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Cultura Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018 | Nº 153 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00 ARTES DOSSIER LUANDA NO 7º. SALÃO DE ARTE CONTEMPORÂNEA CUBANA A expressão latina, proferida pelo general gaulês Breno quando saqueou Roma no ano 390 a.C., permite, ainda hoje, aplicar-se também a todos os povos conquistados e explorados, circunstancialmente julgados inferiores, por outros que usaram o poder e o mando para subjugar umas vezes o próximo, outras o distante (Vae victis - Ai dos vencidos) REPENSAR ÁFRICA E O MUNDO ECO DE ANGOLA O MERCADO DE CABELOS EM ÁFRICA DIÁLOGO INTERCULTURAL Um dos negócios mais lucrativos em África é a compra e venda de cabelo. Só em 2014, a indústria movimentou em torno de 6 biliões de dólares, de acordo com dados da agência Reuters. E esse número não pára de crescer. LETRAS “A PRAGA” DE ÓSCAR RIBAS SOCIEDADE E TEXTUALIDADE Óscar Ribas foi um defensor da cultura angolana, que “privile- giou os elementos da tradição”. A sua entrega e atitude de difundir a beleza da tradição da sua terra e o dever de salvaguardá-la, de forma geral, zeram dele um estadista no campo da literatura. Pág. 3 Pág. 7 a 10 Pág. 14 Pág. 11

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CulturaCulturaJornal Angolano de Artes e Letras30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018 | Nº 153 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00

ARTES

DOSSIER LUANDANO 7º. SALÃO

DE ARTE CONTEMPORÂNEA

CUBANA

A expressão latina, proferida pelo general gaulês Breno quando saqueou Roma no ano 390 a.C., permite, ainda hoje, aplicar-se também a todos os povos

conquistados e explorados, circunstancialmente julgados inferiores, por outros que usaram o poder e o mando para subjugar umas vezes o próximo, outras o

distante

(Vae victis - Ai dos vencidos)REPENSAR ÁFRICA E O MUNDOECO DE ANGOLA

O MERCADO DE CABELOS EM ÁFRICA

DIÁLOGO INTERCULTURAL

Um dos negócios mais lucrativos em África é a compra e venda de cabelo. Só em 2014, a indústria movimentou em torno de 6 biliões de dólares, de acordo com dados da agência Reuters. E esse número não pára de crescer.

LETRAS

“A PRAGA” DE ÓSCAR RIBASSOCIEDADE E TEXTUALIDADEÓscar Ribas foi um defensor da cultura angolana, que “privile-giou os elementos da tradição”. A sua entrega e atitude de difundir a beleza da tradição da sua terra e o dever de salvaguardá-la, de forma geral, +zeram dele um estadista no campo da literatura.

Pág.3

Pág.7 a 10

Pág.14

Pág.11

2 | ARTE POÉTICA 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018 | Cultura

Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE-mail: [email protected]

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O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

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Conselho de Administração

Victor Silva (presidente)

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Olímpio de Sousa e Silva

Catarina Vieira Dias da Cunha

ARTE POÉTICA II«A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma ar-te do ser. Também não é tempo ou trabalho que a poesia me pede. Nem me pede umaciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, umaconsciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do queaquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-meque arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica semcostura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, quenunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta. Pois apoesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a mi-nha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poe-ma não fala duma vida ideal mas sim duma vida concreta: ângulo da janela, resso-nância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos,silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do oré-gão. É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra decriação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato. Éo artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo opoeta, todo o artista é artesão duma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticasnão nasce de si mesmo, isto é da relação com uma matéria, como nas artes artesanais.O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancial-mente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estaspalavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram pala-vras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade,pela sua necessidade, pela seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obs-tinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. Overso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos,tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilí-brio dos momentos entre si. E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reco-nheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.»

Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto, a 6 de Novembro de 1919, numa famí-lia fidalga, de origem dinamarquesa por parte do pai. �Frequentou o curso de Filologia Clássicana Faculdade de letras da Universidade de Coimbra, mas não o chegou a concluir. �Em 1946 ca-sou-se com Francisco Sousa Tavares, um jornalista e advogado, do qual teve cinco filhos que ins-piraram muitas das suas obras infantis. �Depois da Revolução de Abril, foi deputada á Assem-bleia Constituinte. (1975 – 1976). �Ao longo da sua vida, ganhou importantes prémios, entre osquais o “Grande Prémio de Poesia”, em 1964, da sociedade Portuguesa de escritores pelo seu li-vro “Livro Sexto”, em 1999 foi distinguida com o “Prémio Camões” pelo conjunto da sua obra, em2001 ganhou o “Prémio Max Jacob Étranger" e em 2003 o “Prémio Rainha Sofia”. �Traduziuainda obras de Claudel, Dante, Shakespeare e Eurípedes para Português, tendo ainda recebidouma condecoração do governo Italiano pela sua tradução de “O purgatório”. As suas obras en-contram-se traduzidas em vários países, como França, Itália e EUA. �Sophia veio a morrer emLisboa, a 2 de Julho de 2004 deixando-nos um mundo de sonhos e de magia, demonstrados atra-vés das suas histórias, que marcaram uma geração.��

Algumas Obras: �Poesia (1944), O Dia do Mar (1947),�Coral (1950), Mar Novo (1958),�AMenina do Mar (1958), A Fada Oriana (1958),�O Cristo Cigano (1961), �Livro Sexto (1962),�Contos Exemplares (1962),�O Cavaleiro da Dinamarca (1964),�O Rapaz de Bronze (1965), AFloresta (1968),�Histórias da Terra e do Mar (1984),�Primeiro Livro de Poesia (1991).

CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Nº 153/Ano VI/ 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaEditores:Adriano de Melo e Gaspar MicoloSecretária:Ilda RosaFotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação: Jorge de Sousa,Alberto Bumba, Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Estêvão Ludi, João Ngola Trindade, LeonelCosme, Lito Silva, Nobre Cawaia

Portugal: Manuel S. Fonseca, Sophia de Melo B. Andre-sen

Cuba: Amilkar Feria Flores

FONTES DE INFORMAÇÃO GLOBAL:

AFREAKAAFRICULTURES, Portal e revista de referênciaAGULHACORREIO DA UNESCOMODO DE USAR & CO. OBVIOUS MAGAZINE

Sophia de Mello Breyner Andresen

Aexpressão latina, proferida pe-lo general gaulês Breno quandosaqueou Roma no ano 390 a.C.,permite, ainda hoje, aplicar-se tam-bém a todos os povos conquistados eexplorados, circunstancialmente jul-gados inferiores, por outros que usa-ram o poder e o mando para subjugarumas vezes o próximo, outras o dis-tante. Na época não havia ainda osubstrato moral que hoje representa-ríamos por um conceito alegadamen-te judaico-cristão – “não faças ao ou-tro o que não farias a ti próprio” – emenos ainda a consciência tardia deum reconhecimento agora banal deque o notável autodidacta, etnógra-fo, linguista e historiador angolano,Óscar Ribas, dava nota na introdu-ção ao seu livro “Temas da vida an-golana e suas incidências” (ed.Ca-xinde, Luanda, 2002): “Confrontando os diversos níveissociais da Humanidade, pacientemen-te escutando as vozes do passado, ar-dorosamente explorando suas fonteshistóricas, uma ilação se nos levantaperemptória: não há raças superioresnem raças inferiores, mas sim raçasadiantadas e raças atrasadas. E só poresse desnível se distanciam.” Como se depreende, Óscar Ribasnão circunscrevia a sua reflexão (ob-viamente centrada em Angola) a umaquestão racial, sabendo que os confli-tos sociais da Humanidade podiameclodir, dentro da mesma “raça”, pormeras razões de poder e mando. Lem-bremo-nos das guerras de conquistaentre povos da mesma cor, e com omesmo grau de desenvolvimento, queocorreram e ainda ocorrem em todo omundo. Mas também, e não raro, porsimples diferenças de representaçãoétnica (tradição e língua), em que An-gola é particularmente significativadas diferença no modusvivendientregrupos bantus e mesmo entre não-bantus, embora, quanto a grupos co-mo o koisan, a sua aparência física(corpo e cor) e a língua (cliques) fos-sem tomadas pelas “raças superiores”do mesmo país como característicasde “não-gente”. Por esta diferença setornaram escravos dos cuanhamas.Este julgamento, onde ainda não háas balizas éticas e científicas que hojeenformam o Humanismo, só há muitopouco tempo entendido como um ín-dice de Civilização, “justificou”, duran-te séculos, o domínio dos povos maisdesenvolvidos sobre os povos maisatrasados, isto é, do senhor sobre o es-cravo, do vencedor sobre o vencido.Foi assim na Antiguidade, antes deCristo e depois de Cristo, na Atenas dePéricles e na Roma de Nero, apenas sediferenciando segundo a moldura do

poder dominante, assente na riquezae na força de alguns grupos sociais.O tempora! o mores! – dizia o filóso-fo romano Cícero (16-43 a.C.) , falandodos tempos seus conhecidos . Noutrotempo adiante, o filósofo Santo Agosti-nho (354-430), nascido no Norte deÁfrica e filho de pai pagão e mãe cristã,corroborava realisticamente: “O tempoé o espaço onde decorrem as coisas”.Mas já distinguindo que se a razão eramoldada pelas práticas rotineiras doquotidiano, era a partir da fé que ocrente moldava os julgamentos doutri-nários ou normativos visando uma mo-ral absoluta, difícil de atingir: não fazeraos outros o que não faria a si próprio. Que esta Moral era torneada con-forme as circunstâncias, temos até oexemplo dos povos que, em nome deDeus, escravizam o seu semelhantepara, alegadamente, o “educar”, “ci-

vilizar” ou “converter” e assim lhe“salvar a alma”. Cometeram este “pe-cado” missionários impolutos, comoo consagrado Padre António Vieira,que no Brasil pugnou pela libertaçãodos índios da escravidão impostapelos senhores brancos, mas toleroua escravatura dos negros caçados emÁfrica, designadamente nas posses-sões portuguesas, por serem im-prescindíveis na exploração de mi-nas e fazendas. Donde, ontem comohoje, o trabalho forçado e mal pago(quando ainda é pago) é sempreuma espécie de escravidão, seja im-posto por um patrão, chefe ou Esta-do, nacional ou estrangeiro. E para que não se julgue este arra-zoado como uma contracorrente outentativa de desculpar os erros e os ví-cios dos povos brancos colonialistas,que não se ressarciam com confissões

de mea culpa, sinceras ou hipócritas,trazemos à liça uma reflexão do repu-tado historiador e filósofo camaronê-sAchilleMbembe, recolhida de umaentrevista publicada na revista ingle-sa “ThisisAfrica” e transcrita no “Áfri-ca 21” de Dezembro/Janeiro de 2017:“Tal como a autoflagelação, que pre-tende compensar, a auto-exaltação nãotem o menor interesse. África não é oreino da virtude nem o reino do vício.O que importa realmente é não nos en-ganarmos a nós próprios e não perderde vista as nossas potencialidades. Onosso futuro está nas nossas mãos, po-demos mudá-lo e orientá-lo no sentidoque desejamos. Para isto é preciso jun-tar as nossas inteligências, dar forma amaneiras diferentes de nos relacionar-mos e cuidar de nós, da humanidade ede todos os seres vivos.” E por agora concluiremos nós: res-peitar e cuidar de todos, este será oprincípio do caminho da verdadeira epura globalização.Vaevictis!

ECO DE ANGOLA |3Cultura | 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018

LEONEL COSME

REPENSAR ÁFRICA E O MUNDO(Vaevictis - Ai dos vencidos)

Obra de cerâmica do artista plástico António Ole

Acultura é manifestação do espí-rito criativo de um povo, a obraproduzida por este ao longo dotempo e no espaço. Ter cultura signifi-ca ter capacidade de criar, recriar eaperfeiçoar, seja o que for.A cultura é um todo, ou seja, um con-junto de criações que engloba, entreoutros, a literatura. Segundo NorbertoCosta (2002:62), "a literatura é tam-bém uma manifestação de cultura e,consequentemente, reflecte a cosmo-visão do contexto em que é plasmada,que encontra carácter instrumental dasua língua a sua mais privilegiada, se-não exclusiva forma de expressão".Se consideramos a literatura comoreflexo e prova da existência de umacultura, e que esta constitui o seusubstrato (NETO 2009:26), parece-nos ser impossível provar a existênciade um povo que não tenha cultura pró-pria o que significa dizer que não te-nha criado ou produzido literatura.Estudar a literatura de um povo im-plica estudar a cultura à qual ela estávinculada. Neste sentido, a literaturaoral está vinculada à cultura oral aopasso que a literatura escrita está vin-culada à cultura escrita. Cada período da História de um Paíscorresponde a um período da Históriada sua Literatura. No período colonial,por exemplo, predominou a cultura co-lonial e, consequentemente, a literatu-ra colonial que exalta o colonizador(NETO 2008:19, ANDRADE 1980:46).A literatura será assim reflexo dasrelações de poder e de submissão es-tabelecidas entre colonizadores e co-lonizados, ou seja, um "instrumentode poder, espaço privilegiado de […]destruição [...] das identidades dos po-vos e Nações […]" (CARLOS 2016:35).No caso de Angola que é o que nosinteressa abordar, os povos que habi-tavam o seu território antes da chega-da dos Portugueses desenvolveramuma cultura predominantemente oralà qual está vinculada a sua literaturaoral (provérbios, adágios, contos, ad-vinhas, etc.) (ANDRADE 1980:52-54). Devido a escassez ou a falta de tex-tos literários escritos , alegou-se que

os povos africanos que habitaram oterritório angolano não teriam produ-zido cultura e literatura, e que esta te-ve início em Angola apenas com a pre-sença do Portugueses que difundirama sua língua – a portuguesa - e a escritacomo meios de comunicação e instru-mentos de criação literária. Trata-se de um discurso eurocên-trico que, de um lado, sobrevalorizatudo quanto representa a cultura eu-ropeia, em geral, e a portuguesa, emparticular, e, do outro lado, torna de-pendente culturalmente os povos afri-canos/angolanos. Tanto assim é que, anoção clássica de literatura exclui des-ta os textos orais produzidos pelos po-vos não-europeus.Estas e outras ideias ainda prevale-centes em alguns círculos académicosforam concebidas durante o períodocolonial em que os colonizadores im-puseram aos colonizados a sua cultura.Sendo esta um instrumento de domi-nação, a resistência contra a sua impo-sição não deixa de ser um acto cultural.Esta resistência fez-se por meio daliteratura e de outras formas de ex-pressão da cultura de um povo no seiodo qual alguns extractos sociais (es-

clarecidos) apropriam-se de algunselementos culturais do colonizador, co-mo a escrita e imprensa, e foi esta quepossibilitou no final do século XIXaafirmação da literatura angolana escri-ta (CALEY 2011:29, COSTA 2002:22,ANDRADE 1980:46-48).Este processo de afirmação da lite-ratura angolana, por via da imprensa,teve continuidade no século XX com odespertar da consciência nacionalistaexpressa nos textos literários publica-dos em revistas e jornais.A literatura moderna angolana sur-ge como expressão de uma cultura re-jeitada, tendo sido igualmente uma ar-ma de combate ao colonialismo (OLI-VEIRA 2015:38)."Em momentos deopressão, miséria e discriminação, ouseja, de dominação estrangeira, o dis-curso literário toma as característicasproféticas, apontando os caminhos delibertação" (CALEY 2011:27).A literatura nacionalista será assimum "momento de afirmação" cultural,a expressão dos anseios de um povoque aspira a liberdade para que possamanifestar plenamente a sua culturaentendida aqui como o quadro de re-ferência, o modo de vida de um povo.

Bibliografia

ANDRADE, Costa, Literatura Angola-na (Opiniões), Edições 70, Lisboa, 1980.CALEY, Cornélio, ‹‹Teoria da Angola-

nidade: Ensaio Sobre a Caracterizaçãodo Texto Literário Angolano››, In: Co-lectânea de Textos Sobre AngolanidadeLiterária. Luanda: INIC, 1ª edição,2011, pp. 23-39.CARLOS, Albino, O Romance na Cons-

trução do Imaginário Angolano, In:Conferencia Nacional Sobre Literatu-ra. Luanda: Editora Acácia, MovimentoLev’Arte, 1ª edição, 2016, pp. 32-38.COSTA, Norberto, Subsídios Sobre

Cultura, Língua e Literatura. Luanda:INIC, 2002.NETO, Agostinho, …Ainda o Meu So-

nho (Discursos sobre a Cultura Nacio-nal). Luanda: Arquivo Nacional de An-gola, 2009.

4 | LETRAS 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018 | Cultura

CULTURA E LITERATURAJOÃO NGOLA TRINDADE

O DITO E NÃO DITO EM CARTA DUM CONTRATADO DE ANTÓNIO JACINTOCom o presente diálogo, preten-de-se numa viagem aleatória e ofuncionamento aleatório não éopaco, apreender o dito e não dito emAntónio Jacinto. A pretensão não pas-sará por delimitar as fronteiras entre alinguagem conotativa e denotativa.Todavia, encontrar as dicotomias en-

tre o dito e o não dito por intermédiode leitura polissémica, ater-se-emosno dito como a ideia principal e o nãodito como o reforço implícito, até cer-to ponto, oposto da ideia principal.Contudo, a desenvoltura do nosso diá-logo poderá em alguns parágrafos as-sumir contornos imprevisíveis. A lin-guagem do sujeito poético é providade argúcia e desejo anafórico, eviden-ciada pelo uso constante da forma ver-

bal do verbo «querer» “eu queria es-crever-te uma carta amor/ (…) eu que-ria escrever-te uma carta amor/”. Au-sência do recalque, o contexto não oinibiu, dá prioridade a descoberta ilu-sória. Falamos em descoberta ilusóriacomo hipótese, o sujeito poético sin-gulariza a sua realidade, através dopronome pessoal «eu». Porém, estasingularidade no decurso do poemarepresenta a pluralidade do contexto “

(…) outra ela não tivesse merecimen-to…”. Retomemos à descoberta ilusó-ria, recriou o seu estado lírico em opo-sição à sua condição social. Sua pre-tensão não passaria para a praticabili-dade, muito por causa do analfabetis-mo real que encerra o corpo do poemae agudiza a sua intencionalidade “(…)que tu não sabes ler/ (…) não sei es-crever também”. O poema Carta DumContratado advém de um contexto

HAMILTON VENOKANYA

Desenho de Paulo Kussi

LETRAS | 5Cultura | 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018cinzento da história de Angola. Porém,numa sinopse do sujeito poético, pelasingularidade discursiva, pela estéticae expressividade denota ser alguémemocionalmente estável, em momen-to algum faz referência à lágrima, àmorte, ao álcool, e de uma cosmovisãooptimista sobre o mundo tangível. Va-le recorrer à inserção do poema no seucontexto para melhor bebê-lo, assimsendo, o sujeito poético é o reflexo dasua capacidade de absolvição dasmais e diferentes questões do seu pro-cesso sócio-histórico coercivo ou arbi-trário. Francisco Soares (2007:249),refere-se ao contexto como sendo «tu-do o que rodeia um dado texto (…)».Nesta ordem de ideia, não nos desvia-remos do curso normal do postuladoem epígrafe, talvez alargar o conteúdolexical e semântico. Ora bem, para oconceito de contexto, entendemo-locomo uma dialéctica temporal, parte-se do pressuposto da dinâmica exis-tencial, em que determinados contex-tos evaporam dando lugares a outros.O mesmo envolve ruptura, a não-acei-tação dos valores estéticos, culturais epolíticos vigentes e envolve-se numarotina de choque entre o estático e amudança. António Jacinto, poeta an-golano, um dos mais representativosda sua época, com a sua poesia de pro-testo, apalpou as pontas do sol numdia 28 de um mês chamado Setembro,num ano memorável de 1924, nas ter-ras da Kianda. Transferiu-se para oreino da eternidade no dia 23 de Junhode 1991, nas terras do Alentejo. Já foiMinistro da Educação e Cultura, istoapós a independência de Angola.Membro Co-Fundador da União dosEscritores Angolanos. Em sua home-nagem foi instituído o prémio, queacontece anualmente, António jacin-to. Para o ensaísta, angolano, JorgeMacedo (2010:33), «a poética angola-na ramifica-se em sentimentalista esimbolista». A referida ramificaçãodeve-se aos factores sociopolíticos, aopatriotismo, ao nacionalismo, à de-núncia a opressão colonial e à negaçãoconstante da assimilação oxigenam aprodução poética de os escritores an-golanos. Há um binómio conceptual,em volta da poética: por um lado, é en-tendida como um conjunto de normase preceitos que ensinam e orientam opoeta na criação das suas obras, poroutro, é concebida como conhecimen-to teórico e sistemático sobre a poesia.Parte-se da produção poética, para ateorização literária. A palavra “contra-tado”, segundo o Dicionário de línguaportuguesa(2012:417)«Adj. Diz da-quele que trabalha sob contrato».Nu-ma leitura reconstrutiva, atemo-nos àpalavra em negrito, contratado, o quesubjaz uma mescla de repudias à con-juntura do contexto. O sujeito poéticoé contra a colonização, contra o anal-fabetismo real, contra o retrocesso,contra o ceptismo lírico. Aliás, é con-tundente realçar que a forma verbaldo verbo «querer» expõe também a in-timidade de forma metafórica “euqueria (…) /uma carta de confidênciasíntimas (…)”. Carta Dum Contratado éum texto convidativo ao nível dos re-

cursos expressivos. Por exemplo, as-siste-se uma coabitação de metáforasem um só verso «dos teus lábios verme-lhos como tacula/ dos teus cabelos ne-gros como dilôa». Na primeira instânciatemos uma analogia, comparação decoisas diferentes que apresentam se-melhanças, segundo temos a compara-ção como tal com partícula “como”. Hátambém um certo dualismo poético, en-tre o inteligível e o sensível, em cartadum contratado, «(…) /uma carta quedissesse deste anseio de te ver/ destereceio de te perder/”», o que torna dua-lista, o verso referenciado, são as pala-vras “anseio e receio”. Por dualismo, se-gundo a corrente filosófica, doutrinaque admite dois elementos irredutíveise independentes. Diz-nos, FernandoPessoa (2007:392) «todas as cartas deamor são ridículas/ Não seriam cartasde amor se não fossem ridículas». Por seu turno, Alice Amaro (2007:112),refere-se à carta como sendo «um texto es-crito, cujas linguagem e estrutura depen-

dem da intenção do remetente».Relativa-mente ao dito, veremos um certo grau decumplicidade entre o sujeito poético ea destinatária “(…) e dos teus carinhosque maiores não encontrei por aí”.Ou-tro sim, no mesmo verso o não dito. Defrisar que o não dito é o que se diz semser dito, por exemplo, se encontrasseainda manifestaria a intenção epísto-la? Porém, implicitamente, diz que te-ve outras raparigas na roça, nesta im-plicatura reconhece que nenhuma ou-tra o fez esquecer a destinatária quedeixara em sua aldeia. Outro não dito“(…) uma carta que em todo Kilombooutra ela não tivesse merecimento”. Sepor lado, é demonstração clara do egodo sujeito poético, por outro denúnciaa desagregação familiar. Abre algumasacepções que denotam que a destina-tária era bastante cobiçada. Outro dia-fragma dicotómico, entre o dito e nãodito “(…) que a lesses sem a frieza doesquecimento/ que a escondesses depapai Bombo/ que a sonegasse a ma-

mãe Kieza”. Ficou descrito, subjectiva-mente, numa leitura conjuntural tra-tar-se de uma família conservadora,em que o pai Bombo é o braço de ferro,e a mamãe Kieza a meiga, não se tratade estereotipar, apenas recepção esté-tica. No campo literário, a carta é umgénero epistolar, na sua historiografiainserem-se as cartas de Pêro Vaz deCaminha e as de Eça de Queiroz. Opoeta diante da realidade ou reassu-me uma atitude pragmática ou reco-lhe-se num compartimento de perple-xidade. Por isso, alerta-nos EugénioFerreira(1975:24)«todo e qualqueracto individual se integra numa sérieestruturada e complexa de actos hu-manos dispersos no tempo e no espa-ço».Assim sendo, O dito e o não dito naCarta Dum Contratado em António Ja-cinto decorrem num espaço temporalmarcado pela colonização e a luta pelaindependência. Nesta singularidade,assiste-se também a presença de an-troponímia, toponímia. Há impres-sões de recursos semânticos, concre-tamente a personificação, “(…) umacarta que os cajus e cafeeiros/ que ashienas e palancas/que bagres e jaca-rés pudessem entender/(…)os bichose plantas compadecidos de nossopungente sofrer”.Realce para a solida-riedade hipálage “as palavras magoa-das da minha carta”. Não se descartaas impressões da causalidade“ (…)que recordasse nossos dias na capopa/ nossas noites perdidas no capim/que recordasse a sombra que nos caíados jambos/ o luar que se coava daspalmeiras sem fim/ que recordasse aloucura da nossa paixão (…)”.Porém,conclui, Hume cit. por Vinicius de Fi-gueiredo (2010:21) “a causalidadenão é mais que uma expectativa quepossui sua origem em um sentimentogerado pelo hábito”. Está provido decausalidade, em função da presençada forma verbal do verbo «recordar».Em forma de repto, e não de conclu-são, o dito compreende o estadoconsciente do sujeito poético, o nãodito estado inconsciente. Por toda co-municação estar aberta às novas eoutras reflexões, não terminamos,mas ficamos por aqui.

António Jacinto

«Contos no Fogo Cruzado A Sul», deJonuel Gonçalves é um livro elegante. Éelegante porque é um livrinho de cin-tura fina. Tem uma cinturinha de 12centímetros, por uma altura de pernade 18 centímetros, deliciosas medidasque contêm um corpinho de 88 pági-nas. Ora isso faz, como é bom de ver,um corpinho de livro a que apetecemeter a mão e afagar. Eu não sei se o autor e o editor, aPerfil Criativo Edições, estão deacordo com esta minha opção de gé-nero, ao feminizar estes contos de fo-go cruzado. Mas eu acho que sim, queeste é um livro feminino, e não só pe-la delicadeza e elegância do objecto,que é portátil e táctil. «Contos no Fo-go Cruzado a Sul» não é de um femi-nino-objecto, é de uma feminilidadeinterventiva, que pode mesmo ser le-tal. Mas isso é assunto que reservo lámais para diante.Vamos então despir, peça a peça,estes seis “Contos” de Jonuel Gonçal-ves. Antes há uma dedicatória a umrio, o Kunene, que devia ser, como to-dos os rios, um rio de vida, mas que,sem deixar de ser um rio de vida, foi,por causa das guerras que sabemos,um rio que assistiu a milhares demortes. Ao rio, aos vivos e aos mortos,Jonuel presta-lhes tributo.A essa vénia, segue-se um aviso derodapé e o autor informa-nos de queestes contos são uma espécie de obraem progresso. Foram publicados emAngola e são agora republicados, unscom ligeiras modificações, outros comalterações profundas. Eu li este avisodepois de ter já lido os contos e issodeu-me, como dará a muitos leitores,uma satisfação profunda. É que nestescontos há personagens e há histórias,vidas diria, que ficam em aberto e que,quem sabe, numa reedição, aparecerãoacrescentados, cumprindo a esperançaque nalguns se anuncia, ou contrarian-do o fatal desespero que noutros se es-pelha. Só peço ao Jonuel que não res-suscite dois ou três dos mortos quemorrem nestes contos. São mortos ma-tados que o nosso sentido moral diriaque foram muito bem matados. Erainevitável matá-los. Deixemo-los ficarquietos, que não é bom certos mortosandarem a mexer-se.Viramos a página e encontramos anota de introdução. A nota de intro-dução expande a dedicatória ao Kune-ne. É uma nota na primeira pessoa,quase um poema, lírica evocação doscactos que na estação das chuvas o riocobre para, corridas depois as águas,voltar a revelar. Do que se fala nessequase poema é de um olhar, do olhar

dos cactos que contemplam tudo oque os rodeia e olham fixamente parao nosso autor. Podemos sorrir desseolhar, sorriso que, aliás, Jonuel Gon-çalves aceita ou pede aos seus leito-res, mas esse olhar tão humano doscactos é o olhar que preside e que ba-liza este livro. Os seis contos que se seguem sãocontos que têm olhos. Têm olhos decacto e o leitor vai ter de caminhar en-tre esses olhares acerados. Se cami-nhar com cuidado, e como promete Jo-nuel Gonçalves, não se pica. São olharesque revelam cenários carregados de vi-da, com tudo o que a vida tem, a come-çar por esse fundo de pobreza, de ca-tástrofe, de rumor de guerra, de rumorde bandidagem, de rumor de seques-tro, de rumor da fome.Pensarão alguns: «Bolas, se é paraisso, para um neo-neo-realismo, mes-mo tintado a Cruzeiro do Sul, para es-sa missa já dei.» E eu não podia estarmais de acordo e acabava aqui a mi-nha intervenção. Mas o que acontece

é que Jonuel, sobre esse cenário cons-trói narrativas de vida, personagensactivas que, nos interstícios do caos,constroem ironia, prazer e esperança.Sobretudo as mulheres de JonuelGonçalves. E não sei se é por decisãode Jonuel Gonçalves, se é por imposi-ção das mulheres a que Jonuel não po-de fugir, essas narrativas de ironia,prazer e esperança em dias e cenáriosde angústia, são sempre narrativasem aberto, a narrativa em aberto queé uma pessoa estar viva.Mas vamos agora ao concreto dosseis contos. Já vimos que há sempreum cenário de fundo de algum conflito.São cenários de risco por serem cená-rios de conflito, seja esse conflito umaguerra ou a instabilidade social deuma favela, de um bidonville, de ummusseque. E depois, será que cadaconto conta um conto e vai cada contoà sua vida sem ter nada que ver com avida dos outros contos?Li os contos duas vezes, com muitogosto e exaltação, e já a discutir com ca-

da uma das personagens, e entendo quehá duas constantes que ligam os seis. Em todos os contos nos deparamoscom uma situação extrema, quase limi-te com que as personagens são confron-tadas e em todos os contos há uma cenade amor, de sexo – ou melhor de muitobom sexo feito com amor ou que des-camba para o amor. Duas constantes, asituação extrema e o amor, portanto.É este o retrato da vida humana queJonuel Gonçalves nos dá. A vida é equi-librista e circense. Um ser humanotem de saber andar no arame, tem desaber equilibrar-se, não cair nem mes-mo com o mais rude golpe, tirar pro-veito do mais efémero momento emque a humanidade de outro ser huma-no lhe é oferecida.No primeiro conto, «Marcação cer-rada como na grande área» (grande tí-tulo), Daniel é despedido e passa fome.É essa a situação extrema - «E agoravou comer o quê?» pergunta-se Daniel.E é Clarisse, a amiga, que vendo-o caído- «Ele pifou!», diz ela – o salva. Dá-lhe decomer e dá-lhe a comer a asa tatuadaque ela tem na coxa, e que eu queroimaginar, embora o Jonuel não diga,que é na face interna dessa tão humanae calorosa coxa.No segundo conto, «Mogadiscio Reg-gae» (outro belo título, Jonuel!) tudo éextremo. É extrema a relação de P, umhomem, com R, uma mulher islâmicacasada e em fuga. É tão extrema a situa-ção, que só os conhecemos por uma ini-cial dos seus nomes. É extremo o cená-rio de violência onde vivem. E é extre-ma uma situação de violação a que Rescapa, numa afirmação física decidi-da, apontando uma arma à cabeça filhoda puta de dois violadores. E o que osredime, o que redime o homem P e amulher R, é o amor, esse sexo que fazemno quarto onde se escondem dos vizi-nhos – «Vizinhança tem olho de lince»,avisa-nosJonuel. Neste segundo contoe pela segunda vez, vemos que o sexonos contos de Jonuel é bom, consegui-do, pleno, participado e participativo –numa palavra, fisicamente feliz. E tembanho. Os banhos dos amantes são lon-gos, chegando mesmo a ameaçar oequilíbrio ecológico do planeta.O terceiro conto tem um título maismisterioso «Luanda na Rota do Con-dor». A situação extrema pode pare-cer-nos mais comezinha, mas está lá.Um verificador de carga de camiõesestá sem dinheiro na conta bancáriadevido a uma greve de bancários oudos próprios bancos. E tem de se des-locar a outra cidade, vivendo de expe-dientes durante alguns dias. Desse he-rói, que é o narrador do conto, rete-mos um ponto decisivo: adora cheirare, é claro, espera sempre cheirar mu-lher cheirosa. Na sua deambulação ele

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JONUEL GONÇALVES “CONTOS NO FOGO CRUZADO A SUL”

MANUEL S. FONSECA

O Reflexo da Natureza e Cultura em“A Praga” de Óscar Ribas: uma relação

entre sociedade e textualidade

IntroduçãoA visão pela qual “a natureza é tudo que existe” remete-nos avárias dimensões para a sua análise. Nesta conformidade,cria-se a relação de que tudo o que é feito está rodeado de rea-lidade natural. Neste pressuposto, podemos afirmar que o ho-mem é fruto da cultura, por estar ligado à natureza. A sua acçãonela, a natureza, resulta também em cultura; daí que a cultura étudo aquilo que o homem produz, tendo como elemento departida a natureza. Deste modo, podemos estabelecer uma si-militude entre natureza e cultura, dentro das manifestações eexperiências do homem. Falar do homem é fazer referência aum ser social que nasce, desenvolve e reproduz, alargando aespécie. O alargamento da espécie humana dá resultado àscomunidades que concomitantemente formam as socieda-des. Neste estudo, a nossa visão centra-se na relação entresociedade e textualidade, olhando para as marcas da natureza

e cultura entre os dois elementos e demonstrar as diversas ma-neiras de como a natureza e cultural circulam na sociedade.Como se sabe, em todas as manifestações, quer artísticas co-mo científicas, a natureza reflecte-se. Na obra “A Praga”, asmarcas da natureza e cultura entrelaçam-se num tom da afir-mação de identidade.A literatura é uma das formas que as sociedades utilizam parapartilhar os hábitos e costumes e todas as práticas sociais, po-líticas ou religiosas. Ela, para além desta particularidade, edu-ca e procura integrar os indivíduos na comunidade, capacitan-do-os em matérias de resolução dos conflitos comunitários.Analisar uma obra como A Praga, de acordo com a dimensãocultural e histórica que traz, é inevitavelmente fazer reviver umamemória colectiva. A função social, independente da vontadeou “da consciência dos autores e consumidores de literatura,decorre da própria natureza da obra, da sua inserção no uni-verso de valores culturais e do seu carácter de expressão, co-roada pela comunicação” (Amélia & De Holanda, 2006, p. 4).

LETRAS | 7Cultura | 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018encontra strippers e prostitutas, umaque foi violada por três brutamontes. Eencontra Luanda, uma mulher camio-nista, segura de si e que sabe muito bemo que quer. Mas o nosso herói dormecom Bia, a amiga a que recorre nessa ci-dade onde está sem dinheiro. Dormecom Bia, a amiga, e juntos sobem ao pa-raíso – pela oralidade, explica-nos Jo-nuel Gonçalves.«Na Fronteira» é o mais curto doscontos e é a excepção que confirma aregra: não há nele qualquer situaçãoextrema. Um homem, Nefu, na frontei-ra entre Angola e a Namíbia, trata de fa-zer as compras necessárias ao alemba-mento para se casar com Fina. E apro-veita a passagem pela Namíbia paradormir com outra mulher, Didi. Há umasubstancial diferença no sexo que fazcom Fina e com Didi. É que com Didi, hásempre o prazer de se banharem jun-tos depois. Com Fina, por ter ela de sairna brasa e não ser apanhada pelos pais,nunca teve esse momento que é, nahermenêutica da sexualidade de Jo-nuel Gonçalves, uma bênção dos céus, obanho dos amantes nus.«Luanda-Porto Príncipe, Ida e Vol-ta» é um conto relatado sobre a situa-ção extrema de um Haiti destruído,com o risco de sequestro e de vida,mesmo que se conduza um jipe daONU. O amor, o protagonista do contoencontra-o com Sophie, uma prostituta

a que chamam a «xoxota olímpica». Elaé surpreendente leitora de um velhopoeta haitiano resistente, RenéDepes-tre e, apesar da impossibilidade, o nos-so herói gostaria de se ter apaixonadopor ela. Sonha mesmo como os dois«seriam livres como aves selvagens, co-mo água da cachoeira ou como a brisa

que alisa os corpos e as areias».No último conto «Depois do Triatlo»vamos encontrar o protagonista em ca-sa, com gelo no joelho que magoou nu-ma queda a fazer atletismo. Ora issonão é uma situação extrema. O herói vi-ve com uma namorada que dança frevoe kuduro, o que também não releva co-

mo situação extrema, mesmo sabendoque a relação deles começou com umbeijaçobigbang. Dir-se-ia que não há,neste conto, situação extrema. Ou se-ja, não havia, até a namorada dele,Mari, entrar em casa e dizer: «Mateitrês filhos da puta». Disparou a frasesem outros preâmbulos e o olhar delepicou-se nesse cacto que era a mangada blusa dela rasgada. Três filhos daputa tinham tentado violá-la e a pisto-la que trazia escondida debaixo dablusa resolveu o problema. O banho,aqui, é regenerador. Limpa, sem re-morsos, o mal do assalto, a tentativade invasão física e moral.É isto que vos queria dizer. «Contosno Fogo Cruzado a Sul» é um livro quenos envolve em situações extremas. Jo-nuel Gonçalves, nómada, andarilho,cosmopolita – «sul-atlânticocosmopo-lita» reclama ele – aceita as situaçõesextremas e lida com elas, devolvendo aesse mundo o olhar com que olharamum dia os cactos do Kunene. Sabe, no fundo, que só o amor é re-dentor. E sabe que o amor no banho é,como toda a água cristalina, duplamen-te redentor. São contos já publicadosem Angola e que têm agora edição por-tuguesa. Um dos contos -" Na Frontei-ra" - foi publicado no " Cultura". A ses-são de lançamento decorreu na "CasaMocambo" estabelecimento com res-taurante africano e espaço cultural.

ESTÊVÃO LUDI

Jonuel Gonçalves sentado

A Natureza como Fonte de Inspiração da Realidade

Material No sentido geral, entende-se pornatureza a diversidade de ca-racteres exteriores que permi-tem a classificação de um ser ou de umacoisa numa determinada espécie ou ca-tegoria. Em todas as circunstâncias,avalia-se o carácter natural de tudo oque existe ao construir o estado mate-rial, que exterioriza o valor excêntrico.Tal como a arte da pintura e esculturado Renascimento nos séculos XV e XVI,com Botticelli, Miguel Ângelo, Leonar-do da Vinci, Donatello, Brunelleschi, ba-seada na beleza dos elementos do uni-verso, a natureza sempre foi fonte inspi-radora. Pois tudo quanto existe é obrado mundo exterior. Deste modo, a natu-reza é “o mundo exterior ao homem […]ou o sistema das leis que regem e expli-cam o conjunto do mundo exterior”(Costa et. al, 2014, p. 1169).Para projectar a imagem do mundonatural, o homem procura interiorizaras suas experiências e as suas acções.Como se sabe, o estado natural incorpo-ra a lei do seu fundamento, sem o qual, ohomem não cumpriria a estreita rela-ção entre si e a natureza. Neste âmbito,ele encontra-se entre o social e o natu-ral. Na mesma dialéctica, Lévi-Strauss(2009, p. 17) afirma que o homem é umser biológico “ao mesmo tempo que umindividuo social. Entre as respostas quedá às citações exteriores ou interioresalgumas dependem inteiramente desua natureza, outras de sua condição”.Não se pode estabelecer um sistema bi-nário válido entre a variável sim e o não,quando se pretende determinar a suafronteira. Senão mesmo, nestes casos,“é anulada a pretensa distinção pela se-paração binária entre homem e nature-za […] o homem, já por via do seu corpocomo primeira mídia, não pode conti-nuar a ser visto como uma realidadeindependente do mundo natural” (Pa-xe, 2015, p. 187). Independentementedo lugar, o homem é e estará sempreindissociável da natureza; é dela queconsegue materializar os planos traça-dos; é nela que tudo é realizado e ouconcretizado. Daí a inspiração unívocade tudo quanto é fruto do homem, tan-to na arte, na política, na religião comoem qualquer sector. Apesar de a natureza ser o conjuntode tudo quanto existe, a maneira comocada comunidade a encara é diferente.De igual modo, ela não se apresenta demaneira determinante e semelhanteem todas as sociedades ou em grupo deindivíduos. Em cada região, assim comoem cada período, a inspiração ou inter-pretação da natureza varia. Pode cons-tituir-se entre valores interiores do ta-lento pessoal ou valores exteriores domeio circundante. Por isso Dulley(2004, p. 16) entende que o significadoda natureza “não é o mesmo para osgrupos sociais de diferentes lugares eépocas na história”. Ela é pensada, a par-tir de relações sociais. Para se efectuaruma visão da acção do homem e da basenatural, Dulley (2004, p. 17) firma que a

arte seria a “habilidade da imitação danatureza, sem entretanto reproduzi-la,e a técnica uma forma de domínio sobrea natureza, sem entretanto reprodu-zi-la”. Portanto, a realidade material éuma inspiração da beleza da nature-za, recriada segundo o talento de ca-da um ou de cada sociedade. Mas a ac-ção só se realiza a partir da cultura ecom experiências culturais, como aseguir desenvolveremos.Natureza e CulturaA nossa abordagem, nesta parte dotrabalho, prende-se com os traços dis-tintivos que se podem consubstanciarao fazer menção à natureza e cultura. Oque tentamos levantar como reflexão,tendo como base a obra de Óscar Ribas,é, porém, a ideia segundo a qual a cultu-ra funcionaria sem reflexos da nature-za. Na verdade, os sistemas valorativosnas diversas concepções do mundo ma-terial constituem cultura, e esta repre-senta o modo como a comunidade localconcebe a natureza. Se esta proporçãocorresponder à dinâmica de toda a cria-ção humana e cultural, então comunga-mos com a ideia de Imbamba (2010, p.34), que “a cultura é tudo aquilo que ohomem cria, graças às suas faculdadesprivilegiadas que possui”. E, consequentemente, a natureza épensada naquilo que o homem procuracriar ou inovar para obter a cultura. As-sim, para Dulley (2004, p. 20), somenteo homem tem a capacidade de pensar“culturalmente (acumular e reflectirsobre conhecimentos), reforça-se a vi-

são de que ao se referir a ambiente, re-fere-se ao conjunto dos meios ambien-tes de todas as espécies, pensados e/ouconhecidos pelo sistema social humano”. Aqui, construímos uma relação in-trínseca entre os dois elementos, natu-reza e cultura, não no sentido de oposi-ção ou de hierarquia. Afinal nem um,nem outro aparece numa posição deprivilégio, embora a natureza sirva dearquétipo de toda a recriação. a cultura não pode ser consideradanem simplesmente justaposta, nemsimplesmente superposta à vida. Emcerto sentido substitui-se à vida, e emoutro sentido utiliza-a e a transformapara realizar uma síntese de nova or-dem. Se é relativamente fácil estabele-cer a distinção de princípio, a dificulda-de começa quando se quer realizar aanálise. Onde acaba a natureza? Ondecomeça a cultura? É possível concebervários meios de responder a esta duplaquestão. Mas todos mostraram-se atéagora singularmente decepcionantes(Lévi-Strauss, 2009, pp. 17-18). A interacção entre cultura e nature-za, segundo Wagner (2012, p. 178), nasua obra A Invenção da Cultura, é umadialéctica fruto da convenção que fre-quentemente continua a ser reinterpre-tada. “Porém, está constantemente per-dendo terreno, pois na medida que osefeitos da interpretação se tornam cadavez mais óbvios, a distinção essencial(Cultura versus natureza) que ela preci-pita sofre uma relativização cada vezmaior”. Wagner fala da efectivação dacapacidade tecnológica do homem; ao

criar máquinas com reflexo da nature-za, denominou “natureza Culturaliza-da”, e ao criar máquinas com uma capa-cidade poderosa, denominou “Culturanaturalizada”. Esta convivência da na-tureza e cultura, na tecnologia comoem outras áreas da ciência ou do sa-ber, é comum em todas as sociedades.Desta feita, pode-se dizer, conformeAlves (2015, p. 160), que “em todas aspartes geográficas do planeta, a natu-reza interfere na cultura”.As sociedades ou grupos sociais pro-curam os reflexos da sua realidade paratraduzir a natureza da sua cultura. Porisso a cultura de uma região é diferentede outra região, tudo porque, como járeferimos, a interpretação da naturezadifere de sociedade para a sociedade.Importa salientar que a natureza e ahistoricidade do homem, como assegu-ra Imbamba (2010, p. 30), “realizam-see manifestam-se na sua cultura. Por is-so, para que o homem seja autentica-mente homem, e não se confunda comos outros animais, deve saber criar, ava-liar, criticar e projectar uma cultura quetorne a vida sempre mais humana”. Se ohomem é o responsável pela criação dasua cultura, podemos reflectir sobre aquestão da valorização daquilo que ca-racteriza as comunidades. As atitudesou modos de viver são fruto das realida-des culturais que as sociedades criamao longo da sua convivência para inter-pretar a natureza. Com isto, podemos identificar tam-bém o espaço da natureza e cultura notexto literário, sendo fruto da criativi-dade humana. Estes textos são a almada invenção do homem a partir de expe-riências sociais. No entanto, não se pro-duz enquanto objecto de estudo semabertura com o mundo exterior, ima-nente e cristalizado, “mas sim comoconstante diálogo entre textos e cultu-ras, constituindo-se a literatura a par-tir de permanentes processos de reto-madas, empréstimos e trocas” (Alós,2006, p. 1). No texto ” A Praga”, a natu-reza e cultura fundamentam-se numarazão artística, voltada para a realida-de social de Angola.Textualidade: Construção de Relações entre os Objectos As concepções sobre a textualidaderequerem um espaço de comodidadeou de aceitação entre o meio envol-vente, onde o texto é produzido. Certa-mente, o texto não surge do nada, ele éum processo. A sua produção é resul-tado de situações concretas de inte-racção entre os indivíduos, durante asua comunicação. Na linguística, o termo texto começaa ser objecto de estudo a partir dos anossessenta, apresentando, desde já, umaoutra concepção da que era tida no seuuso corrente, anteriormente. A sua ori-gem é atribuída a Louis Hjelmslev, co-mo assegura Almeida (2011, p. 65),pois essa “guinada textual da linguísticacomeçou a ser registrada nos dicioná-rios lexicográficos da área”. Mas é com otrabalho de Peter Hartmann, apresen-tado em 1964, na Conferência de Cons-tança, que se começa com a perspectiva

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da linguística textual. A partir do traba-lho de Hartmann, conforme Oliveira et.al (2000, p. 63), o termo textualidadepassa a designar, precisamente, “umaestrutura bilateral que reúne, em simul-tâneo, aspectos da linguagem e da or-dem social. O texto aparece, então, comoa realização concreta da estrutura tex-tualidade, numa dada situação de comu-nicação”. Neste caso, o texto é o suporteou o papel e a textualidade, as disposi-ções da linguagem contida no texto, ouseja, o primeiro é o material e o segundoé a realização concreta do primeiro.Citando Roland Barthes, um dos au-tores determinantes para a concepção edifusão de uma noção literária de texto,Almeida (2011, p. 68) refere que:um texto não é feito de uma linha depalavras a produzir um sentido único,de certa maneira teológico (que seria a“mensagem” do Autor-Deus), mas umespaço de dimensões múltiplas onde secasam e se contestam escrituras varia-das, das quais nenhuma é original: otexto é um tecido de citações, saídas dosmil focos da cultura.A questão de textualidade é aponta-da tendo em conta alguns factores co-mo a situacionalidade, a informativi-dade, a intencionalidade, a aceitabili-dade, a intertextualidade, a coerênciae a coesão. De acordo com estes facto-res, na visão de Costa Val (1991), “otexto não é um simples produto, pelocontrário, é um processo. Este proces-so efectiva-se a partir da comunica-ção entre os indivíduos, quer de for-ma oral quer escrita”. Por outro lado,toda a manifestação verbal dá-se“sempre por meio de textos realiza-dos por algum género” Marcuschi(2008, p. 154). A construção de rela-ções dos objectos efectiva-se a partirdas proximidades dos modelos que associedades constroem. Os objectosdão o seu carácter material, configu-rando numa razão, que muitas vezesse encontra consolidada na estruturatextual. Marcuschi, ao posicionar otexto num paradigma vertical, sendoum processo, talvez sua intenção sejasituá-lo no seu universo de instru-mento comunicativo.Mais que uma ferramenta para atransmissão daquilo que as sociedadesdispõem para o bem comum, a relaçãoentre textualidade e os objectos tam-bém procura enaltecer a essência dosvalores artísticos. Estes elementos, se-gundo Paxe (2015, p. 194), “configu-ram as traduções textuais que tambémdevem ser entendidas como a formacomo os textos, nas suas diferentes re-lações vão superando as fronteiras egerando novos códigos”. Daí aferirmosa obrigatoriedade dos factos criadosconfinar com a natureza cultural. Qual-quer estudo dos objectos leva-nos, “emconsideração processos culturais e tec-nológicos, e as relações entre tais espa-ços alargam-se em ambientes comuni-cacionais complexos” (Dos Santos,2015, p. 98). Para Dos Santos (2015, pp.100-104), as realidades construídastraduzem novas técnicas “em modelosjá existentes, fixando-os – uma vez quese aprende os novos modos por pro-cessos de semelhança. Relacionar os

objectos, por mais próximos que este-jam, é dar complexidade aos processose às suas relações”. E o texto, neste caso,conforme Júnior (1999, p. 40), “consti-tui a unidade mínima da cultura”, en-quanto sistema operante complexo;para além de circular, nele, a linguagemda criação social, também circula acriação individual.Logo, com aquilo que Óscar Ribastraz como letra na obra em análise, po-demos perceber que a textualidade nãose constitui somente como um conjun-to ou somatório dos elementos. Pois, deforma particular, o texto é o “resultadode uma interacção de elementos e suaprojecção temporal” (Júnior, 1999, p.44). Os objectos, quer a nível linguísticocomo a nível da realidade social do con-

teúdo, formam uma similitude com otexto. Cada segmento forma uma rela-ção que resulta na construção de ideiacentral e secundária ao longo do texto.“A Praga”: Relação entre Sociedade e TextualidadeAnalisar qualquer obra de Óscar Ri-bas não é uma tarefa fácil, pela grande-za da estrutura e da linguagem que oautor utiliza nos seus textos. Ele é umdos exímios intelectuais da primeirageração que o país registou. A comple-xidade dos seus textos prende-se pelaqualidade imprimida em quase todasas suas obras, onde o Parnasianismocircula no seu interior. A posição que osprecursores da literatura angolana to-maram acabou por nutrir a veia dos de-mais. Mais que demonstrar a estética, apartir da literatura, os textos produzi-dos em qualquer sociedade procuramsempre evidenciar os hábitos e costu-mes. Não como o colonizador tentou

demonstrar, com a produção violentade textos etnocídios na década de 30,onde a imagem do negro era confinadacom a natureza selvagem. Óscar Ribasfoi um defensor da cultura angolana. Aocontrário de outros escritores com pen-dor nacionalista nas suas escritas, ele“privilegiou os elementos da tradição”(Laranjeira, 1995, p. 51). A sua formacrítica de encarar as vicissitudes do he-diondo momento febril levou-o a trans-por o volume do seu saber para a litera-tura. Desta maneira, Ribas estabelece-ria uma equidade entre o ocidente e onegro. Com esta visão, o ficcionista, co-mo sublinha Padilha (2011, p. 115), criao “propósito de fixar, pela escrita, o sa-ber ancestral negroafricano, sempreposto à margem pelo hegemónico sa-

ber branco-ocidental”. A sua entrega eatitude de difundir a beleza da tradiçãoda sua terra e o dever de salvaguardá-la,de forma geral, fizeram dele um esta-dista no campo da literatura. E paraatingir seu ápice, a experiência da natu-reza vai impulsioná-lo e os textos oraisirão preencher esta sagacidade. Como sabemos, em todos os casos,nenhum escritor escreve dispensando oleitor, a finalidade de qualquer texto éatingir o âmago do leitor. Para isso, a in-terculturalidade entre ambos deve sersólido e inequívoco. Com certeza, con-forme Segre (1999, p. 19), a natureza demensagem que o texto literário veicula édeterminada pelo “facto de o autor terestabelecido uma relação especial com o(s) destinatário (s), com a finalidade dese tornar emissor: uma relação do tipocultural nos seus conteúdos, pragmáticana sua finalidade”. O artista procura umalvo e um determinado contexto, para

que os seus objectivos sejam cumpridos;o auditor ou leitor “deseja que ele lhemostre determinado aspecto da realida-de” (Amélia & De Holanda, 2006, p. 54).De acordo com Padilha (2011, p. 117),o conto “A praga” “busca, em última ins-tância, adensar o componente ético dasações narrativas, filiando-se aos contosda tradição oral angolana e da africanade modo geral”, publicado em 1978 pelaUnião dos Escritores Angolanos. Subli-nha-se que a segunda edição é fruto daeditora das Letras em 2014. Pois “A Pra-ga” é um dos contos da obra “ Ecos da Mi-nha Terra”, publicada em 1952.“É tia, a sorte bateu-me à porta!” (Ri-bas, 2014, p. 9). É com esta enunciação,carregando um tom de animismo oualegórico, que se introduz a primeirapalavra das personagens na narrativa.A voz sumptuosa de Mussoco, uma daspersonagens protagonistas, dispensaqualquer caracterização nítida, olhan-do pelo mistério das forças ocultas quese verificou no desenrolar da narrativa.Numa história que envolve a Mussocoque terá apanhado uma quantidade dedinheiro, a Donana, dona do dinheiro,percorria às ruas à procura de quem te-ria apanhado, mas sem sucesso. A mu-lher, desesperada, vendo esgotadas asevidências, não lhe restou mais nada,senão recorrer aos espíritos. A respos-ta do poder sobrenatural acaba por to-mar conta de todas as pessoas envolvi-das no acto que, mesmo vivendo den-tro das regras da tradição, resolviam fe-char os olhos, guardando o dinheiro. Osegredo começa a revelar-se, quandoas mortes se evidenciam. A presença da natureza no texto é vi-sível; podemos observar a forma comoo autor faz associações a partir da reali-dade cultural, traduzidas em forma deinformação, assim como no seguintetrecho: “kia ngi kola... a ngi kuata... bu di-bebe... dia nguari (Sou azarenta... apa-nharam-me... numa armadilha... de per-diz!) - Turturinava de moradia próximauma rola” (2014, p. 9). Quando uma rolaturturina é porque aconteceu ou vaiacontecer alguma coisa. É uma realida-de da natureza transportada para a vi-vência social, e a partir deste elemento,cria-se mais uma realidade cultural. Opássaro é um animal, com uma imagemnatural que aparece para transmitir amensagem num universo humano, comcódigos identificados a partir do verboturturinar. A mesma associação de ima-gens naturais, ligadas aos pássaros,identificamo-la quando o narrador nosapresenta “kiê, kiê, kiê, kiu, ki tukila (Éteu, é teu, mas ainda se voltam contrati!) – cantava vibrantemente um passa-rito entrajado de cinzento com camisabranca, todo saracoteante num ramo demulemba” (2014, p, 11). O movimentode pássaro andar de um lugar para o ou-tro revela uma preocupação. Como vi-mos, o turturinar de uma rolha (pássa-ro) revela algum acontecimento; e o sa-racotear também, pode ser um pressá-gio. Ao folhearmos o interior das pági-nas, descobriremos que a praga actuaranaquela comunidade, e os pássarosapelavam, enquanto transmitiam amensagem, utilizando diversas textua-lidades: turturinar e saracotear.

LETRAS | 9Cultura | 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018

Óscar Ribas

O reconhecimento do trabalho deÓscar Ribas não é um mero acaso, aescolha dos elementos naturais, trans-formados numa linguagem artística,demonstra a sua mestria. É o caso douso de mimologismo, ao imitar o movi-mento dos olhos, quando estão fixosnuma direcção, uma textualidade pre-sente em quase todas as sociedades. Ainformação emitida revela-se pela in-terpretação de onomatopeia, onde oautor constrói uma relação social e tex-tual: “Neste mesmo instante – leco, leco,leco – os olhos no caminho, volto paracasa” (2014, p. 11). A vizinha que mur-murava, preocupada com a revelaçãodo mau momento prognosticado, asso-ciava também a natureza em sua volta,dizendo: Toma papagaio!... Mas quechuvada!... Por isso ontem – tatatatatá!-, estralejou bastante!” (2014, p. 17). ADonana, finalmente morreu também, eos seus gritos pelas ruas eram associa-dos ao papagaio. Aqui, observamosuma tríade, onde o pássaro, a chuva e aonomatopeia preenchem o espaço na-tural. E como resultado, o relâmpago,com estalo ou estouro.A natureza circula dentro deste con-to sob diversos aspectos. Um dos aspec-tos é representado sob a forma metafó-rica, “Ó coração de pedra, porque não terevelas?” (2014, p. 12). Entretanto, apedra é um elemento natural de umacomposição compacta e dura, compa-rada com a atitude do homem irreve-rente e de difícil cortesia. Enquanto adona de dinheiro clamava para quequem tivesse apanhado devolvesse, osilêncio indicava a natureza de uma pe-dra. Só quem não tem piedade seria ca-paz de se esconder, deixando todos empânico, segundo a reflexão de algumaspersonagens na obra.Entretanto, os elementos da nature-za participam na comunicação com di-versos suportes, nomeadamente visão,audição, olfacto ou tacto. Quando pro-nunciamos o nome de um determinadoobjecto, acabamos por relacionar o somou a imagem produzida com a realidadecultural. A partir do cérebro consegui-mos relacionar a imagem, ou o referen-te com a realidade existente na cultura,criando textualidade. Contudo, a natu-reza não é só exuberante, “como inter-fere constantemente na cultura, crian-do uma cenografia para campos e cida-des” (Alves, 2015, p. 160). Aqui, a tex-tualidade estabelece uma relação com asociedade. Afinal, os textos circulamdentro de uma comunidade, e inequivo-camente devem apresentar a vivênciados membros comunitários.Para a questão particular da cultura,Segre (1999, p. 23) afirma:os significados textuais abandonama sua potencialidade, tornam-se signi-ficados em acção, apenas durante egraças à leitura... o leitor ritualiza sig-nificados já parcialmente entrados nacultura, e na sua cultura, através deleituras anteriores”. Para este casoconcreto, estamos diante de um cir-cuito funcional, onde o emissor, que éo escritor, procura traduzir os signifi-cados em imagens literárias. Da mes-ma maneira, o leitor, que é o consumi-dor, capta os mesmos significados, de

acordo com o nível de conhecimentoadquirido a partir da cultura.Mas há casos em que o leitor não per-tence a este espaço cultural, às vezesnão domina os códigos de comunica-ção, no caso de um leigo e de “umacriança, ainda que pertençam a este es-paço cultural porque não dominam estesistema de comunicação; olham para apeça como um simples cenário de ilus-tração” (Paxe, 2009, p. 51). As realida-des culturais que o conto traz começama revelar-se logo no início: “Esfregavaos dentes com moinha de carvão comsal” (2014, p. 9). Neste caso, os frag-mentos reduzidos a pó de madeira oulenha servem como pepsodente paraesfregar nos dentes, uma prática cultu-ral nas áreas rurais.Mais adiante, encontramos a expres-são: “Vou cubar! Vejam lá, não se quei-xem depois...” (2014, p. 12). Cubar vemde kuba, praguejar, enfeitiçar. Geral-mente, nas comunidades, uma práticahabitual entre alguns povos no país,quando num assunto ou conflito não seencontre resolução, geralmente, háquem utilize outros caminhos para adevida justiça. E a praga é uma das viasutilizadas, demonstrando-se comouma prática cultural. E para concreti-zar o plano de “cubamento”, a Donanadesloca-se às terras do Ambriz à pro-cura de um quimbanda: “Venho tercom os anciãos e antepassados. Queroque mandes os jimbambi a quemachou um dinheiro que perdi” (2014,p. 15). Neste caso, jimbambi represen-tam espíritos sobrenaturais, com po-der decisório sobre qualquer proble-ma. E é neles que Donana confia a suaprece, mas sob o aviso do kimbandaque agisse com cautela, pois o poderdos jimbambi era determinante.Tempos depois, a resposta não tar-dou, os óbitos começaram a ser uma rea-lidade, começando pela Mussoco que ti-nha apanhado o dinheiro, a própria donade dinheiro, por não ter cumprido com aprescrição do kimbanda, e iam morren-do um por um; finalmente a praga tinhatomado conta dos habitantes. Esta reali-dade era ignorada pelo ocidente que nãoacreditava nas forças sobrenaturais, co-mo afirma Padilha (2011, p. 118): o leitor atento encontra uma claraoposição entre uma lógica branco-oci-dental e uma outra negro-africana que,aliás, prevalece no texto. Assim, se asmortes são atribuídas, pelos médicos, auma “epidemia”, os quimbandas as con-sideram resultantes de “um bruxedo deexecrações que entrara em casa.Portanto, a natureza e cultura cir-culam nos textos literários, dando-nos a noção sobre como certas reali-dades se interligam aos elementossociais e a toda a vivência dos mem-bros. Identificamo-los a partir de di-versos aspectos e formas textuais.Óscar Ribas cria um cosmo linear,procurando inventariar a beleza na-tural e cultural de África, de forma ge-ral, e de Angola, de forma particular,tendo como suporte o texto literário. ConclusãoQuando falamos sobre a natureza ecultura buscamos dois elementos com

um suporte basilar na construção denormas e matrizes a nível das comuni-dades. A partir de novas formas de tec-nologia, a sociedade pode aproveitarincluir elementos textuais que tradu-zam a cultura. Ela, a cultura, não é confi-nada para um ângulo particular, comose pensa, pelo contrário, está presenteem todas as manifestações sociais. Den-tro do texto literário, a cultura e nature-za circulam, estabelecendo uma pari-dade com a sociedade, onde o texto éproduzido. Cada efeito material vai-seemigrando nos diferentes suportes. En-tretanto, a natureza, cultura e textuali-dade interligam-se, dando a sua visibili-dade na sociedade, como espaço físicoonde o homem é o herói.Óscar Ribas consegue atravessar assuas limitações e penetrar no cosmo,buscando a imagem real que reflecte amaneira do negro angolano. Com umalinguagem típica de conhecedor das le-tras, o autor critica, educa e ironiza, como propósito de despertar o leitor.____________________________referências BibliográficasAlmeida, J. (2011), Texto e Textualida-

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10 | letras 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018 | Cultura

Na sua sétima edição, o Salãode Arte Contemporânea Cu-bana (SACC) teve como temaUm Ensaio de Colaboração, pressu-posto ideal para a apresentação doDossier Luanda, um dos projetoscom maior número de atividades. ASACC, que é celebrada numa periodi-cidade bienal na maior das Antilhas,foi inaugurada em 27 de Outubro de2017 e encerrou suas manifestaçõesem 20 de Janeiro de 2018.Após três anos de permanência emAngola, como colaboradores da cor-poração cubana "Antillana Exportado-ra" para ensinar no Instituto Superiorde Artes daquele país, o acúmulo deexperiências e material audiovisualacumulado dará trabalho por um bomtempo. Por enquanto, antes que man-teiga esfrie, decidimos mostrar as im-pressões gerais do trabalho que fize-mos em Luanda, a capital, durante es-se período. Foi assim que surgiu esteDossier, defendido por aqueles quecolaboram mais estreitamente com ainstituição africana recentementecriada. Anamely Ramos González, es-pecialista em teoria da arte; MarcelaGarcía Olivera, atriz e directora de tea-tro; e quem escreve, artista visual;professores da Universidade das Ar-tes (ISA) em Cuba, fomos matricula-dos numa equipa espontânea de so-brevivência artística, com o objectivode unir forças em nossa investigaçãoda realidade cultural angolana. As li-mitações do nosso contrato, por ra-zões de segurança com o corpo docen-te cubano, exigiram pouco contactocom o meio ambiente, algo que, nonosso caso, indivíduos ambiciosos ecuriosos, era muito difícil de cumprir.A notável diferença na manifestaçãodos fenómenos culturais entre as duaslatitudes (Havana-Luanda) foi objecti-vo sistemático das nossas pesquisas,tentando criar um quadro de referên-cia adequado para a instrução e forma-ção dos estudantes angolanos, diga-mos que uma recontextualização deum vasto Programa de Estudos que es-se país africano havia comprado de Cu-ba. Sem muitas fronteiras metodológi-cas, os nossos projetos de trabalho fo-ram orientados pelas conjunções diá-rias impostas por essa realidade. Antesde passarem alguns meses, no início de2015, já estávamos abrindo o EstúdioAberto "Rascunhos", com performan-ces, audiovisual e outras modalidades

interactivas, no apartamento onde re-sidi durante a maior parte da nossa es-tadia, no cidade de Kilamba. Um anodepois, no mesmo estágio, atacamos"Gindungo Mesmo", outra exposiçãocom características semelhantes. Emambas as ocasiões, tivemos a participa-ção de outros artistas cubanos, comoGretel Marín, cineasta residente emLuanda, e o veterano fotógrafo (quaseangolano) Raúl Booz. Como uma san-duíche, entre essas duas exposições, ti-vemos a oportunidade de mostrar onosso trabalho junto com o mestre con-sagrado das artes plásticas angolanas,Francisco Van-Dúnem, no Centro Cul-tural Português (Instituto Camões),numa proposta que denominamos "Es-kebra". Algum tempo depois, Anamelye eu organizamos uma oficina de apre-ciação e criação audiovisual para estu-dantes do Instituto, em meados de2015. Enquanto isso, Marcela, com aajuda da própria Anamely, estava pre-parando a apresentação de Aproxi-mando Antígona, com estudantes deteatro. Numa ocasião, quase no meu re-gresso, eu estava na feliz necessidadede publicar um livro fabricado, que ti-nha o número impressionante de cin-quenta e cinco cópias. Foram quinzedias de trabalho intenso e concentrado,impressão anterior num negócio derua vietnamita. A apresentação deixoumais do que uma suspeita da improba-bilidade de tal loucura. Por sua parte,dotada de vasta experiência de actua-ção e de alguma direção, Marcela apre-sentou "O Anão na Garrafa", monólogode Abilio Estévez, que ela mesma inter-pretou e dirigiu para o público no Cir-cuito Internacional de Teatro, realiza-do em Agosto de 2016 em Luanda.A rápida assimilação e processa-mento de todas essas experiências, ar-tísticas e diárias, surgiram em jactosna primeira oportunidade que tive-mos para expressá-los. Dentro e forado tecto académico, o nosso trabalhose traduziu numa contínua carreira in-telectual de contribuições culturais efeedback. Na companhia de amigos en-volvidos em vários ramos da cultura an-golana, tivemos a oportunidade de co-nhecer vários espaços dedicados à pro-moção e divulgação das artes. Em mui-tas oportunidades conseguimos tirar anossa cabeça de Luanda, deslocando-nos para algumas províncias como Ben-go, Uíge, Malange, Benguela, Huíla,Huambo e Namibe. Teria sido aberran-te sair desse país sem conhecer suas in-terioridades, seus hábitos mais tradi-cionais, arcaicos ou tradicionais (é uma

nação com uma rica diversidade etno-gráfica e linguística). Em várias cidades,realizamos reuniões com alunos, artis-tas e diletantes, tanto no Lubango comono Namibe, oferecemos oficinas de cria-ção para fãs locais. Nem a paisagem nosescapou, as diferenças marcantes entrea costa do deserto e o planalto frio e hú-mido, a cachoeira de Kalandula, a Serrade Leba, o abismo de Tundavala e omonte Moco, o ponto mais alto de Ango-la, que escalamos arduamente nas pri-meiras horas de 2017.Para que tudo isso acontecesse, tivé-mos o apoio de muitos amigos, amigase irmãos, irmãs, dentre os quais gran-des intelectuais, profissionais e estu-

dantes como o mencionado FranciscoVan-Dúnem, José Luís Mendonca, JorgeGumbe, Gretel Marín, Raúl Booz, JoséTexeira, Marcelina Ribeiro, Fidel CastroEsparza, Frederico Ningi, Teresa Ma-teus e a sua equipa, Iolanda, Mário, En-manuel; Gilberto Dune Capitango, Már-cio de Sa Botelho, Mbando Luvumbo,Adilson Aguiar, Nelson Ndongala, Pau-lino Thiloia Lunono, Elias Alberto Sa-poco, Manuel Francisco J. da Costa,Adriano Cangombe, António Gonga,Mayembe e muitos outros que fariamuma longa lista de agradecimentos.Para eles e para todos os interessa-dos, em inúmeros sites digitais cuba-nos e estrangeiros, há informações

DOSSIER LUANDANO 7º. SALÃO DE ARTE CONTEMPORÂNEA CUBANA

A. FLORES, MARCELA GARCÍA E ANAMELY RAMOS

Uma experiência não declarada de intercâmbio cultural

ARTES | 11Cultura | 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018

AMILKAR FERIA FLORES

abundantes sobre as actividades de-senvolvidas durante o Salão, que nãopoderiam ser todas aquelas que que-ríamos mostrar, por razões óbvias detempo e espaço. Aqui está uma recon-tração do que aconteceu:- 27 de Outubro, 7:00 da tarde /Centro de Desenvolvimento das ArtesVisuais: "Carro de Mão", performance.A ação consistiu em preencher e en-terrar um carrinho de mão. - MarcelaGarcía Olivera, Anamely Ramos Gon-zález, Amilkar Feria Flores.- 9 de Novembro, 3:00 da tarde / Casada Poesia: "Antropologia Recreativa",leitura de literatura / literatura plástica-literária. Referências ao impacto doevento literário dos poemas fabricadospor seu autor, editado e corrigido por Jo-sé Luís Mendonca, apresentado no Insti-tuto Camoes. - Amilkar Feria Flores.- 17 de Novembro, 20h30 / sala de

teatro Hubert de Blanck: "O anão nagarrafa", encenação do trabalho deAbilio Estévez / Exposição de idéiassobre propostas cénicas desenvolvi-das em Angola. A temporada durouum mês. - Marcela García Olivera.- 28 de Novembro, 5:00 da tarde /Centro de Desenvolvimento de ArtesVisuais: "Exportações. Três documen-tários (2014-2017) ", apresentação deexperiências artístico-pedagógicas evestígios de testemunhos coletadosdurante a permanência em Angola. -Anamely Ramos González, MarcelaGarcía Olivera, Amilkar Feria Flores.- 8 de Dezembro, 5:00 da tarde / Ca-sa de África (Obrapía nº 157 e / San Ig-nacio y Mercaderes): "Regressar aÁfrica", exposição de Amilkar FeriaFlores. Permaneceu até 2 de Fevereirode 2018, de terça a sexta-feira, entre as9h30 e as 16h30.

Numa aula de iniciação à línguaKimbundu, o professor pediuque fosse comentada a relaçãoentre o Infinitivo, o Pretérito Mais-Que-Perfeito e os adjectivos dessa língua.NgumayaNgongo, o afamado chefe deturma, pediu permissão para intervir oque, de imediato, o professor anuiu.Caro professor! Prezados colegas!Não querendo ser muito longo,abreviarei considerações inerentes aotema e que, creio, deixareis de ter dú-vidas quanto a este baluarte do patri-mónio nacional… - Já vais começar..- gritou Mona Nge-ne do meio da sala, interrompido peloprofessor que ordenou que Ngu-mayaNgongo retomasse o assunto. –Obrigado, sr. Professor. Continuando,gostaria de dizer que a fonte da cons-trução do Tempo Pretérito Mais-Que-Perfeito e adjectivos inerentes, na lín-gua Kimbundu é o INFINITIVO. Assim,se considerarmos o infinitivo KUTU-MINA (ordenar, impor,….), a sua passa-gem para a forma adjectiva requereque se conjugue o referido verbo noTempo PMQP. Assim, a 1ª. Pess. Sing.Ngatumine (eu ordenara, mandara,impusera). 2ª. Pess. Sing. Watumine(tu ordenaras, mandaras, impuseras,….). 3ª. Pess. Sing. Watumine (ele orde-nara, mandara, impusera,….). 1ª. Pess.Pl. Etutwatumine (nós ordenáramos,mandáramos, impuséramos,…). 2ªpess. Pl. Enunwatumine (vós ordená-reis, mandáreis, impuséreis,…). 3ª.Pess. Pl. Eneatumine (eles ordenaram,

mandaram, impuseram,…). Analizan-do a estrutura da conjugação do PMQP,desde a 1ª pessoa do singular até à 3ª.Pess. Pl. , notamos a existência de umaCONSTANTE=ATUMINE. Atumine é oplural de MUTUMINE (aquele que or-dena, manda, impõe). NOTA ESSEN-CIAL. Num processo de auto-afirma-ção pode conjugar-se a acção adjectiva(KUKALA MUTUMINE= SER ORDE-NANTE,…..), deste modo: Assim, 1ª.Pess. Sing. emengimutumine (eu souaquele que manda, ordena, impõe). 2ª.Pess. Sing. eyeumutumine (tu és aque-le que manda, ordena, impõe,…). 3ª.

Pess. Sing. Mweneumutumine (ele éaquele que manda, ordena, impõe). 1ªpess. Pl. Etutwatumine (nós somosaqueles que mandam, ordenam, im-põem,…). 2ª. Pess.pl. Enunwatumine(vós sois aqueles que mandam, orde-nam, impõem,…). 3ª. Pess. Pl. Eneatu-mine (eles são aqueles que mandam,ordenam, impõem,…). Nota-se aquique na estrutura desta conjugaçãoexistem as constantes: mutumine (pa-ra a 1ª., 2ª e 3ª. Pess. Pl) + atumine (pa-ra a 1ª., 2ª e 3ª. Pess. Pl). Em síntese, osingular de um adjectivo inerente apessoas pode obter-se por substituiçãodo prefixo (K) e do sufixo (A) do INFI-NITIVO, pelo prefixo (M) e sufixo (E),como se segue: de (K)UTUMIN(A)=in-finitivo=mandar, ordenar, impor, vem:(M)UTUMIN(E)=aquele que manda,ordena, impõe. ATUMINE=aqueles quemandam, ordenam, impõem,…). Poroutro lado, para pluralização de umadjectivo referente a pessoas substi-tui-se o prefixo MU por A. A regra se-gundo a qual o plural de MU=A, tal co-mo em mutu=pessoa e atu=pessoas,talvez tenha sido derivada da hipóteseacima referenciada, da conjugação daacção adjectiva, neste caso, partindodo adjectivo singular MUTUMINE – fi-nalizou NgumayaNgongo, eufórico. -Generalizando, e em relação a pessoas,vem: A) Kubanga (fazer); mubange (fa-zedor); abange (fazedores). B) – Ku-sumba (comprar). Musumbe (compra-dor). Asumbe (compradores). C) – Ku-lenga (fugir). Mulenge (fugitivo). Alen-ge (fugitivos). E é tudo o que me aprazdizer, caro mestre. – Quem tem algo adizer sobre o assunto, que se levante eexponha – rematou o professor.

A. FLORES, MARCELA GARCÍA E ANAMELY RAMOS

MÁRIO PEREIRA

ELEMENTOS DE GRAMÁTICA DE KIMBUNDU DE KAKALUNGAA RELAÇÃO ENTRE O INFINITIVO, O IMPERATIVO,

O PRETÉRITO MAIS-QUE-PERFEITO E O ADJECTIVO DOS VERBOS NA LÍNGUA KIMBUNDU

12 | ARTES 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018 | Cultura

ADRIANO DE MELOUsar o figurativo e o abstracto pa-ra expressar a beleza e a diversi-dade das raízes culturais e daidentidade é um desafio ao qual a pinto-ra Grácia Ferreira se propôs e conseguiusuperar com a sua nova exposição, “Jor-nal Mural”, onde a experiência de anosassocia-se muito às inovações estéticas.Preocupada com o legado a sertransmitido para as gerações vindou-ras, a artista apresentou ao público,até ao passado dia 27, no Camões -Centro Cultural Português, uma pro-posta de arte que explora tanto a mu-dança como a tradição. Uma janela pa-ra ver dois mundos diferentes.Na exposição, que ficou patente du-rante 16 dias, a artista explora, comoresultado dos anos de experiência,duas técnicas completamente diferen-tes entre si, numa forma de demons-trar o desafio do artista moderno, quetem o repto de preservar sempre a suaidentidade, mas sem descurar “os ven-tos” do modernismo.A aposta em estilos diferentes re-presenta para Grácia Ferreira a possi-bilidade de explorar novos horizontese abrir “portas” a outras possibilida-des e tendências criativas aos futurosartistas. Para ela, que também só con-seguiu chegar até onde está porqueantes Don Sebas lhe mostrou os tri-lhos, é fundamental que os jovenscriadores tenham a capacidade de ex-plorar mais o mundo das artes, sem selimitar às barreiras estéticas.Em “Jornal Mural”, a artista estabe-lece também uma “ponte” entre as ar-tes plásticas e a literatura, com “troca-dilhos” de obras conhecidas das letrasangolanas. Grácia Ferreira vê a fusãocomo uma oportunidade de justificare provar a importância do surgimentode novas ideias nas artes e despertartambém o interesse e a curiosidade dopúblico para determinados livros.O feminino, a sociedade, ou o quoti-diano e seus desafios, são temas em fo-co na maioria dos quadros expostos,22 no total, a maioria trabalhada emtécnicas como acrílico e óleo sobre te-la e mista. Embora os temas sejammuito frequentes nas artes, GráciaFerreira deu um “toque” diferente aoseu trabalho ao introduzir a literatura.O objectivo, como esclareceu, é sim-ples: explorar, o máximo possível, asexpressões reais do quociente huma-no, mostrando a cada um dos visitan-tes da exposição, até onde o humanis-mo pode criar uma sociedade melhor.Como uma mulher sensível e atenta aoseu tempo, a artista fez um enfoque es-pecial aos assuntos do quotidiano emtoda a exposição.

Natural de Luanda, Grácia Ferreirafoi professora de Educação Visual ePlástica e Formação Manual e Politéc-nica, de 1998 a 2001. A sua carreira ar-tística começou quando o artista DonSebas, na altura seu vizinho na VilaAlice, viu potencial nela e a incentivoua entrar na escola das artes.Com o apoio do seu mentor, a artistaparticipou em diversas exposições co-lectivas. O seu primeiro trabalho indi-vidual, “Coisas e Tons do Quotidiano”,foi apresentado em 2000, no Camões,em Luanda. Na altura o trabalho reu-nia dois estilos: pintura e escultura.Além de ser membro da União Nacio-nal dos Artistas Plásticos, a artista inte-grou o “Movimento dos Nacionalistas”,onde se revelou uma mulher de fortesconvicções. Em 2015, ingressou no cur-so de Arquitectura, na Universidade Lu-sófona, Lisboa. Actualmente dedica amaior parte do seu tempo à pintura.

GRÁCIA FERREIRA REGRESSA A CASA

CULTURA E IDENTIDADE EM “JORNAL MURAL”

ARTES | 13Cultura | 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018

O MERCADO DE CABELOS E A TRANSFORMAÇÃO DO EMPREENDEDORISMO FEMININO NA ÁFRICA

Versáteis, muitas mulheres urba-nas da África trocam de cabelo comoquem troca de roupa. Muito além deum acessório, cabelo, “é personali-dade, é estilo de vida”, afirmam. Se-gundo elas, “vestir cabelos é poderser quem você quiser”, e questio-nam: “por que se limitar ao utilizarapenas o próprio cabelo se há umainfinidade de tipos, cores e tama-nhos para experimentar? “Dentre as que mais investem emapliques, perucas e tranças naturais,destacam-se as angolanas, sul-africa-nas e ganenses, segundo o site Smalls-tarter. Parte do produto vem de mer-cados locais, outra parte da Índia, Chi-na e Peru. No entanto, as madeixasbrasileiras fazem sucesso com a gran-de maioria das consumidoras.A demanda por cabelos é cada vezmais alta, e os negócios não param deprosperar. De olho no potencial do em-preendedorismo, cada vez mais africa-nas investem no mercado de cabelos –não só como consumidoras, mas comocriadoras de seu próprio negócio.No ano passado, Poppina Djemel-las começou a vender cabelo naturalbrasileiro para pagar seu aluguer emPort Elizabeth, África do Sul. Hoje, aestudante da República Democráticado Congo, de 21 anos, com muito en-tusiasmo nesse mercado em ascen-são, possui sua própria marca – TheDoll Factory – e vem arrebatandoclientes de diferentes países. Confiraabaixo uma entrevista exclusiva coma empresária:

como e por que você decidiu co-mercializar cabelos naturais?Eu percebi que, onde eu vivo, há umaalta demanda por cabelo e os salões debeleza não costumam oferecer cabelosde boa qualidade. Desde que conhecium fornecedor brasileiro, que vendecabelo de qualidade e com preço justo,eu percebi que vender cabelo naturalera a oportunidade para pagar minhascontas, minha comida e despesas.

Por que cabelo brasileiro?Eu sempre fui uma grande fã de ca-belo brasileiro! Desde pequena, eugostava de pegar a peruca da minhamãe (feita de cabelos brasileiros) e co-locar em mim. As mulheres da minhafamília amam o cabelo do Brasil por-que ele dura. Além disso, eu semprepratico desportos, e preciso de um ca-belo resistente, que dure. Pelo cabelobrasileiro, eu pago aproximadamente100 dólares e ele dura o ano todo. As

minhas clientes pensam da mesmaforma, por isso buscam essa qualida-de de cabelo. Em relação ao tipo, amaioria das clientes ainda compra ca-belo lisos. Mas há uma demanda porcabelos cacheados e crespos que nãopara de crescer. apesar de seu fornecedor ser

brasileiro, o cabelo é original doBrasil? É verdade que, por questõesde marketing, muitos cabelos “bra-sileiros” são na verdade da china?Meu produto é definitivamente bra-sileiro. Mas sim, há muitas marcas chi-nesas fazendo isso. Normalmente, es-sas marcas são da categoria 6A (dequalidade muito ruim), o que é incom-patível com a qualidade usual do cabe-lo que vem do Brasil. Quem conhececabelo sempre aconselha suas amigase clientes para nunca comprarem ca-belo dito “virgem”. Esses são justa-mente os cabelos quimicamente mo-dificados, ou até mesmo provenientesde pelo animal. Infelizmente, muitaspessoas não estão conscientes dessesdiferentes tipos de cabelo e acabamfazendo um péssimo negócio.

como é ter seu próprio negócio?Eu trabalhava como garçonete. Eraduro, muitas horas ininterruptas detrabalho. O meu curso (EngenhariaElétrica, na Nelson Mandela Metropo-litan University) é bem puxado e de-manda bastante dedicação. Era bemdifícil conciliar trabalho e faculdade. Aforma como eu trabalho agora é muitomais fácil: eu posso simplesmentesentar, falar com meu fornecedor pelotelefone, e o dinheiro entra. Eu possoinclusive estudar e conversar commeu fornecedor ao mesmo tempo.Com esse trabalho, eu posso adminis-trar meu tempo e meu espaço. Você acha que pode fazer dessenegócio sua profissão?Meu trabalho e minha graduaçãoacadémica são completamente dife-rentes, mas eu sinto que não posso de-pender somente do meu diploma. E ocabelo já se tornou minha fonte exclu-siva de renda. Normalmente, eu com-pro cabelo e espero o estoque acabar.Dura menos de um mês. Sabe por que?É de boa qualidade. Não tem como er-rar com a indústria de cabelo. É umproduto em demanda constante. Sevocê vende com bom custo-benefício,e suas habilidades de marketing estãoafiadas, não há como não fazer dinhei-ro. Há muitas mulheres por aqui que-rendo o cabelo mais bonito e mais ori-ginal que existe.

Você se considera uma empreen-dedora?Sim, eu dedico a maior parte domeu tempo pensando no que as pes-soas querem, criando algo para o queestá em demanda e pensando em co-mo eu posso alcançar isso e devolverpara as pessoas de uma forma acessí-vel. Hoje, meu negócio está crescendotanto que não estou dando conta sozi-nha. Logo precisarei de alguém paratrabalhar comigo. Isso é uma loucura,não caiu a ficha de que eu, vinda do in-terior do Congo, estou crescendo tan-to profissionalmente.

como é ser uma jovem empreen-dedora na áfrica?Eu tento alcançar minha liberdadepor meio do negócio de cabelos. NaÁfrica é muito difícil para pessoas ne-gras romperem com a pobreza e se-rem vencedoras. Esse negócio é sobreeu me inventar, e sobreviver na Áfricae no mundo como uma mulher. Nossageração está tentando fazer algo de di-ferente. Nós estamos quebrando a tra-dição da geração dos nossos avós. Es-tamos criando nossas próprias mar-cas, nossas próprias formas de fazeras coisas, e principalmente por meioda internet. Usamos Facebook, Insta-gram, Twitter diariamente. A Interneté parte do que somos hoje. Além disso,é mais fácil e menos custoso. Porexemplo, eu não preciso pagar por umlugar e meus clientes podem se comu-

nicar comigo a qualquer hora do dia.Se uma pessoa quer empreender, eudiria que esse é o caminho.Qual é a característica da mulher

africana empreendedora?Eu cresci no norte do Congo, em umcontexto de guerra. Eu vivia em um vi-larejo com a minha mãe chamado Bo-sobolo. Todos os dias, independentedo clima e de quaisquer outras condi-ções, a minha mãe ia até a cidade paravender peixe e vegetais no mercado. Eé essa a essência. É isso o que me moti-va a todo tempo: o quanto que ela jáarriscou a sua vida para voltar para ca-sa com o sustento da família. Esse es-pírito trabalhador é o que caracterizaa mulher empreendedora na África. É possível encontrar inovação

em espaços tradicionais como ossalões de beleza?Sim, os salões na África estão sem-pre em demanda. As mulheres quetrabalham lá são dedicadas, criativas esabem encontrar soluções para as coi-sas. O que podemos fazer para apro-veitar melhor essa criatividade e dedi-cação? A The Doll Factory promoverá,em Novembro ou Dezembro, um con-curso de design de cabelos onde vá-rios salões de Port Elizabeth se reuni-rão e compartilharão conhecimento,técnicas e experiências. Ainda há mui-to na indústria de cabelos para serdescoberto e explorado.

14 | Diálogo intercultural 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018 | Cultura

AFREAKA

Facto pouco conhecido fora das fronteiras africanas, um dos negócios mais lucrativos de todo o continenteé a compra e venda de cabelo. Só em 2014, a indústria movimentou em torno de 6 bilhões de dólares,

de acordo com dados da agência Reuters. E esse número não para de crescer.

Poppina

Ao contrário da maioria, era indi-ferente ao tempo, se dia de sol oude chuva tanto fazia, pouco im-portava, pois qualquer que fosse o esta-do renderiam incontáveis estórias.Poisestou numa terra muito fértil, que detão fértil dispensa rega, os factos e per-sonagens da cidade perdoam a incons-tância das águas da natureza e a incom-petência do homem em distribuí-las. Não assumi partidoem relação aotempo tal como os outrosdivididos en-tre os pró chuva purificadora e fiscali-zadora ou contra chuva condenadoraedestruidora, os pró sol de praia ou con-tra sol da catinga, os pró céu nublado desombra ou os contra céu nublado de-pressivo, os pró frio estímulo de pro-criação ou contra frio estimulante dapreguiça, os pró humidade ou os contrahumidade, os pró vento e os contravento, por estas bandas haviade quasetudo no clima.Os argumentos a funda-mentar cada uma das opções vão desdeos económicos, políticos aos culturaiscom direito afervorosospraticantes na-feiticista arte de amarrar chuvas em-brulhadas numa lenda mística.Toda a parafernália meteorológicaa mim era completamente irrelevan-te,apenas interessava o drama, a tra-gédia, a comédia, o romance ou o ter-ror que poderia oferecer. Neste aspec-to sim, estava acima do bem e do mal,era como que um deus menorzinhopara esta questão em particular. As-sim podia ser umabela manhã dealegre sol e suave vento;como,numcéu completamente coberto de nu-vens ameaçadorasanunciando diur-no breu, não mudaria o meu humor.Confesso sentir um secreto prazer nosfalhanços dos serviços de previsãometeorológica, porque expunham afrustração dos seus crentes, era o má-ximo de partido que tirava.De resto era de um cinismo com-pleto diante das lamúrias do caos emque a cidade se tornava com as chu-vas - se é que havia ordem alguma -,aos apelos dos desconsolados de tan-ta secura, as queixas das vítimas dedoenças causadas pela humidade doar, enfim todas estas preocupaçõespertenciam a um mundo a parte; pelomenos no que as causas diziam res-peito, porque o que queria mesmo, oque deseja profundamente, eram asdiversas reacções que a diversidadedo tempo propiciavam.Porém nunca escondi a razão detanto descaso: letras! Sentia-me o do-no das letras, sentia-me o proprietáriodas sílabas, o todo poderoso das pala-vras. Com as palavras construía uni-versos paralelos, desconstruía a reali-dade, fomentava lendas, narrava faça-nhas, os vocábulos eram como que pe-dra filosofal ou elixir da vida eterna. Aísim me importava, interessava doen-tiamente em descrever tudo o queexiste, existiu eexistirá, absolutamen-te tudo, sem limites, sem comprometi-

mento eo único desafioera deresgata-ra mágica da palavra como quando 'noprincípio era o verbo...'. A minha pala-vra era escrita e por isso mesmo mebastava a tinta e o papel, ferramentasdesconsideradas se do estado do tem-po se tratar, aqui não há espaço paracata-ventos, termómetro, anemóme-tro, barómetro ou pluviómetro.Fiz-me a via alheio, alheio não; ig-norando qualquer que fosseo tempo.Bastava-me observar e em seguida co-piar, criar ou recriar ocorrências ba-seadas ou não no temposomado clima,porém o clima era muito longo e leva-va-me a perder o fio de uma boa histó-ria, a menos que fizesse dele sinónimodo tempo. Ouvi um murmúrio sobrechover que desprezei. Depois senticerta brisa, e vislumbrei diminuiçãoda luz, ouvi ao longe nuvens colidireme produzirem trovões uns mais ensur-decedores que outros, assistidos porvalentes relâmpagos. Divisei chuva, oque não aqueceu nem arrefeceu; con-tinuei a caminhar pensando no lucroliterário deste fenómeno. Rapidamen-te pingos sucessivos precipitavam-sea cair fugidos de nuvens que abunda-vam o céu, chegadas ao chão faziamcorrentes de água, transformando ca-minhos em pequenos rios. Assistia atudo maravilhado, pensava sobretudona capacidade distinta da água de es-quivar os obstáculos procurando ca-minhos para junto do mar. Fantástico!Deleitado nesses pensamentos pro-curei condições para escrever, foi aíque me dei conta, do desespero daspessoas por estarem a molhar, da for-ça da chuva a demolir obras mal cons-truídas, das cansadas estradas a abri-rem crateras, na energia eléctrica a de-saparecer, era uma reacção em cadeiainteressantíssima, pensava eu. Procu-rei com os olhos algum abrigo! Triste-mente dei-me conta de que não pode-ria escrever a minha estória à chuva,tentei olhar para o céu, e de repente asgotas eram mais grossas e agressivas...Ao lado vislumbrei uma esplanada pa-receu-me ser o local ideal, lá chegadosentei-me não sem antes o garçomperguntar se ia consumir alguma coi-sa, uma vez que só podiam ser abriga-dos clientes, achei um autêntico dis-parate, mas não podia perder o foco,havia uma estória a ser escrita.Pelo menos era essa a intenção, es-crever... Olhei para a caneta não fun-cionava, e o papel inútil para a escrita,chamei rapidamente o garçom e fiz opedido: - uma caneta, papel A4 brancoe chá. O rapaz retrucou: - a caneta po-de-se ver, porém o único papel que te-mos para dar é o guardanapo, devechegar para escrever um lembrete.Aquelas palavras ressoavam-me nacabeça como golpes, sentia raiva da-quela estúpida esplanada que não ser-via papel em condições, vociferei aomoço sobre a importância de uma es-tória da chuva. Este indignado respon-

deu que devia dar-me por feliz, porperder apenas aestória, pois os outrosperdiam tudo o que tinham na vida; deseguida foi-se embora.Pensei no meu drama das letras en-sopadas, que foram com a água sabe-selá para onde? Provavelmente acompa-nhariam o seu ciclo e num dia qualquervoltariam em forma de nuvem, humi-dade ou gelo, sentia-me vazio pois a mi-nha estória ia a medida que toda aquelaágua caia, olhava triste para as pessoasao lado que dialogavam acerca das suasperdas, da despreparação da cidadepara tanta água de S. Pedro. Mas as chu-vas sempre existiram, não sei porque éque se tornaram numa tragédia. Commais alguns minutos de pesar, com-preendi a expressão dos pobres quenada tinham, mas que tudo perdiamnas intempéries do tempo.Fez-se luz e a indiferença não eramais minha, mas do tempo esse ma-landro que não queria saber da prepa-

ração de nada nem de ninguém, se po-bres ou ricos, vinha na forma de secaou de tempestade desinteressado senecessário ou não. O tempo esse simera o verdadeiro deus, e exigia do ho-mem adoração, reverência, poderosocomo só ele. Afinal ele o vilão da obrahumana, tão velho como a própriaTerra, ele o causador do bem e do mal,partícipe do gene da vida. Perdi a minha estória e vivia na hi-pocrisia do desconsolo do meu pró-prio drama, punido pelo pecado da in-diferença, podia ter sido mais solidá-rio. Foi-se a história, ficou-me o dramapessoal misturado com lama e des-truição de uma postura. Pobre de mime das minhas letras ensopadas.Maio - 2014

NOBRE CAWAIA

BARRA DO KWANZA |15Cultura | 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 2018LETRAS ENSOPADAS

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