jornal vaia edição 17

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02 IV

V VIV

V V

Zilah Machado - Passageira Da Nave Dos Sonhos

Diva da canção gaúcha, nossa querida e amada Zilah Machado lançou no ano de 2000, um Cd com músicas de sua autoria que certamente todos em Porto Alegre deveriam obrigatoriamente conhecer. Dona de uma composição elaborada através dos conhecimentos empíricos de música, ela nos lembra o saudoso Lupicínio Rodrigues ao compor. Ou seja, cria as melodias e depois canta para que alguém com conhecimento as harmonize. Mas, isso não a desmerece sob hipótese alguma. Muito antes pelo contrário. Herdeira de um estilo peculiar, Zilah Machado pode ser considerada a Clementina de Jesus do Rio Grande do Sul. Seus temas estão constantemente ligados à sua mística afro-brasileira. Suas incursões no samba nos demonstram claramente que ela tem maestria no estilo mestre da alma brasileira. Lançado por iniciativa do compositor Carlos Cachoeira, por ocasião de sua passagem na coordenação de música de Porto Alegre, o disco arregimentou uma série de músicos empenhados e dedicados em apoiar o talento de Zilah. Com arranjos a cargo do excelente baixista Tenison Ramos, e direção artística de Texo Cabral, o Cd conta com Dinho Oliveira ao violão, Chico Ferreti ao piano, Tenison Ramos no baixo, Jua Ferreira na bateria, Texo Cabral na flauta e percussão, Jorginho do Trumpete no trumpete, flugelhorn e trombone, Amaury Yablonovski, no sax alto, tenor e soprano, Marcelo P. ao clarone, Flávio e Cy na percussão. Passageira da Nave dos Sonhos pode ser encontrado através do e-mail da coluna e na Livraria Ilhota do Centro Municipal de Cultura. Para aqueles mecenas que ainda puderem existir sob a cortina da dúvida, Zilah está em estúdio, com produção de Gelson Oliveira, preparando seu novo cd.

Um dos mais importantes autores rio-grandenses, Angelo Vigo é poeta rio-grandino (leia os poemas na pág.10) e ainda, por acaso, desconhecido do grande público porto-alegrense e brasileiro. Contemporâneo e parceiro de legendas artísticas como Mutuca, Mimi Lessa, Edinho Galhardi e Bebeco Garcia, vem desde os anos sessenta enchendo o cenário com sua literatura ácida e corrosiva direcionada na permanente luta contra o sistema. Como bom beatnik que é, quando fala é sempre visceral. Isso é possível perceber no seu primeiro trabalho poético-musical “Morrer de Fome”. Ali, dá mostra de uma surpreendente forma de dizer poemas, sempre provocando com sua prosa, quase um tiro. Destaque para sua musicalidade quase entoando, cantando. O disco conta com participações de Ângelo Vigo na voz; Miguel Isoldi violão de aço, violão de nylon e harpa de boca; Maurício Cunha na guitarra, Alexandre Santos ao violino; João Camargo na percussão e Gilberto Oliveira, no violão de aço, violão de nylon, percussão, piano e guitarras. Todos músicos da mesma cidade do poeta, Rio Grande. O cd de Ângelo Vigo pode ser solicitado através do e-mail desta coluna ou adquirido na sua apresentação, dia 5 de novembro, no projeto MÚSICA AUTORAL.

A Nova Música do Brasil

Tá aí mais uma vez feito o fiasco. O Festival da TV Cultura, que supostamente iria revelar os novos tempos da MPB, virou, na palavra dos próprios paulistas, uma paulistada. Ou seja, serviu explicitamente para premiar os sudestinos não por sua qualidade, mas pela regionalidade centralizada e pelo velho vício exclusivista de seus produtores, jurados e organizadores, salvo raras excessões. Vaias merecidas a Solano Ribeiro e Gilberto Gil, donatários de uma balda histórica impossível de ser desfeita a curto prazo e mandatários dos orçamentos culturais que deviam ser na verdade profundamente discutidos e redistribuídos. Vimos a eliminação da música “A chaga”,de Fausto Prado e Caetano Silveira, como uma das maiores discriminações já feitas com uma música de real qualidade em função de sua estraneidade. Era o samba gaúcho fundido com o rock e apontando uma crítica social real. Extremamente bem executada. Até quando iremos sofrer a mácula de sermos gaúchos urbanos? De não termos sotaque chiado? Quanto à desclassificação da cantora Lúcia Helena, tivemos mais uma vez a oportunidade de ver que a corda e a caçamba tem sentidos diferentes. A coerência não existe em festivais - já diria aquele júri que classificou três músicas do José Alexandre, aquele carioca parceiro do Oswaldo Montenegro, num festival litorâneo do RS. E depois, ainda lhe deu o primeiro lugar. Enquanto acharmos que o que temos produzido de arte, com seriedade, em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul é pouco, o Brasil levará mais tempo para descobrir que aqui existe um Mário Falcão, inédito; um Angelo Vigo, inédito; um Bira Azevedo, inédito; um Alexandre Florez, inédito. E o que faremos? Se um dia dominarmos o Rio Grande do Sul, e aí ganharmos o Brasil, as coisas irão mudar. Primeiro é preciso uma revisão urgente nas leis de incentivo à cultura, seus recursos e distribuição. Mas, por falar nisso... E o dinheiro do FUMPROARTE, onde está? A Nova Música do Brasil é de novo a mesma merda de sempre.

***

***

LUIS MAURO [email protected]

Semana passada uma discussão besta liquidou uma amizade de anos. Encontrei o Lyra na pastelaria do Nestor. Inquieto, apreensivo, uma pilha de nervos.Tudo porque o CD já havia saído na Inglaterra há quase um mês e ele não estava conseguindo baixá-lo da internet. E já era certo que não seria lançado no Brasil. - Se eu não descolar esse disco, cara, vou adoecer. E tô mal de grana, agora não possoinvestir no importado. - Deve ser uma obra muito interessante, Lyra. - Bah! A Rolling Stone deu 5 estrelas. A Bizz disse que superou o primeiro. Só a capa, lindíssima, já vale o disco. Bom, se é melhor que o primeiro, e se o Lyra tá nessa expectativa, esse disco só pode ser vinho fino, pensei. - Fala logo, Lyra. Não tô me agüentando. Que disco é esse? - Tommy, O Retorno. Lyra sempre admirou o Pete Townsend. Estava explicada sua agonia. - Quer dizer que o Pete voltou à velha forma, tá escrevendo novas óperas-rock... Ele sempre foi bom nisso, né Lyra? - Na verdade... quem escreveu O Retorno não foi o Pete. - Então quem foi? - Foi o papagaio dele. - Tu tá brincando, Lyra? - Não, cara! O papagaio é genial, mora com o Pete há mais de 40 anos, aprendeu tudo com o mestre. E o mais interessante é que ele modernizou a história. Tommy ficou adulto e agora joga uns videogames irados e não o pinball da ópera original. - Lyra, meu querido, te admiro, te respeito, nossa parceria vem de longa data. Mas não achas que esse teu fanatismo tá indo longe demais, bicho? Lyra baixou os olhos, levantou-se em silêncio, me deu as costas e saiu. Senti na hora que pisei feio na bola e magoei o meu velho faxa. Pedi mais uma mineral, bebi junto com o meu remorso, dei tchau pro Nestor e vazei. Foi a última vez que encontrei Jardel de Lyra. *** Mas aqui se faz, aqui se paga. Deus é justo. Escreve certo por linhas tortas. Sempre tive bronca com fãs fanáticos. Sempre achei que havia algo meio estranho com eles. Pois não é que agora descubro que também tenho fãs. Não uma legião. Poucos, mas fiéis. Ontem eu folhava o Diário da Manhã na banca da Netto com a Morom, quando alguém tocou meu ombro. - O senhor é o Raul, né? A garota nem esperou minha resposta. - Prazer enorme! Meu nome é Carol! Eu e o Frank aqui adoramos o senhor! Sabemos de cor as suas músicas. Todas massa! Não sei se o senhor já sabe, fundamos o Fã Club Raul Boeira. A sede provisória é na garagem lá do vô. Já temos até alguns objetos. Uma fita cassete caseira com umas baladas de 1981, o manuscrito original de Capingüí Blues e uns jornais alternativos da city que falam alguma coisa do senhor. Estamos batalhando pra aumentar o acervo. - Queremos lançar um site - completou o Frank. - Que surpresa, gente! Bacana. Muito obrigado. E podem me chamar de Raul. - Já temos quase oito sócios. A que vai ser a oitava pegou a ficha de inscrição, mas ainda não trouxe de volta, emendou Carol. Desconfiei. - Vocês não são da UPF-TV? Isso deve ser uma câmera escondida... coisa do Jean Marmentini... Cantem alguma canção minha, quero ver se não estão me tirando. E não é que a Carol cantou mesmo. Mandou ver com a maior emoção. Quando ia começar a terceira e já estava juntando gente em volta, pedi pra parar. Então, ela pôs um cartão na minha mão e disse para eu pintar no Club quando pudesse, levar alguma coisa, tipo uma palheta, uma mecha de cabelo, foto da primeira comunhão, boletim, escova de dente usada, uma toalha. Prometi aparecer com algum souvenir. O olho dela brilhou. Frank sacou da mochila um guardanapo meio amassado e perguntou se eu podia autografá-lo. - Claro, Frank! Com prazer. Onde você arranjou esse guardanapo? - Foi numa tarde lá no Nestor. Tava o senhor e um amigo seu, que até se mandou antes, meio triste. Depois que o senhor saiu, fomos até a mesa e pegamos o guardanapo antes do piá recolher a bandeja. - Frank, por favor, me chama de Raul. - Tá bom. RAUL. Carol foi logo me alcançando uma caneta. E enquanto eu escrevia a dedicatória, desviando das manchas de mostarda e maionese, perguntou quando é que iria sair meu CD. - Não tenho previsão, Carol, a coisa não tá fácil. Mas já estão quase prontas as canções pro segundo, que pretendo lançar depois que conseguir lançar o primeiro. Devolvi o guardanapo assinado ao Frank. Quando levei a mão ao bolso da jaqueta para guardar a bic, Carol se antecipou. - Com licença, é minha. Era. Agora vai pro acervo. Tem as digitais de Raul Boeira, uau! De súbito, me beijou no rosto. Frank me abraçou. E se foram flutuando em direção ao Shopping. *** Sentei num banco da praça, meio atordoado, meio emocionado, me sentindo quase um Bono Vox. Oito fãs... não é muito... Mas afinal, não é o tamanho que importa e sim o prazer que a coisa proporciona. Dei uma olhada no cartão lilás que ainda estava entre meus dedos. Logotipo, endereço, telefone. O Fã Club tinha até e-mail: [email protected] *** Passado o susto, resolvi chegar no Nestor. Sentei na mesa de sempre. Lembrei do Lyra com saudade, arrependido pelo modo estúpido com que o tratei no nosso último encontro. Ali, sozinho, eu finalmente percebia o quanto um ídolo é importante na vida de um fã. Fãs nada têm de estranho ou errado, são apenas pessoas carinhosas. Motivam a gente. Enquanto bebia minha mineral de sempre, me veio a imagem do guardanapo com a minha assinatura. Foi quando me toquei. Naquela tarde em que perdi o amigo, havia

O Lyra

RAUL BOEIRA, compositor [email protected]

emana passada uma discussão besta liquidou uma amizade de anos. Encontrei o Lyra na pastelaria do Nestor. Inquieto, apreensivo, uma pilha de nervos. Tudo porque o CD já havia saído na Inglaterra há quase um mês e ele não estavaconseguindo baixá-lo da internet. E já era certo que não seria lançado no Brasil.

S

Poesia contra o sistema

ABCD.CRÍTICA

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V VIV

V V

- Que barra essa coisa do Dimba, né seu Rolinho, puta que os pariu, o Biritinha me disse que tem mais de uma viúva. Tá sabendo de algo assim, tipo amantes ou outra coisa parecida? Seu Rolinho, que nessa altura tinha dúvida se o seu melhor freguês daquele tamborete tava ou não brincando, resolveu optar pelo bom senso e não explicar nada: - Olha, ô chupeta, faz assim: vai no velório e da uma olhada na viúva, consola ela, essas coisas de amigo. Mas não te esquece que viúva é que nem lenha verde: chora, mas queima.

Chupeta matou o martelo e se mandou para a longínqua zona sul. No caminho, parou num boteco para enxagüar as idéias e já chegou no primeiro cemitério meio calibrado. Sim, o primeiro de não sei quantos campos santos que integram a estrutura de hospedaria final daquelas bandas da cidade. Num misto de emoção, tristeza, cachaça e burrice, nosso herói se deu conta que alguma coisa não tava direito. Ao imaginar que poderia ter sido vítima de um trote amigo, se mandou de volta à zona norte. Como Chupeta sabia que àquela hora seu Rolinho já tinha encerrado os trabalhos, foi parando em qualquer boteco que encontrava no caminho. Tomava canha de gole e seguia viagem.

Ao passar na frente da tal casa de família onde seus amigos comungavam o amor às tradições e ver que era grande o movimento, parou pra dar uma olhadinha. Entre puto dos cornos e surpreso, encontrou a catrefa toda, emaranhada num bate-coxas afável. Chupeta, que não era otário por hábito mas só eventualmente e por distração, chegou dizendo que estivera enchendo a cara com uns colegas de trabalho e coisa e tal. Betão Banguela, o Banga da Baixa Gôgo, irmão e cúmplice de trago do Chupeta, não acreditou muito naquela história. Confirmou que ele só tinha ficado sabendo daquela história através do Biritinha, e perguntou ao confrade como foi que ele explicou os detalhes da farra pro Chupeta. Biritinha sacou na hora que alguém tinha cagado na tuba e bateu o serviço inteiro pro Banga. Chupeta tava aliviado por estar ali entre amigos, fazendo um trabalho forte na cerveja: cansava com as moças, brincava até com os desafetos. Na primeira desaguada que ele foi dar, Banga bateu suas suspeitas ao bando, e quando o novo especialista em cemitérios da zona sul voltou do Wanderlei Cardoso, o Zizão largou: - Porra, ô Chupeta! Quer dizer então que tu prefere ir beber com os arruelas do teu muquifo que ir despedir-se de um irmão de armas! Porra! Caralho. Biritinha saiu em cima: -Eu te avisei que nós íamos ao velório, seu merda! Chupeta, em vão, tentava entender o que tava acontecendo ali, ao mesmo tempo que sentia uma puta tristeza por causa do Dimba. Sentou-se como que caindo numa cadeira qualquer, buscando algum consolo no olhar do irmão. Esse, com sua habitual compaixão, foi dar o apoio solicitado pelos olhos marejados do companheiro: - Mas tu é um senhor de um cú de cachorro mesmo. Como é tu me faz uma merda dessas, caralho?! Isso aí é mais feio que coxar a mãe no tanque, cacete! Diante dos olhares de nojo e repulsa da tribo toda, nosso guerreiro, valente até aqui, confessou: - Mas eu não entendo! Eu fui a todos os cemitérios daquela merda de zona sul, caminhei por tudo quanto foi corredor, vi mais defunto que se tivesse numa guerra... Porra! Afinal, onde era essa merda desse velório, desgraça?... Chupeta jamais teve fama de bocó. Nunca se soube que ele tenha caído em nada parecido. Mas ali, naquele momento, ao ouvir aquele silêncio de poucas frações de segundo que antecedem as bombas, ele sentiu o tamanho do pepino baboso que se apontava para suas pregas. E apenas baixou a cabeça, enquanto ouvia calado os berros, gargalhadas, urros e risadas de seus queridos amigos. Não havia o que fazer a não ser rir junto. E como dizia Drummond: "E TUDO ERA FARRA HONESTA ACABANDO EM CONFIDÊNCIA".

Mas voltando à pendenga em questão: estavam todos combinando os detalhes da armação, e algumas horas depois estavam eles dirigindo-se ao tal estabelecimento familiar, devidamente alforriados, com um verdadeiro habeas-copos, nas palavras de Zizão, frasista e pinguço de responsa. Biritinha passou no seu Rolinho pra tomar uma benção líquida, e na saída topou com Chupeta que estava chegando de uma viagem de trabalho, e que ao passar em casa, soube pelos comentários das vizinhas da tal da morte do Dimba. - E aí Biritinha, que desgraça né, que porra, baita merda. Biritinha, que não se deu conta que o amigo não sabia da armação, respondeu de uma forma que Chupeta achou esquisita, mas enfim, nada e nem ninguém por ali parecia ser muito certo mesmo: - Merda é não aproveitar a dança com as viúvas. Dá licença que eu tô com sede. Chupeta entrou na borracharia de seu Rolinho, sentou num tamborete, apoiou os cotovelos no balcão, pediu um liso de pinga tipo gasolina de avião e comentou:

- A véia vai complicar minha vida por causa dessa porra, mas a capivara que se foda: tô na área, e se derrubar é pênalti. Zizão, que era mais conservador com os valores familiares, disse, entre um gole de chope e um liso de pinga: - Minha senhora vai achar um abuso de liberdade se eu comparecer a tal evento. Aí eu tenho motivo pra cobrir aquela vaca de porrada! Vou! O êxtase tomou conta da irmandade enquanto cada um berrava sobre a forma de se livrar das broncas domésticas. Lagartão, alicate por natureza e vagabundo por profissão, afirmou em tom lamentoso: - Na minha eu não posso bater, que senão eu não consigo aplicar um golpe pra tirar uma grana! Que merda! O maestro Rolinho, analisando a situação, concluiu que seria melhor encontrar uma desculpa convincente e comum a todos para evitar maiores problemas. Problemas para ele, que já sabia por experiências passadas que caso viessem a sair de seus respectivos lares, teria de novo que aturar as camas no depósito do fundo da empresa. Foi rápido como um mestre ninja, um guru oriental ou qualquer merda dessas. - O Dimba, moçada. Vocês vão dizer que o Dimba morreu, e que vão passar a noite velando o camarada. - Pois é Rolinho... Falando naquele paunocu, onde é que ele se enfiou? A pergunta veio do Seu Paulinho PC, já repetindo: - Aquele é um baita de um paunocu, paunocu, paunocu. Chaveco respondeu: - Se mudou pra zona sul, aquele lugar de viado, cheio de burguês metido a sebo! Banga da Baixa Gôgo, que não era de perder a viagem, atolou: - Pelo menos não é como essa merda de vila do IAPI, que só tem puta e ladrão. Zé Limão irritou-se com o meigo comentário, e saiu em defesa da vila: - Olha aqui ô Banga, que tu tá pensando? Porra! A minha mãe mora lá com meu irmão! Respeito, porra! Banga retrucou de forma calma: - Tá, mas o quê que eu disse de errado? Puta e ladrão. Zé Limão ameaçava explodir. Reclamando aos outros, buscava algum apoio: - No meu caso não, meu chapa! Na minha casa as coisas são diferentes do que tu tá acostumado. Banga, levando à boca um copo de cangibrina que seu Rolinho pronta e generosamente servia ao simples sinal do mesmo baixando vazio, disse rindo: - Ah, tá bom, então tá, é diferente, eu sei! O irmão se vira na quadra, enquanto a mãe puxa uns carros roubados. Só não duvido que, se bobear, teu irmão não assalta um comedor e tua mãe não chupa um assaltado. O Zé Limão, que já tava puto dos cornos, foi à loucura com a reação do resto do bando, que dava altas gargalhadas. Intimou seu Rolinho: - E aí , Rolinho, como é que é, caralho? Esse chá de merda do Banguela fala um troço desses e eu tenho que agüentar? O que tu diz, porra dum caralho?

spetáculo de boteco era aquele ali do seu Rolinho, onde a macacada se encontrava dioturnicamente para se encharcar, brigar E

e falar mal do alheio. E que fauna mais prepara-da para o ofício. Um belo dia apareceu o Birita (Biritinha, para os íntimos), com a notícia: umacasa noturna das cercanias resolveu fazer um bate-coxa especial de aniversário, com cer-veja liberada. Junto da alegria geral da novidade,surgiu a preocupação de como fazer para liberar-se das donas encrencas para irem ao tal encontroreligioso. Banga da Baixa Gogô saiu logo alertan-do:

Bar do Rolinho - 3

CHARLES ABEGG [email protected]

Alguns segundos do mais profundo e absoluto silêncio, tipo aquele silêncio que dizem haver antes de uma bomba nuclear estourar, reinou no salão nobre do palácio, antes de uma explosão de gargalhadas ocupar até as rachaduras das paredes. O pobre do Zé Limão não teve reação alguma, a não ser, é claro, pedir ao seu Rolinho (o único que se mantinha quieto, apenas contemplativo), mais uma pinga de limão (sem limão, é claro, pois limão é coisa de viado), e matar tudo no peito (tanto a piada quanto a pinga). Agüentou no osso.

LI

I

OP

NT

O

Seu Rolinho olhou Zé limão de uma forma profunda, como se estivesse olhando para alma de um antigo devoto, franzindo a testa e mexendo a cabeça pra cima e pra baixo, como se estivesse concordando com ele, trocou o palito de lado na boca e entre o silêncio geral que todos faziam para ouvir as verdades de um sábio, lascou:

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B Z RV V

04 IV

V VIV

V V

Ahora que tristemente veo como se calcinan loscampos, los bosques, como el fuego arde, tambiénme arde la sangre pensando en ese desastre.Se me viene a la memoria, como en el fondo deun cuadro, aquellas Primaveras alegres, aquellas mañanas olorosas, debajo de algún Sauce.Desde allí veía las Retamas, las Jaras y hasta lasAmapolas con su color escarlata adornando todoel valle, el verde de mis praderas - verde náyade -con el que soñamos los poetas cuando declina la tarde. Los brezos se han calcinado, que pena tengo en el alma!Los Narcisos, las Gencianas, Prímulas y Cantuesos,flores de Espino, Borrajas, las Violetas de los jardinesy hasta los Rododendros de mis sierras que nacenen las quebradas.Margaritas, y las Malvas, que le daban colorido, y que ahora están calcinadas.Esos Bosques, esos Pinos, eses Robles centenarios,y esos Sauces llorones, que llorando están sus males.Esas manos asesinas que van quemando los campos,que han dejado los bosques lo mismo que CamposSantos, hasta los Cipreses se han vuelto cenizas, como muertos por los años.Ni la flor del Espino en el camino se han salvado, los Geranios se han puesto mustios del humo que hallegado. Y lo peor san las vidas, son las penas que hoy les canto.- Las vidas no sirve el repoblarlas.-Un árbol se puede cambiar por otro, para que otrosASESINOS, otros incendiarios, los sigan asesinando.Pero esos hijos, esos padres, esas madres inconso-lables, ya no hay años, no hay milagros que pudiesenretornarlos.Ni los lobos, ni los pájaros, ni todos los animales queadornaban el paisage, volverán en muchos años arondar por esos lares. Mis campos y mis montañas! En donde me voy a poner? Señor que velas las almas!Para ver crecer los Helechos y las Jaras, el tonillo y el Cantueso, si no han quedado más que brasas...

MANUEL GONZÁLEZ ÁLVAREZ Madrid - España

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SON LAS PENASQUE HOY OS CANTO

Amor.Lo soñamos, lo escribimos;lo haremos golosamente...

A pesar de mis provocacionesy apasionados abrazos,se duerme en la indiferenciasu sexode compañera hastiada.

JACQUES CANUT “Enigmas/Enigmes”Ed. Torredelaire Cálamo, 2005 (Bilingüe)

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o amor não é feitodesta matéria que arde na camaembora assim se insinueo amor é este fogo indissolúvelque nos uneque nos perpetua por dentroum no outro pregado

depois do fogo extenuadoo amor é este silêncio acesoesta cave prenheeste sondar de mãos que se tocame de olhos que se olhamdespidos de si mesmos

este vento livre dentro do peito.P r

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EUNICE MENDES Santos - SP - utora d “Flores e Frut so ” A e

epressa arrependida por ter duplicado a sentença imposta ao Arquiteto (único suspeito) antecipadamente absolvido no imbecil processo aberto contra Fulano, foi procurar consolona filial de sua cama, levando a caixa de excitantes artefatos

Como se houvesse previsto o inédito ataque, a moça (atéaqui dócil e seguidora do curso da patroa) recusou-se à expe-riência das novas fruições prometidas e minuciosamente des-critas, alegando indiposição e cansaço. Então acabaram seentendendo. Não acreditou nas cólicas da semi-estropiada,cujos gemidos seriam de escarrado fingimento. Em outras ocasiões tê-la-ia socorrido com meia centena de gotas seda-tivas recomendáveis na emergência. Desta feita, porém, ne-gando-se a aceitar as contorsões dolorosas da que “não de-via adoecer”, quando mais precisava dela, chegou a exigir aprova documental do incômodo. Por isso, primeiro retirou a toalha que as pernas da empregada tentaram defender. De-pois, mergulhou-a na pia. Um vermelho de fraca coloração edensidade. Tinta pura. Podendo ser tudo: de ketchup a mer-curocromo diluídos.

Mas não exprobou a grosseira desculpa da parceira dovício, pelo simples pavor de perdê-la antes de completamente preparada para a vida que “poderemos levar na paz de Deus,sozinhas dentro desta casa”. Assim, pacientemente passou a recatequizá-la com insóli-tos argumentos e rápidas demonstrações do uso de apetre-chos, na esperança de demover a resistência da “vitela que, de repente, resolveu achar que só macho presta neste mun-do”. - Não choro o tempo que perdi lhe ensinando especialida-des de forno, fogão, fogareiro, e certas sobremesas reais. La-mento a sua ingratidão, logo passando adiante o segredo deminhas receitas. Sinto que já me traiu: só não sei com quem.No entanto, se fosse uma artista de verdade, poderia ficar com ele e comigo. Ou nós duas com ele... ou ela. Amuadas - após a cena que não rendeu mais do que oresumido - deixaram de falar uns bons compridos dias e noi-tes. Nem a súbita viagem do Arquiteto (a que, aliás, ninguém prestou atenção) serviu de pretexto para reaproximá-

ROSÁRIO FUSCO (1910-1977)*.

* Um dos maiores ficcionistas do Modernismo, o mineiro de Cataguases teve um de seus inéditos, o derradeiro romance “A.S.A.- Associação dos Solitários Anônimos”,escrito no final da década de 60, lançado em 2003 pela Ateliê Editorial, de S. Paulo.

ainda desconhecidos da parceira noturna.

las num esquivo mexido de comadres.

D

Quase que eu coloquei como título "Elis volta a morar em Porto Alegre", mas aí estaria beirando o sensacionalismo... Se bem que, na verdade, vejo o Acervo Elis Regina, inaugurado em 22 de setembro de 2005 na Casa de Cultura Mario Quintana, como um lugar onde os admiradores da cantora podem ir "visitá-la". Elis pode ser vista em capas de LPs, matérias de revistas e jornais (com ênfase para o triste dia 19 de janeiro de 1982), fotos (da cantora e das pichações "Elis Vive!" nas ruas de Porto Alegre logo após o triste dia), programas de shows, ingressos, livros, camisetas que Elis usou em espetáculos, um retrato pintado por Humberto Ruschinque em 1985 e o material referente à marionete de Elis que integra o espetáculo de bonecos Estrelas do Brasil. Dirigido por Mario de Ballentti há pelo menos 7 anos, Estrelas... traz Elis cantando ao lado de Gal Costa e Carmen Miranda. A previsão inicial é de renovar o material em exposição a cada três meses. Além de se ver, naturalmente se ouve Elis: há sempre um CD rodando como som ambiente, além de dois fones para audição individual de repertório selecionado. Quando há uma concentração maior de pessoas, o CD de som ambiente pode ser substituído por um vídeo de show - na sexta de tarde, o show era simplesmente Falso Brilhante! Em breve, deve se iniciar uma programação regular de exibição dos vídeos. O Acervo é composto principalmente por material que pertenceu ao acervo da animadora cultural Sônia Duro, além de uma expressiva contribuição reunida pelo marchand Renato Rosa. Mais material chega continuamente; havia pessoas fazendo doações mesmo durante o evento de inauguração.Falando na inauguração, gostaria de registrar a intensa emoção que levou o diretor da Casa de Cultura Mario Quintana, Sérgio Napp, a ter que interromper o discurso que fazia, ao revelar estar realizando um antigo sonho seu. Todos os presentes compreenderam, pois estavam emocionados também. Principalmente após a leitura que Napp fez de mensagens de Pedro Mariano e João Bosco cumprimentando a CCMQ pela iniciativa. Todos os que colaboraram com o projeto estão de parabéns. Como seria impossível mencionar todos, concentro meus cumprimentos na pessoa de Sérgio Napp. Aliás, ainda em seu pronunciamento na quinta, Napp afirmou que, a julgar pelas informações que obteve quando da procura por material para o acervo, não existe espaço semelhante no país homenageando a cantora maior. Há, é bom frisar, o Projeto Elis desenvolvido pela Universidade Federal de Uberlândia, embora este não possua sede fixa para exposição. O Acervo Elis Regina fica no 2º andar da Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736, Centro - Porto Alegre) e está aberto de terça a sexta das 13 às 19h e sábados, domingos e feriados das 15 às 19h. Quem quiser doar material, pode levá-lo até lá dentro desses horários e entregá-lo a uma das atendentes. O Brasileirinho, que em 17 de outubro completa 3 anos de atividade, já está representado no Acervo, com textos em papel e numa versão especial do site em CD-Rom, só com o material em que falamos da maior cantora brasileira.

FÁBIO GOMES - Editor do site Brasileirinho - www.brasileirinho.mus.br

ELIS VOLTA A TER ENDEREÇO EM PORTO ALEGRE

A

A cada mês, formação de novos grupos. Duração: Dois meses Freqüência: Encontrossemanais de 4 horas - 08 encontros no mínimo. Valor: R$ 100,00 por mês Local: República, 48 sala 203, Cidade Baixa - Contatos: 3325.2280 / 9103.5504 - [email protected]

De olho em Porto Alegre

oficina “De Olho em Porto Alegre” é um trabalho de reeducação do olhar através do desenho. É um curso dirigido a todas as pessoas dotadas de sensibilida-de estética interessadas em qualificar a sua relação com o seu espaço vivencial. Por meio do desenho, a oficina desenvolve uma série de situações nas quais os alunos são levados a perceber aspectos do ambiente urbano antes impercep-tíveis. A perda freqüente de referências visuais sofrida pela cidade é um dos en-foques do curso, juntamente com o resgate da linha de cada um como expressão

A oficina é aberta a pessoas com qualquer nível de envolvimento com o dese-nho, não necessitando experiência. A orientação é do artista plástico e músico JORGE HERRMANN. Graduado em desenho pelo Instituto de Artes da UFRGS, Jorge vem desenvolvendo uma profunda reflexão a respeito da questão ambiental e suas implicações na qualidade das relações dentro da sociedade contemporânea.

de um universo pessoal e único.

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surtos

POÉTICOS

que Deus nos sacudaque Deus nos chacoalheremexa nos bolsospendure na cerca

se der na venetaesfregue o moforevise o estofocosture etiqueta

Refaça medidasdescarte projetosrenegue sucessosrepense a existência

Alugue pra festaspromova eventosnão ouça conselhosde quem quer que seja

transforme em estopaa roupa de linhoe em desalinhocom papel de seda

esmorrugue farelosdesfie fiapostrapos de idéiasbordados

Eu não me distancio de uma ferraduradescida nos ouvidos, não meço o estampidoque incha da água entulhada na surdez.

Dói-me o mel furtado das aurículas,perdi o zumbido que me consumia.

Não recebi a bênção de frustrar a trevaque lateja, o céu já gotejava o meu latido.

Augurei a cera sonolenta da música,sim, eu agonizava sem ter vivido.

CARLOS BESEN [email protected]

Nítido

O filho que me douEste filho que me dou vai dar trabalhoMal não chega já me lotade perguntas, de embaralho

Quantas cores tem no mundo?Infinito é muito quanto?Que é nada, que é tudo?O que é um acalanto?

Que é que foi, meu pai, responde!E nós antes de nascernós estávamos aonde?

Meu pai, mas o que é isso?Chorar sem estar tristee isso pode, e isso existe?

Ah, meu filhoo que eu posso te dizer?Eu não trago uma respostaDeixa a vida te trazer.

LORENZO RIBAS [email protected]

LEANDRO [email protected]

CHARLES ABEGG autor de Mortalha e outros poemas, 2004

quando chegou meu tempo mundo já vinhacomposto de tanto e tudo que é e vida tingidade rosto e palavras nomeavam tudo comgramática antipática impondo regras e ordemquase nada a inaugurar... assim mesmo teimeiteimei bibloquei reinventei de dizertroqueicamente assim gregos latinos meutorcear de palavras assimente bíblia odisséiaeneida ... pois ainda espero de ser

IRINEU VOLPATOautor de pressa que não arrefeça, 2004

não tenho dentesmas tenho mcdonaldnão tenho escolhao meu boné tá oconão tenho corpoeu já vendi faz temposou mais um pardono formulário do censo

não tenho vozpor mim fala meu berronão traço planoso que é meu eu arranconão tenho pressaeu já nasci presuntonão se preocupea tua filha tá comigo

de onde eu vim?será mesmo que eu existo?talvez eu sejacria do teu pesadeloo lado avessode um sudário invisívelo anti-heróide mais um videogameirado

BANGUELAPEOPLE

o sentido da bailarina fora da música é como um monte de pó exposto ao solnão leva a vida dissipadapara lugar nenhum é improvável a fadigaem época de prodígios quando há péssaltando de si mesmos

não distingue o aparato eletrônico com risos e desfalecimentos após um salto perfeito

C.RONALDA Razão do Nada - Ed.Scortecci

Então quer começar a rir agora?!Será o desespero berrandoQue a loucura está chegando,Batendo na porta aí fora.

Mas quer rir agora então?!E acha que essa seriaA atitude que trariaDe volta a tua redenção?!

Vive absorta pela demência,Girando em tua cápsula espacial,Buscando orbitar no que é normal,Sentindo-se enquanto saliência.

Talvez seja o riso uma saída.Rindo, talvez possa assistirA tentativa irônica de existirQue levou nosso anjo a caída.

Para quem você ri agora?Para o carrasco que oprime no leitoSua doente cabeça contra o peito,Que em sua inssassibilidade tudo devora?

Para que rir logo hoje,Justo quando nada mais importa,Certo que a beleza não volta,Pois de nós ela sempre foge?

Ah! Mas então você quer rir agora?!O que será que te faz tanta falta?Toda tua erudição já não basta,Ou seria o medo de já estar morta?

Poema a uma Amiga

Tenho uma sombra irrequietaque me segue a todo lugar.É uma treva jovem e brincante.Pequena noite sempiterna.Quando longe da luzbrinca de esconde-esconde entre minhas pernas.Quando vou ao sol a sombra se entedia de estar ao pé de mime corre a brincar com o ventoe aquecer o negro ventre.

Quando estiver eu velha, ela, a sombra, talvez se canse de mim.Ou talvez envelheça antes, por ser coisa tão outra.Ou ainda,talvez seja eu já antiga,e a sombra, minha amiga,esteja apenas a me tolerarenquanto brinca de ser breu,independente e por si.

Talvez a sombra seja eu.

LAURENE [email protected]

MARIO [email protected]

A poesia vira caso de delegacia:quem sabe a poesia, quem poderia saber?A poesia dita sabida, teoria:palavra metida, esquisita,coisa aflita, faz constrangidaa vida daqueles que nada sabem.A gente sabe, até a minha tia:a coisa que diz saber tudonão é, não é poesia.Pudera eu saber o que seria,a poesia deve ter algomais que discurso e magia.Talvez seja aquilo que fazdesenhar a noite e o dia, a tardee a manhã, o frio e o calor.Assim, com a generosa fantasiado sonhador, eu diria:a poesia é a rima das mãosda alegria com o braços do amor.

Poemário para Kátia Suman

RAUL [email protected]

Page 6: Jornal Vaia edição 17

IV

V VIV

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(...) na Terra do Sem fim. ...Na Terra do Sem Fim. Nessa minha adaptação, a Luzia seria a personagem pela qual ele se apaixona, que ele vê no outdoor. Aí ele vai se apaixonar e sentir aquilo que há muito tempo não sentia, sentimentos humanos. Ele se descobre quando chega perto dela buscando a sedução, sibilando como uma cobra, mas completamente apaixonado, erotizado, sensual. Ele quebra o seu próprio encanto porque se apaixona e vivencia o amor. E ela que parecia ser humana é uma surpresa pra ele porque ela é um ciborgue e ele não. A coisa se dá aí, um contraste com o final da lenda. A discussão que tento trazer é a de enxergar essa figura como uma máquina. E essa história do ser humano com cada vez mais peças de máquina no corpo e menos elementos humanos dentro de si. Quase como um congelamento de sentimentos e valores, acho que as pessoas têm sentido falta disso.

Na música “Balanço Tupiniquim”, que é uma mistura de embolada e milonga, é intencional o duplo sentido? É sim, no sentido de balançar e de fazer um balanço. Com relação aos ritmos, ocorre o seguinte: tem a mistura da embolada com a milonga. A idéia era lançar um olhar sobre o país, usando os mais variados ritmos nas canções. Como sou do RS, tinha que citar algo daqui, não era obrigatório, mas era a deixa. Acho que a milonga é um dos gêneros mais representativos daqui. Então pensei em misturar as duas coisas, tentando casar forma e discurso nessa música. É uma reflexão sobre as questões referentes à brasilidade e a ser brasileiro, o que é ser brasileiro, uma pergunta e um balanço.

Tu tiveste algum receio ou dúvida em fazer um disco conceitual ou era o tipo de trabalho que fatalmente virias a realizar?Acho que não tinha como fugir disso. Quis colocar a minha visão das coisas. Sem, é claro, me colocar como dono da verdade. E nem coloco o que estou dizendo como ponto final da questão. O disco é conceitual porque tem muita reflexão, tem textos, transito por autores e referências, tudo sem pretensão de encerrar questões. É a minha versão. No encarte, antes de cada música, tem um texto, para que isso funcione como um roteiro e como orientação e referências sobre cada uma das músicas. Isso dá uma idéia de viagem, de um passeio num país, que começa e encerra com o canto de um índio Kaingangue.

Felipe, fala um pouco sobre as etapas do teu processo de trabalho desde o primeiro disco até chegar ao “Percussìvé”.O “Cimbalê”, lançado em 1998, tinha um caráter cosmopolita, abrangente no sentido de texturas e timbres sonoros, é muito diversificado com relação a timbres. O “Identidades” também tem o caráter cosmopolita, também pelo encontro de um brasileiro com um suíço (Olivier Forel). Mas nesse CD o enxugamento é radical, porque a variedade de timbres que apareciam no “Cimbalê” agora se sintetiza no violão e no acordeão, com duas estéticas autorais diferentes, sem que conflituem entre si, mas dialoguem. No “Percussìvé” adoto um posicionamento bem radical sobre vários aspectos. Nele, descartei muita coisa em opção de outras - descartei bateria, baixo, guitarra e foquei no violão. A coluna cervical desse disco é o violão. Porque o violão tem a característica de ser percussivo, e isso é uma das coisas principais do disco, mas também exerce a função de acompanhamento, é contrapontístico e também orquestral. Ou seja, é um violão múltiplo. E isso é a principal característica com o que me identifico e que tem muito da herança do violão popular brasileiro. O violão sai do padrão típico de acompanhamento, ele soa como um piano, c o m o u m t a m b o r , t e m a s p e c t o contrapontístico, diversificado, tem várias nuanças. E é nesse sentido que enxergo o violão brasileiro contemporâneo. Em relação a isso, ainda este ano, tudo dando certo, pretendo lançar um livro que está praticamente pronto, com enfoque didático, acompanhado de cd, falando sobre tudo isso que penso com relação a este violão brasileiro contemporâneo. E com certeza meu próximo disco, que já está com repertório praticamente pronto, terá também essa abordagem.

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Neste bate-papo, Felipe fala de seu amor pelamúsica brasileira e sobre o violão popular, expõesuas idéias a respeito da brasilidade e comentaPercussìvé ou a prece do louva-a-deus, o seuterceiro cd, que terá lançamento simbólico e pro-mocional no dia 24 de Novembro, às 17 horas, naLivraria Cultura (Shopping Bourbon Country). A entrada é um quilo de alimento não-perecível.

Tu fizeste uma leitura do "Cobra Norato". Que elementos tu retiraste da lenda pra conceber a música “Norato Cyber Cobra”?São duas coisas: primeiro, tinha lido o livro Antropologia do Ciborgue, do Donna Haraway, e em seguida o poema "Cobra Norato" do Raul Bopp e pensei: daria pra recontar essa lenda numa visão pós-moderna, uma visão futurista. E comecei a pensar na história, e aí a idéia do cobra devorador. Além do que, tem aquela expressão: "o cara é cobra no assunto, esse cara sabe esse assunto, esse cara domina tal coisa". Então surge o Norato como um cobra, um intelectual que é absorvido pela sua própria busca, pela ânsia, fome do conhecimento. Na letra da música o personagem leva uma vida pacata. Uma figura típica que se encontraria em qualquer lugar do mundo, ao mesmo tempo em que se enquadra dentro de um perfil brasileiro. Esse cara, no momento em que ocorre a transformação dele em cobra, à medida que ele vai devorando as coisas, ele vai se transformando em um ciborgue, em máquina. Aí se dá uma coisa que é bem característica da nossa época, que é a questão da devoração pela devoração. Se vai devorando, consumindo e destruindo muitas vezes, assim como se constrói também se destrói. E nesse processo, o Norato está dentro de um processo de encanto, ele luta com a Cobra, devora a Cobra e se transforma em Cobra. E na medida que ele vai devorando ele vai ficando cada vez mais máquina, só que a essência dele é humana. Mas ele só se dará conta que a essência dele é humana quando se apaixona, se reencontra e redescobre o amor. A diferença é que no texto do Raul Bopp, Luzia era a rainha e a filha da Luzia era quem o Cobra Norato ia tentar salvar da Cobra Grande...

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Azevedo

Felipe, queria que tu iniciasses falando sobre a idéia do disco e da figura do louva-a-deus.A idéia conceitual do cd eu tive quando fiz turnê na Europa em 2003, com o álbum Identidades. Lá, tive a percepção do Brasil e me enxerguei como brasileiro, vi o Brasil e me vi como brasileiro de fora pra dentro. Foi uma coisa bastante impactante. Foi muito contrastante ver as diferenças de cultura e costumes de um lugar para o outro. Antes da turnê, tinha uma idéia do que ia fazer, das coisas que ia falar no disco Percussìvé, que era falar sobre a brasilidade e tentar expor uma visão minha de um Brasil abrangente. Depois dessa experiência forte, uma série de questionamentos e reflexões me ocorreram, me vieram vários caminhos, várias respostas, em termos de conceito, uma forma de trabalhar o disco. A partir daí, várias músicas começaram a surgir, dentre elas Balanço Tupiniquim, Canibalismoderno, Norato Cyber Cobra. Também percebi a questão da antropofagia cultural, que é uma coisa bem forte do Brasil. Então pensei em retomar o conceito da antropofagia na minha música. E precisava de um símbolo, um ícone que representasse essa minha idéia. E decidi por usar a figura do louva-a-deus. Um dia, lendo um texto do Guimarães Rosa (tem um trecho dele no encarte do cd), encontrei, pra falar da antropofagia e ao mesmo tempo da brasilidade na música, a idéia que esse inseto representa. O louva-a-deus é um inseto que tem vários nomes e significados em cada cultura. Vi num documentário que para os muçulmanos, por exemplo, é um símbolo de fortuna, sorte. Ele é universal, e para cada cultura tem um significado.

Num dos textos do encarte do cd tu fazes a seguinte pergunta: "o que ainda resiste do antropofagismo do Oswald de Andrade?" Comenta isso pra gente. Acho que essa é uma pergunta que o artista brasileiro se deve fazer, deve pensar sobre isso. É um questionamento para o qual eu não tenho resposta, é uma indagação minha. Outra pergunta que deixo nas entrelinhas é: até que ponto a antropofagia pela antropofagia vale a pena, a devoração pela devoração? Se for por aí, a gente acaba fazendo uma pasteurização de idéias. E o artista deve se perguntar sobre isso, e não simplesmente dizer: “vamos ser antropofágicos, vamos devorar”, e isso é a nossa estética. Acho que não é por aí. Às vezes, sinto falta duma essência. Por exemplo, escuto Lia de Itamaracá e me emociono muito. E a gente sabe que ali tem toda uma tradição de cultura oral construída de uma forma muito verdadeira. Então, às vezes, com a mistura, esse tipo de essência acaba se perdendo. No meu disco, por exemplo, tem uma música, “Chorandinho”, que é um cateretê, em que reaproprio uns versos do "Cancioneiro Guasca", do João Simões Lopes Neto, e reapresento eles com o cateretê, que é um ritmo que surge lá com os jesuítas. E o que é legal na música é que falo duma coisa pura, singela, do popular, com uma abordagem contemporânea, contrapontística, sob um enfoque pessoal, particular,ou seja, como penso o contraponto no violão e na música brasileira. E acho que dessa maneira as coisas me parecem mais sinceras. Não quero com isso estabelecer parâmetros, de forma alguma, mas é como eu sinto.

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foto: KIKI JONER

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FELIPE AZEVEDO

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Fel ipe , o "Percuss ìvé " tem participações especiais de Marcos Suzano, na percussão, e de Mônica Salmaso, cantando a música “Tema para um compasso de espera”, além do Guinga, que escreve um texto sobre o cd. Como que aconteceu o encontro com esses grandes nomes da música popular brasileira? O Guinga sempre me falava, de brincadeira, que no meu próximo disco ele ia acabar escrevendo algo sobre o meu trabalho. Essa brincadeira acabou tomando corpo e ele se dispôs a escrever mesmo, apresentando o cd. Mas o fato de o Guinga escrever num disco meu, não é só pela figura e grande artista que ele é, mas é um cara por quem tenho uma grande admiração. E a palavra dele como artista e c o m p o s i t o r c o n s i d e r o m u i t o significativa. Além do que, já partilhei o palco algumas vezes com ele. Acho que não teria outro cara pra apresentar o disco que não fosse ele. E a minha admiração pela Mônica vem desde quando ouvi os "Afro-Sambas", gravados por ela e pelo Paulo Bellinati. Considero ela uma das melhores cantoras do Brasil hoje. A Mônica é extremamente diferenciada. Então, queria muito que ela cantasse uma música minha e de preferência que fosse num disco meu. E a oportunidade de conhecê-la surgiu quando vi o show dela e do Paulo aqui em Porto Alegre. Perguntei se ela tinha interesse em ouvir as minhas composições, e ela se mostrou muito receptiva e me pediu algumas gravações. Das músicas que mostrei, ela ficou muito interessada em gravar o "Tema para um compasso de espera". O Suzano conheci também aqui num workshop. Mostrei uma música pra ele, a gente tocou juntos e ele ficou muito empolgado, foi uma festa. Depois, quando estava produzindo o cd, fiz o convite pra ele, e ele topou de cara gravar o "Balaio de Cordas" e o "Balanço Tupiniquim". O Suzano é um cara que está muito ligado na música brasileira e na música do mundo.

O João Gilberto é outro que faz contraponto. E muita gente não percebe isso. Fala-se muito da questão da harmonia, do jeito de cantar baixinho, casado com o violão, disso tudo que é muito original nele, mas o João Gilberto é extremamente contrapontístico. A forma como ele estabelece o diálogo da voz com o violão é o tempo todo contrapontística. Disso tudo dá pra notar como a música brasileira é rica, e como há ainda muita coisa pra se explorar. A partir dessas conclusões passei a trazer esses elementos pro meu trabalho, na forma de tocar e de compor. Outra coisa muito importante foi ler o livro do Luiz Tatit, "O Cancionista". Nesse livro o Tatit faz uma análise do sentido entre a melodia cantada e o texto, a relação de integridade dessas duas coisas. E essa idéia se tornou significativa na minha forma de compor. Porque aí passo a me preocupar realmente que o texto seja ilustrado pelo violão, dialogando com a voz - um diálogo de camadas, a voz é uma camada, o texto é outra camada, o violão é outra camada. Isso tudo dialogando o tempo todo. Não há inércia mas dinâmica constante. Nas músicas, "Antes dos 30", " B a l a n ç o T u p i n i q u i m " , " Q u e b r a d i n h o " , "Chorandinho", "Maracatu Torto", "Percussìvé", isso aparece o tempo todo, é um diálogo constante dessas camadas, do início ao fim das músicas. Outra coisa que quero citar sobre isso: há três pessoas às quais sou muito grato, com quem dialogo muito sobre essas coisas, a gente pensa muito sobre isso - o compositor e professor Fernando Mattos e o Eduardo Castañera, meu professor de violão, com quem aprimorei muito a minha técnica, além do Cícero Lopes que foi meu professor de Literatura quando Cursei Letras e que me auxiliou muito neste trabalho. Faço questão de ressaltar a presença deles nesse meu processo de estudo. São pessoas para as quais devo muito.

E o título, Percussìvé? Essa palavra é francesa ou é neologismo?

É um neologismo. Parece um termo francês, mas é neologismo também em francês. A idéia era intitular o disco de "Percussividade". Depois surgiram as idéias da antropofagia e do louva-a-deus. Então passo a ter três coisas pra explorar: a percussividade do violão, a antropofagia brasileira e a figura do louva-a-deus. Só que depois, procurei uma amiga que trabalha com numerologia cabalística e pedi pra transformar esse termo percussividade em uma outra coisa. E, mexendo uma letra , um acento, enfim surgiu a palavra PERCUSSÌVÉ. Achei legal, porque tem sonoridade e é diferente, é um neologismo tanto brasileiro como francês.

Foi uma conseqüência de uma série de coisas que desembocam aí. A história é a seguinte: há uns sete ou oito anos atrás, estava ouvindo mais atentamente a música do João Bosco e descobri que ele não tinha sido o primeiro a usar o violão percussivo, como pensava até então. O violão do João Bosco passa pela t r ad i ção do v i o l ão b ras i l e i r o , na percussividade, sendo esta uma das marcantes características do violão brasileiro, coisa que já aparece no lundu. O Eduardo das Neves grava o "Isto é bom", em 1904 e já tem isso, tocando o violão de forma percussiva, o violão já soa polifônico. Quando ouvi essa gravação tomei um susto e me dei conta que o buraco estava muito mais embaixo. E por essa época também já tinha ouvido o João Bosco dizer que uma das principais referências dele era o Dorival Caymmi. Então, comecei a escutar mais atentamente o Caymmi. E percebi que, além da percussividade no violão, o Caymmi faz aquela ambientação, todo um cenário sonoro sobre a interpretação e a letra, que o João Bosco também costuma fazer. E outra referência do João Bosco é o Baden Powel. Porque o Baden foi um mestre em trabalhar duas coisas no violão brasileiro: a parte rítmica e o contraponto. O Baden bebeu na fonte do Pixinguinha e do Garoto. E o Garoto deu muita contribuição na parte harmônica da música brasileira. Ele antecipou muito o conceito de harmonia que foi usado na bossa nova.

Atualmente, um cara que usa toda essa tradição de que tu estás falando é o Lenine. Sim, exatamente. O Lenine é um cara que está com um pé no futuro, no mundo (ele se considera um músico do mundo) e outro nas raízes brasileiras. Isso aparece muito bem resolvido e estabelecido na música que ele faz. E sabe fazer muito bem o seu trabalho, sem discursos e bandeiras. Mas voltando ao que estava falando na resposta anterior: no violão do João Bosco ainda não aparece o contraponto, ele tem a coisa percussiva e faz contracanto, uma coisa cíclica e constante na música dele. Por exemplo, na música “Corsário”, o violão é cíclico, não contraponteia com a melodia cantada, ele só ambienta e ilustra a cena do texto. Quando estudei com o Fernando Mattos contraponto, forma e análise e harmonia funcional em 1999/2000, inicialmente esse estudo foi mais voltado pra composição e pra música erudita, não estava voltado pra música popular. Então, fiquei pensando como seria usar essa técnica no violão popular brasileiro. E o desafio era fazer com que o violão não soasse erudito e sim com originalidade, com essência, personalidade. Daí, percebi que o João Bosco não usava contraponto, mas por conta disso redescubro o Baden. E o Baden também foi lá nas raízes, no lundu, no choro. A minha conclusão é que o contraponto no violão brasileiro aparece muito no choro e com o Pixinguinha. E com ele é extremamente significativo, genial, muito original. E o Baden assimila isso do Pixinguinha.

E o contraponto? Como pensaste em usar esta ferramenta musical na concepção do teu novo trabalho? Como foi?

por FERNANDO RAMOS

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V

E o João Gilberto?

Pelo fato de ser usado basicamente na música popular e pelo povo, o violão ganhou má fama: instrumento de boêmios, seresteiros e chorões, virou sinônimo de vagabundagem. Assim o violão foi visto durante anos.

O VIOLÃO DE 7 CORDAS

Na mesma época em que passou a ter seis cordas, criou-se também um tipo de violão com uma corda mais grave, afinado dó, mi, lá, ré, sol, si, mi, do grave para o agudo, conhecido como violão de sete cordas. Tal tipo de violão, muito menos utilizado do que o de seis cordas, começou a tornar-se mais freqüente nos conjuntos de choro das primeiras décadas do século XX. No Grupo Chiquinha Gonzaga ele aparece nas mãos de Tute, que se considera o introdutor desse tipo de instrumento nos conjuntos de choro. No famoso conjunto de Pixinguinha, Os Oito Batutas, havia um violão de sete cordas tocado por China, irmão de Pixinguinha. Na década de 1950, Horondino José da Silva, o Dino Sete Cordas, violonista do Conjunto Regional do Canhoto, sentindo o vazio na região grave ocasionado pela saída do conjunto do saxofone tenor de Pixinguinha, mandou fazer um violão de sete cordas e passou a usá-lo no regional. Dino, porém, não se contentou em apenas executar a marcação segura de Tute e dos outros. Inspirado no saxofone de Pixinguinha, revolucionou o emprego do instrumento, criando não só uma nova sintaxe, como até mesmo uma nova rítmica para ele. Hoje, os executantes de violão de sete cordas usam no acompanhamento o estilo criado por Horondino José da Silva, que também foi aprimorado por Raphael Rabelo.

A viola, instrumento de 5 cordas duplas (antes, viola de arame com 04 pares de cordas) precursora do violão e popularíssima em Portugal, foi introduzida no Brasil pelos jesuítas portugueses em 1549 (séc. XVI) , que a utilizavam na catequese, e foi criada como uma simplificação dos instrumentos de corda tocados nas cortes reais. A viola, depois de já estar morando e transitando no ambiente rural por uns 200 anos, tornou-se a viola caipira - instrumento típico do interior do país. No final do séc. XVIII surgiu a Guitarra Espanhola. No Norte de Portugal este instrumento passou a chamar-se violão. Tal instrumento foi criado como evolução natural da viola de arame. Passou por alterações entre os séc. XVIII e XIX ganhando mais uma ordem de cordas na região grave, passando a ter a afinação mi, lá ré, sol, si, mi do grave para o agudo, e mais tarde as cordas duplas foram transformadas em cordas simples. Para compensar a perda de sonoridade oriunda destas transformações teve o seu tamanho aumentado, como comprova o próprio apelido que recebeu - violão. É importante se considerar que, com o surgimento e aquisição do violão, em muitas regiões do Brasil a viola foi suprimida. Entretanto, a viola continuou sendo um instrumento que se desenvolveu e se expandiu no ambiente rural, e o violão, no urbano. Para efeito documental, o violão ganhou o seu formato defini-tivo nas mãos do espanhol Antonio Torres, em 1863. O instrumento também se tornou favorito para o acompa-nhamento da voz, como no caso das modinhas; na música instrumental, juntamente com a flauta e o cavaquinho, formou a base do conjunto do choro - o regional.

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FELIPE AZEVEDO [email protected]

A VIOLA

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08 IV

V VIV

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Estudei um ano no Conservatório Tchaikovski e ingres-sei na única escola de jazz da então URSS. Foi aí que comecei a me dar conta da importância do maestro Tom Jobim. Entre os jazzistas soviéticos, Tom Jobim era um mito. As suas composições tinham conseguido ultrapassar os rigores da cortina de ferro. Comecei a freqüentar festivais de jazz e percebi que não havia um único músico que não incluísse uma canção de Jobim no seu repertório. Assim como não havia um disco de qualquer jazzista que não contivesse uma composição jobiniana. Com o progressivo estudo da harmonia jazzística, pude compreender a dimensão da obra de Jobim. Ao transpor o Muro de Berlim, em viagens durante as férias estudantis para procurar trabalho na Europa Ocidental, constatei mais uma vez o fascínio dos europeus pela música de Tom Jobim. Corcovado, Felicidade, Wave e a inevitável Garota de Ipanema são canções muito conhecidas no Velho Continente. Nos últimos anos, antes de regressar ao Brasil, assisti ao renascimento da Bossa Nova, com o aproveitamento das novas tecnologias, surgindo uma nova tendência que os ingleses batizaram de hard`n`bossa. É a mistura da bossa com a eletrônica, que chegou ao Brasil pela voz de Bebel Gilberto (filha de João Gilberto, um dos três papas da Bossa Nova, juntamente com Jobim e Vinícius de Moraes).

Certa vez, perguntaram ao Tom Jobim se ele fazia distinção entre música popular e música erudita. Ao que este respondeu: “eu não faço, mas que ela existe, existe”. Foi pensando desta maneira que Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim se tornou, juntamente com Cole Porter e George Gershwim, um dos três maiores compositores de música popular do século XX. Mas este consenso não é nosso. Muitas vezes, tenho lido na imprensa brasileira que Tom Jobim é um dos maiores compositores de música popular brasileira de sempre. Não é verdade. É um dos maiores do planeta. Fico triste com a constatação de que o Brasil não conhece o Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos, Tom é a referência maior da música brasileira. Jazzistas europeus e norte-americanos reverenciam o nosso Tom como nós próprios não o fazemos. Foram eles, os gringos, que colocaram Tom Jobim no mesmo patamar do Porter e do Gershwim. O que é uma pena é o fato de que só temos a noção da importância da obra jobiniana quando saímos do Brasil. Nos anos 70, eu ouvia Chico Buarque, Caetano e os demais baianos (novos e velhos), o pessoal do Ceará e, é claro, Tom Jobim. Gostava de suas canções, mas não tinha ainda a noção da abrangência da sua obra. Recordo-me de, aos 9 anos de idade, ter visto pela televisão Tom Jobim vencer o FIC – Festival Internacional da Canção, com a sua belíssima Sabiá, em parceria com Chico. Conhecia uma pequena parte da sua grande obra, mas não era o meu compositor favorito. Pelo meu engajamento no movimento estudantil na época, gostava mais das letras buarqueanas, da postura do Caetano, do incrível som do Clube de Esquina, com Milton Nascimento como o maior expoente desta geração de Minas Gerais. No início dos anos 80, ganhei uma bolsa para estudar Agronomia na universidade Patrice Lumumba em Moscou. Até este momento, o meu envolvimento com a música era o de um ouvinte apaixonado, que sabia tocar algumas coisas no violão e fazia já algumas composições bastante simples, sem maiores pretensões. A participação em festivais estudantis de música em Moscou e um surpreendente sucesso alcançado no meio universitário me empurraram a tentar mudar de curso, o que acabou por se concretizar.

É preciso dizer que este é um movimento que foi criado lá fora antes de ter sido importado para o nosso amado Brasil. Uma gravadora belga, a Crammed Discos, foi quem primeiro lançou os discos da Bebel e de outros brasileiros, discos estes que são muito difíceis de serem encontrados por cá. Faz-se mister saber, também, que esta mixtura foi inventada pelo iugoslavo Suba, que faleceu num acidente de carro, e inaugurou a nova tendência, já batizada novamente de Lounge Brasil. A partir daí, outras gravadoras começaram a investir neste veio musical, o que fez os europeus redescobrirem o ritmo inventado por João Gilberto e imortalizado pelas canções de Jobim. Atualmente, são muitos os estrangeiros – europeus, norte-americanos e, inclusive, japoneses – que se dedicam a explorar esta mixtura explosiva. Sean Lennon, filho do Beatle John, gravou com uns amigos uma instigante versão de Águas de Março e não se cansa de comentar em entrevistas o seu fascínio por Tom Jobim. Para terminar – e até porque faltaria espaço para falar da obra do Tom – resta dizer algumas coisas que a maioria dos brasileiros desconhece. Tom Jobim é o único compositor que teve a honra de ter dois discos gravados com composições suas por ninguém menos que Frank Sinatra. Em 1967, o álbum Francis Albert Sinatra and Antonio Carlos Jobim só perdeu em vendagem de discos, nos Estados Unidos, para o Sgt. Peppers, dos Beatles. É também o único compositor brasileiro que tem sete canções suas incluídas no Real Book, a "bíblia" do jazz, publicação de partituras com centenas de temas jazzísticos e obra de referência para todo músico e estudante de música.

SASHA [email protected]

erta vez, perguntaram ao Tom Jobim se ele fazia distinção entre música popular e música erudita. Ao que este respondeu: “eu não faço, mas que ela existe, existe”. Foi pensando desta ma- neira que Antonio Carlos Brasileiro Jobim se tornou,

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Queimei a folha de papelno escuroe vi o fogo azulem que se transformaraaquele sonhocheio de letrasmal distribuídas,porém arrancadasdo fundo secreto da alma,exposto a todo instante ao frio tribunalda minha calma.

Condenei aquela folha clarae o dia não vai nascer pra mim.Negro pedaço de ilusão - já quase pó:e mais uma cançãoque ninguém vai cantar!

Ainda vou morrer de fomepor tragédia pura.Pelo que falei,pelo que fiz e não fiz.Pelo que penseiDarei minha vidapra que fique viva a canção.

E que tudo seja sol,luz, claridade!Pela luminosidadeDestruo quem é pálido.Pela canção deixo-me morrersabendo:poeta tem é que morrer de fome.

Primeiro apunhalaram-me,tombaram-me, mataram.Depois me retalharam,beberam o meu sangue,comeram minhas tripas,minha carne todamastigaram.

Quebraram os meus ossos,arrancaram meus olhos,meu nariz, minhas orelhas.Queimaram os meus restos.Lavaram-se, secaram-se,aliviaram-se, enfim.Mas - pra desgraça deles -eu sobrevivi.

Blues

Eu não tenho amor.Eu não tenho amigo.Eu não tenho paz.Eu não tenho nada.

Eu só sei chorar.Eu só me abandono.Eu caminho só.Eu não tenho sono.

Eu não tenho família.Eu não tenho emprego.Eu não tenho dinheiro.Eu não tenho endereço.

Eu não...Eu só...

O casal de mendigos abraçados trocava carícias e sussuros.Não será também o amor, uma espécie de esmola?

Em todos os meus músculos e nervosposso ouvir tua presença, impregnada,gritandonos meus ossos, batucandonas veias dos meus magros braços.Teu silêncio é que me assusta.

A P

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SIA

DE

CA

DA

DIA

A POESIA

CADA DIA

DE

ANGELO VIGO, poeta e compositor, autor de“não são palavras mágicas”, Editora Alcance.

O MÚSICA AUTORAL, produzido pelo jornal VAIA, tem como objetivo apresentar e divulgar a produção musical da cidade e do estado do RS, principalmente o trabalho independente de músicos, grupos, intér-pretes e compositores que fazem música popular brasileira. Sempre no primeiro sábado de cada mês acontece um show reunindo dois artistas (grupos/ bandas, intérpretes ou compositores) convidados, tendo como abertura do show um músico que será um dos artistas a participar do show do mês sub-seqüente. A agenda é definida de maneira que as apresentações de cada noite reúnam artistas com afini-dades estéticas e de estilos musicais. Interagindo com a festa, o sarau poético e, pra fechar a noite, a tradicio-nal jam session.

Já participaram das seis primeiras edições os composi- tores, instrumentistas e cantores Otávio Segala, Fernanda Lopes, João Mayer, Felipe Azevedo, Alexandre Florez, Bandanavereda, Mário Falcão, Karine Cunha, Joca Libânio, Leandro Maia, Tom Gil, Roberto Marques e Jorge Herrmann. No próximo dia 25 de outubro, às 20:30hs, haverá um show coletivo com Otávio Segala, João Mayer, Alexandre Florez e Fernanda Lopes, e que terá a participação especial de Nelson Coelho de Castro. O espetáculo será no Teatro de Arena (Borges de Medeiros, 835) e os ingressos custarão R$ 6,00. E para o mês de novembro, no dia 05, os convidados são Luis Mauro Vianna, Vinícius Todeschini e Angelo Vigo.

MÚSICA INDEPENDENTE EM POA

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Um certo senhor Jobim

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V VIV

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Bam, bam, bam. - Ô de casa! Marcelino afinal abre a porta. E vê: sêo Chico.Ele esfria por dentro. Mas é obrigado a dizer, com cara boa: - Vamos entrar, sêo Chico. - Bom dia, cumprimenta sêo Chico, parado, sério. - Bom dia, responde Marcelino afastando-se para um lado. - Vamos entrar. Não faça cerimônia. Marcelino mais se afasta, segurando a porta. Sêo Chico vai entrando, e pergunta: - Como é que vai indo? - Tintiando, sêo Chico. Pelejando com a vida, responde o Marcelino, enquanto puxa e apresenta uma cadeira ao visitante. Sêo Chico se acomoda. Marcelino dá a volta, senta em frente, a mesa entremeio aos dois. - Uma dó a Neném não estar aqui pra fazer um cafezinho novo, ele diz e se levanta, solícito vai até a cozinha, volta com a cafeteira. - Este café num é bem novo, não, mas serve, só o senhor num reparar... Marcelino despeja café numa xícara esmaltada azul. - Este ano tá até bom pra chover, né sêo Chico?, ele procura conversa. - Tá bom, sim, muito bom, concorda sê Chico Com uma voz esquisita. E tosse uma tossida seca, encerrando aquele assunto. Marcelino torna a sentar, agora com jeito de quem não vai se levantar mais, disposto a escutar o que o outro tem para dizer. Sêo Chico bebe o café, em silêncio; talvez ligeiramente trêmulo? Lá fora, a manhã meio escura está molhada da mansa chuva da noite anterior - chuva prolongada, dessas que umedecem o chão por muitos dias. E, pelo jeito, pode tornar a chover outra vez, logologo. - Este ano tá bom mesmo pra chover, insiste Marcelino meio sem graça. - Graças a Deus!, concorda sêo Chico, que deposita cuidadosamente a xícara sobre a mesa. - Sinal de fartura. - É sim. Sinal de fartura, repete Marcelino. Sêo Chico tosse de novo. Um momento passa sem ninguém falar nada. - Dona Neném saiu então? Indaga sêo Chico. - Saiu. Ela foi lá na Dona Cota comprar um frango. O senhor sabe: amanhã é domingo... - Franguinho no almoço é bom. - Aqui em casa a gente gosta muito. - É, diz sêo Chico, pensativo. Marcelino o observa. Sêo Chico olha enviesado para o lado da cozinha. Marcelino aproveita para reparar na cintura do homem: ele está armado de revólver, sim, está. Marcelino sente medo. - Ela tá boa de saúde?, pergunta ainda sêo Chico. - Quem? - Dona Neném, diz sêo Chico com um curto som de impaciência na voz. - Ela tá com um restinho de gripe, sêo Chico. Coisa atoa. Ela pegou essa gripe uns diinhas atrás. Gripe demora mesmo a acabar de tudo, né? - É. - Ela até falou que ia buscar uns ramos de funcho ali num sei onde. Fazer chá. Mas Deus ajuda que sara logo. Sêo Chico notou aquele jeito de Marcelino - sen-tado debaixo do retrato ampliado dele com a mulher - falar em Deus, se protegendo, bancando um homem religioso. Pausa. Os dois esperam. Marcelino sabe que sêo Chico vai falar. - Marcelino. Tudo pára dentro da sala. Sêo Chico ficou muito sério. De obrigar a olhar para ele. - Eu vim cá... O que Marcelino temia começa a acontecer. Já começou. Não há como não enfrentar. -... falar de um assunto. Sêo Chico põe a mão direita em riba da mesa. Ele olha de lado. Está meio engasgado. Marcelino pensava que sêo Chico fosse mais violento. - Às suas ordens, sêo Chico, Marcelino interfere, querendo aparar o ataque. - Acho até que você já sabe, ou desconfia, sêo Chico agora falou com maldade, ou rancor, na voz. - Sei não, sêo Chico. Eu num sei o que é, afirma Marcelino com o coração apertando. - Mas desconfiar, desconfia. Tenho certeza. Você num é bobo. Marcelino não pôde contestar. Então, cala-se, e espera. Ah!, meu Deus! Ele preferia não estar ali. Pra quê abriu a porta? Devia ter fingido que não estava em casa.

- Lázaro, meu genro, vai embora daqui, começa sêo Chico.- Vai mudar. - O compadre Lazo? Eu num sabia. Vai embora pra onde? - Num interessa, sêo Chico corta. - O senhor contou, eu perguntei, arrisca Marcelino. - Interessa é que ele vai embora, declara, com firmeza, sêo Chico. - E vai por causa de vancê. Pontada no coração de Marcelino. A coisaaumenta: envém perigo. - Por minha causa?, gagueja Marcelino, sentindo-se arrependidamente inocente. Sêo Chico sente um forte ímpeto de crescer em agressiva ira, mas se contém. Com forçada calma revela: - Marilene me contou, Marcelino. Marcelino empalideceu. Marilene. Mais ainda amarelou ao notar que sêo Chico lhe observava a palidez com um olhar de quem está tão por riba que pode reparar bem no outro. - Contou o quê?, tornou a gaguejar. Que demora difícil! Sêo Chico olha para ele, pensando. - É duro, Marcelino, ter de falar nisso! Marcelino se arrepende: profundamente. O remorso lhe aumenta o medo. - Você faltou com o respeito à minha filha. Marcelino passa a mão na testa: se ajeita na cadeira, curvando-se um pouco. - Seu compadre queria te matar. Ele é homem de paz, mas se não fosse ela, e eu, você já era um homem morto, Marcelino. Marcelino sente medo e alívio. Dessa, escapou. - A mudança vai atrapalhar demais a vida deles, insiste sêo Chico. Dói o arrependimento de Marcelino. Mas um fino contentamento de saber-se fora de perigo o domina. Esse povo é pacífico!, não é de matarninguém. - Marilene é conformada - acrescenta sêo Chico, falando como pai a um íntimo conhecido da filha e do genro - é o que sente Marcelino. - Onde o marido for, ela acompanha. Ela é uma mulher de verdade. De verdade, pensa Marcelino, torturado: tanto a desejou! Tanto a deseja! Sêo Chico conserta-se na cadeira. - Olha, Marcelino, eu vim cá para falar muito sério com você. Marcelino torna a se assustar. Então ainda não passou o perigo? Tudo continua a acontecer: e agora mais grave, em nova e seguinte etapa. Que dificul-dade, meu Deus! - Às suas ordens, sêo Chico, balbucia. - A Marilene minha filha me contou tudo - diz, bem devagar, sêo Chico, severo pai, com um verme-lho esquisito nos olhos azuis. Nos cabelos brancos, passa a mão. Ele está reficando valente, forte, perigoso - o velho sêo Chico, ali diante de Marcelino. Um silêncio perdura ali entremeio a eles. Um inútil barulho de motor de caminhão vem lá de fora.

- Você, Marcelino, o amigo, o compadre! A vida do meu genro e da minha filha pode estrangolar por sua causa. - Mas por causa de mim o quê, sêo Chico?, arrisca Marcelino, se sentindo fingido. Sêo Chico mastigou uma saliva. Fincou os olhos dentro dos olhos de Marcelino. Agora é que tudo vai começar. - Vou falar. Vou falar rasgado, Marcelino. Sêo Chico fica pensando durante um longo momento breve. - Eu num precisava explicar nada, pois você sabe de tudo. Mas eu vou falar. A Marilene, Marcelino, contou ao Lazo umas propostas que você andou fazendo a ela. Aumenta o medo de Marcelino: um frio medo. Uma buzina de automóvel fonfona curtamente na esquina perto. Ele terá de ouvir - atravessar aque-le transe. Está mesmo acontecendo a ele? - Que eu andei fazendo?, perguntou sem saber o que dizia. - Sei disso não, acrescenta, decaindo em puro covarde mentir. Agora ele enxerga bem o absur-do do que fez. É tarde. A vida é muito perigosa mesmo. - Olha, Marcelino: Marilene é mulher muito direita, você sabe, você conhece minha filha. Ela num mente. Você sabe disso. - Eu sempre disse que o compadre Lázaro casou muito bem... - tenta Marcelino. - Vamos largar de fingimento, sêo Chico inter-rompe, trancando aquele desvio. - Fingimento?, pergunta Marcelino, entre humilde e um resto de altivez. - Fingimento. Fingimento! sim senhor! Sabe, Marcelino? Cada dia eu acho você mais safado. Eu tenho reparado em você. E agora, conversando com você aqui, estou vendo o tanto que você é fingido. E você é também muito atrevido! Você anda precisandoé de uma surra na cacunda e na cara, pra criar Vergonha! virar homem! - Sêo Chico! - Cala a boca! Sêo Chico levantou-se, suspendeu a camisa, deixando aparecer o revólver, pôs a mão no cabo do revólver, afastou-se um passo para trás. - Mas sêo Chico! - pede Marcelino, assustado, vozinha baixa, humilde. - Nem um pio! Acabou minha paciência! Cala! Se falar, morre! Será que lá fora alguém ouviu sêo Chico falar com tanto ódio? É a esperança de Marcelino. Mas nenhum passo ou voz de gente acontece. Marcelino pensa em pedir pelo amor de Deus, mas está proibido de falar. Olha só para o chão, calado, calado, esperan-do ou o pior ou um milagre. Sêo Chico tira o revólvere o engatilha. - Calma, sêo Chico! eu sempre respeitei o senhor, lança-se Marcelino, falando com a maior velocidade possível. - Cala essa boca! - manda sêo Chico, franzindo a boca. - Sêo Chico, guarda esse revólver, pelo amor de Deus! - Seu bosta! Metido a conversar mulher dos outros! Hein? Que que você tinha de dizer besteira a minha filha, seu moleque? Hein? Sem poder falar, Marcelino levanta a mão, espalmada, como para aparar os tiros. - Sem-vergonha! - Sêo Chico!, implora Marcelino. Sêo Chico funga. Aponta o revólver contra o peito de Marcelino. Mas demora. Um esticado momento de angústia suspenso: um longo tempo oleoso de quase um irreparável acontecer - morte. A demora de sêo Chico é uma possibilidade de não acontecer? Ele recolhe o braço, vagarosamente, abaixa o revólver, Marcelino sente-se salvo, somente arrasado, em pensamento murmurando a curtíssima oração: Meu Deus! Sêo Chico encosta o revólver na coxa direita. E suspira. Não vai mais matar. Um longo momento - em que sêo Chico olha para Marcelino e Marcelino olha para a mesa, fecha os olhos, olha para sêo Chico, e reza - perdura quase interminável. Marcelino, com os olhos fechados, ouve: - Devia te dar um tiro na boca, cafajeste. Mas desta vez escapa. Guardando o revólver na cintura, sêo Chico anda até a porta. Sai. Vai embora.

Uma indesejada VISITA

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ALAOR BARBOSA, autor de “Picumãs”, contos Rio Fundo Editora, 1996

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Dois anos depois, a encontro cantando num inferninho quatro quadras da Escadaria. Sua voz estava mais perfeita do que antes. Vestia uma saia do mesmo tamanho, de som preto. As cores por sua vez possuem som. Sento na mesa do fundo, mais algumas notas e me reconhece. Tosse, termina Núbia Lafaiete elevada a enésima e vem para a minha mesa. Por que não lhe ouvi? Balancei os cabelos, agora maiores. Fui violentada por um bando de chineses. Assobiei um rock. Fui libertada pela Federal. Voltei há seis meses. E a saia cor de rosa? Foi tudo que me restou.

A mãe a expulsou de casa quando soube que não era mais virgem. As explicações não valeram de nada. Lavagem cerebral de pequena voltagem. Cosmopolita analfabeta, com o demônio entre as pernas. Os pais morreram, Edvaldo fala bonito, tem o pênis delgado e provem uma cesta básica. A porta da rua é a serventia do inferninho Amadeus, um prato de comida, uma rede quando o estabelecimento fecha, isso entre as seis e meia e oito, armada no salão central. Sorte o Amadeus ser cearense. Quer comer uma pizza? Bolas indianas, dupla penetração. Um catálogo como apren-dizado. Restaram a saia e o terrível palito nos dentes. Enquanto palitava os dentes, uma barraca armava. Cama! O inferno agora era familiar. Os pés da cama eram latas e tijolos que desabavam cada vez que ela me ensinava uma posição oriental. Marta acendeu um cigarro. Minha recompensa foi o gozo, atingia gozo múltiplo. Trinta espasmos, o nirvana é uma cambada de japoneses. Semanas depois gravamos outra demo. Dessa vez Demo de demônio. O repertório era Blues. Entrava em transe cada vez que Marta abria a boca. Marta? Um e setenta, branca feito um copo de leite, bunda grande e seios volumosos.

emo de demonstração! Sua saia nos calcanhares revela a exclamação. A Escadaria do Senhor. Veio querendo gravar uma fita. Que voz! Pena que a literatura sintética desse poeta metido não é dada a descrições. Fazer o que? Precisava de uma mão. A minha já não mata! Vivo num plano espiritual, pago meus pecados. O presente relato é parte da dívida. A saia, achou que Demo fosse de Demônio. Reencarnei num cabeludo. Pior, só ser psicografado por Leon Galiel van Ferráz. O periespírito do psicografista deixa vestígios. Segunda, oito do sete de zero dois, quinze e trinta em ponto, sem atraso. A saia turquesa entra no estúdio para gravar a Demo. Nas primeiras escalas. Susto! Estava diante da voz mais perfeita que meus ouvidos já degustaram nas minhas dezenas de reencarnações. Gravamos duas músicas. A saia lilás tinha pago seis! Mas dois dias e a voz mais colorida da galáxia iria para China, com o Demo na bolsa. Convido para uma pizza. Satisfeita com a gravação, no segundo dia ela aceita o convite. Pobre alma! Possuía a voz mais perfeita da humanidade e a insegurança em pessoa. Não! Sempre fui egoísta. Mudar para quê? Não falei da sua voz. Ou seriam meus ouvidos? Os chineses que abrissem os deles. Morava com os avós e a mãe solteira. A mãe cuidava dos pais, enquanto ela cuidava de Deus diariamente na A Escadaria do Senhor do bairro. Laranjeiras. Rio de Janeiro. Um pastor pagou a fita demo e a levaria para China. Eu disse China? Você disse China? O que tem a China? Tudo claro. Edvaldo não via a cor da voz. O LSD mostra a cor do som. O pastor Edvaldo nunca tomou um ácido. Queria a saia laranja abaixo dos calcanhares. Continuarei sendo um egoísta. Ela que fosse para a China e se fudesse, melhor, que a fudessem. Na China todo mundo é igual! Igual como? Ou eu me purificava ou ficaria vagando mais uma encarnação. O pastor que lhe comer.

dE omm

CLÁUDIO PORTELLA [email protected]

Paredes emassadas, filetes de tinta branca sobre o piso. Ela nunca tinha ido ali sozinha - pra que uma menina ia ficar andando em construção? - mas a atração era forte, e foi visitar a obra depois da aula, serena, nervosa. Deixou a mochila na escada, escutava os rangidos da espátula, a voz de veludo do pintor cantando uma música do Fernando Mendes. Ele olhou-a assustado. Nunca a vira sem o pai ou a mãe. Oi, Pedro... Ela, sentido-se dona, foi andando pelos cômodos, cheirou uma lata de tinta aberta, pôs as mãos nas paredes, acariciou-as, foi se despindo, se sujando com o pó fino da massa, armando a teia com o corpo. Pedro, vem aqui. Suave, mas firme; tranqüila, mas em erupção. E ele veio, inseto fragílimo, ceia da aranha adolescente.

Lascado, jogado no ermo, sem dar conta de como viera parar ali, corpo murcho, coração ressecado, achava que precisava de Deus, um deus que explicasse o porquê de ele estar naquela danação. Construir um destino, uma história. Já umas não-sei-quantas facadas no bucho de fi-duma-égua de todo jeito, quantos modos de se arranjar entre o norte de Goiás e o Maranhão, e agora atirado no oco, numa Brasília erma que só um corno desgraçado ia gostar de morar, querendo dizer para si mesmo que não foi ele quem matou, não foi ele quem inventou tanta morte.

Mandaram chamar os pais: uma de olhos moles, linda, triste, cabelos pretos amarrados; outra, sem expressão, olhos e cabelos arrependidos e oleosos, sumida; a terceira, mais sem história, mais sumida, mais sem ninguém. Apareceu o pai de uma e a mãe de outra. Ele, rude; ela, amargurada. As meninas foram flagradas com uma garrafa de vinho Canção e o u t r a d e C o r t e z a n o , cortejando no banheiro. O homem dá um safanão na filha, ali mesmo, na frente do diretor. A mãe cala.

Filho-da-puta nojento. Quatro filhas. Lindas. A mais nova no caixa; ele sentado em um tamborete alto, atrás, mordendo a dentadura, não movia um pão, não sujava a mão no trigo, sempre um empregado colocando-o no pau; a mulher ralhando com um e outro; nem queria ele saber o significado de capital e trabalho, reservas de mão de obra, desemprego estrutural. Mineiro cu-de-fome. Capital, sim, o seu. Que importa ou desimporta a ALCA, a USIMINAS? A mais velha das filhas terminando o segundo grau, prestando vestibular, advocacia, ciências, química para fermentar o pão da família; ele feliz como uma broa. Domingo, a missa: o corpo de Jesus mastigado por sua boca de explorador, perdoado pelo sangue de Jesus e pelo manto de Maria.

Tinta

As meninas

Panificação

Raimundo Foto: REGINALDO GONTIJO

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PAULO SIQUEIRA, mineiro de Caratinga, radicado em Sobradinho, Brasília, é autor de O Tao da Coisa - poemas (Da Anta Casa Editora,1995) e Lâmina (LGE Editora, 2004), donde reproduzimos os 4 contos.

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CRUZADAS MANJADAS1 3 4 5 6 7 8 9 102

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CRUZADAS MANJADASHORIZONTAIS - 1- Título oficial de soberano russo - Peque-na imperfeição - 2- Inclusive, em espanhol - Marca de cerveja -3- Conspire - (...) Shariff, ator - 4- Atmosfera - Vereadores -Tocantins (sigla) - 5- Alcorão - Impiedosa - 6- Claridade da lua - Aumenta - 7- Vogal - Conj. da prep. em e do art. a (pl.) - Amarram - 8- Fraciona - Oxigênio (simb.) - 9- Dou miados -Soltar gases - 10- Art. def. masc. plural - Proposta que podeser comprovada por um processo lógico - VERTICAIS - 1- Alte-ração geológica brusca e violenta na superfície terrestre - 2- Emitiu sons (jegue) - Aqui está - 3- (...) Terra, personagemde Érico Verissimo - Comida - 4- Raio (símb.) - Chegaram aomeio - Tonelada (símb.) - 5- Sucumbo - Líder indígena, herói missioneiro - 6- Sociedade Anônima - Iodo (símb.) - A quintaclasse na escala de riqueza - Prefixo ind. de novo - 7- O deusgrego do amor - Ladrar - 8- Núcleo de Apoio à Maracutaia(políticos) - Ponto eqüidistante - 9- Obedecia - Onda do rádio -10- Um dos naipes do baralho - Fruta silvestre originária do Irã.

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Colaboram nesta edição: Alaor Barbosa, Angelo Vigo, Carlos Besen, CCharles Abegg, Clarice Müller, laudine Goux, Cláudio Portella, C. Ronald,

REunice Mendes, Fábio Gomes, Felipe Azevedo, Fernando amos, Hiiris JLassorian, Irineu Volpato, acques Canut, Kiki Joner, Laurene Veras, Lean-

Ddro óro, Leandro Maia, Lorenzo Ribas, Luiz Gustavo Insekto, Luis Mauro M CVianna, anuel González Álvarez, Mario Pirata, Paulo esar da Rocha, SPaulo iqueira, Raul Boeira, Ricardo Sena, Sasha Cavalcante.

OS ARTIGOS ASSINADOS SÃO DE INTEIRA S RESPONSABILIDADE DOS EUS AUTORES

? Rua Demétrio Ribeiro, 706/601 - centro - Porto Alegre- RS- BRASIL- 90010-312- F:(51)9649-5087

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V V N ero úm 17 - Outubro/2005 v a g. . vi avai @i com br ht p or l v a gs t c t ://j na vi av ia.blo po. om

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segundasintenções

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Você é o verdadeiro anticristo Um cowboy ditador e nazista Demônio do sistema imperialista O mais perigoso dos terroristas

Tua eleição foi um vexame Um golpe contra a democracia Mistura de Hitler e Al Capone Teu governo é um caso de polícia

Você é covarde assassino e perversoA alma mais sombria de todo o universo Um réptil vil, mentiroso e traiçoeiro Que se alimenta de poder e dinheiro

Hey, stop Mr. Bush! Com tantas guerras e genocídios E faça um favor para a humanidade Cometa suicídio, cometa suicídio!

RICARDO SENA Banda Eros Jones (P.Alegre) [email protected]

Hey, Stop Mr. Bush!!

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A situação era realmente crítica. Estavam suspensos no ar e amarrados pelos pés por cordas invisíveis, cuja ori-gem não se sabe de onde. Abaixo deles corriam rios de dinheiro em todas as direções. Sentiam seu cheiro e o desejo de pegá-los tão logo pudessem alcançá-los. Os esforços eram demasiados etorturantes, mas todos, sem exceção, não perdiam tempo em devaneios insó-litos e logo se lançavam na captura da nota tão sonhada. Assim que conseguiam pegar algumas notas ou um monte delas,ficavam satisfeitíssimos, mas, em seguida, se entristeciam repentinamente, porqueo desejo e o prazer de tê-las nas mãos findavam rapidamente. Olhavam uns para os outros cabisbaixos, e até ofereciam de graça as notas recolhidas com muito sacrifício ao seu semelhante, mas, infeliz-mente, elas eram recusadas uma a uma,sem apelos ou demais delongas. Todos queriam sentir o mesmo desejo e o mesmoprazer de poder pegá-las na hora e no momento que lhes fosse conveniente. Era uma sina, aliada a um desejo obsessivo que não podiam renunciar se quisessem se manter felizes e predispostos aos inú-meros encontros com um de seus vícios mais requintados, pelo menos para aqueladimensão em que viviam, sem saber por-que e para que. Infelizes uns com os outrospelas recusas que se somavam aos ofereci-mentos contínuos, voltavam às costasinsatisfeitos e jogavam outra vez as notasnos rios de dinheiro só para terem o prazerde pegá-las novamente.

arteINSEKTO

NÃO É UM EXERCÍCIO,

É UM PRAZER LER

IV

V V [email protected]://jornalvivavaia.blogspot.com

IV

V V

MARIONETES

PORRADA MUSICADA

HIIRIS LASSORIANCx. Postal, 103 - Capinzal - SC - 89665-000

Só o furacão Ofélia

pode atrapalhar

esta partida!

Zeca, tua mulher,

a Ofélia, veio

te buscar!

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CLARICE MÜ[email protected]

O senhor Henri disse: o carrinho de mão foi inventado para dar força ao homem, enquanto a mulher foi inventada para tirar força ao homem. Burburinho no fundo da sala, gestos indignados, voz feminina esganiçando "inventada?! a mulher foi inventada?!". Fiz que não ouvi e alteei a voz. É verdade que o carrinho de mão foi inventado para dar força ao homem, enquanto a mulher foi inventada para tirar força ao homem, porém a mulher, apesar de tudo, faz falta porque é o outro lado da utilidade. Numa moeda, se de um lado for a utilidade, do outro lado é a mulher. Mais sussurros, mais agitação, prossigo impávida e surda. A mulher é a mais inútil das ferramentas do homem porque a mulher é uma coisa bela. - "Coisa?!" A mulher é uma "coisa"?! Ah, não! Assim já é demais. Não quero mais ouvir esse sujeito! No tom e fúria em que é pronunciada, a sentença se torna imperativa. Pára tudo. O poema se fecha. Olhos transitam da leitora para a ouvinte, à espera... de quê? Um tapa na cara, jogada de luva, desafio pra duelo? Ambas mulheres, ambas "coisas" "inventadas", ambas beneficiárias das que queimaram soutien na rua e agora eu é que fico com fama de malvada? Que seja. Melhor provocar do que santificar, se gostasse de dogma virava Papa, não escritora. Apelo então pra malandragem: pega leve, vai além. Mas ela se recusa. Entre o politicamente correto e a moral de gênero, a arte que se dane. Esqueceu, como todos nós esquecemos quando o assunto é sexo, que o artista é um danado, que cabe a ele cuspir e imprecar sobre todas as conveniências, levantar a ponta do tapete e, sobretudo, grafitar na testa, para que o espelho nos lembre, quando chegar a hora, o mapa do lixo sob o qual soterramos o que vale a pena. Se é que vale, também não custa lembrar. Porque o precioso suscita cobiça, quem já teve o anel no dedo que o diga. E nos tempos de hoje, em que fica difícil definir o que é um tesouro, que dirá encontrá-lo, deparar com Gonçalo M. Tavares, o criador desse Senhor Henri que tira mulher do sério, foi um verdadeiro achado. Angolano ou lisboeta, até agora não sei, em seus 35 anos Gonçalo já publicou uma pá de livros, entre romances, poesia, ensaios, e faz furor com textos difíceis de definir, mas bons de deglutir mesmo quando nos deixam com cara de tacho, o que é bastante freqüente. Faz o seguinte, o gajo: cria O Bairro e nele põe seus senhores: Henri, Valéry, Brecht. Henri, meu preferido, define-se de pronto: "eu tenho um sistema geral do pensamento, chama-se absinto", e assim vai fabulando sobre anatomia, terremotos, alfabeto, estatística, mulheres, eclipses, infinitos, arco-íris, porcaria, espirro, comboios, petróleo, delicadeza, neolítico, ossos, as explicações dos médicos, azar, tudo sob doses e doses do etílico deleite, tão personagem quanto o próprio. O senhor Valéry, ao contrário, é sóbrio, gosta muito de café, tem medo da chuva e da sua sombra, dorme sempre de pé para não adormecer, nunca vira as costas às coisas, tem certeza de ser perseguido como tem de perseguir, desenha tudo o que explica e conhece apenas duas pessoas: a pessoa que ele era naquele exato instante e aquela que ele tinha sido, no passado. Acredita que "a única hipótese da verdade sobreviver é multiplicá-la. Se a verdade é uma única, e a mentira pode ser todos os bilhões de possibilidades que restam, então, descobrir a verdade será quase impossível: um acaso milagroso; e a mentira, pelo contrário, aparecerá sempre, em todo o lado. O que é preciso é ter tantas verdades como mentiras. Ou então é necessário ter uma única hipótese para a mentira". Veste sempre negro e justifica: "Ao verem-me de preto julgam-me de luto e, por compaixão, não me enviam mais sofrimento". O senhor Brecht conta histórias que lembram o gafanhoto do kung fu: "O filósofo dizia que só os homens faziam o importante, enquanto os animais só dispunham de ações insignificantes. Foi então que chegou o tigre e devorou o filósofo, comprovando com os dentes a teoria anteriormente apresentada". E mais não vou dizer porque a sala onde as relata continua vazia. Livros fininhos, letra grande, historinhas curtas, mata-se de uma sentada a leitura dos três, mas o riso matreiro de quem descobriu um parceiro pra vida fica o dia todo. Porque ele diz coisas como essas aí de cima, que desnorteiam, divertem e, fundamentalmente, provocam. O que, por sinal, não só é bom para a arte como para as artérias que, enfim desobstruídas, podem nutrir nossos neurônios com farta munição de inteligência e advirem daí, quem sabe, umas boas sinapses e luzes que não se limitem aos fios de cabelo. Esqueçam os invólucros - poesia, anedota, conto, crônica - seja qual for o nome que lhes dermos, as histórias valem pelo que são e pelo que somam ao inventário da criação humana. Através desta brilhante trindade de senhores à prova de bom tom, Tavares retoma os passos de Fernando Pessoa na contramão do mestre: cria heterônimos de fora pra dentro. Pois enquanto o velho partia da obra para definir o autor, o jovem faz deste a própria obra. Mais moderno impossível. Como um reality show poético, sem linha reta para conduzir ao poema nem odes ou alardes para induzir o leitor, extrai do detalhe a dimensão perdida, da idéia, a maçã. E assim, aos poucos e saborosamente, somos convidados a entender que "o que é preciso é pensar no momento em que ninguém espera". Gonçalo M. Tavares: surpreendente é pouco.

Meus caros senhores

LEANDRO DÓROhttp://leandrodoro.zip.net/

O senhor Henri disse: o carrinho de mão foi inventado para dar força ao homem, enquanto a mulher foi inventada para tirar força ao homem.