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JÚLIOVERNE

MESTREZACHARIUS

TraduçãodeAntónioManuelCunhaeSáIlustraçõesdeJulesThéophileSchuler

FREEBOOKSEDITORAVIRTUAL–CLÁSSICOSESTRANGEIROS

TERROR–HORROR-FANTASIA

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Título:MESTREZACHARIUS.

Autor:JÚLIOVERNE(1828–1905).

Tradução:AntónioManueldaCunhaeSá(1854-1909).

Imagemdacapaeilustrações:JulesThéophileShuler(1821–1878).

Leiautedacapa:Canva.

Série:ClássicosEstrangeiros–vol.34.

Editor:FreeBooksEditoraVirtual.

Site:www.freebookseditora.com

Direitos:Originaletraduçãodedomíniopúblico(art.41,caputdaLeinº9.610,de 19 de fevereiro de 1998). Adaptação textual: © Paulo Soriano. Proibida areproduçãosemautorizaçãopréviaeexpressadoeditor.

Ano:2017.

Sitesrecomendados:

www.triumviratus.net,www.contosdeterror.com.br,

www.contosdeterror.site

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SumárioMESTREZACHARIUS

I—UmaNoitedeInvernoII—OOrgulhodaCiência

III—UmaEstranhaVisita

IV—AIgrejadeS.PedroV—AHoradaMorte

SOBREOAUTOR

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MESTREZACHARIUS

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I — Uma Noite deInverno

A cidade de Genebra está situada naextremidade ocidental do lago a quedeu o nome. O Ródano, que aatravessaaosairdo lago,divide-aemdois bairros distintos, e ele mesmo édividido,nocentrodacidade,porumailha situada entre as duas margens.Esta disposição topográfica reproduz-semuitasvezesnosgrandescentrosdocomérciooudaindústria.Decertoqueos primeiros nativos se sentiramtentados pela facilidade de transportequelhesofereciamasrápidascorrentesdosrios,essasestradasquecaminhamporsimesmas,segundoaexpressãodePascal

1. Com o Ródano, as tais

estradasnãocaminham,correm.

No tempo em que as construções regulares e ao gosto moderno não seelevavamaindanestailha,ancoradacomoumagaleotaholandesaameiodorio,a admirável acumulação das suas casas empoleiradas umas sobre as outrasoferecia à vista um quadro a um tempo confuso e encantador. A limitadaextensãoda ilha tinha feitocomquealgumasdessasconstruções seelevassemsobre estacas e semetessempelas águas revoltas doRódano.Aqueles grossosmadeiros, enegrecidos pelo tempo, gastos pelas águas, pareciam as pernas deimenso caranguejo e produziam fantástico efeito. Algumas linhas de pesca,amarelecidas pelo uso, verdadeiras teias de aranha estendidas no seio destealicercesecular,agitavam-senasombra,semelhandoafolhagemdaquelesvelhostroncosdecarvalho,eorio,engolfando-senomeiodaquelaflorestadeestacas,escumava,mugindodemodolúgubre.

Uma das habitações da ilha impressionava pelo seu aspecto de estranhavetustez.Eraacasadovelhorelojoeiro,mestreZacharius,desuafilhaGérande,

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deAubertThun,seuaprendiz,edasuavelhacriadaScholastique.

QuehomemextraordinárionãoeraaqueleZacharius!Asua idadepareciaindecifrável.OvelhomaisidosodeGenebranãopoderiadizerháquantotempoasuacabeçamagraeafiladalhevacilavasobreosombros,nemqualforaodiaemquepelaprimeiravezo tinhamvistoandarpelas ruasdacidade,deixandoflutuaraoventoasualongacabeleirabranca.Estehomemnãovivia.Oscilavaàmaneira do pêndulo dos seus relógios.O seu todo,magro e cadavérico, tinhatoques sombrios. Como os quadros de Leonardo da Vinci, enegrecera com otempo.

Gérandehabitavaomaisbeloaposentodavelhacasa,donde,passandoporuma janela estreita, o seu olhar ia melancólico demorar-se sobre os cumesnevadosdoJura.Porém,oquartodedormireoficinadovelhoocupavamumaespéciedesubterrâneo,quetocavaquasenasuperfíciedorioecujosobradoseapoiava sobreaspróprias estacas.Desde tempos imemoriais,mestreZachariussóde lá saíaàshorasdecomerouquando ia regularos relógiosdacidade.Orestodotempopassava-ojuntodeumamesacobertadenumerososinstrumentosderelojoaria,queelehavia,nasuamaiorparte,inventado.

Porque ele era um homem hábil, em toda a França e Alemanha as suasobraserammuitoestimadas.OsmaisperitosoperáriosdeGenebrareconheciamfrancamente a sua superioridade, o que era uma honra para esta cidade, cujoshabitantesoapontavamdizendo:

—Aelecabeaglóriadeterinventadooscapo!

Efetivamente, desta invenção, que os trabalhos de Zacharius mais tardefarãocompreender,dataaorigemdaverdadeirarelojoaria.

Depois de trabalhar habilmente e por muito tempo, Zacharius arrumavavagarosamente a ferramenta, cobria com leves mangas de vidro as peças queacabavadeajustar,efaziadescansararodaativadotorno;emseguida,levantavauma espécie de alçapão aberto no sobrado do seu reduto, e, debruçado horasinteiras, enquanto o Ródano se precipitava ruidosamente por baixo dele,embriagava-seaspirando-lheoscaliginososvapores.

Certanoitedeinverno,avelhaScholastiqueserviuaceia,daqual,segundocostume velho, participava o moço aprendiz. Apesar dos manjarescuidadosamentepreparadosquetinhadiantedesiembonitalouçaazulebranca,mestreZachariusnãocomeu.MalrespondeuàspalavrasmeigasdeGérande,a

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quem a taciturnidade mais sombria de seu pai preocupava visivelmente, e aprópria tagarelice de Scholastique passou-lhe tão despercebida como osbramidos da torrente, a que já não prestava atenção. Depois desta refeiçãosilenciosa,ovelhorelojoeirolevantou-sedamesasemabraçarafilha,semdaratodos asboas-noitesdo costume.Desapareceupelaporta estreitaque ia ter aoseuaposento,e,sobosseuspassospesados,aescadasoltouprofundosgemidos.

Gérande, Aubert e Scholastique ficaram por alguns momentos sem falar.Naquela noite, o tempo estava sombrio: as nuvens arrastavam-se comdificuldade ao longo dos Alpes e ameaçavam desfazer-se em chuva; atemperatura inclemente daSuíça enchia a almade tristeza, e os ventos do sulvagueavamnosarredoresesoltavamagudossilvos.

— Sabe,minha queridamenina— disse por fim Scholastique—, que onossomestre anda há uns diasmuito introspectivo?Valha-meNossa Senhora!Não me admira que ele não tivesse fome, porque as palavras ficaram-lhe noventre,emuitoespertohaviadeserodiaboparalheapanharalguma!

—Meu pai tem algum pesar secreto que não posso sequer imaginar—redarguiuGérande,aomesmotempoqueumadolorosainquietaçãomanifestava-seemseurosto.

—Menina,nãoseentregueà tristeza.ConheceossingularescostumesdemestreZacharius.Quempode ler-lhe na fronte os seus pensamentos secretos?Teve decerto algum motivo de aborrecimento, mas amanhã não se lembrarádisso,esearrependerádeverasdetercausadoalgumdesgostoàsuafilha.

Era Aubert quem assim falava, fitando os formosos olhos de Gérande.Auber era o único empregado quemestre Zacharius admitiu à intimidade dosseus trabalhos, porque lhe conhecera a inteligência, a discrição e a bondadenatural. Aubert afeiçoara-se a Gérande com a fé misteriosa que preside àdedicaçãoheroica.

Gérande tinhadezoitoanos.Oovaldo seu rosto lembravaodascândidasmadonasqueaveneraçãosuspendeaindanoscantosdasruasdasvelhascidadesdaBretanha.Emseusolhosmanifestava-seumainfinitaingenuidade.Inspiravaamor, como a mais suave realização de um sonho de poeta. Nos vestidosostentavacorespoucovistosaseoalvocorpete,que lhevelavaoseio, tinhaotomeocheiroprópriosdasvestimentasdeigreja.GérandepassavaaexistênciamísticanaquelacidadedeGenebra,queaindanãoseentregaranaqueletempoà

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aridezdocalvanismo.

Aomesmo tempo que lia demanhã e de tarde as orações latinas no seumissalcomfechosdeferro,GérandeleratambémosentimentoqueseabrigavanocoraçãodeAubertThun,eadivinharaaprofundadedicaçãoqueomecânicolhevotava.Efetivamente,aosolhosdojovemhomem,omundotodoresumia-senavelhacasadorelojoeiro,e,quando,acabadootrabalho,largavaaoficinademestreZacharius,iapassarorestodotempojuntodajovem.

A velha Scholastique via isto, mas não dizia palavra. A sua loquacidadeexercia-sedepreferênciasobreasdesgraçasdotempoeaspequenasmisériasdolardoméstico.Ninguémprocuravafazê-lacalar.SucediacomelaomesmoquesucediacomascaixasdemúsicaquesefabricavamemGenebra:depoisdelhedarcorda,seriaprecisoquebrá-laparanãotocartodasassuasárias.

Vendo Gérande mergulhada numa dolorosa taciturnidade, Scholastiquelevantou-se da velha cadeira de pau, pôs uma vela num castiçal, acendeu-a ecolocou-adiantedeumapequenaimagemdaVirgemabrigadanoseunichodepedra. Era costume ajoelharem-se diante desta madona padroeira do lardoméstico, pedindo-lhe a sua graça protetora para a noite que se seguia;masnaquelanoiteGérandepermaneceusilenciosanoseulugar.

— Ora bem, minha querida menina — observou Scholastique, comadmiração—,aceiaacabouesãohorasdedarasboas-noites.Quererácansaravistacomprolongadasvigílias?...Valha-meNossaSenhora!Étempodedormiredeprocurar algumaalegria emsonhosagradáveis!Nestes temposmalditosemquevivemos,quempodecontarcomumdiafeliz?

— Não será preciso mandar chamar algum médico para meu pai? —perguntouGérande.

— Um médico! — exclamou a velha criada. — Mestre Zacharius deualgumavezouvidosàssuasinvençõesesentenças?Paraosrelógiospodehaverremédios,masnãoparaocorpo!

—Quesehádeentãofazer?—murmurouGérande.—Eleiriatrabalhar?Iriadescansar?

—Gérande—acudiuAubertcomdoçura—,algumacontrariedademoralmagoamestreZacharius;nãoémaisnada.

—Econheceessacontrariedade?

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—Talvez,Gérande.

—Conte-nosisso—acudiuScholastiquecomvivacidade,apagandoavelaporeconomia.

—Háalgunsdias,Gérande—começouojovemoperário—,quesedáumfatoabsolutamente incompreensível.Todosos relógiosque seupai tem feitoevendido param de repente. Têm-lhe trazido um grande número deles.Desmanchou-os com cuidado: as molas estavam em bom estado e as rodasperfeitamentecolocadas.Tornouamontá-loscommaiscuidado,mas,apesardasuahabilidade,osrelógiosconservaram-separados.

—Issoécoisadodiabo!—exclamouScholastique.

—Oquequerdizercomisso?—perguntouGérande.—Ofatoparece-menatural.TudonaTerratemumlimite,eoinfinitonãopodeserobradoshomens.

—Entretanto,nemporissodeixadeserverdadequeandanistooquequerquesejadeextraordinário,misterioso—redarguiuAubert.—EumesmoajudeimestreZachariusaprocuraracausadodesarranjodosseusrelógios.Nãoapudeachar,e,maisdeumavez,desesperado,osinstrumentosmecaíramdasmãos.

—Também—replicouScholastique—paraqueseentregaraumtrabalhode réprobos? Pois é natural que um pequeno instrumento de cobre possacaminhar sozinho e marcar precisamente as horas? Deviam ter-se contentadocomoquadrantesolar.

— Não há de falar desse modo, Scholastique, quando souber que oquadrantesolarfoiinvençãodeCaim.—MeuDeus!Oqueestámedizendo?

—Parece-lhe—perguntouGérandecomingenuidade—quesepodepediraDeusquerestituaavidaaosrelógiosdemeupai?

—Semdúvidaalguma—respondeuojovemoperário.

—Bom,aí temosrezasinúteis—resmungouavelha—,masDeushádeperdoaremvistadaintenção.

Tornou-seaacenderavela.Scholastique,GérandeeAubertajoelharam-sesobreaslajesdoquarto,eajovemrezoupelaalmadesuamãe,pelasantificaçãodanoite,pelospresoseosviajantes,pelosmausepelosbons,e,principalmente,pelosdesconhecidospesaresdeseupai.

Em seguida, estas três devotas criaturas levantaram-se com alguma

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confiança no coração, porque tinham depositado as suas mágoas no seio deDeus.

Aubert recolheu-se ao seu quarto,Gérande sentou-se,muito pensativa, aopé da janela, ao tempo que a última claridade do dia de todo se apagava nacidadedeGenebra,eScholastique,depoisdeterdeitadoumpoucod’águasobreostiçõesecorridoosdoisenormesferrolhosdaporta,meteu-senacama,ondenãotardouasonharquemorriademedo.

Entretanto, o horror dessa noite de inverno aumentava. De quando emquando, de envolta comosvagalhõesdo rio, ovento engolfava-sepor entre aestacaria,eacasatremiatoda.Masajovem,absortanasuatristeza,sópensavaemseupai.DepoisdaspalavrasqueouviraaAubertThun,adoençademestreZacharius tomaraa seusolhosproporções fantásticas, eparecia-lhequeaquelaexistência tão querida, tendo-se tornado puramente mecânica, só comdificuldadesemovianoseixosjágastos.

Derepenteoguarda-vento,violentamenteimpelidopelaventania,bateunajanela do quarto. Gérande estremeceu e levantou-se sobressaltada, semcompreenderacausadoruídoqueafaziasairdoseutorpor.

Depois de se tranquilizar um pouco, abriu a vidraça. As nuvens tinhamrebentado,eumachuvatorrencialressaltavasobreostelhadosvizinhos.Ajovemdebruçou-se para agarrar o postigo balouçado pelo vento, mas teve medo.Pareceu-lhe que as águas do rio e do céu, confundindo-se tumultuosamente,submergiamaquelafrágilcasa,cujovigamentorangiapor todososlados.Quisfugir do seu quarto,mas notou por baixo dele a reverberação de uma luz quedeviavirdoquartodemestreZacharius,e,nummomentoemqueoselementossecalavam,chegaram-lheaosouvidosalgunsqueixumes.Tentoufecharajanela,masnãopôde.Oventoempurrava-acomviolência,comoummalfeitorqueseintroduznumacasa.

Gérande julgou que enlouquecia de terror! Que estaria seu pai a fazer?Abriu a porta, que lhe escapou dasmãos e bateu ruidosamente, impelida pelatempestade. Gérande achou-se então na sala onde havia ceado, que estava àsescuras,e,conseguindoàsapalpadelaschegaràescadaque iadaràoficinademestreZacharius,desceuporela,pálidaemeiomortadesusto.

Ovelhorelojoeiroestavaempénomeiodaqueleaposentoondeecoavamosmugidos do rio. Os cabelos eriçados davam-lhe um aspeto sinistro. Falava,

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gesticulavasemver,semouvir!Gérandeficoujuntodolimiardaporta.

—Éamorte!—diziamestreZachariuscomvozcava.—Éamorte!...Quetempome resta agora de vida, depois de haver dispersado aminha existênciapelomundo?Porqueeu,mestreZacharius,sounaverdadeocriadordetodososrelógiosquefabriquei!Foiumapartedaminhaalmaqueencerreinessascaixasdeferro,deprataoudeouro!Decadavezqueparaumdessesrelógiosmalditos,conheçoqueomeucoraçãocessadebater, porqueeuos regulei pelasminhaspulsações!

E,falandodestemodoestranho,ovelhodirigiuavistaparaasuamesadetrabalho. Achavam-se ali todas as peças de um relógio que ele tinhacuidadosamentedesmanchado.Pegouumcilindrooco,chamadotambor,noqualestá metida a mola, e tirou para fora a espiral de aço, que, em vez de sedesenrolar, segundo as leis da elasticidade, ficou enrolada como uma víboraadormecida.Pareciaparalisada,comoessesvelhosimpotentescujosangueafinalse enregelou. Em vão o mestre Zacharius procurou distendê-la com os seusdedos emagrecidos, cuja sombra se alongava desmedidamente sobre a parede,mas não o conseguiu, e, instantes depois, soltando uma imprecação terrível,arremessou-apeloalçapãoaosvagalhõesdoRódano.

Gérande, comoquepregadanochão, estava sem fôlego, semmovimento.Queriaenãopodiaaproximar-sedeseupai.Apoderava-sedelaumaalucinaçãovertiginosa.Desúbitoouviuumavoznaescuridãomurmurar-lheaoouvido:

—Gérande,minhacaraGérande!Adoraindaaconservadepé?Recolha-se.Anoiteestáfria.

—Aubert!—murmurouajovem,ameiavoz.—Aqui?

— Não devia inquietar-me com o mesmo que a inquieta? — redarguiuAubert.

Estas meigas palavras fizeram reviver a jovem. Encostou-se ao braço domecânicoedisse-lhe:

— Meu pai está bastante doente, Aubert! Só o senhor o poderá curar,porqueaqueladoençadaalmanãocederáàsconsolaçõesdafilha.Temoespíroafetado por um acidente muito natural, e o senhor, trabalhando com ele noconserto dos seus relógios, conseguirá restituir-lhe a razão. Aubert, não éverdade—ajuntouaindaimpressionadapeloquevira—,nãoéverdadequea

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vidademeupaiseconfundecomadosseusrelógios?

Aubertnãorespondeu.

—Masaocupaçãoquemeupai exercenão serácondenadapelocéu?—exclamouGérande,estremecendo.

—Nãosei—respondeuoartífice,aquecendocomassuasmãosasmãosgeladasdajovem.—Masvolteparaoseuquarto,minhapobreGérande,ecomorepousorecuperealgumaesperança!

Gérande voltou vagarosamente para o seu quarto e aí permaneceu até aoromperdodia,semqueosonolhefizessecerraraspálpebras,enquantomestreZacharius,mudoeimóvel,viaoriocorrendoruidosamenteaseuspés.

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II — O Orgulho daCiência

É proverbial a severidade domercador genebrês em matéria denegócio. É um mercador de rígidaprobidade e excessiva retidão. Qualnão foi, pois, a vergonha de mestreZachariusquandoviuosrelógios,queele tinha fabricado com tamanhasolicitude, serem-lhe devolvidos detodososlados!

Ora, ele estava certo de queaqueles relógios paravam de súbito,sem nenhuma razão aparente. Asrodas achavam-se em bom estado eperfeitamente colocadas, mas asmolas haviam perdido toda aelasticidade. O relojoeiro debalde

procurou substituí-las. As rodas conservaram-se imóveis. Estes transtornosinexplicáveis fizeram ummal imenso amestre Zacharius.As suasmagníficasinvençõestinhamlevantadocontraelesuspeitasdebruxaria,queentãotomaramcorpo. O boato chegou até ao conhecimento de Gérande, e muitas vezes elareceoupelasortedeseupai,quandoolharesmal-intencionadossefixavamnele.

Entretanto,nodiaqueseseguiuaestanoitedeangústias,mestreZachariuspôdeentregar-seaotrabalhocomalgumaconfiança.OSolmatutinorestituiu-lheemparteacoragem.Aubertnãotardouareunir-seaelenaoficinaerecebeudeleumbom-diacheiodeafabilidade.

—Estoumelhor—declarouovelhorelojoeiro.—Nãoseiqueesquisitasdoresdecabeçaontemmemolestavam,masoSolafugentou-asjuntamentecomasnuvensdanoite.

—Palavra,mestre—redarguiuAubert—,nempormimnempelosenhoreugostodanoite!

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—Etensrazão,Aubert.Sevieresaserumhomemsuperior,compreenderásqueodiateétãonecessáriocomoosustento!Umsábiodegrandeméritodeve-seàshomenagensdorestodoshomens.

—Mestre,olheopecadodoorgulhoqueestáconsigooutravez.

—Do orgulho,Aubert!Destrói omeu passado, aniquila omeu presente,dissipa omeu futuro, e entãome será permitido viver na obscuridade! Pobrerapaz, que não compreende as coisas sublimes a que a minha arte se ligaintimamente. Não serás tu, então, mais do que um instrumento nas minhasmãos?

—Entretanto,mestreZacharius,maisdeumavez tenhomerecidoosseuscumprimentospelaformacomoajustoaspeçasmaisdelicadasdosseusrelógiosepêndulas.

—Semdúvida alguma,Aubert—volveumestreZacharius—, tu és umbomoperárioaquemeuestimo.Mas,quandotrabalhas,nãojulgasterentreosdedos senão cobre, ouro, prata, e não sentes estes metais, que o meu gênioanima, palpitaremcomocarneviva!Por isso hás demorrer damorte das tuasobras!

MestreZachariusficousilenciosoapósestaspalavras;masAubertprocuroureataraconversa.

—Porminhafé,mestre—continuouele—,gostodevê-lotrabalharassimsemdescanso!Omestrehádeestarpreparadoparaafestadanossacorporação,porquevejoqueotrabalhodesterelógiodecristalavançarapidamente.

—Certamente,Aubert—exclamouovelhorelojoeiro—,enãoseráparamimpequenahonraoterpodidocortaretalharestamatériaquetemadurezadodiamante!Ah!LouisBerghem

2fezbememaperfeiçoaraartedoslapidários,que

mepermitiupolirefuraraspedrasmaisduras!

MestreZachariustinhanestemomentonamãopequenaspeçasderelojoariafeitas de cristal e delicadamente trabalhadas.As rodas, os eixos, a caixa desterelógio eram da mesma matéria, e neste artefato da maior dificuldade tinhamanifestadoumtalentoincrível.

—Nãoéverdade—acrescentouele,aomesmotempoqueassuasfacessefaziam purpúreas — que será belo ver palpitar este relógio através do seuinvólucrotransparente,epodercontaraspalpitaçõesdoseucoração!

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—Aposto,mestre,queelenãohádevariarumsegundoporano!

—Ehásdeganharaaposta,decerto!Nãoempregueieuneleamaispuraessênciademimmesmo?Poracasoomeucoraçãovaria?

Aubertnãoseatreveualevantarosolhosparaomestre.

—Fala-mefrancamente—tornouovelhocommelancolia.—Nuncametomaste por um louco? Não me julgas entregue às vezes a deploráveisalucinações?Éverdade,nãoé?Nosteusolhosenosdeminhafilhatenhomuitasvezes lido aminha condenação.Oh— exclamou ele commágoa—, não sermesmocompreendidodosentesaquemmaisseamanomundo!Mas,diantedeti,Aubert, provarei que tenho razão!Não abanes a cabeça, rapaz, porque vaisficar estupefato!Nodia emque souberes escutar-mee compreender-me,verásquedescobriossegredosdaexistência,ossegredosdamisteriosauniãodaalmaedocorpo!

Assim falando, mestre Zacharius mostrava-se sublime de orgulho. Seusolhos brilhavam com um fogo sobrenatural, e a soberba fazia-lhe tumultuar osangue.Enaverdade, se algumavez a vaidade tivesse justificação, seria a domestreZachariusamaisrespeitáveldetodas.

De fato, até o seu tempo, a relojoaria permanecera na infância da arte.Desde o dia em que Platão, quatrocentos anos antes da era cristã, inventou orelógionoturno,espéciedeclepsidraqueindicavaashorasdanoitepelotoqueduma flauta, a ciência ficou quase estacionária.Osmestres cuidarammais daarte do que damecânica, e foi então a época dos belos relógios de ferro, decobre, de madeira, de prata, delicadamente esculpidos como um gomil deCellini

3.Obtinha-seumaobra-primade lavorquemediao tempodeummodo

muito imperfeito,maseraumaobra-prima.Quandoa imaginaçãodoartista sedesviou do lado da perfeição plástica, aplicou-se a fabricar relógios compersonagensquemexiamaosomdetoquesmelodiosos,ecujaapresentaçãoemcena era regulada de um modo muito divertido. Além do mais, quem seinquietavanessaépocaemregularamarchadotempo?Asdelongasemquestõesjudiciaisnãosetinhamaindainventado.Asciênciasfísicaseastronômicasnãoestabeleciamosseuscálculossobremedidasdetempoescrupulosamenteexatas.Nãohavianemestabelecimentosquefechassemaumahoracerta,nemtrensquepartissemcomumaexatidãolevadaatéossegundos.Aocairdanoite,tocava-seosinodecorrer,edepoisdiziam-seashorasemaltosgritosnomeiodosilêncio.

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Se a existência se regula pela quantidade de negócios realizados, com certezaqueseviviamenostempo,masvivia-semelhor.Oespíritoenriquecia-secomosnobres sentimentos, filhos da contemplação das obras-primas, e a arte não sefazia de carreira.Edificava-seuma igreja emdois séculos.Umpintor só faziaalgunsquadrosnasuavida,umpoetasócompunhaumaobrasublime,maseramoutrastantasobras-primasqueosséculosseencarregavamdeapreciar.

Quando, finalmente, as ciências exatas fizeram progressos, a relojoariaseguiu o seu impulso, se bem que sempre sopeada por uma dificuldade quepareciainvencível:amedidacontínuaeregulardotempo.

Ora,foinomeiodestaestagnaçãoquemestreZachariusinventouoscapo,quelhepermitiuobterumaregularidadematemática,submetendoomovimentodopênduloaumaforçaconstante.Estainvençãotranstornara,porém,acabeçadovelhorelojoeiro.Oorgulho,subindo-lhenocoração,comoomercúriosobenotermômetro,atingiraatemperaturadasloucurastranscendentes.Poranalogia,deduziraconsequênciasmaterialistas,e, fabricandoosseusrelógios, imaginavatersurpreendidoosegredodauniãodaalmacomocorpo.

Porisso,naqueledia,vendoqueAubertoescutavacomatenção,disse-lhenumtomsimpleseconvicto:

—Sabesoqueéavida,meufilho?Compreendestejáaaçãodessasmolasqueproduzemaexistência?Olhastejáparadentrodetimesmo?Não.Todavia,comosolhosdaciência,podiastervistoaíntimarelaçãoqueexisteentreaobradeDeuseaminha,porque foidasuacriaçãoqueeucopieiacombinaçãodasrodasdosmeusrelógios.

— Mestre — replicou Aubert com vivacidade —, pode porventuracomparar-se uma máquina de cobre e aço com esse sopro de Deus chamadoalma, que anima os corpos como a brisa comunica o movimento às flores?Podemacasoexistirrodasimperceptíveisquefaçammoverasnossaspernaseosnossos braços? Que peças, por bem combinadas que fossem, podiam gerarpensamentosemnós?

—A questão não está nisso— redarguiu Zacharius com doçura,mas aomesmotempocomateimosiadocegoquecaminhaparaoabismo.—Paramecompreenderes, lembra-te do destino do scapo que inventei. Quando vi airregularidadedamarchadeumrelógio,compreendiqueomovimentoencerradonelenãobastavaequeeraprecisosubmetê-loàregularidadedeumaoutraforça

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independente.Entendiporissoqueopêndulopodiaprestar-meesseserviço,sechegasse a regular-lhe as oscilações!Ora não foi uma ideia sublime, a que eutive,delherestituirasuaforçaperdidapeloprópriomovimentodorelógioqueeleestavaencarregadoderegular?

Aubertfezumsinaldeaprovação.

—Agora,Aubert—continuouovelho relojoeiro, animando-se—, lançaumolhar sobre timesmo!Nãocompreendesqueháduas forçasdiferentes emnós:adaalmaeadocorpo,istoé,ummovimentoeumregulador?Aalmaéoprincípiodavida, logoéomovimento.Quer sejaproduzidoporumpeso,porumasimplesmola,ouporumainfluênciamaterial,nãodeixaporissoderesidirno coração. Mas, sem o corpo, esse movimento seria desigual, irregular,impossível! Por isso, o corpo serve de regulador da alma, e, comoo pêndulo,está submetidoaoscilaçõescertas.Eé tãoverdade istoqueagentepassamalquandoobeber,ocomereodormir—numapalavra,asfunçõesdocorpo—nãosãoconvenientementereguladas!Tambémnosmeusrelógios,aalmarestituiaocorpoa forçaperdidapelassuasoscilações.Orabem,quemproduzentãoessauniãoíntimadaalmaedocorposenãoumscapomaravilhoso,pormeiodoqualasrodasdeumvêmendentar-senasrodasdooutro?Eisaíoqueeuadivinheieapliquei,ejáparamimnãohásegredosnestavida,quenãopassa,afinal,deumaengenhosamecânica!

Mestre Zacharius estava sublime nesta alucinação, que o transportava atéaosmaisprofundosmistériosdo infinito!Porém, sua filhaGérande,paradanolimiar da porta, tudo ouvira. Precipitou-se nos braços do pai, que a apertouconvulsivamentecontraopeito.

—Quetens,minhafilha?—perguntoumestreZacharius.

—Seeusótivesseaquiumasimplesmola—afirmouela,levandoamãoaocoração—,nãooamariatanto,meupai!

MestreZachariusfitouafilhaenãorespondeu.

De repente, soltou um grito, levou precipitadamente a mão ao coração ecaiudesfalecidosobreasuavelhapoltronadecouro.

—Quetem,meupai?

—Socorro!—bradouAubert.—Scholastique!

MasScholastique não apareceu logo.Tinhambatido à porta. Fora abrir e

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quando voltou para a oficina, antes de abrir a boca, o velho relojoeiro, quetornaraasi,dizia-lhe:

— Adivinho, minha velha Scholastique. Trazes-me mais um dessesmalditosrelógiosqueparam!

— Jesus!É verdade—confirmouScholastique, entregando um relógio aAubert.

—Omeu coração não podia se enganar!— disse o velho, soltando umsuspiro.

Auberttornaraadarcordaaorelógio,masestecontinuouimóvel.

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III— Uma EstranhaVisita

SenãofosseaafeiçãoporAubert,que a prendia ao mundo, a vida deGérande extinguir-se-ia ao mesmotempoqueadeseupai.

O velho relojoeiro definhavagradualmente. As suas faculdadestendiam evidentemente a enfraquecer,concentrando-se num só pensamento.Por uma funesta associação de ideias,tudo relacionara com a suamonomania, e a vida terrestre pareciatê-lo abandonado para dar lugar àexistência extranatural das potênciasintermediárias. Por isso alguns rivaismal-intencionados fizeram reviver osboatosdiabólicosquetinhamcorridoa

respeitodostrabalhosdemestreZacharius.

AconfirmaçãodosinexplicáveisdesarranjosquesederamnosseusrelógiosfezprodigiosoefeitoentreosprópriosrelojoeirosdeGenebra.

Oque significavaaquela súbita inérciadas suas rodas, equal a razãodasextraordinárias relaçõesque elaspareciam ter comavidadeZacharius?Erammistérios desses que nunca se encaram semumparticular terror.Nas diversasclassesdacidade,desdeohumildeaprendizatéaofidalgo,queseserviamdosrelógiosdovelhorelojoeiro,nãohouveninguémquenãopudesseajuizarporsimesmodasingularidadedofato.Quiseram,masdebalde,aproximar-sedemestreZacharius.Orelojoeirocaiugravementedoente—oquepermitiuàfilhasubtraí-loàsincessantesvisitasquedegeneravamemcensuraserecriminações.

Os médicos e os remédios nada puderam contra aquele definhamentoorgânico,cujacausanãodescobriram.Pareciaporvezesqueocoraçãodovelhocessava de bater e, em seguida, as suas palpitações tornavam a começar cominquietadorairregularidade.

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Estabelecera-se por aquele tempo o costume de submeter as obras dosmestres à apreciação do populacho. Os mestres dos diferentes ofíciosprocuravamdistinguir-sepelanovidadeoupelaperfeiçãodas suasobras, e foientreelesqueoestadodemestreZachariusencontrouamais ruidosapiedade,maspiedadeinteressada.Osseusrivaislastimavam-notantomaisquantomenoso temiam. Lembravam-se ainda dos triunfos do velho relojoeiro, quando eleexpunha aqueles magníficos relógios com figuras que se moviam, aquelesrelógios com música que causavam geral admiração e obtinham preços tãoelevadosnascidadesdaFrança,daSuíçaedaAlemanha.

Entretanto,graçasaoscuidadosconstantesdeGérandeedeAubert,asaúdedemestreZacharius pareceu restabelecer-se umpouco, e, nomeio do sossegoque lhe dava a convalescença, conseguiu subtrair-se aos pensamentos que oabsorviam.Assimquepôdeandar,afilhaofezsairdecasa,àqualosfreguesesdescontentes afluíam continuamente. Aubert, esse ficava na oficina,desmanchandoearmandoinutilmenteaquelesrelógiosrebeldes,eopobrerapaz,nada compreendendo, apoiavamuitas vezes a fronte nas mãos com receio deenlouquecercomoseumestre.

Gérandedirigiasempreospassosdopaiparaoslugaresmaisaprazíveisdacidade. Amparando mestre Zacharius pelo braço, encaminhava-se para SantoAntônio,deondeavistasealongapelacolinadeColigneepelolago,edeondeàs vezes, nasmanhãs puras, se chegam a distinguir os gigantescosmorros domonteBueterguendo-senohorizonte.Gérandeindicavapelosseusnomestodosestes lugares quase esquecidos de seu pai, cujamemória parecia apagada, e orelojoeiro achava um prazer infantil em reaprender todas estas coisas, cujalembrançaseobliteraranoseucérebro.

MestreZachariusencostava-seàfilha,eaquelasduasfrontes,umabrancaeoutraloura,confundiam-sebanhadaspelomesmoraiodoSol.

Sucedeutambémqueafinalovelhorelojoeironotouquenãoestavasónomundo.Vendoafilhatãojovemeformosa,ele,velhoealquebrado,lembrou-sede que depois da suamorte ela ficaria só, sem proteção, e olhou em volta deambos.MuitosejovensmecânicosdeGenebratinhamjáfeitoacorteaGérande,porémnenhum tivera admissãono retiro impenetrável ondevivia a família dorelojoeiro.

Foinatural,portanto,que,nestemomentolúcidodoseucérebro,aescolhadovelhorecaísseemAubertThun.Logoqueestaideiaseapoderoudele,notou

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que os dois jovens tinham sido educados nas mesmas crenças e nas mesmasideias, e as oscilações daqueles dois corações pareciam-lhe “isócronas”, comodisseumdiaaScholastique.

Avelhacriada, seduzidacomapalavra,quealiásnãocompreendia, juroupelasantadasuadevoçãoqueacidadeempesoohaviadesaberemmenosdequinze minutos.Mestre Zacharius encontrou grande dificuldade em detê-la, eobtevedelaafinalapromessadeguardarsegredosobreoassunto,promessaqueelanãocumpriu.

De modo que, sem Aubert e Gérande saberem coisa alguma, em toda aGenebranãosefalavadeoutracoisasenãodasuapróximaunião.Massucedeutambém que, durante estas conversações, se ouviamuitas vezes uma singularexclamaçãoderancor,eumavozqueasseverava:

—GérandenãocasarácomAubert.

Seosconversadoressevoltavam,achavam-seempresençadeumvelhoquenãoconheciam.

Que idade teria esta singular criatura? Ninguém o poderia dizer.Adivinhava-seapenasquepoderiaexistirhaviagrandenúmerodeséculos.Asuagrandecabeçaachatadadescansavanunsombroscuja largura igualavaaalturadocorpo,quenãopassavadetrêspés.Estapersonagemfariaboafigurasobreacaixa de um relógio de pêndulo, porque o mostrador acomodar-se-iaperfeitamente no seu rosto e o pêndulo oscilaria à vontadena vastidãodo seupeito. Facilmente se tomaria o nariz daquele homem pelo ponteiro de umquadrante solar, tão delgado e agudo ele era; os dentes, ralos e de superfícieepicicloide, lembravamo dentado de uma roda e rangiam-lhe sob os lábios; avoztinhaosommetálicodeumacampainha,eerapossívelsentir-lheocoraçãobater como o tique-taque de um relógio. Tinha uns braços que se moviam àmaneiradeponteiros,ecaminhavadeummodo incerto, semnuncaolharparatrás.Seseguiamaquelehomem,observavamquefaziaumaléguaporhoraequeasuamarchaeraquasecircular.

Haviapoucotempoqueestaextraordináriacriaturaassimvagueavaouantesgiravacircularmentepelacidade;mastinha-sepodidojáobservarquetodososdias,nomomentoemqueorelógiopassavapelomeridiano,paravaemfrentedaCatedral de S. Pedro, e, depois de darem as doze badaladas do meio-dia,continuavaoseucaminho.Aforaestemomentoexato,pareciasurgirnomeiode

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todasasconversasemquese tratavadovelhorelojoeiro,e todosperguntavamcom terror que relaçãopodia existir entre ele emestreZacharius.Alémdisso,notava-sequenãoperdiadevistaovelhoeafilhaduranteosseuspasseios.

Umdia,naTreille,Gérandereparounaquelemonstroqueolhavaparaela.Chegou-semuitoparaopai,assaltadapeloterror.

—Quetens,minhaGérande?—perguntoumestreZacharius.

— Não sei— respondeu a jovem.— Acho-te mudada, minha filha!—observou o velho relojoeiro. — Irás também agora adoecer? Ora bem —acrescentou,sorrindocomtristeza—,seráprecisoqueeucuidede ti,eheidecuidarbem.

—Oh!meupai,não,istonãohádesernada.Tenhofrio,eparece-mequeé...

—Oquê,Gérande?

—Apresençadestehomemquenossegueconstantemente—respondeuelaemvozbaixa.

MestreZachariusvoltou-separaovelho.

—Palavra, regula bem—disse ele, com ar de satisfação—, porque sãoexatamente quatro horas. Nada receies, minha filha: não é um homem, é umrelógio!

Gérandeolhouparaopai com terror.ComoéquemestreZacharius tinhapodidolerashorasnorostodaquelasingularcriatura?

— A propósito — prosseguiu o velho relojoeiro, sem se ocupar maisdaqueleincidente—,nãovejoAubertháalgunsdias.

— Mas ele não nos abandonou, meu pai — redarguiu Gérande, cujospensamentostomaramumadireçãomaisagradável.

—Oqueestáfazendoele,então?

—Estátrabalhando,meupai.

—Ah—exclamou o velho—, anda se ocupando no conserto dosmeusrelógios,nãoéverdade?Masnuncaosconseguiránuncapôremordem,porquenãoéumareparaçãodequeelesprecisam,masdeumaressurreição!

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Gérandeficousilenciosa.

—Éprecisoqueeusaiba—acrescentouovelho—senãotrouxerammaisalgunsdessesmalditosrelógiosentreosquaisoDiaboespalhouumaepidemia.

Emseguida,mestreZachariusrecaiunumsilêncioabsoluto.Porfim,bateuà porta de casa e, pela primeira vez depois da sua convalescença, enquantoGérandesedirigiaparaoseuquarto,desceuàoficina.

Nomomentoemquealientrava,umdosnumerososrelógiossuspensosnaparededeucincohoras.Ordinariamente,osdiferentestoquesdaquelasmáquinas,admiravelmente reguladas, faziam-se ouvir simultaneamente e o seu acorderegozijavaocoraçãodovelho;mas,naqueledia,tocaramtodosunsdepoisdosoutros,demodoqueduranteumquartodehoraosseussonssucessivosforamdeensurdecer.

Mestre Zacharius padecia de um modo horrível; não podia estar quieto,andavadeunsrelógiosparaosoutros,ebatia-lhesocompassocomoumdiretordeorquestraquejánãopudessesersenhordosseusmúsicos.

Quando o último som se extinguiu, a porta da oficina abriu-se, e mestreZachariusestremeceudospésatéàcabeçaaoverdiantedesiovelhobaixoque,fitando-o,lheperguntou:

—Mestre,podereiconversaralgunsinstantescomosenhor?

—Quemévocê?—perguntouorelojoeirocommodosacudido.

—Umcompanheirodetrabalho.SoueuqueestouencarregadoderegularoSol.

—Ah,équemregulaoSol?—volveumestreZachariuscomvivacidade.—Poisnãolhedouosmeusparabénsporisso!OseuSolregulamale,paranospormosdeacordocomele,somosobrigadosoraaadiantarosnossosrelógios,oraaatrasá-los.

—EpelapatacaprinadoDiabo—exclamouamonstruosapersonagem—,temrazão,mestre!OmeuSolnãoindicasempremeio-dia,nomesmomomentoemqueoindicamosseusrelógios.Masumdiaviráasaber-sequeissoprovémda desigualdade do movimento de translação da Terra, e será inventado ummeio-diamédioqueporáemordemessairregularidade!

—Vivereiaindanessaépoca?—perguntouovelhorelojoeiro,cujosolhos

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seanimaram.

—Decerto—replicouovelhinho, rindo.—Poispode imaginarqueestámorrendo?

—Ai,emtodoocasoestoubemdoente!

—Apropósito,falemosdisso.PorBelzebu!Conduzir-nos-áaoassuntodequelhequerofalar.

Eassimdizendo,aquelaestranhacriaturasaltousemcerimóniaparaavelhapoltronadecouroecruzouaspernas,àmaneiradosossosdescarnadosqueospintoresdetelasfunéreastraçamporbaixodascaveiras.Emseguida,redarguiunumtomirônico:

—Ora,vejamos,mestreZacharius,queéquesepassanestaboacidadedeGenebra?Dizem que a sua saúde se altera, que os seus relógios têm bastantenecessidadedemédicos.

—Ah,julgaqueháumarelaçãoíntimaentreaexistênciadeleseaminha?—exclamoumestreZacharius.

— Eu imagino que esses relógios têm defeitos, vícios até. Se essesmaganõesnãoprocedemdeummodomuitoregular,éjustoquesoframocastigodoseudesregramento.

—Aqueosenhorchamadefeitos?—replicoumestreZacharius,corandoemvistadotomsarcásticocomqueaquelaspalavrastinhamsidoproferidas.—Nãotêmelesdireitodesemostraremufanosdasuaprocedência?

—Muito,muito,não!—redarguiuovelhinho.—Têm,éverdade,nomecélebre.Sobreoseumostradoracha-segravadaumaassinaturailustre,egozamdoprivilégioexclusivodeseintroduziremnoseiodasmaisnobresfamílias.Masháumtempoparacá,nãoregulam,mestreZachariusnão lhesdáremédio,eomaisinsignificantedosaprendizesdeGenebraacha-lhesdefeitos!

—Amim,amim,mestreZacharius!—exclamouovelhocomumterrívelmovimentodeorgulho.

— Sim, a si, mestre Zacharius, que não pode restituir a vida aos seusrelógios!

—Maséporqueeutenhofebreeelestambématêm!—redarguiuovelhorelojoeiro,aomesmotempoqueumsuorfriolhecorriaportodososmembros.

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— Bem, então morrerão com o senhor, visto que o mestre se vêimpossibilitadoderestituirumpoucodeelasticidadeàssuasmolas!

—Morrer!Não!—dasuaprópriabocaoouvi.—Nãopossomorrer,eu,oprimeiro relojoeiro do mundo; eu que, por meio dessas peças e dessas rodasdiversas, soube sujeitar o tempo a leis exatas e não posso dispor dele comosoberano?Antesdevirumgêniosublimeregularizaressashorasdesordenadas,em que imensa indecisão não estavamergulhado o destino humano? Por quemomento determinado se podiam regular os atos da vida?Mas tu, homemouDiabo, quemquer que sejas, tu não refletiste namagnificência daminha arte,quechamatodasasciênciasemseuauxílio?Não!Não!Eu,mestreZacharius,eunãopossomorrer,vistoque,tendoreguladootempo,otempomorreriacomigo!Voltaria a esse infinito de que o meu gênio o soube arrancar, e perder-se-iairreparavelmentenoabismodonada!Não,é tão impossíveleumorrercomooCriadordesteuniversosubmetidoàssuasleis.Tornei-meseuigualepartilheidoseupoder!SeDeuscriouaeternidade,mestreZachariuscriouotempo.

Ovelhorelojoeiropareciaentãooanjocaído,erguendo-secontraoCriador.O velhinho afagava-o com o olhar e parecia inspirar-lhe toda aquela cóleraímpia.

—Bemfalado,mestre!—replicou.—BelzebutinhamenosdireitosdoqueomestredesecompararcomDeus!Convémqueasuaglórianãopereça!Poressarazão,oseuservoquerdar-lheomeiodedominaressesrelógiosrebeldes.

—Qualé,qualéessemeio?—exclamoumestreZacharius.

—Irásabê-lonodiaseguinteàqueleemquemehouverconcedidoamãodesuafilha.

—DaminhaGérande?

—Delamesma!

—O coração de minha filha não é livre— respondeumestre Zachariusàquelaproposta,quenãopareceunemadmirá-lonemimpressioná-lo.

—Ora...nãoéomenosformosodosseusrelógios,mashádeporfimparartambém.

—Minhafilha,aminhaGérande!...Não!...

—Pois bem,mestreZacharius!Volte para os seus relógios!Arranje-os e

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desmanche-os! Prepare o casamento de sua filha e do seu oficial!Tempere asmolas feitas do seu melhor aço! Abençoe Aubert e a formosa Gérande, maslembre-sebemdequeGérandenãocasarácomAubert!

E,dito isto,ovelhosaiu,masnão tãodepressaquemestreZachariusnãopudesseouvirdar-lheseishorasnopeito.

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IV — A Igreja de S.Pedro

Entretanto,oespíritoeocorpodemestre Zacharius enfraqueciam de diaparadia,comadiferençaapenasdequeuma sobre-excitação extraordinária ofez aplicar-semais profundamente quenunca aos seus trabalhos de relojoaria,dosquaisafilhanãoconseguiudistraí-lo.

O orgulho criara nele novosalentos, depois daquela crise à qual oseu estranho visitante o haviatraiçoeiramente levado, e resolveudominar,à forçadegênio,a influênciamalditaquepesava sobreelee as suasobras. Visitou primeiramente osdiferentes relógiosdacidadeconfiados

ao seu cuidado. Certificou-se com escrupulosa atenção de que as rodas seachavam em bom estado, os eixos sólidos, os contrapesos exatamenteequilibrados.Nemmesmoossinosemais instrumentosdedarhorasdeixaramdeserauscultados,oquemestreZachariusefetuoucomoreconhecimentodeummédicoexaminandoopeitodeumdoente.Nada indicavaqueaqueles relógiosestivessememvésperasdeseratacadosdeinércia.

Gérande e Aubert acompanhavammuitas vezes o velho relojoeiro nestasvisitas. O mestre devia ter encontrado prazer em vê-los tão interessados emsegui-lo e, por certo, ele não se preocuparia tanto com o seu próximo fim serefletissequeasuaexistênciadeviaserprolongadapeladaquelesentesqueridos,secompreendessequenosfilhosficasemprealgumacoisadavidadeumpai!

Voltando para casa, o velho relojoeiro prosseguia os seus trabalhos comfebril assiduidade. Apesar demuito convencido de que nada podia conseguir,parecia-lheimpossívelqueassimdevesseser,earmavaetornavaadesarmarosrelógiosquelhelevavamàoficina.

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Porsuaparte,Aubertseesforçava,emvão,pordescobrirascausasdomal.

—Mestre—sugeriuele—,istonãopodesersenãodeestaremjágastososeixoseasrodasdentadas!

— Achas então prazer em me matar a fogo lento? — redarguiu-lheviolentamentemestreZacharius.—Estesrelógiossãoobradealgumacriança?Poracaso,comreceiodeferirosdedos,modeleiaotornoaspeçasdecobredequeelessecompõem?Nãofuieumesmoqueasforjeiparaobtermaiordureza?Não são essas molas temperadas com rara perfeição? Pode alguém empregaróleosmaisfinosparaasumedecer?Tumesmoconcordasemqueéimpossível,econfessasafinalqueoDiaboandametidonisto!

E depois, desde pela manhã até à meia-noite, os fregueses descontentesafluíamcadavezemmaiornúmeroàoficina,econseguiamchegaratéaovelhorelojoeiro,quenãosabiaaquemdarouvidos.

—Esterelógioatrasa-sesemqueeupossaacertá-lo!—queixava-seum.

— Este outro — prosseguia uma voz diferente — é de uma teimosiaincrível,eparounadamaisnadamenoscomooSoldeJosué!

—Seéverdadequeasuasaúde—repetiaamaiorpartedosdescontentes—influinadosseusrelógios,mestreZacharius,cure-sequantoantes!

O velho punha-se a olhar para toda aquela gente com ar espantado e sórespondiameneandoacabeçaouproferindotristespalavras.

—Esperempelosprimeirosdiasbonitos,meusamigos!Éaestaçãoemqueaexistênciarevivenoscorposfatigados!ÉprecisoqueoSolnosvenhaaqueceratodosnós.

—Quegrandevantagem,seosnossosrelógiostêmdeestardoentestodooinverno!—retorquiu-lheumdosmaisdesesperados.—Sabe,mestreZacharius,queoseunomeestáinscritocomtodasasletrasnomostrador?Valha-oDeus!Omestrenãohonraaassinatura!

Afinal, aconteceu que o velho, envergonhado daquelas censuras, tiroualgumas peças de ouro do seu velho cofre e começou a comprar os relógiosestragados.Aestanotícia,osfreguesesacudiramemgrandenúmeroeodinheirodaquelapobrecasaconsumiu-sebemdepressa;porém,aprobidadedorelojoeiroficouilibada.Gérandeaplaudiucalorosamenteaqueladelicadezadesentimentos,queirremediavelmenteaarruinava,enãotardouqueAuberttivessedeoferecer

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assuaseconomiasamestreZacharius.

—Queserádaminhafilha?—suspiravaovelhorelojoeiro,agarrando-se,porvezes,nestenaufrágioaosentimentodoamorpaternal.

AubertnãoseatreveuaresponderquesentiabastantecoragemparaofuturoegrandededicaçãoporGérande.NaquelediamestreZachariuster-lhe-iadadoonome de genro, desmentindo as funestas palavras que ainda lhe zumbiam aosouvidos:“GérandenãodesposaráAubert”.

Entretanto, com este sistema, o velho relojoeiro chegou a empobrecer-secompletamente.Osseusvelhosvasos,curiosospelaantiguidade,passaramparamãosestranhasedesfez-sedasmagníficasalmofadasdecarvalho,delicadamenteesculpidas,quelherevestiamasparedesdacasa.Algumassingelaspinturasdosprimeirospintores flamengosdeixarambemdepressade recrear avistade suafilha, e tudo, inclusiveaspreciosaspeçasde ferramentaqueo seugênio tinhainventado,foivendidoparaindenizarosreclamantes.

SóScholastiquenãoqueriaconformar-secomaquelemododeproceder.Osseusesforços,porém,nãopodiamimpedirqueosimportunosseaproximassemdeseuamoesaíssemdepoiscomalgumobjetoprecioso.Entãoasuatagarelicefazia-se ouvir em todas as ruas do seu bairro, onde há muito a conheciam.Ocupava-seemdesmentirosboatosdebruxariaemagiaquecorriamarespeitodeZacharius.Mas,comonofundoestavaconvencidadaverdadedessesboatos,fartava-se de rezar grande número de orações para que lhe fossem perdoadasaquelaspiedosasmentiras.

Notara-se,haviaalgumtempo,queorelojoeirodeixaradecumprirosseusdeveres religiosos.Antigamente, acompanhava sempreGérande às solenidadesda igreja,epareciaacharnaoraçãooencanto intelectualqueestaderramanasinteligênciaselevadas,dadoqueéomaissublimeexercíciodaimaginação.Esteafastamentovoluntáriodovelhoquantoàspráticasreligiosas,coincidindocomoproceder particular da sua vida, justificava até certo ponto as acusações desortilégiolevantadascontraoseutrabalho.Porestarazão,comoduplofimdereconduzir o pai para a graça de Deus e para a graça do mundo, Géranderesolveuchamara religiãoemseusocorro.Pensouqueocatolicismopodiadealgummodorestituiravitalidadeàquelaalmamoribunda.MasosdogmasdaféedahumildadetinhamdelutarnaalmademestreZachariuscomumasoberbainvencível,e tropeçavamnaqueleorgulhodaciênciaque tudoatribuiasi, semremontaràorigeminfinitadondederivamosprimeirosprincípios.

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FoinestascircunstânciasqueGérandeempreendeuaconversãodeseupai,eteve tanta influência que o velho relojoeiro prometeu ir no domingo próximoassistiràmissacantadadacatedral.Ajovemteveummomentodeêxtase,comose o céu se entreabrisse diante dela. A velha Scholastique não pôde conter aalegria e achou afinal argumentos irreplicáveis contra as más-línguas queacusavamoamode impiedade.Falounistoàs suasvizinhas, às suasamigaseinimigas,tantoaquemaconheciacomoaquemnãoaconhecia.

— Palavra, não acreditamos, senhora Scholastique, no que está para aí aanunciar— responderam-lhe todos.—Mestre Zacharius procedeu sempre decombinaçãocomoDiabo!

— Vocês não metem em conta — tornava a boa mulher — os beloscampanários onde dão horas os relógios demeu amo.Quantas vezes não têmfeitotocarahoradaoraçãoeadamissa.

—Decerto—respondiam-lhetodos.—Masnãoinventoueleasmáquinasque andam sozinhas e que chegam a fazer o que parece feito por um homemverdadeiro?

MasasenhoraScholastiquereplicava,cheiadecólera:

—TambémodemônioteriapodidofabricaraquelebelorelógiodeferrodoCastelo deAndernatt, que a cidade deGenebra não tevemeios bastantes paracomprar?Acadahoraquedavaapareciaumabelasentença,equalquercristãoque se conformasse com todas elas iria direitinho para o paraíso. Pois isso étrabalhodoDiabo?

Esta obra-prima, fabricada havia vinte anos, tinha certamente levado àsnuvensaglóriademestreZacharius.Masmesmonaquelaocasiãoasacusaçõesdebruxohaviamsidogerais.Entretanto,avoltademestreZachariusàIgrejadeS.Pedrodeviareduzirasmás-línguasaosilêncio.

Semselembrardecertodapromessafeitaàfilha,mestreZachariusvoltaraparaaoficina.Depoisdetervistoasuaimpotênciaquandoprocurararestituiravidaaosrelógios,resolveuversepoderiafabricarnovasmáquinas.

Abandonou todos aqueles corpos inertes e entregou-se ao acabamento dorelógio de cristal que devia ser a sua grande obra. Mas debalde se cansou,debalde se serviu da sua ferramenta mais perfeita e empregou o rubi e odiamanteprópriospara resistiremàs fricções:o relógioestalou-lhenasmãosà

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primeiravezquequisdar-lhecorda!

Ovelhoocultouaqueleacontecimentoatodaagente,atéàfilha.Masdesdeentãoasuavidacomeçouadeclinarrapidamente.

Jánãoeramasoscilaçõesderradeirasdeumpênduloquevãodiminuindoquando nada lhes restitui o movimento primitivo. Parecia que as leis dagravitação, atuando diretamente sobre o velho relojoeiro, irresistivelmente oarrastavamparaotúmulo.

OdomingotãoardentementedesejadoporGérandechegouafinal.

Otempoestavamuitobeloeatemperaturavivificante.

OshabitantesdeGenebracaminhavamtranquilamentepelasruasdacidade,discursando alegremente a respeito da volta da primavera. Gérande, tomandocarinhosamenteobraçodovelho,dirigiu-separaosladosdeS.Pedro,seguidosambosdeScholastique,que levavao livrodasorações.Viram-nospassar comcuriosidade.Oanciãodeixava-seconduzircomoumacriança,ouantescomoumcego.Foiquasecomumsentimentode terrorqueosfiéisdeS.Pedrooviramtranspor a limiar da igreja, e fingiram até que se retiravam quando ele seaproximou.

Os cânticos damissa solene já se ouviam.Gérande dirigiu-se para o seubanco do costume e ajoelhou-se no mais profundo recolhimento. MestreZachariusficoujuntodela,empé.

As cerimônias damissa decorreram com a solenidademajestosa daquelasépocasdecrença,masovelhoemnadacria.

Não implorou a piedade do céu com os gritos de dor do Kyrie; com oGloriainExcelsisnãocantouasmagnificênciasdasalturascelestes;aleituradoEvangelho não o tirou das suasmeditaçõesmaterialistas, e esqueceu-se de seassociaràshomenagenscatólicasdoCredo.

Aquelevelhoorgulhosopermanecia imóvel, insensívelemudocomoumaestátua.Eaténomomento soleneemquea campainhaanunciouomilagredatransubstanciação, não se curvou, e olhou arrogantemente para a hóstiaconsagradaqueopadreelevavaacimadosfiéis.

Gérandefitouopai,elágrimascopiosasmolharamoseulivrodemissa.

Naquelemomento, o relógio de S. Pedro deu onze horas emeia.Mestre

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Zachariusvoltou-secomvivacidadeparaovelhocampanárioqueaindafalava.Pareceu-lhequeomostradordabandadedentroofitava,queosalgarismosdashorasbrilhavamcomose tivessemsidogravadoscom traçosde fogoequeosponteirosdardejavamfaíscaspelasagudasextremidades.

Amissaacabou.Eracostumerezar-seoAngelusaomeio-dia.Antesdesairda capela-mor, os celebrantes esperavam que desse a hora no relógio docampanário.Maisalgunsinstantes,eaquelaoraçãoiasubiraospésdaVirgem.

Mas,derepente,umruídoestridentefez-seouvir.MestreZachariussoltouumgrito...

Oponteirograndedomostrador,aochegaraomeio-dia,pararadesúbito,enãoseouviramasdozebadaladas.

Gérande correu em socorro de seu pai, que caíra sem sentidos e foratransportadoparaforadaigreja.

—Éogolpedamorte!—disseGérande,soluçando.

Levado para casa, mestre Zacharius foi deitado no leito, em completoestadodeaniquilamento.Avidasóneleexistiaàsuperfíciedocorpo,comoasúltimas nuvens de fumo que vagueiam em redor de uma lâmpada apagada hápouco.

Quando tornou a si, Aubert e Gérande curvaram-se sobre ele. Naquelemomentosupremo,ofuturotomouaseusolhosaformadopresente.Viuafilha,só,semapoio.

—Meufilho—disseeleaAubert—,dou-teminhafilha—eestendeuamãoparaosdoisjovens,queforamassimunidosjuntodaqueleleitodemorte.

Mas, no mesmo instante, mestre Zacharius levantou-se num impulso deraiva.Acudiram-lheàmenteaspalavrasdovelho.

—Nãoqueromorrer!—exclamouele.—Nãoqueromorrer!Eu,mestreZacharius,nãodevomorrer...Osmeuslivros...asminhascontas!...

E,dizendo isto, saltoupara foradacama,dirigindo-seaumlivroondeseachavam inscritososnomesdos seus fregueses, assimcomooobjetoque lhestinhavendido.

Folheou-ocomavidezepousouodedodescarnadonumadasfolhas.

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—Eis aqui!...— disse ele.— O velho relógio de ferro vendido àquelePittonaccio!Éoúnicoqueaindanãometrouxeram.Existe!Anda!Viveainda!Ah... Eu o quero! hei de encontrá-lo outra vez! Cuidarei dele tão bem que amortenãoterápodersobremim.

Eperdeuossentidos.

AuberteGérandeajoelharamdiantedovelhoeoraram.

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V — A Hora daMorte

Decorreramalgunsdias,emestreZacharius, aquele homem quasemorto,levantou-sedacamaevoltouàvida graças a uma excitaçãosobrenatural. Vivia do orgulho. MasGérande não se iludiu. A alma e ocorpodeseupaiestavamparasempreperdidos.

Viram,então,ovelhoocupadoemreunirosseusúltimosrecursos,semseimportar com a família. Desenvolviauma energia incrível, caminhando,esquadrinhando e murmurandomisteriosaspalavras.

Certa manhã, Gérande desceu àsua oficina. Mestre Zacharius não se

achavaali.

Esperou-otodoodia.MestreZachariusnãovoltou.

Gérande chorou o mais que se pode chorar, mas seu pai não tornou aaparecer.

Aubertcorreuacidadeeobteveacertezadequeovelhosaíraparaforadoseurecinto.

—Tratemosdeencontrarnossopai!—exclamouGérandequandoojovemlhetrouxeestasdolorosíssimasnotícias.

—Ondeelepoderáestar?—perguntouAubert.

Umainspiraçãoiluminou-lhesubitamenteoespírito.

Lembrou-sedasúltimaspalavrasdomestreZacharius.Orelojoeirosóviviada lembrança daquele velho relógio de ferro que não lhe tinham restituído!MestreZachariusdeviater-sepostoàprocuradele.

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AubertcomunicouestepensamentoaGérande.

—Vejamosolivrodemeupai—propôsela.

Ambosdesceramàoficina.Olivroestavaabertosobreamesadetrabalho.Todososrelógiosfeitospelovelhorelojoeiro,equelhetinhamsidorestituídosemrazãodoseudesarranjo,estavamriscados,menosum.

“VendidoaoSr.Pittonaccioumrelógiodeferro,commúsicaepersonagensmoventes,depositadonoseuCastelodeAndernatt”.

Era o relógio “moral”, de que a velha Scholastique falara com tantoselogios.

—Meupaideveláestar!—exclamouGérande.

—Corramos—decidiuAubert.—Podemosaindasalvá-lo!...

—Nãonestavida—murmurouGérande—,masaomenosnaoutra!

—ComoauxíliodeDeus,Gérande!OCastelodeAndernattestá situadonos desfiladeiros dos Dents-du-Midi, a vinte horas de distância de Genebra.Partamos!

Naquela mesma tarde, Aubert e Gérande, seguidos da velha criada,caminhavam a pé pela estrada que costeia o lago deGenebra.Andaram cincoléguas naquela noite, não se tendo demorado nem em Bessinge, nem emErmance,ondeseelevaocélebreCastelodosMayor.Atravessaramavau,nãosemalgumadificuldade,atorrentedoDranse.Emtodososlugaresperguntavamcom inquietaçãopormestreZacharius, e bemdepressaobtiverama certezadequelheseguiamorastro.

Nodiaseguinte,aoentardecer,depoisdepassaremoThonon,chegaramaElvian,deondeseavistaterritóriosuíçonumaextensãodedozeléguas.Masosdois enamorados nem sequer notaram aqueles lugares encantadores.Caminhavam impelidos por uma força sobrenatural. Aubert, encostado a umbordão nodoso, oferecia o braço, ora a Gérande, ora à velha Scholastique, eprocuravanocoraçãoumaenergiasupremaparaampararassuascompanheiras.

Falavam todos três dos seus pesares, das suas esperanças, e seguiam aformosaestradaàbeiradeágua,sobreaestreitaplanuraqueligaasmargensdolagoàselevadasmontanhasdoChalois.BemdepressaseacharamemBouveret,nopontoemqueoRódanodesaguanolagodeGenebra.

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A partir desta cidade deixaram o lago, e então, no meio daquela regiãomontanhosa, a jornada tornou-semais fatigante. Vionnaz, Chesset, Colombay,aldeiasmeio perdidas naquelas solidões, bem depressa lhes ficaram para trás.Entretanto os joelhos dos viajantes dobravam, os pés rasgavam-se nas agudasarestasdequeosoloseeriçacomodesilvestreerasteiravegetaçãodegranito,enemumsóvestígiodemestreZacharius!

E era preciso encontrá-lo. Por isso, os dois jovens não perderam ummomentoarepousarnascabanasisoladas,nemnoCastelodeMonthey,oqual,com as suas dependências, constituía o apanágio de Margarida de Saboia.Finalmente, quase no fim do dia, alcançaram, meio mortos de fadiga, oEremitério de Nossa Senhora du Sex, situado na base dos Dents-du-Midi,seiscentospassosacimadoRódano.

Oeremitarecebeu-osaocairdanoite.Nãopodiamdarnemmaisumpasso,etiveramforçosamentededescansaraliumpouco.

OreligiosonãolhesdeunotíciademestreZacharius.Malopodiamesperarvivonomeiodaquelastristessolidões.

Anoiteestavatenebrosa,ovendavalassobiavanamontanhaeosturbilhõesdeneveprecipitavam-sedocumedasrochasabaladaspelochoque.

Osdoisjovens,agachadosdiantedalareiradoeremita,contavam-lheasuadolorosahistória.Osmantos,impregnadosdeneve,enxugavamaumcanto,edoladodeforaocãodoeremitériosoltavauivoslúgubresqueseconfundiamcomosuivosdatormenta.

— O orgulho— disse o eremita aos seus hóspedes— perdeu um anjocriado para o bem. É o obstáculo onde tropeçam os destinos do homem. Aoorgulho,origemde todososvícios,não sepodemopor raciocínioalgum,poisque,porsuapróprianatureza,oorgulhonãolhesdáouvidos...Nadamaisrestadoqueoraremporvossopai!

Ajoelharam-setodosquatro,quandooslatidosaumentaramealguémbateuàportadoeremitério.

—Abram,emnomedoDiabo!

Aportacedeuapósviolentosesforçoseapareceuumhomemdesgrenhado,defacescavadasemeionu.

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—Meupai!—exclamouGérande.

EramestreZacharius.

—Ondeestoueu?—exclamou.—Naeternidade!...Otempoacabou...Jánãosoamashoras...osponteirosparam!

—Meupai!—repetiuGérande,comumacomoção tãodilacerantequeovelhopareceuvoltaraomundodosvivos.

—Tuaqui,minhaGérande!—exclamouele.—Etu,Aubert!...Ah,meusqueridosfilhos,vêmcasar-senanossavelhaigreja!

—Meupai—pediuGérande,agarrando-opelobraço—,volteparaasuacasadeGenebra,volteconosco!

Ovelhosoltou-sedosbraçosdafilhaecorreuparaaporta,nolimiardaqualaneveseacumulavaemmontões.

—Nãoabandoneseusfilhos!—exclamouAubert.

—Porque—redargiucom tristezaovelho relojoeiro—,porqueheidevoltaraesseslugaresqueaminhavidajáabandonououondeumapartedemimmesmoestáparasempreenterrada?

—Asuaalmanãomorreu!—exclamouoeremitacomvozgrave.

—Aminhaalma!...Oh...não!...Assuasrodassãoboas!...Sinto-abateratemposiguais...

—Asuaalmaéimaterial!Asuaalmaéimortal!—replicouoeremitacomenergia.

—Sim...comoaminhaglória!MasestáencerradanoCastelodeAndernattequerovê-la!

Oeremitapersignou-se.Scholastiqueestavainanimada.Aubertamparavaasuafuturanoivanosbraçosrobustos.

—OCastelo deAndernatt é habitado por um condenado— observou oeremita —, um condenado que não se descobre diante da cruz do meueremitério!

—Meupai,nãoválá!

—Queroaminhaalma,porqueaminhaalmapertence-me!...

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— Detenham-no, detenham meu pai! — suplicou Gérande, no auge daaflição.

Masoancião transpuserao limiardaportaedeitaraacorrernomeiodastrevas,bradando:

—Amim,amim,aminhaalma!...

Gérande,AuberteScholastiqueprecipitaram-seatrásdele.Caminharamporatalhos intransponíveis, sobre os quais mestre Zacharius deslizava como atempestade,impelidoporforçairresistível.Aneveredemoinhavaemtornodelesemisturavaosseusalvosflocoscomaescumadastorrentesquetransbordavamdosleitos.

Ao passarem diante da capela levantada em memória da carnificina dalegiãotebana,Gérande,AuberteScholastiquepersignaram-seprecipitadamente.MestreZachariusnãosedescobriu.

Finalmente,aaldeiadeEvionazapareceunomeiodaquelaregiãoinculta.Ocoraçãomais insensível ficariacomovidoaoveraaldeiaassimperdidaemtãohorrívelsolidão.

Ovelhocontinuouoseucaminho.Dirigiu-separaaesquerdaeinternou-senomaisprofundodosdesfiladeirosdosDents-du-Midi,queparecemmordernocéucontraosseusagudospicos.

Dentroempouco,umasruínas,vetustasesombriascomoosrochedosquelhesserviamdebase,ergueram-sediantedele.

— É ali... ali! — exclamou, precipitando-se novamente na sua carreiradesatinada.

Naquelaépoca,oCastelodeAndernatteraapenasumaruína.Umagrandetorre, derruída, meio desmantelada, dominava-o e parecia ameaçar com a suaqueda os velhos telhados acoruchados que se erguiam aos seus pés. Aquelesimensos montões de pedras infundiam horror. Pressentia-se, no meio de taisdestroços, a existência de salas sombrias com tetos arrombados, e de imensosreceptáculosdepeçonhentasvíboras.

Umpostigobaixo e estreito, quedeitavapara um fosso cheiode entulho,davaacessoaoCastelodeAndernatt.

Dizia a lenda que, nas noites de inverno, Satanás vinha dirigir as suas

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tradicionais sarabandas àbeiradosprofundosdesfiladeirosondemergulhava asombradaquelasruínas!

Mestre Zacharius não se aterrou com o seu aspecto sinistro. Chegou aopostigo. Ninguém lhe impediu a entrada. Achou-se num pátio grande etenebroso.Ninguémobstouqueoatravessasse.Trepouporumaespéciedeplanoinclinado, que ia ter num dos extensos corredores, cujas arcadas pareciamesmagaraclaridadedodiasobassuaspesadasabóbadas.Ninguémseopôsàsuapassagem.

Gérande,AuberteScholastiquecontinuavamasegui-lo.

Comoseoguiassemãoinvisível,mestreZachariuspareciamuitosegurodoseucaminhoeandavacompassorápido.Chegouaumaportavelhaecarunchosaque cedeu, sacudida por ele, ao mesmo tempo que os morcegos descreviamcírculosoblíquosemredordasuacabeça.

Achou-se numa sala mais bem conservada que as outras. As paredesestavamrevestidasdeespaçosasalmofadasesculpidas,sobreasquaislarvasdediferentesespéciespareciamagitar-seconfusamente.

Algumasjanelas,altaseestreitas,semelhantesaseteiras,estremeciamsobaviolênciadatempestade.

Chegandoaomeiodasala,mestreZachariussoltouumgritodealegria.

Sobreumpedestalde ferro, encostadoàparede, achava-seo relógioondepresentementeresidiatodaasuavida.Aquelaobrasemigualrepresentavaumavelha igreja romana, com os seus botaréus de ferro forjado e o seu pesadocampanário, onde havia ummecanismo que tocava a antífona do dia, a Ave-Maria,amissa,asvésperascompletaseoSalve.Porcimadaportadaigreja,quese abria à hora dos ofícios divinos, via-se um florão, no centro do qual semoviamdoisponteiros,ecujaarquivoltaostentavaasdozehorasdomostradoremrelevo.Entreaportaeoflorão,comocontaraavelhaScholastique,aparecianumamolduradecobre,umamáximarelativaaoempregodecadahoradodia.Mestre Zacharius regulara outrora esta sucessão de divisões com solicitudeinteiramente cristã. As horas de reza, de trabalho, de refeição, de recreio, derepouso, sucediam-se segundo a disciplina religiosa e deviam infalivelmentefazer a salvação de um observador escrupuloso no cumprimento das suasrecomendações.

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Ébriodealegria,mestreZachariusiaapoderar-sedorelógio,quandoouviudetrásdesiumarisadahorrível.

Voltou-se, e, à luz de uma lâmpada fumegante, reconheceuo velhinhodeGenebra.

—Aqui!—exclamouele.

Gérandetevemedoechegou-semuitoparaoseuprometidoesposo.

—Bomdia,mestreZacharius—bradouomonstro.

—Queméquevejo?

—OsenhorPittonaccio,paraoservir!Vemdar-measuafilha?Lembrou-sedasminhaspalavras:“GérandenãocasarácomAubert?”

Omoçooperário lançou-se sobrePittonaccio, que lhe escapou comoumasombra.

—Suspende,Aubert!—exclamoumestreZacharius.

—Boa-noite—bradouPittonaccio,quedesapareceu.

—Meu pai— exclamouGérande—, fujamos destes lugaresmalditos!...Meupai!...

Mestre Zacharius já não se achava ali. Perseguia, subindo pelos andaresarruinados,o fantasmadePittonaccio.Scholastique,AuberteGérande ficaramcomo que aniquilados naquela sala imensa. A jovem caíra numa cadeira depedra.Avelhacriadaajoelhoujuntodelaepôs-searezar.Aubertficouempé,avelarpelasuaprometida.Pálidosclarõesrasgavamassombras,eosilêncioeraapenas interrompido pelo labor daqueles animaizinhos que roíam asmadeirasantigasecujoruídomarcaotempodo“relógiodamorte”.

Aos primeiros raios do dia, aventuraram-se todos três pelas intermináveisescadas que circulavam sob aquele montão de pedras. Durante duas horas,vaguearam assim sem encontrar ninguém e só ouvindo o eco longínquoresponder aos seus gritos. Ora se achavam cem pés abaixo do chão, oradominavamaquelasagrestesmontanhas.

O acaso reconduziu-os afinal à vasta sala que os abrigara durante aquelanoite de angústias. Já não estava deserta. Mestre Zacharius e Pittonaccio aliconversavam juntos, um de pé e rígido como um cadáver, o outro acocorado

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sobreumamesademármore.

AvistandoGérande,mestre Zacharius foi buscá-la pelamão e conduziu-aparajuntodePittonaccio,dizendo:

—Eisoteumestreesenhor,minhafilha!Gérande,eisoteuesposo!

Gérandeestremeceudacabeçaatéaospés.

—Nunca!—exclamouAubert—,porqueelaéaminhaprometidaesposa.

—Nunca!—redarguiuGérande,comoumecoplangente.

Pittonacciopôs-searir.

—Queremaminhamorte?—exclamouovelho.—Ali,naquelerelógio,detodososquesaíramdasminhasmãosoúnicoqueaindaanda,estáencerradaaminhavida,eestehomemdisse-me:“Quandoeupossuiratuafilha,possuirástuesterelógio”.Eaquelehomemnãoquerdar-lhecorda!Podedespedaçá-loearremessar-meaonada.Ah,minhafilha,jánãomeamas!

—Meupai!—murmurouGérande,recuperandoossentidos.

— Se tu soubesses quanto tenho sofrido longe do princípio da minhaexistência!— volveu o velho.— Talvez não tratassem deste relógio! Talvezdeixassemgastarassuasmolas,embaraçarem-seassuasrodas!Masagora,comasminhasprópriasmãos,vousustentaraquelasaúdetãocara,porqueéprecisoqueeunãomorra,eu,ogranderelojoeirodeGenebra!Olha,minhafilha,comoosponteirosavançamcomfirmeza!Olha,aívãodarcincohoras!Escutabem,ereparanabelamáximaquetevaiaparecer.

Soaram cinco horas no campanário do relógio com um estrondo quedolorosamenteecoounaalmadeGérandeeapareceramestaspalavrasemletrasvermelhas:

Éprecisocomerosfrutosdaárvoredaciência.

Aubert e Gérande olharam um para o outro estupefatos. Já não eram asortodoxassentençasdorelojoeirocatólico!ObafomalditodeSatanásdeviaporali ter passado.MasmestreZacharius não prestava nenhuma atenção àquilo eprosseguiu:

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—Ouves,minhaGérande?Euvivo,vivoainda!...Não!Tunãohaviasdequerermatarteupai:aceitarásestehomemparaesposo,afimdequeeumetorneimortalealcanceopoderdeDeus!

AestasímpiaspalavrasavelhaScholastiquebenzeu-se,ePittonacciosoltouumgritodealegria.

—Edepois,Gérande,serásfelizcomele!Vêsestehomem?Éotempo!Atuaexistênciaseráreguladacomumaexatidãoabsoluta!Gérande!Vistoquetedeiavida,restituiavidaateupai!

—Gérande—recordouAubert—,eusouteuprometidoesposo!

—Émeupai!—redarguiuGérande,caindosemforças.

—Pertence-te!—dissemestreZacharius.—Pittonaccio,cumprirása tuapromessa!

—Eisachavedorelógio—volveuahorrívelpersonagem.

Mestre Zacharius apoderou-se da comprida chave, que semelhava umacobra desenrolada, e, correndo para o relógio, começou a dar-lhe corda comfantásticarapidez.Orangerdamolaincomodavaosnervos.Ovelhorelojoeirogirava,giravasemcessarcomachave,semqueobraçoparasse,epareciaqueaquelemovimentode rotaçãoera independenteda suavontade.Giroucomelacadavezmaisdepressaefazendoestranhascontorçõesatéquecaiudecansaço.

—Temcordaparaumséculo!—exclamou.

Aubert fugiu da sala como um doido.Depois de longos rodeios, achou asaídadaquelamoradamaldita,ecorreuparaocampo.VoltouàErmidadeNossaSenhoraduSexefalouaosantohomemcompalavrastãodesesperadasqueesteconsentiuemacompanhá-loaoCastelodeAndernatt.

SeduranteestashorasdeangústiaGérandenãochorouéporquenãotinhalágrimasparachorar.

Mestre Zacharius não abandonara a imensa sala. A cada minuto vinhaescutarobaterregulardovelhorelógio.

Entretanto, deram dez horas, e, com grande espanto de Scholastique,apareceramnomostradordeprataestaspalavras:

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Ohomempodetornar-seigualaDeus.

Nãosóovelhonãoseofendiacom tão ímpiaspalavras, comoas liacomdelírio e sedeleitava comestespensamentosorgulhosos, enquantoPittonacciogiravaemtornodele.

À meia-noite devia assinar-se o contrato do casamento. Gérande, quaseinanimada, não via nemouvia nada.O silêncio era apenas interrompido pelaspalavrasdovelhoeosrugidosdePittonaccio.

Deram onze horas.Mestre Zacharius estremeceu e com voz vibrante leuestablasfêmia:

Ohomemdeveseroescravodaciênciaeporelasacrificarafamília.

— Sim!— exclamou ele—, neste mundo só há a ciência! Os ponteirosgiravamsobreomostradordeferro,assobiandocomovíboras,eomovimentodorelógioeraprecipitado.

Mestre Zacharius não falava! Caíra por terra, agonizava, e do seu peitooprimidosósaíamestaspalavrasentrecortadas:

—Avida!Aciência!

Estacenatinhaentãoduasnovastestemunhas:oeremitaeAubert.Gérande,maismortadoqueviva,juntodopai,rezava...

Derepenteouviu-seoruídoqueprecedeosomdashoras.

MestreZachariusergueu-se.

—Meia-noite!—exclamouele.

Mas o eremita estendeu amão para o velho relógio... e ameia-noite nãosoou.

MestreZachariussoltouentãoumgrito,quesedeveterouvidonoinferno,quandoestaspalavrasapareceram:

AquelequetentarserigualaDeusficarácondenadoparatodaa

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eternidade.

Ovelho relógio rebentou como ruído de um raio, amola desprendeu-se,fugiupelaporta fora, saltando commil contorções fantásticas.Ovelho correuatrásdela,pretendendodebaldeapanhá-la,gritando:

—Aminhaalma!Aminhaalma!

Amolasaltavadiantedele,deumladoparaooutro,semsedeixarapanhar.

Afinal, Pittonaccio agarrou-a e, proferindo uma horrível blasfêmia,desapareceunasprofundezasdaTerra.

MestreZachariuscaiudecostas.Estavamorto.

*

O corpo do relojoeiro foi enterrado nomeio dos picos deAndernatt. Emseguida,AuberteGérandevoltaramparaGenebrae,duranteosmuitosanosqueDeus lhes concedeu, diligenciaram remir pela oração a alma do réprobo da

ciência.

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SOBREOAUTOR

JúlioVerne (JulesGabielVerne) (1828 – 1905), considerado o pai da ficçãocientífica, éumdosescritoresmais lidose traduzidosdahistóriada literatura,tendo antecipado várias conquistas científicas e tecnológicas, a exemplo daviagemàLua.Éautordeobras inesquecíveisnogênero, aexemplode“Vintemil léguassubmarinas”,“ViagemaocentrodaTerra”,“DaTerraàLua”&“Àroda da Lua”, “A volta ao mundo em oitenta dias” e “A ilha misteriosa”. Anovela “Mestre Zacharius” (Mâitre Zacharius) foi publicada originalmente narevista“MuséedesFamilies”em1854.

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Notes

[←1]BlaisePascal(1623–1662),filósofoematemáticofrancês.

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[←2]LouisBerghem,deBrugues,teriadescobertoaartedecortardiamantesem1476.

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[←3]BenevutoCellini(1500–1571),escultor,ouriveseescritoritaliano.