decente ouindecente, bom ou mau. É uma pessoa que, embora na sua linguagemfale em nome de todos, como filósofos profissionais somos capazes denotar que, o que diz carrega uma dose muito grande de pensamentosautónomos. Num sábio, embora note-se um certo apego pelos provér-bios, lendas e contos na sua oratura, é possível aperce ber-se da existên-cia uma certa independência de espírito nas suas lu cubrações. O factode o sábio recorrer aos provérbios, lendas, contos e a «frases feitas»,deve ser visto pelo filósofo profissional como um ímpeto igual ao seu de«citar» aos colegas para fundamentar as suas ideias. A diferença é queaquele não cita nomes, mas tão-somente pensamento.

Portanto, a recorrência às lendas, provérbios, contos e outras for-mas de oratura que os sábios muitas vezes fazem, não se trata nadamenos e nada mais que do mesmo espírito e atitude filosóficos queempurra este para a busca da fundamentação das coisas.

O saber do sábio é tão abrangente que atinge assuntos da espi -ritualidade, da religiosidade, da ética, da estética, da medicina mastambém das relações públicas na condução de cerimónias. E esseacumu lar de diversos conhecimentos numa só pessoa só é possível seesta mesma pessoa é devota pelo saber e pela reflexão, tal e qual comoo filósofo profissional. Ou ainda, como geralmente sucede, o sábio

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pode ser mais devoto na busca desinteressada do saber que o nossofilósofo profissional africano.

A questão «espíritos» na filosofia africana deve ocupar, em segui-da, a nossa atenção. E isto por várias razões. Uma delas é o facto deque, quando falamos da filosofia africana, muitas vezes o adjectivo«africana» é conotado com um determinado grau de tradicionalismo,em alguns casos de curandeirismo, ou pelo menos de não imaginar-mos um filósofo africano que não tenha dedicado uma parte das suasenergias intelectuais a lidar com os médicos tradicionais, líderes decerimónias religiosas tradicionais, fazedores de chuvas, mágicos eoutros nomes diminutivos que os colonialistas foram criando paradesignar aos nossos especialistas de vários domínios e campos dosaber. Parece que o mundo fora e dentro da África ainda não se liber-tou de se ver tentado a conotar filosofia africana com um certo graude obrigação a que os filósofos deste continente dediquem uma parteconsiderável do seu empreendimento filosófico com questões ligadasdirecta ou indirectamente ao espiritualismo.

Você acredita que haja espíritos? parece ser uma pergunta publica-mente (e por decência) sempre não-feita quando falamos da possibili-dade da existência duma filosofia africana. Podemos falar de filosofiaafricana sem algum dia termos de responder esta pergunta (mesmoque não a façam de forma explícita, e sim implícita)?

A esta questão Oruka dá uma resposta interessante quando con-sidera que ele estaria ainda à busca de razões suficientes da possívelcausa porque é que ele não deveria acreditar nos espíritos: «talvezfarias um serviço brilhante para as pessoas se me desses a razão ourazões porque eu não deveria acreditar neles!» (Oruka, 1997,215). Nofundo, esta resposta (que não o é) visa «libertar» os filósofos profis-sionais africanos que têm um certo temor em enfrentarem questõesda religião, da metafísica e sobretudo de espiritualidade; de sentirem-se envergonhados quando são questionados sobre esses assuntos. Defacto, enquanto filósofos africanos, não somos obrigados, de cada vezque abrirmos a boca, a falar de espíritos e dos nossos antepassados. E nem seria isso desejável.

Odera Oruka pensa que é neste ponto (ocupar-se com os saberesancestrais e espiritualistas) em que a filosofia africana institucionali-zada deve vislumbrar mais oportunidade do que embaraços de si

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mesma. Para ele o filósofo africano não deveria perder o seu tempo eenergias tentando encontrar uma boa razão para justificar a sua recu-sa em pronunciar-se sobre aspectos do espírito. Pelo contrário, Orukano quadro do seu projecto da sage philosophy, vê isso como uma opor-tunidade de se desenvolver este ramo específico da filosofia, nomeada-mente a que trata de uma filosofia «sobrenatural».

Para nós, a espiritualidade constitui um agenciamento das acçõeshumanas às entidades metafísicas. Como tal, a espiritualidade nãodeixa de ser um discurso construído de justificação e, em algunsmomentos, de fundamentação dessas mesmas acções. No entanto,falar de «ter sido atacado pelos espíritos» no contexto africano pareceter uma conotação negativa, uma coisa não boa para o ser humanoporque desestabiliza o ego. Esta tendência de interpretação é, porém,contrária à religião cristã que considera o espírito como sendo«santo».

É possível construir uma filosofia verdadeiramente africana,usando como veículo uma língua originariamente não africana?Poderíamos imaginar um Sócrates ou um Platão a tratar os problemasda democracia grega numa outra língua? Se filosofia é criar conceitos(Deleuze & Guatari), ou resumir o tempo no conceito (Hegel), ouainda é interpretar para transformar o mundo (Marx), estará o filóso-fo africano a sê-lo pensando, escrevendo ou orando numa línguaimportada? Embora estas questões sejam importantes e precisem derespostas claras por parte da filosofia que se pretende africana, emnossa opinião, elas não devem ocupar um lugar central e nem os filó-sofos deveriam continuar a perder muita energia com elas. De facto,elas são de natureza elitista, isto é, são angústias que revelam os pro-blemas do filósofo africano (e não da filosofia em si) pelo facto de esteter tido uma educação filosófica formal em língua de origem europeia.Por este facto, o filósofo africano profissional não vai poder apreendero tempo no conceito, nem vai puder criar conceitos em nenhuma lín-gua africana. No entanto o filósofo não vai precisar necessariamentede resolver estes problemas para que ele possa interpretar e transfor-mar o mundo em que vive, como pretende Karl Marx.

Assim, chegamos à quarta dimensão libertária intrínseca à pró-pria filosofia africana: trata-se do problema linguístico. Este problemalinguístico parece ser o que a corrente hermenêutica da filosofia

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africana quer pôr em frente aos nossos olhos. Como dissemos, na mar-cha para a sua própria libertação, a filosofia africana não deve perdermuitas energias com o problema linguístico, não que este não sejaimportante para a sua libertação. Heiddeger já teria dito que a lingua-gem é a casa do homem, para destacar a importância não da línguamas da forma como a usamos para o que-fazer da filosofia. Isto querdizer que é a palavra que é fundamental para que se possa ter o direitode morar numa casa filosófica. Mas, achamos nós, o acto de filosofar,isto é, o acto de submeter a realidade ao tribunal da crítica, é indepen-dente da língua em que o fazemos. O que interessa, como Heiddegerdiz, é a linguagem não a língua em si.

Pelo contrário, a filosofia africana deve libertar-se e libertar osafricanos da fixação no problema linguístico como condicionante parao desenvolvimento político, social, económico e intelectual do conti-nente. Ao insistir neste problema, a filosofia africana está a recalcarum problema exterior ao continente e a si mesma, enquanto disci -plina.

Pois, é certo que a língua foi, por exemplo, determinante para aformação e unificação duma Alemanha fragmentada em feudos. Foi apartir de Martinho Lutero, traduzindo a Bíblia usando o Hochdeutsch,que a nação alemã se unificou, isto é, que ela se reconheceu como tal.Antes, a Alemanha era um conglomerado de feudos isolados que fala-va e escrevia em dialectos diferentes. É graças a esta unificação lin-guística que também se passa a reconhecer todo o património culturale intelectual anterior e posterior à tradução da Bíblia, como perten-cendo unicamente à «nação alemã». A criação de uma única língua,neste contexto, foi importante para a comunicação e a interacçãoentre os intelectuais que outrora se consideravam de diferentes ori-gens e convocá-los para um debate nacional. Assim, tivemos umaacção unificadora da língua. Em outras palavras, ela foi a base para aintersubjectivação no seio da sociedade alemã posterior a Lutero.

Mas temos também, em África, exemplos contrários, embora ofenómeno seja o mesmo. Os missionários europeus, quando chegaramnas diferentes regiões da África (e em muitos casos ainda hoje), o seu«primeiro» acto foi traduzir a Bíblia para as diferentes línguas locais.Num primeiro momento, este acto parece ter sido tomado com oobjectivo de trazer a mensagem de Deus para mais perto dos crentes.

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Também foi esta a justificação de Martinho Lutero. No contexto afri-cano, o resultado também foi construir proto-nações a partir do queeles próprios chamaram por «tribos» ou «etnias». É este o caso, porexemplo, de Henri Junod que literalmente cria a tribo ou etnia tsongana região sul de África ao traduzir a Bíblia para uma língua que elepróprio criativamente chamou de tsonga ou tonga (veja Ngoenha naobra Axiologia e Educação) A partir destes escritos (que incluem tam-bém cadernos de cânticos religiosos e livrinhos de natureza científica,sobretudo nos campos da biologia, botânica, geografia) primeiro oscrentes e depois os «nacionalistas» começaram a reconhecer-se comosendo da chamada etnia tsonga.

Enfim, para sermos claros, a insistência de Asante sobre a necessi-dade de se desenvolver uma filosofia africana baseada na língua ou naslínguas africanas é simplesmente um absurdo. Não é a língua senão asformas como fazemos o uso da linguagem o ponto mais importantepara a intersubjectivação. Como aliás já se demonstrou, há muitasobras que estão nas prateleiras da filosofia africana nas diferentesbibliotecas e que estão escritas tanto em português como também eminglês, francês ou numa outra língua qualquer de origem europeia.

Referencial VI: A Interculturalidade

Antes de prosseguir com esta segunda parte da intersubjectiva-ção, convém fixarmos dois reparos, nomeadamente sobre o método esobre o conceito. Tal como fizemos no referencial da liberdade, vamosabordar a interculturalidade usando o método de crítica ao interior daprópria filosofia. Ou seja, vamos analisar os factores ou elementos quesão os constrangimentos intrínsecos e extrínsecos à abertura inter-cultural da própria filosofia africana.

Relativamente ao conceito de «cultura», como já tivemos ocasiãode dizer acima, não vai aqui ser usado na sua versão antropológica.Ou seja, cultura aqui não é entendida a partir de bases antropológicaspositivistas como língua, religião, hábitos e costumes, contos, provér-bios, danças, etc. para definir uma região cultural. Esta definição seriarestrita demais para os nossos propósitos. Pelo contrário, cultura éentendida aqui como a «segunda natureza» humana, isto é, o processo

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da criação de formas de conhecimento, das técnicas e de formação dehabilidades que visam garantir que o ser homem possa viver, pro-criar-se e educar aos seus sucessores, enquanto seres humanos. En -ten dida desta maneira, a cultura é a experiência crítica que o homemfaz com a Natureza circundante e com os outros seres humanos esociedades.

Este prisma de definição da cultura serve para precisarmos maisa noção interculturalidade. A interculturalidade constitui o conjuntode atitudes e predisposições necessárias para um envolvimento mútuode dois ou mais sujeitos na troca das suas experiências subjectivas,críticas e por si vivenciadas (enquanto indivíduo ou grupos sociais)com os outros. Assim, é importante sublinhar que por interculturali-dade não entendemos um determinado estado fixo de relações, massim um processo de formação de atitudes e predisposições nos sujei-tos por forma a torná-los aptos para o debate entre as culturas.Todavia, para um diálogo intercultural podemos adoptar uma atitudefilosófica. Dussel escreve no texto Transmodernidade e Intercultura li -dade, texto este que escreve em resposta às posições de Fornet-Betancourt:

«O diálogo intercultural […] não é apenas, nem principalmente,um diálogo entre os apologistas de suas próprias culturas, queintentariam mostrar aos outros as virtudes e valores de sua pró-pria cultura. É, antes de tudo, o diálogo entre criadores críticosde sua própria cultura. […] Mas, também, não é sequer o diálo-go entre os críticos do ‘centro’ metropolitano com os críticos da‘periferia’ cultural. É, antes de tudo, um diálogo entre os ‘críticos daperiferia’, um diálogo intercultural Sul-Sul, antes de passar aodiálogo Sul-Norte.» (Dussel 2004, 199 p.)

Como pode ser facilmente notável, Dussel sustenta um conceitode cultura que é exactamente o que pretendemos evitar: o de limitar oconceito de cultura a uma perspectiva antropológica. Porque eleinclui esta categoria antropológica de cultura, quando diz que «não éapenas […] um diálogo entre os apologistas de suas próprias cultu-ras». Este trecho faz claramente alusão a línguas, religiões, ou outroselementos antropológicos quaisquer.

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Desta definição de interculturalidade interessa-nos, todavia asegunda parte, nomeadamente onde ele intersubjectiva a definição aotratar o diálogo intercultural como sendo «entre críticos». Destemodo torna-se claro que pegamos essa citação para fazer frutífero oaspecto que está na base da nossa definição de filosofia, ou seja, oaspecto da dimensão da «crítica», frisado por Dussel. Dussel inter-subjectiva o conceito de cultura ao salientar que se trata de um «diá-logo» entre os críticos. É todavia este aspecto que aqui vamosaproveitar para mostrar o que a filosofia profissional, após libertar-sedos seus constrangimentos intrínsecos referidos no ponto anterior(referencial libertário), e após libertar-se do que chamamos «debatetradicionalista», deve fazer para promover um diálogo intersubjectivoentre os «críticos» da filosofia africana profissional e os da filosofiatradicional, filosofia esta que circula na forma oral. E há muito traba-lho que a filosofia profissional pode e deve fazer.

A filosofia africana profissional tem a responsabilidade epistémi-ca de se abrir para o conjunto de saberes de natureza filosófica sugeri-das pelas tradições africanas. Esta abertura implica, sobretudo, que aprópria filosofia africana profissional deva pôr um ponto final ao mito,segundo o qual os sábios tradicionais passam a vida a idolatrar as tra-dições ou que são essencialmente e apenas guardiãs dos usos e doscostumes tradicionais não desenvolvendo, por consequência, compe-tências reflectivas e críticas em relação ao próprio acto do filosofar.Os filósofos profissionais africanos devem, pelo contrário, convencer-se que os seus colegas tradicionais são também críticos em relação àsua realidade natural, social e espiritual. Há exemplos que atestamisso. Oruka demonstrara como um dos sábios que investigara eramuito crítico em relação a algumas práticas rituais de iniciação e decomo, usando o seu sistema tradicional de justificação, defende aigualdade entre o homem e a mulher.

Quando falamos de responsabilidade epistémica queremos refe-rir-nos à necessidade e o dever que a filosofia africana profissionaltem em construir e, em muitos casos, inventar espaços de intersubjecti-vação nos quais os sábios das filosofias tradicionais possam fazer cir-cular e desenvolver as suas posições críticas e, sobretudo, as suasutopias sociais. Nesses espaços, eles deverão, portanto, poder ir paraalém de serem simples apologistas do direito costumeiro, dos hábitos

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e costumes, das crenças colectivas ou ainda de simples mestres-de-cerimónias. São espaços onde esses sábios deverão ser encorajados aarticular aquilo que chamamos o primeiro nível do exercício da críti-ca: aquela que é dirigida às próprias formas de interpretar a realidadesocial do seu próprio meio. Nesses espaços serão ouvidos os seusargumentos em relação às suas tradições, hábitos e valores. Mas nãopodemos esperar muito mais que isso, supomos. Provavelmente estessábios não poderão estar em condições ainda de passarem ao segundonível de crítica: trata-se do nível onde reflectem sobre os própriospressupostos teóricos, isto é, passarem para uma espécie de metateo-ria. Este, como veremos, será o trabalho dos filósofos profissionaisafricanos.

Porém, a própria filosofia africana profissional terá de fazer o seutrabalho de casa, antes de entrar num diálogo que pretende ser inter-subjectivo com os saberes tradicionais. Ela deve procurar esconjurar-se da tendência que tem em querer dominar, controlar, seleccionar,redistribuir e, enfim, impor as regras de jogo sobre aquilo que deveser considerado por saber filosófico nestes mesmos espaços. Esta é acondição para que ela mostre estar madura para a intersubjectivaçãonestes mesmos espaços.

Que significa, pois, esconjurar-se da necessidade de se impor?Significa que a filosofia africana profissional deve deixar de predeter-minar as condições pelas quais se produz um discurso para que sejaconsiderado como filosófico. Michael Foucault que passou quase todaa sua vida científica a analisar as diversas formas em que é feita a pro-dução do discurso numa sociedade, previne-nos sobre três formas nabase das quais um tipo de discurso exclui os outros concorrentes. Evamos servir-nos dessas formas que ele nos propõe para expor comoé que a filosofia africana profissional hoje exclui às formas discursivastradicionais, adiando assim a sua prontidão para um diálogo intersub-jectivo entre os críticos.

As três formas pelas quais um discurso exclui o outro da praçaou espaço de debate são a «interdição», a «oposição entre o racional eo louco» e a «oposição entre o verdadeiro e o falso» (Foucault 1971,10 pp.). Foucault considera estas três formas como sendo «procedi-mentos externos» porque funcionam como sistemas de exclusão emrelação aos outros. Para além desses, Foucault adiciona outras três

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formas que ele identifica como sendo «procedimentos internos» deexclusão que são o comentário, o autor e a disciplina.

Comecemos pelos três procedimentos externos dos quais a filo-sofia africana profissional deve esconjurar-se para que ela própriaesteja apta para o diálogo intersubjectivo com as sugestões do que-fazer filosófico vindas dos sábios. A forma elementar de exclusão queos filósofos africanos profissionais mais usam é a interdição, isto é,tirar o direito aos seus colegas sábios de dizerem tudo e em quaisquercircunstâncias; justifica-se que não é qualquer um que pode ser cien-tista e, por extensão, filósofo. Este, para subir ao grande palco dasinstituições de ensino e outras, para exercer o direito à palavra quepode ser classificada por filosófica, deve apresentar credenciais acadé-micas.

Hoje em dia, alguns destes sábios já são «autorizados» a apresen-tarem-se como «doutores» nos jornais onde anunciam, nas páginas depublicidades, o que são capazes de fazer (curar doenças de diversaordem, depressões, infertilidades, etc.). No entanto são interditos deentrarem nas instituições públicas (escolas, hospitais, tribunais, etc.),embora possam contribuir lá com o seu saber — alguns deles, diga-sede passagem. O sistema formal de qualificações não prevê equivalên-cias para as suas qualificações e nem os quadros nacionais profissio-nais prevêem as suas qualificações. Embora uma grande parte dasociedade recorra aos seus préstimos para resolver vários tipos deperturbações individuais e colectivas, esses sábios são «interditos», nalinguagem de Foucault, de aparecerem nos espaços públicos. É essa aforma mais elementar e simples de os excluir. Cada vez que caminha-mos de um âmbito tradicional para o formal, passando pelo informal,a grelha que serve de rede de interdições torna-se mais complexa,mais excludente em relação ao conteúdo do discurso tradicional e emrelação ao seu sujeito.

Existe uma segunda forma de exclusão do discurso consideradoperiférico ou tradicional. Trata-se da «oposição razão e loucura”, comoa chama Michael Foucault. «[O] louco é aquele cujo discurso nãopode circular como o dos outros», diz-nos o nosso autor. A sua pala-vra é muitas vezes considerada nula e não é acolhida, não tendo ver-dade nem importância. Os procedimentos instituídos encarregam-sede excluir a sua palavra, de ser suspeitada como possível blasfémia, de

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não ser escutada como sendo verdade; enfim, de ser considerada comopalavra de louco. Foucault diz que todo este discurso do louco nãodesaparece, mas continua a provocar «ruído». Por isso, diz ele, que éno teatro onde o louco apresenta-se e representa, pois aí tem a pos -sibilidade de representar o papel da verdade mascarada (Foucault1971, 11 p.).

Assim procede também o filósofo africano profissional. Criouprocedimentos para que a palavra do sábio tradicional fosse logorejeitada, mal ela seja proferida num espaço público. A filosofia profis-sional já criou rituais para declarar a maior parte do que vem da tra-dição como sendo «supersticioso», ou no mínimo suspeito. É umapalavra que somente ouve-se em surdina, às escondidas, ao cair danoite. Há um grande aparato profissional para não deixar que o sábiotradicional possa desenvolver o seu discurso ou para que caia no ridí-culo. Dois colegas meus (um de filosofia e outro da física, hoje douto-rados) contaram-me que quando manifestaram perante os seuspotenciais tutores a intenção de escreverem teses sobre África nocampo da etnofilosofia e da etnofísica, respectivamente, foram rejeita-dos com a explicação de que não se tratava de filosofia ou de ciência.Foram recomendados a esquecer aquela intenção de olharem para atradição como campo de estudos… pelo menos até que terminassemos seus graus universitários. Foram declarados «loucos» no sentidode Foucault!

Portanto, o que é encarado por «louco» não é só o sábio tradi -cional mas também todo aquele que, embora treinado formalmente,pretenda estudar questões ligadas à tradição. A filosofia africana aca -démica é «racional»; pelo contrário, a filosofia que emana dos sabe -res tradicionais é «irracional», é de loucos (no sentido de Foucaultempregamos este termo). No entanto, é o próprio filósofo profissionalque volta e meia pretende ouvir, em surdina, a palavra dos sábios datradição. Como o próprio Foucault diz, ao louco se lhe atribui «estra-nhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pré-anunciar ofuturo, o de ver com toda a ingenuidade aquilo que a sabedoria dosoutros não pode perceber». Não queremos com isto ser apologistas deque o saber tradicional diz-nos muito sobre o futuro. Dizemos simque ele é declarado «louco» antes mesmo de ele poder dizer qualquercoisa à filosofia profissional. É assim que são tratadas as áreas da

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medicina tradicional, a do direito costumeiro, a da filosofia e por aífora. Senão, qual é a universidade que lhes abriu as suas portas?

Há todavia uma terceira forma de exclusão do discurso periféricotradicional: a oposição entre o verdadeiro e o falso. Segundo Foucault(1971, 15), é nos séculos XVI e XVII, sobretudo na Inglater ra, onde secriam os critérios para a oposição entre o verdadeiro e o falso nasciências: «antecipando-se aos conteúdos actuais, desenham-se planosde objectos possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis». Foinesta altura que se impôs o critério da experiência laboratorial paraverificar ou falsificar o discurso científico.

Foucault acrescenta que a oposição entre a verdade e o falso ins-titucionaliza-se. É o suporte institucional que reforça todas as práti-cas e os procedimentos para encontrar e declarar a verdade. Para issoreforçam-se as instituições como sejam as escolas, o sistema de livros,o sistema editorial dos textos, as bibliotecas, os laboratórios, etc.

No caso da filosofia africana, e seguindo esta forma de proceder, aoratura (provérbios, contos, mitos, crenças colectivas, etc.) toma o lugardo falso. Para que ela seja considerada como verdadeira, deve ser escri-ta e ser submetida ao tribunal da lógica. Os argumentos tradicionaissão declarados, muitas vezes, pouco sólidos ou mesmo sem nexo.

Em suma, a interdição, a oposição entre o racional e o tradicionalmais a oposição entre o verdadeiro e o falso funcionam como mecanis-mos de exclusão do discurso filosófico tradicional; mais do que isso,fecham a filosofia africana académica ao diálogo intersubjectivo com asua própria possibilidade de existência. Esses são os procedimentosexternos da filosofia africana que fecham as suas portas à oratura tra-dicional africana.

Estes procedimentos virados para o exterior completam-se, noentanto, com os procedimentos intrínsecos ao próprio acto do que-fazer filosófico africano académico. São eles — e aqui recorremos àOrdem do Discurso de Michael Foucault — o «comentário», o «autor»e a classificação das «disciplinas».

Comecemos pelo comentário. O pressuposto do qual Foucaultparte para caracterizar o comentário como procedimento interno deexclusão é que todas as sociedades têm dois discursos: primeiro, estão«os discursos que se dizem ao correr dos dias e das trocas, e que

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passam com o acto mesmo que os pronunciou». Este é o tipo de dis-curso que é efémero, do dia-a-dia, do quotidiano ou de «narrativasmenores». Segundo, existem as «narrativas maiores» que são os dis-cursos que contam-se, repetem-se, propõem fórmulas e rituais pere-nes. São narrativas que «estão na origem de certo número de novosactos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles».Segundo Foucault, estes discursos podem ser textos fundadores reli-giosos ou jurídicos, podem ser também textos literários ou científicos.O característico destes discursos é, no entanto, que se recorre semprea eles para justificar ou legitimar o desenvolvimento de novos pensa-mentos na área que se escreve ou se diz. São narrativas ou discursosfundacionais.

Mais adiante Foucault (1971, 19) alerta-nos que esta diferencia-ção não é constante e nem absoluta, pois, muitas vezes alguns textosque porventura fizeram parte das narrativas maiores podem, de re -pente, confundir-se com os dos textos das narrativas menores. Porém,o facto de haver uma permuta de lugares ou, mais precisamente, deestatutos, ou ainda o facto de alguns deles desaparecerem, não signifi-ca que o «jogo» entre ambos deixa de existir. Permanecem sempretipos de discursos com funções diferentes. O que seria, entretanto ocomentário? Segundo Foucault, o comentário é aquele que permitedizer algo para além do próprio texto (fundador), mas com a condiçãode que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado (Idem, 21).Assim, o comentário é periférico, pertence ao efémero, à «sombra» (enão à «ideia») platónica.

Não será isso que se verifica na prática da filosofia institucionali-zada? Às narrativas maiores pertence todo o cânone da filosofia oci-dental (europeia e americana, mas sobretudo a europeia) e o discursodas filosofias tradicionais pertence às narrativas menores e toma afunção de comentários. Sem dúvida que, quando fazemos programas ecursos de filosofia nos países africanos, duma forma aberta ou simula-da, os saberes endógenos, tradicionais e locais permanecem comoexemplos periféricos da filosofia, ou seja, com um estatuto subalternoe marginal. Se a própria disciplina da Filosofia Africana é dada, emmuitos casos, como uma cadeira somente, então imaginemos o lugarque é reservado aos saberes indígenas e tradicionais originários decada cultura africana. Mesmo nos casos em que os cursos de filosofia

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adoptem uma abordagem em que a Filosofia Africana é tratadatransversalmente, e não como uma disciplina, aí os assuntos da filo-sofia tradicional também têm a função de «comentários». Isto é, permitem reforçar o lugar de narrativas maiores aos textos fundado-res da filosofia, que são os ocidentais. É isso que Kagamé fez ao«encontrar» as categorias aristotélicas no sistema do pensamentodos banya ruanda; é isto também o que Tempels fez ao tentar mos-trar que os bantu possuem (também) uma ontologia comparável àeuropeia e por aí fora.

Passemos, em segundo lugar, para o autor. Foucault chama deautor «não […] o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu umtexto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, comounidade e origem de suas significações, como foco de coerência»(Idem,22). Assim, existem domínios (das narrativas pequenas) onde oautor do discurso não existe ou é apagado. O discurso que este pseu-do-autor formula é considerado como «conversa» do quotidiano,como um discurso proferido por um «louco». Este «autor» fica noanonimato dentro de uma colectividade. Mas, ao lado deste, existemáreas por excelência onde a presença do autor é exigida. São as áreasda literatura, da filosofia e das ciências. Em alguns casos, a partir doséculo XVII particularmente, a menção do autor de um discurso nãoserve somente para indicar o dono da obra; esta menção serve paradar um nome às teorias com um corpo coerente (marxismo, porexemplo) ou a um teorema (teorema de Pitágoras, por exemplo), ouainda a uma linha de pensamento (kantianismo, por exemplo). Assim,o autor é aquele que indica a direcção em que devem ir as interpreta-ções, que dá «nós de coerência» aos comentários que se fizeram, quese fazem e que se irão fazer.

Na verdade, diz-nos Foucault, existe uma relação íntima entre aregra do comentário e o princípio do autor. É que enquanto o comen-tário impede que o discurso seja feito ao acaso dado que o comentadordeve mencionar a origem do seu comentário, ou seja, deve, de certomodo e em certa medida, «repetir» o discurso fundador, por seu lado,o princípio do autor disciplina o acaso e o caos pelo imperativo daidentificação do autor que emite a fala. Ambas, portanto, são instân-cias controladoras daquilo que se diz e limitadoras do que se devedizer.

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Neste aspecto sobre o autor não precisamos de alongar muito aoadoptar a ideia para a nossa realidade. Pois, é notável que a oratura,forma privilegiada em que circula o texto das filosofias tradicionaisafricanas, não tem, aos olhos do etnofilósofo, seus próprios autores. A etnofilosofia e as etnociências fazem circular a imagem de existên-cia de filosofias, ciências africanas de carácter colectivo (filosofia semfilósofos, ciência sem cientistas). Os autores tradicionais ficam diluí-dos, anónimos por trás dos provérbios, dos contos, das lendas, dascanções. O que sucede é ainda pior: o etnofilósofo e o etnocientistasnão se vêem obrigado a mencionar os autores dos saberes que reco-lhem, porque, doutra forma, a sua menção poderia tirar-lhe o méritode serem eles que pensam e escrevem. É este o mecanismo pelo qual oautor tradicional desaparece na sua qualidade de sujeito que prescrevesignificações, que reflecte criticamente sobre a sua condição. O meca-nismo de exclusão do «autor» tradicional funciona de duas maneiras:o autor etnofilósofo não menciona o colega tradicional reduzindo-o àcondição de «informante» e o filósofo profissional africano redu-lo àperiferia e, desta posição epistémica, incapaz de fornecer grandes sis-temas de pensamento com significações próprias.

O princípio de disciplina, juntamente com o do comentário e doautor, vem completar o conjunto dos procedimentos internos deexclusão ou de fuga da filosofia africana profissional à possibilidade deinterculturalidade. A disciplina define-se como «um domínio de objec-tos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradasverdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de ins-trumentos» (Foucault 1971, 24). Assim, a disciplina como um corpode ideias e argumentos sistematizados parece estar a opor-se ao prin-cípio do autor, porque todo o corpo de conhecimento constitui umaespécie de um sistema anónimo. O corpo de conhecimentos que com-põe a disciplina apresenta-se como sendo mais fiel aos métodos que aoconjunto de autores que edificaram os conhecimentos mais fundamen-tais da respectiva área.

O princípio da disciplina também parece opor-se ao do comentá-rio no seguinte aspecto: uma disciplina privilegia «aquilo que é reque-rido para a construção de novos enunciados». Aliás, essa é a condiçãode existência contínua de uma disciplina: ela deve permitir a possibili-dade de, indefinidamente, formularem-se novos lances.

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Foucault alerta-nos, e com razão, que nem tudo o que é dito eescrito sobre o objecto de uma disciplina faz parte desta mesma disci-plina. Assim, nem tudo o que é dito e escrito sobre a doença pertenceà medicina da mesma forma que nem tudo o que é dito e escrito sobreas plantas pertence à disciplina de botânica. A mesma analogia sobrea zoologia que não integra para o seu seio todo o saber que circulasobre os animais.

Ora, o aspecto focado no parágrafo anterior levanta o problemado critério da exclusão do conhecimento que não é chamado para ointerior de cada disciplina. Por outras palavras, as perguntas quepodemos lançar são: porque é que todo o corpo do que é dito sobre asdoenças pela medicina e o seu médico tradicional não passa a perten-cer automaticamente à medicina? Porque é que o conhecimento dosherbanários tradicionais não pode pertencer ao corpo de conhecimen-to da disciplina de botânica? Ou ainda: porque é que as posições queexistem nos provérbios, nos contos, nos chamados usos e costumes,etc. não podem fazer parte dos capítulos da filosofia como sejam aética, epistemologia e/ou metafísica, isto é, passarem a incorporar-secomo parte integrante da filosofia praticada nas instituições formais?Enfim, qual é o critério de exclusão?

Os clássicos da epistemologia, a esta pergunta, responderiam queseria preciso que estes saberes, para pertencerem à categoria de ciên-cia, devessem cumprir certos requisitos e certas condições epistemo-lógicas, requisitos e condições essas que, no fim de contas, deveriamfazer acreditar de que o que é dito ou escrito é verdadeiro ou é certo.Foucault dá o exemplo do século XVII para ilustrar este aspecto. A partir do fim daquele século, para uma proposição passar a ser dodomínio do conhecimento chamado «botânica», deveria referir-se àestrutura visível da planta, às semelhanças com as outras plantas, etc.Foucault conclui dizendo que é «[n]o interior dos seus limites [que]cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas elarepele, para o outro lado das suas margens», todo o saber que estejafora dos seus limites; em outras palavras estipula-se que «uma propo-sição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder per-tencer ao conjunto de uma disciplina».

Aparentemente, cremos que uma expressão deve ser certa/ver-dadeira ou errada/falsa para fazer parte do corpo de conhecimentos

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de uma determinada disciplina. Portanto, os erros não fazem parte doconhecimento considerado integrável nas disciplinas. Na verdade acondição para que uma expressão seja incorporada numa disciplina éo facto de esta expressão ter estado «no verdadeiro», antes de serdeclarado verdadeiro ou falso. O exemplo de Mendel pode ilustrar:ele, no século XIX dizia a verdade quando introduziu a ideia do traçohereditário como objecto da biologia. Mas não foi acreditado porqueestes traços não eram muito visíveis, ou por outra, por serem discre-tos. Como diz o próprio Foucault: Mendel dizia a verdade, mas nãoestava «no verdadeiro» do discurso biológico da sua época. A discipli-na, neste caso a biologia, passa a ser um princípio de controlo da pro-dução do discurso por ter a pretensão de definir por si mesma o seuterritório do que vale ou não vale e, ao mesmo tempo, por ela estarem condições de, sempre que lhe convier, actualizar as regras quequer seguir ou os conteúdos que quer abordar.

Assim, foi possível chamar todo o (ou parte do) pensamento filo-sófico que não proviesse dos profissionais como sendo «selvagem»,«primitivo», «tradicional», «ilógico» e por aí fora. A filosofia crioutambém condições para que fosse «intercultural» somente à medidaque um determinado pensamento tradicional fosse reforçar a sua pró-pria estrutura interna, ou seja, fosse simplesmente um comentário. Defacto, o que temos hoje na filosofia africana académica são «regiões dodiscurso» que se abrem e se fecham às novidades sugeridas da tradi-ção. Num primeiro momento fecham-se declarando «errado» aoconhecimento que emana das entranhas tradicionais ou tratandocomo «loucos», «primitivos», «selvagens» os seus autores. E numsegundo momento a filosofia profissional abre-se quando precisa de selegitimar a si mesma como filosofia africana a partir dos imagináriossupostamente colectivos das comunidades epistémicas locais. Esteúltimo foi e é o caso das etnociências e da etnofilosofia. De facto, fize-ram o papel de comentários à filosofia ocidental.

A Construção de Espaços de Intersubjectivação

O que dissemos até aqui sobre a necessidade da filosofia africanafundar-se no (e fundamentar o) diálogo inter- e multicultural precisa

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de ser completado por uma reflexão mais pragmática. Esta reflexãodeve ser capaz de responder à questão do espaço epistémico no qual odiálogo da intersubjectivação pode ser exercido duma forma sistemá-tica. Para nós está claro que, insistimos, é na educação, especialmentea formal. Todos os moçambicanos passam (ou deverão passar) pelaescola. É lá onde podem e devem preparar-se para o diálogo inter- emulticultural. Para isso devem primeiro ser confrontados com textosculturais que lhes dê a firmeza ontológica a partir da qual podementrar com pés firmes nos círculos dos debates subsequentes, nomea-damente o inter- e o multicultural.

Assim, na universidade deve-se confrontar os estudantes comtextos culturais, interculturais e multiculturais, com os três níveis deintersubjectivação ou diálogo. Mas antes de explorarmos isto, veja-mos as tentativas anteriores em criar-se espaços de encontro entre asculturas.

Ora, esta breve excursão pelas condições epistémicas com basenos quais a filosofia profissional africana pode construir a sua próprialiberdade leva-nos intrinsecamente a recolocarmos a questão inicialde todas as perguntas filosóficas: afinal o que é filosofia? Duma formabreve podemos recordar que filosofia é pensamento crítico. E, comodissemos, o que interessa não é tanto o pensamento como «resultado»mas sim como «processo», então o mais importante, quando falamosem filosofia, o que interessa cultivar, são as atitudes e os pressupostos(conhecimento filosófico) necessários para o desenvolvimento do pensamento crítico. Assim, o termo «crítica» ganha muita centralida-de no que-fazer filosófico. Resumidamente, entendemos por crítico otipo de pensamento que não reduz a realidade à necessidade, isto é,formulando positivamente, o tipo de pensamento que concebe a reali-dade como possibilidades ou alternativas de existência desta mesma realidade.

Dito isto, se seguirmos o nosso propósito de auto-reflexão, isto é,reflectirmos sobre as condições epistémicas da própria filosofia afri cana para criar e desenvolver espaços de intersubjectivação e deinterculturalidade, então teremos de repensar na questão como é quea filosofia africana pode abrir-se no sentido de deixar enriquecer osseus pressupostos a partir das referências teórico-conceptuais sugeri-das com base nos contextos culturais para que ela própria se possa

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renovar ou, em outras palavras, criar uma «nova filosofia africana»conforme sugere Ngoenha. O nosso objectivo, portanto, é usar ocarácter auto-reflexivo da filosofia para criarmos aquilo que Foucaultchama de «sociedades de discurso sem territorialização».

Neste ponto, alinhamos com Wiredu que vê a possibilidade deinterculturalidade na análise e comparação de conceitos. Mas, acres-centamos, no processo de criação de espaços de intersubjectivação eda interculturalidade, vemos o papel da filosofia no contexto africano,antes de tudo, como um desafio metodológico que propriamente o deapetrechar o mundo da teoria com novos quadros teóricos e com con-ceitos comparados.

Portanto, a questão que doravante nos vai preocupar é: comoabrir a filosofia africana para a sua própria riqueza conceptual a partirdos imaginários culturais e dos saberes tradicionais?

Nos momentos de contacto da filosofia (africana) com os sabereslocais tradicionais podemos encontrar três níveis de interpretação: onível de interpretação de factos e processos, o nível do encontro e onível crítico-crítico. Estes níveis estão ligados, correspondentemente,aos referenciais de objectivação (etnociências, etnofilosofia), de sub-jectivação (afrocentrismo, ubuntuismo) e de intersubjectivação.

Vejamos o primeiro nível. Este é o nível em que o filósofo profis-sional (formalmente treinado numa universidade), muitas vezesjovem, vai a uma comunidade cultural (urbana ou rural) e vê-se «obri-gado» a confrontar-se com os eventos, factos e processos sociais.Então ele vê-se obrigado a assumir uma posição metodológica daantropologia positivista à moda de um Junod, Tempels, Mbiti eoutros. Esta posição obriga o filósofo a descrever primeiro os eventos,factos e processos que observa ou toma conhecimento. O momentodescritivo numa investigação filosófica em contextos culturais africa-nos aparece como sendo necessário porque existe um pressupostobásico espalhado pelas etnociências, incluindo a própria etnofilosofia,de que os elementos científicos estão «implícitos» por trás das activi-dades do dia-a-dia ou sazonais nas comunidades. Ou seja, é a partir deuma «decrição cerrada» (segundo Geertz) das danças, dos festivais,das cerimónias e ritos de nascimento, de iniciação, de casamento, demorte, etc. que podemos inferir o Weltanschauung dos falantes de umacerta língua/etnia ou dos seguidores de certas religiões tradicionais.

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A descrição dos factos, eventos e processos responde à questão«como?».

No entanto o nosso filósofo formalmente treinado não pode limi-tar-se à questão «como?», senão que deve avançar para a questão«por que?». Ou seja, é necessário passar da simples descrição para ainterpretação desses mesmos eventos, factos e processos. Em termosde método de investigação, neste passo não basta a observação dessesmesmos fenómenos. É preciso complementar com a «conversa» ouentrevistas. A conversa é a troca de pontos-de-vista e visa compreen-der o significado e o sentido que os actores ou os observadores-parti-cipantes de determinados eventos, factos e processos dão aos mesmos.A conversa busca, portanto, compreender os pontos de vista das pes-soas.

Normalmente, o nosso jovem filósofo (sugerido pelo métodopopularizado por Griaule e aperfeiçoado paradigmaticamente porOdera Oruka) vai procurar conversar ou entrevistar com os chama-dos sábios ou sages. Por trás desta escolha está a crença de que emcomunidades rurais e tradicionais existem pessoas, geralmente idosas,que dominam as tradições e os seus ritos, mas também dominam oconjunto das interpretações locais sobre os fenómenos que o filósofoquer investigar. Então, o nosso filósofo organiza normalmente encon-tros individuais ou colectivos para saber «como é que eles pensam»sobre determinados assuntos de ordem colectiva.

É precisamente na preparação das entrevistas ou das conversasque começa a emergir o segundo nível que conviemos chamar comosendo de «encontro»21. À primeira vista, a conversa ou a entrevistadecorre para que o nosso filósofo aperceba-se dos tipos de conheci-mentos que ele consideraria de «tácitos», ou seja, ele busca o tipo deconhecimento que se pressupõe ser «baseado na experiência» dosactores e observadores-actores. Assim justifica-se perguntar sobre o«por que» que as coisas ou eventos são feitos assim e não doutraforma. No entanto, à medida que pergunta, o nosso jovem filósofo

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(21) Os níveis que a seguir se descreve foram denominados por «métodos da apro-priação» num artigo do autor deste livro African Traditional Knowledge andEducation Today inserido numa colectânea organizada por P. Hountondji (Cfr.Castiano 2009).

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cedo dá-se conta que as respostas que recebe estão carregadas de jus-tificações que pertencem mais ao domínio da metafísica que do mundofísico. O nosso filósofo dá-se conta que as justificações apresentadaspelos sábios ou sages para os fenómenos naturais e sociais, tais comonascimento, doença, morte, falta de chuva, riqueza, etc. estão carrega-das daquilo que chamei por «considerandos metafísicos» que, aparen-temente, estão no domínio da especulação.

Dizíamos que os problemas começam na preparação das conver-sas, isto é, na elaboração das questões que deverão nortear a conversacolectiva ou individual com as pessoas. O problema é que estas ques-tões devem ser em si mesmas filosóficas, ou, na melhor das hipóteses,devem ser capazes de inspirar respostas com possibilidade de seremaceites como sendo filosóficas. Doutra forma, as respostas encontradasnão serão validadas como sendo filosóficas pela academia ou pela facul-dade de filosofia. Significa então que o nosso filósofo, quando está apreparar a conversa, deve organizar as perguntas ou questões segundoo cânone e temas da filosofia clássica, isto é, questões que podem levara respostas enquadráveis nos domínios da metafísica, da ética, da gno-selogia, da epistemologia, da filosofia política, da lógica, etc.

Expresso em outras palavras, o nosso filósofo deve saber colocarquestões filosóficas. E é aqui onde se justifica falarmos de primeiro«encontro» entre naturezas diferentes de saberes. O nosso filósofotreinado formalmente opera com conceitos sejam eles Deus, religião,ética, axiologia, dever, bem, conhecimento, ciência, validade, legitima-ção, democracia, etc. É legítimo que ele opere com estes conceitos deforma apriorística, porque fazem parte do seu treino como filósofoprofissional. São esses conceitos que servem de «caixas» onde cairãoos pontos-de-vistas dos sábios ou sages entrevistados quando o nossofilósofo for a escrever o «seu» texto filosófico. Em termos mais sim-ples, ele pôr-se-á a questão «das respostas ou dos pontos-de-vistasque eu tive, o que é ou pode ser considerado como filosófico?», ouseja, «o que, destes pontos-de-vista dos sábios e sages, pode ser consi-derado como metafísico, ético, epistemológico e por aí fora?». O queestá em jogo é que os conceitos aprendidos no treinamento formal defilosofia na universidade irão constituir o substrato epistémico paraenquadrar os pontos-de-vista recolhidos, sob pena de o resultado nãoser considerado como «filosófico».

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É neste momento que começa um «jogo de cintura» entre osconceitos clássicos da filosofia e o que até agora consideramos comosendo os «pontos-de-vista» dos sábios e sages. E esse jogo de cinturaocorre na «cabeça» do filósofo. O ponto e o dilema é: como validar nocontexto institucional formal (numa universidade, por exemplo) ossaberes e pontos-de-vista carregados de «considerandos metafísicos»provenientes de contextos culturais tradicionais? Assim, neste jogo-de-cintura, como dissemos ajudados por Foucault, os saberes vindosdos contextos culturais ficam sujeitos aos «procedimentos de exclu-são». É desta forma que estes saberes passam para a categoria de«comentários» pertencentes às narrativas menores e, concomitante-mente, o autor tradicional passa para o anonimato (ou pior, a esteautor tradicional «não é exigida a sua presença» no quadro dos refe-renciais teóricos). A regra é determinada, até agora, pelo cânone dafilosofia clássica profissional e os saberes tradicionais são relevadospara a categoria de comentários. E os comentários servem, aindaneste caso, para confirmar a regra.

No entanto, até aqui, a nossa investigação filosófica já ganhoumuito no sentido de fazer um esforço de integrar os saberes locais nas«caixas» criadas pela tradição filosófica. Mas não ganhou o suficiente.Até aqui a filosofia profissional deu somente o primeiro passo do níveldo «encontro» intercultural entre ambas as formas de existência dosaber, nomeadamente o de combinar o quadro teórico e conceptualfilosófico (podemos alargar a ideia para as diferentes disciplinas aca-démicas) com os saberes contextuais culturais tradicionais/locais.

Para que a filosofia profissional africana ganhe mais espaço deintersubjectivação será necessário entrar no segundo nível do encon-tro intercultural: o do diálogo intercultural. O que caracteriza estediálogo do tipo intercultural é possibilidade da abertura conceptualpor parte da própria filosofia, ou seja, uma abertura da própria filoso-fia profissional africana para mudar ou adoptar «novos» quadros teó-ricos que podem estar a ser sugeridos pelos contextos culturais.Assim, a questão que nos colocamos nesta abertura deve ser a seguin-te: até que ponto o que conviemos ser «comentário» desafia a regra?Em termos mais simples, podemo-nos, enquanto filósofos, perguntarem que medida as respostas encontradas nos saberes locais/tradicio-nais escondem propostas de reformulação destes mesmos problemas e

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até que ponto estas mesmas propostas «escondidas» desafiam osmodelos teóricos e as suas respectivas perguntas. Com este tipo dequestões, pensamos estar a colocar no tribunal da crítica o problemada validação dos saberes locais no contexto institucional (universitá-rio). São questões que põem em causa o modelo universalista da vali-dação do conhecimento científico elaborado pelo paradigma damodernidade. E, como Boaventura Sousa Santos sugere, as «episte-mologias do sul» estarão em condições de oferecer «respostas fortes»às «perguntas fortes» colocadas pela modernidade. Para falar comFoucault, o «comentário» pode começar a alcançar o estatuto de«regra» no contexto da filosofia africana institucionalizada. E, porúltimo, para falar com Lyotard na sua obra Condição Pós-Moderna, éneste ponto onde as micronarrativas encontram-se com as metanar-rativas para estabelecerem um diálogo intercultural.

Pelo facto de, no nível do encontro que descrevemos, haver a pos-sibilidade da abertura conceptual por parte da filosofia profissionalafricana e tomar a atitude de deixar-se sugerir novas significaçõespara os seus conceitos clássicos, podemos classificar este de primeiropasso da crítica autoreflexiva da filosofia africana. É um primeiro passopara a crítica, porque a filosofia profissional africana, embora abrindo --se para outros conceitos, mantém o seu horizonte conceptual. O quese verifica é apenas uma espécie de comparação de conceitos, sem noentanto haver a síntese desejada. É como se a filosofia profissionalafricana dissesse aos saberes tradicionais: «olha, critica-me sim, e atéfaz algum sentido o que dizes, mas mesmo assim não vou mudar». É nessa situação em que se puseram os referenciais da subjectividade(afrocentrismo e ubuntuismo). Ganharam o «direito» de criticar e atéde desafiar a filosofia profissional institucionalizada, inclusive ganha-ram o direito de serem reconhecidas como formas (marginais) de con-ceptualização filosófica, mas ficaram no ghetto, na periferia dasinstituições. O afrocentrismo e toda a conceptualização ubuntu, defacto, são tolerados, e não integrados no sistema da filosofia profissio-nal africana. Não têm ainda o estatuto de paradigmas na «arquitectu-ra dos saberes» estabelecidas institucionalmente.

Em todo o caso, se a filosofia profissional africana der este passode abertura conceptual intercultural (de facto, como vimos, os traba-lhos de Kwasi Wiredu e de outros hermeneutas apontam para esta

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direcção), o nosso propósito filosófico de auto-reflexão e da auto-críti-ca (que é a condição da sua libertação e da interculturalidade da filo-sofia africana), pode estar muito perto, todavia ainda por alcançar.Precisamos de dar um passo ainda mais ousado em direcção ao últimonível da atitude de uma interculturalidade filosófica. Chamemos a esteúltimo nível de crítica-crítica.

O nível da crítica-crítica, como o nome diz, compreende uma duplacrítica. A primeira é metodológica e é dirigida às práticas das etno-ciências e da etnofilosofia. Fazendo frutíferas as críticas unanimistasde Paulin Hountondji à etnofilosofia e os seus derivados, esta críticametodológica assenta no pressuposto que todo o conhecimento temuma elaboração subjectiva, ou mais precisamente, na sua elaboraçãopertence a um sujeito determinado. Uma outra questão é debatermoso que é um sujeito. A resposta pode ser encontrada em dois extremos:um, nas noções de inclinação individualista e outro, nas noções deinclinação mais comunitarista-colectivista. Mas, mesmo no quadrodessas noções colectivistas ou comunitaristas tais como descrevemosno ubuntuismo, o saber como resultado de uma elaboração de signifi-cações simbólicas é o resultado da elaboração individual dos membrosde uma determinada comunidade e não de uma deliberação colectiva. A diferença que esta elaboração individual nas sociedades mais comu-nitaristas ou tradicionais com a noção individualista predominanteem sociedades capitalistas mais avançadas é que o saber elaboradoindividualmente anonimiza-se naquelas e individualiza-se nestas últi-mas. Naturalmente que o factor principal que leva à anonimização dosaber em sociedades onde predomina uma visão mais comunitaristado sujeito deve-se à falta de predominância da cultura da escrita. Estatem como consequência a falta do registo da propriedade intelectualde um determinado saber a circular ou a ser executado.

Mas, e nisto reside o primeiro ponto autocrítico da filosofia profis-sional africana, o processo na anonimização e a falta de registo dapropriedade intelectual, não é uma justificação plausível para que onosso filósofo profissional tome uma atitude unanimista em relaçãoaos saberes que ele investiga ou recolhe. Nas suas investigações onosso filósofo deve recolher os pontos-de-vista críticos expressos pelossujeitos das comunidades culturais. O etnocientista ou o etnofilósofodeve, na elaboração do seu trabalho, «citar» o texto escrito ou oral

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resultado da entrevista com os sábios ou sages. O nosso filósofo deve-rá reduzir, e a meta é mesmo eliminar, expressões unanimistas taiscomo «entre os Makua acredita-se que Deus é …», ou «a noção dejustiça entre os Ajaua é …» ou ainda «os Banharuanda não têm noçãode riqueza …» nos seus escritos. Ao invés de Makua, Ajaua, Banya -ruanda deverá escrever o nome do emissor do juízo, como de resto fazquando se trata de citar os textos escritos.

Todavia, não basta tão-somente mencionar e identificar o sujeitoque emite os juízos no seu texto. De capital importância para o desen-volvimento da filosofia africana seria colocar opiniões ou pontos-de-vista diferentes em confrontação, isto é, destacar os pontos críticosindividuais sobre o mesmo assunto e pô-los em debate, mostrando oalcance explicativo e significativo dos juízos emitidos pelos sábiossobre vários assuntos que afligem as comunidades ou dos «temasgeradores» (SIDA, religiosidade, moralidade, democracia, regras deconvivência, etc.). De resto, é assim que o nosso filósofo profissional étreinado ou procede, quando se trata de fazer referências aos manus-critos de Marx, Heidegger, Derrida e outros. Porquê não faz o mesmoquando estiver perante textos orais?

Uma escrita filosófica africana que (também) cultive a tradição demostrar os pontos divergentes ou críticos nos juízos emitidos indivi-dualmente pelos sábios ou sages não matará somente a tendência unani-mista espalhada pela etnofilosofia e pelas etnociências. Esta escrita,estará também contra a tendência de mistificação e glorificação dos pró-prios saberes tradicionais. Ao individualizar a fonte da elaboração de umdeterminado saber, o nosso filósofo estará a dar um passo em frente nosentido de tirar o carácter místico com que cientistas africanos e euro-peus olham para certas práticas e ritos tradicionais africanos. Passa-sedo domínio da «mistificação» para o predomínio da «explicação» dosentido e significado das práticas ou ritos em causa. De terminados juí-zos emitidos em certos contextos culturais africanos, quando escritossob o prisma subjectivado, já não são transmitidos como sendo um«certo número de crenças que predominam numa dada colectividade»(como é prática dos etnocientistas e dos etnofilósofos em particular),mas sim os pontos-de-vista de determinados actores sociais (sábios ousages) que sobressaem dos outros pontos -de-vista porque têm o poderde elaborar um texto oral sobre o sentido e o significado das coisas.

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O último nível é o de (auto)reflexão meta-teórica. E este devedecorrer no seio da própria filosofia profissional africana. Neste nível,o nosso filósofo responde à questão em que medida os conceitos e assignificações apreendidas dos outros pontos-de-vista desafiam o qua-dro de conceitos da filosofia profissional africana e em que medida háaí sugestões referenciais paradigmáticas alternativas. Por outras pala-vras, trata-se, a este nível, de uma «batalha» de validação de conceitose significações de origem tradicional, sem necessariamente significaruma substituição de uns conceitos pelos outros. De facto, a este nível,não interessa a proveniência de um determinado conceito. O que inte-ressa é o potencial explicativo deste conceito em relação à realidadeou problema em causa. O que é ainda mais interessante, de facto, é acapacidade de cada conceito mobilizar os argumentos que sejam maisfortes para compreender os eventos, factos e processos. A filosofiaprofissional africana abre-se para uma crítica conceptual que, por suavez, abre novos horizontes conceptuais.

Concluindo: uma verdadeira interculturalidade filosófica é aquelaque opera com o nível de conceitos. A batalha filosófica é aquela em queas armas são argumentos e conceitos. Se a filosofia africana se querdesenvolver como pensamento crítico, e assim seguir o que caracteriza afilosofia em geral, ela deve cultivar dois pressupostos: o primeiro, eladeve estar apta para a criação de espaços de intersubjectivação, isto é,espaços de diálogo que se baseiam no reconhecimento do outro ououtros como sendo também e de igual modo sujeito(s) do conhecimento;o segundo, ela deve abrir-se para um diálogo intercultural filosófico, istoé, um diálogo em que se baseia no potencial crítico e autocrítico sugeri-do por outras culturas no sentido do enriquecimento conceptual mútuo.

O que escrevemos até agora tem em vista duas perspectivas práti-cas para o filósofo profissional africano. Por um lado, visa alertá-lo edar-lhe ferramentas para que mantenha uma vigilância epistemológicacerrada por ele estar numa posição social e epistémica privilegiada nacirculação do saber. Pois, ele está entre a chamada ciência moderna eos chamados saberes tradicionais. Por outro lado, a nossa perspectivaé de organizar um formato adequado para a criação de espaços deintersubjectivação nas instituições de educação, em particular na uni-versidade.

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Vigilância Epistemológica

O conceito de dupla crítica (crítica-crítica), que desenvolvemosatrás, é inspirado no conceito «dupla hermenêutica» do sociólogoinglês Giddens no domínio da sociologia do conhecimento. Este con-cebeu como tarefa do sociólogo e, por extensão, da sociologia, a dedu-ção de conceitos intermédios que dêem conta do «mundo sistémico»,no qual, entre outros elementos simbólicos, inscreve-se a ciência, e, aomesmo tempo, dê conta também do «mundo da vida», ou seja, o quo-tidiano. No fundo, a dupla hermenêutica, tal e qual como é desenvol-vida por Giddens, visa intermediar conceptualmente a aparentedicotomia entre as explicações e interpretações macroteóricas e asexplicações e interpretações microteóricas sobre a dinâmica social.

No contexto do que estamos a expor até aqui, aplicamos a duplacrítica para dar conta ao sentido duplo do papel do intelectual africa-no perante o desafio da busca do seu lugar e sua identidade na histó-ria da humanidade (chamemos sua auto-inscrição) assim como naelaboração de referenciais de significação da experiência africana paracom os fenómenos da escravatura, do colonialismo e da globalização.

Assim o intelectual africano encontra-se na condição de simulta-neamente ter que ser o intérprete e crítico de duas tradições diferen-tes — embora não necessariamente divergentes — na forma daprodução do saber, estando ele próprio treinado profissionalmente,segundo o cânone da tradição académica ocidental.

A primeira crítica — chamemos-lhe de desconstrução — é críticaem relação ao discurso tradicional ocidental sobre o lugar de Áfricaperante a escravatura, a colonização e a globalização. E nisto o afro-centrismo e o ubuntuismo são referenciais teóricos intelectuais muitofortes. O intelectual deve, por um lado, (re)interpretar o discurso denatureza hegemónica da ciência moderna e ser capaz de desconstruireste discurso por formas a mostrar tanto aquilo que ele comporta emtermos de positividade (oportunidades), assim como em termos denegatividade (riscos). O exercício de desconstrução das meta-narrati-vas (Lyotard 1989) é tão necessário hoje, quanto mais que no contex-to da globalização os riscos são principalmente transmitidos pela viaargumentativa (Beck 1981) em que o conhecimento, o saber, o domí-nio dos meios de comunicação jogam um papel fundamental. Quem

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pode globalizar as percepções sobre os riscos (e nesta base tirar van-tagens materiais) são os que dominam esses meios.

A segunda crítica — chamemo-la de construção — relaciona-secom a necessidade de o intelectual africano garantir que a sua produ-ção seja responsável em relação às comunidades epistémicas locais. Éneste contexto que se coloca o desafio que Vilakazi (1999,200pp.)lança, quando fala da necessidade de uma «revolução cultural» no seioda elite intelectual. Ele considera que o grande desafio para os inte-lectuais instruídos africanos é o de se vestirem de coragem paramudarem a sua posição perante as tradições locais africanas aceitan-do-as como fontes para a construção dos seus referenciais teóricos eacadémicos; eles devem desvestir-se do ocidentalismo, irem para umacomunidade africana nas áreas rurais com o objectivo de aprenderemos princípios e padrões da sua própria civilização, a partir dos deten-tores dos saberes ancestrais. Vilakazi coloca, assim, o desafio éticoantes do desafio epistemológico. Ou seja, ele vê que a primeira liber-tação do intelectual africano deve ser em relação aos preconceitos cul-turais que ele transporta em si para depois adoptar uma perspectivaafrocêntrica, esta já na sua vertente epistemológica. Na «revoluçãocultural» de Vilakazi, a ética precede a criação de referências episte-mológicas de raiz afrocêntrica.

O que é significativo, nesta segunda hermenêutica, é poder com-preender a necessidade de um intelectual (filósofo) tomar responsabi-lidade e compromissos sérios perante as comunidades epistémicaslocais e a partir das quais vai tentar deduzir o mais fiel possível osreferenciais teóricos que estariam por trás desses saberes.

Ao adoptar a dupla hermenêutica o intelectual posiciona-se numasituação de «vigilância epistemológica». Pois, por um lado, no exercí-cio da desconstrução, ele está atento à forma e aos caminhos como sãoconstruídos os argumentos sobre riscos globais; também mantémvigilância sobre os mecanismos de reprodução do estatuto subalternodos saberes tradicionais no contexto da produção universal do saber;denuncia as formas de perpetuação da condição marginal dos saberesproduzidos localmente e dos detentores destes mesmos saberes erevolta-se contra a condição de simples colector e fornecedor dedados que depois irão ser tratados e teorizados pelos pesquisadoresou em instituições de pesquisa no exterior de África.

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Por outro lado o intelectual está vigilante contra as tendênciasde fixação das tradições e dos saberes locais num mundo auto-refe-rente, que se legitima a si próprio, e acrítico. Está vigilante às tendên-cias de romantismo, de misticismo, de idolatria em relação aos saberestradicionais. Na segunda hermenêutica, o intelectual está vigilanteaos argumentos tradicionais de autoridade do tipo «é assim porquesempre assim fizemos» ou «é assim porque o mais velho assimpensa». Mas não para por aí. O intelectual também assume uma atitu-de ao reavaliar os seus próprios pressupostos teóricos usando, paraisso, a crítica conceptual que pode estar sugerida por outras formasculturais da Weltanschauung.

A vigilância, em ambos os casos, é em função do melhor argu-mento, em função da melhor oferta para a solução de um determinadoproblema, ou também em função de uma conceitualização mais ade-quada da realidade a que se quer referir.

A pertinência da primeira crítica resulta do facto de a práticaacadémica africana ter de superar a posição até agora assumida de serapenas um «fiel» tradutor das teorias produzidas em contextosalheios, ou seja, ao invés de exercer a sua função de interpretação doexterior para o seu povo, limitar-se praticamente à sua «tradução». A pertinência do segundo sentido hermeneuta reside na necessidadede superar o facto de, como afirma Vilakazi, a prática académica emÁfrica se ter tornado «irrelevante» para o desenvolvimento das cultu-ras africanos porque, a partir de uma posição cultural endógena, nãoconsegue elaborar conceptualmente a realidade africana para sercapaz de entrar num diálogo comunicativo e que não se refugie emargumentos de autoridade e auto-referenciais.

Universidade como Espaço de Intersubjectivação

A segunda crítica, portanto a que se refere à construção concep-tual e teórica é, quanto a nós, a mais interessante. No entanto, ela devepassar necessariamente pela fase etno-antropológica de acumulação deestudos empíricos de campo e pela fase de sistematização dos saberestradicionais. Ao mesmo tempo, esta fase é de «luta» pela aceitação,afirmação e legitimação no contexto institucional (universidades,

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por exemplo). Não podemos entrar no universal sem estar firmes.Esta firmeza nos é garantida pelo trabalho de casa que se tiver feito.Ora este tem sido o problema básico com que se debate a produçãodos saberes em África que possam merecer o adjectivo «científico»,nomeadamente, o problema de se legitimar para, sem recurso a prer-rogativas exógenas, serem tomados como válidos no seio das acade-mias nacional e internacional.

O objectivo final é o de estabelecer uma cadeia circular de legiti-mação dos saberes na qual nos extremos estão as duas tradições depráticas académicas, nomeadamente a formal/moderna (predominan-temente escrita) e a local/tradicional (predominantemente oral). A legitimação e a validade do conhecimento produzido, seja no con-texto institucional moderno, na base da cultura escrita, seja no con-texto institucional tradicional, na base da cultura oral, é feita numespaço coabitado por ambas comunidades epistémicas sobre temas eproblemas comuns. Como participantes, os detentores dos pontos-de-vista e dos saberes tradicionais locais ver-se-ão partilhando benefíciospara a manutenção e desenvolvimento do seu capital cultural e deconhecimento. O desafio é desenvolver na universidade fóruns emecanismos de levar o conhecimento localmente legitimado parafóruns mais abrangentes de legitimação global.

Até agora a prática é que o conhecimento produzido nas univer-sidades e nas instituições de pesquisa, para se afirmar, deve ser levadoaos fóruns de carácter nacional e internacional em forma de exposi-ção, apresentações orais e publicações científicas com revisão de pares.Esta não é uma prática nova. Porém, a novidade que propomos, éaquela que deve ser observada quando se organizam fóruns científicosnacionais e internacionais: eles devem abrir as suas portas para osportadores dos conhecimentos narrativos dos seus colegas «pesquisa-dores» do contexto local/tradicionais. Estes devem ser convidados aexpor as suas ideias e conhecimentos no seio da comunidade científicaglobal, numa ronda de diálogo circular. Se é certo que as etnociênciase a etnofilosofia preocuparam-se até hoje em identificar os «sábios»das comunidades, estes porém, sempre foram tratados tendencialmen-te como uma espécie de fontes primárias para a recolha de dados emenos como interlocutores válidos na troca de conhecimento (diálogointercultural).

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Para além de novas formas de legitimação, um segundo elementodeve concorrer para a formação de uma academia africana sólida:trata-se da escolha deliberada de modelos e ídolos africanos nos pro-gramas de ensino universitário e outros. De facto, como em todas asactividades, o homem cultiva modelos a seguir, cultiva os seus heróis.Aqui trata-se, portanto, de desmarginalizar cientistas, invenções eideias africanas no contexto universal da narrativa histórica.

Desmond Tutu, líder religioso da África do Sul, dizia nos iníciosda década 60 o seguinte: «Eu tenho ansiedade do dia em que estudan-tes africanos de teologia vão sentar-se em frente de docentes de teolo-gia também africanos, sendo dirigidos por um director africano.(Allen 2006, 71)

De facto, o que pode impedir o desenvolvimento da ciência emÁfrica, sobretudo entre os jovens pesquisadores, pode ser a falta deoportunidades de se confrontarem teoricamente com modelos ou ído-los africanos na história e de hoje. Esta falta é devida, em parte, àmarginalização deliberada dos negros africanos na História em geral,e na História das descobertas científicas em particular. A falsificaçãodeliberada ou não de factos históricos que reportam tanto a heroicida-de como a participação positiva dos negros na História do progressoda humanidade e na das descobertas científicas, não cria momentospara que os jovens cientistas de hoje criem ídolos. Para além disso, aausência de dados sobre os seus feitos empurra os negros cada vezmais para a periferia da História, perdendo referências para o seuorgulho.

Alguns exemplos de marginalização podem servir de ilustraçãodeste ponto. O escritor sul-africano Peter Abrahams (2000,55) relata,no seu livro autobiográfico, The Coyoba Chronicles, sobre a questão doracismo contra os negros no século XX, que durante a segundaGuerra Mundial toda a França era pelo general De Gaulle por esteter lutado heroicamente contra a ocupação nazi. No entanto, o grandealiado de De Gaulle e dos aliados na luta contra a ocupação nazi naÁfrica Equatorial, o general negro Félix Eboulé, que mais tarde foi oprimeiro governador negro de todos os departamentos franceses do«ultramar» na África Equatorial, não merecera nem uma nota derodapé nos anais da História francesa e universal (Idem, 65). Noentanto, Abrahams conta que, na busca que fez em enciclopédias

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americanas da História, editadas em CD-ROM, não encontrou nemuma vez sequer mencionado o nome de Eboulé. Ele nota também quenão encontrou nenhuma referência a George Padmore, uma persona-lidade negra importante na esfera política do período da Guerra-fria.

A perspectiva da escolha sobre o que deve ser incluído ou não naHistória da Humanidade tem desfavorecido maioritariamente osnegros, dando-se uma imagem deliberada de que estes nada inventam,não têm heróis e, em suma, pouco contribuíram para o desenvolvi-mento científico e para a Liberdade da Humanidade em geral.

Por seu lado Sertina (1999, 305 pp.) no seu artigo The LostSciences of Africa dá uma descrição deslumbrante acerca dos conheci-mentos que os africanos possuíam e possuem desde há muito temponas áreas diferentes. Por exemplo, na comunicação escreve que osafricanos dominavam a técnica de, através de tambores, imitar ritmi-camente a linguagem humana, de modo a estabelecerem uma comu-nicação à distância. Segundo este autor, não eram poucas vezes emque os chamados ‘exploradores’ (quanto a nós, aventureiros) euro-peus, chegavam a uma região recôndita, e se apercebiam que os nati-vos já tinham informações circunstanciadas da sua chegada, dos seusobjectivos, da quantidade de pessoas assim como outros dados trans-mitidos pelos chamados ‘métodos tradicionais’. Estas técnicas surgi-ram antes da descoberta do telégrafo por Morse. Na metalurgia, oantropólogo Peter Schmidt está convencido que há mais ou menos2000 anos os africanos que viviam nos arredores do Lago Victóriana Tanzânia produziam alumínio de carbono; neste artigo ainda sedão exemplos da astronomia avançada no Quénia e Mali, da mate-mática (o uso de números) no Congo e entre os Yoruba, da arquitec-tura e engenharia no grande Zimbabwe. Também se mostram osavanços dos africanos na navegação, na agricultura, na medicinaassim como na escrita. Quanto à medicina, Sertina escreve que elaesteve mais desenvolvida que em qualquer parte do mundo. A medi-cina africana não só tem valor acrescentado pelo uso das plantaspara a cura, mas sobretudo pela combinação que faz com a psicotera-pia e com os conhecimentos variados da anestesia, vacinação e técni-cas de cirurgia entre os bunyoro da África oriental (particularmentenas operações que são conhecidas hoje por «cesarianas»). Os bantutinham há já muito tempo a sua própria aspirina usando uma planta

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que contém ácida salícico, um ingrediente activo na conhecida aspirina de hoje.

Estes e outros feitos e inventos estão praticamente apagados daHistória, tanto nas universidades em África como na Europa. Assim,as novas gerações de docentes nas universidades africanas vão per-dendo os referenciais que os poderiam estimular na planificação curri-cular e nas suas pesquisas ou seja, poderiam ser uma espécie de«paradigmas» para a realização dessas pesquisas sejam elas de campoou bibliográficas. Pior, esta falta de referenciais provoca um sentimen-to de inferioridade ao ficar-se sem argumentos para contrapor umatese que alegue que de África ainda não saiu invenção ou ideia devulto para a ciência dita universal. Para diminuirmos cada vez maisestudantes e docentes universitários à busca de «paradigmas africa-nos».

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De resto seria plausível recordar que, como disse Rousseau algu-res, um cidadão é apenas um escravo que um dia fugiu da casa dosenhor. O «senhor» estará sempre a espreitar a oportunidade de elefazer com que o escravo-em-fuga volte para casa a fim de ser escravi-zado de novo. Recordamos o que disse o senhor do escravo FrederickDouglas: «Se ensinares o negro a ler, não terás formas de o mantercomo escravo. Ele nunca aceitaria jamais continuar a ser escravo. Derepente, ele seria incontrolável, logo sem nenhum proveito para o seusenhor». Este «senhor» estava consciente da força do «feitiço dobranco»22 (ciência) para a libertação da humanidade e para a devolu-ção do ubuntu a todo o ser humano, seja ele outrora «senhor», seja eleoutrora escravo; seja ele outrora colonizador ou colonizado; seja elehoje globalizador, seja ele globalizado. Estejamos vigilantes!

Numa troca de palavra com o filósofo sul-africano Philip Higgsem Bergem (Noruega), longe de África, após ele ter lido o manuscrito,virou-se para mim e perguntou:

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(22) Termo usado pela mãe de Eduardo Mondlane referindo-se à necessidade de eleir estudar para dominar a ciência para libertar ao seu povo.

«what are you left with, it you emancipate African Philosophyfrom being African»? (O que fica depois da emancipação da filosofiaafricana de ser africana?)

Eu respondi: «you are left with African Philosophers» (ficam osfilósofos africanos)! Penso que esta conversa resume todo o livro.

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