jornal vaia edição 21

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Page 1: Jornal Vaia edição 21
Page 2: Jornal Vaia edição 21

A dor de ser brasileiro FAUSTO WOLFF / [email protected]

Bom nome para uma novela das oito: A carne falou mais alto, com Vera Fischer. Falou tão alto que sua namorada engravidou. Como se amavam, ele fez o que qualquer rapaz direito faria: casou-se com ela. Foram morar com a família dela, que queria um casamento melhor para a filha. Durante anos João trabalhou nas mais diversas áreas até que, finalmente, passou num concurso para um banco particular. Com o salário pôde alugar um

João continuava noite afora trabalhando como chofer de táxi. Trabalhava das seis da tarde às três da manhã. Poderia dormir nos fins de semana, mas, no sábado, tinha reunião no PT local, onde era segundo-secretário. E domingo era o dia em que não precisava pagar a diária ao vizinho, dono do carro. As duas filhas estavam na faculdade. Uma fazia jornalismo e a outra, geografia. Como todo pobre que se preza, não queria que as filhas passassem o que ele passara e por isso não as deixava tra-

Lula se elegeu, mas as coisas não melhoraram. Seu salário continuou congelado e os vizinhos não queriam mais saber do futuro, pois este já se apresentava em toda a sua cruel realidade naquele subúrbio afastado de Porto Alegre. Seis meses antes fora demitido na agência em que trabalhava. Mandaram-n o p r o c u r a r u m a d v o g a d o . Envergonhado, nada contou à família. Logo gastou as poucas economias e teve de pedir dinheiro emprestado. Para esquecer-se do que devia e das mentiras passou a beber. Uma noite, verificou que se tornara impotente e, no dia seguinte, deu um tapa na filha, que lhe disse que ele cheirava a bebida. Bebeu no Centro até o fim do expediente, mas, em vez de pegar o ônibus para casa, pegou o

No Rio passou três dias sem comer nada, até ser levado pela polícia para um abrigo de indigentes, de onde fugiu. Imagino como deve ter sido duro para ele pedir esmolas. Ele sabia que não era um mendigo, era um bancário, um trabalhador. Poderia ter sido até mesmo um doutor, se não precisasse ajudar a família. Agora era parte da legião, mas tomava banho todos os dias e mantinha seu paletó e gravata, bem como seus

apartamento no subúrbio.

balhar.

documentos em dia.

ônibus para a rodoviária.

Não queria ser confundido com louco algum. Ele estava aleijado por dentro, não sabia que já desistira e vagamente lembrava da família, mas ainda olhava nos olhos das pessoas como se não fosse um mendigo. Como se dissesse: "Apesar do que vocês possam pensar, eu sou um homem e não um cachorro". Só quem já necessitou sabe quão terrível é a dor daquele que necessita; a dor moral que se torna física e faz enlouquecer.

João Souza da Silva, o trabalhador negro e bancário, acabou na Barra da Tijuca no dia da inauguração do Fashion Rio. Ele do lado de fora e do lado de dentro algumas das mulheres mais belas e alguns dos homens mais ricos do mundo. Na Barra da Tijuca - um inferno de samambaias, vidraças fumé, drogas e ar-condicionado - não tem esquina e os sinais de trânsito surgem eventualmente a cada dois mil metros. Isso ocorre porque a Barra não foi feita para pedestres. Foi feita para caçadores ricos. E um desses caçadores do volante matou João Souza da Silva, homem de bem, negro, brasileiro, desempregado, como mi-

João foi morto por um canalha que nem parou para ver em que batera. Morto ficou durante cinco horas sob o sol brabo. Morreu numa terça-feira de tarde, enquanto ladrões riquíssimos insultavam-se mutuamente no Congresso. Enquanto ladrões riquíssimos olhavam excitados os corpos de modelos adolescentes no Fashion Rio. Enquanto Olavo Setúbal, dono do Banco Itaú, dizia a um repórter: "Um dos maiores prazeres do mundo é poder viajar pelo mundo sem obrigação de traba-

As jovens modelos que já haviam desfilado resolveram tomar refrigerantes do lado de fora do shopping. A 50 metros de distância viram uma pequena multidão e dirigiram-se até ela. A mais bonita das modelos aproximou-se do corpo, joga-

Era o nosso João, ainda belo, ainda bem vestido. Olhos fechados, expressão aliviada no rosto. Só era possível saber que estava morto por causa do sangue que saía do seu ouvido. Ela, a modelo, ex-miss, teve uma reação de leitora de contos de fada. Enquanto duas lágrimas desciam pelo rosto de menina a quem haviam obrigado ser mulher antes do tempo, desde que via os programas da Xuxa, exclamou para todos e para ninguém: - Se ele fosse um príncipe já o teriam levado.

O mais irônico nisso tudo é que ele era um príncipe.

arteEDUARDO VERDERAME

lhões de outros brasileiros.

lho”.

do na calçada.

ra uma vez um homem e, portanto, umvitorioso. Na corrida contra bilhões de espermatozóides, ele chegara na frente.

carne falou mais alto.

da e nem teto.

verdadeira, no coração.

e mais mal pagos.

cera preto, pobre e brasileiro.

Ele nascera bonito e normal. Um homenzinho que tinha todo o mundo para desfrutar. Beleza pura, mas nem tanta. Logo descobriu que nas-

O leitor que acha que não temos racismo no Brasil reclamará, mas reclamará errado. Nosso racismo é tão grande que não é privilégio de pretos ou mulatos. Ele atinge os pobres em geral, desempregados ou não. Claro que os pretos são suas maiores vítimas. Quanto mais negros, mais padecem, e a eles sobrarão sempre os últimos lugares, os empregos mais humildes

Para os pretos que não quiserem viver infelizes só há uma saída: precisam enriquecer. Para enriquecerem terão de fazer dez vezes mais esforço do que os brancos. Nessas tentativas, pois assim quer um sistema louco e adorador de ídolos, perde-se o caráter e ganha-se em subserviência; perde-se a naturalidade e ganha-se um sorriso cortado à faca no rosto.

Junto com a naturalidade e a posição ereta ganha-se também uma espinha dorsal de borracha. Mas João, embora soubesse disso, não deixaria que acontecesse com ele. Os pretos, se enriquecerem muito, ficarão brancos como Pelé. O preço que terão de pagar por isso: só terão amigos brancos e, na maioria, mal-intencionados. Como afastaram-se dos amigos, estes também se afastaram deles. Tornaram-se párias com uma identidade no bolso e outra, a

A mulher preta e pobre, caso seja bonita, poderá tentar sua independência como cantora, atriz, modelo, mas há muita competição nesse universo artificial. Por outro lado, o homem preto que vence na vida não sente que é preto. Nos filmes policiais americanos, os racistas até se divertem com isso. Colocam um preto sempre como chefe dos detetives. Irritado, ele vive dando os maiores esporros nos seus detetives brancos. Mas seu papel é pequeno e, na vida real, a coisa é outra. Alguém aí da platéia poderá argumentar que Michael Jackson ficou branco e ainda dá a sorte de ser adorado por centenas de milhões de pobres negros e brancos.

Não creio que meu personagem, João Souza da Silva, almejasse ser amado como Michael Jackson ou como seu ídolo, Lula. João, por sinal gaúcho e nascido em 1958, queria trabalhar e ser feliz. Seu pai era leiteiro e a mãe era de prendas domésticas. Tinha irmãos e irmãs mais moços e mais velhos. Viviam com sacrifício, mas não faltava comida, escola, bebi-

À medida que cresciam, as crianças ajudavam no orçamento. João Souza da Silva engraxava sapatos e vendia jornais enquanto fazia o primário. Gostava muito de ler e queria fazer o vestibular. A realidade, porém, mostrou-lhe o seu lugar e ele fez o curso de contabilidade. Apaixonou-se por uma jovem colega dois anos mais moça. Como viviam numa época em que o sexo entre adolescentes não só era moda como era incentivado pelos meios de comunicação, a

E

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Era vitorioso também porque durante a gestação sua mãe não sofrera nenhuma

queda e tampouco adoecera.

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IV

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Se eu fosse Antonio, quando meu irmão, ainda vestido de papai-noel, começasse a gritar com a mulher chamando-a de piranha e coisa e tal, acusando-a de dar mole pro idiota do Arnaldo, eu teria tentado pôr panos quentes. Daria um sorriso amarelo. “Afinal, é coisa normal”. “Casal é assim mesmo”. “Nada que uma conversa a sós não resolva”. E por aí vai. Ou ia, porque Antonio é assim. Antonio não dá bandeira, não assume vexame.

Se eu fosse Antonio, eu não teria como adivinhar que o irmão, sentindo-se contrariado e já de saco cheio, se transformasse num papai-noel ensandecido e, babando na barba torta, gritasse, bem no meio da sala, que de corno conformado bastava um na família.

Se eu fosse Antonio, eu não suportaria todos os olhares acesos em minha cara, mas ainda assim eu teria disfarçado, alegado insanidade temporária, sei lá, Antonio é inteligente pra cacete, tem desculpa pra tudo.

Mas até Antonio um dia desata as estribeiras.

Agora, eu sendo eu não podia prever é que Antonio não suportasse aquela afirmação e pegasse o irmão pela gola e o enxotasse pra fora de casa, aproveitando pra falar bem na cara de todos que eles eram uma cambada de parasitas e coisa e tal.

Eu sendo eu, ia ficar petrificada quando, uma vez a sós comigo, Antonio me aplicasse uma surra daquelas. Eu sendo eu, jamais poderia esperar que seria ali mesmo, em cima da mesa, que ele me daria o melhor presente de Natal de minha vida.

Se eu fosse Antonio eu teria ligado pessoalmente pra mãe, irmão, sogra, cunhados, lagartixas e papagaios. Teria organizado aquele malfadado amigo secreto, listando os presentes e preestabelecendo os valores, porque Antonio é pura organização.

Antonio usa gravata e passa gel no cabelo.Se eu fosse Antonio eu teria recebido todos

com um sorriso aberto e um abraço sincero (Antonio fica todo emocionado com esse lance de família).

Se eu fosse Antonio eu ia achar natural que, naquele clima de confraternização, alguns se excedessem na bebida. “Imagina, é dia de festa”. “Uma vez na vida todo mundo tem direito”. Afinal, ser Antonio é isso aí. Tolerância pura.

e eu fosse Antonio, eu teria me pedidopra preparar aquela ceia de Natal, por-que sendo Antonio eu ia querer aglo-merar famílias, enfeitar árvore, comer panetone e tocar jinglebells.S Bandeiras

ADRIENNE MYRTES /[email protected]

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O menino parecia encantado diante do mais comentado personagem daquela bucólica rua do bairro de Vila Isabel. Zezinho pousou a garrafa diante dos dois, recolheu o prato e o copo com o café da manhã do velho Osório, e, quando foi servir a cerveja, o comandante do pedaço esbravejou: - Eu sirvo, fidaputa! Obrigado! Serviu o menino primeiro, depois a si mesmo. Serginho esperava o primeiro gole do seu Osório, para quem olhava - era nítido - como a um ídolo, quando o velho, numa única talagada, secou o copo. Imitou-o. Osório serviu-os novamente, passou a mão na cabeça do garoto - era dado a esses arroubos de carinho com os mais novos - e disse: - Desembucha! Na fossa por quê? - Ah... - Conta. Confia em mim. Desembucha! - Ontem fui apresentado a uma menina que mora ali na Dona Maria... Na vila, sabe? Prima mais velha de um colega meu de colégio... Uns vinte e cinco anos, eu acho... Que linda, seu Osório! Que linda! E mora no Méier... sozinha! Parece que estuda na Gama Filho... - Sei... Zezinho... Mais uma! - Linda, seu Osório... Linda... Pensei nela a noite inteira... O velho, não escondendo a excitação, vivendo as emoções do menino que há muito deixara de ser, com o copo embor-cado, disse: - E aí? E aí? - E aí que eu tenho namorada, seu Osório. Gosto dela. Acho que sou apaixo-nado. E sou fiel. Daí meu drama... O velho então transtornou-se. Soltou um arroto de fazer o garoto virar o rosto. Levantou-se. Pediu uma outra garrafa ao Zezinho. Deixou cair um ou dois livros no chão. Tomou a garrafa das mãos do Zezi-nho, puxou a cadeira, repetindo um gesto seu já clássico, e o menino de olhos arre-galadíssimos atento a cada movimento do seu Osório.

Seu Osório,conselheiro

uinta-feira, oito horas da manhã. Seu Osório, naquela disciplina que só os velha-guarda têm, deu o tapa de todos os dias no balcão, e o Zezinho, naquela presteza que só

os garçons de Nova Russas têm, pôs, em segundos, o sagrado café pingado e a canoa encharcada de manteiga diante do velho que, agradecendo como de costume, arrotou altíssimo enquanto mexia o café com leite com metade do pão francês, fazendo o papel de colherzinha. Ficou olhando pra dentro daquele copo americano, o líquido gorduroso, tascou a primeira mordida no pão encharca-do e diante do inevitável e grosso pingo que sujou a camisa, soltou: - Pôta! - e arrotou de novo em seguida. - Que foi, seu Osório? O velho virou-se e viu o menino sentado à mesa. Virou-se em direção ao balcão, de volta, e perguntou ao Zezinho, de boca cheia: - Quem é? - Filho do doutor Tiago, novo vizinho da Graça, sua santa filha... - e esboçou um sorriso de canto de boca. - Tá rindo do quê, fidaputa? - Nada não... Nada não... Tornou a pousar os olhos sobre o menino. - Como é teu nome? - Sérgio. - E como é que tu sabe meu nome, putão? - Quem não conhece o senhor aqui? O velho Osório gostou do que lhe soou como deferência. Fez um sinal pro menino, como que anunciando que ia se sentar à mesa. - Senta aí, seu Osório... O velho sentou-se, pousando o copo e o pratinho com a outra metade da canoa. - Quantos anos você tem, moleque? - Dezesseis. - Tá indo pro colégio, garoto? - disse de boca cheia apontando pros livros diante do menino. - Tô não, seu Osório... Tô na fossa...

Seu Osório soltou uma gargalhada acom-panhada de um tabefe na pilha de livros do garoto. E disse, virando-se pro Zezinho:

- Veja isso, Zezinho! Dezesseis anos e na fossa! Traz uma cerveja pro menino! - Quer, Serginho? - perguntou o Zezinho. - Eu disse traz uma cerveja, pôta!

Disse o velho: - Zezinho... Segura a cadeira aí... Vou subir, vou subir! Vinha chegando o Bule, que gritou: - Mas já? - e gargalhou. Seu Osório já subindo na cadeira: - E tem hora pra isso, ô, balofo?! Vou discursar! Vou discursar! - O que é que houve, seu Osório? - disse o Bule cumprimentando o menino com a cabeça. - É o seguinte, meus amigos... Silêncio, porra! Silêncio! - e esse pedido de silêncio era meramente feito por hábito, já que Serginho, Zezinho e Bule estavam rigorosamente mudos diante daquela cena inédita àquela altura da manhã. Ajeitou os óculos e cravou o indicador em direção ao Serginho, de olhos brilhantes e vidrados. - Deveria ser vedado a um menino de sua idade apaixonar-se! Deveria ser proibido o direito à fidelidade!!!!! Mais grave! Mais grave! Deveria ser obrigação o descompromisso! Deveria ser imperativo o viver à disposição das moças em flor, porra! Uma lágrima corria dos olhos do velho Osório. - Tá chorando, meu velho? - provocou Bule, cutucando Zezinho. - Não, ô, babaca! Tô mijando pelo olho! Serginho riu. Prosseguiu: - Isso, menino! Sorria! Sorria e coma as moças que te chegam! Sorria e desfaça esse namorico! Tenha vinte e cinco, trinta anos, e aí sim tu amarra teu burro nas coxas de uma mulher! Agora, não! Agora, não! Ou te arre-penderás amargamente! Ouviu, putão? Ouviu? Serginho fez que sim. - Dá a mão aqui, porra! Ajuda! - disse em direção ao Zezinho. Desceu, abraçou-se ao menino - que também chorava - e pediu mais uma garrafa. - Ihhhhh... O menino também tá choran-do, ó só! - era o Bule de novo. - Tô mijando pelo olho também, seu Bule! Seu Osório, tal como fizera com o Vidal há alguns anos, adotara o garoto. Selaram, ali, uma relação de amizade de infância.

Q

EDUARDO GOLDENBERG [email protected]

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“Sei que amanhã quando eu morrer Os meus amigos vão dizer Que eu tinha um bom coração Alguns até irão chorar ...”

Pára, enjoado e cansado. Toma ar, toma mais um gole e canta mais uns versos:

“Por isso é que eu penso assim: Se alguém quiser fazer por mim

Que faça agora...”

- Flores em Vida. Essa é uma obra-prima. - Bobagem. Obra-prima é aquela morena ali. Pouco depois desce a 21 de Abril, de braços dados com a morena obra-prima, na direção da Central do Brasil. Mas o caminho é longo, e pode ser feito via Praça Tiradentes. Curtos são os degraus da vida. Outros bares, novos amigos, tantas lembranças. Os trocados mastigados no bolso da calça, junto com o maço de cigarros, estão guardados para o ônibus que vai finalizar o trajeto até em casa, quando as pernas pedirem clemência. É quase meio-dia e alguém sugere uma rabada, com polenta e agrião, numa pensão da Rua Barão de São Félix. Dessas que permitem violão e cantoria nas mesas. A obra-prima das madrugadas na Rua Riachuelo carrega o instrumento, com a promessa de um amor vespertino no hotelzinho da Rua do Livramento. Ela está sorridente. Ele continua hospedando a tristeza que parece não ter cura. Recorre aos versos do parceiro Guilherme, para casar com sua melodia cheia de flechas sorrateiras:

Tire o seu sorriso do caminho Que eu quero passar com a minha dor Hoje pra você eu sou espinho Espinho não machuca a flor Eu só errei quando juntei minha alma à sua...”

Amigo tem mania de pedir música, por mais que o artista esteja indisposto. Começa o falatório: “Canta aquela que diz vou abrir a porta para você só porque é dia das mães”. “Não, não, aquela que fala fui bom pra ela, dei meu nome a ela sem saber que estava sendo traído”. A obra-prima tem um bom-humor: - Vocês só gostam de música de corno? O índio velho tem a visão nublada e a memória bastante combalida. Mas no meio da noite ainda lembrava que o resto da tarde foi nos braços dela. Só não lembrava quando nem como chegou em casa, o que não tinha muita importância. A mulher de fé e paciência, companheira das horas difíceis, fez beicinho por conta do longo sumiço. Mas mesmo assim, ao sair para trabalhar, deixou café coado sobre o fogão e um prato de carne assada com batatas dentro do forno. Ao retornar, no fim do dia, o encontrou ainda na cama, estirado, ao lado do violão. A flor atirada sobre travesseiro, também sem vida. Botou no velho toca disco um 78 rotações, meio arranhado, com um samba-canção dos mais antigos:

“Quando eu morrer, deixarei minha fama Deixarei no mundo quem me ama As lágrimas que rolam em meu rosto Não sabem dizer qual é o meu desgosto...”

Que diabo de desgosto era esse? A companheira nunca soube. Pena que ele não estivesse mais ali, talvez pudesse contar para ela.

Dedicada à memória de Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho (1910-1986). As canções citadas são todas de sua autoria.

Publicado na antologia “Contos para ler ouvindo música”, organizada por Miguel Sanches Neto (Editora Record, 2005).

“Quando eu piso em folhas secas Caídas de uma mangueira

Penso na minha escola E nos poetas da minha Estação PrimeiraNem sei quantas vezes subi o morro cantando...”

- Fui o hóspede mais assíduo do xadrez do quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas era bom pegar cana, você sabia? Se não fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranqüilidade para compor. - Começou a vida? - Maneira de dizer. Na verdade, antes de encarar o batalhão eu já havia enfrentado outros batentes para ajudar no orçamento da família. Trabalhei em fábrica de tecidos, em Deodoro, na função de ajudante de tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista no centro da cidade. Meu pai era tocador de tuba da Banda da PM. Que coisa, hein?! Tocador de tuba. - Ainda existe tocador de tuba? - Não existe mais tuba. Nem tocador. A prostituta de decote farto esparrama os peitos em seu ombro e beija sua testa, os lábios cheios de batom aplicado de qualquer jeito: - Paga um conhaque, índio? Nem espera pela resposta, sabe qual é. Pede o conhaque no balcão, entorna de uma vez e volta para a calçada. - Conhece a moça? - A moça me conhece.

Nem pegou o violão, apenas sussurrou, marcando com as pontas dos dedos na mesa:

“Não faça vontade a essa mulher Não deixe ela fazer o que quer Deve-se ter amizade Mas não se deve dar liberdade...”

- Que história é essa de índio? - Minha mãe era paraguaia, índia guarani. Olha os meus traços. Ainda consegue enxergar? Índia guerreira, que areou muita panela nas cozinhas dos outros, como empregada doméstica em casas de família. Acho que está na hora de ir dormir. - Vai, poeta. - Sou cantador. Poeta é o Guilherme. - Então canta uma das suas com ele. Pode ser “Flores em Vida”? - Só se você prometer que não pede mais nenhuma. - Prometo. Mas dessa vez, com o violão. Além dos bares, sapatarias, papelarias e lanchonetes começavam a abrir as portas. A mesa já recebera outros notívagos e alguns madrugadores (diúvagos?) para ouvir o índio:

- Melancia a essa hora, meu velho? - Combate a ressaca, Genaro. - Sai dessa vida. - Já tentei. Essa vida é que não quer sair de mim. Os cabelos branquinhos, poeira da idade, estão meio desarrumados. Passa a mão e observa que também estão bastante engordurados, purpurinas da madrugada. Lembra de uma criatura a quem amou, que o chamava de cabelos de prata. Fartos e ondulados, reluziam diante do espelho, na luz esfumaçada do cabaré de bandidos do Largo do Estácio. Mas nem tudo que reluz é ouro e a criatura o trocou um dia por um moço requintado, de bigodinho desenhado e cabelos pretos, feito as asas da graúna, tratados na brilhantina Glostora. - Me senti um palhaço, Genaro. Se já não bebesse bastante, teria começado a beber naquele momento. Doses de angústia depois, fez um samba que dizia assim:

“ Se afastar do palco por alguém

Volta, que a platéia te reclama Sei que choras, palhaço Or alguém que não te ama...”

- Fiz? Fiz. E esse eu sei que não vendi a filho da puta nenhum. A vendedora de flores também é amiga. Ela escolhe uma rosa, das mais rosas e mais bonitas, corta o talo e enfia no bolso do compositor. Troca de sorrisos e carinhos, vida que segue, apruma novamente o passo e pega o caminho que não é de casa. Ia esquecendo o violão dormindo no poste, mas a florista o chama. Guarda a rosa na barriga do instrumento e toma o rumo da Lapa. Pouco depois está de prosa com o jovem jornalista metido a escritor que bebericava a última no pé sujo da Riachuelo, no fim de uma noitada de fechamento do jornal e das boates da Mem de Sá. - Eu era muito jovem ainda, assim que nem você. Não tinha respeito pela vida. Nem tinha medo da morte. Foi antes de virar o disco, de virar a mesa, de virar polícia. Fui o pior soldado da história da polícia Militar do Rio de Janeiro. Comecei a vida na farda no Batalhão de Cavalaria da PM, onde fiquei sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na prisão. Abandonava a diligência e o animal, picava a mula para o Morro de Mangueira. Jogar conversa fora e cerveja para dentro com Cartola, Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Zé Com Fome, Padeirinho. Para eles, eu fiz um samba assim:

Sei que é doloroso um palhaço

O homem de cabeça branca e violão no ombro escorregou pelas cordilheiras de paralelepípedos da Rua Hermenegildo de Barros e se deixou levar ladeira abaixo pela Cândido Mendes, até desembocar na Augusto Severo. Encostou o violão no poste e pegou uma talhada de melancia na barraca de Genaro, amigo desde a infância na Praça da Bandeira.

noite ainda discutia se ia ou não embora, mas os nego-ciantes de frutas, legumes, peixes, frangos e bugigangas da feira da Glória já armavam as barracas, entre risadas e

assovios, cantos de galo, restinho de ne-blina virando poeira em direção ao aterro.

“Sei que estou no último degrau da vida, meu amor” Nelson Cavaquinho

LUÍS PIMENTEL /[email protected]

A

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V VIV

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Flores em vida

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***

Page 5: Jornal Vaia edição 21

Você se lembra do dia em que nos conhecemos? Você já mulher experiente e eu um menino. Depois de apresentados, ficamos um longo instante olhando um para o outro, não foi uma contemplação premeditada, eu simplesmente senti medo de dizer uma palavra e estragar tudo.

Você então segurou minhas mãos, convidando para um passeio, e eu, cada vez mais tímido, saí contente por estar com uma mulher de verdade e não com uma menina. Mudo, fiquei ouvindo nossos passos na calçada.

Mais um toque, é o terceiro. Não sei se você vai atender, você pode ter abaixado o volume do aparelho, deixando o fax programado para recebimento automático. Logo você que sempre odiou escrever, agora está limitada a esse meio de comunicação. Seria menos doloroso se eu mandasse um fax, mas eu jamais pararia de escrever. Engraçado, estou falando com você antes mesmo de você atender.

Não vou me esquecer nunca dos últimos dias que passamos juntos. Eu sentia sua apreensão e você fazendo tudo em sigilo, sozinha, percorrendo clínicas, laboratórios, consultórios. Foram meses podres. Eu acordava com ranger de dentes - você chorava no sonho. Todas as vezes que eu tentava esclarecer as coisas, você fugia, mudando o rumo da conversa. Nunca viveu tão alegre como naquele período - uma alegria que queria dizer: é o fim, meu bem, aproveite os últimos capítulos.

Quero te poupar este desgosto - me escreveu num bilhete, única notícia em todos estes meses de solidão e desespero, enquanto minhas cartas, longas e confusas, atestavam a dor que era, para mim, aquela separação.

Não temos o direito de molestar quem nos ama, mesmo que seja para provar nosso amor. Devo desligar, digo a mim mesmo. É uma crueldade. Se ela não quis conversar quando estava em melhores condições, com que direito invado agora a sua vida, derrubo sua porta para dizer o que ela sabe, que a amo, que não a esqueço? O segundo toque é ainda mais angustiante e só a iminência de falar com ela, não, de falar para ela - veja como o destino subitamente mexe até na linguagem: não posso mais falar com ela, tenho que me contentar com um monólogo solitário - só essa iminência me deixa em sobressalto. Pode ser agora.

Mas não é. Débora sempre foi vaidosa, não ia permitir que eu guardasse dela uma imagem decadente. Mas esta solidão é mais fácil para ela do que para mim, porque ela a impõe em nome de meu bem estar. Droga!, não quero ser poupado e não admito que nossa história termine sem um último confronto. Não há como suavizar esse desaparecimento, querida. Tudo dói, dói muito - vou ensaiando o que falar quando ela atender. Não, não ficou bom assim, talvez eu tenha que recordar os tempos lindos.

Mas agora eu tinha o telefone da casa onde ela estava em São Paulo e não podia esperar mais. Tinha adiado a chamada o dia inteiro, com medo de constrangê-la, mas o desesespero acabou vencendo.

O telefone chama a primeira vez. O tempo é pastoso e escorre lento pelos minúsculos caminhos de um fio interminável. O toque do aparelho não acontece de uma vez, como sempre me pareceu. Ele tem um passo lerdo e se assemelha à travessia de um longo corredor. Não é um relâmpago, é uma seqüência de sons, doloridos e demorados, que me assusta, obrigando o coração a fazer seu trabalho em outro ritmo.

irei o telefone do gancho e dis-quei aquele número. Eu sabia que era a última chance. Há um ano evitava qualquer contato, apesar de minha insistência. Quando começou a quarta chamada, ela

atendeu. Sei que era ela porque não disse nada. Depois de alguns segundos de vacilação, pronunciei seu nome. E ouvi o que sobrou da voz dela, um fraco resmungo.

Não sei quantos minutos ficamos assim, vivendo o vazio à nossa volta. Sabia que iria desligar, devia estar desesperada por não poder falar. Antes que desligasse, repeti seu nome, tudo que eu sentia por ela já havia sido dito. Não precisava acrescentar nada. E tive certeza - como estamos sempre querendo confirmação das coisas, meu Deus! -, ela realmente me amava. Apesar de doloroso, seu silêncio me apaziguou. Aquela era nossa despedida. Depois de desligado, o telefone passou a emitir aquele som repetitivo. Era um grito de socorro. Débora estava precisando de mim e nós dois sabíamos que nada mais poderia ser feito.

Recoloquei o telefone no gancho e fiquei sentado no sofá. A casa quieta. Era mais do que quietude. Era vácuo. Súbito as paredes recuaram e os móveis se encolheram.

Então me levantei. Tenho que lutar, afirmei com toda a convicção. E liguei a tevê.

Fiquei apenas ouvindo aquele silêncio que era uma forma desesperada de comunicação. Não era um silêncio com etapas, cheio de ruídos, e sim um silêncio branco. Não disse nada do que planejara.

É preciso aceitar as coisas - me lembro de um comentário dela, que só depois assumiu seu verdadeiro significado. Aceitar a mudez, aceitar a distância, aceitar o desaparecimento. Débora, que já não podia mais falar, escutava meu silêncio, eu escutava o dela. Talvez fosse isso a eternidade.

“Marcas”, tela de HÉLVIO LIMA, Uberlândia-MG, com versos do poema “E-U”, de Aricy Curvello, Serra-ES

MIGUEL SANCHES [email protected]

Um búfalo é duro e se move. Um búfalo bufa, arfa para injetar gás em seu coração e espera a hora certa. Suas unhas são de assassino e são coloridas por nicotina. Não são unhas afiadas, são carcomidas pelos pequenos insetos do chão de terra e lama, são irregulares e causam irritação nos dedos do animal. São cascas. Um búfalo, apenas um búfalo, é capaz de estagnar a cena que acontece. Tudo vira pause e só há ele e a poeira pairando no ar e um zumbido de vento. O búfalo bufa dentro da esfera oca do mundo. De sua boca com dentes de aço inox, com lentidão pinga a gosma de sua saliva, gosma que cola. Gosma grudenta e lenta. Do lado de dentro do peito do búfalo existem um touro, um mamute e um javali, na idade do começo da vida, que dormem eternamente e que nunca serão despertados. Os chifres do animal apontam e ameaçam cento e oitenta graus do terreno.

m búfalo é um músculo só, con-traído. É um pedaço de carne maciça recheada de minúsculos ossos triturados, espalhados pela massa.

O búfalo não mostra, mas tem medo de estar sendo observado. O búfalo está tímido e seus olhos sangram, sempre. Ele enxerga assim, como se milhares de gotículas vermelhas flutuassem no ar, como se a poeira que paira fosse de sangue. Há, sim, uma persiana do líquido cobrindo sua visão perfeita. Há, sim, uma verve carinhosa circulando nas correntes nervosas de neurônios carnudos e voltagem alta. Há também um perigo, um veneno liberado no estalo elétrico, no choque do cérebro efervescente, que transforma a enorme picanha num exterminador indesejado, num assassino involuntário, num cão gigante que estraçalha a presa. No impulso feroz do carnívoro mascarado e calejado tudo fica pela metade, no máximo. É triste quando acontece assim, e lindo quando não. O búfalo, em paz, é suculento e dócil. É nobre, o perigo é nobre. Dizem que encostar no búfalo dá sorte. O búfalo também é uma palavra gorda e o sonho de um açougueiro. O búfalo é o único corpo que se forma no abraço firme de duas pessoas que se completam.

Ele chora pelos poros as aflições da alma dolorida. O primeiro búfalo vem da Transilvânia e não é vampiro nem sanguessuga. O primeiro búfalo é todos os outros búfalos e ele vem correndo explodindo uma supernova pela frente e soprando um espirro temporal de areia, bactéria e pedaços pela estrada amassada que fica pra trás, perdida e deformada. Tenha em mente a força e a representação de todos os búfalos em um. Quando ele freia todos freiam e dá-se início a um terremoto. A força da freada do mutirão comprimido num único músculo búfalo move placas tectônicas. Descola uma da outra e deixa continentes à deriva, pedaços de países navegantes. Quando o animal não cavalga sua marcha pesada e dançante, ele vai nadando, respirando debaixo da água. Faz um movimento lembrando um golfinho. Para quem vê, é um golfinho gordo, de pêlos marrons e rabo curto. O búfalo é a gengiva sustentando os dentes da boca que morde para marcar a pele. É qualquer movimento trincado. É o espaço entre a parede e a mão no momento em que o soco é dado.

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Silêncio brancoT

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BOTIKAI / [email protected]

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oceano o empurrou mais cedo para a máquina. Num fim de tarde nublado, dirigiu-se ao prédio decadente e sondou a existência do obscuro Dr. K., o inventor e primeiro explorador do inconcebível artefato.

A partir de então só pensou na máquina e nas vantagens asseguradas: novo rosto, novo corpo, outra personalidade. E com isso outra vida. Todavia, era preciso não se iludir: a transformação tornava as pessoas apenas outras pessoas, mas em tudo iguais a quaisquer outras. Os hábitos, embora novos, continuavam os mesmos, coerentes com a espécie. A transformação obedecia, por um lado, ao gosto do usuário e, por outro, a uma fórmula já consagrada pela própria vida. Foram estes, em suma, os prós e os contras expostos pelo Dr. K. A última condição era: uma vez transformada, a pessoa não podia voltar atrás e, por conseguinte, só poderia se submeter a uma nova transformação oito anos depois. Tal exigência não era de natureza contratual, mas fisiológica, uma limitação do corpo humano...

Nos dias que se seguiram, organizou-se como se fosse partir em viagem de férias. Despedia-se, era evidente. A esposa se surpreendeu. Ele consertou todos os eletrodomésticos parados havia meses e, sem nunca ter manuseado antes um pincel, retocou as paredes manchadas pelo desespero de ambos. Também poliu os móveis e saiu em busca de novos suportes para as cortinas dos banheiros. Os reparos em sua vida íntima não foram poucos: passou a acordar mais cedo e convidar a esposa para caminhar, e a ir com ela às compras, quase interessado ou pelo menos em silêncio, a observar sua destreza em escolher e avaliar os produtos, respeitando sua natureza retraída e cautelosa. Fatos assim, se recorrentes, dispensariam a máquina...

No trabalho, livrou-se diligentemente de todas as pendências. Desengavetou antigos projetos e, atualizando-os, deu-lhes nova forma, redação mais precisa, livre de ambigüidades. Em duas semanas, o chefe o congratulou pelo entusiasmo dos últimos dias. Naquela tarde, saíram e se conheceram melhor.

na cama e pela manhã saiu sem aviso. Sua imaginação fez o resto. Essa gota de

esde o início, soube que usaria a máquina. De nada adiantou protelar sua decisão. Isso ape-nas permitiu a colaboração in-direta da esposa, que o rejeitou

O segundo encontro com o Dr. K. aconteceu, apesar da felicidade que agora o contemplava. Com a esposa, era como se tivessem voltado aos primeiros dias. Transformada, ela por muito pouco não retomara aquela fisionomia inicial, que lhe tirava o sono. Mesmo assim, não mudou de idéia. Seguia por trilhos sem volta. O Dr. K. o obrigou a preencher uma enorme papelada e em seguida, tendo chamado sua jovem assistente, o introduziu na sala onde estava a máquina, uma alta cápsula metálica, de superfície uniformemente lisa, com duas imperceptíveis portas, uma de cada lado. Afora isso, nenhum botão, qualquer mecanismo. Aparentemente, a operação se concretizava mediante controle remoto. De fato, nas mãos tanto da assistente quanto do doutor havia um bastão da mesma cor azul-metálica da cápsula e repleto de botões. A um gesto do doutor, uma das portas se abriu, para cima. A assistente o pegou pelo braço e conduziu até o interior da cápsula. No exíguo compartimento não havia nada, exceto o ar sufocante e asséptico. Enquanto usuário, ele teria que ficar de pé ali, entre quatro paredes, e esperar... Então adormeceria e, como num sonho, antes de cair, despertaria do outro lado, outro. O processo não consumia mais que dois minutos, garantiu a moça, com uma voz de veludo e um sorriso provocante. Quando fez menção de deixá-lo, ele protestou: “Não”.

“Não?” , ela disse, surpresa.Não estava preparado.“Ninguém jamais estará”, filosofou o

Dr. K.Abandonou o estreito compartimen-

to. Durante o tempo que esteve ali suas mãos passearam pela lisa superfície metálica. Assim vira, certa vez, num filme antigo, um homem tocar os livros na estante. Espécie de despedida ou de reconhecimento de um universo ou instante já perdidos ou por esquecer, brevemente... O súbito roçar da morte, talvez, ou o despertar para um incerto mundo de sensações. A verdade era que ali, naquela espécie de ataúde, ele iria desaparecer em breve, e para sempre. Seu último ato nesta vida.

“Eu sei”, disse, com um considerável atraso e no tom vazio e hesitante de alguém que a vida inteira foi um tímido, um inadaptado. “Amanhã, sem falta.”

Naquela tarde foi visitar a mãe no asilo. E talvez se despedir. Não foi difícil: a velha, diante da tevê, se assemelhava a um peixe impassível dentro do aquário. Emanava indiferença e fleuma. Não era o filho que estava ali, mas um homem qualquer, estranho. O lábio inferior, caído, acentuava-lhe a expressão de desdém e alheamento. Comiserado, ele puxou uma cadeira e se interpôs entre a mãe e a tevê. Para seu assombro, a mulher continuou a olhá-lo como se ele fosse uma extensão do aparelho. E mesmo quando ele o desligou ela não esboçou nenhuma reação. A definitiva ausência de vida útil a suprimira de si mesma. Restava-lhe agora fundir-se à noite... Esta certeza o esmagou.

A esposa o procurou na cama, mas, pela primeira vez desde que se conheciam, ele a recusou, com elegância e uma contenção sexual incomum nos homens. Sem rancor, ela se virou e adormeceu, em segundos, dissolvida na exaustão. De seu lado, ele já ia sonhando, sonhando e sendo absorvido. O Dr. K. e sua assistente os receberam sem ânimo, os gestos bruscos e automáticos. Quando afinal a moça lhe perguntou, friamente, quem desejava ser, ele ficou prostrado, sem palavras. Não concebia a vida como uma escolha senão obscura, indefinida, do acaso...

“Vem”, a moça disse, puxando-o delicadamente. “Não importa. É sempre assim, com todos...”

MAYRANT GALLO /[email protected]

Quase se tornaram amigos. E marcaram uma pescaria, à qual levariam, ele a esposa, e o chefe a jovem namorada. Estavam bêbados e, por isso mesmo, mais íntimos, sem reservas. Chegou tarde em casa, mas ainda assim a esposa o esperava, afável e excitada. Prolongaram-se na cama, rindo e conversando. Depois lancharam e voltaram a se amar. O sol subia no horizonte quando afinal adormeceram, esquecidos dos sombrios temores dos últimos meses.

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Amar é sofrer, eu vou te dizer. "Não se esqueça de trazer uma lagosta pra mim", disse ela bem assim na beira do cais antes de eu partir para um mergulho de onde não sabia se voltaria. Agora aqui, a 45 metros de profundidade, e descendo cada vez mais, fico me perguntando por que não a mandei à merda, sem endereço. Desde criança que tenho dois sonhos: resgatar do fundo do mar a cruz do bispo Sardinha e me apaixonar por uma samurai que pisasse minha garganta até que me faltasse o oxigênio pra eu gozar. Se isso é pecado, me puna. A cruz do bispo eu ainda não achei, mas continuo mergulhando, e fundo, muito fundo. Tão fundo que acabei descobrindo Isabel dentro de uma ostra, escondidinha. Hoje vivemos juntas, só eu pago o aluguel enquanto ela arde na Fogueira Santa de Israel. Amar é sofrer, não preciso dizer mais do que as canções banais: é só uma gota de sangue verbal, apaixonei-me por uma obreira pentecostal.

Quando ela entrou pela porta da cozinha, vi em seus olhos que havia acabado. Perdi o apoio dos pés. Conversas não adiantariam mais. Já havíamos moído toda a carne. Voltei-me para meus amigos. Eram nove pessoas transpirando álcool numa cozinha abafada e alguma coisa dentro de mim se aconchegava. Outra incomodava. Na sala alguém ouvia Cranberries sem parar. Ela teria rido de mim se já não me ignorasse. Todos teriam rido de mim se já não estivessem rindo de outra coisa. Sem tirar o cigarro da boca, ela abriu a geladeira num impulso motor. Os músculos de minhas costas trincaram. A geladeira abraçou-a. Eu não tive a mesma sede.

Jurandy me deixou aqui pensando. Foi buscar um côco. A areia pinica minha bunda. Jurandy gosta de praia deserta. Pra mim tanto faz. Ele diz que gente demais mancha o mapa. Jurandy fala bonito. No princípio eu assustava. Agora acostumei. Deixo ele falando sozinho. Como um rádio. Enquanto ele fala eu penso. Falo comigo coisas que Jurandy não ouve. Porque se ouvisse não ia me beijar com tanto gosto. O mar me deixa triste. Triste mesmo. E tristeza é coisa de vício. Não dá pra controlar. Se eu entrasse na água a gora, Jurandy nem ia ver. O que a gente não vê não dói. Não tem do que lembrar. Lembrar que eu fui bem pra longe, mas tão longe que ele nunca conseguiu me alcançar.

Três contos de Maira Parula

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A máquina do Dr. K

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MAIRA PARULA /[email protected]

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Chamou o motorista, juntou os víveres, e saiu no automóvel cinza-metálico que acabara de chegar do porto de Rio Grande, presente de aniversário que lhe dera Romano, talvez para compensar sua inextinguível ausência, fosse pelos afazeres nas empresas durante a semana, pelas sádicas caçadas nos dias de descanso ou pelas malditas e constantes viagens ao exterior.

- Ande por aí, quero ver a paisagem disse ao motorista, envergonhada de lhe confessar seu verdadeiro intento. Todavia, depois de algumas voltas, ordenou-lhe passar pela avenida Ipiranga, na pista mais próxima do bueiro central, onde mal se desprendia das margens o arroio Dilúvio, tal a quantidade de dejetos e esgotos que suportava. Não custou muito, percebeu uma movimentação embaixo de uma das pontes. Mandou Carlos estacionar a duas quadras, dentro do shopping, enquanto descia sem lhe revelar nada. Voltou a pé em direção à ponte, a última antes do gelatinoso arroio lançar-se no estuário do Guaíba, balouçando orgulhosa a sua caritativa sacola.

Do lado do viaduto, de onde subia a morrinha de uma fumaça esbranquiçada, gritou “oi moço”, mas não foi atendida. Desconfiou não houvesse ninguém em casa, mesmo assim, decidida, avançou uns passos pelo declive e repetiu o “oi moço”, apesar de ter diante de si uma mulher e dois homens. Sem saber o que dizer, arrependeu-se antes mesmo de qualquer contato, tão horríveis lhe pareceram os poucos dentes do homem negro, as nódoas de sujeira presas ao cabelo do homem ruivo, e as pernas abertas da mulher, sentada sobre uma pedra, deixando entrever o pano imundo que lhe servia de peça íntima. Para sair do constrangimento a que se impusera, ergueu a sacola luxemburguense e antecipou:

- Trouxe uns petiscos. - Comida?! arregalou os olhos o negro.- É sim, e da melhor. Hoje é Ação de

Graças, sabe, a festa norte-americana, e eu...Olhou para dentro da sacola e retirou

lépida o pote de escargots, alcançando-o. A mulher o tomou com repentino alvoroço, abriu-o, e pausadamente exclamou, entre decepcionada e compreensiva:

- Moça, a gente é pobre, mas nunca comeu caramujo.

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eteka Alves do Nascimento, sensibilizada pelas notícias em torno do Dia de Ação de Graças, quis comemorar a data de uma maneira condigna, algo mais do que fantasiar os filhos de vampiro para a escola, como fizera no recente Halloween. A humanidade sofredora estava necessitada da sua contribuição, podia perceber isso quando saía às compras e se deparava com indigentes enfeando as ruas. Convocaria o motorista, reuniria forças e iria entregar, pessoalmente, uma refeição para os primeiros maltrapilhos que encontrasse.

Dispensou a criadagem, fizessem o que lhes desse na veneta, desde que estivessem a postos para a preparação do jantar, mas reteve Carlos, precisaria do carro. Sentia-se, assim, em melhores condições para vasculhar a cozinha, a despensa e a adega. Primeiro, abriu o freezer das carnes vermelhas, mas ter que assar alguma já era exigir demais de sua benevolência. No de frutos do mar, achou uma linda lagosta, isto sim, era o tipo de refeição que um faminto jamais esqueceria; colocou-a sobre o balcão. No de aves, localizou o peru reservado para a celebração de logo mais, os patos para alguma comida alemã, uma lebre que ali não deveria estar, as perdizes e marrecas das caçadas de Romano, e uma profusão de frangos; tudo, evidentemente, cru, à exceção de uma galinha caipira que fora congelada assada, e, intacta, esperava por dentes ávidos; separou-a. Da geladeira, colheu os escargots restantes do jantar francês de segunda-feira.

A lagosta, claro, estava crua, mas alguma coisa essa gente também poderia fazer por si mesma; afinal, não os tinha visto ao redor do fogo, embaixo do viaduto, assando qualquer nesga num espeto recurvado? Na adega do porão, examinou vinhos franceses, italianos, portugueses, chilenos, mas se conteve, num assomo de lucidez, antes de visitar latitudes menos prováve is . Nada d isso , não i r ia instrumentalizar a bebedeira de ninguém. Subiu para a área de serviço, e de um móvel embutido retirou um conjunto de sacolas, escolhendo uma que lhe trazia boas lembranças de Luxemburgo; eles mereciam, o dia era mesmo especial.

Lembrou-se, porém, que só comer não bastaria, fazia-se necessário algo que tornasse mais bonitas aquelas vidas isentas de sentido. Com um excesso de cuidados, como se pudesse ser flagrada a qualquer instante por alguém que, fora do seu conhecimento, estivesse habitando a casa, percorreu salas e ambientes até retirar da mesa do espelho do hall um ikebana comprado no dia anterior. Não importava que já se extinguira sua anunciada duração ritual de vinte e quatro horas; os mendigos não se preocupariam, à japonesa, com a eterna mudança propiciada pela passagem do tempo; se nem ela ligava para esses orientalismos, por que eles haveriam de se preocupar; continuava bonito, viçoso e colorido, apesar de uma pequena necrose tê-lo maculado durante a noite. O arranjo fazia-se de uma flor de única pétala, enorme, amarela, cravada pela haste na argila e disposta na horizontal; de um verde e frágil junquilho, que, desde a haste da flor amarela, apontava para o alto; e de um galho finíssimo, negro, resistente, encimado por um botão diminuto, débil, e também amarelo, que completava a filosófica tríade pendendo para dentro do conjunto.

eteka Alves do Nascimento, sensi-bilizada pelas notícias em torno do Dia de Ação de Graças, quis comemorar a data de uma ma-neira condigna, algo mais do que

FABR A O RO HAI N C

Um dos homens a pegou, aproximou do nariz o fedentino animal, e, por uma educação atávica e esquecida, colocou-a sobre o banco de madeira. Teteka aligeirou-se e passou a mão na galinha, isso eles deveriam conhecer. A mulher da ponte apanhou com as duas mãos aquele coco congelado, sentiu o frio espinhar-lhe os dedos, e o deixou cair, o que fez que rolasse para o Dilúvio:

- Também não prestava. Olha só, tá boiando!Esperançosa de que depois a fome os

fizesse comer os escargots e preparar a lagosta, anunciou o ikebana com um sorriso nos lábios, uma flor nem o mais bruto dos seres recusaria.

- Tá bom, moça falou o negro. Mas na próxima a senhora vem com um bife no feijão-com-arroz, que a gente agradece.

Teteka retirou-se aborrecida. “Mal-educados e ignorantes.” Dirigindo-se ao shopping, contudo, já pensava de outra maneira. Contaria para a Gina, e para todos na festa da consulesa, sua grande ação de graças, e de como sentira preencher-se um vazio no seu peito enquanto assistia àquelas pessoas devorarem a carne dos caracóis iniciais e chorarem de agradecimento pelo que lhes proporcionara. Não, nada de baixo-astral, de ruim chegava a vida.

Embaixo da ponte, o homem ruivo chamou o seu cão e lhe atirou os escargots. O animal os farejou um a um, deu de lombo e foi embora.

- Nem o Importante quis essa joça - disse. - Se o caranguejo, não fedesse tanto,

eu até vendia pros hippie fazer artesanato concluiu o negro, antes do arremesso para o meio do rio.

Sentaram-se em torno das pedras fumacentas, inconsoláveis. Gigante e avermelhado, o sol se punha atrás das ilhas do Guaíba, deixando um rastro dourado e ondulante sobre as águas. De mão em mão, passaram o arranjo floral, e, por teimosia ou desagravo, o comeram.

- Pode deixar aí - apressou-se o ruivo, pensando no seu cachorro. Que mais que a senhora trouxe?

Temerosa de ofendê-los, retirou devagar a enorme lagosta

- Ainda precisa ser preparada sorriu amarelo.

disse.

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- Talvez vocês não estejam habituados, é coisa fina, importada.

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Ela consumiu batatas fritas com queijo derretido e orégano, acompanhado de refri-gerante. Um menino maltrapilho quis nos vender balas. Comprei um saco a R$ 1,00.

Em um bar, na Cidade Baixa, sentamos a uma mesa posta na rua. Pedi uma garrafa de vinho tipo Assemblage, com mistura de uvas das variedades cabernet sauvignon e merlot, da Serra Gaúcha. A mistura do Assemblage podia ser diferente, mas preferi essa, mais austera e nada azeda. Decisão tomada devido a degustação - classe que desconheço -, não ao simples consumo de etílicos classe também obscura, para mim, que deveria ler mais as normas estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), que delimita as regras do SCDU.

É assim que me sinto, ao acordar: vago. Sem pensamentos firmes. Ligo o rádio. Classe 32: política. Atualizo-me, enquanto uma dor de cabeça persiste. A classe 6 - que inclui a medicina - me orienta a tomar água, para eliminar a ressaca de vinho. Ontem eu e ela fomos ao cinema. Classe 7. Assistimos a um clássico, na Casa de Cultura: Assim caminha a humanidade. Quatro horas. Podíamos tê-lo visto em casa, mas a 3, que inclui folclore, diz que assistir a um filme desse porte no cinema é melhor. Meu traseiro e coluna discordam disso. Volto a classe 6. Verdade: a culpa por esse programa não foi a 3, mas a 32. Eu e ela não temos afinidades há tempos. Quatro horas sem se falar, com possibilidade de termos assunto após o filme, era o que eu desejava. Saímos da sala de projeção comentando sobre a 1, filosofia, graças a essa arte, o cinema, a 7. Ecoou aquele James Dean, em papel de idoso, lutando para conquistar poder e petróleo, tendo altos e baixos. Parecia a vida da sua família e da minha. Ao invés do petró leo , buscávamos nos manter , precariamente, na classe média. Essa análise é da 33: economia e ciências econômicas. Ainda, como casal, estávamos na 365: anseio pela casa própria e sua satisfação. Segurança da habitação.

lasse 368.06: vago, segundo o Sis-tema de Classificação Decimal Uni-versal (SCDU) de 1997, que utilizodiariamente, como bibliotecário.

Porém esse sentimento já esmorecia, em nós. Eu notava. Estávamos prestes a completar quatro anos juntos e agora nos mantínhamos graças às declarações irreais de amor. Todas 8.80: Questões gerais relativas à lingüística e à literatura. Filologia.

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Ela não riu e, sim, disse que aquela era nossa última noite. Já estava com as chaves de um apartamento emprestado por uma amiga, a Anita. “Já tive fantasias eróticas com essa sua amiga”, confessei. Chamou-me de depravado e saiu rua afora, sem se despedir. É um problema de classe 37: educação. Olhei as pessoas a minha volta: a maioria fingia não prestar atenção no ocorrido. Paguei a conta e terminei de bebericar todo o conteúdo daquela garrafa de vinho. Senti-me eufórico. Livre. Assim estou, afora a ressaca, cuja classe também não me recordo qual é.

Após, eu e ela conversamos um pouco sobre a crise européia pós-segunda guerra

- 94(9) - e como o Plano Marshall, que gerou redistribuição de renda no

velho continente, poderia ser aplicado no Brasil para pro-

porcionar mais igualdade entre a população. Retórica da classe 0,

que abarca generalidades. Nada tão preciso quanto exige a 33.

Desentendemo-nos - como acontece sempre - quando falamos sobre desi-

gualdade. Ela, que estuda religiões indianas, classe 2, crê que essa

diferença é provocada pelo karma e não por um erro na estrutura do país. Ressaltou essa diferença

de pensamentos políticos e religiosos que temos

para justificar porque nãopodemos mais ficar juntos - classe 043.2: teses. Com ironia, eu disse que o proble-ma está na 535: ótica.

Enquanto Juca lia Fausto Wolff no jornal

“Radu Lupu, quem?”, pergunta Juca es-ticando o jornal.“Um solista...”, diz Dato calçando um pé do sapato.“Sim, mas um pianista havaiano?”“Como você sabe?”“Pelo nome... Lupu... Deve ser nativo.”“É romeno...”“Eu achava que Lupu era doença crônica...”“Lupus...”“Pois é...”“Ataca principalmente mulheres brancas.”“O que causa?”“Inflamação no corpo, nas juntas, no couro cabeludo... Uma doença africana.”“Boa forma de vingança.”

Nenhum comentário.

“Mas Lupus não é também uma marca de meia?”, diz Juca lixando o calcanhar.“Lupo...” diz Dato.“Pois é...”

Então Dato levanta e mistura mais conhaque no seu café. Cueca branca de braguilha aberta. Cabelo amassado na cabeça desproporcional. O rosto vincado por dias e dias de dobras de travesseiro. Barba demais, o pescoço tomado. Meias cinzas de algodão.

“Você pensa que é quem, Samuel Spade?”, diz Juca recolhendo unhas do chão.

“Só se você fosse uma daquelas putas dondocas de piteira na boca”, diz Dato calçando outro sapato.

“E digamos que eu seja, ou digamos que eu possa ser uma dondoca puta...”

“Então neste caso, minha querida, eu sou, sim, o Samuel Spade.”

Se beijam no sofá. A um incomoda o mau hálito do outro. Não reclamam mas, em compensação, também não fecham os olhos. A chuva aplaude do lado de fora. As folhas nas árvores se beijam, riem e choram. A gravação de Brahms é tão antiga que faz o mundo inteiro chiar na arranhadura da vitrola feita de madeira e ouro forjado. É quarta-feira, dia da independência, mas parece domingo e todos estão presos de alguma forma, a maioria sem saber. Dato ama Juca que ama Dato que ouve há anos que Juca o ama e diz há anos que ama Juca e pensa há anos que se a ama não deveria precisar dizer tanto que ama Juca. Mas às vezes são ditas tantas coisas que não sobra tempo para o amor. E mesmo no céu não há fogos de artifício em lugar nenhum.

As mãos vermelhas e quebradiças refugiadas em xícaras com café forte e amargo. A chuva estala as janelas e é tão difícil se ver livre da poeira quanto do passado. Os jornais estão espalhados pela sala, com marcas antigas de copos de vinho e algum amor perdido em noites de sono. Dato usa apenas duas meias de lã acinzentadas e uma cueca samba-canção esgarçada. Está fora de forma e ostenta mamas salientes, mas ainda tem belas coxas e se orgulha delas. Juca corta as unhas do pé numa bacia e fuma um cigarro ao mesmo tempo. Com os cabelos presos em coque por uma caneta de cinqüenta centavos, bate as cinzas no tapete isfahan “do tipo polaco” e funga com o nariz entupido por causa da alergia ao pelo do gato. O jornal dobrado no chão. Outro dia me chamaram de reacionária porque eu disse que era bom a gente abrir o olho com a Amazônia, antes que ela vire um parque aquático americano” diz Juca olhando para o jornal, cortando as unhas e tragando sem parar. Dato apenas olha e não diz nada. Odeia cigarros e quem os fuma, com exceção da Juca. Em alguns momentos. Não neste. Depois estica a coluna com os braços para cima. Se sente feliz porque ainda consegue ver as linhas das costelas através da pele. Relaxa novamente. Então olha para suas mamas enrugadas: o tempo não dá trégua a qualquer tipo de intenção beatificante. No rádio, a mulher tem uma voz nasalada e levemente devassa. Um pouco fora de sintonia, diz: A seguir, concerto número 1 para piano de Brahms, pela Orquestra Filarmônica de Israel, com regência de Zubin Mehta e Radu Lupu ao piano.

uca e Dato numa manhã de frio, enroscados debaixo de cobertas já não tão limpas, no chão dasala com cozinha embutida. J

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Arquivos do fim (contos em construção)

C LEANDRO DÓRO / www.leandrodoro.zip.net

LEONARDO MARONA /[email protected]

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E por que entrei ali e meti meus pés pintados de vermelho na lama, me diga, por que meti meus pés pintados de vermelho na lama, naquela lama borbulhante, obscura e fria? Por que entrei ali de mãos dadas às tuas, na calada da noite, depois de uma cerveja ou outra, um afago no rosto, um beijo na boca, não sei, não sei, minhas mãos dadas às tuas, sempre dadas às tuas, meus pés, pelas minhas mãos, mãos, mãos, mas por que entrei ali, se sabia, eu sabia, me diga, ai como eu sabia, sabia que jamais, caminho pantanoso, verde ou cinza, sabia que jamais chegaríamos a lugar algum?

Mesmo naquela manhã de fevereiro, a setenta e nove quilômetros por hora, depois de uma cerveja ou outra, um beijo na boca, um afago no rosto, quando dirigia, bêbada, serpenteando acima do limite permitido, rindo, rindo, meus dentes separados, o dia nascendo, teus cabelos claros brilhando contra o sol, mesmo naquele dia, eu sabia que jamais, jamais, meus pés, minhas mãos dadas às tuas, sabia com o coração, sol, sol, sol e assoalho frio, te digo, eu simplesmente sabia.

Claro que havia algo de novo no céu, em mim também, uma espécie de mistério, o ano começando, os teus olhos claros, fogo, fogo, fogo, sobre minhas coxas abertas no banco do carro, o disco do Arnaldo Baptista e a tua fixação em meus dentes separados, bolhas, bolhas, beijos na boca, bolhas, bolhinhas, bolhas, boca obscura, me diga, será que eu vou virar bolor?

Não sei como, eu sei, eu sabia, te disse, mas uma arranhadura no disco, à revelia de uma dança macabra, da vida mesmo, uma arranhadura trincou o sol, escureceu o céu e fez tudo virar pântano. Eu simplesmente descia a escada e sabia, meus pés pintados de vermelho, verde ou cinza, enfiados na lama, minhas mãos dadas às tuas, um amontoado de beijos empilhados e espalhados ali pelo céu, bolor. Não sei bem como, lama, lama, o amor não veio e acabamos não chegando, eu sabia, desde a primeira vez, te digo, desde a primeira vez eu sabia, e acabamos não chegando a lugar algum.

Fevereiro, seis e dezoito da manhã, a setenta e nove quilômetros por hora

u sabia, eu sabia, desde a primeira vez que entrei na tua casa, desci a escada e senti o cheiro do mofo

tomando as paredes e os amontoados de caixas espalhados pelo chão daquele lugar subterrâneo, empoeirado e frio, uma espécie de garagem que fazia as vias de um estúdio de som. Desde a primeira vez, eu sabia, quando meti meus pés pelas minhas mãos no assoalho úmido e frio da tua casa, garagem ou estúdio, desde a primeira vez, te digo, quando o mofo assomado pelas paredes serpenteava em veias verdes ou cinzas e as caixas velhas e abertas postavam-se empilhadas ali pelo chão, no assoalho frio, musgo, musgo, musgo, caminho pantanoso, desde a primeira vez, eu sabia e te digo, sabia que não era meu, o teu coração.

E

NATÉRCIA PONTES /[email protected]

Era uma espécie de “que gente mandou o governo!” que meu pai usava para seus companheiros de pescaria. Ou seja, estamos bem por aqui, o que você veio atrapalhar? Depois desse anti-cumprimento, sempre havia a alegria do reencontro.

Gilberto veio me acordar batendo na janela. Queria me mostrar o estrago que sua namorada, agora ex, tinha feito no apartamento. Rato, porco, estava escrito a carvão em letras garrafais. Era a separação, mais uma, do conquistador serial, que deixava um rastro de corações esmigalhados pelo caminho. Como eu não dispunha de tanta generosidade do olhar feminino, admirava em Gilberto sua capacidade de fazer acontecer no teatro amoroso. Mas queria ficar longe quando tudo explodia, como dessa vez.

Foi nesse apartamento na Cidade Baixa que o encontrei pela última vez. Bati na porta, ele abriu a janelinha de vidro e fez uma cara de desencanto, que era a nossa maneira de nos cumprimentar (pois, caras da fronteira como nós, jamais dão o braço a torcer para quem quer que seja, especialmente os amigos do peito).

Saímos pela cidade, que estava forrada de out-doors estampando uma pessoa muito próxima e conhecida. Era ele. Fazia a pose que usávamos quando nos tiravam a foto do colégio. Sentado, com um leve sorriso, as mãos para frente, depositadas em cima da mesa, Gilberto olhava para a posteridade como se fosse um superstar. Estou me despedindo de Porto Alegre, disse ele. Nada melhor do que deixar meu rosto pelas ruas.

Com exceção, claro, da visão que tive dele, já avançado nos anos, e seu grupo no conversível de luxo. Descobri que o espírito mantém a trajetória da vida e vai em frente, como se não tivesse havido ruptura. O que terá vivido Gilberto nestas décadas todas? Estaria na queda do muro de Berlim? Teria namorado nove entre dez estrelas de Hollywood? Estaria assinando um grande projeto de arquitetura no Dubai? Estaria vivo o príncipe que se foi cedo demais e provou que nossa geração tinha nascido para aquele massacre?

Se alguém de nós sobreviveu, foi para contar a história. Ah, a sina dos narradores sem esperança, os que permanecem à tona, frios como um candelabro no inverno de um romance de segunda. Quem dera não tivéssemos tanta perda e não precisássemos lembrar os amigos que se foram numa poeira de nuvem, que o tempo traga com seus pulmões de ferro.

Soube depois da tragédia, quando já tinha me mudado para São Paulo. Soube de maneira fortuita, numa conversa numa lanchonete com amiga comum, que me deu a notícia. Chocado, procurei mais detalhes na imprensa da cidade da qual Gilberto se despedira de maneira tão explícita. Havia pouca coisa. Um revólver, um suposto suicídio. Tanta vida para se jogar fora assim? Ainda mais ele, que tinha vida saindo pelo ladrão. A reportagem só dispunha da foto da identidade. E foi com ela, tomando conta de quase toda a página (para compensar a falta de informação) que travei contato com Gilberto pela última vez.

Gilberto sempre foi assim. Jamais se deixou abalar por coisa nenhuma. Pelo menos, não por muito tempo. Era suscetível, mas se reaprumava logo. Um dia veio me tirar da minha catatonia no quarto onde morava, perto da casa dele. Eu tinha sido expulso do seu apartamento por pressões externas, pois as roupas, os hábitos e as idéias não condiziam com as boas maneiras exigidas para qualquer morador em qualquer lugar. Esparramado na minha cama, num calor insuportável, com o chão cheio de trapos que eu usava nas raras vezes em que saía, dormia ao lado da caixa preta que encerrava um tesouro: a máquina de escrever Smith Corona herdada do meu pai.

Correra o risco de perdê-la, quando o amante da dona do lugar onde eu depositava meus ossos um sujeito retaco, gringo, grosso e canalha me pediu para escrever algo. Era para vender, mas foi proibido pela mulher que entrou em desespero diante da minha obediência canil frente ao escroque. Eu realmente acreditara que o sujeito iria usar a máquina para escrever. Além do mais, ele tinha um olhar gelado, azul e uma boca torcida. Achei melhor acreditar na história dele. Mas graças à amante que não queria perder o hóspede, mantive a prenda em meu poder.

Colocava a mão no alto, com o braço bem espichado, impedindo que o vento levasse para longe aquela monstruosidade. Estava cercado, como sempre, de várias pessoas. Parece que o grupo ocupava um conversível de luxo. Ele me olhou com o rosto impassível que aprendeu a fazer com seus amigos da elite. O olhar era límpido, claro, solene, mas ao mesmo tempo expressava certa indiferença. Era, talvez, seu recado de superioridade diante de tanto mistério.

ncontrei Gilberto na Outra Vida. Ele já estava por volta de 40 anos, ape-sar de ter sido assassinado aos 26. No sonho, ou visão, segurava um grande chapéu de abas exageradas.

NEI DUCLÓS /[email protected]

arteCLÁUDIO LEVITAN

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Gilberto na outra vida09IV

V VIV

V V

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Dies iraeA morte é a grande niveladora.

G. Cabrera Infante

(Para Vanderlei Teixeira Cardoso)

A cidade não esqueceu aqueles estampidos

sucessivos e dramáticos, estampidos ricocheteando pela Praça Santa Rita, ecoando, como turbilhão, pela Rua Major Vieira, chegando à Avenida, até os silenciosos quintais à beira do Meia-Pataca, aqueles tiros violando a mesmice da tarde.

A cidade não esqueceu o olhar estupefacto do oposicionista caindo aos prantos, pedindo clemência-misericórdia-perdão-e-tudo-o-mais nessa hora de projéteis ensandecidos cuspidos de uma Shmit e Wesson calibre 38, pelo amor de Deus, João, não faça isso, está havendo um mal-entendido, não fui eu quem te mandou embora, foi ordem do Tar..., ele não conseguia alinhavar uma palavra, uma idéia, foi o Mar... Spínnnnnnnn.... não, não conseguia dizer de quem partiu a ordem da demissão, me per... e a voz da petulância já não tinha forças para concluir o último suspiro, a frase nem podia conter a ira do assassino, a dureza sinistra do ódio sentenciando pelas próprias mãos (àquele que sempre foi maior que os deuses do Olimpo, que tanto lutou pra chegar ao poder, tanto que era pouco o pote para muita sede e a arrogância desmedida, àquele que não dava trégua ao mau-humor, restava agora o ultimato das balas, como sói acontecer com os pusilânimes) e caindo de joelhos como quem se humilha depois de ter humilhado a tantos, ah, a cidade não esquece a agonia do vereador pedindo socorro e a multidão nem aí pro seu sangue e depois os olhares curiosos de longe vendo o algoz correr com o troféu ainda em riste e se entregando sem resistência como quem está certo do dever cumprido em nome da honra ultrajada.

A cidade se perguntava em uníssono, nos botequins, nas escolas, na Maçonaria, no Lions Club, na Casa Branca e na Câmara (que agora tinham uma cadeira vazia), no cemitério com seu administrador atrás das grades, no Bar Elite, na barbearia dos irmãos China, nos sindicatos, nos cartórios onde o morto sempre irrompia com seus berros de muar, nas cercanias da estação, no caixa-prego e até nas quintas do inferno.

Era possível um gesto tresloucado manchando a tarde de fevereiro? Vindo das inimagináveis estrias da vingança de quem menos se esperava? Era possível o todo-poderoso doutor das leis, com sua eloqüência canina e suas bravatas políticas não ser atingido?

ão faz muito tempo, mas na lembrançada cidade está encravada a memória da-quele assassinato. Uma estranha su-cessão de tiros - seis! - à queima-roupa. N

E o vereador quedou, pedindo a Deus e ao diabo que não o levassem àquela hora. Não soube por que estava sendo alvejado, por que seis tiros esvaziando o tambor, impiedosamente desferidos pelo coveiro-mor, aquele que, por ironia do destino, havia sido despedido por ele da chefia da necrópole municipal.

Em todo o canto e lugar queriam saber se o morto era morto, principalmente os i nqu i l i nos i nad imp l en t e s , o s executados por dívidas, os que se encontravam às vésperas de prisão por d e s c u m p r i m e n t o d e p e n s ã o alimentícia, os ladrões de galinha presos por mero capricho de donos de quintais abastados, a viúva enrolada nos arrolamentos, as putas da Ilha Santa Helena, os que tinham culpa no cartório, os que nem tanto, os homens de bem e os alienados, todos queriam saber pra onde levaram o corpo do homem.

O feitiço voltando contra o feiticeiro um dia da caça outro do caçador justiça pelas próprias mãos olho por olho dente por dente assim terminou uma história de mandonismo e petulância levada ao paroxismo maior que a de Narcizo Tolomor, o alcaide-mor da cidadela e, ironia do destino, esse homem de cabelos nevados chegou ao poder sem poder chegar a nenhum lugar, senão habitar o nº 311 da avenida de jazigos, descer a sete palmos medidos que lhe couberam no latifúndio impiedoso e muitos anos depois já ninguém se lembra do acontecido, a justiça foi feita, o ventre esgarçado, a carne cravejada, carunchos na alma seca do pobre coitado ele era pó e não sabia e ao pó reverteu de forma trágica, prematura diziam os mais chegados, e como ele, seus descendentes que não são nem lembrança nem memória pois as feras não deixam saudade mas rastros que o tempo apaga assim como as pegadas que sol chuva ar homem bicho desfazem porque a vida não poupa nem se recorda e a sombra que fica das coisas a noite cuida de esconder.

A cidade não esqueceu o dia da ira, a baleia perdendo o fôlego na sua desesperada luta contra um oceano de sangue drenado de seu ventre balofo, agora as artérias vazias, ai, ai, ai, meu Deus o advogado gritando como uma medusa a vomitar sua própria alma e com seus dentes cerrados desfere o último golpe verbal, um sonoro àputaqueopariu na maré de revolta daquele homem de macacão zuarte e sua fúria vulcânica, a ambulância chegando a destempo e o que restava dele (recebendo a última escarrada do assassino) saindo por todas as fendas de sua carne envenenada pela pólvora inclemente e conspurcando as pedras portuguesas da praça da Matriz. (Ali estava um homem, ou o que restava dele: a sua arrogância já esclerosada transmudada em cagaço, nos estertores agonizantes... Como um suíno agonizante em praça pública: troféu para os inimigos e adversários políticos. O ventre furado como um queijo suíço, a inútil tentativa do perdão, uma réstia de luz nos olhos esbugalhados capaz de uma última e lúcida certeza, a da petulância vencida pelas balas ensandecidas, uma vaga aberta no Rotary e outra preenchida no inferno. Era como um animal flatulento jazendo sem a piedade de quem quer que seja, sem forças, sem amigo, sem votos, sem nada. Seu nome não importa, nem, a cor dos seus cabelos, nem os tangos argentinos dedicados por Tito Rodriguez sempre às onze da noite na Rádio Municipal. É a metafórica lógica da solidão final, que tudo degreda, encerra, enclausura e decreta sem recursos nem remorsos.) Alguém ouviu um sussurro evacuar de dentro do Restaurante Chuá, onde se acotovelavam alguns, no dia do enterro, quando o caixão passou em direção à sua morada inescapável, sitiada de beldroegas: fizeram uma limpeza, puro darwinismo político. E não foi?

RONALDO CAGIANO /[email protected]

“I bargained for salvation, they gave me a lethal dose” Bob Dylan - Shelter From The Storm

O que o rio não levou apodreceu, o que o barro não cobriu está doente, o que não morreu não presta, o que sobrou ninguém quer. Nada restou para os saqueadores, os abutres, os piratas sem moeda de troca. A água passou e carregou tudo que era ruim; quando acordamos vimos que não tinha sobrado nada. Seguimos com a vida, mastigando e engolindo seco, como se nada tivesse acontecido. Só os órfãos...Os órfãos não esquecem nem perdoam.

ocê quer saber como vão as coisas?

Eu te digo.V (Eu vi uma vez, lá na Vila Mimosa, um bode com uma plaquinha no pescoço. Lia-se: “5 Reais”. Na verdade foi o meu primo quem viu. Ficou tão enojado que nunca mais pegou nenhuma menina lá.)

Não sei o que essa gente continua fazendo aqui, porque insistem em se afundar nesse buraco. Do que eles precisam? Praga? Nuvens de gafanhoto?

Ainda tenho algumas coisas, alguns bodes magros. Semana passada vendi um para um estrangeiro, devia ser para sacrifício, ele só queria bode preto. Daqui a pouco aparece estirado em alguma encruzilhada do lado de uma vela, não sei, não sei pra que servem os bodes. Buchada. Rabada. Puxar charrete com criança em volta de praça. Não sei pra que.

Depois do dilúvioAntes do dilúvio as coisas andavam,

agora elas rastejam e se enterram na lama acre. E eu sinto o cheiro de enxofre no ar, eu sinto, ele me possui e me cega em banheiros públicos, elevadores, bancos de praça. Eu não pensava na morte, mas esse cheiro, esse cheiro me faz escutar a morte rangendo seus dentes de bronze, a morte caminhando com seus pés de galinha em um piso de madeira, se aproximando rangendo os dentes. Eu desvio os olhos, procuro um ponto de luz, tropeço na calçada. Tenho medo. Tenho vergonha. Tenho culpa. E alguns bodes magros.

Chuva de enxofre? O que eles fazem além de arrastar móveis e descascar batatas? Não tem garimpo, indústria ou cassino que salve essa cidade.

JULIA DEBASSE /[email protected]

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Acordei com a mesma enfermeira enfiando outra agulha em meu braço. Tem certeza que não é alérgico a esse anestésico? Já disse que não sou alérgico a nada! Entrei em coma: - O desejo é antes de tudo auto-erótico e a impotência uma incapacidade de amar a si. - É você Lacan? - Não estamos acostumados a sentir fortes afetos, sem que eles tenham algum conteúdo ideativo. - Tudo bem, querem jogar pesado, então vamos lá. - A ansiedade gera repressão. - Segura essa: o corpo não é, como o organismo, um objeto físico-químico que responde instintivamente ao mundo que o cerca, mas sim a apreensão da própria imagem fornecida pelo exterior, que lhe permite sair do caos inicial de fragmentação e passar à unificação, tornando-se lugar das representações psíquicas. Gostou? - Não há uma maneira única de satisfazer o desejo, o que confere ao humano a sina de estar sempre insatisfeito frente a este.

Acordei um ano mais velho. A platina doía e a enfermeira depilava meu pênis. Sorri com seus olhos verdes. E eu pergunto se bateria uma punhetinha de boas- vindas. Ela falou: - Para que o sujeito se salve da submissão ao outro é preciso que ele sustente o seu próprio desejo. - Aqui também!? - O Real, o Simbólico e o Imaginário são indissociáveis. - Eu quero a minha mãe!

Dois meninos estacam embaciados, saquinho plástico entrededos, alçado às narinas de quando em quando. Começo, bisbilhotam, zombeteiros. Após, a melodia repetitiva atropela-os. Langorosos, perambulam, vontade de nada.

(Há uma casa, pequena, “Minúscula!”, tijolo e massa e cimento fermentados em fins de semana e folgas, num lugar em que a água falta e a bosta e o mijo vertem pelas faldas das ruas à noite banguelas de luzes.)

Música de corno!, enjoou as dobras do pescoço, na terceira vez em que o negro reclamou fichas, Catorze? Mesma música?, paletó impecável. O velho, mastigando nacos de lingüiça, com a cabeça seguia os volteios, contente. Além da porta, impacienta-se o asfalto quente.

(Da laje, o movimento da Rodovia Raposo Tavares, faróis que perseguem sombras, o walkman comprado na Rua Santa Ifigênia, “Repositor do Carrefour Limão”, “Tem futuro, isso?”)

Atiçados pelo gordo, o chapeiro e o atendente interceptam inconveniências do velho, arrastam-no à calçada, sob apupos de contínuos e desempregados. Bêbado, buscou atracar-se ao videokê, onde a música irrompia guerreando barulhos, o microfone caprichando palavras de um amor que já não é, mas, num giro, desabou sobre artesanias, brincos, anéis, cordões, pulseiras, colares, amostradas numa lona no chão estendida. Perseguido, coxeou labirintos da Rua 24 de Maio, bancas de cedês, fitas-cassete, canetas, roupas, ervas, bugigangas, homens-sanduíches, celulares, cobertores adormecidos, cabelos alvoroçados, pernas, murchas notícias de jornais.

Em meio aos ônibus que roncam e resfolegam e guincham e buzinam e enfileiram-se um negro comprido, desengonçado dentro de um terno chumbo, curta gravata amarela carros-de-corrida estrangulando uma camisa-manga-comprida branca, evanesce.

Comprido, o negro, desengonçado terno chumbo, curta gravata amarela carros-de-corrida estrangulando uma camisa-manga-comprida branca, soa 'Dia, assustando o gordo que, costas à rua, passa o primeiro café. Hum? Aberto, já? Enxuga as adiposas mãos no jeans, olhinhos espremidos catando fichas do videokê no caixa, Quantas? A música irrompe guerreando barulhos, o microfone capricha palavras de um amor que já não é. Finda, resfolegam as dez para as nove.

No balcão, a azáfama de copos americanos, médias, colherzinhas, açucareiros de plástico, pãezinhos franceses com margarina aconchegados em tristes guardanapos sobre pratinhos engordurados, vitaminas, refrescos, coxinhas, quibes, esfirras, pães-de-queijo, hambúrgueres, em silêncio bebe cerveja um velho que limpa a espuma na gola da camisa, a mesma música irrompe guerreando barulhos, o microfone capricha palavras de um amor que já não é, um motoboy, capacete entreabraçado, pára, um ambulante apregoa o disco, ... aqui, patrão!, uma comerciária ri, outra sente uma coooisa!

O terno chumbo acomoda-se elegante. Vizinho, um garoto refestela-se sobre o tampo solto da banqueta, trezentos e sessenta graus, lambuzado de ketchup e mostarda. Do outro lado, solidário, o velho meneia a tulipa.

(Jardim Jaqueline-Terminal Bandeira, 6250, mais de vinte quilômetros empanturrados corredores mãos náufragas cansaço.)

Rasgam os dentes o misto-quente, suspensa a garrafa de coca-cola. À parede, sujam as horas.

O gordo estendeu o troco e outras dez fichas, Hoje é dia!, e a mesma música irrompeu guerreando barulhos, o microfone caprichando palavras de um amor que já não é.

O RepositorLUIZ RUFFATO / [email protected]

- Não há nenhum prazer em não ter nada pra fazer, prazer é ter e não fazer. - John Raper! É você? - Fortaleza é uma favela de muro baixo. - E eu com isso!

Acordei com um cachorro lambendo minha boca. Me lembrei de Jó. O estômago doía, a cabeça doía mais. Levanto e sigo tonto e cambaleante. Algo me atinge em cheio, parece ser uma moto:

para a calçada, em princípio volumosa envolta em espuma de detergente, espraiando-se então em fios desenhados pelas pedras-portuguesas, para, num de l t a , encon t ra r - s e novamente , desaguando na sarjeta, arrastando restos do dia que passou, guimba, pau-de-fósforo, palito-de-dente, papel amassado, tampinha-de-garrafa, canudo, vagando imunda pela Rua Conselheiro Crispiniano rumo à boca-de-lobo quase esquina do Largo do Paissandu.

Na direção contrária, gordos sapatos velhos chapinham ignorando poças, camiseta branca cavada suando touceiras no peito sovaco barriga. O centro da cidade é barras de calças levantadas, claridade de um generoso abril. O homem descerra a porta metálica, o veneno de rato intoxica a manhã. Uma barata espoja-se no chão, esmigalha-a indiferente, bufa.

Camelôs enredam bancas, cedês, fitas-cassete, canetas, roupas, ervas, bugigangas. O homem-sanduíche conversa um café. Um branco-encardido uniforme pincela o monturo que breve tornará churrasco-grego. O de migalhas-à-barba desfia, garras encardidas, sacos de lixo. O do vira-lata enlaça restos de papelão numa carroça. O do celular negocia. O do cobertor espreguiça. A de cabelos alvoroçados impreca. A do carro ignora. Ônibus roncam e resfolegam e guincham e buzinam e enfi leiram-se. Pernas entrecruzam-se ensonadas. Perto, vermelha bandeira berra palavras-de-ordem. Jornais se oferecem, lúbricos. A quarta-feira se esgueira rumo aos sonhos.

reta, a água irrompia sob a greta da porta-de-aço, empurrada de dentro da lanchonete por um frenético rodo, escorrendo P

ANão agüentei a dor, caí e bati com a cabeça no vaso. Lembram do episódio do Sítio do Pica Pau Amarelo, onde cai uma enciclopédia na cabeça do Visconde de Sabugosa? Fiquei lá, desacordado, com o nariz atolado no ralo do banheiro:

- A Raiva é sobre-humana. - Quem está com raiva aqui? - O foco está no outro. - Que merda é essa? De quem estão falando? - Deus dá dedada. - Só se for na bunda da tua mãe!

Acordei na maca de um pronto socorro. Uma enfermeira, morena, olhos verdes, dentes alvos e assimétricos, me pergunta se sou alérgico a tal anestésico. Digo que não sou alérgico a nada e ela enfia a agulha no meu braço:

- Não fuja de Deus. - Deus está morto! - Mas o homem não. - O Povo precisa saber disso. - Adoro o Povo! - Eu adoro abraçar uma nêga suada.

Acordei com um curativo na cabeça e com a boca seca. Saio do pronto-socorro, ainda tonto, e emburaco no primeiro boteco. Peço um copo cheio de cachaça e entorno. Repito o pedido. A sede é grande. Sempre tive muita sede. Fico de pileque e adormeço na sarjeta de frente ao boteco:

cordei com a platina doendo. Sentia a presença latente dos parafusos, da platina e dos fios na minha clavícula direita. Ao escovar os dentes a bosta da platina dá um estalo enorme.

- Alegria não é felicidade.- Quem é o palhaço aqui?- O Outro sou Eu.- Me aceita que eu me aceito.

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CLÁUDIO PORTELLA /[email protected]

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Guerra na cabine telefônica

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UMA AVENTURA REVOLUCIONÁRIA

O outro foi obrigado a concordar com a sensatez da proposta. Comprou mais uma garrafa de rum na lojinha para turistas e mandou bala. Retomada a viagem, O Caminhoneiro continuou sendo a trilha da sonorosa aventura. Chegaram a Varadeiro e, já embalados, prosseguiram nos trabalhos etílicos com edificante fluência. Pintou de tudo - mojitos, daiquiris, añejos, cervejas e o escambau. Se aparecesse alguém servindo querosene, não recusariam a gentileza, que isso não é papel de homem. Após um dia intenso, em que um deles cogitou montar uma barraca na praia para vender o final de uma cacetada de novelas brasileiras - eram exibidas de seis da matina à meia-noite - chegou a hora da partida. O cubano apareceu para buscá-los brandindo a fita, a mesma fita, como um estandarte. Tinha a empáfia triunfal de um Carlos Alberto Torres levantando a Jules Rimet. Nem bem entraram no carro e O Caminhoneiro soou pela nonagésima vez no dia. Mas algo havia mudado. Aos ouvidos de ambos, os acordes do Roberto pareciam a introdução do hino nacional em final de Copa do Mundo. Dez minutos depois, feito bezerros desmamados, comovidos com a descoberta de que o patinho feio era ganso - ou cisne, vá lá - cantavam e soluçavam acompanhados pelo cubano, satisfeitíssimo com o sucesso da homenagem aos amigos brasileños: - Todo dia quando eu pego a estrada, quase sempre é madrugada e meu amor aumenta mais...

- Foda-se. Eu só tenho condições de ouvir essa merda bêbado. E esse cubano vai tocar essa porra a viagem inteira.

Faltava coragem para mandar o cubano desligar o som, diante do entusiasmo vigoroso com que o ilhéu bradava aos mares caribenhos os versos do Rei e dos dois metros de altura do negão. Mas não há mal que dure tanto. Pararam em um mirante, para tirar fotos e mijar. Foi quando um deles, profundamente mal-humorado, teve a sublime idéia de mandar pra dentro uma garrafa de rum com água de coco. O outro alertou: - São nove da manhã.

Em cada esquina uma Sierra Maestra, em cada cada cidadão um Che. Prometeram, ainda no aeroporto, uma conduta rigorosamente compatível com a Revolução. O mínimo que poderiam fazer era um trabalho voluntário colhendo bananas em Santiago. Sinto dizer que esse vigoroso sentimento de latinidade solidária durou menos de dez minutos. No que o primeiro rum foi oferecido, ainda no avião, o projeto bananeiro foi para o caralho. Encheram o pote. No primeiro dia na Ilha visitaram a Casa da Música, ficaram alucinados com as garçonetes do El Palenque - suspeitíssimo restaurante de Vedado - e programaram para a manhã seguinte uma viagem a Varadeiro. Contrataram um motorista que prometeu pegá-los na porta do hotel em um possante automóvel. Sete da manhã aparece o motorista, em um Ford 1953 absolutamente inacreditável. Para agradar os brasileiros, o cubano levou uma fita com músicas do patropi. Aliás, permitam-me a correção. Músicas, não. Música. A tal fita continha uma hora de gravação com a mesma canção, O Caminhoneiro, do Roberto e do Erasmo.

s dois chegaram a Havana com in-dômito espírito revolucionário. Bra-sileiro em Cuba é assim. Em cada esquina uma Sierra Maestra, em

SINALEIRA

MARCELO [email protected]

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Diabo de sinaleira. Criam perimetrais, financiam carros, melhoram o design, o motor e a tração, cobram fortunas de seguro e é isso, gente demais, rua de menos. No meu tempo se conseguia andar pela cidade, hoje é esse caos, uma sinaleira em cada esquina. E ainda tenho que aturar esses vagabundos. Olha lá a cara desse, forte, saudável, bom pra carregar umas pedras. Que faz aqui? Imagina se vou comprar essas laranjas podres. Pior que tá vindo pra cá, o diabo. No meu tempo eu chamava a polícia e botavam esse elemento no xadrez.

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Mãe, que homem é esse? O que faz sem camisa, sem tênis, de barba, na rua, sozinho, andando entre os carros com laranjas na mão? Por que ninguém ouve o que ele diz? E se for Jesus Cristo disfarçado, como na Bíblia? E se for doente e não puder trabalhar? E se tiver desempregado como papai? Ei, mãe, tô falando com você!

Mercedes, BMW, dois Gols, Vectra, Polo, Clio, Unos. Homens com suas esposas, mulheres com sua beleza, jovens com seus amigos, senhores com sua riqueza. Ele olha para todos sem sua camisa, com suas laranjas, e aposta no do Clio. O condutor é um homem de idade, de certo compreende as mazelas do mundo e quiçá seja um defensor dos marginalizados e excluídos. Aproxima-se com alguma pressa. Bate no vidro. O outro sequer vira o rosto. Bate mais forte. Sinal ainda vermelho. Ia bater mais uma vez, mas o Clio já acelera um pouco, muito pouco, apenas para tirá-lo do lado. E fica ali o sem camisa, boné para trás, laranjas na mão.

ermelho de novo. O homem vira o boné para trás, es-frega a testa com o antebraço, agarra suas laranjas eolha sem esperança para os carros que vão parando.V

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Adrienne Myrtes , pernambucana, ed i tora do s i te www.cronopius.com.br, publicou “A mulher e o cavalo e outros contos” (Ed. Alaúde, 2006)Botikai, carioca, autor de “Uma autobiografia de Lucas Frizzo” (Azougue Editorial, 2005)Cláudio Portella, cearense, contista e poeta, organizou “Melhores poemas de Patativa de Assaré” (Ed. Global, 2006); é autor de “Bingo!” (Poesia, Ed. Palavra em Mutação, 2004)Eduardo Goldenberg (www.butecodoedu.blogspot.com), carioca, autor de “Meu Lar é o Botequim! Histórias, Palpites e Feitiços sem Fim” (crônicas, Ed. Casa Jorge, 2006)Fausto Wolff (www.faustowolff.org), gaúcho, jornalista e escritor, publicou “A Milésima Segunda Noite” (romance, Ed. Bertrand, 2005)

Leonardo Marona (www.omarona.blogspot.com), gaúcho, jornalista e escritor, publicou “Os ossos debaixo dos campos verdes” (contos, Ed. do Autor, 2004)Leandro Dóro (www.leandrodoro.zip.net), gaúcho, jornalista e escritor, autor de “Revolta dos Motoqueiros” (novela, Ed. Boleadeira Voadora, 2006)Luiz Antonio Simas (www.hisbrasil.blogspot.com), carioca, é historiadorLuis Pimentel, baiano, jornalista e escritor, publicou “Com esses eu vou: de A a Z, crônicas e perfis da MPB” (Ed. Zit, 2006)Luiz Rufatto, mineiro, poeta e contista, participou e organizou diversas antologias; publicou “Vista Parcial da Noite” (Ed. Record, 2006), terceiro volume da pentalogia “Inferno Provisório”Maira Parula (www.prosacaotica.blogspot.com), gaúcha, autora de “Não feche seus olhos esta noite” (Ed.Rocco, 2006)Marcelo Spalding (www.marcelospalding.com), gaúcho, participou da antologia “Contos de Bolsa” (contos, Ed. Casa Verde, 2006) e colabora no site Digestivo CulturalMayrant Gallo (http://mgallo.zip.net), baiano, poeta e contista, autor de “Dizer adeus” (contos, Edições K, 2005)Miguel Sanches Neto (www.miguelsanches.com.br), paranaense, crítico literário e escritor, publicou “Um Amor Anarquista” (romance, Ed. Record, 2006)Natércia Pontes (www.natercia.blogspot.com), cearense, organizou e participou da antologia “Semana” (Ed. Hedra, 2007)Nei Duclós (www.consciencia.org/neiduclos), gaúcho, jornalista e poeta, autor de “O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento” (contos e crônicas, Ed. Cartaz, 2006)Ronaldo Cagiano, mineiro, contista e poeta, participou e organizou diversas antologias; publicou “Concerto para arranha-céus” (contos, Ed. LGE, 2004)Sidnei Schneider, gaúcho, contista e poeta, autor de “Plano de Navegação” (poesia, Dahmer Editora, 1999)

COLABORAM NESTA EDIÇÃO:

s r uEditore : Ma co Marq es e Fernando Ramos D ag ç Gil Pires ai rama ão: C pa: Eduardo Verderame

Julia Debasse (www.juliadebasse.blogspot.com), carioca, é compositora. Namorou Manuel Bandeira, noivou Bob Dylan e é viúva de João Antônio. Irremediavelmente apaixonada por alcachofras e todos os homens errados. Lança seu disco, “Flor Indócil”, esse ano. Para ouvir: www.juliadebasse.com.br

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LUIZ ANTONIO SIMAS /[email protected]

Como ambos nutriam pelo Roberto Carlos uma simpatia semelhante a do Dalai Lama Pelo Mao Tse Tung, imaginem a merda.

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