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1

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR

ReitoRJos Jackson Coelho Sampaio

Vice-ReitoRHidelbrando dos Santos Soares

editoRa da UeceErasmo Miessa Ruiz

conselho editoRialAntnio Luciano Pontes

Eduardo Diatahy Bezerra de MenezesEmanuel ngelo da Rocha Fragoso

Francisco Horcio da Silva FrotaFrancisco Josnio Camelo Parente

Gisafran Nazareno Mota JucJos Ferreira Nunes

Liduina Farias Almeida da Costa

Lucili Grangeiro CortezLuiz Cruz LimaManfredo RamosMarcelo Gurgel Carlos da SilvaMarcony Silva CunhaMaria do Socorro Ferreira OsterneMaria Salete Bessa JorgeSilvia Maria Nbrega-Therrien

conselho consUltiVoAntnio Torres Montenegro | UFPE

Eliane P. Zamith Brito | FGVHomero Santiago | USPIeda Maria Alves | USP

Manuel Domingos Neto | UFF

Maria do Socorro Silva Arago | UFCMaria Lrida Callou de Arajo e Mendona | UNIFORPierre Salama | Universidade de Paris VIIIRomeu Gomes | FIOCRUZTlio Batista Franco | UFF

editoResDavid Barroso de Oliveira

Gustavo Bezerra do Nascimento CostaRuy de Carvalho Rodrigues Jr.Thiago Mota Fontenele e Silva

comisso editoRial:Antnio Rogrio Moreira

tila B. MonteiroDaniel F. Carvalho

Fabien P. LinsGustavo A. Ferreira

Jos Henrique A. de AzevedoLeonel OlmpioLuana Mara DiogoPaulo Marcelo S. BritoWilliam Mendes Damasceno

conselho editoRial:Ernani Chaves (UFPA)

Ivan Maia de Mello (UFBA)Jair Barboza (UFSC)

Jarlee Salviano (UFBA)Jos Olmpio Pimenta Neto (UFOP)

Leandro Chevitarese (UFRRJ)Luiz Felipe Sahd (UFC)

Luiz Orlandi (UNICAMP)Miguel Angel de Barrenechea (UNIRIO)Peter Pl Pelbart (PUC-SP)Roberto Machado (UFRJ)Rosa Maria Dias (UERJ)Sylvio Gadelha (UFC)Vilmar Debona (UFSM)

1a Edio

Fortaleza - CE

2017

NIETZSCHE-SCHOPENHAUER jornadas inspitas

Gustavo CostaThiago Mota

David BarrosoRuy de Carvalho

(orgs.)

NIETZSCHE-SCHOPENHAUER - jORNAdAS INSPITAS 2017 Copyright by Gustavo Costa, Thiago Mota, David Barroso e Ruy de Carvalho

Editora da UECE, em coedio com o Apoena Grupo de Estudos Schopenhauer-Nietzsche

Impresso no Brasil / Printed in BrazilEfetuado depsito legal na Biblioteca Nacional

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Editora da Universidade Estadual do Cear EdUECEAv. Dr. Silas Munguba, 1700 Campus do Itaperi Reitoria Fortaleza Cear

CEP: 60714-903 Tel: (085) 3101-9893www.uece.br/eduece E-mail: [email protected]

Editora filiada

Projeto Grfico e CapaGustavo B. do N. Costa

Projeto EditorialGrupo de Estudos Schopenhauer-Nietzsche

Editorao /desktop PublishingNarclio Lopes

Ilustrao da CapaJoaquin Torres Garcia (1874-1949). Amrica invertida (1943).

Reviso TcnicaEnoe Cristina Amorim B. Gomes; Jos Adriano Silva e Oliveira

Catalogao na publicao elaborada pela BibliotecriaLcia Oliveira CRB - 3/304

N677 Nietzsche - Schopenhauer: jornadas inspitas / Gustavo Costa...[et al.] (Org.). - Fortaleza : EdUECE, 2017. (Coleo apoena) 335 p. ISBN: 978-85-7826-556-4 1. Filosofia. 2. Poltica. 3. Tecnologias da informao. 4. Educao. I. Costa, Gustavo...[et al.]. 2. Ttulo. II. Srie.

CDD: 100

Apresentao

O livro ora apresentado, o sexto publicado pelo Apoena Grupo de Estudos Schopenhauer-Nietzsche, consolida em texto alguns dos principais trabalhos apresentados no VI, VII e VIII Encontros Nietzsche-Schopenhauer, organizados em Fortaleza (CE) entre os anos de 2014 e 2016. Assim como os anteriores, es-ses eventos contaram com a participao de renomados pesqui-sadores brasileiros e estrangeiros que se reuniram, a cada ano, em torno dos seguintes temas, respectivamente: Filosofia, polti-ca e tecnologia da informao; Literatura, educao e poltica; A provncia e o estrangeiro. Tais eventos concretizaram a proposta do Apoena, de expandir seu campo de discusses para alm do horizonte aberto pelo pensamento de Schopenhauer e Nietzsche, visando a uma insero mais aguda nos temas e grandes questes que se apresentam como desafios ao pensamento em nossa poca. essa nova agenda que se encontra presente nos escritos aqui trazidos a pblico. Boa leitura!

O Apoena Grupo de Estudos Schopenhauer-Nietzsche existe desde 2008, formado por pesquisadores, influenciados por Nietzsche e por Schopenhauer, cujos interesses transitam pe-los campos da filosofia, da cultura, das cincias, das artes e das tecnologias. Alm dos Encontros Nietzsche-Schopenhauer e dos livros publicados pela Coleo Apoena, o grupo edita semestral-mente a Lampejo, revista eletrnica de filosofia e cultura (ISSN: 2238-5274. http://revistalampejo.apoenafilosofia.org/).

Apresentao | 05

JORNADA 1: A PROvNciA e O estRANgeiRO As condies de possibilidade da experincia da hospitalidade | 09Daniel Omar Perez

Veias cordiais: a provncia e o estrangeiro | 41DaviD BarrOsO

Estudos ps-coloniais e filosofias da diferena: entre Bhabha e Deleuze | 54ThiagO mOTa

O humor moleque como potncia e representao ensaio sobre uma filosofia da molecagem | 64FranciscO secunDO Da silva neTO

Estrangeiro em prpria terra: do anti-Parmnides! | 76JOs henrique alexanDre De azeveDO

JORNADA 2: FilOsOFiA, POlticA e tecNOlOgiAs DA iNFORmAO Quatro cenas possveis para acessar e pensar o direito sob o prisma de uma ontologia histrica de ns mesmos | 101sylviO gaDelha

O refugiado como paradigma da reflexo jurdica | 118ODliO alves aguiar

Giorgio Agamben, Primo Levi, e aquilo que sobrevive a Auschwitz | 130luana mara DiOgO

Virada ciberntica, ps-humanismo e biopoltica | 147hOmerO lus alves De lima

A atividade hacker como modelo paradigmtico da nova forma de produo colaborativa | 166FranciscO William menDes DamascenO

Um diagnstico da positividade vigente: Byung-Chul e uma perspectiva transpassada | 186leOnel OlmPiO

sumriO

JORNADA 3: liteRAtuRA, eDucAO, POlticA Drama wagneriano: resolvendo lacunas filosficas na prtica e na educao esttica | 201siDnei De Oliveira

O teatro e a educao: elementos de tenso entre sentido e significado | 222raquel clia silva De vascOncelOs

Crise, filosofia e educao superior no Brasil | 247ivniO lOPes De azeveDO JniOr

Filosofia como metafsica: um preldio ao lugar do sujeito em Heidegger | 259gusTavO augusTO Da silva Ferreira

A filosofia poltica de Nietzsche na interseo entre moral e cultura | 283PaulO marcelO sOares BriTO

Nietzsche e a fisiologia. A vontade de poder e as foras | 298anTniO rOgriO mOreira

Hipcritas so os outros | 312gusTavO Bezerra DO n. cOsTa

jornada 1

A PROVNCIA E O ESTRANGEIRO

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AS CONDIES DE POSSIBILIDADE DA EXPERINCIA DA HOSPITALIDADE

Daniel Omar Perez1

O termo Hospitalidade refere ao ato de acolher, de receber um hspede em casa. Ser hospitaleiro significa hospedar bem quele que no da nossa famlia, do nosso crculo familiar mais ntimo, mais prximo. De acordo com as anotaes que encontra-mos nos escritos de Homero na Odisseia, h mais de 2.500 anos, a hospitalidade o modo no qual entramos em relao amigvel com o outro estranho. Naqueles textos gregos da antiguidade po-demos listar uma srie de regras da hospitalidade que consis-tem em: a chegada, o recebimento, se sentar confortavelmente, o oferecimento de bebida, a conversa, o banho, a comida, a troca de presentes e a despedida, s para citar alguns itens (REECE, 1993, p. 6-7). Tambm na tradio judaico-crist vemos que a hos-pitalidade no ocupa um lugar menor. Tanto na Tor quanto no Novo Testamento a acolhida com relao quele que vem de fora, mas tambm com relao ao menos favorecido (TEB, 1995). Um exemplo de acolhida pode se achar no Gnesis onde a chega-da sucedida do lavado dos ps, o alimento e o cuidado dos ani-mais do hspede. Assim, o visitante se encontra sob a proteo do dono da casa. A acolhida estaria fundada numa gratuidade do ato, mas que obriga aos participantes a realizar determinadas condutas. Exprime-se um dom e um dever gratuitos, esse o ges-to que Marcel Mauss (2013) elaborou conceitualmente no Ensaio sobre a Ddiva estudando o fenmeno do Potlatch do norte da Amrica e as comunidades da Polinsia no que se refere troca

1 UNICAMP / CNPq. E-mail: [email protected]

mailto:[email protected]

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jornadas inspitas: a provncia e o estrangeiro

de presentes, ao estabelecimento do intercmbio, a uma forma de contrato anterior retribuio equitativa.

Entre gregos, judeus ou cristos uma razovel amabilidade em relao com o outro e uma gratuidade do ato (como nas ceri-mnias de acolhida do norte da Amrica e da Polinsia) parece permear no sentido do termo hospitalidade. Na atualidade, um sentido mltiplo, ou melhor ainda, um leque de sentidos do termo hospitalidade considera aquilo que diz respeito ao gratuita de acolher indivduos vindos do estrangeiro ou grupos migratrios e tambm quilo que refere ao turismo e hotelaria. Hospitali-dade ento pode sugerir ddiva e tambm gesto em relao com aquele que no da casa. No primeiro caso, encontramos uma srie de trabalhos de antropologia e sociologia que nos permitem pensar os eventos. No segundo caso, encontramos estudos sobre gesto de negcios que nos oferecem tcnicas para lidar com a situao em termos administrativos. Existem vrios trabalhos nessas duas reas. Para podermos observar o estado atual das pesquisas podemos indicar os que consideramos mais significati-vos. Em Smith, V. L. org (1989) Host and Guests. The Anthropolo-gy of Tourism encontramos desde definies e tipificaes de tu-rismo at investigaes sobre a questo econmica e cultural do turismo em sociedades ditas complexas. Em Lockwood & Me-dlik org (2003) Turismo e hospitalidade no sculo XXI, o fenme-no do turismo analisado em estreita vinculao com o conceito de hospitalidade, propondo-se uma gesto da acolhida ao turista. Em Montandon, A. (Org.), O livro da Hospitalidade. Acolhida do estrangeiro na histria e nas culturas (2011), encontramos peque-nas monografias divididas nas seguintes temticas: definies do conceito de hospitalidade; a questo da hospitalidade nas diferen-tes civilizaes; o lugar, a instituio e o espao simblico onde acontece a experincia de hospitalidade; os mitos e as figuras do hspede e do hospedeiro; a filosofia e a poltica da hospitalidade. Como podemos notar, a hospitalidade como o gesto de acolher o

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AS CONDIES DE POSSIBILIDADE DA EXPERINCIA DA HOSPITALIDADE

outro no carece de classificao e anlise. Desde a antropologia, a sociologia ou a histria at a e as diferentes tcnicas de gesto em turismo tem tornado a hospitalidade objeto de estudo.

O exame das diferentes pesquisas nos permite afirmar que, tanto em um mbito quanto em outro da investigao, ha-bitual se deparar com a figura do homem gentil e hospitaleiro que prepara a chegada do outro e o recebe. Cortesia, respeito e boas maneiras so palavras que costumam estar associadas hospitalidade. Nessa experincia de hospitalidade o respeito diferena, o reconhecimento do outro como diferente, o respei-to diversidade, alteridade parecem estar na base do sentido do termo em questo. Entretanto, parte das mesmas pesquisas e a origem latina na expresso hospitalitas se bem contem (no duplo sentido da palavra de manter e limitar) a modalidade do acolhimento afetuoso tambm nos oferece outros elementos que nos permitem pensar as condies de possibilidade da prpria experincia da hospitalidade.

Dito de modo direto: Trata-se aqui de expor e examinar as condies de possibilidade de uma experincia de hospitalidade.

Hospitalidade e hostilidade possuem uma raiz comum. Hospes, hostis significa estranho, estrangeiro ou inimigo e evo-ca um sentimento de desconfiana ou hostilidade em relao ao outro diferente. O outro, estranho vem na minha casa, se aloja, se instala e encontra resguardo. Ao mesmo tempo em que re-cebido de modo familiar tambm est claro que por esse mesmo motivo ele no daqui, isto acontece no horizonte de um duplo e antittico sentimento de familiaridade e estranhamento. O hs-pede (o estranho) recebido e hospedado como se fosse da casa, mas no . Na linguagem da conversa cotidiana a frase sinta-se em casa significa tambm voc no daqui, a expresso seja bem-vindo alude significao voc de outro lugar. A apro-ximao que se procura com a expresso do recebimento impe

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ao mesmo tempo um distanciamento no mesmo enunciado. O exemplo do parasita pode ser til para recriar esse duplo jogo do hspede familiar-estranho. Em cada caso, somos hospedeiros de hspedes-parasitas que nos habitam durante a vida toda, so-mos habitados por algo estranho e familiar e o suportamos en-quanto no nos incomode. Talvez seja esse o modo de lidar com o estranho quando no queremos ou no podemos lidar com o que nos habita, com o que nos habitual, com o que obedece-mos habitualmente na nossa prpria casa mesmo a contragos-to. No sabemos exatamente quem so eles, mas esto aqui, na casa, como se fosse deles, mas apenas como se fosse. No entanto, a vida acontece permanentemente nesse familiar-estranhamento com o outro diferente, tanto no sentido daquele que vem de fora quanto em relao com aquilo que nos habita. Com Freud (1988) podemos asseverar ainda que nossa prpria identidade, aquela na qual nos reconhecemos s se afirma ou muda na experincia de familiar-estranhamento com o outro diferente. Assim, a expe-rincia da hospitalidade-hostilidade concretizada ento nesse domnio afetivo do que os alemes chamam de das Unheimliche e pode ser traduzido como o sinistro, lgubre, mas tambm em castelhano pode ser entendido como inquietante, incitador. O es-tranho nos incita porque de alguma forma nos incomoda quando o reconhecemos como perturbador de uma ordem quase natural, cotidiana, burocrtica. O estranho pode at funcionar como um espelho onde refletir minhas prprias condutas como estranhas ou como um modo de retornar a mim desde outra perspectiva. O ato de se confrontar ou ser confrontado pelo estranho pode me tornar estrangeiro em relao com meus prprios hbitos.

primeira vista o hspede (como o estranho) no daqui, no tem os nossos costumes e no fala a lngua da nossa famlia. Entretanto, acolhido por ns como se tivssemos uma espcie de dever moral, como se se tratasse de uma norma tica a ser observada por ns, mesmo quando aquele estranho no nos to

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AS CONDIES DE POSSIBILIDADE DA EXPERINCIA DA HOSPITALIDADE

familiar, mesmo quando pequenas ou grandes diferenas nos dis-tanciam de seu modo de ser.

Jacques Derrida tem razo quando lendo os dilogos pla-tnicos, especialmente a Apologia de Scrates, nos adverte sobre a questo da lngua do hospedeiro e do hspede. Escreve Derrida (2003, p. 15):

O estrangeiro , antes de tudo, estranho lngua do direito na qual est formulado o dever de hospitalidade (...). Ele deve pe-dir a hospitalidade numa lngua que, por definio no a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o rei, o senhor, o poder, a nao, o Estado, o pai, etc. Estes lhe impem a traduo em sua prpria ln-gua, e esta a primeira violncia. A questo da hospitalidade comea aqui pergunta Derrida: devemos pedir ao estrangeiro que nos compreenda, que fale nossa lngua, em todos os sentidos do termo, em todas as extenses possveis, antes e a fim de po-der acolh-lo entre ns? Se ele j falasse a nossa lngua, com tudo o que isso implica, se ns j compartilhssemos tudo o que se compartilha com uma lngua, o estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, a propsito dele, em asilo e em hospi-talidade?

A reflexo de Derrida nos sugere que o gesto da gentileza comearia com uma inquisio: voc fala a minha lngua? Isso porque o estranho deveria responder s seguintes perguntas: Quem voc ? Qual seu nome? Qual sua famlia, linhagem, tribo, ptria? Qual sua documentao? Em definitiva: Quem le-gitima voc? Aqui podemos perguntar para ns mesmos: E se o outro no for legitimado? E se se trata de um paria? Um paria

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merece ser acolhido? Deveramos ento comear pela inquisio como sendo a questo inicial na experincia da hospitalidade, do acolhimento do outro? Ou deveramos, j que se trataria de uma questo moral ou tica, de comear com uma atitude de escuta? Acaso poderamos comear de outra forma que no seja aquela?

Se o acolhimento da hospitalidade consiste no ato gratuito de receber o diferente, ser que o outro continua a ser outro quan-do responde a tudo aquilo que eu tambm respondo? Ou ser que essa operao no busca reconhecer no outro aquele que eu tambm sou? No acabaria acolhendo-me a mim mesmo e apa-gando o outro como diferente sob a forma de uma legislao (mo-ral, jurdica ou poltica) que me tem a mim mesmo como sujeito sem qualquer possibilidade de reconhecimento (e muito menos de acolhimento) do outro como diferente?

A leitura de Derrida sobre os textos platnicos mostra, por um lado, a acolhida do estrangeiro, mas no de qualquer es-trangeiro seno daquele que de boa famlia, que estrangeiro, mas tem um nome, tem um estatuto social, tem visto, por outro lado, tambm fala da chegada do brbaro, daquele que barbariza na linguagem, daquele que fala engraado por no dizer ridculo, com um sotaque estranho, que no entende direito aquilo que se diz ou se faz, nem mesmo na forma de gestos, que eu no entendo direito quando ele fala, faz gestos ou inclina seu corpo, que cheira diferente por no dizer feio, que come comidas esquisitas por no dizer desagradveis, que no tem estatuto social, que no tem documentao. Um o estrangeiro acolhido, o outro o deportado e entre ambos se tecem laos no apenas discursivos seno tam-bm e fundamentalmente afetivos. Um o estrangeiro reconhe-cido naquilo que eu mesmo posso ser na medida em que tambm sou sujeito de uma legislao, sou legitimado por algum poder institudo, tenho um pai institucional, o outro o irreconhecvel, s vezes no nem um nmero numa estatstica, quase uma

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mancha. A distino opera entre o hspede e o hostil, entre o hospedado e o hostilizado. Entre aquele que eu sou projetado no outro e o outro excludo na sua diferena.

E se no for assim? Algum poderia se aproveitar da boa vontade do hospedeiro. Algum poderia apenas vir a usufruir dos benefcios da hospitalidade ou corromper os costumes da casa como um parasita. Como identificar um bom hospede? Como dis-tinguir entre um hospede e um parasita? Como identificar um parasita? O dever de hospedar o outro tem limites ou deve se cor-rer o risco que comporta a experincia do estranho, do desconhe-cido, da alteridade, da diversidade, da diferena? Para no correr o risco no pouco comum encontrar casos onde algum trata-do enquanto estranho como parasita e a eliminao seu destino final. No pouco comum encontrar formas polticas e sociais onde a diferena, o diferente eliminado sistematicamente.

Entretanto, Lvinas (1988; 2009) prope correr o risco. Afirma que o outro no apenas um ser igual a mim, ou seme-lhante, mas o absolutamente outro e devo servir ao outro sem perguntar pelo nome. Prope uma relao assimtrica e no re-ciproca com o outro. Isso porque o outro que me constitui como tal. Segundo Lvinas, eu sou responsvel por ele porque ele me constitui enquanto tal. Note-se que Lvinas no diz: eu sou cul-pado pela situao do outro. Ele diz: eu sou responsvel porque a partir dessa responsabilidade que eu posso ser. No se trata de uma culpa moral, mas de uma responsabilidade tica. No sabe-mos quem o outro, se de boa famlia ou um brbaro e mesmo assim somos responsveis de acordo com Lvinas, na medida em que s assim que somos. Deste modo, a hospitalidade nos cons-titui no nosso ser. No podemos ser seno hospitaleiros.

Antes de Lvinas, Martin Buber (1994) tinha feito uma cr-tica centralidade do ego na modernidade propondo uma tica do eu-tu, onde deveramos deixar o monologismo da soberania

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do Eu para avanarmos no dialogismo, na intersubjetividade, na interdependncia. Partir da experincia dialgica do eu-tu deve ser a pedra de toque para nos pensar a ns mesmos. Ao final nin-gum nasce s nem se enterra a si mesmo. Jean-Paul Sartre (1994) tambm antes de Lvinas havia elaborado a ideia da responsabi-lidade sobre as consequncias sociais dos nossos prprios atos porque s podemos ser sendo seres sociais. Mas agora Lvinas prope ir alm com uma hospitalidade radical. Claro est que Lvinas no est falando apenas de direito e sim de tica. Da responsabilidade tica de uma tica da responsabilidade que se corresponde com a questo dos outros como estranhos, como es-trangeiros, dos estrangeiros que no sei se so sem documenta-o, daqueles que no sei se so legitimados por um pai institu-do, mas me constituem no cara a cara e dizem quem eu sou. Para Lvinas a hospitalidade , antes de tudo, um problema tico-teo-lgico, e no jurdico, que diz respeito minha prpria constitui-o enquanto ser. um dever tico no meramente normativo (LVINAS, 1988) que me constitui enquanto tal.

O primado do tico sobre o ontolgico que prope Lvinas pode ser entendido como essa relao no recproca e desigual com o outro radicalmente diferente que nos constitui no que cha-mamos de realidade. Assim, este sujeito ou eu que acolhe no ao semelhante, mas ao diferente- no senhor da casa seno assujei-tado a essa relao de servir ao outro. Em Lvinas, o acolhimento, a hospitalidade em relao com o outro diferente apela para as figuras bblicas do estrangeiro, mas tambm do pobre, do rfo e da viva. Poderamos dizer que se estamos falando de acolher o outro na sua diferena no apenas no que diz respeito ao lugar geogrfico, seno tambm ao lugar social, poltico, cultural ento o mandamento de servir incondicionalmente e sem interrogat-rios no apenas uma questo de caridade ou bons-costumes. Os olhos e a voz do outro me interpelam no cara a cara no mais ntimo do ser e me tornam responsvel pela responsabilidade do

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agir do outro.

Apesar de avanar para alm da crtica de Buber e de Sar-te, esta radicalidade na reflexo tica de Lvinas no parece al-canar sua realizao na poltica da vida cotidiana, no parece ser efetivada na pluralidade de matizes e modos de agir. Na entrevis-ta com Alain Finkielkraut, de 28/09/1982 (apud RABINOVICH, 2010, p. 144):

Frente pergunta inevitvel acerca de se para o israelense o outro no antes de tudo o palestino, Lvinas responde: Minha definio do outro totalmente distinta. O outro o prximo, no necessariamente o achegado, mas tambm no o vizinho. E nesse sentido, sendo para o outro, voc para o prximo. Porm, se o prximo ata-ca o outro prximo ou injusto com ele, o que devo fazer? Ali, a alteridade toma ou-tro carter, ali, na alteridade pode aparecer um inimigo, ou ao menos l se delineia o problema de saber quem tem razo e quem est equivocado, quem justo e quem in-justo. Tem gente que est equivocada.

Diante do outro como radicalmente outro Lvinas recua em seu mandato tico e prope as noes de achegado, prximo, vizinho e inimigo, de injusto e equivocado, e coloca o outro do outro lado da partilha. Assim, abandona o cara a cara e evoca a ideia de Estado, com exrcitos e armas, com capacidade dissuasi-va, com fora coercitiva. Acolher o outro diferente passa de uma questo tica e constitutiva a uma questo poltica e de defesa militar. O injusto e o equivocado podem ser o parasita e o Estado identificaria e resolveria o que fazer com o parasita. Este modo de responder questo colocada na entrevista nos pe outra vez no ponto de partida, a saber: podemos acolher a diferena e no

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apenas o igual a mim? Ns podemos realmente ser hospitaleiros com o dessemelhante, com aquele estranho na sua fala, no seu cheiro, nos seus gestos, nos seus movimentos, nas suas comidas, nas suas roupas, nos seus hbitos? Ou apelamos como quer Lvinas, para um Estado, com armas e exrcito? Retornamos ao trato do outro diferente como inimigo e o hostilizamos? Ou o acolheremos na diferena que apresenta? E se no podemos acolher o outro na sua diferena, ento como fica a constituio de ns mesmos como resultado do encontro com a alteridade? Acaso no suportamos seno aquilo que igual a ns? E se for assim ento o que fazemos com nossos prprios estranhamentos? Como lidamos com eles?

Nos termos de Derrida (2003), esse dever tico a obri-gao nica, sem atenuantes nem condicionantes que cada um de ns tem com o outro que o constitui, e leva necessariamente a uma hospitalidade pura ou incondicional. Para Derrida (2003) a hospitalidade pura ou incondicional no consiste nesse convite (Eu convido-o, eu dou-lhe as boas-vindas ao meu lar, sob a con-dio de que voc se adapte s leis e normas do meu territrio, de acordo com a minha linguagem, tradio, memria, etc.). A hospitalidade pura e incondicional, a hospitalidade em si, abre-se ou est aberta previamente para algum que no esperado nem convidado, para quem quer que chegue como um visitante abso-lutamente estranho, como um recm-chegado, no identificvel e imprevisvel, em suma, totalmente outro.

Se a questo no apenas receber o ideal do eu projetado no outro, minha imagem no espelho de Narciso e, portanto, exigir que o outro no aparea como diferente na minha casa ento a condio ltima da hospitalidade radica em acolher o inesperado. Esta hospitalidade pura e incondicionada no seria uma ideia ou ideal regulador seno algo inegavelmente real, to real quanto o totalmente outro, to real quanto o impensado. Segundo Derrida,

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isso no poderia ser resolvido nos termos da aplicao de uma regra moral ou jurdica porque reduziria o problema a um clculo cognitivo.

Derrida elabora sua noo de hospitalidade em escritos como o de Giovanna Borradori (2004) Filosofia em tempo de ter-ror. Dilogos com Habermas e Derrida ou em Jacques Derrida & Elisabeth Roundinesco (2004) De que amanh..., em Jacques Derrida (2003) Anne Duformantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade ou em (1997) Fuerza de ley. El fundamen-to mstico de la autoridad e em alguns outros seminrios e con-ferncias a partir de um longo debate com os textos de Lvinas e tambm com os textos de Kant. Com relao a Kant tematiza as noes de tolerncia, cosmopolitismo, ideia reguladora, dever moral, dever jurdico, autonomia do sujeito e crena religiosa nos limites da simples razo. Considero que um confronto entre as ideias de Derrida e os argumentos de Kant nos permitiria medir a dimenso do alcance de ambos no que se refere possibilidade de compreender as condies de possibilidade de uma experin-cia da hospitalidade. Isso o que pretendo ensaiar aqui, ao menos parcialmente avanando agora sobre os argumentos de Kant.

De acordo com Kant o problema da hospitalidade tambm no um problema cognitivo, moral, um problema prtico, mas no duplo sentido de se resolver tica e juridicamente. Utili-zando os termos de Derrida podemos dizer que Kant pede docu-mentao, a hospitalidade kantiana tem limites, mas est inseri-da dentro de uma reflexo mais ampla: por um lado, no mbito da legislao da liberdade interna e do respeito ao imperativo cate-grico; por outro lado, no mbito da legislao da liberdade exter-na e do respeito lei jurdica. A liberdade interna o mbito da relao da conscincia consigo mesma, isto , a tica. A liberdade externa e o mbito da minha conduta externa em relao com as condutas externas dos outros, isto , o direito. A hospitalidade no

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mbito da liberdade interna refere quilo que consideramos um dever tico. J a hospitalidade no mbito da liberdade externa refere quilo que consideramos um dever jurdico. Embora ti-co e jurdico sejam diferentes um no pode contradizer o outro. Desde o ponto de vista da razo no posso opor um dever tico a um dever jurdico e vice-versa. Portanto, no que diz respeito hospitalidade o tico e o jurdico devem poder se articular de modo consistente. Esta articulao consistente o que sustenta-ria a exequibilidade a efetividade do dever de hospitalidade numa experincia prtica.

Vejamos O dever tico de hospitalidade kantiana.

De acordo com a argumentao de Kant determinar a vontade livre dos seres racionais finitos por meio de sensaes ou ideais arbitrrio porque se persegue um fim que est para alm da prpria ao e esse agir interessado na realizao de um evento ou objeto no poderia ser considerado como universal e objetivamente moral. Assim, entende possvel e necessria a de-terminao da vontade por uma lei pura da razo sem ideais nem sensaes para que as mximas subjetivas do meu agir possam ser ditas universal e moralmente boas. Assim, essa lei ou princ-pio da pura razo que obriga a vontade livre a lei moral ou im-perativo categrico que nos ordena incondicionalmente a fazer o bem. Esse mandamento formulado de trs modos diferentes na Fundamentao da metafsica dos costumes de Kant (2009) como lei universal, fim em si mesmo e princpio de autonomia.

A primeira figura afirma: Age como se a mxima de tua ao devesse tornar-se, atravs da tua vontade, uma lei universal.

A segunda figura afirma: Age de tal forma que uses a hu-manidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer ou-tro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio.

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A terceira figura afirma: Age de tal maneira que tua von-tade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legis-lador universal atravs de suas mximas.

Assim, qualquer mxima subjetiva ou regra pessoal que consideremos em relao com a experincia de hospitalidade des-de o ponto de vista da razo deve poder se subsumir sob a forma daquele enunciado. As mximas de meu agir devem poder cor-responder com o imperativo categrico se aspirarmos a que es-sas mximas possam ser consideradas moralmente boas. Essas mximas podem ser pensadas como deveres ticos e distinguidas entre deveres para consigo mesmo e deveres para com os outros (KANT, 2013).

Entre as mximas ou regras do agir que so considera-das como deveres ticos para com os outros podemos contar a seguinte: Devo tratar bem aos meus convidados. Para Kant essa uma mxima que se corresponde com o imperativo categrico. Assim, para ter um modo de vida virtuoso, entre outras coisas, eu devo tratar bem aos meus convidados. uma exigncia que devo observar como ser racional finito e por isso preciso exercitar os deveres de virtude com os outros. Trata-se de deveres cuja obser-vncia no resulta na obrigao da parte dos outros, mas de um dever que devido por mim em relao com o princpio supremo da moralidade, isto , a lei moral ou imperativo categrico. Esta questo j tematizada por Kant nas Lies de tica ministradas para seus alunos de graduao da universidade de Knigsberg em 1784 e tambm no livro Metafsica dos Costumes de 1797.

Nos escritos das Lies de 1784 Kant (1988) elabora uma noo de benevolncia baseada em princpios a partir da qual exe-cutaramos os deveres para com os outros: ser atento, respeitoso, cuidadoso, etc.. No se trata de uma inclinao, mas de um dever moral acompanhado de um sentimento prtico, um respeito lei moral que manda em mim. Esse dever moral uma mxima no

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sentido moral-prtico e no apenas tcnico-prtico2. Quer dizer, uma regra que manda como um fim em si mesmo e no como um meio para um fim diferente daquele executado, como por exem-plo, fazer algo para almejar algo em troca.

Segundo Kant, amabilidade, cortesia e gentileza represen-tam a mesma virtude que um dever para com os outros segundo a realizao da lei moral, que manda imperativamente em mim. Trata-se da afabilidade, um dos deveres universais do homem, de acordo com os argumentos de Kant. Com outros fundamentos j Baumgarten (o grande filsofo universitrio alemo do sculo XVIII) em sua Ethica Philosophica considerava a acessibilidade, afabilidade, cortesia, boas-maneiras, urbanidade, amabilidade e simpatia como virtudes em relao com os outros. Tanto um fi-lsofo quanto outro apelam para a tematizao da afabilidade. Porm, a discusso sobre os termos da sua fundao e justifica-tiva. No caso de Kant, se trata de fundar a experincia de hospi-talidade na prpria razo pura e no em algo como uma natureza humana ou um ideal de perfeio.

No segundo texto mencionado anteriormente, a Metafsica dos costumes de Kant (2013) encontramos mais consideraes so-bre um dever de afabilidade fundado em princpios de razo. As-sim sendo, o amor e o respeito, unidos pela lei so um dever e de-vem acompanhar a realizao dos mesmos em todos os casos. Mas amor e respeito prticos, no so concebidos como sensaes e sim, no primeiro caso, como a mxima de benevolncia prtica que re-sulta em beneficncia e, no segundo caso, como a mxima da limi-tao de nossa autoestima pela dignidade da humanidade presente numa outra pessoa. nesse sentido que um dever de respeito no degradar a qualquer ser humano com tudo o que isso implica.

2 Tratei da distino semntica entre proposies moral-prticas e tcnico-prticas em meu artigo Lei e coero em Kant. In PEREZ, D. O. (2002). Outros trabalhos da minha autoria abordam problemas de significao de conceitos utilizados em diferentes tipos de proposies em Kant buscando desenvolver a tese da semntica transcendental inicialmente proposta por Zeljko Loparic (Ver LOPARIC, 1999, 2000, 2003; PEREZ, 1998, 2001, 2002).

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Devo tratar bem aos meus convidados uma regra tica de dever em sentido amplo. No posso exercer a escravido, nem hu-milhao, nem reduzir qualquer um a um mero objeto ou apenas a meio para um fim. Vrias vezes Kant lembra em seus escritos e aulas que o homem um fim em si mesmo seguindo a segunda frmula do imperativo categrico. Mais ainda, do ponto de vista prtico, moral-prtico, no exerccio da virtude, devemos nos inte-ressar pelos fins dos outros, desde que sejam morais, buscando a felicidade do outro, do contrrio mais uma vez corremos o risco de nos tornar inimigos da humanidade, em sentido kantiano.

O exerccio dos deveres de virtude (ticos) como uma obri-gao para com os outros possibilita, na sua realizao, uma co-munidade tica de afabilidade, cooperao, cortesia, gentileza gratuita. Nesse exerccio esto contidos os deveres de amor (be-neficncia, gratido, solidariedade) e os deveres de respeito.

Kant afirma que o amor aproxima e que o respeito man-tm uma determinada distncia. Mas, no caso do respeito, a distncia da moderao, da humildade, do reconhecimento de dignidade em todos os outros seres humanos. como se nessa distncia aparecesse a humanidade do humano e no apenas o sensual, sexual ou amoroso que de alguma forma nos torna ob-jetos, inclusive objetos de gozo do outro. Isto pode ser visto no direito de matrimonio de Kant, na Doutrina do Direito 24 a 27.

A omisso deste ltimo tipo de deveres (de tomar distn-cia, deveres de respeito) no s falta de virtude como tambm suprime o valor moral. Kant chama esse tipo de atitude de vcio. Para poder promover a virtude, e no o vcio, preciso cultivar o que conduz indiretamente a esse fim escreve Kant no pargrafo 48 da Doutrina da Virtude da sua Metafsica dos Costumes:

O cultivo de uma disposio de reciproci-dade comodidade, concrdia, amor mutuo e respeito (afabilidade e decoro, humanitas

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aesthetica, et decorum) e assim associar as graas com a virtude. Realizar isso em si mesmo um dever de virtude. Estas so, efetivamente, apenas obras externas ou subprodutos (parerga) que produzem uma atraente iluso semelhante virtude que, inclusive, no falaz, uma vez que todos sa-bem como deve ser assumida. Afabilidade, sociabilidade, cortesia, hospitalidade e sua-vidade (no desacordo sem conflito) no pas-sam, com efeito, de moedas divisionrias; no entanto, promovem o sentimento pela prpria virtude, atravs de um esforo para aproximar essa iluso o mximo possvel da verdade.

As boas maneiras no so meras aparncias se forem sin-ceras e adequadamente realizadas, de modo que seja claro como todos devem compreender esse tipo de atitudes. Mas o determi-nante da regra que me manda a agir deve continuar sendo a lei moral reconhecida num sentimento (prtico) de respeito, e no uma sensao (emprica) que acompanhe a execuo das regras de virtude inclusive no meu dever de hospitalidade.

Nesse sentido, mesmo a mera ao da elegncia do ato da hospitalidade, por exemplo, j um bom comeo. Kant assevera que isso pode tornar o exerccio da virtude uma moda e de algum modo favoreceria algum tipo de progresso moral, uma vez que as aes externas se concretizem na realizao de instituies, por exemplo, a institucionalizao da hospitalidade. A criao de ins-tituies como lugares simblicos onde se realize a experincia da hospitalidade pode ser considerado, kantianamente falando, como um progresso na histria. Mas antes de entrar nesta ltima questo, uma questo de direito, vejamos um ltimo aspecto dos limites do dever de hospitalidade como dever de virtude.

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Entre o dever moral e os bons-costumes: At onde nos va-mos, segundo Kant, com a elegncia da cordialidade e da concr-dia? At onde podemos ir com as regras da etiqueta e as boas-ma-neiras sem estar sendo hipcritas, sem estar mentindo? Quando estou sendo mentiroso na relao com o outro? Qual o limite da mentira?

Em vrias oportunidades Kant afirma que no devemos mentir, e tambm em vrias oportunidades expe questes de etiqueta que podem ser consideradas como a realizao de apa-rncias e no de expresso de verdade. Por exemplo, nas reflexes de antropologia encontramos as seguintes passagens:

Como a mulher engana os sentidos e ns gostamos de nos deixar enganar. Casamento aumenta a iluso.A iluso no cessa por sua perspiccia. Ma-quiagem. Uma sociedade bem vestida des-perta respeito mtuo (KANT, Rx 240).

Mas tambm podemos ver o sentido contrrio:

As misrias do gosto em sociedade provm daquilo que de inoportuno incomoda os sen-tidos sem a escolha do entendimento. Festi-vidades solenes sem utilidades: cortejos em gala (casamentos), orao, disputa. Muitos costumes piedosos, alguns dos quais sem utilidade e outros que inclusive tambm podem ser contrrios conscincia. A eti-queta. A tirania do uso, a cortesia posta sob rgidas leis ou o chamado modo de vida, o ar-bitrrio decorum. O pedantismo e o gasto (o precioso jogo) na recepo de bons amigos cada um se lamenta ao respeito, cada um entreve o incomodo e penoso disso, e cada

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um se acomoda ao habito. De onde vem esse fardo? De onde vem que a razo e o verda-deiro gosto no podem reinar onde homens bem intencionados pensam bem e so ben-volos entre si. (Disso provm esfalfamentos (vexationes) incmodos bem-intencionados, mediante os quais a gente, como ocorre na linguagem comum no propriamente per-seguida ou hostilizada, mas (em certo senti-do) tesourado) (KANT, Rx 863).

Qual o limite ento entre a polidez afvel e a enfadonha falsidade? Como distinguir a verdade da mentira? Para respon-der a esta pergunta lembremos agora o texto sobre o Direito de mentir por amor ao prximo de 1797. Trata-se de um exemplo que nos permite medir o alcance da afabilidade. Todos sabem que mentir, de acordo com Kant, uma regra contrria ao imperativo categrico. Uma moral que quer ser fundada racionalmente deve obedecer ao imperativo incondicionalmente. Mesmo se tratando do caso de mentir por amor ao prximo. Mesmo no caso de um amigo que est sendo perseguido por um assassino e pede ser acolhido o nosso dever de hospitalidade ou no maior que aquele de dizer sempre a verdade? A questo imposta para Kant naquele texto : Se o assassino pergunta onde est o nosso amigo ou hspede o que devemos responder? Temos direito de mentir por amor ao prximo? A resposta de Kant com relao ao direito de mentir taxativa: no h direito mentira. Do ponto de vista de um direito racional no h como no afirmar que se trata sem-pre e em qualquer caso de dizer a verdade. Significa ento que devemos entregar o hspede? (DERRIDA, J. 2003, p. 63; KANT, I. 1983, p. 637). Uma interpretao possvel que no se trata de um simples caso de cobardia perante a figura ameaante de um assassino que est procura do nosso hspede, mas de obedecer a mesma lei moral que me obriga a acolher o hspede. Assim, o caso particular de um hspede em particular se oporia huma-

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nidade em geral, representada no respeito da letra e do esprito do imperativo categrico. Portanto, assim como estou obrigado a acolher tambm estou obrigado a dizer a verdade. Porm, a hos-pitalidade aqui seria um dever moral que no pode se sobrepor ao dever de dizer sempre a verdade. Mesmo quando estiver em risco a vida do meu hspede em particular. Um suposto direito de mentir feriria o prprio princpio do direito hospitalidade e todo e qualquer fundamento de direito.

Podemos afirmar que a obrigao moral que o sujeito tem com relao hospitalidade no pode contradizer a obrigao mo-ral que tem de dizer a verdade. Porm, se avanarmos ainda mais no que significa o exerccio da virtude tambm podemos afirmar que o conceito de hospitalidade kantiana como dever moral faz sentido no como mero clculo de universalizao nem de riscos seno como realizao do imperativo categrico enquanto modo de vida tico, isto , como constante exequibilidade das virtudes.

J na Fundamentao da metafsica dos costumes Kant (2009, p. 72-3) nos fala de tornar os princpios prticos eficazes in concreto no modo de vida (Lebenswandel) que o nosso. Assim, podemos dizer que esse modo de vida pautado pela observncia lei moral e ao exerccio da virtude, se bem no nos outorga o di-reito de mentir tambm no nos exige colaborar com o carrasco. Quando a razo nos obriga a obedecer a lei incondicionalmen-te nos exige obedecer a lei da razo e no qualquer lei nem de qualquer maneira. A lei do carrasco, do torturador e do tirano no encontra seu fundamento na razo prtica que nos manda a tratar bem ao nosso convidado e a dizer a verdade seno na arbi-trariedade de uma sensao ou um ideal.

No texto de Derrida (2003, p. 63), Anne Duformantelle con-vida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade. O autor conclui que o hospedeiro kantiano instala uma relao com aquele que est na sua casa segundo o direito. O enunciado no totalmente

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adequado, a relao entre o hspede e o hospedeiro segundo a lei moral. No h qualquer problema de direito como sendo colo-cado no fundamento do que se exprime no caso. Tudo e qualquer questo de direito deve ser pensada a partir daqui. E isso o que faremos em seguida.

Vejamos agora O dever jurdico da hospitalidade kantiana.

Segundo Kant, o dever de hospitalidade no plano jurdico se justifica porque o planeta Terra redondo. No se trata de fi-lantropia, diz Kant na sua Doutrina do Direito. Seria mais o caso de um modo de viver juntos, de ter que lidar com e no apenas to-lerar a mtua presena mantendo uma determinada distncia. O significado da noo de tolerncia est associado em Kant ao sig-nificado da noo de hospitalidade. A tolerncia, como um modo entrar em relao com o outro e de evitar as guerras religiosas, foi tratada incessantemente no sculo XVIII, especialmente no trabalho de John Locke e imprescindvel para a continuidade de uma reflexo acerca das condies de possibilidade da expe-rincia de hospitalidade. De fato, o prprio Kant d as pistas para essa sequncia em paz perpetua e A religio nos limites da mera razo. Entretanto, devemos dizer que Kant profundamen-te crtico com relao tolerncia.

Tolerncia e hospitalidade so excludentes na sua raiz. De acordo com a argumentao kantiana, quando algum tolera outrem, supe que esse outrem invade um espao que seria pr-prio. Mas o meu como aquisio de algo, como aquilo sobre o qual posso fazer uso e posse s pode ser referido a uma parcela desde que todos os outros sujeitos renunciem ao uso e posse dessa mes-ma parcela. E isso s pode ser afirmado se antes considerarmos a ideia da posse comum inata do solo da Terra, a ideia de uma comunidade originria do solo. S a partir dessa ideia de posse comum que se estabelece a aquisio da posse particular ou mesmo de um povo. Portanto, em termos de circulao de indiv-

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duos no espao do planeta Terra no h algo prprio a partir do qual eu deveria tolerar ou no a circulao de outrem.

A ideia posse comum da superfcie da Terra (um conceito que Kant coloca no texto de Paz Perptua de 1795, mas de-senvolve amplamente em A Metafsica dos Costumes de 1797) se estabelece porque os homens no podem se espalhar at o infi-nito, pelo simples motivo de que a superfcie da Terra limitada. Portanto, necessrio efetivar o direito de visita, que a todos os homens assiste (KANT, 1983 Band 9, p. 213-4), o direito de no receber um trato hostil pelo mero fato de ter chegado desde outro territrio, o direito de se apresentar em uma sociedade.

A hospitalidade no outra coisa, para Kant, que a condi-o necessria para ter a possibilidade de buscar um intercm-bio, um comrcio e a livre circulao (Verkehr) e isto porque o interesse da razo no seno a realizao da liberdade. Kant est falando de hospitalidade como o direito de algum de ir, vir, estar em algum lugar e poder cuidar da sua prpria vida. Kant est falando do direito do estrangeiro de poder estar, com tudo o que isso implica: exercer a liberdade como um direito inato. Mas no por uma questo de natureza humana, filantropia ou tolern-cia. Tambm no poderamos dizer que o sujeito kantiano tenha algum sentimento de culpa ou de responsabilidade pela situao particular do outro. Trata-se em qualquer caso da realizao da liberdade em sentido prtico: tico e jurdico.

A hospitalidade kantiana no sentido jurdico uma con-dio necessria para estabelecer a paz duradoura, a paz entre os Estados e os povos. Desse modo, escreve Kant as comar-cas muito distantes podem entrar em pacficas relaes que se se convertem em pblicas e legais podem levar a instaurar uma constituio cosmopolita (KANT, 1983 Band 9, p. 214). Essa a questo: ao mesmo tempo em que a hospitalidade possibilitada pelo cosmopolitismo nos conduz em direo a ele e o propicia.

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Assim, a experincia de hospitalidade uma experincia de um sujeito no apenas de uma repblica seno tambm de um cida-do do mundo.

J em 1784 Kant estava preocupado com as relaes pac-ficas entre os povos. Em Idia de uma histria universal do ponto de vista cosmopolita elabora um conceito de Histria como fio condutor que permite narrar a histria dos homens segundo uma srie de traos com os quais compreendemos a prpria his-tria dos acontecimentos. Parte de um estado de natureza no qual os homens esto em guerra, passa para o estabelecimento de uma constituio civil que produto e condio do desenvolvimento das capacidades naturais dos homens e chega a uma relao le-gal entre os Estados, uma Federao (Volkerbunde) (KANT, 1983 Band 9, p. 41), um estado de cidadania mundial ou cosmopolita (KANT, 1983 Band 9, p. 47).

Em 1784 Kant tinha a ideia de que o estado cosmopolita se alcanava a partir da insocivel sociabilidade dos indivduos e dos povos. No seria por amor, mas por espanto que ns chega-ramos a relaes internacionais maduras e em longos perodos at pacficas. Nesse espanto encontramos dois elementos com os quais a histria progride para o melhor. Um elemento a razo dos homens dentre as suas capacidades naturais, quando usamos a razo deixamos de fazer a guerra e entramos num estado de paz republicano e cosmopolita. O outro elemento a Providncia, no caso um Deus, j que o prprio homem no garante o almeja-do progresso. Nos textos seguintes a Providncia (Deus) perde seu espao em favor de outras noes menos transcendentes e o sentido da noo de histria como progresso pode ser pensado como o desenvolvimento de uma legislao externa (jurdica), mas com uma grande aproximao da legislao moral (interna), que garanta o exerccio da liberdade de todos, no apenas como cida-dos de uma repblica seno tambm como cidados do mundo,

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cidados cosmopolitas. Uma (legislao externa) favorece outra (legislao interna). Embora uma e outra no se confundam am-bas contribuem para o significado da histria como progresso e no meio dessa relao progressiva encontramos a experincia de hospitalidade.

Em 1795, no texto paz perpetua a noo de hospitalidade introduz o que poderamos chamar de uma ao afirmativa. Em 1997 o Prof. Valrio Rohden publicou uma coletnea de textos intitulada Kant e a instituio da paz, tratava-se do conjunto de trabalhos apresentados num evento tambm coordenado por ele onde se focalizava o artigo de Kant paz perpetua. Diversas so as abordagens apresentadas, mas a contribuio do Prof. Mario Caimi interessa aqui especificamente por se tratar de uma inter-pretao do artigo terceiro do escrito: sobre o direito de hospitali-dade. Mario Caimi revisa a literatura existente sobre o ponto em questo dividindo as interpretaes em duas tendncias. Uma interpretaria o direito de hospitalidade como direito de se mover livremente e a outra como rejeio ao colonialismo. Nesse hori-zonte de leituras ele se prope defender a tese de que o artigo ter-ceiro uma limitao do direito de hospitalidade, uma restrio do direito de visita e, por conseguinte uma proibio do colonia-lismo. Caimi est interessado em fazer observar como o direito de hospitalidade deve ser entendido como a impossibilidade de jus-tificar juridicamente o colonialismo. Caimi chama a ateno para o fato destacado por Kant dos europeus entrando indevidamente em territrios alheios na Amrica, na frica e na sia. Sabemos que com a desculpa do comrcio e da circulao vrias armadas de pases europeus invadiram e se apropriaram de territrios que j tinham sido adquiridos por outras comunidades e pessoas.

Nosso trabalho visa aqui a interpretar a questo da hospi-talidade desde o ponto de vista do hospedeiro, do dever de hospi-talidade antes que do ponto de vista do hspede e de usufruir o

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direito de hospitalidade. Embora as leituras possam se comple-mentar achamos que a anlise do dever de hospitalidade deve ser o foco inicial porque no se trata de um projeto imposto sobre a base da negociao e sim da realizao da lei moral atravs do exerccio da razo prtica, seja na sua forma tica ou jurdica e que tem como agente fundamental o sujeito de dever moral ou jurdico.

Nesse sentido, Kant descobre que o direito de visita como o dever de ser oferecido pode nos ajudar a alcanar o cosmopo-litismo e a prpria institucionalizao deste. Do mesmo modo, o cosmopolitismo pode vir a garantir a experincia de hospitalida-de. Esses elementos fortalecem o caminho para a paz mundial (duradoura e no perptua, porque a paz perptua s se encontra nos cimenteiros segundo Kant) e o desenvolvimento dos Estados republicanos como o ambiente propcio para a realizao da li-berdade.

A preocupao de Kant em encontrar um modo racional de manter relaes entre Estados e povos no organizados em Estados mostra que a questo da hospitalidade vai alm de me-ros acordos bilaterais de diplomacia internacional em beneficio mutuo. Os Estados e povos do mundo no precisam ser amigos, mas tambm no precisam estar permanentemente em Estado de guerra e mesmo sem a institucionalizao de estruturas esta-tais o exerccio da hospitalidade pode ser realizado. Lembremos mais uma vez o texto de 1784. Kant est convencido de que o desenvolvimento da sociedade civil num pas por meio de uma constituio est atrelado ao desenvolvimento do cosmopolitismo e, como temos visto, o a experincia de hospitalidade decisiva para tal. Isto significa que a experincia de hospitalidade no s colabora com o hspede, com o estranho dando-lhe abrigo seno que tambm favorece o prprio desenvolvimento das instituies de direito do pas que acolhe. Kant est nos dizendo que no se

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alcana o estabelecimento das repblicas pela imposio da vio-lncia atravs das guerras e restries e sim pelos acordos de paz e a experincia de hospitalidade.

Uma guerra pode substituir um tirano por outro, pode im-por uma determinada obrigao, mas no suficiente para um povo passar maioridade, para que seus cidados possam pensar por si mesmos e sustentar um Estado de direito e progredir. Nes-se sentido, a rejeio ao colonialismo determinante em Kant. O colonialismo no aceitvel nem sob a justificativa do caso de um povo no ter um Estado e por isso impedir o progresso na paz mundial ou o comercio. No h nenhuma razo contra a possibilidade de povos e naes comerciar e estabelecer relaes sem necessidade de ter a mesma estrutura Estatal. E isso porque podemos pensar a noo de hospitalidade como no reduzida ao acordo entre partes, a uma mera relao de troca em acordos de diplomacia.

Poderamos ainda fazer kantianamente mais uma pergun-ta: Quem contra a hospitalidade, e, portanto, contra o cosmopo-litismo e contra a paz mundial? O parasita, aquele que abusa do direito de visita, aquele que se aproveita da situao e da hospita-lidade para tirar vantagens, para cometer injustias, poderamos dizer: para corromper os costumes da casa. Como identificar esse elemento reacionrio ao estabelecimento da razo prtica? Como identificar o parasita? Kant, o austero em exemplos, desta vez generoso e taxativo:

Se consideramos a conduta no hospita-leira que seguem os Estados civilizados do nosso continente, fundamentalmente os co-merciantes, espantam as injustias que co-metem quando vo a visitar outros povos e terras. Visitar para eles igual que con-quistar. Amrica, as terras habitadas pelos

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negros, as ilhas de especiarias, El Cabo, eram para eles, quando as descobriram, pases que no pertenciam a ningum, com os nativos no contavam. Nas ndias orien-tais Indostan sob o pretexto de estabe-lecer sedes comerciais os europeus introdu-ziram tropas estrangeiras, oprimindo deste modo aos indgenas, promoveram grandes guerras entre os Estados daquelas regies, fome, rebelio, perfdia, e todo um dilvio de males que podem afligir Humanidade (KANT, 1983 Band 9).

No uma voz oracular, no uma profecia acerca do que acontece nos tempos atuais, a descrio que Kant faz h duzen-tos anos do que acontecia e do que irremediavelmente continua acontecendo. Os desastres cometidos pelas armadas europeias nos sculos XV, XVI, XVII e XVIII, a completa diviso do terri-trio africano na conferncia de Berlim entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885 organizada pelo Chanceler Otto von Bismarck entre pases europeus como se estivessem distribuindo um bolo, as invases militares dos pases centrais sobre os peri-fricos no conduzem de modo nenhum a uma paz duradoura e ao exerccio da hospitalidade. Isto o que Kant chama de vicio moral, de negao da moralidade, de negao da prpria huma-nidade. Isto um desastre moral. Mas o julgamento no acaba, tem tambm o aspecto jurdico-poltico. Este tipo de atitudes faz com que os Estados prejudicados sejam reativos aos estrangei-ros, propicia o chauvinismo, desestimula a relao entre os povos alm de lhes gerar todo tipo de inconvenientes internos. Kant tambm alertava h duzentos anos que para os prprios pases invasores essa atitude no acarretaria benefcios reais seno ape-nas o fomento da guerra na prpria Europa. Isto mostra tambm que qualquer violao dos direitos da humanidade em qualquer lugar do planeta, segundo as prprias palavras de Kant, afeta a

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todos, as consequncias se desdobram e multiplicam. Portanto, infere-se que o direito de cidadania mundial no uma fantasia, mas um complemento necessrio do cdigo no escrito do direito poltico e internacional, obviamente favorecendo uma paz dura-doura e no apenas por uma questo de filantropia.

A cidadania mundial, o dever de hospitalidade uma condi-o necessria da paz duradoura. Tanto quanto necessrio garan-tir o direito poltico dos cidados no interior de uma repblica ou dos Estados nas relaes internacionais, tambm imprescindvel garantir os direitos de todos os homens como cidados do mundo no por filantropia, no por piedade, no por compaixo, mas por uma razo prtica na qual faz sentido o termo hospitalidade.

Consideraes finais

O termo hospitalidade est articulado na sua origem com hostilidade e comporta um grande leque de definies e usos que abriga inclusive os sentidos de relaes opostas, por exemplo, no que diz respeito relao com o hspede e com o inimigo. Na atualidade o termo hospitalidade pode ser abordado desde a perspectiva que abre os sentidos da gratuidade e da acolhida aos grupos migratrios bem como desde a perspectiva da etiqueta, do turismo e da hotelaria.

Nosso trabalho foi pautado pela compreenso de que a ex-perincia da hospitalidade pautada pelo encontro com o outro diferente e pela acolhida da diferena. A partir daqui nos inter-rogamos pelas suas condies de possibilidade. Nesse sentido queremos destacar alguns elementos: um sentimento de estra-nhamento e familiaridade em relao com o outro; um dever; o reconhecimento da diferena e a exigncia de uma lei da razo a priori que me obriga gratuitamente (sem esperar nada em troca) em relao com o outro.

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O significado do conceito de hospitalidade se inscreve den-tro do que Kant denomina de razo prtica. Assim sendo, a hospi-talidade kantiana implica uma relao com o outro que se resolve em seu aspecto moral e em seu aspecto jurdico-poltico. Nesse sentido, a hospitalidade como o relacionamento com o outro no seu significado moral se inscreve dentro do que Kant denomina de respeito lei moral pura a priori. A lei moral que nos obriga pura a priori porque no se funda em algum tipo de exame neuro-lgico ou antomo-fisiolgico e sim no funcionamento da prpria razo na qual possvel formular a prpria questo da hospitali-dade. nesse mbito que podemos constatar o alcance e tambm o limite de significado moral da hospitalidade. Por outro lado, a hospitalidade como o relacionamento com o outro no seu signifi-cado jurdico-poltico se inscreve dentro do que Kant considerar como o caminho para a paz ou a histria. Para Kant o significado do conceito de Paz Perptua (duradoura) no denota uma simples fantasia ou imaginao, tambm no o nome de um Estado ut-pico, mas um conceito heurstico, uma orientao, um guia para trabalhar praticamente no sentido de um melhoramento moral e jurdico do mundo. Como vemos, o significado deste tipo de con-ceitos no referencial, no sentido de apontar ostensivamente para um fenmeno, mas prtico, no sentido de direcionar o agir em relao com a lei moral ou imperativo categrico.

Assim, o estrangeiro de Kant no um absolutamente outro, mas um cidado do mundo independentemente qual seja sua origem territorial. Ele responder e dever ser tratado como pessoa, como fim em si mesmo e no apenas como meio. A lngua da hospitalidade a lngua da razo prtica. Nesse sentido, o agir que implica o significado de hospitalidade um agir motivado racionalmente. No se pode ser por um lado, afvel com o estran-geiro e, pelo outro, colonialista, ou diplomtico e invasor, isso no estrito sentido kantiano seria filantropia e vicio. O contrrio da hospitalidade e do cosmopolitismo.

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O outro estranho que se aproxima e acolhemos aquele que nos oferece a oportunidade de realizarmos a liberdade e de nos reconhecermos nela como sujeitos dessa liberdade. O en-contro com o outro nos brinda a ocasio de sermos ns mesmos. Nesse sentido, somos habitados pelo estrangeiro em asilo ou em hospitalidade.

Eplogo

O reconhecimento do outro como cidado do mundo e a ex-perincia de hospitalidade nos conduz a refletir sobre as polticas da diferena. O outro diferente pode ser reconhecido como alte-ridade, como adversrio, como concorrente ou como mero resto. O modo de reconhecimento determina a conduta que temos em relao com o outro. Assim, o outro tem sido objeto do mais pro-fundo dio e em consequncia perseguido e exterminado.

Dados da Agncia da ONU para refugiados.O ano de 2014 testemunhou o dramtico aumento do deslocamento forado em todo o mundo causado por guerras e conflitos, registrando

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nveis sem precedentes na histria recente. H um ano, em 2013, o AC-NUR anunciou que os deslocamentos forados afetavam 51,2 milhes de pessoas, o nmero mais alto desde a Segunda Guerra Mundial. Doze meses depois, a cifra chegou a impressionantes 59,5 milhes de pessoas, um aumento de 8,3 milhes de pessoas foradas a fugir. Durante 2014, os conflitos e as perseguies obrigaram uma mdia diria de 42.500 mil pessoas a abandonar suas casas e buscar proteo em outro lugar, dentro de seus pases ou fora deles. Aproximadamente 13,9 milhes de indivduos tornaram-se novos deslocados em 2014. Entre eles, 11 milhes de deslocados dentro de seus pases, um nmero nunca antes registrado, e 2,9 milhes de novos refugiados.

Dos 59,5 milhes de pessoas deslocadas foradamente at 31 de dezem-bro de 2014, 19,5 milhes eram refugiados (14,4 milhes sob mandato do ACNUR e 5,1 milhes registrados pela UNRWA), 38,2 milhes de deslo-cados internos e 1,8 milho de solicitantes de refgio. Alm disso, calcu-la-se que a apatrdia tenha afetado pelo menos 10 milhes de pessoas em 2014, ainda que os dados dos governos e comunicados ao ACNUR se limi-tem a 3,5 milhes de aptridas em 77 pases. A Sria o pas que gerou o maior nmero tanto de deslocados internos (7,6 milhes de pessoas) quanto de refugiados (3,88 milhes). Em seguida esto Afeganisto (2,59 milhes de refugiados) e Somlia (1,1 milho de refugiados). Os pases e regies em desenvolvimento acolhem 86% dos refugiados no mundo: 12,4 milhes de pessoas, o nmero mais alto em mais de duas dcadas.

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VEIAS CORDIAIS: A PROVNCIA E O ESTRANGEIRO

David Barroso1

O que ser apresentado est mais prximo de um comuni-cado do que de um artigo. Mais prximo de uma aula que de uma conferncia. Os componentes textuais de um discurso impessoal diferem da palavra daquele que escreve sobre como o mundo experimentado, vale dizer, daquele que narra a interpretao de sua presena no mundo. A preocupao com a forma, mais do que com o contedo, algo que pouco se percebe no cotidiano, e no por isso menos problemtico. algo que tem a ver com a universalidade mais do que com as particularidades. Mas tam-bm algo que no se separa, encontrando-se em funo de nosso objetivo. Numa tentativa de exprimi-lo, ao longo do texto, as le-tras que seguem apresentam a percepo de um mundo ao qual a experincia precisa ser feita atravs da histria de suas inter-pretaes.

Em 1931, Ribeiro Couto escreve uma carta e diz:

O homem ibrico puro seria um erro (clas-sicismo) to grande como o primitivismo puro (incultura, desconhecimento da mar-cha do esprito humano em outras idades e outros continentes). da fuso do homem ibrico com a terra nova e as raas primi-tivas, que deve sair o sentido americano

1 David Barroso de Oliveira. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Cear UFC. E-mail: [email protected]. Este estudo foi apresentado durante o VIII Encontro Nietzsche-S-chopenhauer, realizado entre os dias 23 a 25 de novembro de 2016, pelo APOENA Grupo de Estudos Schopenhauer e Nietzsche, em Fortaleza/CE. Disponvel em: . Acessado em: 25 07 2017.

mailto:[email protected]

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(latino), a raa nova produto de uma cultura e de uma intuio virgem o Homem Cor-dial. Nossa Amrica, a meu ver, est dando ao mundo isto: o Homem Cordial (COUTO apud BEZERRA, 2010, p. 29).

E, em 1936, a vez de Srgio Buarque de Holanda:

J se disse, numa expresso feliz, que a contribuio brasileira para a civilizao ser de cordialidade daremos ao mundo o homem cordial. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes to gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um trao definido do carter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a in-fluncia ancestral dos padres de convvio humano, informados no meio rural e pa-triarcal. Seria engano supor que essas vir-tudes possam significar boas maneiras, civilidade (HOLANDA, 1995, p. 146-7).

Essas so as primeiras letras sobre a cordialidade. A par-tir da, bons pesquisadores, de vrias reas de estudo, tambm tentaram vivissecar o corao dessa temtica. Alguns exemplos de interpretaes que intrinsecamente relacionam a cordialidade com os brasileiros e a sociedade brasileira so: uma singulari-dade do carter brasileiro, um elemento de identidade nacional gestado a partir dos portugueses, ou como um jeito brasileiro de pensar com o corpo, ou como um drama social vivido por cada um em sociedade, ou como uma ideia-fora propiciadora de uma violncia simblica em funo de escusos interesses polticos e econmicos. Outras interpretaes concentram-se apenas na ne-gatividade da significao de cordialidade, vista como um entrave modernizao do Brasil ou como uma trave que cega a percep-

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o da dimenso institucional. Enquanto isso, a tese da cordiali-dade mostra-se no rebento de uma colonizao simblica, quando interpretada como: um deficit ontolgico, a partir da ontologia da substncia ou a partir das teorias raciais que distinguem qua-litativamente homens e sociedades, ou uma deficincia cultural nas estruturas e categorias sociais e normativas em relao a um modelo de sociedade estabelecido.

Estas interpretaes formaram uma tradio que pensa do exterior as prticas sociais brasileiras. O sangue que d vida a essas interpretaes percorre veias histricas, antropolgicas, sociopolticas, literrias e psicolgicas que garantem a matiz se-mntica do perspectivismo da significao de cordialidade como se fosse labirntica. Dessas veias cordiais, o aspecto histrico-cultural o fio que nos conduz ao centro nevrlgico orientador das significaes possveis e mantenedor das condies reais da cordialidade. tambm o instrumento cirrgico com o qual se pode fazer uma leitura privilegiada do funcionamento orgnico da cordialidade na sociedade brasileira, por possibilitar a in-terseo daquelas veias interpretativas, agenciando-as em uma perspectiva que parte da realidade existencial e social at o uni-verso simblico dos valores e das representaes. Entretanto, o prprio termo cultura pode ser problematizado se no o conside-rarmos como a totalidade das manifestaes da vida do homem em relao sociedade, pensado a partir das duas esferas bsicas da vida, consideradas na histria da cultura ocidental, o pblico e o privado. Assim, a tica e a poltica seriam as reas de estudo privilegiadas para o tratamento da noo de cordialidade.

Ao considerarmos a configurao pblico-privada e suas repercusses tico-polticas, temos que a tradio das ideias so-bre a cordialidade concentra-se na negatividade porque a pensa apenas pela dimenso institucional, ou seja, no mbito da pol-tica, porm, quando a cordialidade pensada pela dimenso

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interpessoal, sobrevm a positividade no mbito da tica. Essa ambivalncia da cordialidade, repetidas vezes, desconsiderada e co-fundida pela perspectiva da negatividade que escamoteia as condies de possibilidade de um tratamento criativo que pensa a poltica a partir da tica. Se as instituies e o cdigo normativo de uma sociedade no refletem suas relaes e costumes, i.e., seu modo de vida (ethos), o que pensar de uma sociedade cujo governo foi instaurado pela importao e acomodao de teorias polticas estrangeiras para o benefcio privado de determinados grupos? O que pensar de um governo cuja sociedade comporta-se provincia-namente em relao s suas pretensas leis universais e gloriosas instituies pblicas?

Pois bem, tais problemticas ecoam do corao da socie-dade brasileira para apresentar a importncia de se pensar a cordialidade no entendimento do Brasil contemporneo, conce-bendo-a como um fato, um fenmeno social nas relaes de poder. Mesmo assim, consideramos a cordialidade como um problema que se remete a um outro mais importante, porque mais anti-go, a saber, a interrelao pblico-privado e suas repercusses tico-polticas. Ao comearmos por a, nosso objetivo pontuar as caractersticas histricas da configurao cultural da socie-dade brasileira, nos mbitos pblico e privado, tendo em vista sua atualizao e os obstculos ocasionados pela nfase dada dimenso institucional em detrimento da interpessoal. Preten-demos, com isso, destacar a ambivalncia da cordialidade e sua importncia para o reconhecimento, ou no, das instituies e do cdigo normativo pela sociedade brasileira.

* *

Fernando Novais, na coleo A histria da vida privada no Brasil (vol. 1, 1997), apresenta algumas peculiaridades nos planos poltico e econmico, eixos propulsores da colonizao da Amri-ca portuguesa, para sustentar a profunda imbricao e a curiosa

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inverso das duas esferas bsicas da vida, o pblico e o privado. Alm disso, as manifestaes da vida privada esto associadas passagem da colnia para a nao, ou melhor, prpria gesta-o da nao no interior da colnia, apresentando-se como n-cleo fundamental de nossa trajetria, o ponto central de nossa constituio enquanto povo e nao. Nesse sentido, apesar da constituio do Estado moderno delimitar a esfera pblica, para o historiador, a privacidade vai abrindo caminho no s em con-traponto formao do Estado, mas ainda com a formao da nacionalidade (NOVAIS, 1997, p. 17).

Instabilidade, mobilidade horizontal, disperso demogr-fica e diversidade populacional so caractersticas das gentes da colnia que modelavam o perfil das manifestaes do privado em relao s estruturas coloniais, e.g. o escravismo. A clivagem in-transponvel entre senhor e escravo no impediu o processo de miscigenao que, por meio de situaes-limite de aproximao, distanciamento e conflito, balizavam as manifestaes do priva-do. Por essas caractersticas do cotidiano do viver em colnias2, desconhecidas pela metrpole, configurava-se, de acordo com Fernando Novais (1997, p. 30), uma sociedade estamental com grande mobilidade, e essa conjuno surpreendente e mesmo paradoxal de clivagem com movimento que marca sua origina-lidade. Com isso, atravs das situaes-limite, tambm ia se formando algo que poderamos pensar como uma mentalidade colonial, esboo de uma fugidia identidade nacional em gestao (Ibidem, p. 29).

No perodo de transio da histria da cultura ocidental, entre a pr-modernidade e a modernidade, o pblico e o privado nem esto indistintos nem separados, esto imbricados. Apesar da promoo da esfera pblica, tal como ocorria na Europa re-

2 O viver em colnias usado pela primeira vez por Lus dos Santos Vilhena, em seu livro Pensamentos polticos sobre a colnia (1987), quando diz: com ingenuidade te confesso que no das menores desgraas o viver em colnias, longe do soberano, porque nelas a lei que de ordinrio se observa a vontade do que mais pode (VILHENA apud MOTA, 2011, p. 10).

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nascentista e iluminista, na imbricao pblico-privado do viver em colnias ocorria a ampliao da esfera privada que invadia a pblica fazendo-a funo, cujos efeitos podem ser vistos atravs das situaes-limite. Dessas situaes-limite, ponto existencial no qual o limite humano experienciado, abrem-se brechas de flutuao das referncias cotidianas, um espao-entre-o-outro re-pleto de tenso que toca os dois lados, do pblico e do privado, e nenhum lado, cujo momento oportuno ao estratgica.

Em meio s situaes-limite do viver em colnias, am-biguidades e contradies sofrem conciliaes de conflitos no resolvidos que possibilitam as vagas nas referncias sociais3. Por estas, surgem aes estratgias que criam oportunidades crti-cas, como modos de enfrentamento para sobrevivncia e conv-vio, pela criao de meios a partir da realidade cotidiana, na ten-tativa de evitar ou driblar as situaes-limite. Nessa perspectiva, destacamos a positividade que a vaga referencial proporcionava s relaes pessoais e sua repercusso histrica de instabilida-de da esfera pblica e hipertrofia da esfera privada. Nesse vis, apesar de ainda ser confuso precisar a codependncia entre a ineficincia das instituies e a ampliao das relaes pessoais, deriva-se, das condies precrias da esfera pblica e do prima-do da esfera privada, a reproduo de um universo simblico de prtica e representao.

Diante disso, o sculo XIX mostrou-se decisivo para as dis-cusses sobre o pblico e o privado. Os insistentes movimentos sediciosos manifestavam-se fora da via formal da legalidade, sem uma insero poltica ativa e duradoura, e denotavam a insufi-cincia normativa das instituies em relao s demandas popu-lares. Contudo, visto de fora, o povo era chamado de bestializado

3 Um exemplo de conciliaes irresolutas est no brasileiro que, na poca, sendo objeto de mofa dos reins e dos lusos-nativos, via-se condenado pretenso de ser o que no era nem existia (RIBEIRO, 2006, p. 115). Outro exemplo pode ser entrevisto no campo da moralidade e da sexualidade pela imbri-cao sagrado-profano. Entretanto, o que destacamos, como veremos a seguir, a durao histrica da irresoluo da imbricao pblico-privado at o Brasil contemporneo, cujo efeito compe nossa temtica.

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por no participar da vida pblica do pas, tal como participava em alguns pases europeus. Na transio do Imprio para a Re-pblica, a implantao do novo regime, que se propunha trazer o povo para a atividade poltica, realizava-se por uma engenhosa combinao de conceitos importados. O principal deles era o de repblica, proposto por trs grupos republicanos (dos liberais proprietrios rurais, de um setor da populao urbana de in-fluncia jacobina, e o de verso positivista apoiada por militares). Entretanto, ressalta Jos Murilo de Carvalho (1990, p. 30), em A formao das almas, que o ponto central do debate era a relao entre o privado e o pblico, o indivduo e a comunidade.

O ponto de vista a partir do qual se erigia o debate era do

exterior, para o qual estudos sociolgicos explicavam a incapaci-

dade poltica de organizao social brasileira pela predominn-

cia dos aspectos afetivos e comunitrios em relao ausncia do

individualismo anglo-saxo4. De uma forma ou outra, estudavam

aquilo que era singular do povo, por meio de suas manifestaes,

para lanar as bases de uma identidade cultural e estabelecer

os critrios de cidadania que servissem construo da nao.

A aceitao e adaptao de teorias estrangeiras proporcionaram

a corporificao do liberalismo e do racismo em dois grandes

modelos tericos explicativos. Em O espetculo das raas, Lilia

Moritz Schwarcz (1993, p. 19-20) escreve: o primeiro fundava-se

no indivduo e em sua responsabilidade pessoal; o segundo reti-

rava a ateno colocada no sujeito para centr-la na atuao do

grupo entendido enquanto resultado de uma estrutura biolgica

singular.

4 Um exemplo est em O Brasil social e outros estudos sociolgicos, de Silvio Romero (2001, p. 87), que toma por referncia as anlises do francs Edmond Demolins, e escreve: Basta-me consignar que o nosso estre-mecido povo brasileiro apresenta a sintomatologia geral das naes a cujo grupo pertence esse grande n-mero de povos de ndole e formao comunitria, especialmente os latino-americanos, que tm de suportar a nova concorrncia das naes de formao particularista, colocadas atualmente frente da civilizao industrial do nosso tempo: ingleses, alemes, americanos, canadenses, australianos, flamengos, holandeses, franceses do norte, povos que retm em suas mos os capitais movimentadores do mundo moderno.

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Inobstante o estrangeirismo desses estudos sociolgicos, conclui Jos Murilo de Carvalho (1990, p. 141), aqueles grupos re-publicanos no foram capazes de criar um imaginrio popular republicano, a implantao do novo regime poltico ocorreu ape-sar da ausncia de envolvimento popular, de tal modo que, sem raiz na vivncia coletiva, a simbologia republicana caiu no vazio. Nem mesmo o romantismo brasileiro conseguiu alcanar o obje-tivo de forjar uma identidade cultural e um sentimento de nao, quando sua primeira gerao era hostil ao passado da colnia mas, posteriormente, avaliava de modo positivo a herana ibrica do legado colonial, fazendo da mestiagem o fundamento de uma nova civilizao nos trpicos. A importao de teorias polticas, pensadas a partir de experincias de outros pases e conciliadas irresolutivamente na caracterizao da repblica brasileira, dis-cerniam sobre as prticas sociais e suas demandas populares. Todavia, a instabilidade das instituies permanecia junto im-portncia dada s relaes pessoais.

Somente nas primeiras dcadas do sculo XX formava-se um ambiente propcio para a elaborao de uma identidade cultural e algum sentimento de brasilidade. Alm do movimento modernista da Semana de 22, que rompia com a narrativa tradi-cional do naturalismo romntico e lidava com o emergente cdigo cultural da burguesia, foi o regionalismo moderno de Gilberto Freyre que proporcionava, por meio de um discurso histrico-cul-tural de construo de memria, os elementos necessrios para a elaborao de uma identidade regional como base para uma identidade nacional. Enquanto o modernismo era considerado por Gilberto Freyre como descaracterizante da cultura brasilei-ra, devido importao da cultura europeia, seu regionalismo era compromissado com a manuteno do cdigo cultural da antiga ordem da sociedade rural e patriarcal. Assim, as caractersticas da pr-modernidade e da modernidade so conciliadas, mas seus conflitos no so resolvidos, e a imbricao pblico-privado re-verbera pela histria corroborada pela cincia social culturalista.

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O deslocamento da questo racial para o conflito cultural entre regies no s inventava o Nordeste, como tambm a identi-ficao do brasileiro com a ideia de Brasil. Com isso, a fragilidade das instituies escamoteada por polticas compensatrias que tm como referncia a estereotipizao do nordestino e do brasi-leiro, aos quais o vnculo afetivo associado solidariedade cresce medida que a tese da superioridade da mestiagem influencia inte-lectuais, literatas e artistas. Jess Souza (2005, p. 32), em A tolice da inteligncia brasileira, marca esse coroamento quando escreve que Srgio Buarque de Holanda toma de Gilberto Freyre a ideia do Bra-sil como uma civilizao tropical singular, mas, invertendo o acento da tese da mestiagem, defende que essa civilizao singular [...] e seu tipo humano, o homem cordial, so, na verdade, ao contrrio de nossa maior virtude, nosso maior problema social e poltico.

O sentido do homem conciliador freyreano englobado pela concepo absolutizante da cordialidade que, mesmo sendo a contribuio brasileira para a civilizao, nas letras buar-queanas, tende extino com o progresso da modernidade. No entanto, conforme Jess Souza (2005, p. 32), o interessante no argumento de Buarque que, apesar de o homem cordial es-tar presente em todas as dimenses da vida, sua ateno se con-centra apenas na ao do homem cordial no Estado. Os efeitos dessa abordagem so: a justificao da esfera privada que invade a esfera pblica fazendo-a funo; a legitimao das caractersti-cas culturais pr-modernas com as modernas, reproduzindo uma certa mentalidade colonial na contemporaneidade; e a elaborao bem-sucedida de uma identidade cultural com seu sentimento de brasilidade. Vinha tona a imbricao personalismo-patrimo-nialismo, na qual a esfera pblica (as instituies, o Estado) demonizada como corrupta devido ao vis negativo da cordiali-dade, enquanto a esfera privada, vista atravs do efeito positivo das relaes pessoais na sociedade, liga-se ao mercado capitalista posto como virtuoso.

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De um modo ou outro, esse maniquesmo da associao entre mercado e sociedade contra o Estado, possvel pela imbri-cao personalismo-patrimonialismo e justificada pela cordiali-dade, permitiu uma elite econmica e poltica universalizar seus interesses por meio de uma violenta manipulao simblica. essa responsabilidade que Jess Souza (2005, p. 49) atribui a Srgio Buarque de Holanda, por lanar as bases filosficas e polticas do liberalismo conservador que se tornaria dominan-te e a forma naturalizada de perceber o Brasil contemporneo. Desse modo, nem as histricas conciliaes irresolutas resolvem-se nem a cordialidade extingue-se, porm se atualizam medida que tm como suporte a instrumentalizao da esfera pblica aos interesses privados de uma elite econmica e poltica. Quer dizer, a atualizao da imbricao pblico-privado do viver em col-nias a imbricao personalismo-patrimonialismo no mundo burgus capitalista, e a cordialidade sua mediania. E essa im-bricao personalismo-patrimonialismo apenas leva adiante as caractersticas da imbricao pblico-privado, e.g. a funcionaliza-o da esfera pblica por interesses privados.

Com isso, percebemos que a atuao dessa elite econmica e poltica d continuidade ao de uma elite menos definida, que se articulava desde a independncia da colnia portuguesa at implantao do novo regime, com o auxlio dos romances na-cionalistas e estudos sociolgicos. Mesmo as fronteiras poltica, econmica e literata ainda em formao, no foi diferente a con-jugao de esforos de determinados grupos para a construo da nao e da identidade cultural brasileira. A imbricao pblico-privado favorecia os interesses privados de grupos oligrquicos, ainda mais com a vinda da corte portuguesa, ao mesmo tempo que proporcionava as vagas para as aes estratgicas de sobrevi-vncia e convvio das gentes nas vilas, cidades e provncias. A ar-ticulao desses grupos e o poder de suas decises direcionaram a trajetria histrica da nao e de sua identidade cultural. Essa

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elite j manipulava tanto no plano material quanto no simblico, mas a inteligncia brasileira no foi sequestrada, nem estulta, como diz Jesse Souza, pois ambas, a elite e a inteligncia, encon-travam-se colonizadas simbolicamente pelo estrangeiro europeu.

Nesse panorama histrico-cultural da sociedade brasilei-ra, o que nos salta aos olhos o modo como as relaes pessoais e suas questes ticas foram tratadas, a partir de uma poltica cujos pressupostos tericos e prticos so estrangeiros. A conci-liao irresoluta entre teorias polticas distintas, propostas pelos grupos republicanos, emblemtica. Como cada teoria poltica pressupe uma concepo antropolgica, o novo regime brasileiro no poderia realizar com xito sua constituio sem considerar uma noo de homem para qual legislar. Dentre vrios motivos, a manipulao simblica desses grupos em funo do regime re-publicano no alcanou seu objetivo, mas, mesmo assim, inventa-ram uma tradio na qual se inseriram prodigiosamente, entre outros, Gilberto Freyre e Srgio Buarque de Holanda. Com seus estudos culturalistas, tornou-se possvel discutir, na sociedade brasileira, uma poltica adornada e pensar uma tica s avessas.

* *

Enfatizou-se a poltica em detrimento da tica e, at hoje, tem-se maior ateno com as questes da esfera pblica do que com os efeitos da ampliao da esfera privada. Esta ampliao, devido s aes estratgicas para sobrevivncia e convvio, rea-lizadas pelas vagas referenciais, inerentes imbricao pbli-co-privado, expressa-se na nfase das relaes pessoais, nomea-da de cordialidade e interpretada paradoxalmente como sendo aquilo que mata a constituio mas d vida ao povo. O que h nessa interpretao o desconhecimento histrico-cultural da imbricao pblico-privado, cuja fora retrica de seu falso para-doxo est na desconsiderao da nfase da esfera privada face nfase da esfera pblica. Assim sendo, tanto as condies reais

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da cordialidade so mantidas, pela reverberao dessa configura-o cultural pblico-privado, quanto, partindo de suas condies reais, a cordialidade mostra-se ambivalente e possuidora de ou-tras significaes possveis. Porventura, o que aconteceria com a sociedade brasileira se realmente aceitasse esse estrangeiro cor-dial? provvel que no mais hipocritamente comportar-se-ia como provncia... A significao tradicional da cordialidade j no suportaria a positividade de outros sentidos, pois ela exatamen-te o cume da interpretao negativa de uma sociedade. Pensar a positividade das relaes interpessoais na vida pblica culmina na imploso do conceito cordialidade.

Portanto, se a poltica, enquanto teoria normativa que pen-sa as instituies e sua organizao social, desconsidera a tica e passa a existir em dois nveis, um terico e um prtico, sendo este ltimo impregnado por interesses privados, compreensvel que a relativizao das leis e instituies oriente-se pelas consequn-cias das aes estratgicas. compreensvel tambm que se a ti-ca no pensada em relao a um modo de vida e pauta