jornal vaia edição 26

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para o grande livro da arte nacional, que ainda está para ser escrito mas que em parte já existe num conjunto de estudos que podem ser eventualmente lembrados. Embora em âmbito estadual, poderíamos dizer que o projeto de Adalice Araújo conjuga dois dos nossos melhores empreendimentos no gênero: o de Gonzaga Duque, A arte brasileira (1888), e o de Roberto Pontual, Dicionário das artes plásticas no Brasil (1969). Ou seja, conjuga o indispensável banco de dados à necessária perspectiva crítica e histórica, presentes em ambos mais ou menos na mesma medida. Em amplitude, o projeto de Adalice Araújo não tem precedentes em nossa bibliografia de arte, e a partir de agora todos poderão nele inspirar-se. Às análises pormenorizadas da trajetória de cada artista, agregam-se verbetes que dão conta das tendências da arte contemporânea, de eventos, salões, grupos, movimentos e até da atuação de galerias, críticos de arte, curadores, museus e demais instituições ligadas à arte. Dos artistas maiores aos menores, dos mais famosos aos menos famosos, tudo cabe nessas 752 páginas, apenas o primeiro dos quatro volumes projetados (esperemos que os outros não tardem). Na introdução do livro, Adalice Araújo explica claramente o objetivo de sua pesquisa, e não deixa de ser modesta em suas observações. Ora, seu livro na verdade extrapola o âmbito estadual porque dá continuidade a tudo que temos de melhor nessa massa paradigmática de informações iniciada por Gonzaga Duque, no século XIX, e posteriormente levada adiante por Roberto Pontual, em 1969, que procurou compen-diar toda documentação existente até aquele momento (vale lembrar que Adalice foi, à época, uma das colabo-radoras “estaduais” de Pontual). É claro que não devemos perder de vista outras contribuições importantes, tais como Um século de pintura (1917), de Laudelino Freire, Artistas pintores no Brasil (1942), de Teodoro Braga, História da pintura no Brasil (1944), de José Maria dos Reis Júnior, nem os dicionários propriamente ditos, a começar pelo Dicionário brasileiro de artistas plásticos (1973-1980), coordenado por Carlos Cavalcanti e Walmir Ayala, logo seguido por outros mais específicos: Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais (1974), de Judith Martins, Dicionário de artistas e artífices na Bahia (1976), de Marieta Alves, Dicionário de pintores brasileiros (1986/1997), de Walmir Ayala, Dicionário crítico da pintura no Brasil (1988), de José Roberto Teixeira Leite, Dicionário de artes plásticas no Rio Grande do Sul (1997), de Renato Rosa e Décio Presser, Dicionário histórico-fotográfico brasileiro (2002), de Boris Kossoy, e Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro: século XX (2005), de Lélia Coelho Frota. Para nada falar dos estudos monográficos sobre artistas ou períodos de nossa arte, para os quais tanto contribuíram Carlos Rubens e Athos Damasceno Ferreira, Mário Pedrosa e Clarival do Prado Vallares, Carlos Ott e Gilberto Ferrez, Walter Zanini e Frederico Morais, Ferreira Gullar e Jacob Klintowitz, uma lista que, obviamente, não termina aqui. O nome de Adalice Araújo já aí estava inscrito, muito antes da publicação de seu dicionário, que é a consolidação de uma trajetória e marca um novo tempo em nossa bibliografia especializada. Sobre pequenos erros de informação ou padronização numa obra tão extensa, poderíamos repetir, com Samuel Jonhson, que “os dicionários são como os relógios; o pior é melhor do que nenhum, e nem do melhor se pode esperar que seja totalmente exato”. Num país que costuma dar pouco crédito ao seu passado, trata-se de uma medida profilática de salvar do esquecimento um pouco (no caso de Adalice Araújo, muito) de nossa memória. Porque, de Sacramento Blake a Adalice Araújo, vastas, sucessivas,

ste Dicionário das artes plásticas no Paraná (Ed.do Autor, 2006), vai muito além do que o títulosugere. Adalice Araújo, ao escrever o grande li-vro da arte paranaense, colaborou enormemente E

todas as pesquisas confluemno tempo, um tempo brasilei-ro permanentemente à esperade documentação e registro. Congregando vida social, po-lítica e artística, nossos dicio-nários de fato são obras que

André Seffrin

valem quanto pesam.

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Fantasmas de pássaros desossadosAssombram velhinhas & poodlesna esquina da Ipiranga com a São João.O centro da cidade tem a carne coberta de hematomasde óleo diesel.Neblina ácida sufoca matilhas de publicitários na Paulista.Inversão térmica em Santa Cecília.Espasmos de degolados na Estação da Luz.

Os trens passam direto pela Liberdade,Evitando a quadrilha de traficantesque esquartejam apresentadoras de programa de televisão,sorrisos ingênuos e francoseternizados no corte preciso das navalhas marroquinasfurtadas no mercado negro da Lapa.“Elas que experimentem sozinhas a volúpia das cicatrizes”,ralha o maquinista para sua própria imagemrefletida mil e uma vezes na Cabine de Espelhos.

Sob o efeito narcótico da carícia das navalhas,fios de botox e rios de siliconebrotando das carnes picotadas,as apresentadoras de programas de televisão pedem bis,mais, mais, meu anjo exterminador.

Velhinhas e poodles desmaiam na bruma maconhada.

A volúpia das cicatrizes Poligonia do soneto VI

chapadaeu vi o cordeiro de Deus chapadoa medusa alada no centro da

cidade vai pisar na cara dapoetisa lésbicasadomasoquistae cheirada

parecia bunda de mulhero travesti galantee drogadoo cordeiro de Deus de salto altoe as meninas do centro da cidade

granizo esticado no asfaltocintila! levarei a sua almae o cordeiro de Deus algemado

parecia bunda de mulherparecia táxieu vi a puta sadomasoquista

no centro da cidade

Antonio V. Pietroforte

arte CARLOS CARAH

VAIA - Ademir, fala pra gente um pouco sobre A musa chapada.

Tudo começou com um email do Antonio Vicente Pietroforte. Ele dizia algo assim: você tem poemas que fazem referências a drogas. Eu também tenho. Vamos fazer um livro juntos com essa temática?

Na hora, fui meio reticente. Respondi: sim, alguns poemas meus fazem referências a drogas. Mas não são exatamente poemas "temáticos". Não sei, pode ficar algo meio folclórico.

Antonio Vicente insistiu e disse que tinha um título: A musa chapada. O título me convenceu na hora.

A ideia original era reunir poemas já publicados em nossos livros. No meio do caminho, resolvi mudar tudo e inseri só poemas inéditos (com exceção de um, Noturno com Marijuana, que foi publicado numa antologia de poetas paranaenses, chamada “Passagens”, organizada por Ademir Demarchi).

Também sugeri ao Antonio que incluíssemos desenhos do Carlos Carah. O traço do Carah, ora abertamente influenciado pela linguagem dos quadrinhos, ora com um tom impressionista, tem tudo a ver com o universo abordado pelos poemas. Antonio não conhecia os desenhos do Carah. Quando viu alguns que enviei por email, chapou, literalmente.

Meu interesse pelas drogas (ou "plantas de poder", para algumas culturas) vem desde os anos 80, quando cursava universidade em Londrina. Cedo, eu me convenci que algumas dessas "plantas" poderiam alterar radicalmente a compreensão da realidade. "Abrir as portas da percepção", como já se falou muito em livros. Continuo convencido disso. Podem também abrir as portas do inferno. Depende de quem usa. Depende de como se usa. Depende do contexto.

Também estou convencido de que vivemos numa sociedade doente, marcada pela falta de perspectivas para grande parte das pessoas. Nesse contexto, claro, a "droga" pode virar um grande problema, envolvendo tráfico, interesses políticos, econômicos e religiosos, e descambando para um festival de barbárie. O contexto favorece isso.

Tem outra coisa: vivemos um período extremamente careta, em que o dinheiro, o carro do ano, o "se dar bem na vida" são os valores máximos. O conhecimento, a ampliação da consciência, a percepção de camadas mais sutis da realidade (ou das múltiplas realidades) valem tanto quanto uma titica de galinha.

Uma época desesperada e desesperante para aqueles que não sentem a menor atração em se enquadrar nesse circo de consumo. Não é a toa que a cocaína e o crack são as "drogas" do momento. Drogas malhadas até o talo, inclusive.

A musa não faz apologia de nada (isso não é da natureza da arte nem da poesia). Ao contrário, é um livro bem sombrio, até, em boa parte. Sombrio porque a realidade que tentam nos vender é sombria. Porque a realidade que tentam nos vender é uma droga pesada.

VAIA - Antonio, o livro possui uma temática que não é muito usual em poesia no Brasil, ainda mais num livro feito a quatro mãos. Qual era a tua intenção quando propôs a ideia ao Ademir Assunção?Talvez não seja usual na literatura, mas ela aparece bastante na música popular, de Chico Buarque a Marcelo D2, de Bezerra da Silva a Zeca Baleiro. Depois dos concretistas, do Roberto Piva e do Glauco Mattoso, fica difícil dizer o que cabe e o que não cabe na literatura; Drummond não fala de drogas, mas o Piva fala; quem não se lembra do “Caldo da Jurema”, já em José de Alencar? Em princípio, o livro não pretende ter nenhum tom de manifesto; despre-tensiosamente, são três amigos que resolveram fazer um livro para festejar com outros amigos no dia do lançamento.

VAIA - A Musa também lança um olhar bastante crítico para a cidade, a metrópole, São Paulo. Já no início do projeto isso estava nos planos de vocês?Tenho um colega professor, lá no Recife, que costuma ironizar o fato de que em São Paulo há modernismo e, no Recife, há regionalismo. Os termos conotam visões preconceituosas; ou todos são modernos, ou São Paulo também é regional. São Paulo tem sua tradição, seu "regionalismo", que gira em torno de edifícios, pontes, rios poluídos, da pequena burguesia bissexual dos Jardins, da periferia estilo Capão Redondo, da USP, da PUC, das livrarias - São Paulo é onde apareceram grupos de música instrumetal como Grupo Um, Divina Increnca - São Paulo é a terra da poesia concreta e do Teatro Oficina. Não sei quanto ao Ademir, mas eu nasci em São Paulo, vivo aqui há 44 anos, não apenas quando falo de drogas, termino tematizando minha cidade, que é o espaço onde vivo e que faz sentido para mim.

03

A musa

Ademir Assunção

Poemas de A musa chapada, de Antonio Vicente Pietroforte, Ademir Assunção e Carlos Carah, editado pelo selo Demônio Negro, em 2008

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Tentei imaginar meu dedo mindinho direito se movendo – deveria começar por um pequeno membro; assim, seria mais fácil.

Não sei contabilizar o tempo que passei nesse exercício de libertação, mas não resisti por muito tempo. Estava desistindo.

Já estava aceitando minha situação quando involuntariamente meu dedinho esquerdo se moveu. Fiquei esperando ele se mover novamente; se isso acontecesse, eu tentaria manter o movimento com a mente para que aos poucos meu corpo se soltasse.

Pacientemente fiquei na espera de qualquer sinal, qualquer que fosse já seria o bastante.

Esfreguei os olhos, bati no rosto, mas tudo permanecia azul. Me levantei e fui ao banheiro e, sem acender a luz, lavei o rosto nervosamente.

Quando acendi a luz, acreditando que aquela alucinação tinha passado, vi que meu reflexo no espelho estava todo azul; meu corpo, meus olhos e meus cabelos estavam azuis.

Depois de horas nesse tormento, tinha a nítida impressão que até o ar que respirava era azul. Fui obrigado a ligar para o meu trabalho e avisar que estava doente.

A manhã já começava, mas o amanhecer, ao invés daquele tom alaranjado, tinha um tom frio de azul.

Só podia estar sonhando. Não havia tomado nada na noite passada. Há muito tempo não usava drogas.

Estava cansado daquilo tudo. Tinha medo de sair; queria voltar a dormir.

Não foi difícil cair no sono novamente. Mas havia alguma coisa estranha acontecendo. Aquele não estava sendo um sono normal. Sentia vibrações por todos os lados e tinha consciência de que estava deitado em minha cama.

Não sonhava, mas estava imerso em um profundo e imenso branco. Não havia nada, apenas um denso branco.

Aquilo já era demais.

Comecei sentindo um formigamento na unha do indicador, até que esse formigamento se transformou em dor e dor no braço todo. Da ponta dos dedos até o ombro. Meu braço esquerdo latejava de dor.

Lentamente consegui mover os dedos, o antebraço; até que todo o meu braço se movimentava com facilidade.

Aos poucos, com bastante dificuldade, esses movimentos dolorosos foram circulando, se transferindo para o peito, o ventre, o braço direito, a cabeça. Até que conseguia me movimentar da cintura para cima.

Com minhas pernas foi mais difícil, porém eu já conseguia me manter sentado, massageando minhas coxas. Esperava ansioso o formigamento começar.

Eu não es tava consegu indo descansar, mas não conseguia mais despertar; estava aprisionado naquela espécie de dimensão onírica.

Conseguia sentir o frescor da manhã, mas estava aprisionado. Precisava tentar sair daquela cama, já que aquele sono não era sono. Possuía a consciência de meu corpo, mas ele não respondia a meus comandos, a meus desejos falhos.

O que esperava veio com muita intensidade, travei meu maxilar devido à dor. Tentei gritar, mas voz alguma saía. Descobria outro problema a resolver.

Quanto mais dor, mais formigamento. Me esforçava para que meus dedos se movessem, meus joelhos, alguma coisa. Sentia minha perna eletrificada, como se ela estivesse sendo eletrocutada.

Uma corrente elétrica muito intensa percorria minhas pernas, elas tremiam. Fui conseguindo dar pequenos chutes, até movê-las para fora da cama.

Sabia que naquele estado seria muito difícil me manter em pé; principalmente estando imerso naquele branco profundo. Mas eu tinha que tentar.

Firmei os pés no chão, deixando meus músculos doloridos tensionados. Num brusco movimento me coloquei de pé.

Cambaleante, consegui ver todos os meus móveis com suas cores e texturas originais.

Ao lado da cama estavam minha velha mãe e uns poucos colegas de trabalho. E em cima dela estava meu corpo pálido, com algodões nas narinas e vestido com um terno negro de lã.

Homero Gomes

ilustração CLAUDINE GOUX

Na véspera, deitou só para fingir que dormia, as horas passando devagar no deslizar dos ponteiros, mas antes mesmo do despertador chamar o menino já de pé, ajeitando o calção, meia grossa enfiada no bolso. Bebeu o café que a mãe deixara na térmica pra depois se embrenhar na noite escura de céu em sumidouro de estrelas.

Até a feira eram bem umas nove quadras, os passos rápidos nas ruelas silenciosas, só um ou outro barulho de tosse ou rangido a despertar os cães que ladravam sem ânimo, sonolentos na madrugada. Chegou e logo arrumou o que fazer, montar as estruturas, puxar as lonas, arrumar a mercadoria, tanto serviço que mal reparou no dia que clareava, numa miscelânea de cores.

Os clientes chegavam quando o menino foi negociar com Dona Adira, ela resistente em aceitar o trato, até alguém gritar da barraca ao lado: “é o filho do Airton!”. Escolha não tinha muita, mas qualquer um que servisse estaria bom. Calçou os tênis amarrando bem os cadarços, a meia dobrada no tornozelo, ajeitou o pé sem costume, deixou lá mesmo o chinelo, avisou que voltaria para pagar o restante. Agradeceu e saiu apressado, feliz com o acerto das coisas, tudo numa seqüência fluída desde o princípio do dia, e nem precisara incomodar a mãe.

A movimentação dos jogos atraía muita gente, gente estranha, meninos de outros lugares que vinham com as famílias, ou mesmo sós. Também o pipoqueiro empurrando o carrinho, outro homem ajeitando bebidas e gelo numa caixa de isopor. Faltando pouco mais de duas quadras, pressentiu um grupo que se aproximava, mas tarde demais. Levou a rasteira, caiu. Arrancaram até as meias, a carteira com a certidão amassada, a corrente sem valor. A pedrada veio quando pensou que já iam embora, e um deles retornou com a expressão ressentida, o braço tenso, a pedra atirada com força, bateu na altura da testa, rasgou a orelha também.

Tateou a cabeça e sentiu os cabelos molha-dos, a dor brotando com a consciência das feridas, chagas de todos os tipos se transformando numa só aflição. Por sete noites, o mesmo sonho entrelaçado, agora revisto numa tontura difusa, o passe perfeito, o gol encobrindo o goleiro, seu nome selecionado, a camiseta exclusiva, nas costas escrito Makonde, um craque, um nome para atravessar oceanos, alcançar todas as terras, também os ouvidos do pai que voltaria, quando fariam novo retrato, cabeças unidas, a mão do pai sobre seu ombro, a mãe de novo feliz na porta da casa, tanta esperança a caber num domingo, outro que não mais aquele, não mais.

“Pai desconhecido” não escrevia mais, sabia bem quem era seu pai, Airton Pedroso Guna dos Santos, vulgo Moçambique, mais tarde só Bique, quando a história se perdeu e o negro bom de viola e capoeira meteu na cabeça que ia ser garimpeiro em Roraima, e foi mesmo, sem nem olhar pra trás. Antes disso, ele vinha aos domingos pra tocar samba de roda e falar de uma guerra que havia matado seu bisavô lá do outro lado do mar, onde fica a África e o tal povo Makonde. A mãe ia pro culto resmungando, “dia de Jesus e você cantando, rindo alto”, e então era mais sonoro que o homem ria, aproximava a cabeça do filho contra a sua, também a mulher feliz de ver assim acarinhado seu menino, fazendo-se de ofendida com a Bíblia na mão.

Mais tarde, hora de matricular o moleque na escola, quase um ano de silêncio, a mãe foi e fez a certidão, depois se fechou em tempos de luto, chorou. Mas o retrato seguia encaixado na fresta da parede, anuviando-se aos poucos, o pai sem camisa sentado sobre um caixote, sorriso aberto configurando o rosto, o gato enroscado no chão, o pé de araçá ainda pequeno, lá atrás.

O homem pegou a ficha, cotovelos apoiados na mesa coberta com a bandeira do clube, o crachá com o escudo colorido pendurado no peito, conferiu tudo e depois avisou: “dez minutos pra cada lado, a camiseta a gente empresta, mas tem que vir de tênis ou chuteira, sem travas. Depois o técnico olha e decide. Quem ele chamar, vai, se não escolher, é sem reclamação”.

laro que não tinha. Nem tênis, nem chutei-ra, só o chinelo remendado com fita isolan-te, a borracha trincada sob o uso contínuo: dia sim, outro também. Mas não disse nada,

ignorou o aviso na cartolina, pegou a ficha de ins-crição e uma caneta, sentou-se no muro baixo que cercava o bar e anotou tudo lá, nome, sobre-nome, data de nascimento, filiação.

Entendido? Sim, Senhor. Doze anos? Sim, Senhor. Posição? Centroavante. Pode jogar no meio também? Pode, também pode. Dia 22, a partir das dez horas da manhã.

ilustração WILSON NEVES

Atravessar oceanos

Sabia que não ia esquecer, mas gostou de ver escrio ali, “Moisés, domingo, 10 horas, campo do Turumã”.A mãe chegou e perguntou o que era, ele contou sobre os

A semana passava, veloz. Na escola, nas ruas, os jogos deixavam de ser brincadeira e eram agora ensaio, desafios, experiência, tudo mais nervoso que o habitual. Moisés nada comentou com a mãe sobre o uniforme, as contas já todas em atraso, sabia que pedir, ou mesmo dizer, seria só mais um suspiro fundo, outra desolação.

Pensou em ajudar na feira da manhã. A montagem começava as quatro, cinco horas, tinha a barraca da turca que vendia calçados, haveria de ter algo que servisse. Se ganhasse metade como ajudante, conseguiria o resto no fiado. Pediu para a mãe dar permissão, sabia que ela não gostava da Dona Adira, também conhecia as histórias sobre a mulher que enchia seu pai de presentes, camisas da China, abrigos do Paraguai. Mas explicou os motivos e a mãe consentiu, depois recomendou que tomasse cuidado e esperasse por ela mais tarde no campo, estaria lá.

testes de seleção.

cordei no meio da noite enxergando tudo o que havia em meu quarto transmutado pa- ra a cor azul. Meu cobertor vermelho esta- va azul; meu criado mudo com pátina em

tom salmão estava azul; as paredes, o carpete e até meus quadros decorativos estavam azuis.

Por trás do véu

04

Monique Revillion

C

A

Saiu da fila e correu pra casa, anotou num papel e grudou na parede, perto da fotografia.

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do que representou, seja no teatro, no cinema ou em animação de festa infantil. Isso também vale para papel de doente mental, de aleijado e coisas do gênero.

Em literatura as coisas não mudam muito de lugar. O pessoal do Rio de Janeiro se amarra em falar do universo das favelas, ora exageram nas tintas do drama, ora tentam glamurizar a miséria. De um modo geral, sempre rende falar da loucura, o universo dos loucos cativa uma penca de neguinho que na verdade gostaria mesmo de ser psicólogo, psiquiatra. Resumo da ópera: leram Dostoievski de cabeça para baixo.

Mas por que essa introdução que até agora não introduziu nada? Ledo engano, ansioso leitor. Sigamos, pois.

Grande homem mais ou menos, livro de contos de Luís Pimentel, tem traços do que foi dito acima e mais uma dose de absurdo. É o livro dos limites. Se bem que em determinadas situações essa cerca é derrubada inapelavelmente. Pimentel distribui melancolia. Sim, eu sei que o ser humano é capaz de tudo e que inclusive o absurdo se presta à verossimilhança. Em matéria de espezinhar o semelhante, somos top de linha. Pimentel faz da violência a ma-téria-prima de seus contos. Seja na explosão do casal que numa noite de chuva passa com um carro por cima de um toco, seja na notícia da morte do

aço valer meu baú de restri-ções sempre que alguém mediz que fulano é um tremendo ator devido ao papel de bêba-

pai encarada apenas como algo capaz de atrapalhar a paz daquela casa ou ainda na aspereza do diálogo, dentro de um carro em movimento, do homem com a prostituta, culminando com o carro sendo jogado contra o poste. Detalhe: ele direciona o carro de modo a se dar o choque exatamente no lado do carona. Você, atento leitor, deve ter lido um conto de Rubem Fonseca onde um homem sai de carro pela noite a se divertir atropelando transeuntes. Inevitável lembrança. Quando o assunto é violência logo surge Rubem Fonseca, mas só citei o dito cujo para você não pensar que não sei da existência do cara, embora só o tenha na conta de relevante até Bufo e Spalanzani. Depois? Cansou e inclusive desaprendeu a se repetir.

Pimentel envereda por cami-nho bastante próximo porém bem diferente, ele se ocupa mais daquela violência que fica contida, mas não exige muito para aflorar. Como no caso do motorista de ônibus irritado com o vendedor de bugigangas que atravessa a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, fora do sinal, e quase é atropelado. Na delegacia, o motorista não se comove com o atropelamento, o que o preocupa é ter feito a vítima errada. Grande homem mais ou menos é pura melancolia, não recomendaria a deprimidos, aqui a conclusão inevitável é de que o ser humano não

tem conserto. O autor abusa da violência, da tragédia, da miséria, porém diferentemente dos "epígonos fonsequianos", Luís Pimentel evita o escárnio. Desse modo, corre sério risco pois não conduz o leitor ao tão propalado clímax, sua opção é o avesso, a desolação. É o homem, o ser humano, frente a um "espelho afiadíssimo." Grande homem mais ou menos apresenta variações sobre o mesmo tema, a miséria da condição humana, é um livro bastante curioso nesse sentido, no entanto, embora a rapidez de suas histórias, também é capaz de assustar. As personagens de Pimentel não necessitam das ilusões como motores de existência, são a antítese de Quixote, falta-lhes o sonho, não se vislumbra o mais tênue traço de poesia nesses protagonistas do abandono. Por vezes nos deixam a im-pressão de estarmos diante de seres ignorantes de qualquer razão, não lhes sobra sequer uma gota da infância, época onde inevitavelmente nos sobra um pouco de amor. Luís Pimentel nos descreve a realidade da crueldade, do grotesco, da humi-lhação, da solidão. A morte vem a ser a presença mais forte desse livro, um campo de batalha percorrido pela dor e pelas palavras. Mas por favor, quase ingênuo leitor, não cometa o erro de acreditar

que os contos de Pimentel são fúnebres, pessimistas, não caia nessa armadilha tola. Sua intenção é radicalmente humana - apresenta o medo e a dor de viver. O autor combina o vazio com a luz criando uma estranha sinergia, uma ode aos sentimentos mais cruéis que infelizmente muitos de nós conse-guem cultivar e transmitir e legar àqueles de tristes futuros.

Importante ressaltar a quan-tidade de movimento imprimida nas tramas, no homem que busca emprego, no ônibus e nos carros em movimento, na bola de futebol, no passado que alcança o presente em Quem matou o cachorrinho?, na mulher libertada em Correntes. Mesmo assim, a ação não alcança o status de substância nos contos, ao contrário, serve apenas de amparo. A essência dos contos de Grande homem mais ou menos não está no que acontece, mas no simples viver, e acima de tudo no cenário que os protege e ao mesmo tempo, oprime. Isso, no entanto, não evita a impressão de estar diante de episódios de uma única história e entre tantos movimentos, alguns acidentes são inevitáveis. Exemplo: Eastweek em Botafogo consegue ser quase lírico em meio a essas pantanosas emoções, enquanto Garrincha fecha o livro com a constrangedora chave da pieguice. Não fosse isso, Luís Pimentel teria escrito um grande livro, absurda-mente invulnerável às críticas.

O espelho “afiadíssimo” de Luís Pimentel

Grande homem mais ou menos

Como na doideira da balada do Pink Floyd, quando brilha o diamante maluco; ou na dos Mutantes, assumindo um Alain Delon perante os bonitos; ou na mente de Raul, na hora de se metamorfosear em detrimento da velha opinião, ou ainda ficar maluco beleza em vez de fazer tudo igual como um sujeito normal, Campos elege os furiosos e a beleza esquizofrênica do bom senso na insensatez.

Em outro romance, “A vaca de nariz sutil”, seu personagem principal é um ex-combatente que volta à pátria e se envolve com uma menor, filha do zelador de um cemitério. A questão colocada é a incoerência de se aceitar como herói quem mata na guerra, e se transformar em criminoso social aquele que se apaixona por uma adolescente.

Hoje, com a internet, alguns padres pedófilos insuspeitos e até certos roqueiros camelos que se enamoram de menores, fica mais fácil compreender o romancista. É mesmo muita sutileza para uma vaca só.

Meu livro preferido de Campos é “A chuva imóvel”, certamente o mais filosófico. André, seu protagonista, acaba em crise existencial profunda e só vê a saída no suicídio, ou na imobilidade da chuva em salivas metafóricas

sendo cuspidas em sinal de protesto. A chuva, que quer cuspir e não pode, remete ao porquê da “oficialidade” do Papai Noel da Xuxa. Voltemos ao autor. Sua obra mais famosa é Púcaro Búlgaro”, escrita em 1964 no tempo recorde de vinte e dois dias, e que teve recente montagem teatral elogiada. A ação tem início num museu norte-americano, onde Hilário, o personagem central, encontra o tal púcaro, e retorna imediatamente ao Brasil a fim de organizar uma expedição para a descoberta da Bulgária. O cerne do livro é a não-epopeia, ou seja, a via-gem que nunca sai do papel, não deslancha e resulta invariavelmente na inércia. Isto é, não se vai nunca a lugar nenhum, quanto mais à Bulgária. O contraponto de Hilário é o professor Radamés, um bulgarologista tão doido quanto.

A primeira vez que associei as intenções e o incrível efeito do púcaro em minha vida foi nos primórdios do bloco carnavalesco do Bip Bip em Copacabana, que vivia se concentrando e enchendo a cara dos foliões, e ninguém acabava sabendo quando sairia, e, se por acaso saísse, em qual direção. Ali, no bar do Alfredinho, vivi meu púcaro inicial. Outros mais viriam, como um incessante repetir da filosofia camposcarvalhiana. Carpe diem que não se chega a rien.

Em face disso, pode-se tentar decifrar o caráter “oficial” da chegada do Noel da Xuxa: o mesmo helicóptero que trará o bom velhinho o levará de volta, até o ano que vem, quando, quem sabe, alguma vaca sutilmente nariguda, talvez uma lua delirante, uma chuva que cospe, ou um certo púcaro búlgaro, farão todo o sentido e levarão avós, pais e filhos no Maracanã ao transe e delírio. Se todos, de perto, são loucos de pedra, calcule num estádio de futebol lotado.

A lógica da pura insanidade foi a marca da literatura de Campos de Carvalho e, nestes nossos dias, se vê bem que a sua loucura racional não era só um vaticínio, mas uma mera constatação. Oficialmente falando, é claro.

“O

seu irmão), Daniel (ex de seu melhor amigo), Kelly Key (ex de seu pseudo latino-amante) e outros. Está certo, há gostos estranhos na época do Natal. Um tempo diferenciado, no qual se vende de tudo, inclusive algumas almas, e os corações e mentes ficam mais sensibilizados.

Mas nada disso importa muito. O fato a se destacar aqui é o anúncio da chegada do Papai Noel “Oficial”. Como assim, oficial? Por acaso, os demais não o seriam? Os dos shoppings que passam horas batendo fotos com as crianças no colo, ou os que chegam nas escolas, nos clubes e nas festas domiciliares seriam cópias sem garantia? Noéis piratas? Bem-feito para o tal que, supõe-se, venha da Lapônia no trenó e com renas. Virou um extra-oficial.

Isso tudo me fez lembrar de Walter Campos de Carvalho, uberabense genial e autor de obras carregadas pelo non sense.

Por exemplo, a chegada “oficial” do Papai Noel dava, perfeitamente, para entrar direto no romance “A lua vem da Ásia”, escrito na década de 50, uma história sem pé mas muita cabeça, espécie de elogio irônico à ruptura de qualquer possível lógica que não a absoluta falta dela. O Papai Noel “Oficial” da Xuxa, certamente, vem da Ásia lunar. Campos de Carvalho, morto em 1998 aos 82 anos, hoje veria sua obra literalmente compreendida, ele, que foi um visionário dos atuais e irracionais tempos de bispos Macedo, César Maias, Fausto Silvas e dengues hemorrágicas. Afinal, o sem juízo em suas obras (cinco romances, alguns ensaios, crônicas e contos) é justamente aquele que consegue entender o recôndito humano. O sadio é apenas oblíquo e o grande responsável pelo pinel real e o caos entre nós.

cabo de ver na tevê que a Xuxa vai re-ceber o Papai Noel no Maracanã. Pre-cedendo a chegada de helicóptero do velhinho, um show com Leonardo (ex de

Marcio Paschoal

ilustrações CAMPOS DE CARVALHO

Luiz Horácio

F

05

Campos de Carvalho em versão oficial

A

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Pimentel, pra iniciar nossa conversa, fale um pouco da sua trajetória de vida e de escritor.Vim da Bahia para o Rio de Janeiro pra estudar teatro e iniciei, por acaso, na imprensa, fazendo “picles” (frases de humor) no Pasquim. Mais tarde, esses trabalhos foram reunidos em livro - “Declarações de humor”. Depois trabalhei na revista Mad (versão brasileira). Na época, pra se obter registro de jornalista, era necessário comprovar ter feito pelo menos 20 matérias, daí era-se considerado jornalista colaborador. Fiz trabalhos para o Pasquim em 1976/77, pra Mad em 1976. Na editora Rio-Gráfica, que editava revistas de HQ (Mandrake, Fantasma e outras) trabalhei como copidesque, fazendo adaptações dos textos para os balões. No jornal Última Hora fui redator e fiz várias matérias sobre música. Nesse período aí no UH, passei a escrever crônicas, perdi o encanto pelo teatro, e adquiri de vez o fascínio pelo texto.

Essa era uma época de muitas publicações culturais, havia muitas revistas e jornais que tinham foco essencialmente cultural.A imprensa alternativa era mais centrada em jornais políticos. O Pasquim fazia política com humor. O jornal Opinião era mais político. Mas tinha o Movimento que era de política e literatura (publicavam contos e crônicas também). A revista Ficção, editada pelo Salim Miguel e pelo Cícero Sandroni, era só literatura. Esses eram todos tablóides.

Além do trabalho jornalístico e de cronista você também já escrevia e publicava ficção, contos, poemas, literatura infantil?Nunca me prendi a um só gênero literário, nunca achei que tivesse que fazer carreira nessa ou naquela. Meu primeiro livro publicado foi um livro infantil, o segundo foi de crônicas reunidas. Depois publiquei poesia (o livro “Miudezas da velha”). Então fui vendo que o meu negócio não era me prender a gênero, e sim escrever sempre o que me dava vontade. E também sempre escrevendo sobre música, que é uma das minhas paixões. Ao longo do tempo fui juntado material sobre música que resultou na publicação do “Com esses eu vou...” Tenho alguns contos cujos personagens são compositores, por exemplo, Geraldo Pereira (tem um conto sobre ele no livro “Um cometa cravado em tua coxa”), Nelson Cavaquinho, Assis Valente.

O que veio primeiro pra você, a poesia ou a prosa?Escrevia literatura infantil, poesia, contos, tudo na mesma época. E já publicava poemas em jornais da Bahia. Bem depois é que comecei a publicar poesia, após os livros de crônicas e infantil. Os poemas que estão no “Miudezas da velha” e no “Calcanhar da memória” foram escritos talvez nos últimos vinte anos. E quase todos tendo como fonte de inspiração coisas muito passadas, quase sempre da infância ou de pessoas com quem convivi na infância. Tem poucos poemas com temas da atualidade também, mas o universo mais recorrente em mim é esse próximo da infância. É de uma memória mais antiga. Mesmo me impressionando com algo atual, o que detona é sempre uma memória mais afastada no tempo.

E a literatura infantil? A inspiração para as histó-rias infantis vem de onde?A inspiração para as histórias infantis vem, princi-palmente, do meu filho.

E o olhar do poeta para a infância, ver a poesia que há na criança, e também tirar a matéria literária dessa memória infantil do poeta, isso também contribui? Como é isso pra você?Tem muita coisa escrita em versos na minha obra de literatura infantil, na maioria dos livros. Acho que foi isso: a poesia já estava lá nesse imaginário infantil que você falou, mas eu não me dava conta, não prestava atenção, não parava pra ver.

Você fala em "universo dos fodidos" e eu imediatamente me lembro de João Antônio. Pra mim a obra completa do JA poderia se chamar "Universo dos Fodidos". Antes dele tivemos o Lima Barreto, e você também acha que há essa, digamos, linhagem literária, ou esse foco de alguns escritores, a qual você também pertence?

Tive uma infância pouco lúdica, comecei a trabalhar muito cedo. Fui obrigado a ser adulto cedo, nunca fui adolescente. Por isso também nunca escrevi pra adolescentes, não sei particularmente o que é adolescência. A passagem foi da infância para o adulto trabalhando, mesmo que esse “homem adulto” que eu era tivesse pouco mais de dez anos de idade. Então a poesia devia estar lá num canto qualquer da minha alma e uma hora ela se impôs.

Você acha que a poesia tem que ser extraída direto da vida, do que está no cotidiano, da reali-dade palpável, daquilo que é comum a todos e que todos sentem e entendem?Sim. E são meus poetas preferidos os que encaram a poesia dessa maneira. Os que falam do cotidiano. Do cotidiano de agora e do cotidiano do passado. Mas que seja da vida, que tire a matéria poética da vida. O poema que eu gosto é o que me emociona, me comove. Poesia tem que emocionar. Tem que lidar com temas que sinto que são temas da vida. Tanto pode ser no tema de hoje como do passado, uma memória de infância, por exemplo. Mas essa memória também foi vida, está lá grudada na gente para sempre.

O título do livro, "O grande homem mais ou menos", lembra algo de Nelson Rodrigues. Como é que você chegou a este título para o livro?É o título de um dos contos, e surgiu por acaso. A narrativa retrata o dia de um velho aposentado, bêbado, que vive sozinho em seu apartamento ao lado da mulher – a quem odeia porque ela vive criticando suas bebedeiras. Absolutamente nilista, descrente, desiludido e amoral, o velho se diverte escarrando da janela sobre as pessoas que passam na calçada. E falando sozinho, para as paredes e corredores. No fim do conto ele diz: "Eu sou um grande homem. Aliás, sou mais ou menos. Como todo grande homem". Quando acabei de escrever essa frase eu percebi que ela era o título do conto. Quando organizei o volume para inscrever no Cruz e Souza, achei que esse conto deveria dar título ao livro. Não tanto pelo conto, que talvez nem seja o mais forte; mas pelo título em si, que me agradou bastante.

O livro foi premiado - 2º lugar no Prêmio Cruz e Souza - e não havia sido publicado ainda, e você agregou outros contos, que, por assim dizer, estavam dentro da mesma temática. Pode-se encontrar também no "O grande homem mais ou menos" alguns núcleos temáticos que já estavam presentes no livro anterior, "Um cometa cravado em tua coxa". Fala um pouco sobre essa trajetória literária - o caminho que você percorreu no intervalo entre esses dois livros.O volume premiado é menor que esse agora editado pela Bertrand Brasil. Só metade dos contos estavam lá. Teve uma edição, da própria entidade organi-zadora do prêmio, a Fundação Catarinense de Cultura, destinada apenas a divulgação, a bibliotecas e outras instituições públicas. Portanto, estava inédito em termos de mercado editorial. As narrativas de "Um cometa cravado em tua coxa" foram escritas antes dessas do “Grande Homem”. Mas tanto num quanto noutro, bem como nas histórias que estou construindo para o próximo livro de contos, existem temáticas primas ou até mesmo irmãs. São os meus personagens, as atmosferas que me comovem, os cenários que se repetem porque fazem parte de minha vida. Esses personagens habitam um universo – como você observou certa vez, o universo dos fodidos – que me interessa explorar, que artisticamente me cativa: a solidão, o abandono, o desemprego, o desamparo, a falta de saída, de perspectivas, de prazeres.

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Luís Pimentel lançou no ano passado o premiado livro de contos "O grande homem mais ou menos". Aqui nesta entrevista ele nos fala de sua multifacetada trajetória de jornalista e escritor, de invenção e memórias e de seu universo de personagens saídos do chão pisado e escarrado da realidade brasileira atual. Sobre isso Pimentel tem bastante coisa a dizer e o diz muito bem.

Vejo duas características bem claras no livro. Primeiro, a criação de uma realidade crua e cruel vivida por um elenco de personagens que invariavelmente se defrontam com situações que os obrigam a mostrarem-se em essência ou desvelarem a essência do outro. Segundo, a matéria trabalhada nos contos, a do cotidiano, da vida complexa e palpitante, da vida que é medíocre e pequena, mas que também extrapola para o lírico e o alumbramento (o das coisas de menor importância, à Manuel Bandeira).À Manuel Bandeira, Ferreira Gullar, Nelson Rodrigues, Miguel Sanches, Luiz Vilela, Dalton, Graciliano, todos os que têm ou tiveram um olhar carinhoso, humanista, delicado e atento aos indivíduos. Sobretudo, aos indíviduos que, por suas carências expostas, pedem maior atenção. A arte – sem qualquer compromisso com o engajamento cego ou com o panfletário – cresce quando imita a vida e a transforma. Seja no cinema (como no neo-realismo), no teatro dos melhores autores, nas letras de canções do Chico Buarque, do Aldir Blanc, do Noel Rosa, do Geraldo Pereira, do Paulinho da Viola, ou em grandes obras das artes plásticas universais. Em tudo isto, o cotidiano se impõe. A matéria-prima é o homem. E quanto mais rica a vida (mesmo a dos mais pobres), mais cheia de nuances. Daí ter lugar para o lirismo, a poesia, o desconforto, a fome, a angústia. Já disseram que nada do que é humano nos é estranho. Pego isto ao pé da letra.

foto ELISA COSENGA

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perfeitamente felizes; acho que eles não rendemNão sei escrever sobre personagens

Nasceu em Feira de Santana (BA), em 1953. Vive noRio de Janeiro desde 1975. Trabalhou em diversosjornais e revistas (MAD, Última Hora, Jornal do Brasil).Dirigiu e editou a revista Música Brasileira, publicaçãodedicada à memória e aos lançamentos da MPB. Fez parte de dois periódicos que Ziraldo lançou na última década - Bundas e O Pasquim21. É autor de mais de20 livros de poesia, prosa, para adultos e crianças.

Luís Pimentel

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As miudezas da velha (Prêmio Jorge de Lima de Poesia, Ed. Clima, 1990. 2º Edição: Myrrha, 2003)Um cometa cravado em tua coxa - contos (Ed. Record, 2003)Entre sem bater – Humor na imprensa, do Barão de Itararé ao Pasquim21 (Ediouro, 2004)O calcanhar da memória - Poesia (Bertrand Brasil, 2004)Com esses eu vou – de A a Z, crônicas e perfis da MPB (Editora ZIT, 2006)Grande homem mais ou menos - contos (Bertrand Brasil, 2007; Fund. Catarinense de Cultura- Prêmio Cruz e Souza 2002)O bravo soldado meu avô (Ed. Antares; 1984; Ediouro, 1995) As roupas do papai foram embora (Ed. Record, 1992)O mosquito elétrico (Myrrha, 2004)Cantigas de ninar homem (Bertrand Brasil, 2005)Ary Barroso (Moderna, 2008)

Vou falar algo que possa talvez ser meio fora de propósito ou só especulativo, mas quero enfim saber sua opinião. Estou lendo agora também o "Rasif - mar que arrebenta", livro de contos do Marcelino Freire. Marcelino é pernambucano, vive em SP, você é baiano, vive no RJ. A literatura do Marcelino também trata dos fodidos - de bolso e de alma, principalmente os de alma. Os desorientados, perdidos e desenraizados, feito os seus personagens. Cito o Marcelino porque é o cara que estou lendo, poderia citar o Luiz Ruffato e tantos outros, que estão escrevendo sobre coisas da alma particular dos brasileiros e da sociedade brasileira atual. Quero dizer que isso me parece um grito muito forte - seu, do Marcelino, do Ruffato - pra falar de coisas do aqui e agora, do porque vivemos assim, o que nos trouxe pra a situação presente etc etal.

Boa observação. Ao mesmo tempo, me parece, identifica esses autores com o seu tempo, com a vida que estão levando, de confusão e de dureza. Geralmente, somos moradores de grandes cidades, não é? Onde as mazelas estão expostas em cada esquina, a diversidade de fodidos se arrastando de um lado pro outro em busca de trabalho, casa, alegria, sexo, cachaça etc é cada vez maior. Gosto dos dois citados, tanto o Marcelino quanto o Ruffato trabalham maravilhosamente bem esse universo, fazem isto muito mais bem feito do que eu, inclusive. Penso que essa coisa também, sobretudo no meu caso e no do Marcelino, de vir lá do Nordeste, nos confere uma embocadura muito própria, uma ligação muito grande com a perdição e o desterro. Sei que o olhar generoso para o ser humano não é característica de nenhum povo em específico, mas os indivíduos que penaram mais, enfrentaram mais porrada e mais dureza, com certeza têm isso bem mais à flor da pele. Espero não estar sendo pretensioso.

E você não acha que essas vozes, assim feito a de escritores como vocês, não deveriam circular mais acessível a todos, nos veículos de comunicação? Não deveria ser uma função, por exemplo, do jornalismo repercutir essas vozes, não deveríamos encontrar essa visão crítica nas páginas dos jornais? Na forma de literatura - sendo publicado mais texto literário na imprensa escrita - e de trabalho jornalístico mesmo?Acho. Mas a história do texto literário em páginas de jornais é antiga. Diretores de Redação não concordam muito com isto, haja vista a diminuição do espaço para literatura até mesmo nos cadernos literários, que têm cada vez mais se dedicado a publicar grandes matérias sobre o mercado editorial e menos sobre a literatura, propriamente dita. A literatura no jornalismo está restrita, em alguns casos, ao papel dos cronistas (pelo menos daquele que em suas crônicas cedem mais à criação e menos à informação), cujo espaço vem, também, sendo reduzido. Enfim, dizem que quem reclama já perdeu. Então, vamos em frente, com o que temos ou com o que nos oferece.

Tá certo. Então, voltemos ao livro. Como é que nascem os seus contos? Digo, as ideias ou motes surgem na sua cabeça e são trabalhados a partir de quais motivações ou aplicações de tais ou quais técnicas, como funciona pra você? Por exemplo, como foi concebido, elaborado, trabalho e concluído o conto "No dia em que vim me embora"?As ideias ou motes surgem o tempo inteiro - penso que seja assim com a maioria dos autores. Um filtro qualquer, na alma da gente, vai depurando e vendo o que pode efetivamente ficar; quase sempre aquelas ideias que já surgem marcantes, instigando, nos provocando. Se a ideia vem e não posso começar a escrever na hora, por qualquer motivo, ela vai embora. E aí retorna ou não. As que retornam uma, duas, três vezes, insistem, voltam sempre depois de expulsas, essas são as fortes, as que nos obrigam a prestar atenção no assunto que elas trazem. "No dia em que vim me embora” faz parte de uma série de contos que tenho – "A viagem" e "Um dia de paz lá em casa", por exemplo, para ficar neste livro – pensando a relação entre pai e filho, que quase sempre me interessa muito e me comove. Não vivi essa relação no primeiro tempo do jogo, porque o meu pai morreu quando eu era recém-nascido, mas vivi no segundo tempo, na relação com o meu filho, sempre muito intensa e proveitosa para os dois.

A inexistência desse relacionamento aparece com muita frequência em contos meus, porque o tema me pega pelo pé e pelo coração. "No dia em que vim me embora", um dos contos meus que mais gosto, nasceu nessa atmosfera, busca de diálogos possíveis entre pais e filhos, até surgir esse momento de um levando o outro, a contragosto (dos dois) para um Seminário. O resto é o fio invisível que vai puxando.

O conto "Flores em vida", homenagem a Nelson Cavaquinho, quase no final apresenta o trecho de uma canção do Nelson que diz "as lágrimas que rolam em meu rosto não sabem dizer qual é o meu desgosto". Há permeando, senão em todos, na maioria dos contos, o sentimento de "desgosto" e de "morte" (que são temas dos contos também) vivido pelos personagens. Eles vivem à mercê de "desgosto", agindo por desgosto, matando por desgosto e se revoltando por desgosto - o que é causa e consequência de loucuras, ódios, paixões e descrenças. E parece que esses personagens vivem - como na música do Chico Buarque, citada no conto "Amada, América" - só por teimosia, impotentes, incapazes de alterar seus reveses. Outra característica é o enfrentamento da "morte" pelos personagens. Morte em seus variados significados. Comenta essas duas temáticas. Essas sensações e esses sentimentos brotam tão naturalmente ao desenrolar das histórias, que talvez eu nem consiga explicações racionais para eles. Mas pode dizer que a gastura, o desconforto, a inquietação ou mesmo "o desgosto" rondando a vida desses personagens os deixam mais interessantes, por me permitir, enquanto autor dos textos e condutor das vidas dessas figuras, criar situações mais próximas do drama, dos conflitos. Não sei escrever sobre personagens perfeitamente felizes; acho que eles não rendem.

E morte entra de que maneira na sua literatura?Quase sempre como uma filha da puta que chega para interromper o que não devia, quase sempre na hora errada. É uma presença constante em meus pesadelos e, por conseguinte, em minha literatura. Jamais começo a escrever qualquer coisa pensando em fazer qualquer alusão à morte, em matar esse ou aquele personagem. Mas quando menos espero o tema se impõe. No conto que abre o livro, "A viagem", comecei uma história pensando na dor de um pai velho que vê o filho único sair de casa, em busca de emprego na capital, deixando ele sozinho e ao lado de uma mulher doente. Queria só isto, martelar nessa tristeza, nesse abandono, nessa dor. Quando me dei conta, já entrava em cena um personagem para informar da morte do rapaz... não tenho muita explicação sobre como isto se dá, como não tenho qualquer explicação nem aceitação – acho que ninguém tem – para a morte.

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Acho que não estou umbilicalmente ligado a essa tradição do Universo dos Fodidos, como postura literária, porque nem tudo o que faço está atrelado a essa influência – como foi o caso do João e, sobretudo, do Lima Barreto. Os personagens desses autores já chegam com essa marca; enquanto os meus, não. As marcas vão aparecendo em alguns casos, em algumas situações. Os meus fodidos são mais fodidos existencialmente do que financeiramente. Não são antes de tudo os pobres, desdentados, desempregados, trambiqueiros. São pessoas mais simples e menos carimbadas com os rótulos todos, mas quase sempre fodidos de alma: perdidos, angustiados, desorientados - a maioria até que são também fodidos no bolso. Mas o bolso não é o ponto de partida para a perdição deles. Será que fui claro? Tomara que sim.

Você tem a música muito presente em seu trabalho, tanto no literário, quanto no jornalístico. Sei também que você é compositor e letrista. Noto em seus contos - na maioria deles aliás - um forte traço de melodia e ritmo nas construções das narrativas. Dá pra ler/ouvir nos seus contos os choros, os sambas, umas cadências de baiões e canções praianas, é só ler de ouvidos um pouco abertos. Você concebe os contos assim à semelhança das composições, ou é intuitivo, quanto tem de elaborado? Quanto tem do compositor ali na elaboração das narrativas?É absolutamente intuitivo e creio que não se encontre, nem de longe, a presença do compositor. Até porque, o "compositor" é um iniciante, pois eu sempre quis escrever letras de músicas mas não tinha parceiros - e sou incapaz de compor uma melodia. Só agora encontrei um parceiro, o gaúcho Sandro Dornelles, e estamos desenvolvendo um trabalhinho juntos, que está indo bem. Se encontra muito mais, nessa intuição, a presença do curtidor de música, que desde muito cedo se apaixonou pelas canções de Luiz Gonzaga, de Noel Rosa, Wilson Batista, Lamartine Babo, Cartola etc. Antes de conhecer os poetas dos livros, conheci os poetas da canção. Minha primeira paixão pela palavra se deu pela palavra cantada. Então, a presença da música em minha criação é muito forte e vem sem que eu me dê conta. Quando menos espero, os personagens estão cantando alguma coisa, falando de algum compositor, estabelecendo alguma ligação musical em suas vidas. Você dizer que "dá pra ouvir os choros, os sambas e as cadências" no texto é, para mim, um grande elogio.

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Grande homemmais oumenos,livro decontos de LuísPimentelEditoraBertrandBrasil, 2007

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– Vai ser bom para você – ele disse. Fingi que não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na estrada, na direção contrária à do caminhão.– Você vai aprender a ler, conhecer todas as histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas. Voltei minha atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.– Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no fim do ano vem passar as férias em casa.– Não venho – reagi.– Não vem? Meu pai apertava mais os lábios, coçava a barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste, nervoso, com saudades de minha mãe. Continuei impiedoso:

Subimos na carroceria do caminhão que nos levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus. Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas. O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “se cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu. Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando nos acomo-damos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os dentes os fios mais compridos do bigode.

– Não venho.– Eu busco você.– Mas não me traz de volta. Não piso nunca mais os pés em sua casa. No ônibus que nos levava para o seminário, ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a mal-criação. A paisagem era mais verde do que na estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:– Pensando na morte da bezerra?– Em meu cachorro.– Sua mãe vai cuidar bem dele.– Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de nada neste mundo.– Eu cuido dele.– O senhor não tem tempo.– Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho, você vai ver. Como é o nome dele?– Não tem. É cachorro mesmo.– Vou cuidar muito bem de Cachorro – repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de couro à recepcionista. Que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar. Daí em diante, foi contar os dias até a chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a chegada do meu pai, os olhos parados na direção da estrada e as calças cada vez mais curtas. Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar sofrimentos desnecessários. Cumpri orgulhosamente minha promessa de não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo, lembro de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.

– Você se apresse, que não tenho todo o tempo do mundo para ficar à sua disposição. – Quase pronto, pai. Mas posso saber para onde vamos?– Já disse. Para o tal do seminário.– E por que o senhor resolveu que tenho que ir para um seminário?– Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Ideia lá dela. Meu pai falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as frases, sem muito cuidado com as palavras. Entendi, mas fiz que não. Com o pé, fiz um carinho no cachorro que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu. – E desmonta essa cara de tristeza. Parece um bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo, menino.– Porque não é o senhor que está deixando sua casa para ir não sei para onde.– Você não vai para não sei onde. Vai para um seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.– Grande coisa! – Você está sendo mal-agradecido. – Eu não queria, pai.– Sua mãe decidiu.– Eu sei.– Tá decidido.– Eu sei.- É assim que a banda toca. São assim as coisas neste mundo.– Vou poder levar o meu cachorro?– Não. Eles não aceitam bicho lá. O sol sempre intenso naquele pedaço de mundo parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.

Também se desenha e se borda em um diálogo assim:

vida de um homem se borda no amor ou no desa- mor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de tudo aquilo que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a ausência de um cachorro.

Luís Pimentel

arte VICTOR HUGO CECATTO

Carne e trigo

As mãos matemáticas do paitransmutam-secasando carne e trigo.

O riso afaga o kibe,respeita a kafta, louva as beringelas.

Pacificado o domingo,nas bocas ocupadas,o grão de bico silencia o sal das línguas.

O aroma de hortelãamansa as arestas da mesa.

Canela adocicando a pimenta:assim é o tempero sírio.

Depois o caféarenoso e forte. A borra no fundo da xícaradesperta piadas com rima.Sempre as mesmas –sempre a mesma família.

Mas antes o doce(que doce):nozes manteiga semolina

nós e o passado.Logo ali na esquina.

film still # 2

ensaio voyeur da câmera, arranha-céu ao fundo tailleur, scarpins e colarinho uma garota em apuros, o boulevard vaziopressa dos passos ou cerco da presa?ensaia golpes imaginários - jab, upper, cruzadode luvas vermelhas, round livre marilyn na musculação, halteres

**

afeto, um infarto no corpo calosointerrompe a conexão hemisférica

dr strangelove e sua mão estrangeiraque desconhece o que faz a outra mão

no homuncúlo motor de penfielda mão inimiga, frontal, desinibida

e seus gestos bruscos, incontroláveisdesorientam o circuito cortical

dr strangelove e seu cérebro bipartidoambivalente, anômico, apráxico

ou seria dr jerkyll e mr hydesua fenda entre homem e sombra

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ANo dia em que vim me embora

Laís ChaffeVirna Teixeira

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A poesia dessa menina de uma timidez que se permite ousar – “Não sou tímida, quem disse que eu sou tímida?” – nos diz que tudo deve adquirir um incrível senso de normalidade. Então, ela me explica apenas com os olhos, levando o copo à boca, qualquer coisa poderá assumir uma grandiosidade própria. Mas o mais difícil era saber o que dizer a ela. Eu havia anotado quarenta e seis perguntas das mais descabidas num caderno enquanto ela ainda não havia chegado, e estava realmente começando a perder a cabeça quando ela finalmente chegou. Depois que ela sentou eu não sabia mais nem mesmo o que estávamos fazendo ali. A única pergunta que me vinha à cabeça era algo como: “O que você pensa acerca do Gato de Botas?” A situação começava a ficar realmente difícil, quando ela decidiu pedir “apenas uma água” e eu abandonei o chope e desci um degrau até a vodca nacional. Então duas meninas dessas contratadas por empresas frigoríficas se aproximaram com amostras grátis de pequenos sanduíches de mortadela com pão francês. Aquilo deu uma esfriada nos ânimos e pude até ser engraçadinho. As mulheres vieram com seus cestos de pães e Alice me perguntou discretamente o que deveríamos fazer. Eu disse “Ora, comer os sanduíches”. Então as mulheres chegaram bem perto e nos ofereceram o pão com mortadela mais novo do mercado. Eu disse “Dê os dois a ela, que ela está faminta”. Todos rimos e Alice me deu um tapa de leve no braço. Aquilo era inesperado, um tapa de leve no braço, e de algum modo serviu para alguma coisa. Depois começamos a conversar sobre o enfa-donho mercado editorial. Alice trabalha como assistente de edição, além de escrever algumas orelhas para os livros da Editora Alfaguara, que têm proliferado como coelhos nas melhores livrarias da cidade. Falamos um pouco sobre o romantismo esmorecido dessa profissão, sobre a faculdade (Alice cursa, hoje, o mesmo curso de Comunicação que eu fiz há seis anos).

Falamos também sobre Haruki Murakami, escritor japonês ocidentalista de quem ela gosta bastante. Eu lembro então de Yukio Mishima, escritor japonês orientalista de quem eu gosto bastante. Ela diz que não conhece, mas com certeza vai procurar, falamos então um pouco sobre os nomes que daríamos aos nossos filhos, e com esse tipo de trivialidade seguimos até o fim do encontro. Porque essa menina de toque delicado e trejeito de secundarista veio para nos lembrar dos pequenos gestos simples, das coisas que jogamos brutalmente dentro de um armário escuro quando dizemos que isso é amadurecer. A poesia de Alice se disfarça de algodão, mas é mão dada em ciranda, a mão leve que mostra o outro lado à cabeça ensimesmada. Vem sorrateiramente e se instala no vão entre a emoção e a capacidade forjada de se emocionar, adquirida pelo adulto. É cura para espíritos envelhecidos que tocam a mesma nota. Na verdade, erro chamá-la simples. Melhor seria diagnosticá-la minimalismo do enorme. Alice agarra as lascas de pão que ficam pelo caminho de uma cidade-princesinha-caótica. Os poemas bem ali, entre as montanhas, flutuam como sombrinhas de Mary Poppins. E de repente não me sinto mais envergonhado, sou mais um velho salvo.

Retrato

a flor nos cabelosé vaidade que não abre mãooferecendo o pescoço com a timidezdos ombros curvados, sabe-se

que as extremidades destoamdo corpo infantil: mãose pés grandes demais, apenas notadosem tropeços e tremeliques (nãoraros). mas há tambémos cotovelos em lanças queespantam quando apontamas quinase, é claro, as unhas redondinhasroídas até o sabugo, que desmascarama aflição de menina, sardasnas costas. sem esquecerdas pernas cruzadas crispadasem joelhos e preguiçade deixar esse domingoe essa doçura

inescapável ela é capaz de ver “dois astronautas indo comprar pão”. Essa é a magia que certamente vai oprimir os olhares engessados, e quem sabe fará o favor de quebrar-lhes o gesso.

Ela apresenta já na porta do bar, enrolada num cachecol com uma camisa xadrez de flanela e os cabelos recém cortados, uma poderosa meticu-losidade aliada a um charme quase infantil, de quem nem mesmo sente que abala, mas no fundo sabe. Isso é aparentemente revoltante. Como se não restasse mais nada que lhe pudesse tirar o centro da ação, fazê-la tremer as pernas, e eu já tremia há mais de meia hora enquanto ela não chegava. Estava nervoso, sem saber o que falar com uma garota mais nova do que eu, de uma outra geração (seis anos são quase dez), então decidi chegar antes para reler sua Dobradura (Ed. 7Letras), que tinha acabado de sair do prelo, o primeiro filho dela, ela que era ainda tão jovem, mesmo o corpo ainda em formação, tão parecida com o que seu Retrato havia pintado, com os pés realmente grandes em comparação ao resto do corpo aparentemente frágil. Mas é só aparência porque Alice é do tamanho do seu pé, com a inquietação das unhas roídas até o talo. É tudo pura locomoção de gato, sobre o que ela escreve bastante, aliás, gatos, sua postura indiferente, plácida, levemente superior justamente porque não se importa em ser humilde. Não pude ver as sardas sobre as quais dizia seu poema, mas percebi a postura elegante de uma dama requintada, que aprende piano desde cedo (ela, de fato, tocava Bach aos sete anos) e tem a risada que leva a mão à boca com leveza, quase com rubor. Mas não é contida, de forma alguma. Alice lembra logo de cara uma espécie de Sylvia Plath que se salvou ouvindo Lou Reed. É tudo mentira, na verdade. Ela me fazia tremer porque seus poemas eram realmente femininos, não exatamente fortes, mas com aquela pungente sinceridade juvenil situada um tom acima da percepção comum, e isso me distanciava automaticamente de sua realidade, em seguida me atraía, nesse movimento de embriaguez que se sente às vezes com alguns poetas, uma sensação de barco bêbado que se sente com Rimbaud, Nerval, Byron, Apollinaire, Lautréamont, essa turminha. Os poemas de Alice são pequenas centopéias de caramelo. Felizes ou tristes, não são amargos, não são de chumbo. Eu havia lido, relido o livro, e tinha a sensação de que era algo pequenino que eu poderia guardar sem medo de quebrar dentro do coração. Eu queria cuidar daqueles poemas, levá-los para passear e andar de ônibus, apresentá-los timidamente às pessoas como quem diz: “Olha, é realmente uma menina, mas os textos, bom, os textos, enfim, são uns textos do tipo, são textos de menina, mas não quero dizer que, enfim...”. E assim eu seguia sem saber o que dizer. Era tão boa a sensação pós-leitura, como se algo que ganha vida estivesse em movimento para um centro comum. E então era como se, de alguma forma, eu retomasse uma certa melancolia da estranheza que, normalmente, se perde ainda no final da infância, e talvez até Alice tenha perdido, mas ela se lembra de pequenos fragmentos claramente, como a sensação dos adultos em movimento nos interiores das casas de tias velhas, ou o enorme espaço que tinha o banco de trás do carro, onde podíamos dormir placidamente e onde hoje nos apertamos em corjas embriagadas. Infância, eu havia tido uma infância. Mas não me lembrava dela direito, ou escolhi me esquecer. A poesia de Alice, para um burro velho, que era como eu me sentia perto dela, chega, no seu auge, a causar constrangimento, pois me revela algo que há muito tempo já havia me cegado. Eu amava aquele lirismo como um condenado a quem se atira um pão doce.

Aula de natação

quando os ponteirosse acertavam minha mãeguardava o livro e vinhame buscar na borda da piscinamuito bem ela diziae me enrolava numa toalhaeu era pequena e cabiadeitada no bancode trás do carro

E de repente chega Alice, pede perdão pelo atraso que não houve, senta-se, vira um pouco os olhos, como que à procura de algo. Eu olho para o rosto dela como que procurando nele a menina que volta da aula de natação, ou a jovem estudante e dedicada ao trabalho com seus livros de Emily Dickinson, Elizabeth Bishop e Ana Cristina César. Uma estudante que tem um sorriso de encolher os olhos, e seus olhos tem qualquer coisa de naturalmente encolhida, levemente inclinados para baixo como quem chorou há pouco. Era para mim um vôo arriscado demais me deixar levar por aquilo. Seria o fim da entrevista, mitificar a figura dos vinte anos de Alice Sant'anna. Além do que era ridículo, um homem barbado, a essa altura do campeonato, sofrer de tensão porque vai entrevistar uma nova poeta do momento, de apenas vinte anos. Aquilo pateticamente ecoava dentro da minha cabeça: “vinte anos, vinte anos, você não tem mais vinte anos”. Aquele mergulho na desconhecida ternura de alguém que teve uma infância feliz e fala com clareza sobre ela, que parece ter uma vida promissora, toda aquela aparente convicção sobre o caminhar das coisas, sobre a naturalidade da concretização dos objetivos, aquilo era massacrante para quem já não se sentia mais tão confiante assim. “Vou desmontar essa convicção”, eu dizia a mim mesmo antes dela chegar. Então ela chega e eu me esqueço de tudo. Ela senta e eu pergunto se não quer beber alguma coisa. Pedimos o cardápio. Eu falo “Peça o que quiser, é por conta do jornal”, tudo mentira. Ela olha, olha e olha o cardápio. “Nossa, eu não sei o que pedir. Viu como sou confusa?” É como se ela precisasse negar certa tendência a estátua que existe nos primeiros encontros. Aquilo para mim é um alívio e me faz estalar os dedos debaixo da mesa. Fico feliz porque, de graça, Alice Sant'Anna, esse enfant complexe carioca, me entrega de lambuja uma característica mais profunda e que diz bem mais sobre sua poesia de andar pelas ruas atrás de pequenos farelos de cenas sentimentais apenas ao olhar alheio, simples acontecimentos do dia-a-dia que nos remetem a algo básico: a confusão mental de quem ainda quer tudo e não sabe de nada. Mas quer de um jeito como se fosse um suspiro, do jeito que soa a suave simpatia no sorriso de olhos levemente caídos e, por isso, tão surpreendentes, destoando da presença firme e do jeito elegante e um pouco desajeitado com que se encaixa na cadeira e discute sobre onde devemos posicionar o gravador. “Olha, a minha voz é terrível”, ela diz, “acho quevocê pode colocar bem aqui na frente, assim, ó”. Certo seria deixá-la posicionar o gravador para sempre, onde quisesse, sem interferir. Isso seria melhor do que falar qualquer coisa. Mas é preciso estragar tudo quando se é humano.

ra melhor jogar fora as máquinas, esquecer os vestígios poéticos, não mais abrir o livro sagra-do de cetim, queimar o caderninho de anota-ções. Assim eu me sentia, porque Alice havia

chegado e Alice havia partido, mas a presença pos-terior de Alice em mim permanecia um mistério, umoco incompreensível.

foto ALEXANDRE SANT’ANNA

por Leonardo Marona

09

E

Dá a impressão de que tudo sai como jogo de amarelinha nos movimentos de Alice. Seu jogo de linguagem é o que gira em torno da cena, o olhar tímido, privilegiado, que vê por debaixo da mesa, faz um risco de giz no chão, sintonia fina de mundo quase imaginário. Onde todos veem solidão

Poesia para dançar ciranda

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Não avance. Não precisa virar e4.Resiste, irmão. Vão usar você. Transformá-lo em joguete. Você não é sentinela. Não tem que vigiar o centro. Volte, amigo. Tomarão sua casa. Oh, não.Ele foi. E lá vai o cavalo. É um burro. Ameaçando um peão de lá. Fazendo a abertura escocesa. Abertura escocesa? Não acredito. Parem. Ninguém mexe comigo. Não.Não adianta empurrar.Não sou d2. Não serei d4.Socorro!Me larga!Me deixa onde eu estava! Não quero morrer. Nem matar. Quero voltar.Me ajudem. O sonho não acabou. Me ouçam. Alguém. Por favor.Não me chamem de d4.Não sou isso. Não sou peão. Quero ser Vanderlei.

ver o destino em linha reta, predeterminado e escrito pelas mãos de sei lá quem, a2, b2, c2, e2, f2, g2, h2, esqueçam tudo o que vocês acham que sabem e abram seus corações e mentes: experimentemos saltitar livres por aí como os cavalos, venham correr para frente e para trás e para esquerda e para a direita, para onde der na telha com a liberdade de uma torre, imaginem cortar as casas em diagonal indo e vindo igualzinho aos bispos, vejam-se na posição que sonharem e nos misturemos a todas as peças, irmanados num tabuleiro novo, sem guerra nem violência, no qual será possível convivermos indiferentes ao matiz ou à colocação de um e outro e sem a necessidade de ataques nem ameaças, apagando para sempre a palavra xeque-mate do dicionário e descobrindo que um outro mundo é possível e pode começar agora se, na próxima disputa a ser travada em nome das regras eternas, nos dispusermos a não participar e a ignorar de uma vez por todas quem disseram que deveríamos ser. E, a despeito dos cochichos descrentes do seu cavalo e do seu bispo aqui de trás, informo a todas as peças do tabuleiro que, a partir deste instante, não mais respondo por d2, por número nem letra nenhuma, muito menos por peão ou coordenada, e que automaticamente meu nome passa a ser Vanderlei e assim quero ser chamado e respeitado; e eu, Vanderlei, proponho que todos escolham também e berrem o seu nome, a sua identidade e depois disso selemos um pacto de não-agressão com nossos iguais da outra extremidade, iniciando uma nova era na história do xadrez. E digo mais: eleições diretas, rei ou peão ou rainha, todos com o mesmo direito de nos representar e, e2! Não, e2.

O e2 aqui do meu lado diz que sou lunático, que nunca foi diferente, peões andam só uma casa, sempre para frente, atacam em diagonal, brancos contra pretos, e devemos conquistar o rei de lá e estar agradecidos por não sermos peças velhas, engavetadas e empoeiradas como tantas, por vivermos à luz, prontos para uma nova batalha repleta de belas estratégias e que tenho que me calar, esquecer minhas idéias, uma vez peão, peão com orgulho, graças a Deus, quem sabe conseguir uma promoção um dia e virar torre ou rainha, porque se não fôssemos peões no xadrez, acabaríamos na boca de uma criança ou nos dentes de um cachorro que nos encontrasse caídos por aí e seria o nosso fim. Pois digo que é justamente por causa de raciocínios conformistas como o do e2 e de todos esses aqui que riem de mim e se contentam em ser apenas mais uma peça do tabuleiro que as coisas não mudam e seguem nessa pasmaceira e humilhação em que não possuímos o direito de ter medo ou ser covardes, sempre para frente e avante, retroceder jamais, nem uma casinha, presas fáceis dos privilegiados desse establishment milenar e opressor que dá a alguns a prerrogativa de trafegarem quantos espaços quiserem em sentidos os mais variados e a outros o de ser a figura mais importante, a toda-protegida, enquanto nós, sem rosto, sem filiação, sem mais nem menos somos lançados anônima e estupidamente à morte nestas vãs batalhas. E quem disse que há de ser assim? Quem determinou? As regras, respondem meus colegas, mas retruco que para mim chega de obedecer às “regras” como fazem esses energúmenos incansáveis e satisfeitos com sua existência servil. Ora, senhores peões, senhores reis, senhoras rainhas, bispos, cavalos, torres, eu não conheço tais regras, os sujeitos que as escreveram, ninguém jamais me mostrou, me pediu opinião ou me avisou que eu deveria eleger alguém para me representar e fazer as regras por mim. Pode o e2 me chamar de lunático, o h2 me olhar de

soslaio carregado de ironia lá na extrema direita, não me importo e repito: essas leis que regem o jogo como ele é jogado desde sempre não as conheço, não as reconheço e tampouco me servem e inexistem motivos para admitir que sejam tais preceitos imutáveis e eternos, especialmente se discordo em gênero, número e grau de tudo o que é dito através deles. Por exemplo: por que o rei é o rei e não posso eu sê-lo? Direito divino, foi ele levado pelas mãos do Senhor para nos comandar com incompetência abissal e covardia sem tamanho em luta eterna contra os pretos do outro lado do tabuleiro nessa guerra sem fim que não somos capazes de ganhar ou perder de maneira definitiva e que pode recomeçar a todo instante? Tolice, nós podemos e devemos nos libertar, virar o status quo de cabeça para baixo, mostrar que não importam a estatura e o entalhe de cada um, temos todos o direito de ir e vir no tabuleiro, somos sem exceção madeira da mesma madeira, plástico do mesmo plástico, marfim do mesmo marfim, não há o que faça alguém mais especial do que outro, senão a nossa própria vontade; se os peões me ouvissem e acreditassem em mim, poderíamos conquistar as liberdades sufocadas há séculos, porque somos a maioria e necessitamos despertar e enxergar o momento definitivo de romper grilhões e criar uma nova diretriz, erguer o monumento ao peão anônimo, homenagear tantas peças caídas, fazer uma enciclopédia, registrar nossa história, a nossa versão dos fatos. Por que não? As mulheres conquistaram seus direitos, os trabalhadores também, todo mundo luta por seu espaço, e eu tenho que continuar a aceitar de forma plácida e mansa esse apartheid que me segrega invariavelmente à segunda linha do tabuleiro, vigia e conta meus passos, não me protege e só me põe a defender uma figura que desconheço e, sem motivo plausível, a sair a caçar e eliminar alguém que nada me fez? Chega desse sistema hipócrita incapaz de traduzir minha visão de mundo e minha realidade, serei senhor dos meus movimentos, vou conhecer novos espaços, parar de

d2. Poderia ser outra coisa. b2, c2, e2. Não tem diferença. Não tenho nome. Não tenho identidade. Fico parado. Só esperando a ordem. Pior, sequer ordem é.Aguardo um empurrão mesmo. Não ando por vontade própria. Só quando me empurram. Ou sou arrastado. Sempre pelos outros. Para os outros. Em defesa dos outros. Hoje d2. Estático. Vendo os de lá. Imóveis como eu. Com os seus a, b, c, d também. Todos peões. Em defesa de sua majestade. Em busca do meu rei. Todos babacas. Nós e eles. Nos jogando à morte. Tomando a casa uns dos outros. Por quê? Pelo rei. Pelo e contra o xeque-mate. Que bobagem. Eu cansei de ser peão.

2. Assim me chamam. Agora, aqui, parado. Uma letra, um número.

Reg naldo ujol Fili P ho

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KOLE . ,

Rua Vasco da Gama, 165 (51) 3268.4260

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a poem is a city filled with streets and sewersfilled with saints, heroes, beggars, madmen,filled wit banality and booze,filled with rain and thunder and periods ofdrought, a poem is a city at war,a poem is a city asking a clock why,a poem is a city burning,a poem is a city under gunsits barbershops filled with cynical drunks,a poem is a city where God rides nakedthrough the streets like Lady Godiva,where dogs bark at night, and chase awaythe flag; a poem is a city of poets,most of them quite similarand envious and bitter...a poem is a city now,50 miles from nowhere,9:09 in the morning,the taste of liquor and cigarettes,no police, no lovers, walking the streets,this poem, this city, closing doors,barricaded, almost empty,mournful without tears, aging without pity,the hardrock mountains,the ocean like a lavender flame,a moon destitute of greatness,a small music from broken windows...

a poem is a city, a poem is a nation,a poem is the world...

and now I stick this under glassfor the mad editor's scrutiny,and night is elsewhereand faint gray ladies stand in line,dog follows dog to estuary,the trumpets bring on gallowsas small men rant at thingsthey cannot do.

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um poema é uma cidade cheia de ruas e esgotoscheia de santos, heróis, pedintes, loucos,cheia de banalidade e bebedeira,cheia de chuva e trovão e períodos de seca,um poema é uma cidade em guerra,um poema é uma cidade perguntando ao relógio por quê,um poema é uma cidade em chamas,um poema é uma cidade rendida por armassuas barbearias cheias de bêbados cínicos,um poema é uma cidade onde Deus anda peladopelas ruas como Lady Godiva,onde cães latem à noite e perseguem a bandeira;um poema é uma cidade de poetas,quase todos um tanto semelhantese invejosos e amargos...um poema é uma cidade agora,50 milhas de lugar nenhum,9:09 da manhã,o gosto de bebida e de cigarros,sem polícia, sem amantes, andar pelas ruas,este poema, esta cidade, as portas fechadas,barricadas, quase vazia,desolada sem lágrimas, envelhecendo sem pena,as montanhas rochosas,o oceano como chama de lavanda,uma lua destituída de grandeza,a pequena música que vem das janelas quebradas...

um poema é uma cidade, um poema é uma nação,um poema é o mundo...

e agora eu enfio isso debaixo do copopara o exame detalhado do editor maluco,e a noite está noutro lugare débeis damas cinzentas estão na fila,cão segue cão até o estuário,as trombetas trazem a forcaenquanto homens pequenos se gabam de coisasque não podem fazer.

ocê entendeu a inveja, você diagnosticou o ódio, misturou a visão da criança com os becos de rinhas e duelos tomados pelo álcool. Você deu abrigo intelectual a uma quantidade exorbitante de farsantes, canastrões da pior espécie, com grossos cache-cóis em pleno verão, namorando mulheres magras e com bafo. Eles batiam a sua porta, eu sei. Atrás de vida. Atrás de uma resposta. Não havia resposta, eles não sabiam. Você chamou a vida para dançar, você apanhou feio e nunca fez nada realmente grandioso. É por isso que você entende os homens, toda a enorme tragédia que envolve a nossa pequeneza, que se resume a muito intestino e algum coração. Muita coisa tem sido falada sobre você, seu velho. Mas tenho a sensação de que nada foi realmente falado. Você mostrou a outra face da moeda, não a face mitológica, mas a menor, a literatura de bolso, a vida em pele gasta. Por causa de você ainda continuamos, uns poucos, vendo alguma beleza na selvageria, algo de cotidiano em calçar as botas e partir para a guerra. Você carregou nas costas a frustração de toda uma geração engessada de acadêmicos que desempenhavam pequenos serviços com nomes complicados. Você foi o primeiro carteiro da América. A face escura de Walt Whitman. Meus contemporâneos têm atribuído ao trabalho de Charles Bukowski uma certacerta imaturidade juvenil, e tornou-se quase um crime evocar sua figura numa mesa deboteco. Sinto falta de poder dizer o quanto existe de verdade em seu trabalho, não se podemais dizer isso em público, veja bem o que você se tornou. É a sina dos gênios serem regurgitados por uma sociedade hostil. Pelo menos fica impressa essa ternura destrutiva, esse lirismo violento da vida em rotação. E agora ela é de vocês, ou de quem quiser.

tradução e texto

Leonardo Marona

arteMARCELO MONTEIRO

Nós tocamos a sua marca

Av. Protásio Alves, 2959/302Petrópolis - Porto Alegre - RS

fones: (51) 3334 0414 9675 6648 9985 [email protected]

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a poem is a city

charles bukowski

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Editor Fernando Ramos Diagramação Marco Marques Capa Fabriano Rocha Redação: Rua Demétrio Ribeiro, 706/601 - centro - 90010-312 - Porto Alegre - RS

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Adão Iturrusgarai – Nasceu em Cachoeira do Sul (RS) e mora em Playa Unión (Patagônia). Publicou “No divã com Adão” (2008, ed. Planeta, 2008). Diariamente publica suas tiras no www2.uol.com.br/adaoonlineAdemir Assunção – Poeta, jornalista e letrista de música. Autor dos livros "Lsd Nô", "A Máquina Peluda", "Cinemitologias", "Zona Branca" e "Adorável Criatura Frankenstein" e do cd "Rebelião na Zona Fantasma". Em 2008 publicou, junto com Antonio Vicente Pietroforte, o livro de poemas “A musa chapada” (ed. Demônio negro), ilustrado por Carlos CarahAlice Sant'Anna – Poeta, carioca. “Dobraduras” (ed. 7 letras) é seu primeiro livroAndré Seffrin – Crítico literário e ensaísta, colaborador de diversas publicações na imprensa brasileira. Autor da edição revista e ampliada do Dicionário de pintores brasileiros, de Walmir Ayala (Editora da UFPR, 1997)Antonio Vicente Pietroforte – Poeta, nasceu e mora em São Paulo. É autor do romance “Amsterdã SM” (2007) e do livro de poesias “O retrato do artista enquanto foge” (2007, ed. Dix). Em 2008 publicou, junto com Ademir Assunção, o livro de poemas “A musa chapada” (ed. Demônio negro), ilustrado por Carlos CarahCarlos Carah – Nasceu em Brasília e mora em São Paulo. Ilustrou e fez a capa do livro “A musa chapada” (2008, ed. Demônio negro), de Ademir Assunção e Antonio Vicente PietroforteClaudine Goux – Nasceu em 2 de Fevereiro de 1945, em Niort, França. Artista plástica, gravurista, já ilustrou dezenas de livros de poesiaFabriano Rocha – Artista plástico. Edita a revista “MaisUmasCoisas” (www.maisumascoisas.com.br). Autor da capa desta edição do VaiaHomero Gomes - Nasceu em 1978, é professor e mora em Curitiba. É autor do livro de crônicas “Jamais vu” (inédito). Participou da antologia “Portal Solaris” (contos, 2008), organizada pelo escritor Nelson de Oliveira Laís Chaffe – Nasceu e mora em Porto Alegre, idealizou e está à frente do selo editorial Casa Verde (www.casaverde.art.br) e da Série Lilliput (dedicada a minicontos). Organizou as antologias Contos de bolso, Contos de bolsa e Contos de algibeira e fez a coordenação editorial do livro Contos comprimidos - todos de minicontos. Jornalista e autora de “Não é difícil compreender os ETs” (contos, AGE, 2002), participou das antologias Contos do novo milênio (organização: Charles Kiefer, 2006)

Leonardo Marona – Poeta, ficcionista, tradutor e jornalista. Autor de “Os ossos debaixo dos campos verdes” (contos, Ed. do autor/RJ, 2004) e do inédito “Pequenas biografias não autorizadas” (poesia)Luís Pimentel – Jornalista e escritor. Autor de diversos livros (ficção, poesia, infanto-juvenil), publicou em 2007 “O grande homem mais ou menos” (contos, Bertrand Brasil)Luiz Horácio – Escritor, crítico literário e professor de literatura. Autor de “Perciliana e o pássaro com alma de cão” (romance, ed.Conex, 2007) e “Nenhum pássaro no céu” (romance, ed. Fábrica de Leitura, 2008)Marcio Paschoal – Jornalista e escritor. Autor de “Cada louco com a sua mania” (ensaio de humor, ed. Record, 1995), ilustrado pelo cartunista Jaguar, “Pisa na fulô mas não maltrata o carcará” (biografia de João do Vale, Ed. Lumiar, 2000)Monique Revillion – mora em Porto Alegre (RS). Autora do livro de contos "Teresa, que esperava as uvas", (Geração Editorial, 2006)Rafael Sica – Mora em Porto Alegre. Publica suas tiras no seu blog Quadrinho ordinário - http://rafaelsica.zip.netReginaldo Pujol Filho – Nasceu e mora em Porto Alegre. Autor de “Azar do personagem” (contos, ed. Não editora, 2008)Victor Hugo Cecatto – Artista plástico. Alguns de seus trabalhos podem ser vistos no www.vhd.com.brVirna Teixeira – Nasceu em Fortaleza em 1971 e mora em SãoPaulo. É autora de “Visita” (2000) e “Distância” (2005), pela editora 7 Letras. Publicou “Na Estação Central”, uma seleção de poemas do escocês Edwin Morgan (Editora UnB, 2006), “Ovelha Negra”, antologia de poesia da Escócia (Lumme Editor, 2007), e “Livro Universal”, do poeta chileno Héctor Hernandez Montecinos (Demônio Negro, 2008). Tem dois livros publicados no exterior: “Distancia” (Lunarena Editorial, México, 2007) e “Fin de Siècle” (Editorial Universidad de La Plata, Argentina, 2007). Edita o blog www.papelderascunho.netWilson Neves – Artista plástico, nasceu em Alagoas e mora em São Paulo, ilustrador de vários livros, entre eles “Hiatos”, de Yara Maria Camillo (editora RG), e “Tratado dos Excitantes Modernos”, de Honoré de Balzac (editora Landy). Está à frente do blog de artweb SNOWBROS http://snowbros.blogspot.com/

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