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1 IX ENCONTRO DA ABCP Pensamento Político Brasileiro IMITAÇÃO E REALIDADE: UMA ANÁLISE DO PENSAMENTO POLÍTICO DE OLIVEIRA VIANNA, GUERREIRO RAMOS E WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS Marcelo Sevaybricker Moreira (Universidade Federal de Lavras) Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IX ENCONTRO DA ABCP

Pensamento Político Brasileiro

IMITAÇÃO E REALIDADE: UMA ANÁLISE DO PENSAMENTO POLÍTICO DE OLIVEIRA VIANNA, GUERREIRO RAMOS E WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS

Marcelo Sevaybricker Moreira

(Universidade Federal de Lavras)

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IMITAÇÃO E REALIDADE: UMA ANÁLISE DO PENSAMENTO POLÍTICO DE OLIVEIRA VIANNA, GUERREIRO RAMOS E WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS1

Marcelo Sevaybricker Moreira

(Universidade Federal de Lavras)

Resumo do trabalho:O presente trabalho analisa brevemente a temática da imitação no

pensamento político e na história do país. Para isso, ele se volta para as obras de três

importantes intelectuais de nosso período republicano – Oliveira Vianna, Guerreiro Ramos e

Wanderley Guilherme dos Santos – que utilizaram da ideia de imitação como recurso

interpretativo do Brasil e de polêmica nos debates que travaram. Segundo eles, muitos dos

políticos e intelectuais do país tendem a valorizar excessivamente as ideias e/ou o

arcabouço institucional de outros países, propondo a sua transplantação para cá, a fim de

superar o nosso “atraso”. Haveria uma tradição “idealista” de compreensão do Brasil e outra

mais “realista”, na medida em que estaria mais atenta para as complexas relações entre

instituições, ideias políticas e a vida social. Sem pretender esgotar a análise dessa temática,

ou da obra desses autores, o trabalho sugere que a utilização de uma mesma tópica

argumentativa não implica, necessariamente, em uma identidade teórica e normativa entre

eles. O que parece subsistir é um desejo comum de identificar-se com uma tradição

“realista”, ainda que para cada um deles a crítica à imitação se refira a debates e projetos

políticos distintos.

Palavras-chave:Imitação; Oliveira Vianna; Guerreiro Ramos; Wanderley Guilherme dos

Santos.

1 Agradeço o apoio financeiro concedido pela FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais), fundamental para viabilizar minha participação no IX Encontro ABCP.

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O propósito desse artigo é destacar a importância do tema da cópia ou imitação

entre os intelectuais brasileiros e na constituição do próprio campo de estudos do

“pensamento político-social brasileiro”2. Sem qualquer pretensão de dar um tratamento

sistemático e exaustivo a esse tema, escolhemos três momentos históricos distintos de

nossa República e da formação do pensamento brasileiro. Mesmo avaliando apenas autores

desse período, não se pretendeu abordar todos intelectuais e escolas em que essa temática

é fundamental, mas antes, a partir dos três aqui escolhidos, tentar demonstrar a fecundidade

de se conceber a imitação como eixo constitutivo do pensamento brasileiro3. O primeiro

momento de nossa análise se refere à adequação das instituições políticas republicanas e

das ideias que as justificam no contexto brasileiro de início do século XX, em substituição à

tradicional monarquia. Para isso, avaliaremos as críticas formuladas pelo jurista Oliveira

Vianna ao republicanismo brasileiro em que o tema da imitação é central para sua

argumentação. O segundo momento refere-se ao período de constituição do nacional-

desenvolvimentismo, a perpassar nossa primeira experiência democrática (1945-64). Para

pensar como o argumento da cópia é mobilizado nesse contexto, recorremos à obra do

sociólogo baiano Guerreiro Ramos para quem a disjuntiva autenticidadeversus imitação é

central no entendimento do Brasil e de seus impasses, no que tange à formação da

sociologia brasileira, ao desenvolvimento nacional e ao “problema do negro”. Por fim, o

terceiro momento visado pelo trabalho diz respeito ao período iniciado com a

redemocratização do país em meados dos anos 80. Para entender como a cópia se constitui

ainda hoje um assunto politicamente relevante, voltamo-nos à obra do cientista político

Wanderley Guilherme dos Santose à sua querela acerca da qualidade atual da democracia

brasileira e do debate sobre a reforma política. A hipótese do artigo é que a relevância

duradoura da imitação na imaginação política brasileira (ainda que sempre referida a

contextos históricos e discursivos distintos) é decorrente, sobretudo, de nossa formação

histórica, econômica, política e culturalmente colonial. Assim, embora o país já tivesse se

tornado independente formalmente de sua metrópole, a questão da autonomianacional

perpassa o período republicano como um ideal a ser alcançado que, em alguma medida,se

perdura até hoje. Não apenas a cópia é um assunto privilegiado por vários de nossos

analistas políticos, tornando-se um topos retórico importante nas polêmicas e debates

públicos, como é, outrossim, um traço de origem do pensamento político nacional. O

percurso do presente trabalho inicia-se por uma contextualização de um debate maisrecente

sobre a imitação no pensamento político brasileiro, recuperando circunscrita e brevemente

as obras de dois autores que dissertaram sobre essa temática: Roberto Schwarz, com a 2 Christian Lynch destacou com propriedade a imprecisão e variação terminológica correntes desse campo de estudos (2013, p. 729-730). 3 Autores como Sylvio Romero e Alberto Torres, por exemplo, para quem, ao que parece, a questão da imitação é importante, foram deixados de lado.

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conhecida tese d`“As ideias fora do lugar”, eRaymundo Faoro, em Existe um pensamento

político brasileiro?. Em seguida à seção introdutória, passamos propriamente à análise das

obras de Vianna, Ramos e Santos, separadas por seções específicas, e dispostas ao longo

do texto nessa ordem. Por fim, avaliamos as possibilidades de interpretação do pensamento

político brasileiro a partir da noção de imitação.

1.Um Brasil inautêntico: Schwarz e Faoro

Em ensaio publicado em 1977, no contexto do debate mais amplo sobre a

dependência como traço comum aos países latino-americanos, Roberto Schwarz assume a

inautenticidade como chave explicativa para se pensar o Brasil. Segundo ele, a

“impropriedade de nosso pensamento” (1977, p.13) é um fato a grassar os séculos,

evidenciadopela incompatibilidade entre os ideias liberais (copiados dos países capitalistas

centrais e professados na Constituição de 1824) e o regime de escravidão mantido até 88.

Aqui, diferentemente de países como Inglaterra e França, o liberalismo se instalou como

uma “comédia ideológica” (1977, p.12), e o quiproquó de ideias – com o “favor”(e não os

direitos) constituindo-se como operador central de nossa sociabilidade – não tem fim.

Recuperando o debate criado a partir da tese das “ideias fora do lugar”4, Bernardo

Ricupero nota que Schwarz reconhece que o despropósito entre ideias liberais e realidade

nacional já havia sido denunciado anteriormente, mas, acrescenta Ricupero, enquanto

alguns intelectuais “conservadores” do país(como Oliveira Vianna e Wanderley Guilherme

dos Santos) identificam como a causa desse despropósito o liberalismo em si (denunciado,

nessa chave interpretativa, como utópico ou doutrinário, etc.), para Schwarz, partindo de

uma certo marxismo difuso, o “nó da questão [está] na sociedade escravista brasileira do

século XIX” (Ricupero, 2008, p. 59). Transmutado para os trópicos, o liberalismo, acabou

não se constituindo em uma ideologia de direitos universais, e sim se acomodando ao

domínio dos latifundiários e se convertendo em uma “ideologia de segundo grau” (idem, p.

60).

Duas décadas após o conhecido (e bastante criticado) ensaio de Schwarz, o

livroExiste um pensamento político brasileiro?, de Raymundo Faoro, retoma o argumento do

primeiro autor em termos similares,ao dissertartambém sobre as peculiaridades e agruras

da cultura política nacional. O jurista de Vacaria, partindo de uma tradição de pensamento

liberal e constitucionalista, e avaliando a formação da inteligência nacional como um

desdobramento da cultura política lusitana e europeia (infensa ao Iluminismo e ao

liberalismo), chega igualmente à polêmica conclusão de que não há um pensamento político 4 Foge ao escopo do presente trabalho, avaliar as críticas, bem como as defesas ao argumento de Schwarz.

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genuíno ou propriamente nacional. À luz das matrizes liberais europeias e estadunidenses,

o liberalismo brasileirose constitui em uma “farsa das elites” que, a despeito de todo

discurso, mantém-se ciosas do status quo pré-moderno, escravagista e autoritário. Como

afirma o crítico literário, “o caráter ornamental do saber e da cultura”, típico da “tradição

ibérica e colonial” (Schwarz, 1977, p. 19), está na raiz da inautenticidade cultural brasileira.

Fomos (ou somos) liberais? Somente na aparência, respondem esses dois autores.

Não se tem a vã pretensão de, no espaço desta seção, propor alguma resposta

alternativa a Schwarz e Faoro. Na realidade, recorre-se aqui as suas obras apenas para

demonstrar que outros intérpretes já havia salientado a cópia de ideias e instituições como

um problema central num país como o Brasil. Na realidade, o desiderato da presente

proposta é outro: não importa contrastar a realidade às ideias “importadas”, compreendendo

negativamente esse processo, mas antes constatar alguns modos e contextos diferenciados

em que o debate sobre a imitação emerge no pensamento político e o que eles têm a nos

dizer acerca da própria formação cultural do país. Assumimos, dessa maneira,a imitação

não apenas como um tema recorrente de nossos discursos políticos, mas como fenômeno

social constitutivo da realidade brasileira que estrutura esses discursos.

2. Oliveira Vianna: crítica à utopia republicana

Em O idealismo da Constituição, Oliveira Vianna assevera que um dos principais

problemas do Brasil é que, por aqui, dominam os idealistas para os quais essa experiência

não tem valor algum. Eles têm feito da política uma arte silogística, puramente abstrata,

preocupando-se apenas com ideias. O autor, obviamente se considera um idealista de outro

tipo, na medida em que os cem anos de democracia no Brasil “valem como uma mina de

valor inestimável, rica do mais puro minério informativo” (Vianna, 1939, p. XIII).Assim, esse

autor diferencia duas formas de idealismo: o utópico e o orgânico. O primeiro consiste em

“todo e qualquer sistema doutrinário, todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em

íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade” (idem, p.10). O

idealismo orgâniconão é, por outro lado, condenável, e resulta da “própria evolução orgânica

da sociedade e não é outra coisa senão visões antecipadas de uma evolução futura” (idem,

p. 11).

Para ele, todas constituições promulgadas até hoje no Brasil, desde 1824 até 1934,

fracassaram porque “nenhuma dessas construções se assentou sobre bases argamassadas

com argila de nossa realidade viva” (idem, p. XIV); todas, em suma, resultado do idealismo

utópico.Na referida obra, o argumento desse pensador redunda na defesa da Constituição

de 1937 e do Estado Novo, supostas expressões de um idealismo orgânico. Mas vejamos

como o autor chega a essas conclusões.

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Como se sabe, a tese fundamental de Vianna sobre o Brasil, desde Populações

meridionais do Brasil, é que nossa formação social, marcada pela ruralidade, latifúndio,

dispersão populacional ao longo do território, hibridismo racial, etc., produziu um padrão

societário insolidário. O “clã rural” (fundamento, por seu turno, do “clã parental” e, após a

República, do “clã eleitoral”), célula matricial de nossa sociedade, criado nos grandes

potentados rurais, produziu uma cultura política privatista e localista, precisamente o

contrário do que ocorrera nos países desenvolvidos, como Inglaterra, França, Estados

Unidos, etc., nos quais a sociabilidade predominante constituiu um mundo público a integrar

todo o território nacional – condição sinequa non para o bom funcionamento das instituições

liberal-democráticas.Em texto posterior e utilizando-se de outras categorias conceituais,

Vianna (1955) afirma que, nesses países, as “Chartas”, isto é, as leis criadas pelo Estado,

são produtos que se harmonizam e reforçam os costumes longevos praticados por seus

povos (o seu “complexo-cultural”), ao passo que no Brasil elas são tomadas de empréstimo

de outros lugares, sem necessariamente serem compatíveis com o contexto social local.

Nesse sentido, como nota Gildo Marçal Brandão, o projeto republicano-federativo

apenas teria reforçado “nossas características mais negativas – a anarquia branca, o

predomínio das oligarquias, o risco de fragmentação do país” (2010, p. 119). Assim, ainda

que os ideários liberal, democrático, republicano, de origem estrangeira, sejam, em si

mesmos, louváveis (Vianna, 1939, p. 10), quando transplantados para o continente latino-

americano, produzem o contrário do que preconizam: não a liberdade do cidadão, mas a

sua contínua submissão ao poder privado dos clãs eleitorais; não a ordem, mas a violência

entre as famílias e agregados a disputar o poder local, etc.

Embora não haja espaço para a discussão sistemática desse ponto, parece acertada

a interpretação de Wanderley Guilherme dos Santos, para quem a obra de Oliveira Vianna é

expressão de um projeto político que vê o Estado centralizador como condição necessária

para criar uma ordem liberal no Brasil, país, naquele contexto, fortemente marcado pelas

desigualdades e violência típicas de uma sociedade baseada no latifúndio, na monocultura,

na escravidão, etc. Enfim, a tese do “autoritarismo instrumental” (Santos, 1978), de que

Vianna tinha como meta a universalizaçãodos direitos civis e sociais à população brasileira,

mas não dos direitos políticos (Brandão, 2010, p. 140),consiste precisamente em evitar o

equívoco da simples imitação das instituições liberais sem qualquer forma de adaptação ao

contexto nacional.

Para Vianna, o principal erro daqueles que simplesmente copiavam as ideias e

instituições estrangeiras, esperando que elas tivessem aqui o mesmo efeito, é que eles

desconsideravam o fato capital de que “no Brasil não existia povo no sentido anglo-saxão da

expressão, isto é, massas populares esclarecidas e independentes” (1939 p. 60-61).

Polemicamente, ele acusa os republicanos de “legislarem por abstrações”, tomando o

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brasileiro como um cidadão em potencial, tal como na filosofia rousseauniana, quando não

passava, nos séculos XIX-XX, de um “boneco metafísico”(Vianna, 1955, p. 417). O “espírito

de clã”(e não a cultura cívica), alerta o jurista fluminense, éque é averdadeira alma

brasileira, animando, inclusive, nossa vida partidária-eleitoral.

Mas além da cultura de clã,denuncia Vianna, verifica-se também no país o

“quixotismo”, isto é, um intelectualismo difuso entre as elites, caracterizado pelo excesso de

imaginação e pelo beletrismo. É precisamente no conflito entre o “espírito de clã” conflito e o

quixotismo latino(razão de nosso idealismo), que reside a causa do fracasso de nossas

instituições políticas. Embora o quixotismo seja, para Vianna, um traço comum a várias

Constituições, é preciso ter clareza que eledirige suas críticas sobretudo contra ade 1891,

que pôs fim a um governo político estável, dirigido por indivíduos mais qualificados para a

res publica, os “homens de 1.000” (Vianna, 1955). Como crentes no poder místico das

leis,os republicanos creem, acusa Vianna, que por decreto criariam uma democracia no

Brasil (1939,p. 91), do mesmo como se fosse possível transformar, num passe de mágica,

os brasileiros em budistas (1955, p. 412).

Em decorrência de seu idealismo utópico, os republicanos, aliás, um grupo com

apoio muito débil na sociedade brasileira, não compreenderam porque seus ideais

fracassaram, continua o autor. Entre os republicanos predominava a crença de que a

inadequação entre ideais e realidade seria decorrência direta dos vícios do povo brasileiros,

o que os levava a condenar moralmente o povo pela sua inadequação a modelos de

sociabilidade que, obviamente, em nada se assemelhavam aos seus originalmente (Vianna,

1955, p. 428). Havia, entretanto, os mais tolerantes, esclarece Vianna, que diziam que o

regime não fracassara de todo; seria apenas uma questão de tempo: “e ainda hoje os seus

epígonos continuam a esperar messianicamente na ação do grande milagreiro” (1939, p.

93).De qualquer modo, a crítica de Vianna consiste em denunciar a ignorância dos

republicanos em relação ao próprio país, o que os levava a adotar uma postura moralista e

demofóbica5. Sarcasticamente, ele afirma que o brasileiro, em geral, raciocina corretamente

até o momento em que o ensinam o francês, bem como “as ideias adiantadas” da época; daí

então, “ele nos olha num estado de imbecilização sonambúlica” (1955, p. 413).

5 É evidente que o pensamento de Vianna é expressão também de um tipo de demofobia, o que se revela pelos comentários aristocráticos em suas diversas obras. Por isso, mas também por crer ser inviável um projeto político puramente liberal para o país, Vianna é contrário à adoção do sufrágio universal. A esse respeito, diz ele: “O grosso de nossa massa eleitoral não tem, portanto, independência de opinião. Ora, os meios mais eficazes para assegurar essa independência não serão, por certo, o ‘sufrágio universal’, nem a ‘eleição direta’, nem o ‘voto secreto’, nem o ‘self-government local’; mas, sim, outros meios de natureza econômica e social: o estabelecimento da pequena propriedade; um sistema de arrendamentos a longo prazo ou um regime de caráter enfitêutico; a difusão do espírito corporativo e das instituições de solidariedade social; uma organização judiciária expedita, pronta e eficaz; uma magistratura autônoma, com força moral e material para dominar o arbítrio os mandões locais, etc.” (Vianna, 1939, p. 112-113).

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Para o autor, nosso “quixotismo” é consequência direta do modo pelo qual nossas

elites foram educadas. Brandão salienta corretamente que “o inimigo de Oliveira Vianna é

sempre o bacharelismo, os políticos e juristas liberais que (...) raciocinam

livrescamente”(Brandão, 2010, p. 129). Os jovens da elite brasileira, dotados de uma

imaginação exuberante, eram educados por religiosos para serem idealistas, sem qualquer

formação objetiva ou positiva, assegura Vianna. Conhecem profundamente os males

estrangeiros, mas são “analfabetos” no que concerne ao seu país. Educados no exterior, em

especial em Coimbra, queriam organizar o país, segundo seus ideais europeus, não

conforme as disposições reais do povo brasileiro. Ainda que houvessem exceções a esses

irrealistas (como Visconde de Uruguai, Barão de Rio Branco, entre outros), foi esse tipo de

idealismo que vicejou no país, estendendo-se até a República, inclusive por contar com a

difusão desse ideário através da imprensa nacional.

Para Vianna, é nos costumes e práticas há muito consolidadas no povo-massa que

se encontra o verdadeiro direito brasileiro, o “direito-costume”, nascido no meio rural a

regular a vida do “país real” (com suas respectivas instituições, tais como o banditismo, o

coronelismo, o caudilhismo, etc.), e não o “direito-lei” ou o “direito público”, cultuado pelas

elites, só cientes do que se passa no litoral. A despeito de concordar ou não com esse autor,

cumpre notar que sua obra representa um esforço de conhecer e reconhecer o “país real”

queera ignorado pelas elites, como um todo.

O outro lado da moeda, de sua argumentação crítica ao republicanismo brasileiro,é a

defesa da Carta Constitucional de 1937, isto é, aquela que cria a ditadura varguista no país.

Mas Vianna não a descreve exatamente nesses termos. Em primeiro lugar, diz ele, ela não

é menos democrática que as demais; apenas diminuiu o poder do Legislativo que, afinal,

havia se transformado, em um palco de lutas estéreis e facciosas.Os partidos, justifica ele,

pulverizados após 1934, não apenas não representavam ninguém, como ademais,

alimentavam a desordem (sobretudo os de orientação comunista). Em segundo lugar, o

golpe, teria sido a única forma viável, naquele contexto, de garantir a ordem nacional,

aumentando o poder e a competência da União, garantindo o primado do Executivo em

relação aos outros poderes e ampliando a base democrática do governo por meio da

instituição do Conselho da Economia Nacional, corpo técnico e corporativo que funcionaria

como órgão consultivo ao Presidente da República. Defendendo a nova ordem então criada,

Vianna recorre à expressão “democracia autoritária”, cunhadapelo nazista Goebbels (idemp.

149). Ele que participara da Constituinte de 1934, afirma que a Carta de 37 aprendeu com a

realidade e empreendeu a centralização política necessária para a modernização do país.

Mas, ao contrário do que pode parecer, o Estado Novo não representava para o

autor a vitória plena do idealismo orgânico, pois a despeito dos seus avanços, incorreu nos

erros de manter o modelo federativo e o Congresso nacional em funcionamento. A utopia

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realista de Vianna só seria totalmente realizada por um modelo da democracia corporativa,

na qual o presidente não precisaria mais assegurar a coalizão no Parlamento, mas

assessorado por técnicos, organizaria“de cima para baixo” os interesses genuinamente

nacionais.

De qualquer modo, o que importa aqui é que em sua defesa da Constituição de 37,

cioso de seus argumentos, Vianna antecipa-se à crítica daqueles que veem no Estado Novo

ou na Consolidação da Legislação Trabalhista uma imitação de instituições estrangeiras.

Elas não foram, defende-se o autor de seu próprio veneno, criadas silogisticamente, mas a

partir de um método objetivo esociológico, “de sondagem direta às subcamadas de nossa

vida social e jurídica, antes de sua transubstanciação em lei”(Vianna, 1955, p. 33); não

sãoideais de “biblio-sugestão” (idem, p. 178).

Para concluir, cumpre dizer que, na opinião desse autor, comparado aos

“americanos e ingleses”, os brasileiros, assim como todos os latino-americanos, vivem um

drama peculiar por terem se constituído por “transplante ou enxertia cultural”(Vianna, 1955,

p. 95), a separar, desde a origem, a cultura ilustrada das elites, formadas de empréstimo de

outros povos, e a cultura política do povo-massa, formada segundo as condições sociais e

raciais próprias ao país. É isso o que explicaria também o nosso “complexo de inferioridade

em face da cultura europeia ou anglo-americana”(idem, p. 103), nossa “obsessão” por

modelos, a copiá-los literalmente.

Se em O idealismo da Constituição as principais causas do idealismo utópico são a

educação europeia, a influência da imprensa sobre as elites, bem como a ignorância dessa

última em relação ao Brasil “real”, em Instituições políticas brasileiras,o autor (à época

“influenciado” pelos desenvolvimentos das ciências sociais no que tange ao conceito de

cultura) acrescenta que a ignorância de nossas elites quanto às leis culturológicas e a

crença infundada no poder criador das leis positivas. A comparação dessas duas obras

revela, ainda que de modo não conclusivo e exaustivo, a permanência da preocupação do

autor com o tema da imitação, sempre referido às ideias e instituições políticas.Nesse

sentido, salta aos olhos o esforço do autor em criticar (nem sempre de modo justo) os

“idealistas utópicos” (Rui Barbosa, Tavares Bastos, etc.) e em encontrarprecedentes, na

tradição intelectual do país, de uma vertente de pensamento genuíno (como Uruguai e

Alberto Torres, por exemplo).

3. Guerreiro Ramos: contra uma sociologia “enlatada”

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Pode-se afirmar que a obra de Guerreiro Ramos, em suas diversas

dimensões,constitui um considerável esforço em formular um pensamento brasileiro

efetivamente autêntico. Para ele, a formação de uma sociologianacional caminharia pari

passu à formação de um capitalismo autônomo no país (Bariani Junior, 2008, p. 11).Sendo

assim, o autor concebe a sociologia como um “saber de salvação” (Ramos, 1996, p. 11), a

contribuir na transformação do país em uma nação independente. Nesse sentido, Ramos se

assemelha ao pensamento de Vianna no que diz respeito: 1) à recorrência ao topos

argumentativo da imitação (mais frequente, é bem verdade, nele do que em Vianna); 2)no

“esforço revisionista” (Ramos, 1996, p. 9) de autores do passado, a fim de identificar uma

corrente crítica, não-imitativa, na tradição intelectual do país e, por fim; 3)à concepção da

ciência como um instrumento prático a fomentar a transformação do país. Mas vejamos os

modos pelos quais a imitação aparece na obra de Guerreiro Ramos.

Em primeiro lugar, cumpre notar que a crítica à cópia na obra desse pensador

emerge na própria análise da sociologia brasileira,análise essa realizada por ele nas

décadas de 50 e 60. Apesar de identificar a emergência de uma “nova consciência nacional”

(“forças centrípetas”), essa ciência, tal como praticada no Brasil, caracteriza-se pelo seu

caráter “reflexo”, isto é, sua mentalidade ainda “colonial”. Boa parte dos sociólogos,

argumenta Ramos, assimilam ou transplantam literal, passiva e ingenuamente os produtos

científicos importados, produzindo, ao cabo, uma ciência ignorante quanto às reais

necessidades do país e, por conseguinte, disfuncional – o que ele denomina de “sociologia

consular” ou” enlatada”.

O autor ilustra seu argumento referindo-seà aplicação literal por parte de alguns

intelectuais de conceitos da sociologia estadunidense, tal como o de “controle social”,

importante numa nação já desenvolvida, mas completamente despropositado num país

como o Brasil, que viveria ainda em condição de subdesenvolvimento e de necessária

transformação; aqui, assevera Ramos, o conceito que se impõe como precípuo para a

modernização do país é o de “mudança social”, e não o de “controle”.

Ao invés de sociologia como “repetição”, supervalorizada como “hábito”, como mera

“informação”, Ramos defende a “redução sociológica”, que seria o método mais adequado

do fazer científico e que, todavia, seria negado pela maioria dos nossos intelectuais.Esse

método crítico, oposto à transplantação literal de ideias, se define por quatro leis

fundamentais: 1) a do “comprometimento”, segundo a qual o cientista se engaja

sistematicamente tanto com o desenvolvimento do saber científico, quanto com a sua

nação, se negando a desempenhar o papel de mero “copista”; 2) a do “caráter subsidiário da

produção estrangeira”, que impede o sociólogo de um determinado país de viver refém das

“modas” intelectuais, transformando-o de um “consumidor (colecionador) de ideias em

produtor de ideias” (Ramos, 1996, p. 115); 3) a da “universalidade dos enunciados gerais da

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ciência”, que submete o trabalho científico às necessidades e ao contexto da comunidade

em que ele é realizado; 4) a das “fases”, ou seja, princípio que afirma que os problemas a

serem investigados pelos sociólogos são sempre particulares à fase de desenvolvimento em

que a sua sociedade se encontra.

Tal como na obra de Vianna, a sociologia de Ramos configura uma denúncia

cáustica ao modo como a intelligentsia atua no país – seu desconhecimento dos reais

problemas do país, a admiração ingênua aos modelos estrangeiros, mantendo-se sempre

em relação a eles “upto date” (Ramos, 1957, p. 19), e o gosto por “fórmulas feitas” (idem, p.

51). Sobre isso o autor, em tons fortes, formula um diagnóstico próximo ao “quixotismo”

tratado por Vianna: por aqui vicejaria um “vício mental”, uma “doença infantil” comum aos

países coloniais que faz da sociologia mera “‘gesticulação’ vazia de significado” (idem, p.

80).Por isso, continua ele, na América Latina, as nações estão submetidas a uma

“deformidade culturológica”, a um defeito de origem, na medida em que as instituições lá

fixadas foram transplantadas de outros contextos, por “efeito de prestígio”, e não resultaram

da evolução interna e do “crescimento orgânico destes países”(idem, p. 84).

O topos da imitação aparece igualmente no debate estabelecido pelo autor a respeito

do desenvolvimento nacional. Em geral, afirma Ramos, o grau de desenvolvimento de um

país é aferido pelos seguintes critérios: distribuição da mão de obra pelos setores

produtivos, renda nacional per capita, consumo per capita de energia, urbanização e

industrialização (1996, p. 146). Embora a sua obra seja bastante marcada pelo debate

nacional-desenvolvimentista e pelas teorias em voga, Ramos contesta a ideia de que

existam critérios universais válidos para avaliar o grau de desenvolvimento das diversas

nações do orbe6. Por exemplo: nem sempre elevada renda nacional per capita implica em

desenvolvimento. Na Venezuela, lembra o autor, em função da exportação de petróleo, esse

índice é bastante elevado, mas do qual não usufrui a maior parte da população.

No que tange ao desenvolvimento, Ramos tem em mente um processo concreto, não

apenas econômico, e que estava em vias de se materializar no Brasil dos anos 50-60;

processo esse que implicaria a superação do subdesenvolvimento, a erradicação da

miséria, da mortalidade infantil, do atraso nacional, como um todo, a substituição de

importações, o incremento tecnológico, a elevação de renda, a ampliação da participação

política (democracia), etc. Defendendo a autenticidade das teses cepalinas (a crítica às

“vantagens comparativas” e à “vocação agrícola”[Ramos, 1957, p. 97]), o autor concebe que

assim como é necessário ao Brasil substituir a importação de produtos industrializados, é

mister desenvolver um pensamento nacional, voltadopara a real compreensão do país:

6 Entretanto, como nota Edison Bariani Junior (2008, p. 176), Guerreiro Ramos compreende a industrialização quase como a própria modernidade, expressão do “processo civilizatório”, independentemente a qual contexto se refira.

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trocar minérios e conceitos “enlatados” (pensamento “reflexo) pormercadorias

tecnologicamente desenvolvidas e de alto valor agregado epor categorias e teorias

sociológicas autenticamente brasileiras (Bariani Junior, 2008, p. 142).

A mesma ordem de preocupações perpassa a discussão feita por Guerreiro Ramos

acerca do “problema do negro”, na medida em que ele ataca duramente os intelectuais

brasileiros que se tornaram “especialistas” nesse assunto, pois, supostamente, o investigam

“a partir de categorias e valores induzidos predominantemente da realidade europeia”

(Ramos, 1957, p. 123).Com o fito de desmascarar a suposta alienação reinante, esse autor

se volta aos estudos raciais brasileiros do fim do século XIX à sua época, sobretudo, aos

estudos financiados pela UNESCO. Ele diferencia três correntes fundamentais no estudo

sobre o negro no Brasil, a saber: 1) uma de cunho monográfico, da qual seriam expoentes

Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Florestan Fernandes, entre outros, e que se

caracteriza por definir o negro como “assunto” de especialistas, considerando-o como um

fenômeno “estático”; 2) a corrente “crítico-assimilativa” em relação à ciência estrangeira,

representada por Sylvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Vianna, que

uma vez interessados em “extremar as características peculiares de cada um dos

contingentes formadores da nação”, acabaram contribuindo “para arrefecer qualquer

tendência para ser ele considerado sob o ângulo do exótico”(idem, p. 127-128); 3) e aquela

voltada para a transformação real da condição do negro na sociedade brasileira, a qual ele

próprio, Guerreiro Ramos, representaria.

O aspecto curioso a notar nessa recuperação do pensamento nacional empreendida

pelo autor é a valorização das obras de Romero, Cunha, Torres e Vianna – autores, ainda

que de modo diferenciado, eivados de preconceitos racistas – e a desvalorização das obras

da primeira corrente que, em geral, é considerada pelos estudos posteriores do pensamento

brasileiro, como responsável pela superação (ainda que parcial) do racismo e pelo

reconhecimento dos povos africanos na constituição da identidade nacional (como é o caso

do autor de Casa Grande & Senzala).Uma vez que, como já havia notado Wanderley G. dos

Santos (1967;1970), Ramos se vale de um critério “externo” de avaliação das obras dos

autores do passado nacional – a autonomia nacional – a sua peculiar interpretação do

pensamento brasileiro acaba por condenar os intelectuais, na realidade, responsáveis por

uma renovação e transformação da sociologia racial brasileira a um lugar secundário.

Além disso, o mencionado racismo presente na segunda corrente (criticado por

Ramos), em autores como Oliveira Vianna, a quem ele chama de “mestre” (Ramos, 1957, p.

141), é tratado por ele como um efeito não previsto de sua maior qualidade, “a de fazer da

sociologia instrumento de autodeterminação nacional” (idem, p. 139).Ao defender a tese do

branqueamento, argumenta Guerreiro Ramos, Oliveira Vianna estaria tratando o negro

como um indivíduo a ser integrado ao povo brasileiro, e não como elemento exótico, isto é, o

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modo típico de tratamento dos cientistas estrangeiros acerca desse tema.Nessa linha de

raciocínio, autores mais “upto date” em relação às ciências sociais internacionais, como

Gilberto Freyre, Roger Bastide, Florestan Fernandes, entre outros, tratam o negro como

elemento “estático” e “externo” à cultura brasileira, numa chave, de acordo com Ramos,

claramente mimética e, portanto, pior.

A terceira corrente de estudos raciais consistiria num esforço de sociologia prática, a

combater o preconceito racial no país por meio da crítica à ideologia da brancura. A cópia,

no caso da questão racial, desempenha aqui um duplo papel negativo: produz uma

sociologia equivocada (que replica teoria exógenas) e produz um ideal estético que se

constitui em uma patologia nacional, dado o perfil fenotípico majoritariamente não-branco da

população brasileira.

A condição do negro no Brasil só é sociologicamente problemática em decorrência da alienação estética do próprio negro e da hipercorreção estética do branco brasileiro, ávido de identificação com o europeu (Ramos, 1957, p.157).

O branco copia a estética europeia e os negros vivem segundo uma avaliação

negativa de si mesmos. Precisamente por se identificar como expressão de um nova

corrente da sociologia brasileira (da qual seriam expressões também a obra de Abdias do

Nascimento), Guerreiro Ramos argumenta que uma consciência nacional finalmente emerge

no país, conforme sugere também a criação do TEN (Teatro Experimental do Negro).

Superada a fase da imitação – típica de países coloniais – “a sociologia, no Brasil, está

entrando em uma segunda etapa da evolução normal” (idem, p. 105), adquirindo uma

consciência crítica de si mesma, ciente dos condicionamentos a que a produção científica

está sujeita, o que, todavia, alerta ele, não exclui o diálogo com outros povos e a

universalidade dos princípios gerais da ciência.

Cumpre ao menos mencionar de passagem que esse ponto – o da universalidade da

ciência – foi mais um elemento de polêmica de nosso autor com a obra do sociólogo paulista

Florestan Fernandes, criticado não apenas por abordar a questão racial brasileira com

teorias importadas, mas por negar, na visão de Guerreiro Ramos, que a sociologia brasileira

deveria se pautar pelos problemas sociais nacionais e pelas condições de trabalho científico

possíveis no país. Contra o que ele considera que seria uma perspectiva provinciana

(“quando se acredita no dever de zelar pela ‘pureza’ da sociologia” [Ramos, 1996, p. 26]) e

aristocrática ou bovarista (reforçando a distinção social entre ciência e senso comum),

Guerreiro Ramos defende uma sociologia engajada nos problemas reais do país, uma

“autoconsciência social”, e não elitista, mas um “saber vulgarizado”(Bariani Junior, 2008, p.

157).

Pelos argumentos por ora apresentados, verifica-se a centralidade da imitação no

pensamento desse autor, o que talvez possa ser explicado pela própria importância que o

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conceito de nação adquiriu nesse período.Basta lembrar que é Guerreiro Ramos que afirma

categoricamente que, à época, o país vivia o enfrentamento trágico entre a “nação”, o “país

novo”, e a “anti-nação”, o “país velho”, fruto da cópia e da heteronomia (Ramos, 1996, p.

68). Se em Vianna, o problema da cópia é referido sobretudo às ideias e às instituições

políticas, no caso de Ramos há um claro acento sobre as primeiras: nação dependente,

formada a partir da imitação, que, por seu turno, produziu, salvo algumas poucas exceções,

uma pseudociência de ideias copiadas.

4. Wanderley Guilherme dos Santos: democracia brasileira e reforma política

Se a obra de Ramos é, segundo o argumento aqui esposado, expressiva em relação

à importância adquirida pelo problema da cópia na interpretação do Brasil, a obra do último

autor é precisamente o contrário: Wanderley Guilherme dos Santos faz, no caso, um uso

tópico e circunscrito do argumento da imitação.

Entretanto, a despeito da aparente menor importância desse tema no pensamento

desse autor, a sua escolha se justifica por três motivos: 1) trata-se de um autor que indica

um dos modos pelos quais a temática da cópia se constrói e se mantém no imaginário

político e social brasileiro atualmente; 2) além disso, porque essa temática é utilizada num

debate importante da política brasileira do século XXI, qual seja, o da reforma política, e,

finalmente; 3) porque tendo participado,enquanto um intelectual de destaque, da “fundação”

de um nova ciência no Brasil, a ciência política, processo esse que teve como referência

epistêmica a ciência política norte-americana, traz à baila novamente a questão da imitação

de ideias no Brasil.

Começando pela última razão, cumpre esclarecer que Wanderley Guilherme dos

Santos fez parte da primeira geração de intelectuais brasileiros,nos anos de 1960-70, a

adquirir uma formação sistemática em ciência política nos Estados Unidos (tido, em geral,

como principal polo desse saber à época) e que, junto ao outros pensadores, trouxe para o

país uma nova linguagem para tratar da realidade sociopolítica, deliberadamente

diferenciada de nossa tradição prévia de pensamento. Embora não haja espaço suficiente

para tratar de todos os aspectos dessa questão7, merece destaque o fato de que, ao

contrário de outros intelectuais brasileiros formados na matriz da ciência política

estadunidense, Santos, no entanto, não apenas valoriza o passado nacional, como também

não copia, a rigor, as teorias estrangeiras, como é o caso da teoria da poliarquia de Dahl,

remodelada por ele a fim de pensar o processo particular do Brasil e de outros países latino-

7 Sobre isso consultar: Lessa, 2010, 2011; Moreira, 2012;

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americanos de democratização8. Nesse sentido, o que poderia ser um caso de transplante

de uma ciência estrangeira convive, curiosamente, na obra do mesmo autor,com o

imperativo de que essa ciência seja repensada para tratar do caso brasileiro ecom a

valorização da tradição intelectual nacional.

Antes de tratar do modo como esse autor revisa o pensamento político-social

brasileiro é fundamental dizer que Santos é considerado igualmente como um dos “pais-

fundadores” dessa área de estudos. Christian Lynch menciona que ao lado de um projeto de

investigação da tradição intelectual brasileira, liderado por Gildo Marçal Brandão, 30 anos

depois, são os trabalhos de Santos – quando esse ainda era um membro do antigo ISEB

(Instituto Superior de Estudos Brasileiros), com a publicação de artigos na Revista Dados

em 1967 e 70 – que inovaram em quatro sentidos determinantes na criação do pensamento

político-social brasileiro: 1) “produziu um enquadramento disciplinar da do objeto”, na

medida em que rompeu com, por um lado, “hegelianismo filosófico” isebiano e, por outro,

com o “positivismo científico esposado pela sociologia da Universidade de São Paulo, em

meados dos anos de 1950, e que redundavam no desprezo do pensamento brasileiro como

periférico ou inferior” (Lynch, 2013, p. 728)9; 2) nomeou esse campo como “pensamento

político-social brasileiro”, tal como viria, em geral, ser denominado; 3) delimitou esse campo

no âmbito das ciências sociais, tal como permanece até hoje, excluindo a análise de obras

e/ou autores com uma atenção exclusiva à economia, história, etc.; 4) vinculou as obras do

pensamento político-social brasileiro à prática política. Como alguém que, nesse sentido,

rompia com a visão corrente de não reconhecer validade ou interesse na tradição intelectual

do país, Santos afirmava no seu primeiro texto sobre o assunto:

Ao pensamento político-social brasileiro se aplica com inteira justiça o diagnóstico de A. Menzel: “O pensamento sociológico latino-americano, começando com o movimento da independência, foi muito fecundo; e, sem embargo, continua quase desconhecido, pois grande parte de seu conteúdo não foi ainda explorado e ordenado”. Os raros textos brasileiros dedicados ao tema não constituem inegavelmente trabalhos à altura da tarefa (1967, p. 190).

Não é demais mencionar também que Wanderley G. dos Santos inovou no campo

dos estudos de pensamento político-social brasileiro ao recuperar a obra de um pensador

brasileiro, bastante criticado ou mesmo esquecido até aquela época, por ser, segundo as

interpretações correntes, autoritário, elitista, racista, etc., a saber, Oliveira Vianna. Em texto

que se tornaria conhecido pela peculiaridade dissonante de sua interpretação, “A práxis

liberal no Brasil” (Santos, 1978), Wanderley Guilherme afirma que o valor da obra de Vianna

8 Cf. Moreira, 2008. 9 É preciso dizer que tal desprezo não era “privilégio” dos intelectuais uspianos; no próprio ISEB, por exemplo, predominava a tese (da qual Ramos não compartilhava) de que sendo o Brasil um país colonial, tudo o que havia sido produzido por aqui no passado, em termos de teoria, ciência, etc. haveria de ser também “colonial” (Santos, 1967, 1970; Pécaut, 1990).

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estaria em, partindo de uma perspectiva realista, ter percebido que a adoção de política

liberais no Brasil do início do século XX promoviam o fortalecimento das oligarquias

regionais e a consequente submissão do cidadão ao poder arbitrário dos “coronéis”, isto é,

precisamente o arranjo histórico que ficaria conhecido posteriormente como a “República

Velha”. Santos conclui então que o pensamento político-social de Vianna deveria ser

caracterizado como “autoritário instrumental” (como já se anunciou anteriormente), por

oposição ao “liberalismo doutrinário” de políticos e intelectuais da época que, em função da

difusão das ideias liberais, tendiam a propor a imitação dos modelos norte-americano,

inglês, etc. Não sendo o caso aqui de avaliar a correção dessa interpretação de Santos,

cumpre antes salientar a similaridade entre as chaves de leitura utilizadas por Vianna

(“idealismo utópico” e “idealismo orgânico”) na compreensão do pensamento e da política

brasileira em princípios do século XX, e as chaves adotadas por Santos ao final do mesmo

século (“autoritarismo instrumental” e “liberalismo doutrinário”).Em ambas chaves de leitura

é a imitação e o idealismo versus a adaptação e o realismo o ponto fulcral do debate.

Conforme a interpretação formulada por Santos sobre a política brasileira, com a Era

Vargas, se inicia um processo de decadência das oligarquias tradicionais, como decorrência

da ação do Estado. Mesmo considerando as heranças negativas do varguismo na política

nacional, como o corporativismo subdesenvolvido, a “cidadania regulada”10 e o

autoritarismo, Wanderley Guilherme conclui, portanto, que essa tradição criou as condições

mínimas para o surgimento da poliarquia brasileira, institucionalizando gradualmente a

competição política e ampliando a participação política de setores antes marginalizados11.

Cumpre destacar apenas mais uma semelhança entre esses autores. Como vimos,

Vianna assevera uma assimetria entre o comportamento clânico da população brasileira, o

“povo-massa”, e as instituições republicanas, entre o “país real” e o “país legal”. Santos, por

seu turno, formula sobre o Brasil hodierno tese similar.O autor afirma que o principal dilema

da ordem brasileira consiste num “híbrido institucional” aqui instaurado: por um lado, “uma

morfologia poliárquica, excessivamente legisladora e regulatória” e, por outro, um

“hobbesianismo social pré-participatório e estatofóbico” (Santos, 1993, p. 79). Como em um

estado de natureza, a fragilidade das normas de convivência produz uma desconfiança

generalizada, prevalecendo, então, os códigos privados de comportamento. O resultado

ulterior desse estado de natureza é, na visão de Santos, uma “cultura cívica predatória”,

com um padrão de interação social de soma zero quando bem sucedida, ou de soma

negativa quando fracassa.

10 Conceito formulado por Santos para descrever o processo particular brasileiro de reconhecimento estatal dos direitos do cidadão brasileiro, mas de forma sempre tutelada (Santos, 1979). 11 Nesse diapasão, é preciso recordar os avanços obtidos com a reforma eleitoral promovida pelo Código de 1932 que, além de garantir maior lisura aos pleitos eleitorais (com a adoção do voto secreto e a criação da Justiça Eleitoral), garantiu a extensão do sufrágio às mulheres brasileiras.

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O descrédito com a eficácia governamental é decisivo no insucesso de algumas

políticas públicas. Santos argumenta que se os “especialistas” da política revelam a

impressão difusa de um mal funcionamento da democracia, isto se deve menos a uma

deficiência das instituições políticas e mais a uma carência de direitos constitucionais

elementares. Para o autor, há uma péssima distribuição desses direitos no país, mais grave

do que a sempre lembrada desigualdade social. Sem uma cultura cívica capaz de

fundamentar as instituições poliárquicas existentes (a mesma ausência de civismo notada

por Vianna),Santos vê com descrença qualquer reforma institucional e explica ironicamente

que: “não se trata de pessimismo, mas neste momento, não há cultura cívica no país,

apenas natureza. Exuberante, é claro, como convém a um país tropical” (Santos, 1993, p.

135).

De um modo geral, pode-se afirmar que a obra de Wanderley G. dos Santos gira em

torno à questão da democracia, não apenas como objeto de estudo privilegiado pelo autor,

mas também como ideal político a ser realizado no país. Nesse sentido, salta aos olhos sua

diferença em relação aos autores antes estudados: Vianna que, mesmo que por razões

instrumentais, não pode ser considerado um “democrata” e para quem o problema central é

a consolidação do Estado-nação; e Ramos, que ainda que trate marginalmente da

democracia, estrutura seu pensamento tendo como eixo o conceito de nação e o ideal de

que ela se tornasse autônoma.

Como já notaram alguns estudiosos (Pécaut, 1990; Lahuerta, 1999), o tema da

nação foi duramente criticado pela intelectualidade nacional, tendo sido gradualmente

substituído pelo debate sobre a democracia no intervalo de 1960-70. A nação passa a ser

associada, doravante, a engano, dissimulação dos conflitos de classe, ao discurso populista,

etc. Assim, poder-se-ia perguntar: por que e como um autor posterior a esse período recorre

à ideia de imitação? A resposta consiste não apenas por reconhecer e valorizar o realismo

de alguns intelectuais e políticos brasileiros, como Oliveira Vianna, mas, sobretudo, no que

tange ao atual debate sobre a reforma política.

A transformação da política nacional, costumeiramente menosprezada pelos

analistas políticos que se limitam a caracterizar Vargas como ditador e/ou populista, trouxe

consequências novas e radicais para a construção da democracia brasileira, na visão de

Santos. Tais consequências foram aprofundadas ao longo do século XX, particularmente

nos dois períodos de competição democrática que vivemos (1945-64; 1985-). Nesse

diapasão, Wanderley Guilherme tem se esforçado em salientar os aspectos positivos do

atual sistema político brasileiro, não se opondo a todas as propostas de reforma política,

mas àquelas que, em sua opinião, limitariam o potencial da democracia brasileira,

especialmente a adoção da cláusula de barreiras para os partidos, o voto em lista fechada e

a substituição do sistema de representação proporcional pelo majoritário, isto é, justamente

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a terapêutica comumente recomendada por alguns estudiosos e defendida, com frequência,

nos meios de comunicação do país. Para Santos, essas propostas representam (ao

contrário do que se afirma) um esforço das oligarquias tradicionais (combatidas pelo

“autoritarismo instrumental” de Vianna), temerosas frente ao processo de expansão cívica,

vivenciado no país desde a redemocratização, visando reduzir a competição pelos cargos

de poder.

Quando, por exemplo, a proposta de adoção do voto distrital (majoritário) é

justificada, argumenta-se queexistiria uma tendência mundial em substituir o sistema

proporcional pelo majoritário, sendo o primeiro um anacronismo. Santos, criticando os

intelectuais brasileiros em sua admiração ingênua e por vezes mal informada dos sistemas

políticos estrangeiros, esclarece que, se há alguma tendência nas democracias modernas, é

precisamente a contrária: “todos os países de representação proporcional optaram por ele

após longa experiência com o sistema majoritário, este sim o mais antigo, o do atraso”

(1994, p. 7).

Outra proposta de reforma que relaciona-se diretamente ao tema da imitação é a

adoção e/ou maior utilização de novos mecanismos de participação direta, como o

plebiscito, por exemplo. Conforme a argumentação desse autor, essa seria a reivindicação

dos “neorrepublicanos” (ou dos teóricos da democracia participativa), que não são idênticos

aos “neo-oligarcas”, mas de qualquer modo, compartilhariam com eles um diagnóstico

negativo da democracia brasileira, ainda que por razões distintas.

A retórica neorrepublicana, alicerçada nos modelos de política da Antiguidade,

identifica na permanência das desigualdades sociais, na apatia cívica e na descrença dos

cidadãos comuns nas instituições políticas sintomas da atual crise democracia brasileira,

fenômeno esse que também seria verificado por cientistas estrangeiros nos países

desenvolvidos. Santosrebate esse discurso asseverando que ele se constitui numa

“importação de um produto deteriorado na travessia” (2007, p. 26), ou seja, a incorporação

de um conjunto de problemáticas formuladas nos países de democracia mais decantada,

que, se já não constituem diagnósticos duvidosos sobre esses países12, não fazem nenhum

sentido no caso brasileiro, haja vista o mencionado processo de expansão cívica. Mais uma

vez, o tema da imitação dos intelectuais brasileiros em relação a ideias “estrangeiras”

reaparece no debate público brasileiro, agora contra aqueles que atestam um déficit de

participação no país.Contra o pressuposto neorrepublicano sobre a mobilização e que

implica numa concepção de “bem comum” (como uma moralidade comum), Wanderley

12 Ele pondera, por exemplo, referindo-se à obra do cientista politico estadunidense Robert Putnam, Bowlingalone, que a avaliação negativa das democracias atuais baseia-se ingenuamente na opinião dos eleitores (sempre dispostos a reclamar de seus governantes em uma democracia) e em dados de pouco significância política, como o número de associações de bairro, clubes desportivos, etc. (Santos, 2007).

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Guilherme argumenta que uma democracia pode conviver com doses moderadas de apatia

e egoísmo político (Santos, 2007, p. 77-78), e associa esse novo “produto intelectual

importado” no país a um desejo indisfarçado de querer impor a todos as mesmas

preferências, colocando em risco a liberdade individual:

Os profetas da participação integral, hoje, são os potenciais, sequestradores da liberdade de amanhã. Às vezes em nome de um ontem, tal o ontem grego, que, em verdade, é obscuro e polêmico (Santos, 2007, p. 48).

Identificando-se como um “cético moderado”, Santos, além de contestar

veementemente a “ofensiva neo-oligárquica” e a crítica neorrepublicana à democracia

brasileira, recomenda cautela diante de qualquer inovação institucional: seus resultados, em

geral, destoam das expectativas de seus defensores e podem significar retrocessos

políticos. Na origem das democracias, não apenas entre os conservadores, mas entre todos

os “grandes engenheiros institucionais” (Santos, 1998b: 144), vigorou sempre a inteligente

estratégia da moderação, quando o assunto é transformar as normas fundamentais do

sistema político. Isso porque, sendo a ordem social imprevisível, não seria possível

desenvolver um sistema fechado de explicações sobre ela. Pergunta-se: seriam esses

conservadores os críticos de nossas elites e intelligentsia imitativas? Seria a crítica à

imitação uma das razões para a sugerida cautela em nosso ímpeto de reformar e, por essa

causa, melhorar a política brasileira?

5. Conclusão: a imitação e o “fantasma da condição periférica”

Pode-se dizer que a imitação se constituiu historicamente em um dos temas

prediletos e um dos topos argumentativo da inteligência nacional (motivo de crítica a seus

adversários), desde antes de Oliveira Vianna e talvez a se prolongar para além da

atualidade. Mais do que isso, ela é um elemento estruturante do próprio campo do

pensamento político e social brasileiro, de tal modo que a constituição desse – não apenas

como campo de estudos de especialistas, da qual este estudo é uma expressão, mas como

cultura política – teve que se haver com ela, como é o caso conspícuo de Vianna, Ramos e,

sobretudo, Santos, mais profundamente vinculado a um projeto de investigação da

“imaginação brasileira”.Dizendo de outro modo, os autores aqui estudados, críticos de uma

suposta tendência mimética de nosso povo e, principalmente, de nossas elites, foram

também pioneiros no reconhecimento de que havia uma tradição genuína de pensamento

político no país, que não se resumia, como de regra, a elogiar e copiar as ideias de alhures.

Talvez não seja possível ainda encontrar as razões que explicam a permanência da

imitação no pensamento brasileiro, mesmo depois quando a autonomia nacional já não é

mais (ou não é na mesma medida) um valor político a orientar a realidade brasileira.

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Todavia, enquanto hipótese de trabalho, inspiramo-nos na ideia proposta por Lynch (2013)

acerca do pensamento político-social brasileiro, qual seja: a de que no Brasil paira ainda o

“fantasma da condição periférica”. Como um país que a despeito de ter-se tornado

independente politicamente de sua metrópole, permanece (como sugere igualmente os

trabalhos de Schwarz e Faoro), como um traço de origem do país, o fantasma da

inautenticidade, da cópia, do transplante e da enxertia cultural, etc.

Precisamente por isso, procuramos ao longo deste trabalho explorar – mais do

mapear sistematicamente – as possibilidades hermenêuticas de compreensão do Brasil a

partir da ideia de imitação. Muitas questões ainda não foram respondidas acerca da

importância da imitação na cultura e na política brasileira. Será a imitação um topos

argumentativo claramente conservador?13 Outro ponto a ser investigado é como os críticos

da imitação utilizam, eles próprios, de teorias e conceitos estrangeiros sem serem alvo de

sua própria crítica? Por fim, se nem toda utilização da ciência estrangeira é sinônimo de

cópia, qual “imitação” então é possível e quando ela é necessária?

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13 Essa parece ser a opinião de Ricupero (2010, p. 81).

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