holandeses dominam pernambuco

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Holandeses dominam Pernambuco - O Arraial do Bom Jesus 1635 Leonardo Dantas Silva Especial para o DIARIO Durante vinte quatros anos da ocupação holandesa no Nordeste do Brasil, a guerra foi sempre uma constante nodia-a-dia dos habitantes. Excluindo a ocupação de Salvador (1624-1625), a dominação holandesa no Nordeste pode ser dividida em três períodos distintos, como bem observou Evaldo Cabral de Mello: O primeiro, que vai de 1630, queda de Olinda, a 1637, quando as tropas do Rei Católico abandonam Pernambuco rumo à Bahia, corresponde a guerra de resistência, que se saldou com a afirmação do poder neerlandês sobre toda a região compreendida entre o Ceará e o São Francisco. O segundo período, de 1637 a 1645, engloba principalmente o governo de João Maurício de Nassau (1636-1644), podendo ser prolongado até o ano seguinte, quando eclodiu o levante luso-brasileiro. É esta que constitui, para a historiografia, a idade de ouro do Brasil holandês. O período final, de junho de 1645 a janeiro de 1654, abrange a guerra da restauração, que terminou com a capitulação do Recife e das últimas praças-fortes inimigase com a liquidação definitiva da presença holandesa no Nordeste. 1 O Arraial do Bom Jesus Na altura do n.º 3.259 da hoje Estrada do Arraial, em Casa Amarela, encontra-se o Sítio Trindade, que faz fundos com a Estrada do Encanamento, onde uma pequenina pirâmide de granito, ali colocada pelo Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, em 29 de janeiro de 1922, assinala o local do Arraial Velho do Bom Jesus. Naquele parque municipal, que hoje abriga inúmeros espécimes da nossa flora regional, o general Matias de Albuquerque, à frente de centenas de bravos pernambucanos, resistiu por cinco anos (1630-1635) às bem municiadas e numerosas tropas holandesas financiadas pela Companhia das Índias Ocidentais. Era o Arraial do Bom Jesus, no dizer de Tadeu Rocha: uma construção irregular e mal acabada, mas muito resistente. A natureza do terreno, o profundo fosso e os altos paredões deram-lhe o aspecto de uma fortaleza quase inexpugnável, sob cuja proteção foram abrigar-se muitas famílias, numerosos sacerdotes e diversos negociantes. Surgiu, assim, uma povoação eminentemente brasileira o Arraial do Bom Jesus onde Henrique Dias se apresentou com os seus pretos livres, em 14 de maio de 1633, completando o amálgama de brancos, índios, negros escravos e mestiços de toda ordem, já existentes no forte e no vizinho arraial. 2 Com a tomada do Recife pelos holandeses, o general Matias de Albuquerque iniciou a Guerra da Resistência recolhendo-se com seus bravos ao Arraial do Bom Jesus, que ocupava grande área daquele hoje populoso bairro do Recife, onde por cinco anos resistiu numa luta sem tréguas. No dizer de Oliveira Lima, "com o desespero no coração, recolhia-se com alguns valentes companheiros, senhores de engenho da capitania, para um lugar na várzea [do Capibaribe] situado a uma légua do Recife e de Olinda, ponto por ele fortificado com quatro peças [canhões] e duzentos homens". Utilizando-se de táticas da guerra de guerrilha, os da terra puderam combater o invasor, obstando as comunicações, reduzindo suas forças, envolvendo-o "num apertado semicírculo, onde sentiam duramentea falta de madeiras e

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Holandeses dominam Pernambuco - O Arraial do Bom Jesus

1635

Leonardo Dantas Silva Especial para o DIARIO

Durante vinte quatros anos da ocupação holandesa no Nordeste do Brasil, a guerra foi sempre uma constante nodia-a-dia dos habitantes. Excluindo a ocupação de Salvador (1624-1625), a dominação holandesa no Nordeste pode ser dividida em três períodos distintos, como bem observou Evaldo Cabral de Mello: O primeiro, que vai de 1630, queda de Olinda, a 1637, quando as tropas do Rei Católico abandonam Pernambuco rumo à Bahia, corresponde a guerra de resistência, que se saldou com a afirmação do poder neerlandês sobre toda a região compreendida entre o Ceará e o São Francisco. O segundo período, de 1637 a 1645, engloba principalmente o governo de João Maurício de Nassau (1636-1644), podendo ser prolongado até o ano seguinte, quando eclodiu o levante luso-brasileiro. É esta que constitui, para a historiografia, a idade de ouro do Brasil holandês. O período final, de junho de 1645 a janeiro de 1654, abrange a guerra da restauração, que terminou com a capitulação do Recife e das últimas praças-fortes inimigase com a liquidação definitiva da presença holandesa no Nordeste. 1

O Arraial do Bom Jesus

Na altura do n.º 3.259 da hoje Estrada do Arraial, em Casa Amarela, encontra-se o Sítio Trindade, que faz fundos com a Estrada do Encanamento, onde uma pequenina pirâmide de granito, ali colocada pelo Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, em 29 de janeiro de 1922, assinala o local do Arraial Velho do Bom Jesus. Naquele parque municipal, que hoje abriga inúmeros espécimes da nossa flora regional, o general Matias de Albuquerque, à frente de centenas de bravos pernambucanos, resistiu por cinco anos (1630-1635) às bem municiadas e numerosas tropas holandesas financiadas pela Companhia das Índias Ocidentais. Era o Arraial do Bom Jesus, no dizer de Tadeu Rocha: uma construção irregular e mal acabada, mas muito resistente. A natureza do terreno, o profundo fosso e os altos paredões deram-lhe o aspecto de uma fortaleza quase inexpugnável, sob cuja proteção foram abrigar-se muitas famílias, numerosos sacerdotes e diversos negociantes. Surgiu, assim, uma povoação eminentemente brasileira o Arraial do Bom Jesus onde Henrique Dias se apresentou com os seus pretos livres, em 14 de maio de 1633, completando o amálgama de brancos, índios, negros escravos e mestiços de toda ordem, já existentes no forte e no vizinho arraial. 2 Com a tomada do Recife pelos holandeses, o general Matias de Albuquerque iniciou a Guerra da Resistência recolhendo-se com seus bravos ao Arraial do Bom Jesus, que ocupava grande área daquele hoje populoso bairro do Recife, onde por cinco anos resistiu numa luta sem tréguas. No dizer de Oliveira Lima, "com o desespero no coração, recolhia-se com alguns valentes companheiros, senhores de engenho da capitania, para um lugar na várzea [do Capibaribe] situado a uma légua do Recife e de Olinda, ponto por ele fortificado com quatro peças [canhões] e duzentos homens". Utilizando-se de táticas da guerra de guerrilha, os da terra puderam combater o invasor, obstando as comunicações, reduzindo suas forças, envolvendo-o "num apertado semicírculo, onde sentiam duramentea falta de madeiras e

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víveres frescos". Ao Arraial do Bom Jesus compareceram com seus comandados Luís Barbalho e Martim Soares Moreno, Filipe Camarão com seus índios e Henrique Dias com os seus negros, resolutos em manter uma guerra diuturna que veio incutir na gente de Pernambuco o sentimento do nativismo. No Recife, um conselho político da Companhia das Índias Ocidentais, formado por Pieter van Hagen, Johan de Bruyne, Servaas Carpentier e Johanes van Walbeeck, determinou que 7.000 homens comandados pelo general Jonkheer Diederick van Waerdenburch realizassem incursões contra os redutos portugueses na Paraíba (Cabedelo), no Rio Grande do Norte (Reis Magos) e no Cabo de Santo Agostinho (Nazaré), não tendo este sido feliz em suas tentativas. Em abril de 1632, porém, a sorte parece sorrir para os holandeses: Domingos Fernandes Calabar, um mestiço acusado de contrabando, passa para o lado dos invasores. Profundo conhecedor da região, habituado à guerrilha, de logo desperta a atenção dos chefes holandeses que souberam apreciar-lhe as suas habilidades, dar-lhe um tratamento diferenciado na sociedade de então e recompensar-lhe os serviços. Com a sua ajuda foram tomadas as vilas de Igarassu (1632), Rio Formoso (1633), Itamaracá (1633), Rio Grande do Norte (1633) e Nazaré do Cabo (1634). Em 1635, com a chegada de novos reforços, o efetivo militar da Companhia no Recife foi elevado para 4.000 infantes e 1.500 marinheiros, apoiados por 42 embarcações, sob o comando do general polonês Cristóvão Arcizewsky (1592-1656). Com tal reforço, o alto comando holandês vem conquistar finalmente as capitanias do Rio Grande do Norte, Paraíba e Itamaracá. As tropas portuguesas, por sua vez, ficaram restritas ao Arraial do Bom Jesus, ao Forte de Nazaré do Cabo e ao atual Estado das Alagoas, defendido em Sirinhaém por Matias de Albuquerque. Era o coronel Christoffel dáArtischau Arciszewski um nobre polaco, aparentado da família principesca dos Radziwills, que quando jovem cometeu assassinato contra um advogado, que tentava apoderar-se da propriedade de sua família, e por isso fora banido indo se refugiar na Haia como correspondente político do seu tio. Aconselhado por Janus Radziwills, seu primo, vem ingressar na Universidade de Leiden, a fim de obter uma formação mais consistente e mais protestante do que na França. Aos 32 anos junta-se ao exército Conde de Nassau, embarcando cinco anos mais tarde, no posto de capitão, na frota do almirante Cornelis Lonck (1629) que vinha invadir Pernambuco. Na mesma frota veio encontrar-se com o oficial alemão Sigmund von Schkoppe, senhor de Krebsbergen e Grand Cotzen, "um soldado de bigodes vermelhos, muito rígido, que serviu aos interesses da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil por 24 anos, até a capitulação do Taborda". Visto comsimpatia pelos seus comandados, era Arciszewski um competente militar, com paixão pelo latim e conhecimento dos clássicos, como testemunha o frei Manuel Calado. Sobre este religioso, cronista da guerra brasílica, escreveu aquele militar, tratar-se de "um papista português, um homem inteligente que goza de autoridade entre os habitantes e que gosta de falar latim". Em 1637, por se indispor com o Conde João Maurício de Nassau, foi Arciszewski forçado a regressar às pressas para a Holanda e, em seguida, retornou a Polônia.

O Arrecife dos Navios Leonardo Dantas Silva Especial para o DIARIO

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Ele o primeiro a vê-lo, e a vir, (na barra do Suape) ao Brasil, não deixou lá quando nem ondes: só anos depois confessou-se.Porque aquela que então confessa"a terra de mais luz da Terra"Ele talvez nessa luz tantatenha pressentido a arma-brancacom que tudo se expressariaa gente que lá, algum dia. João Cabral de Melo Neto Após o seu descobrimento por Vicente Yáñez Pinzón, naquele janeiro de 1500, Pernambuco continuou nos primeiros anos do século XVI como uma feitoria do Rei de Portugal, sem uma diretriz para o seu povoamento e desenvolvimento, o que só vem acontecer, trinta e cinco anos depois, quando da chegada da comitiva do donatário Duarte Coelho Pereira que aqui implanta as bases da Civilização Duartina. Após vagar pela costa em busca de um lugar seguro dos ataques dos índios e corsários, o primeiro donatário fixou a sede da capitania na Vila de Marim, consagrada depois pelo nome de Olinda. De sua torre podia ele vislumbrar toda a planície flúvio-marinha, anteriormente ocupada pela baía doRecife, que se estendia da ponta rochosa do ponto de chegada de Vicente Yáñez Pinzón rebatizado pelos portugueses por Cabo de Santo Agostinho, ao sul , até o sopé de das colinas de Olinda, ao norte. As terras de aluvião, trazidas pelas enxurradas dos deltas dos rios Beberibe, Capibaribe, Tejipió, Jaboatão e Pirapama, durante cerca de cinco milhões de anos, vieram a formar esta planície quaternária erguida entre as colinas terciárias e os arrecifes que detêm a fúria do mar. Os arrecifes de arenito, formados do mesmo período com o recuo do oceano, descritos pelo poeta Bento Teixeira (1601) como "cinta de pedra inculta e viva", tornara-se a barreira natural que veio a facilitar o trabalho dos rios tributários da antiga baía. A um só tempo em que o mar construía suas praias e restingas, os rios, na observação de Tadeu Rocha, "formavam ilhas e coroas, por entre os quais passaram a divagar, lançando braços em muitas direções", enquanto que o manguezal facilitava a sedimentação e a fixação dos aluviões. Foi esta a primeira paisagem vislumbrada pelo homem, que chegou a Pernambuco no início do século XVI da nossa era, sendo assim descrita por Ambrósio Fernandes Brandão em Diálogos das grandezas do Brasil (16l8),quando o personagem Brandônio diz a Alviano que Olinda se localiza "em uma enseada, da qual saem duas pontas ao mar; de uma delas se forma o cabo tão conhecido no mundo por de Santo Agostinho, e a outra se chama de Jesus, por nela estar situado um famoso templo dos padres da Companhia, chamado do mesmo nome". Está esta vila situada em uma enseada, da qual saem duas pontas ao mar; de uma delas se forma o cabo tão conhecido no mundo, por de Santo Agostinho, e a outra se chama a Ponta de Jesus, por nela estar situado um formoso templo dos padres da Companhia, chamado do mesmo nome. Contém em si toda a Capitania 50 léguas de costa, que toma princípio de onde parte com a Ilha de Itamaracá até o Rio São Francisco, e dentro delas há infinitos engenhos de fazer açúcares, muitas lavouras de mantimentos de toda sorte, criações sem conto de gado vacum, cabras, ovelhas, porcos, muitas aves de volataria e outras domésticas, diversos gêneros de frutas, tudo em tanta cópia que causa maravilha a quem o contempla e com curiosidade o nota. A paisagem não surpreenderia o navegador português por suas belezas naturais: Em Roteiro de todos os sinais (c 1582/85), Luiz Teixeira registra o Cabo de Santo Agostinho a oito graus e meio, como sendo "terra baixa e tem muito arvoredo junto ao mar e parecendo alguns campos sem árvores". A paisagem continuou a sofrer transmudações em épocas mais recentes, quando pela mão do homem foram, através de inúmeros aterros, soldadas ao continente algumas ilhas fluviais formadas pelos deltas dos rios. Algumas delas permaneceram isoladas, até recentemente, como as do Retiro, do Leite, do Nogueira, de Thomas Coque, de Joana Bezerra, do Pina, do Maruim, de Joaneiro; chegando outras aos nossos dias como as do Recife, de Santo Antônio, da Boa Vista, cujos contornos estão registrados nos mapas da atualidade.

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Açúcar, a fonte da cobiça Leonardo Dantas Silva Especial para o DIARIO

E ainda assim, sempre doce e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saúde nas mezinhas aos enfermos, e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavradores que o perseguiram, e aos mercadores que o compraram e o levaram degredado nos portos, muito maiores emolumentos à Fazenda real nas alfândegas. Antonil (1711)

Originária da distante Papua (Nova Guiné), onde já era conhecida há cerca de 12.000 anos, e depois cultivada na Ásia Meridional, foi a cana-de-açúcar (Saccharum officinarum L.) trazida pelos árabes da África para a Sicília e desta para a costa Sul da Espanha. Entre os portugueses o seu cultivo tem início no Algarve, ao tempo de D. João I (1404), sendo depois transportada pelo Infante D. Henrique para Ilha da Madeira, que a transformou no grande propulsor do progresso do mundo colonial de então. De produto vendido nas boticas européias no século XIV, integrando a cozinha árabe que por três séculos dominou a Península Ibérica e tentou desenvolver o plantio da cana-de-açúcar em Granada, o açúcar chegou a Portugal "como remédio e regalo parcimonioso em gente rica". Data de 1425 o plantio das primeiras mudas de cana-de-açúcar na ilha da Madeira, trazidas da Sicília por ordem do infante D. Henrique e plantadas no centro do Funchal, nas cercanias do Terreiro da Sé. Sua cultura logo se desenvolveu e, em 1455, a produção era estimada em 6000 arrobas. Em 1498, dois anos antes da descoberta do Brasil, Dom Manuel, Rei de Portugal, já fixava a exportação das ilhas Madeira, Açores, São Tomé e Cabo Verde em 120.000 arrobas. Naquele final de século XV, a doçaria em Portugal já se encontrava centenária, com os seus bolos de mel, o alfenim, a alféloa, originários da cozinha árabe. É desta época a representação das Cortes de Évora contra as alfeloeiras que, entre outros danos, faziam "os meninos chorar e pedir a seus pais mais dinheiro para comprarem dela dita alféloa"; daí a proibição de Dom Manuel, punindo a transgressão com pena de prisão e açoite, do comércio desse doce a ser exercido por homens. O açúcar produzido na ilha da Madeira se tornara conhecido na Europa de então e o aoPapa Leão X (1513-1521) fora enviado, pelo capitão Simão Gonçalves da Câmara, madeirense bem conhecido por seus rompantes de liberalidade, foi enviado a escultura do Sacro Colégio, com todos os cardeais em tamanho natural feitos em alfenim.

O açúcar no Brasil

Muito embora introduzida oficialmente no Brasil por Martin Afonso de Souza, em 1532, a cana-de-açúcar já tomava conta da paisagem pernambucana desde os primórdios da colonização, ainda ao tempo da feitoria de Cristóvão Jacques, no Canal de Itamaracá (1516). Em 1526, já figura na Alfândega de Lisboa o pagamento de direitos sobre o açúcar proveniente de Pernambuco, segundo informação revelada pela primeira vez por F. A. Varnhagen. 1 Com a implantação no Brasil do sistema das capitanias hereditárias, o território da capitania de Pernambuco foi doado a Duarte Coelho Pereira, que havia prestado à coroa relevantes serviços na conquista das Índias.

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O primeiro engenho-de-açúcar de Pernambuco, o Engenho Velho de Beberibe, foi erguido logo nos primeiros anos da colonização por Jerônimo de Albuquerque, cunhado do primeiro donatário, sob a invocação de Nossa Senhora da Ajuda. Era este empreendimento, o primeiro das centenas que se seguiram, dando início a uma economia com base na cultura da cana-de-açúcar, fundada pelo donatário Duarte Coelho, que, para isso, mandou buscar mestres-de-açúcar na ilha da Madeira, importando a mão-de- obra escrava da África, de onde vieram os primeiros negros da Guiné. A cultura da cana-de-açúcar veio dar novas cores, costumes, cheiros e sabores à paisagem, contribuindo assim para o desenvolvimento e sobrepujança da terra pernambucana, cujos primórdios eram assim vistos por Oliveira Lima: A capitania de Duarte Coelho foi a que mais cedo prosperou, conquanto à custa de muito gasto e de muito esforço, porque, além das pouco vulgares qualidades pessoais do donatário, a terra recomendava-se pela sua excelência. Clima quente, porém temperado pelas suaves virações de terra e mar, tão faladas de Piso, o sábio médico de Maurício de Nassau. Chuvas abundantes e regulares em toda a zona aquém do sertão, refrescando os campos, engrossando os rios e evitando as secas. Terreno acidentado sem demasias, descendo gradualmente dos platôs ou tabuleiros do interior para as matas frondosas, nas quais a pujança não sobrepuja a beleza, e para as várzeas fertilíssimas banhadas por muitos rios, e expirando nos mangues ou alagados do mar. 2 Em Pernambuco, a "terra garanhona do massapê", para usar a expressão de Gilberto Freyre, foi o solo ideal para a fundação dessa cultura que por mais de quatro séculos domina a economia de toda uma região. Para o primeiro donatário, a Nova Lusitânia, como ele insistia em denominar Pernambuco, jamais seria uma colônia simplesmente extrativista, como queriam as ordens de Lisboa na primeira metade do século XVI, mas uma terra de plantação, embrião do que veio a ser a civilização do açúcar. Foi este produto o suporte econômico da grande marcha civilizadora de Pernambuco, responsável pela colonização de todo o Norte do Brasil.

A Civilização do Açúcar

Com os seus engenhos espalhados pelas várzeas dos rios Capibaribe, Beberibe, Jaboatão e Una, a Capitania Duartina viu florescer a civilização do açúcar, fonte da riqueza responsável pela construção de todo um patrimônio artístico e cultural ainda hoje presente em suas fronteiras. O engenho-de-açúcar foi, desde os primórdios da colonização, uma espécie de célula formadora da civilização que se implantou com a cultura do açúcar em terras brasileiras, como bem demonstra Gilberto Freyre: O engenho-de-açúcar tornou-se a primeira base econômica e o persistente modelo de forma ou de configuração social de todo um vasto sistema de organização de economia e de família, de sociedade e de cultura, que das terras de cana-de-açúcar se comunicaria a outras terras e constituiria o fundamento da unidade unidade dinâmica daquela parte da América em que portugueses, com auxílio ameríndio e principalmente africano, desenvolveriam um tipo novo de civilização. [...] Mas as formas sociais que condicionariam esses outros ajustamentos regionais de substâncias, seriam as que primeiro se desenvolveriam naquelas terras as de cana-de-açúcar e em torno dos seus engenhos engenhos de animais, de rodas dáágua e a vapor: um sistema de relações dos homens com a natureza e dos homens entre si caracterizado pela preponderância da organização patriarcal de economia inclusive de trabalho: durante longo tempo, o escravo de família e

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de sociedade. 3 Observa Antonil, em seu livro clássico, verdadeiro manual para quem quisesse se estabelecer no Brasil como agricultor de cana-de-açúcar, existiam no Brasil dois tipos de engenho: o engenho real, para agricultores de grandes cabedais (posses) e as engenhocas, um tipo de fábrica de menor proporção, necessitando os primeiros de cerca de 150 a 200 escravos. O engenho real, tão bem representado em quadros e desenhos assinados por Frans Post, era movido a água e sua produção chegava a 4000 pães (formas) de açúcar, incluindo as canas moídas de sua propriedade e a dos lavradores sem engenho. Num só engenho real estariam reunidos os mais diferentes profissionais, todos indispensáveis para o sucesso do empreendimento. Daí se fazer necessário: escravos de enxada e foice, no campo e na moenda; os mulatos, mulatas, negros e negras do serviço da casa ou em outras partes, barqueiros, canoeiros, calafates, carpinas, carreiros, oleiros, vaqueiros, pastores e pescadores; um mestre de açúcar, um banqueiro (seu substituto), um contrabanqueiro, um purgador, um caixeiro (no engenho e outro na cidade), feitores, um feitor-mor e o capelão. Para o trabalho dessa gente se fazia necessário mantimentos e farda, medicamentos, enfermaria e enfermeiro, "e para isso são necessárias rocas de muitas mil covas de mandioca". Necessita ainda o engenho de barcos velame, cabos, cordas e breu; de fornalhas, que por sete e oito meses ardem de dia e de noite, muita lenha, e para isso faz-se mister dois barcos veleiros para se buscar nos portos, indo um atrás do outro sem parar, e muito dinheiro para a comprar, ou grandes matos com muitos carros e muitas juntas de bois para se trazer. Os canaviais necessitam também suas barcas e carros com suas juntas debois, enxadas e foices. As serrarias, de machados e serras. A moenda de toda a casta de paus de lei de sobressalente e muitos quintais de aço e de ferro. A carpintaria, de madeiras seletas e fortes para esteios, vigas, aspas e rodas, e pelo menos os instrumentos mais usuais, a saber serras, trados, verrumas, compassos, regras, escopos, enxós, goivas, machados, martelos, pregos e plainas. A fábrica do açúcar, de caldeiras, tachas e bacias e outros muitos instrumentos menores, todos de cobre, "cujo preço passe de oito mil cruzados, ainda quando se vende não tão caro como nos anos presentes". E não param por aí as necessidades de um engenho real: São finalmente necessárias, além das senzalas dos escravos e além das moradas do capelão, feitores, mestre, purgador, banqueiro e caixeiro, uma capela decente com seus ornamentos e todo o aparelho do altar, e umas cases para o senhor-de-engenho, com seu quarto separado para os hóspedes que no Brasil, desprovido totalmente de estalagens, são contínuos, e o edifico do engenho forte e espaçoso, com as mais oficinas, e casa de purgar, caixaria, alambique e outras coisas que por miúdas aqui se escusa apontá-las, e delas se falara em seu lugar. 4 O crescente aumento do número de engenhos em Pernambuco é confirmado pelas narrativas dos primeiros anos: 23 em 1570 (Gândavo), 66 em 1583 (Cardim) e 77 em 1608 (Campos Moreno). O preço da arroba do açúcar branco em Lisboa passou de 1$400 em 1570 para 2$020 em 1610 (Simonsen). Tal riqueza já fora observada por Gabriel Soares de Sousa (1540-1591), em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, no qual relata possuir Pernambuco "mais de cem homens que têm até cinco mil cruzados de renda, e alguns até oito, dez mil cruzados". Desta terra saíram muitos homens ricos para estes reinos que foram a ela muito pobres, com os quais entram cada ano desta capitania quarenta e cinqüenta navios carregados de açúcar e pau-brasil, o qual é o mais fino que se acha em toda costa; e importa tanto este pau a Sua Majestade que o tem agora novamente arrendado por tempo de dez anos por

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vinte mil cruzados cada ano. E parece que será tão rica e tão poderosa, de onde saem tantos provimentos para estes reinos que se devia ter mais em conta a fortificação dela, e não consentir que esteja arriscada a um corsário a saquear e destruir, o que se pode atalhar com pouca despesa e menos trabalho. 5 Graças aos lucros obtidos com o açúcar, os de Pernambuco realizaram a colonização da Paraíba e do Rio Grande do Norte, estendendo sua conquista ao Ceará e ao Pará, sendo sua participação decisiva na incorporação do Maranhão ao território nacional. Foi um pernambucano, por sua participação no esforço da incorporação do Maranhão, cujo território era ocupado pelos franceses, que orgulhosamente acresceu este topônimo ao seu nome de família, prática que se estendeu por todos os seus descendentes. Refiro-me a Jerônimo de Albuquerque que, nascido em Olinda em 1548, filho do capitão Jerônimo de Albuquerque, cunhado do primeiro donatário, com D. Maria do Espírito Santo, índia da tribo dos Tabaiares, veio a conquistar o Maranhão aos franceses, então comandados pelo Monsieur de la Ravardière, Daniel de la Touche. Por assinatura do termo de capitulação, em 2 de novembro de 1615, ao apor o seu nome, Jerônimo de Albuquerque acrescentou o topônimo Maranhão. Na qualidade de primeiro capitão-mor da Capitania do Maranhão, Jerônimo de Albuquerque Maranhão fixou-se na cidade de São Luís, aonde veio a falecer em 11 de fevereiro de 1618, passando seus descendentes a proclamar a sua glória com o apelido de Albuquerque Maranhão. A agroindústria do açúcar veio modificar a paisagem pernambucana daqueles primeiros anos da colonização. O canavial, como se fosse um rio a transbordar do seu próprio leito, espalhou-se pelas várzeas, galgou as pequenas serras, derramou-se pelas encostas, encheu de verde-cana o horizonte, substituindo o verde da floresta tropical. Graças a essa nova ordem econômica, o açúcar passou de especiaria de alto luxo, vendido em boticas, para o alcance das classes de menor poder aquisitivo. Inicialmente foram os engenhos das margens do rio Beberibe, Salvador e Nossa Senhora da Ajuda, cujos partidos de cana referia-se o primeiro donatário em sua carta de 1542. Poucos anos depois os engenhos espalharam-se ao longo da costa, onde houvesse abundância de lenha, aproveitando os deltas dos rios, de modo a facilitar o transporte. Neles, sob a força do açúcar, o triângulo rural no qual se baseou toda uma civilização: casa-grande, engenho e capela. Na toponímia local, os nomes desses engenhos são ainda hoje preservados, alguns com mais de 450 anos, o que levou o poeta Ascenso Ferreira assim cantar: Dos engenhos de minha terra Só os nomes fazem sonhar! Esperança! Estrela d'Alva! Flor do Bosque! Bom Mirar! O canavial, porém, expulsou a opulência da mata e de algumas das espécies nativas. Hoje só restam lembranças na toponímia local: São Lourenço da Mata, Nazaré da Mata e Santo Antão da Mata, numa referência às matas reais de pau-brasil. Aqui e acolá, sob o cocuruto de morro, ainda aparecem alguns resquícios de matas a relembrar a opulência dos tempos idos. 1 VARNHAGEN, F. A. História geral do Brasil, 9. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, t. 1. p. 106128.

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2 OLIVEIRA LIMA, M. de. Op. cit. p. 11. 3 FREYRE, Gilberto. In Enciclopédia Barsa. v 2. Rio de Janeiro, 1980.p. 71-72 4 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. p. 71-72. 5 SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. 9. ed. revista e atualizada. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Recife: Ed. Massangana, 2000. p. 20

Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco Leonardo Dantas Silva Especial para o DIARIO

Perseguidos pela Inquisição, os judeus, disfarçados em cristãos-novos, tentavam estabelecer-se no Brasil onde, em algumas partes, detinham 14% da população economicamente ativa. Quando da Dominação Holandesa (1630-1654), a comunidade do Recife veio a ser conhecida internacionalmente, sendo o seu passado objeto do interesse dos estudiosos dos nossos dias.

Cristãos-novos e judeus A importância dos cristãos-novos e judeus na formação do Brasil colonial é estudada, de forma pioneira, pelo Prof. José Antônio Gonsalves de Mello, a partir da publicação de Tempo dos Flamengos - Influenciada ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil (1947) e de forma mais pormenorizada em Gente da Nação - Cristãos-novos e judeus em Pernambuco 1642-1654. Quando em 1492 os Reis Católicos de Espanha, Isabel de Castela e Fernando de Aragão, vieram a expulsar os judeus sefardins do seu território, parte das famílias transferiu-se para Portugal. A paz durou pouco, pois já em 1497, D. Manuel, Rei de Portugal, obrigou o batismo cristão de todos os judeus, criando assim a figura do cristão-novo, determinando a expulsão daqueles que não viessem a adotar a religião católica romana. Assim, segregados em determinadas áreas urbanas e obrigados a adotar uma nova religião, os judeus permaneceram em terras do Portugal continental e em terras de além-mar, alguns praticando às escondidas rituais da Lei Mosaica, até 1536, quando da implantação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Temendo o poder da Inquisição, responsável por milhares de vítimas quando de sua atuação na Espanha, a gente da nação, como também eram chamados os judeus, iniciou a sua dispersão em busca de outras terras. Em 1537, Carlos V autorizou a instalação de alguns deles em Antuérpia; em 1550, Henrique V, de França, permite o estabelecimento de homens de negócios e "outros portugueses cristãos-novos" [sic] em cidades francesas, dando assim origem aos grupos conversos de Bordéus, Baiona, Toulouse, Nantes, Ruão; que só viriam a ser reconhecidos como membros da comunidade judaica no séc. XVIII. Na década de 1590, iniciou-se a migração da França para Hamburgo e Amsterdã, cidades onde vieram a se fixar. Outros, porém, movidos pela aventura e pela possibilidade de enriquecimento fácil, vieram tentar a sorte no Brasil, onde chegaram a integrar uma considerável parte da população, estimada em 14% na capitania de Pernambuco. Em Pernambuco, aprimeira presença documentada de cristãos-novos, com animus de fixar permanência, data de 1542 quando da doação das terras a Diogo Fernandes e Pedro

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Álvares Madeira, nas quais pretendiam erguer o Engenho Camarajibe. O primeiro, originário de Viana do Castelo, era marido de Branca Dias, que, nesta época, respondia processo por práticas judaizantes perante o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, só se transferindo para o Brasil por volta de 1551; o segundo, talvez oriundo da Ilha da Madeira, era especialista no fabrico de açúcares. Em 1555, um ataque dos índios destruiu as suas plantações, o que motivou carta de Jerônimo de Albuquerque, cunhado do primeiro donatário então no governo da capitania, ao Rei de Portugal, pedindo auxílio para Diogo Fernandes, "gente pobre de Viana", então com seis ou sete filhas e dois filhos, que, com sua mulher Branca Dias, viriam a ser acusados de práticas judaizantes anos mais tarde. Além desses, outros cristãos-novos tornaram-se senhores de engenho em Pernambuco, permanecendo também como mercadores, atividade peculiar dos judeus por todo o mundo. Outros, porém, se transformaram em rendeiros na cobrança dos dízimos e faziam empréstimos, sendo denunciados como onzeneiros, isto é, agiotas, como o James Lopes da Costa, João Nunes Correia e Paulo de Pina1 . Grande parte deles dedicava-se ao comércio de exportação de açúcares, indústria que se encontrava em franco desenvolvimento na capitania. Alguns chegavam muito jovens e, com a exportação desse produto, se transformavam em representantes das grandes famílias de capitalistas da época, como João da Paz, sobrinho de Miguel Dias Santiago, e Duarte Ximenes, ligado por laços de parentesco aos Ximenes de Aragão, grandes comerciantes de Antuérpia. Um deles, James [Jaime] Lopes da Costa, o mesmo que aparece em 1591 como onzeneiro2, era senhor do Engenho da Várzea, tendo-se transferido para Lisboa, residência de sua mulher e filhos, e de lá para Amsterdã, onde se encontrava em 1598. Nesta cidade, conhecida como a Jerusalém do Ocidente, declarou-se judeu passando a usar o nome de Jacob Tirado, e aí fundou a primeira sinagoga portuguesa daquele grande centro, chamada Bet Yahacob (Casa de Jacob). Era natural do Porto (Portugal), tendo nascido em 1544, transformando-se, assim, num dos mais ilustres membros da comunidade de Amsterdã. Nesta cidade foi alvo de significativa homenagem do rabino alemão Uri Phoebus Halevi, que dedicou-lhe o seu livro ali editado em 1612. Foi ainda James Lopes da Costa que, em 1615, constituiu um grupo de quinze judeus portugueses, a SantaCompanhia de Dotar Órfãs e Donzelas, mais conhecida entre os sefardins pela sigla Dotar, no qual foram acrescidos os nomes de quatro judeus ausentes, dois dos quais residentes em Pernambuco, João Luís Henriques e Francisco Gomes Pina. No final do século XVI, quando da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (1593-1595), já era considerável o número de cristãos-novos em Pernambuco. Numa amostragem com base nos depoimentos, constantes das denunciações e confissões, pode-se estimar em 14% da população desta capitania.

No tempo do Visitador

Em 1593, quando estava a capitania duartina posta em sossego chega do Recife, em 21 de setembro, o visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendoça (sic) e seus oficiais procedentes da capitania da Bahia. O inquisidor demorou-se no Arrecife, como era então denominado o Recife, até o dia 24, quando lhe foi mandado de Olinda um bergantim que o conduziu, pelo rio Beberibe, até o Varadouro onde já estava a sua espera uma grande comitiva, tendo à frente Dom Felipe Moura, então no governo da capitania, e o licenciado Diogo do Couto, ouvidor da vara eclesiástica, com muitos clérigos, o ouvidor-geral do Brasil, Gaspar de Figueiredo Homem, e demais pessoas gradas, além das companhias e bandeiras dos regimentos militares.

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Ao desembarcar no Arrecife, como ele denomina no termo de abertura da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, o inquisidor pôde comprovar a grandeza da capitania, que em 1583 fora objeto de carta do jesuíta Fernão Cardim, na qual afirmara possuir Pernambuco, entre outras coisas, 66engenhos com uma produção correspondente a 200 mil arrobas, sendo o seu porto visitado anualmente por mais de 45 navios. A presença de um representante da Inquisição de Lisboa, em busca de apurar possíveis práticas judaizantes, veio revelar aspectos da vida privada dos habitantes de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, naquele final de século XVI, como se depreende dos depoimentos que integram os volumes das Confissões e Denunciações, cuja edição conjunta vem a ser publicada em 1984. Não se trata de descrições da paisagem, da fauna, da flora e dos nativos, comuns nas crônicas dos viajantes e cartas jesuíticas, mas aspectos mais recônditos da vida privada de seus habitantes que, sob ameaças de penas espirituais, traziam para os autos ricas narrativas com respeito ao dia-a-dia de cada um. De suas narrativas podemos vislumbrar as relações familiares, a vida sexual, os filhos legítimos, legitimados e bastardos, a prática da prostituição e do adultério, casos de bigamia, pecados sexuais contra a natureza (sodomia, pederastia, lesbianismo), batizados, casamentos, festas de igreja, ensino de primeiras letras, tarefas domésticas, a vida no campo e na vila, maneiras de trajar, sistemas de transporte, alimentação, práticas de feitiçarias, procedência do elemento escravo (negros e indígenas), os primeiros advogados, médicos, boticários, as manifestações de música e teatro, a luta contra os índios e contra os corsários. Aspectos interessantes da presença dos corsários de James Lancaster e João Vernner, que aportaram no Recife em 24 de março de 1595, são ali encontrados. Eles permaneceram no Arrecife durante 31 dias e de lá saíram com 15 navios carregados das mais diferentes riquezas, inclusive com as alfaias da igreja do Corpo Santo. Caracterizou-se a 1ª Visitação do Santo Ofício a Pernambuco pela criação de um "Tribunal da Inquisição em Olinda", como bem observa José Antônio Gonsalves de Mello em sua obra citada. O inquisidor Heitor Furtado de Mendoça (sic), não somente determinou a prisão de alguns denunciados, como também os mandou aos cárceres da Inquisição em Lisboa. Mas, no que diz respeito aos processos "cujas culpas exigissem apenas abjuração de levi", como bigamia, sodomia, blasfêmia e outros, tinha o visitador e seus assessores autoridade suficiente para pronunciar a decisão final. Observa o autor de Gente da Nação, serem "amplos pois, os poderes do tribunal olindense, e as penas por ele impostas eram acatadas por autoridades civis fora do Brasil, inclusive da metrópole, como nos casos de degredo e de galés". Justificando o seu raciocínio, Gonsalves de Mello chega a relacionar, com a devida numeração em que os autos se encontram no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 55 processos de réus cujas sentenças foram prolatadas pelo tribunal olindense. No que diz respeito a práticas judaizantes, "de todos os cristãos-novos de Pernambuco, nenhuns foram mais acusados perante a mesa do Santo Ofício do que Branca Dias, seu marido Diogo Fernandes e suas filhas do por cerimônias judaicas", segundo observa Rodolpho Garcia em seus comentários às Denunciações. Nesse aspecto, grande parte dos depoentes assinalavam a presença do casal como responsável pela instalação de uma sinagoga em terras do Engenho Camarajibe. Embora os dois denunciados não mais pertencessem ao mundo dos vivos, as denúncias terminaram por implicar alguns dos seus descendentes. Dos filhos de Diogo Fernandes com Branca Dias havia vivos, em 1595, Jorge Dias da Paz (morador na Paraíba), Andresa Jorge, Beatriz Fernandes, que tinha os apelidos de Alcorcovada e Velha, além de uma filha adulterina do

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marido, havida em uma criada da casa, de nome Brijolândia Fernandes. Muito embora fossem Branca Dias e Diogo Fernandes "já defuntos", as penas da Inquisição recaíram sobre sua filha, Beatriz Fernandes, que, presa em Olinda a 25 de agosto de 1595, foi remetida para Lisboa onde deu entrada nos Estaus (como era chamado o Paço e Cárceres da Inquisição, no Rossio) em 19 de janeiro de 1595. Débil mental e aleijada (daí o seu apelido de Alcorcovada), começou a confessar suas culpas judaicas em 3 de dezembro de 1597; submetida à Câmara de tormento, em 31 de dezembro de 1598, é finalmente condenada por abjuração - culpas no judaísmo - com sentença de excomunhão maior e confisco de todos os seus bens. Findo o processo, participou do auto-de-fé de 31 de janeiro de 1599 e, ao contrário do que informa Pereira da Costa (in RIAP, v. VII, n.46, p. 146), não foi condenada à fogueira pois anda vivia, em Lisboa, no ano de 1604. (Processo nº 4580 da Inquisição de Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa). Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, 5 em conseqüência dos depoimentos de Beatriz Fernandes, outros filhos e netos do casal de judaizantes foram levados ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa: a sua irmã Andresa Jorge, que ingressou nos Estaus em 16 de dezembro de 1599 (Processo nº 6321), juntamente com uma filha, Beatriz de Souza (Processo nº 4273), e duas sobrinhas, estas filhas de Filipa da Paz, Ana da Costa Arruda (Processo nº 11.116) e Catarina Favela (Processo nº 2304) A última, quando do seu depoimento de 8 de janeiro de 1600, revelou ter 17 anos de idade. Submetidas ao tormento são condenadas como suspeitas de levi na fé e vão ao auto de 3 de agosto de 1603. Das quatro implicadas, apenas Andresa Jorge recebe ordens de retornar ao Brasil em 4 de setembro de 1603. Outra implicada pelo depoimento de Beatriz Fernandes, débil mental, foi a sua irmã por parte de pai, Brijolândia Fernandes (Processo nº 9417), que chegando aos cárceres da Inquisição em 16 de dezembro de 1599 participa do auto-de-fé, com suspeitas de vehementi, de 3 de agosto de 1603. Quanto a Jorge Dias da paz, citadonas págs. 58, 94, 95, 149 e 151 das Denunciações, não consta haver ou não se conservou processo no cartório da Inquisição de Lisboa. Em torno de Branca Dias foram criadas várias lendas. Muito embora já houvesse falecido quando da instalação da Visitação do Santo Ofício, em 1593, o seu nome aparece entre as vítimas da Inquisição6. Tal afirmativa, encontrada em outros cronistas, vem da lenda que deu origem à denominação do riacho e do açude do prata em terras do subúrbio recifense de Dois Irmãos: Segundo a lenda a denominação viria da prata jogada por Branca Dias, naqueles dois cursos d'água, quando da chegada da Inquisição a Pernambuco. Rodolpho Garcia, no seu bem elaborado estudo introdutório às Denunciações de Pernambuco, faz referência ao drama histórico Branca Dias dos Apipucos, escrito na segunda metade do século XIX, citado na obra Pernambucanas Ilustres, de Henrique Capitulino Pereira de Mello, publicada no Recife em 1879. De Pernambuco, a lenda de Branca passa para a Paraíba onde aparece, em 1905, emO Livro de Branca. O seu autor, José Joaquim de Abreu, diz ter Branca Dias nascido na Paraíba, em 15 de julho de 1734, tendo sido imolada na fogueira da Inquisição, em Lisboa, no auto-de-fé de 20 de março de 1761. Além deste, outros exemplos são relacionados por àquele autor da introdução que faz às Denunciações. Com base em tal lenda o teatrólogo contemporâneo Dias Gomes escreveu a peça O Santo

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Inquérito, transformada em programa radiofônico e em especial para televisão, a qual sempre desperta as atenções do grande público em suas diversas montagens. O edifício do Palácio da Inquisição de Lisboa, chamado de Estaus, era localizado no largo do Rossio. Ocupava toda a área do perímetro delimitado, nos dias atuais, pela praça D. Pedro IV, praça D. João da Câmara, ruas 1º de Dezembro, do Redentor e das Portas de Santo Antão, localizando-se sua frente principal no hoje Teatro D. Maria I. A sua descrição detalhada aparece na obra de Júlio Castilho Lisboa Antiga 7 e nas plantas copiadas do arquivo da Torre do Tombo,desenhada em 1634 por Matheus do Couto, "Arquiteto da Inquisição deste Reino", que incluem os aposentos (planta baixa) dos quatro pavimentos e os dois cadafalsos onde eram suplicados os condenados. As atividades da Inquisição, iniciadas em Lisboa em 1540, prolongaram-se até 1821, quando veio a ser abolida por decreto das Cortes Portuguesas, datado de 31 de março daquele ano. "O terrível tribunal do Santo Ofício, na observação de Pereira da Costa, durante o tempo da sua existência celebrou nos quatro distritos de Lisboa, Évora, Coimbra e Goa, 760 autos-de-fé, em que figuraram 31.349 vítimas, das quais 1.075 foram relaxadas em carne (mortas nas fogueiras) e 638 queimadas em estátua por se acharem ausentes em países estrangeiros onde não podia chegar a autoridade da Inquisição. Nas vítimas da Inquisição, figuram 339 infelizes remetidos do Brasil, alguns dos quais pereceram nas chamas".

Intelectuais cristãos-novos

Com a doação da igreja de Nossa Senhora da Graça aos padres da Companhia de Jesus, em 1551, Olinda veio dispor de um Colégio dos Jesuítas, cujas aulas tiveram início em julho de 1568, sob a direção do padre João Pereira. Surge, assim, em Pernambuco um centro educacional que viria a formar as gerações, não somente na iniciação à alfabetização e ao catecismo da doutrina cristã, bem como nos rudimentos da matemática, mas também no latim, na filosofia e na moral. Em 1800 o prédio do antigo Colégio dos Jesuítas vem a ser ocupado pelo Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Graça, cujos Estatutos foram elaborados pelo bispo D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (Lisboa: Tipografia da Acad. R. das Ciências, 1798), com a finalidade de instruir "a mocidade em todos os seus principais ramos da literatura, própria não só de um eclesiástico, mas também de um cidadão que se propõe a servir ao Estado". O seminário, chamado pelo cônego Barata de "escola de heróis", veio a ser o principal propagador do ideário iluminista dos filósofos franceses nas capitanias do Norte do Brasil. Também na segunda metade do século XVI atuaram em Pernambuco dois mestres-escolas leigos, ambos cristãos-novos: Branca Dias, que mantinha uma escola para moças, e Bento Teixeira, um erudito que atuou como mestre-escola em Olinda, Igarassu e Cabo, responsáveis pela formação de grande parte dos filhos da elite de então. Ainda em Pernambuco residiu por muitos anos o também cristão-novo Ambrósio Fernandes Brandão, proprietário de terras em São Lourenço da Mata 8, que, em 1618, escreveu o livro Diálogos das Grandezas do Brasil (Recife: Editora Massangana, 1997). Trata-se de um dos mais importantes relatos sobre a flora, fauna, paisagem e vida social e econômica das capitanias do Norte, naquele primeiro século de sua colonização, sendo hoje de consulta obrigatória pelos estudiosos dos mais diversos misteres. Por sua vez, o mestre-escola Bento Teixeira vem a ser o autor da primeira obra poética, produzida no Brasil, que veio a alcançar as honras do prelo. Trata-se do poema épico a Prosopopea, escrita em Pernambuco, entre 1585-94, e publicada em Lisboa em 1601, com a dedicatória a "Jorge de Albuquerque Coelho, Capitão e Governador de Pernambuco",

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numa produção da oficina de Antônio Álvares. Que eu canto um Albuquerque sobera no Da fé, da cara pátria firme muro, Cujo valor é ser que o céu lhe inspira, Pode estancar a lácia e grega lira. Diogo Barbosa Machado (1682-1772), em sua Biblioteca Lusitana (Lisboa 1741), declara ser Bento Teixeira, a quem ele acresceu o sobrenome "Pinto", natural de Pernambuco, dando causa à repetição de um erro que se arrastou ao longo de dois séculos. Somente em 1960, quando da publicação do seu livro Estudos Pernambucanos9, o historiador José Antônio Gonsalves de Mello vem esclarecer a real naturalidade do poeta Bento Teixeira. Ao compulsar o processo n.º 5206 da Inquisição de Lisboa (ANTT), aparece como réu um certo Bento Teixeira, originário de Pernambuco, que se declara natural da cidade do Porto (Portugal), onde nasceraem cerca de 1561. Soube ele cantar as belezas do porto de Pernambuco, sendo o primeiro a descrever, em versos, a simbiose da nascente povoação do Recife com o mar. Em meio desta obra alpestre e dura, Uma boca rompeu o mar inchado Que na língua dos bárbaros escura, Paranambuco de todas é chamada: De Pará, no que é mar; Puca, rotura, Feita com a fúria desse Mar Salgado, Que sem derivar, cometer mingoa, Cova do Mar se chama em nossa lingoa. Prosopopea Nos seus diversos depoimentos, ele afirma ser natural da cidade do Porto (Portugal), de onde saiu com a idade de cinco para seis anos para o Brasil em companhia dos seus pais. Fixando-se inicialmente no Espírito Santo (c 1567), matriculou-se na escola dos padres jesuítas com os quais continuou os seus estudos na Bahia. Em 1579, já tendo concluído os seus estudos, transferiu-se para a capitania dos Ilhéus onde se casou com Filipa Raposa. Anos mais tarde (1584) fixou-se na vila de Olinda, onde abriu uma escola para meninos na rua Nova (a principal da vila). Por dificuldades financeiras transfere-se para a vila de Igarassu (1588), onde, além de mestre-escola, exerceu as funções de advogado, cobrador de dízimos e contratador de pau-brasil. Pelos freqüentes adultérios de sua mulher, Filipa, viu-se obrigado a se transferir para o Cabo de Santo Agostinho onde, em dezembro de 1594, vem a cometer uxoricídio. Fugindo da justiça, vem refugiar-se no Mosteiro de São Bento (Olinda). Por essa época, chega a Pernambuco o visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendoça (sic), sendo o cristão-novo Bento Teixeira denunciado por práticas judaizantes. Preso em 19 de agosto de 1595 é embarcado, juntamente com outros réus, para os cárceres do Santo Ofício em Lisboa, onde por mais de quatro anos passa por sofrimentos e privações. Solto em 30 de outubro de 1599, aos 40 anos de idade, padecendo de uma tuberculose, por motivos ignorados volta à cadeia de Lisboa, conforme atesta o médico João Álvares Pinheiro, a 9 de abril do ano seguinte. Do seu processo nada mais consta, a não ser esta anotação na capa: É falecido Bento Teixeira e faleceu andando com a penitência em o fim de julho de 600. Ó Sorte, tão cruel, como mudável, Por que usurpas aos bons o seu direito? Escolhes sempre o mais abominável, Reprovas, e abominas o perfeito, O menos digno, fazes agradável, O agradável mais, menos aceito... Ó frágil, inconstante, quebradiça, Roubadora dos bens, e da justiça. Prosopopea

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Bento Teixeira, erudito dos mais brilhantes doseu tempo, conhecedor dos clássicos, do latim e de outras línguas, dado a fazer trovas e sonetos, foi o autor do poema épico, Prosopopea, editado nas oficinas do impressor Antônio Álvares, "o primeiro escrito no Brasil a merecer as honras do prelo", infelizmente publicado no ano seguinte ao da sua morte: 1601. 1 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco. 1542-1654 Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1989. 552 p. il. (Estudos e pesquisas; n. 65). Inclui dicionário biográfico dos judeus residentes no Nordeste (1630-1654) e índice onomástico. 2. ed. Apresentação de José Mindlin. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1996.(Série descobrimentos; n.º 6) 542 p. 2 PRIMEIRA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil - confissões e denunciações de Pernambuco 1593-1595. Apresentação e organização de Leonardo Dantas Silva. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: FUNDARPE; Diretoria de Assuntos Culturais, 1984. (Coleção pernambucana; 2fase, v. 14) 509 + 158 p. il. 1ed. conjunta. Inclui índice onomástico. 3 PRIMEIRA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil - confissões e denunciações de Pernambuco 1593-1595. op. cit. 4 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da nação. op. cit. p. 167-198. 5 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da nação: cristãos-novos e judeusem Pernambuco. 1542-1654. op. cit. 6 COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais pernambucanos 1493-1850. Edição fac-similar. Recife: FUNDARPE; Diretoria de Assuntos Culturais; 1983-85. 10 v. (Coleção Pernambucana, 2fase, v. 2-11). Organizados por Leonardo Dantas Silva, com anotações de José Antônio Gonsalves de Mello. v. 10, p. 416. 7 CASTILHO, Júlio. Lisboa antiga. 2. ed. Lisboa, 1937. v. X, p. 51-54 8 PRIMEIRA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil - confissões e denunciações de Pernambuco 1593-1595. op. cit. p. 231 e 260. 9 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Estudos pernambucanos: críticas e problemas de algumas fontes da história de Pernambuco. 2. ed. aum. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Recife: FUNDARPE; Diretoria de Assuntos Culturais, 1986. 243 p. (Coleção pernambucana; 2fase, v. 23)

Holandeses invadem Pernambuco

1630

Leonardo Dantas Silva Especial para o DIARIO

Na primeira metade do século XVII a riqueza da capitania de Pernambuco, bem conhecida em todos os portos da Europa, veio despertar as atenções dos Países Baixos que, em guerra com a Espanha, sob cuja coroa estava Portugal e suas colônias, necessitava de todo açúcar produzido no Brasil para suas refinarias (26 só em Amsterdam). Com o insucesso da invasão da Bahia (1624), onde permaneceram por um ano, mas com o valioso apoio de Isabel da Inglaterra e Henrique IV da França, rancorosos inimigos da Espanha, a Holanda,

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através da Companhia das Índias Ocidentais, formada pela fusão de pequenas associações, em 1621, cujo capital elevara-se, em pouco tempo, a 7 milhões de florins, voltou o seu interesse para Pernambuco. Naqueles idos de 1629, estavam os habitantes de Olinda empenhados em festejar o nascimento do Príncipe Baltazar, filho do rei Felipe IV e de sua mulher Isabel de Bourbon1, e pouca atenção davam para os conselhos de Pedro Corrêa da Gama, empenhado em fortificar a sede da capitania e o porto do Recife, ante a ameaça da presença de uma armada holandesa que, segundo já se anunciava, viria tomar Pernambuco. No púlpito da Matriz do Salvador, grandioso templo erguido em três naves, com seus altares cobertos de ouro ostentando alfaias em prata dourada, o dominicano frei Antônio Rosado, ao condenar a vida de prazeres dos perdulários habitantes da capitania, vaticinara em altos brados: Ah! Olinda, que do teu nome ao de Holanda não há de mudar mais que o i em a. Antes de muitos dias hás de ser destruída e abrasada por holandeses, em castigo dos grandes pecados que cometes, e me parece que já te vejo arder em fogo, olha que, pois falta a justiça da terra, há de vir a do céu! Os vaticínios do frade não se fizeram esperar. Poucos dias depois do seu sermão profético, eis que um patacho, vindo do Arquipélago do Cabo Verde, chega ao Recife anunciando a partida, em 26 de dezembro de 1629, de uma grande armada da Holanda com destino a Pernambuco. Mas logo apareceram os argumentos dos descrentes dessas ocasiões: Se essa frota se tivesse dirigido ao Recife, não chegaria primeiro do que o patacho, que partiu depois dela do CaboVerde? O raciocínio era bastante para acalmar os ânimos e a garantir mais alguns dias de festas em regozijo ao nascimento do herdeiro do trono de Espanha. O governador Matias de Albuquerque, por sua vez, ao contrário dos descrentes, logo convocou o Conselho e determinou algumas poucas medidas que poderia tomar em defesa da sede da capitania, impedindo que qualquer habitante deixasse a vila ou dela retirasse qualquer bem de valor. Apenas se passaram oito dias, da chegada do patacho, eis que a esquadra holandesa é avistada do Cabo de Santo Agostinho, vinha em busca da riqueza maior da capitania: o açúcar! A produção de 121 engenhos de açúcar, "correntes e moentes" no dizer de van der Dussen, 2 viria a despertar a sede de riqueza dos diretores da Companhia, que armou uma formidável esquadra sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon Lonck, que, com 65 embarcações e 7.280 homens, apresentou-se nas costas de Pernambuco em 14 de fevereiro de 1630, iniciando assim a história do Brasil Holandês. Matias de Albuquerque, governador da capitania, procurou concentrar os seus esforços da defesa do Recife, mas o general holandês Theodoro Waerdenburch, seguindo o que fora planejado na Holanda, desembarcou as forças terrestres na praia do Pau Amarelo e no comando de um exército de 3.000 homens marchou sobre Olinda. No combate do Rio Doce, venceu as tropas de Matias de Albuquerque tomando conta de Olinda. Recolhendo-se ao Recife, onde a defesa estava sob o comando de Antônio Lima e não suportando o ataque por terra e mar, o general Matias de Albuquerque determinou o incêndio de 24 navios surtos no porto, carregados de oito mil caixas de açúcar, algodão,

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pau-brasil e tabaco - "que tudo valeria bem um milhão e seiscentos mil cruzados" - e retirou-se para o interior, onde a 4 de março fundou o Arraial do Bom Jesus [na atual Estrada do Arraial], iniciando, assim, a chamada guerra da resistência.

A Vila de Olinda

A Vila de Olinda, a mais bela da América Portuguesa, que já em 1584 tinha o seu fausto comparado ao de Lisboa e Coimbra, dominava a paisagem, com seus quatro mosteiros, a Igreja do Salvador do Mundo e o casario pintado de branco, construído em pedra e cal, colorido pelo verde do coqueiral que lhe proporcionava um clima ameno. Nas ruas, ricos senhores-de-engenho vestiam seda e damasco, montavam em garbosos cavalos ajaezados em prata e ao som de seus guizos e cascavéis chamavam a atenção para sua passagem. O jesuíta Fernão Cardim relata em uma de suas cartas a "boa casaria de pedra e cal, tijolo e telha", demonstrando que em Olinda, no dizer de frei Manuel Calado, "tudo eram delícias e não parecia esta terra senão um retrato do terreal paraíso". Opinião de acordo com a de cronistas holandeses, a exemplo do reverendo Johan Baers, que observa, em torno da igreja paroquial "chamada de São Pedro", se encontram "muitas belas casas e muitos armazéns", adiantando mais adiante: As casas não são baldas de conforto, mas,cômodas e bem feitas, arejadas por grandes janelas, que estão ao nível do sótão ou celeiro, mas sem vidros, com belas e cômodas subidas, todas com largar escadarias de pedra, porque, as pessoas de qualidade moram todas no alto. Os umbrais de todas as portas e janelas são, de pedra dura e pesada.3 O capelão holandês, no seu relato em Olinda Conquistada, parece descrever habitações semelhantes a atual casa nº 7 do antigo Pátio de São Pedro. Com suas paredes em grossa alvenaria de pedra (50 a 70 cm), quadros de pedra nas portas e janelas e cunhais do mesmo material. A vida religiosa da capitania tinha como centro a matriz do Salvador do Mundo, sendo ela, em todo século XVI e primeira metade do século XVII, a segunda igreja em importância da América Portuguesa, depois da Sé da Bahia. O grande templo foi parcialmente concluído em 1540, apresentando-se com três naves, tendo na portada duas colunas geminadas. O padre Fernão Cardim assim o descreve em 1584: "uma formosa igreja matriz, de três naves, com muitas capelas ao redor, e que acabada ficaria uma boa obra." Matriz colegiada, a igreja do Salvador do Mundo era dirigida por um pároco, auxiliado por um coadjutor e quatro capelães, que recitavam o ofício divino e celebravam missa solene em comum. O pároco de Olinda era, no dizer de Arlindo Rubert, uma espécie de Vigário-Geral da Capitania, com especiais faculdades outorgadas pelo Bispo da Bahia. Em seu livro, A Igreja no Brasil, ele apresenta uma relação dos primeiros vigários da matriz do Salvador do Mundo, com as datas aproximadas de posse e transmissão do cargo: Padre Mestre Pedro da Figueira (1535-15...), Padre Pedro Manso (15...-1562), Padre Silvestre Lourenço (1563-1571), Licenciado Diogo Vaz de Freitas (1571-1572), Licenciado Antônio Pires (1572-157...), Padre Antônio Muniz (157...-1584), Padre Antônio de Sá (1584-159?), Licenciado Diogo de Couto (1589-1618); alguns dos quais não chegaram a tomar posse em suas funções.4 Por ocasião da invasão holandesa, em 1630, a matriz do Salvador do Mundo veio a servir, por algum tempo, às cerimônias da igreja reformada, assistida por seis pastores e, dentre eles o já citado Johannes Baers, que oficiou naquele templo por ocasião da Páscoa de 1630.

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Pela Páscoa os srs. Conselheiros mandaram abrir a principal igreja paroquial de Olinda, orna-la e prepara-la, onde no dia da Páscoa fiz primeira prédica, e também preguei nos dias seguintes, e batizei um soldado enfermo. [...] Vieram também à igreja muitos pretos e pretas, que a seu modo atendiam quietos e devotos ao ofício divino e escutavam humildemente, e eram também (assim dizia-se) batizados.

O Arraial do Bom Jesus

Derrotados no Recife e com os navios e armazéns em chamas, os luso-brasileiros recolhem-se ao interior dando início a chamada Guerra de Resistência. Matias de Albuquerque, "com o desespero no coração, recolhia-se com alguns valentes companheiros, senhores de engenho da capitania, para um lugar na várzea [do Capibaribe] situado a uma légua do Recife e de Olinda, ponto por ele fortificado com quatro peças [canhões] e duzentos homens" (Oliveira Lima). Estava assim iniciada uma guerra sem tréguas que se prolongaria ao longo dos próximos 24 anos. Inicialmente foi erguido o Arraial do Bom Jesus [parte do local é hoje ocupado pelo Sítio Trindade, na Estrada do Arraial], onde por cinco anos, utilizando-se das táticas da guerrilha, os da terra puderam combater o invasor, obstando as comunicações, reduzindo suas forças, envolvendo-o "num apertado semicírculo, onde sentiam duramente a falta de madeiras e víveres frescos". Ao Arraial do Bom Jesus compareceram com seus comandados Luís Barbalho e Martim Soares Moreno, Filipe Camarão com seus índios e Henrique Dias com os seus negros, resolutos em manter uma guerra diuturna que veio incutir na gente de Pernambuco o sentimento do nativismo. No Recife, um conselho político da Companhia das Índias Ocidentais, formado por Pieter van Hagen, Johan de Bruyne, Servaes Carpentier e Johanes van Walbeeck, determinou que 7.000 homens comandados pelo general Jonkheer Diederick van Waerdenburch realizassem incursões contra os redutos portugueses na Paraíba (Cabedelo), Rio Grande do Norte (Reis Magos) e Cabo de Santo Agostinho (Nazaré), não tendo este sido feliz em suas tentativas. Em abril de 1632, porém, a sorte parece sorrir para os holandeses: Domingos Fernandes Calabar, um mestiço acusado de contrabando, se passa para o lado dos invasores. Profundo conhecedor da região, habituado à guerrilha, de logo desperta a atenção dos chefes holandeses que souberam apreciar-lhe as suas habilidades, dar-lhe uma tratamento diferenciado na sociedade de então e recompensar-lhe os serviços. Com a sua ajuda foram tomadas as vilas de Igarassu (1632), Rio Formoso (1633), Itamaracá (1633), Rio Grande do Norte (1633) e Nazaré do Cabo (1634). Com as novas tropas chegadas da Holanda, que vieram elevar o efetivo militar para 4.000 infantes e 1.500 marinheiros, apoiados por 42 embarcações, contando com o comando do polonês Cristóvão Arcizewsky, o alto comando holandês vem conquistar finalmente as capitanias do Rio Grande do Norte, Paraíba e Itamaracá. As tropas portuguesas ficaram limitadas ao Arraial do Bom Jesus, ao forte de Nazaré do Cabo e ao atual estado das Alagoas, defendido em Serinhaém por Matias de Albuquerque. O Arraial do Bom Jesus, sitiado durante três meses e três dias, pelas tropas de Arcizewsky veio capitular em 6 de junho de 1635: "porque afinal faltou tudo o que servia de sustento; consumiram-se cavalos, couros, cães, gatos e ratos, com que se alimentavam. E quando ainda houvesse algumas dessas imundas coisas, não existia mais pólvora, nem qualquer munição" (Memórias Diárias). Cansado e extenuado,Matias de Albuquerque inicia uma marcha para a Bahia à frente de

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uma tropa de 140 homens brancos, acrescida dos negros de Henrique Dias e dos índios de Filipe Camarão, com a qual em 19 de julho veio tomar a vila de Porto Calvo, então sob o poder das tropas do comandante Alexandre Picard, que tinha sob suas ordens quatro companhias com 400 militares. Por ocasião da rendição foi entregue como prisioneiro Domingos Fernandes Calabar, que veio a ser condenado à morte por garroteamento em 22 de julho. Sabendo que as tropas de Arcizewsky viriam ao seu encalço, Matias de Albuquerque continuou a sua marcha para Bahia, levando na vanguarda sete a oito mil civis pernambucanos cujo pânico fez empreender tão penosa caminhada. Entre os que o acompanhavam nesta retirada figuravam alguns senhores rurais, que deixaram para trás seus engenhos, escravos, animais e toda a riqueza acumulada em quase um século da civilização duartina. Nesta fase da guerra, aparece a figura do frei Manuel Calado do Salvador (1584-1654), então residente em Porto Calvo e, por isso, encarregado de acompanhar o condenado Calabar nos seus últimos momentos. O religioso não só participou da guerra da resistência contra o invasor, mas também veio a se tornar um dos principais cronistas. Transferindo-se para o Recife, o frei veio a ser um dos comensais da corte do novo governador do Brasil Holandês, o Conde João Maurício de Nassau, que aqui permaneceu de 1637 a 1644. O frei Manuel Calado, por sua vez, um misto de guerrilheiro, pregador, poeta ecronista, nascido em Vila Viçosa (Portugal), conseguiu escrever a mais palpitante obra sobre o dia-a-dia da dominação holandesa, dando-lhes vida e movimento. A importância de seu O Valeroso Lucideno, que já fora citada por Robert Southey, in History of Brazil (Londres, 1810. 3 v.) e por Capistrano de Abreu, in Memórias de um frade (Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, 1905-06, v. 65, p. 18), é ressaltada por José Antônio Gonsalves de Mello: "o seu livro é admirável, pois, além de ser o único que nos apresenta flagrantes reveladores da vida de portugueses e holandeses, da cidade e do campo, da guerra e dos salões dos palácios nassovianos, no período de 1630 a 1646, é escrito com uma vivacidade encantadora. Da fase anterior ao movimento restaurador, iniciado em 13 de junho de 1645, o frade em vez de escrever a crônica miúda, do dia-a-dia dos acontecimentos, apresenta-se em painéis, salientando episódios marcantes a que a sua pena quase um pincel de mestre pintor dá vida e movimento8". Adivulgação da paisagem pernambucana, neste início do século XVII, ganhou especial relevo, com a presença dos artistas holandeses contratados pela Companhia das Índias Ocidentais. Desde a chegada da esquadra invasora às costas de Pernambuco, em 14 de fevereiro de 1630, já os holandeses procuraram descrever, com detalhes e grande apuro técnico, a paisagem da terra que estavam a conquistar. São desta época o conjunto de desenhos e mapas, dentre os quais o de Nicolau Jan Vischer, impresso em Amsterdam (1630), marcando a tomada de Olinda e do Recife. O conjunto pode ser apreciado no Museu do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano e no Instituto Ricardo Brennand. 1 Herdeiro do trono de Espanha, nascido em 17 de outubro de 1629. 2 DUSSEN, Adriaen van der. Relatório sobre as capitanias conquistadas no Brasil pelos holandeses (1639): suas condições econômicas e sociais. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, 1947. 168 p. Tradução, introdução e notas de J. A. Gonsalves de Mello. 3 BAERS, Padre João. Olinda conquistada. Tradução de Alfredo de Carvalho. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Recife: SEC, Departamento de Cultura, 1977. 76 p. (Coleção Pernambucana; 1fase, v. 11 b). Fac-símile da ed. Recife: Typographia de Laemmert & C. - Editores, 1898. p. 40.

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4 RUBERT, Arlindo. Op. cit. v. 1, p. 199. 5 RICHSHOFFER, Ambrósio. Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais 1629-1632. Tradução de Alfredo de Carvalho. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Prefácio de Ricardo José Costa Pinto. Recife: SEC, Departamento de Cultura, 1981. 210 p. il. (Coleção pernambucana; 1fase, v. 11 a). Fac-símile da. ed. Recife: Typographia a vapor de Laemmert & Comp., 1897. 6 COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da guerra do Brasil 1630-1638. Apresentação de Leonardo Dantas Silva; Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. 398 p. il. (Coleção Recife; v. 12). Inclui mapas de Manoel Bandeira e índice onomástico. 7 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. 2.ed. p. 130. 8 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Frei Manuel Calado do Salvador: religioso da Ordem de São Paulo, pregador apostólico por Sua Santidade, cronista da restauração. Recife: Universidade do Recife, 1954. p. 11-12

Pernambuco, Como um sol a brilhar no infinito

"Quando os alísios empurravam da Europa e África as caravelas não buscavam farol de luz mas farol opaco: esta pedra Na terra de mais luz da Terra foi um farol cego este Cabo: às avessas, farol sem luz para navegantes encandeados." João Cabral de Melo Neto

Leonardo Dantas Silva

Para o navegador espanhol, quem primeiro a vislumbrara, era esta a terra de mais luz da Terra. Com as suas retinas ofuscadas pelos dois sóis, no seu poente por detrás das montanhas daquele continente recém-descoberto, Francisco YaÑez Pinzón, avistara uma ponta de pedra que se adentrava ao mar, a qual chamou de Santa Maria de la Consolacion. Na descrição de Capistrano de Abreu: Naquele 26 de janeiro de 1500, a água do mar apareceu turva, a sonda registrou fundo de dezesseis braças, e a costa assomou próximo. Para ele velejaram, nela desembarcaram e tomaram conta da região em nome da coroa de Espanha, proclamando o feito em vozes altas, cortando galhos e entalhando nomes nos troncos das árvores, fazendo mouchões de terra, bebendo água, chantando cruzes. De gentes viram simples pegadas: a este primeiro ponto chamaram de Santa Maria de la Consolacion, hoje cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco. 1 Dentro na Vila de Olinda habitam inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito preço, de toda a sorte em tanta quantidade que semelha uma Lisboa pequena. A barra do seu porto é excelentíssima, guardada de duas fortalezas bem providas de artilharia e soldados, que as defendem; os navios estão surtos da banda de dentro, seguríssimos de qualquer tempo que se levante, posto que muito furioso, porque têm para sua defensão grandíssimos arrecifes, a onde o mar quebra. Sempre se acham nele ancorados, em qualquer tempo do ano, mais de trinta navios, porque lança de si, em cada um ano, passante de 120 carregados de açúcares, pau-brasil e algodão. A vila é assaz grande, povoada de muitos e bons edifícios e famosos templos, porque nela há o dos Padres da Companhia de Jesus [1551], o dos Padres de São Francisco da Ordem Capucha de Santo Antônio [1585], o Mosteiro dos Carmelitas [1588], e o Mosteiro de São Bento [1592], com religiosos da mesma ordem. Preocupou-se o primeiro donatário não somente com a implantação da agroindústria

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açucareira, mas também com a educação da juventude e, muito particularmente, com a catequese dos indígenas, tendo para isso entregue aos padres da Companhia de Jesus, em 1551, a ermida de Nossa Senhora da Graça por ele construída na mais alta elevação da vila de Olinda. Coube aos padres Manoel da Nóbrega e Antônio Pires dirigir o nivelamento do terreno e nele iniciar a construção, junto à primitiva igreja, do edifício do Colégio de Olinda, obras estas que se prolongaram por toda a segunda metade do século XVI, e de Horto Botânico destinado à aclimatação das plantas exóticas que eram transportadas da Europa e do Oriente para Pernambuco. Também outras ordens religiosas procuraram estabelecer os seus conventos em terras da nova capitania. Depois dos Jesuítas (1551), seguiram-se os Franciscanos (1585), Carmelitas (1588) e Beneditinos (1592). 1 ABREU, José Capistrano de. O Descobrimento do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1976. p. 149. 2 ABREU, José Capistrano de. op. cit. 28. 3 GUEDES, Max Justo. "As primeiras expedições de reconhecimento da costa brasileira", in História Naval Brasileira. v. 1 cap. 4. Rio de Janeiro: Ministério da Marinha, 1975. 4 ABREU, José Capistrano de. Op. cit. p. 23. 5 COSTA, F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos. v. 1. Recife: Fundarpe; Diretoria de Assuntos Culturais, 1983. p. 29-38 (Coleção Pernambucana 2fase, 2 1).

A Vila de Olinda

Segundo a tradição recolhida pelo frei Vicente do Salvador, registrada na sua História do Brasil (1627), a denominação Olinda vem de "um galego criado de Duarte Coelho, porque, andando com outros por entre o mato, buscando um sítio em que se edificasse [a vila], e achando este, que em um monte bem alto, disse com exclamação e alegria : Oá linda!". A versão já fora antes relatada por Ambrósio Fernandes Brandão, autor dos Diálogos das grandezas do Brasil (1618), que residiu em Olinda na segunda metade do século XVI, sendo repetida pelo franciscano frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779) e pelo beneditino dom Domingos do Loreto Couto (c 1696- c 1762), chegando o historiador inglês Robert Southey (1810) a atribuir a exclamação ao próprio Duarte Coelho: "Oh! linda situação para se fundar uma vila!". Com a versão de frei Vicente do Salvador, que também residiu no convento franciscano de Olinda e começou recolher anotações para sua História em 1587, não concorda o historiador Adolpho de Varnhagen que, meticuloso em suas conclusões, lembra que a denominação teria origem em Portugal, "mais nada natural que aquele nome fosse de alguma quinta, ou casa, ou burgo, por qualquer título caro ao donatário na sua pátria, e que ele no Brasil quisesse perpetuar [...] Sabe-se também que Olinda era o nome de uma das belas damas na novela do Amadis de Gaula, cuja leitura estava então muito em voga, não faltando leitores que lhe davam fé, como em nossos dias se dá à história." Alfredo de Carvalho, em Frases e palavras (1906), ao concordar com Varnhagen, chama a atenção para a existência, nas cercanias de Lisboa, das freguesias de Linda-a-Pastora e Linda-a-Velha. A versão do frei Vicente do Salvador, corroborada por Ambrósio Fernandes Brandão, é a mais aceita para explicar o nascimento da primitiva capital de Pernambuco, cujo núcleo

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urbano parece delineado na carta de doação, assinada por Duarte Coelho Pereira, de 12 de março de 1537. Naquele documento, impropriamente chamado de Foral de Olinda, a nascente vila recebe do primeiro donatário as terras de serventia, para uso comum dos seus habitantes. Nele se faz menção a existência da Câmara, da Rua Nova (Bispo Azeredo Coutinho), das fontes de águas potável, do Varadouro Galeota (onde aquela embarcação sofreu reparos) e do Arrecife dos Navios, porto da vila que veio dar origem à cidade do Recife. Nome poético, surgido de uma leitura de novela; ou denominação saudosista, a relembrar um sítio perdido na toponímia portuguesa; ou ainda, exclamação de um criado de Duarte Coelho, oriundo da Galícia, perdido entre as matas de cajueiros que se espalhavam na planície arenosa, hoje ocupada pelos bairros do Rio Doce e Rio Tapado, tudo serve para explicar o que há no nome: Olinda. Os olindenses, porém, a exemplo dos seus avós, têm uma explicação própria para todo esse feitiço que toma conta de quem a conhece: Quem não viu Olinda, não amou ainda! Uma visão da primeira capital de Pernambuco, no início do século XVII, nos é dada por Ambrósio Fernandes Brandão, em Diálogos das grandezas do Brasil (16l8):

Francisco YaÑez Pinzón

Os preparativos da frota de Francisco YaÑez Pinzón (c.1460 c. 1523), comandante da nau NiÑa quando da primeira viagem de Cristóvão Colombo, têm início em 1499 no porto espanhol de Palos, na costa do Mediterrâneo. Visando buscar novas terras no Atlântico Norte, Pinzón reuniu alguns dos mais experientes homens do mar para, com eles, empreender uma nova viagem de exploração às terras recém-descobertas. Com suas próprias economias, consegue aparelhar uma flotilha de quatro caravelas Pinta, Nina, Fraila e Vicente YaÑez , convidando para comandar três delas os experientes pilotos Juan de Úmbria, Juan de Jerez e Juan Quintero, que no passado já haviam participado das três primeiras expedições de Cristóvão Colombo. Na nova expedição, que reunia um total de 150 homens, trouxe também dois dos seus sobrinhos, Árias Perez e Diomedes Fernandez Calmero, filho do seu irmão Martin Alonso Pinzón (c.1440-1493), que fora comandante da caravela Pinta quando da primeira viagem de Cristóvão Colombo. Por essa época Colombo já houvera realizado três viagens àquelas terras desconhecidas. A primeira em 1492-93, descobrindo às Bahamas, Cuba e Haiti; a segunda em 1493-96, atingindo pequenas ilhas, além de Porto Rico, Cuba e Jamaica; a terceira em 1498-1500, chegando a ilha de Trinidad, na parte mais meridional das Antilhas, chegando a foz do rio Orenoco. Levantando âncoras a 18 de novembro daquele ano, no comando de sua pequena armada, Pinzón partiu em busca do arquipélago das Canárias e, de lá, rumou para o do Cabo Verde, permanecendo com os barcos ancorados na ilha de Santiago por três semanas. A 13 de janeiro de 1500, partiu no rumo sul-sudoeste e, após navegar cerca de 300 léguas, ultrapassou a linha do Equador perdendo de vista a estrela polar Norte, que lhes servia de guia. Durante mais de uma semana, ele convivera em meio às incertezas e intensas tempestades. A experiência o aconselhou a manter as proas das embarcações na mesma direção, sul-sudoeste, e, ao sabor da corrente, após navegar 540 léguas em 13 dias, vem finalmente avistarnovas terras com seus contornos azulados. Nas licenças concedidas pelos Reis Católicos para Vicente Pinzón descobrir novas terras, foram excluídas as terras já anteriormente visitadas por Cristóvão Colombo, daí a sua

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decisão de "afoitar-se além da linha equinocial, em paragens não iluminadas pela estrela polar". Francisco YaÑez Pinzón, por sua vez, vem a tomar posse da terra em nome dos Reis de Espanha, logo determinando aos escrivães régios a competente lavratura do ato jurídico, com a assinatura das testemunhas presentes, de conformidade com a fórmula redigida por jurisconsultos e teólogos espanhóis. Concluídas as medidas de praxe, seguiu a expedição beirando a costa, em direção ao norte, assinalando todos os acidentes e, mais tarde, o que veio se chamar rio Amazonas, "a que deu o nome de Mar Dulce".Continuando, ainda em direção ao norte, "chegou até o cabo Orange, a que deu o nome de São Vicente, e ao rio Oiapoque, que se ficou chamando de Vicente Pinzón; foi o último ponto do Brasil em que tocou".2 Apresença de Vicente YaÑez Pinzón na costa Norte do Brasil, três meses antes do desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, na Bahia, é fato aceitável por todos os estudiosos do período, muito embora venha a ser pouco divulgado pela historiografia oficial.

Cabo de S. Agostinho

Ainda em seu tempo, a expedição de Vicente Pinzón foi proclamada pelos mais ilustrados nomes da crônica histórica de então: Juan de la Cosa (1500), Piero Martir de Anghiera (1501), Ângelo Trevisano (1504); como se não bastassem os depoimentos do próprio Pinzón e de alguns homens de sua frota no processo conhecido como Probanzas del Fiscal, um pleito judicial movido por Diego Colombo, filho de Cristóvão Colombo, contra a Coroa de Castela para assegurar os direitos do seu pai. As audiências tiveram início em dezembro de 1512, em São Domingos, no Caribe, e se prolongaram até 1515, em Sevilha, na Espanha. No seu depoimento Vicente Pinzón afirma haver inicialmente aportado no cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco. Para Adolpho de Varnhagen, quando da publicação de sua História do Brasil, em 1854, o ponto de chegada de Vicente Pinzón na costa do Brasil seria a ponta de Mucuripe, no Ceará, que teria sido chamada de Rostro Hermoso, ao consultar o mapa de Juan de la Cosa (1501), o primeiro a representar a América, no Museu Naval de Madri. Com Varnhagen também concorda o almirante Max Justo Guedes que, escrevendo em 1975, sustenta o seu raciocínio ao sobrepor o mapa de Juan de la Costa sobre os contornos do litoral da costa norte do Brasil, proclamando Vicente YaÑez Pinzón como o primeiro navegador europeu a desembarcar oficialmente no Brasil.3 Com Varnhagen, porém, não concorda Capistrano de Abreu chamando a atenção de que Santa Maria de la Consolacion e Rostro Hermoso são dois pontos distintos no litoral do Brasil. Como prova apresenta a "capitulação que os Reis de Espanha assentaram em Granada com Vicente YaÑez, a 5 de setembro de 1501", onde se lê: Tenenmos que en quanto nuestra merced e voluntad fuere ... vos el dicho Vicente YaÑez ... "seades" nuestro Capitan e Gobernador de las dichas tierras de suso nombradas desde la dicha punta de Santa Maria de la Consolation seguiendo la costa hasta Rostro Hermoso, é de alli toda la costa que se corre al Norueste hasta el dicho Rio que vos posites nome Santa Maria de la Mar-dulce. 4 Ao promontório avistado, situado a 8 graus de latitude austral, o navegante espanhol colocou o nome de Santa Maria de la Consolacion, mais tarde denominado, nas rotas dos portugueses e cartas náuticas do século XVI, de Santo Agostinho.5

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Para os primeiros navegadores europeus que chegaram a costa de Pernambuco, a costa apresentava-se como sendo de terra baixa [com] muito arvoredo junto ao mar e parecendo alguns campos sem árvores, na observação do piloto português Luís Teixeira, in Roteiros de todos os sinais etc., ao elaborar o seu manuscrito entre 1582-1585. Para o mesmo homem do mar, o Cabo de Santo Agostinho era o primeiro acidente geográfico, situado a oito graus e meio, avistado por qualquer navegador procedente da Europa, na costa brasileira: Virei correndo a costa para o norte e terei aviso que se vir algumas barreiras ao longo do mar em demanda ao Cabo de Santo Agostinho, vê-lo-ei cortado e lança-se ao mar e faz um focinho como de baleia, em cima dele um monte, redondo de arvoredo, como cerca. Um focinho como de baleia, fora a imagem que ficara nas retinas daquele experiente cartógrafo, quando de sua visão da costa pernambucana, ocorrida entre 1573 e 1578.

Os tempos de Duarte Coelho

O território que constituiu a primitiva Capitania de Pernambuco foi estabelecido quando da doação feita por D. João III a Duarte Coelho Pereira, em l0 de março de 1534 e compreendia: Sessenta léguas de terra... as quais começarão no Rio São Francisco [...] e acabarão no rio que cerca em redondo toda Ilha de Itamaracá, ao qual ora novamente ponho nome Rio Santa Cruz ... e ficará com o dito Duarte Coelho a terra da banda Sul, e o dito rio onde Cristóvão Jacques fez a primeira casa de minha feitoria e a cinqüenta passos da dita casa da feitoria pelo rio adentro ao longo da praia se porá um padrão de minhas armas, e do dito padrão se lançará uma linha ao Oeste pela terra firme adentro e a terra da dita linha para o Sul será do dito Duarte Coelho, e do dito padrão pelo rio abaixo para a barra e mar, ficará assim mesmo com ele Duarte Coelho a metade do dito rio de Santa Cruz para a banda do Sul e assim entrará na dita terra e demarcação dela todo o dito Rio de São Francisco e a metade do Rio de Santa Cruz pela demarcação sobredita, pelos quais rios ele dará serventia aos vizinhos dele, de uma parte e da outra, e havendo na fronteira da dita demarcação algumas ilhas, hei por bem que sejam do dito Duarte Coelho, e anexar a esta sua capitania sendo as tais ilhas até dez léguas ao mar na frontaria da dita demarcação pela linha Leste, a qual linha se estenderá do meio da barra do dito Rio de Santa Cruz, cortando de largo ao longo da costa, e entrarão na mesma largura pelo sertão e terra firme adentro, tanto, quanto poderem entrar e for de minha conquista... A metade da barra Sul do canal de Itamaracá que o rei D. João III denominou de "rio" de Santa Cruz , até cinqüenta passos além do local onde existira a primitiva feitoria de Cristóvão Jacques, demarcava o limite Norte de Pernambuco; ao Sul, o limite da capitania era o Rio São Francisco, em toda sua largura e extensão, incluindo todas as suas ilhas da foz até a sua nascente. Assim o território da Capitania de Pernambuco infletia para o Sudoeste, a acompanhar o curso do rio, alcançando suas nascentes no hoje Estado das Minas Gerais. Ao Norte o Rei estabeleceu o traçado de uma linha para o Oeste, por terra adentro, até os limites da sua conquista; ou seja, os definidos pelo Tratado de Tordesilhas (1493), isto é, as terras situadas além das 370 léguas ao Oeste das ilhas do Cabo Verde. As fronteiras da capitania duartina, desse modo, abrangiam todo o atual Estado das Alagoas e terminavam ao Sul, no Rio São Francisco, fazendo fronteira com o atual Estado das Minas Gerais. Graças à posse deste importante curso dáágua, em toda sua extensão e largura, o território de Pernambuco crescia na orientação Sudoeste, ultrapassando na sua largura em muito as sessenta léguas estabelecidas na carta de doação. Na observação de F. A. Varnhagen possuía a capitania de Duarte Coelho doze mil léguas quadradas,

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constituindo-se na maior área territorial entre todas que foram distribuídas pelo Rei D. João III. Chegando à Feitoria de Pernambuco em 9 de março de 1535, Duarte Coelho fez-se acompanhar de sua mulher, Brites de Albuquerque, do seu cunhado Jerônimo de Albuquerque, e de algumas famílias do norte de Portugal que vinham tentar a sorte no desenvolvimento da agroindústria canavieira. Coube a esse "fundador de nação" a implantação, de forma sistemática, das bases da agroindústria açucareira. Trouxe consigo, além de uma alentada parentela, novas técnicas de fabrico do açúcar com a vinda dos engenhos e dos mestres especializados da ilha da Madeira e, sobretudo, da importação de capital judeu para o financiamento do empreendimento.

Calabar e outros desertores

1635

Leonardo Dantas Silva Especial para o DIARIO

Durante toda a guerra, segundo se depreende dos cronistas que escreviam no dia-a-dia, era comum as deserções de ambos os lados litigantes. A religião, a fome, as privações do corpo, a promessa de ganhos e a ausência do sentimento de pátria, fizeram com que a mudança de lado se tornasse rotina, sendo praticada pelos mais diferentes indivíduos pertencentes às mais diferentes etnias e nacionalidades. Do lado das forças da resistência foram os cristãos-novos, receosos dos tentáculos da Inquisição, quem primeiro se bandearam para o lado dos invasores. No seu rastro vieram os índios tapuias, sempre em constantes litígios com os portugueses; escravos africanos, buscando um novo tratamento; pequenos infratores, procurados pela justiça do rei de Espanha; até mesmo um sacerdote que resolveu, sem que nem pra que, tornar-se seguidor da nova teologia reformada. Do lado do holandês, formado em sua maioria por soldados mercenários das mais diferentes origens, fugiam aqueles ameaçados por castigos e/ou pela fome e pelas necessidades do corpo; fugiam franceses em busca dos seus valores religiosos; fugiam os próprios holandeses que haviam optado por casarem-se com moças da terra; havendo até casos de agentes duplos, que procuravam no calor da guerra a servir a dois senhores.

A adesão de Calabar

Do lado das forças da resistência, comandadas pelo general Matias de Albuquerque, são constantes as deserções e atos de traição, como se vislumbra da leitura das Memórias Diárias, escritas pelo próprio donatário, Duarte de Albuquerque Coelho, irmão do general comandante. De todas, a que mais causou impacto, foi o episódio da deserção do mulato Domingos Fernandes Calabar, em 20 de abril de 1632. Tal fato é atribuído pelos cronistas da guerra brasílica como a principal causa da perda da capitania de Pernambuco para as forças de ocupação holandesas. Conhecedor profundo da região, dos seus caminhos, portos, cursos dáágua e veredas, com o poder de diálogo e convencimento dos índios, apontado como mestre nas táticas da guerra de guerrilhas, Calabar aprendeu o idioma holandês e assim pôde conquistar as simpatias dos seus superiores.

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Como o nosso general lhe conhecia o talento, sentiu muito esta fuga, não só pelo mal que receava (como iremos vendo), mas pelo caminho que abria para os outros, como ele (que não faltavam), fazerem o mesmo.3 Era Domingos Fernandes Calabar profundo conhecedor da região, habituado às guerras de guerrilha, o que logo despertou às atenções dos chefes holandeses que souberam assim apreciar suas habilidades e dar-lhe um tratamento diferenciado na sociedade de então, recompensado-lhe pelos seus serviços. Com a sua ajuda e orientação foram tomadas às vilas de Igarassu (1632), Rio Formoso (1633), Itamaracá (1633), Rio Grande do Norte (1633) e Nazaré do Cabo (1634). Pouco se sabe dos seus motivos em trair os portugueses, passando-se de armas e bagagem para o lado dos holandeses. Dos relatos e documentos de então informam apenas que era Domingos Fernandes filho da negra Ângela Álvares com um português de nome desconhecido, nascido em 1609, na vila alagoana de Porto Calvo, que tomou parte ativa na guerra desde o seu primeiro momento; fora ele ferido, em 14 de março de 1630, quando na defesa do Arraial do Bom Jesus, estando processado por alguns crimes pela justiça do rei de Espanha. No dizer Francisco Varnhagen, "tinha ele muito valor e astúcia, sendo o mais prático em toda aquela costa e em terra que o inimigo podia desejar".4 Domingos Fernandes Calabar é citado no Diário de um seu contemporâneo, o oficial inglês Cuthbert Pudsey, que entre 1629 e 1640 esteve a serviço da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil. Trata-se de uma das mais interessantes crônicas do período inicial da Guerra Brasílica, em face do seu autor ter tomado parte ativa nos ataques às vilas de Igarassu e Itamaracá, bem como na tomada do Arraial Velho e do forte de Nazaré. Participou também da batalha da Mata Redonda e do cerco de Porto Calvo (1635), bem como da incursão dos holandeses à Bahia (1638), tendo também integrado a frota do almirante Cornelis Cornelisz Jol às Antilhas. O seu regresso à Holanda se dá em 1640. No seu Diário (1629-1640) 5 ele nos revela informes preciosos sobre a personalidade e atividades exercidas por Calabar, com quem parece ter convivido, assinalando os motivos por ele revelados ao buscar abrigo junto às tropas holandesas: Por esse tempo veio até nós um português chamado Domingos Fernandes [Calabar], que por haver estuprado uma mulher na região de Camaragibe, e para que depois ela não contasse quem havia feito isto, cortou-lhe a língua da boca. Vivera como renegado por cerca de dois anos entre os portugueses. Então, tendo vindo servir aos holandeses, foi feito capitão. Graças a seus conselhos e meios molestamos muitíssimo o país, sendo ele um sujeito intrépido e político, sabedor de todas as picadas e caminhos através de toda a terra, jactando-se de nada mais fazer senão dano aos portugueses. Sendo ele mesmo um mulato, isto é, com um pai português e uma mãe negra. Desta espécie achamos muitos sujeitos intrépidos. 6 Graças aos seus conhecimentos da região e do aprendizado rápido da língua holandesa, Calabar logo cativou às autoridades militares e administrativas neerlandesas, gozando das simpatias e recebendo carinho e atenções por parte dos mais grados. Convivia ele com as figuras mais representativas desua época e, para um mestiço do seu tempo, tal tratamento contribuiria para massagear de sobremaneira o seu ego de mulato e o animava na conquista de novos postos em sua carreira militar, na qual veio atingir o posto de capitão com o soldo de sargento-mor. Seria este, quem sabe, talvez o principal motivo que o fez grato aos superiores holandeses, quando a sua condição de mulato, filho de pai desconhecido, o impediria de receber tais honrarias e simpatias por parte dos senhores da terra e da oficialidade portuguesa.

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O seu prestígio social junto aos novos aliados tornou-se patente quando do batizado do seu filho com Ana Cardosa, na igreja reformada do Recife. Segundo anotações no Livro Batismal 1633-1654, conservado no Arquivo Municipal de Amsterdã (Gemeent Archief Amsterdam), sob o n.º 379/211, estiveram presentes ao batizado do menino Domingos Fernandes Filho, em 20 de setembro de 1634, o alto conselheiro Servatius Carpentier (também médico e senhor-do-engenho Três Paus), o coronel alemão Sigmund von Schkoppe, o coronel polonês Chrestofle dá Artischau Arciszewski e uma senhora da alta sociedade do Recife não identificada. O fato vem demonstrar a importância social de que gozava o mestiço Domingos Fernandes Calabar quando, em simples solenidade familiar, vem reunir um represente do alto Conselho e os dois principais chefes do Estado Maior do Brasil Holandês. Outro gesto de consideração do governo do Brasil Holandês para com a memória de Calabar, se dá quando do pedido de sua viúva em favor dos seus três filhos órfãos, em data de 13 de abril de 1636. Na ocasião, "considerando os grandes serviços feitos à Companhia pelo seu falecido esposo", o Conselho Político concedeu uma pensão de 8 florins por mês a cada uma das crianças, segundo informa José Antônio Gonsalves de Mello in Tempo dos Flamengos.7 É fato que, além de profundo conhecedor da região, Calabar sabia negociar com os índios o que veio ajudar de sobremaneira os holandeses em suas vitórias mais importantes naquele período inicial da guerra da conquista. Mas, em que pese à lenda que se formou em torno do seu nome e das "biografias" apaixonadas e discursos apologéticos dos dias atuais, Domingos Fernandes Calabar é um nome pouco citado pelas fontes holandesas.

Os Holandeses em Pernambuco - Uma história de 24 anos

O espião Verdonck

Num tempo em que ainda não se encontrava solidificado o sentimento nativista e a consciência de uma pátria, como a temos nos dias atuais, a deserção era fato corriqueiro dentro das fileiras dos exércitos litigantes. No seu relato o soldado Ambrosius Richshoffer, que escreveu O Diario de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais 1, registra constantes fugas das hostes holandesas e de outras, particularmente de mouros (negros) e brasilianner (índios), do lado das forças da resistência; os primeiros chegaram a formar um regimento e esses últimos, graças ao seu conhecimento das trilhas e veredas do território ocupado, foram de grande valia para a causa dos holandeses. Do lado dos holandeses torna-se notável o número de mercenários franceses que fogem em busca de refúgio do lado contrário, talvez por sua condição de católicos e por não suportar a fome que lhes fora impingida durante o cerco do Recife; "os desertores são na sua maioria franceses, de sorte que os desta nacionalidade estão sendo muito suspeitos eodiados entre nós". O caso de um agente duplo aparece nas crônicas holandesas, durante o período da guerra de resistência. Trata-se do holandês Adriaen Verdonck, natural de Brabante e morador na vila de Olinda, quando da invasão em 1630. Para angariar simpatias junto ao alto Conselho, tomou para si a tarefa de escrever um longo relatório acerca da situação da vila de Olinda, particularmente no que diz respeito a lugares, aldeias e comércio, "bem como Itamaracá, Paraíba e Rio Grande", datado de 20 de maio de 1630.2

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Com isso ele adquire às simpatias dos holandeses, chegando a privar do convívio em seus passeios e da própria refeição do general comandante Theodorus van Waerdenburch (Jonkheer Diederick van Waerdenburch), tomando assim conhecimento de informes preciosos do desenvolvimento da guerra. Tudo caminhava sem atropelos até que, em dada de 26 de dezembro de 1630, segundo registra Richshoffer em seu Diário, "passou-se para o nosso lado um mouro [negro escravo] do inimigo, que referiu haver entre a nossa gente um traidor, que diariamente vai ter com os nossos adversários na floresta, e lhes dá notícia da força que guarnecem todos os nossos postos, dos navios que chegam da pátria, e quantos soldados, víveres e munições trazem". A denúncia toma corpo a 15 de janeiro, quando um escravo de Adriaen Verdonck vem a ser reconhecido por um indígena, que se passa para o lado holandês, adiantando ser ele o portador das cartas destinadas a Matias de Albuquerque "de três em três dias, comunicando-lhe todos os nossos planos, e revelando-lhe tudo o que se passava ou lhe era confiado". O agente espião foi de imediato recolhido à prisão, "com ferros nas mãos e nos pés" e lá fica recolhido até que novas acusações lhe foram feitas, inclusive "por um velho monge" português, que vem a ser libertado pelos holandeses mas cujo nome não é revelado. Diante das denúncias, a partir de 3 de abril o prisioneiro vem a ser submetidos a contínuas sessões de torturas, sendo levado ao potro e a prancha, e assim foi obtida a sua confissão. Desesperado tenta ele o suicídio, atirando-se por um pequeno buraco "que havia junto a prisão com o propósito de quebrar o pescoço. Sofreu apenas um pequeno buraco na cabeça, sendo em seguida ainda mais severamente torturado e melhor guardado". Não suportando as torturas que lhe foram impostas, Adriaen Verdonck vem a falecer na noite anterior ao dia da sua execução, 10 de abril de 1631. Não se conformando com a morte de Verdonck, as autoridades holandesas determinaram que fosse o seu cadáver retirado da prisão e arrastado pelas ruas "por quatro mouros" até o lugar da execução onde, após a leitura da sentença condenatória, veio a ser estrangulado, como narra Richshoffer, em seu Diário: Ali, em virtude da condenação, foi estrangulado, sendo-lhe cortados dois dedos e a cabeça. Em seguida foi esquartejado; colocaram a cabeça num alto poste no hornaveque do forte de Bruyn, e o quarto junto ao Vijfhuck ou Trots den duivel; o outro foi pendurado numa forca diante da trincheira nova Kyk in de pot (Olha para dentro do pote).Os outros dois [quartos] foram mandados para Olinda, devendo um ser pendurado da mesma forma no monte e o último no lugar em que a nossa gente foi abatida a 3 de janeiro último [1631].

Uma queima de arquivo

Após a derrota das tropas que defendiam o Arraial do Bom Jesus, Matias de Albuquerque, que se encontrava em Nazaré do Cabo, inicia sua marcha em direção à Bahia. No caminho, ao passar pela povoação de Porto Calvo, no atual território de Alagoas, comandando um pequeno exército de 140 homens, resolve tomar aquele baluarte até então em mãos dos holandeses. Para isso contou com a colaboração de Sebastião Souto, que fez o chefe holandês, major Alexandre Picard, crer na vantagem numérica das forças da resistência. Porto Calvo vem a se render em 19 de julho de 1635. Nos termos da rendição uma das condições impostas por Matias de Albuquerque ao major holandês, que comandava uma tropa de pouco mais de 360 homens, seria a entrega de Domingos Fernandes Calabar e do judeu Manuel de Castro, este último servindo aos holandeses nas funções de almoxarife da povoação.

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Foi Manuel de Castro de imediato condenado pelo Auditor Geral "que o mandou enforcar em um cajueiro", ficando Calabar para o dia seguinte. Entregue Calabar às forças de Matias de Albuquerque, seu julgamento sumário e sua execução passam a ser descritos com cores fortes e detalhes minuciosos pelo frei Calado, encarregado pelo general de acompanha-lo nos seus últimos momentos. Em Olinda Conquistada, Evaldo Cabral de Mello chama a atenção que a cooperação de Calabar "só se torna proeminente nas fontes portuguesas", que pareciam querer atribuir-lhe o fracasso da missão de Matias de Albuquerque em Pernambuco. "As fontes holandesas, pelo contrário, creditam-lhe tão somente os bons serviços prestados como guia". A verdade é que sua execução não se deveu apenas ao colaboracionismo mas igualmente ao conhecimento que adquirira dos contactos comprometedores mantidos por pessoas gradas da capitania com as autoridades neerlandesas.8 Uma fonte holandesa, pelo menos, o Diario do oficial inglês Cuthbert Pudsey, antes citado, apresenta o papel desempenhado por Domingos Fernandes Calabar como de grande importância para as conquistas de então, assinalando: Este capitão Domingos [Calabar], em força e coragem, não podia ser igualado. Muitas vezes, enquanto era um renegado, tentaram prende-lo, mas escapou de suas artimanhas por sua coragem e rapidez nos pés. De tal modo que seus inimigos teriam dado qualquer dinheiro para por-lhe as mãos. Nunca encontramos um homem tão adaptado a nossos propósitos, para dar aos soldados proveito, pois ele tomava um pequeno navio e aterrava-nos em território inimigo à noite, onde pilhávamos os habitantes & quanto mais dano ele podia ocasionar aos seus patrícios, maior era sua alegria. Prisioneiro Calabar, foi ele submetido a um julgamento sumário, em 22 de julho de 1635, sendo condenado à morte por garroteamento pelo general Matias de Albuquerque na ocasião representando a pessoa do próprio Rei, "pois era seu general naquela guerra", sendo acusado o prisioneiro de "muitos males, agravos, extorsões que havia feito". Após a sentença foi o condenado assistido pelo frei Calado que o ouviu em confissão e com ele ficou conversando, "das oito da manhã ao meio-dia", ocasião em que relacionou os nomes dos seus credores, bem como dos seus bens e objetos em ouro, guardados no Recife, e as dívidas do Conselho da Companhia para com ele por conta do seu soldo de militar. Esses apontamentos foram entregues pelo padre-mestre a sua genitora, Ângela Álvares, que residia em Porto Calvo. Na manhã em que esteve com Calabar, dá o frade o testemunho de que, indagado o prisioneiro sobre a colaboração de alguns portugueses para com as forças de ocupação, pelo ouvidor João Soares de Almeida, respondeu ele "que muito sabia e tinha visto naquela matéria e que não eram os mais abatidos do povo os culpados".9 Das denúncias de Domingos Fernandes Calabar foi o general Matias de Albuquerque cientificado pelo frade, "que o avisou de algumas coisas pesadas, o qual em o ouvindo mandou que não se falasse mais nesta matéria, para não se levantar alguma poeira da qual se originassem muitos desgostos e trabalhos". Naquela noite foi o prisioneiro levado pelo sargento-mor dos italianos, Paulo Barnola, que se encarregou de o encostar junto a um esteio ao lado da casa a fim de dar-lhe o garrote, fazendo-lhe, em seguida, em quartos [retalhar o corpo do condenado em quatro partes] "as quais puseram em cima dos paus da estacada", sendo-lhes obstado qualquer pronunciamento, que na ocasião mostrou o prisioneiro desejo de faze-lo, "como queria, receosos de que lhe dissesse, ou declarasse algumas coisas pesadas", conforme ressalta o relato do frei Manuel Calado em seu livro clássico.

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A narração dos fatos, que antecederam à execução de Calabar, levou a Evaldo Cabral de Mello concluir: Tratou-se aparentemente da operação que hoje se designa em linguagem policial por queima de arquivo. Esta é a visão que se faz nos dias atuais do mestiço Domingos Fernandes Calabar, nem um herói, exaltado em prosa e versos, até mesmo na música popular por alguns, nem um traidor, como enfatizavam os cronistas portugueses do seu tempo e a maioria dos historiadores dos séculos XIX e XX. Era Calabar, simplesmente um desertor que viu nas forças neerlandesas mais vantagens para a sua carreira de militar do que entre as tropas do general Matias de Albuquerque. Como tantos outros, escolheu ele um dos lados em conflito e, no jogo do perde e ganha, não foi feliz na sua opção. Cansado e extenuado, Matias de Albuquerque inicia uma marcha em busca da Bahia à frente de uma tropa de 140 homens brancos, acrescida dos negros de Henrique Dias e dos índios de Filipe Camarão. Sabia ele que as tropas de Arcizewsky viriam ao seu encalço e assim apressou-se na sua marcha, sem não antes deixar os restos mortais de Calabar expostos na estacada da povoação. Acompanharam o general, em sua vanguarda sete a oito mil civis pernambucanos cujo pânico fez empreender tão penosa caminhada. Entre os que o acompanhavam naquela ocasião, figuravam também alguns senhores-de-engenhos, que deixaram para trás suas fábricas, propriedades, escravos, animais e toda a riqueza acumulada em mais de um século da civilização duartina.

Um duplo desertor

Para algumas fontes flamengas, uma das grandes perdas para as forças luso-brasileiras foi a passagem para o lado dos holandeses do jesuíta paulista Manuel de Moraes, quando da tomada da Paraíba em 30 de dezembro de 1634, pelas tropas comandadas pelo coronel Chrestofle dá Artischau Arciszewski, segundo assim descreve o autor das Memórias Diárias: O padre Manuel de Moraes com um lenço em um pau foi render-se ao inimigo, tão esquecido das obrigações de sua profissão, que a este juntou o maior, que foi casar-se depois em Amsterdã, sendo sacerdote e pregador apostólico, e abraçar a seita de Calvino! Era este jesuíta um grande conhecedor da língua dos indígenas, revelando-se posteriormente autor de um Dicionário da Língua Tupi e de uma História da América, cujos originais receberam mais tarde elogios do filólogo Hugo de Groot. Exercia papel da maior importância entre as forças da resistência, como comandante das milícias indígenas a quem ensinara às técnicas da guerra de guerrilhas. Dele testemunhava, em 1631, Matias de Albuquerque: "pelejava com tão notável zelo e ardis como se fora sua profissão a guerra e milícia". Por sua vez, era visto por fontes holandesas, na Paraíba para onde se transferiu, como "a maior autoridade sobre todos os selvagens daquela região". Mestiço, descrito por uns como mulato e por outros como mameluco, ele vivia a sete anos entre os indígenas e mais recentemente encontrava-se empenhado em ministrar táticas de guerra volante. Dentre os seus aplicados alunos figurava o futuro herói da restauração e futuro dom, Antônio Filipe Camarão, que vem a ser seu sucessor no comando daqueles batalhões. Constrangido por ter perdido a função de capitão geral dos índios para o seu aluno Antônio Filipe Camarão, o padre Manuel de Moraes aproveitou a rendição da Paraíba para aderir à causa dos holandeses, renunciando sua fé católica e tornando-se um pregador luterano.

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Caindo nas boas graças do comandante Arciszewski, o padre ganhou notoriedade ao renunciar a teologia católica tomando-se de paixão pelos ensinamento da igreja reformada. A sua inesperada adesão, logo se transformou em propaganda da igreja reformada: Padre torna-se protestante. Foi o padre Manuel de Moraes de logo enviado aos Países Baixos a fim de melhor aprimorar os seus estudos teológicos. Na Holanda, logo aprendeu a língua local e em pouco tempo veio casar-se com a jovem Margaretha van der Heide, irmã do mestre dos pesos de Gelderland. Fixando moradia em Amsterdã transformou-se de guerrilheiro em pregador devotado, conhecido por suas preleções nos púlpitos dos templos contra a doutrina e dogmas da igreja católica romana. Ainda nesta cidade escreve alguns textos científicos e, por conta do falecimento de sua mulher, transfere-se para Leiden onde se matricula na universidade local em 27 de julho de 1640, apresentando-se como Lusitanius Licenteatus Theologiae. Nesta cidade ele tenta a publicação do seu Dicionário da língua Tupi e de sua História da América. A sua vida afetiva porém toma novas cores quando do seu casamento com a jovem Anna Smits, uma das mais belas jovens de Leiden, que logo se tornou enfeitiçada pelo seu charme de mulato brasileiro. Apesar de sua aparência de homem "feio, preto, cara de chim", segundo depoimento de Dona Anna Paes, "veio ele a se casar na Holanda com uma das moças mais formosas do país". O segundo casamento, ao que parece, pouco durou pois o padre apóstata se transfere para Amsterdã e lá tem um encontro secreto com o Núncio Apostólico, junto ao Reino dos Países Baixos, "onde se mostrou arrependido de sua escapada protestante e confessou seus pecados ao representante do Papa que lhe deu absolvição". Deixando na Holanda mulher e filhos, bem como amigos de prestígio como o historiador Jan de Laet, que tece elogios a sua inteligência, e Coenradsa Burgh, o padre Manuel de Moraes volta a sua terra a fim de explorar o corte de pau-brasil em área que lhe fora arrendada pela Companhia. Após algum tempo, João Fernandes Vieira sabedor do seu retorno do padre apóstata o manda prender e logo que este chega a sua presença é cometido de grande arrependimento: "prostou-se aos seus pés e com copiosas lágrimas, que lhe corriam sem cessar, lhe pediu encarecidamente que lhe desse uma palavra em seu aposento, com mostras de grande arrependimento, para que fosse seu terceiro para se eximir do castigo que temia". Abandonando a causa dos flamengos, tornou o padre aos exércitos dos insurrectos servindo com ardor, ao lado de João Fernandes Vieira, a causa da Insurreição Pernambucana, sendo o seu nome anotado por Diogo Lopes Santiago quando da batalha dos Montes das Tabocas, na qual participou exortando os soldados e rezando em voz alta suas orações, até a vitória final em 3 de agosto de 1645. Após o sucesso das tropas insurrectas em Tabocas e Casa Forte, foi o padre Manuel de Moraes enviado por João Fernandes Vieira à Lisboa, com a missão de narrar a D. João IV os feitos obtidos pelos exércitos da terra contra os holandeses. Durante essa temporada foi ele preso pela Inquisição de Lisboa e ali respondeu o processo, cujo teor vem a ser publicado na Revista do Instituto Histórico Brasileiro (v. LXX, Rio de Janeiro 1908). Da leitura de suas páginas se depreende que o religioso apresentou a seu favor "um perdão do Papa para sua apostasia ao catolicismo", assegurando em seu depoimento "ter sido ele o único jesuíta preso a quem as autoridades nos Países Baixos haviam proibido de regressar ao Brasil, por

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temerem que levantasse o gentio contra o governo do Recife". 1 RICHSHOFFER, Ambrósio. Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais 1629-1632. Tradução de Alfredo de Carvalho. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Prefácio de Ricardo José Costa Pinto. Recife: SEC, Departamento de Cultura, 1981. 210 p. il. (Coleção pernambucana; 1fase, v. 11 a). Fac-símile da. ed. Recife: Typographia a vapor de Laemmert & Comp., 1897. 2 O Relatório de Adriaen Verdonck foi publicado por José Antônio Gonsalves de Mello in Revista do Arquivo Público de Pernambuco. n.º 6 p. 589-680. Recife, 1949. 3 COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da guerra do Brasil 1630-1638. Apresentação de Leonardo Dantas Silva; Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. 398 p. il. (Coleção Recife; v. 12). Inclui mapas de Bandeira e índice onomástico, p. 121. 4 VARNHAGEN, Francisco Adolpho. História da luta com os holandeses no Brasil 1624-1654. Lisboia 1872. 5 PUDSEY, Cuthbert. Diário de uma estada no Brasil 1629-1640. Tradução e leitura paleográfica por Nelson Papavero; TEIXEIRA, Dante Martins. Petrópolis: Editora Index, 2000. p. 69 6 PUDSEY, Cuthbert. Diário de uma estada no Brasil 1629-1640. Tradução e leitura paleográfica por Nelson Papavero; TEIXEIRA, Dante Martins. Petrópolis: Editora Index, 2000. p. 69 7 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil 3.ed., organizada por Leonardo Dantas Silva. Prefácio de Gilberto Freyre. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana; INL, 1987. 294 p. il. (Estudos e pesquisas, n. 50). p. 177 8 MELLO, Evaldo Cabral. Olinda Restaurada Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 249 9 CALADO, Frei Manuel. O valeroso Lucideno e triunfo da liberdade. 4. ed. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Prefácio José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: FUNDARPE; Diretoria de Assuntos Culturais, 1985. 2v. (Coleção pernambucana; 2fase, v. 13), v. I, 350 p. v. 2, 318 p. il. Inclui índice onomástico. p. 61.

Três meses e três dias

O Arraial do Bom Jesus, então comandado pelo governador André Marim e seus capitães, veio a ser sitiado durante três meses e três dias, pelas tropas de Arciszewski. Na resistência foram consumidos tudo o que poderia uma criatura pensar como alimento. Foram nomeados para tratarem da capitulação os capitães João de Campos e Gamboa e Luiz Avelar Fouto, tendo o Arraial capitulado em 6 de junho de 1635, como relata Duarte de Albuquerque Coelho em suas Memórias: "porque afinal faltou tudo o que servia de sustento; consumiram-se cavalos, couros, cães, gatos e ratos, com que se alimentavam. E quando ainda houvesse algumas dessas imundas coisas, não existia mais pólvora, nem qualquer munição". 3 Não é pois de admirar que se perdesse a praça; o que admira é que em tal estado a sustentasse o governador André Marim e seus capitães. [...] Foi finalmente preciso render-

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se; e com as circunstâncias referidas de certo que não foi ingloriosamente. Segundo escreveu no seu Diário, o oficial inglês Cuthbert Pudsey, o coronel Arciszewski, depois de sitiar por vários meses o Arraial Velho do Bom Jesus, impedindo com emboscadas diárias que lhe chegasse qualquer tipo de mantimentos, soube por alguns prisioneiros que a fome e a doença campeava dentro das muralhas o que tornava impossível qualquer resistência. O coronel intimou o forte a render-se, o que foi negado. Essa arrogância irritou Arciszewski, que sabia, pelas inteligências dos prisioneiros, de suas desgraças, e em fúria disse que não daria qualquer quartel. No dia seguinte parlamentaram e obtiveram quartel e todas as condições honrosas que pediram ao coronel. Era mais que certo que nos dois últimos dias para nenhuma alma dentro do forte havia sobrado comida. Por esse motivo Arciszewski, muito nobremente, enviou instantaneamente quarenta bois e pão do país suficiente para satisfazer sua fome, aplaudindo sua defesa e sua fidelidade a seu príncipe, ao manter o seu forte sem ser tomado, até o último instante possível. 4 Após a rendição do Forte Real do Bom Jesus, tão somente às milícias do governador André Marin, pois Matias de Albuquerque encontrava-se com o pouco que restou de suas tropas em Nazaré do Cabo, obtiveram um tratamento honroso. Pelo tratado de rendição, assinado com os chefes holandeses, foi permitida a sua retirada com honras, em formação militar, ao som de caixas com suas bandeiras desfraldadas e morrões acesos, bem como a concessão de embarcações e mantimentos que lhes transportassem até as Índias. Eram ao todo 500 veteranos e 150 nativos, que gozavam de tal proteção, o mesmo não se dando com a população civil que se encontrava no interior do forte e os habitantes das zonas rurais cuja liberdade era trocada por altas somas em dinheiro e mesmo ouro e pedras preciosas; como testemunha o oficial inglês Cuthbert Pudsey em seu Diário: Foi também resolvido que os habitantes que estavam dentro do forte deveriam pagar, como resgate, uma soma geral de dois meses de pago para cada soldado da legião do coronel. Eles ficaram contentes de hipotecar para sua satisfação imediata, tanta prata & jóias quanto fosse o valor da soma, entregando-as nas mãos dos senhores, que se contentavam, em lugar de dinheiro, em dar aos soldados papéis no valor de tanto, que podíamos vender para registrar em nossa conta, ou podíamos vender essas notas por metade do seu valor em dinheiro ou vinho. O inimigo capitulou no ano de 1635, com cerca de 1900 homens. Marcharam para o Recife com as cores desfraldadas em balas em suas bocas [de fogo], e dali foram enviados para as Índias Ocidentais para ocupar uma praia em alguma ilha habitada por sua nação. E uma grande celebração tanto aqui como em Holanda fizeram os nossos por essa vitória. Esse forte tinha permanecido em suja defesa por cinco anos e alguns meses. Para a população civil, ao contrário da narrativa fria do cronista inglês, os holandeses reservaram às mais cruéis torturas a fim de lhes extorquir o pouco que ainda possuíam em favor de um resgate arbitrado de forma aleatória e brutal pela oficialidade. As mulheres eram estrupadas e os homens, como Antônio de Freitas e Silva, foram "submetidos aos mais cruéis tormentos a fim de que dessem mais dinheiro" em troca de suas vidas, como descreve Duarte Coelho de Albuquerque, em suas Memórias Diárias. Parecia-lhes que com isto ressarciam o que tinham despendido na opugnação do Real [referência ao Arraial do Bom Jesus] em pólvora, munições e gente, que passou de 1000 homens os mortos e 700 os feridos. Nós perdemos 100, com o capitão Gabriel Soares e Pedro Gonçalves Pereira, e o alferes Gregório Guedes; nossos feridos excederam a 140. Segundo documento da época, cujo original hoje se encontra na Biblioteca do Instituto Ricardo Brennand (Recife), foram arrecadados por alguns membros do Supremo Conselho vários moradores de Pernambuco grande quantia em prata e dinheiro. Dentre eles figura o

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nome de Antônio de Freitas e Silva que para salvar sua vida pagou um alto resgate. Mediante terríveis tormentos, onde "se apertavam às cordas muito pouco a pouco para despedaçar seu corpo, com maiores penas e arrancar todos os seus membros do lugar até que ele prometeu pagar por seu resgate 4.000 ducados". Calcula aquele documento que fora extorquida, naqueles dias, da população civil quantia superior a "mais de 500.000 ducados".

A prata de São Bento

Segundo a mesma denúncia, o capitão Charles de Tourlon, da guarda pessoal do Conde João Maurício de Nassau, o mesmo que foi casado com dona Anna Paes, em busca da prata do Mosteiro de São Bento impôs "ao padre provedor" torturas das mais aviltantes. Fazendo introduzir naquele sacerdote "uma clava no canal de sua natura com que o rebentou para fazer-lhe declarar com a tortura onde os frades haviam enterrado a prata do convento". 5 Os que conseguiram pagar o seu próprio resgate tiveram salvo-conduto para abandonar a capitania, dando início a grande epopéia em busca da Bahia de Todos os Santos. A fim de se unir aos de Pernambuco vieram os principais de Itamaracá, dentre os quais Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque (descendente de Jerônimo de Albuquerque, o primeiro grande povoador de Pernambuco), proprietário de três engenhos em Goiana, e seu primo, Lourenço Cavalcanti de Albuquerque, proprietário de dois engenhos e muito gado. Dentre esses torturadores encontrava-se um membro do Supremo Conselho do Brasil Holandês, Jacob Stachowerá, que, para as fontes holandesas, "tratava-se de homem de baixa moral que também de apropriada de uma vasta propriedade de um rico judeu português". Na lista de torturadores também aparece o nome do conselheiro político Hendrick Schilt que, para conseguir "uma pulseira de patacas e a prata da igreja do engenho Umbu", propriedade localizada no atual município de Goiana, "mandou o seu secretário matar o padre Álvaro Mendes, capelão daquele engenho, que foi morto ao pé do altar". O fato apresenta-se com riquezas de detalhes em processo que foi movido contra aquele conselheiro, com sentença condenatória proferida em 30 de outubro de 1637, conservado no Arquivo Geral do Estado (Haia), documentos da Companhia das Índias Ocidentais. No mesmo arquivo se conservam os processos por corrupção contra vários outros membros do Supremo Conselho, dentre os quais Hamel, Bas e Bulestraten, denunciados na publicação Bree byl e o Brasilsche Gelt Sack, que traz a falsa declaração de haver sido impresso no Recife. Alguns historiadores, a exemplo Pieter Marinus Netscher, chegaram a por em dúvida às denúncias formuladas pelo autor das Memórias Diárias, quando este trata da "fereza bárbara" imposta pelos holandeses à população civil após a tomada do Arraial, em junho de 1635; "violentando-os a se resgatarem com seus dinheiros, cujas quantias foram taxadas arbitrariamente e não conforme as condições de cada um". Mas foi o próprio Conde João Maurício de Nassau que, em carta datada 29 de janeiro de 1646: Conquistado o Arraial, apesar de haverem sido os portugueses tomados debaixo de nossa proteção, depois se extorquiu a fazenda aos principais, torturando-os e içando-os pelos braços; outrossim, como alguns moradores contra o seu juramento se tinham juntado com as forças espanholas que foram no ano anterior, os governadores da colônia mandaram trucida-los pelos tapuias, tanto quanto esses pudesses haver às mãos, assim culpados como inocentes sem distinção, e sem poupar mesmo a mulheres ou a criança. 6

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De Pernambuco acompanharamMatias de Albuquerque em sua retirada, o morgado do Cabo, João Paes Barreto, "que largou dois engenhos, muito gado e outras fazendas, por ser um dos mais ricos proprietários do Brasil; e ainda pôde retirar 350 escravos", levando consigo os seus irmãos Estevão Cristóvão, Miguel, Diogo, Antônio, Felipe, D. Catarina Barreto, viúva de D. Luís de Souza. Também se retirou D. Isabel de Moura, viúva de Antônio Ribeiro de Lacerda, e sua irmã, D. Mência de Moura, mulher de Cosme Dias da Fonseca, todos deixando ao abandono seus engenhos e propriedades. 1 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada Guerra e açúcar no Nordeste 1630-1654. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. 2. ed. p. 15 2 ROCHA, Tadeu. Roteiros do Recife. 4. ed. Recife: ed. autor, 1972. p. 82. 3 COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias diárias da Guerra do Brasil 1630-1638. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. (Coleção Recife; v. 12). 4 PUDSEY, Cuthbert. Diário de uma estada no Brasil 1629-1640. Tradução e leitura paleográfica por Nelson Papavero; TEIXEIRA, Dante Martins. Petrópolis: Editora Index, 2000. p. 85 5 Manifesto dos portugueses de Pernambuco etc. , original de documento inédito datado de 1646, conservado na Biblioteca do Instituto Ricardo Brennand (Recife). 6 GUIA de Fontes para a História do Brasil Holandês: Acervos de Manuscritos em Arquivos Holandeses. Organização de Marcos Galindo e Lodewijk Hulsman. Estudo introdutório e organização editorial de Leonardo Dantas Silva. Apresentação de Francisco Weffort. Recife: FJN, Ed. Massangana; Brasília: Minc - Projeto Resgate, 2001.426 p. (Obras de consulta, n. 22). Contém: Arquivos holandeses, 1885-1886 por José Hygino Duarte Pereira: A universidade e a pesquisa histórica 1957-1958 por José Antônio Gonsalves de Mello p. 156 -157.

Um porto quieto e seguro

"Um porto tão quieto e tão seguro, que para as curvas das naus serve de muro", na descrição da Prosopopea (1601) do poeta cristão-novo Bento Teixeira, escrita em Pernambuco na segunda metade do século XVI, seriam as origens humildes da povoação. Hé este porto tal, por estar posta,Huma cinta de pedra, inculta e viva, Ao longo dasoberba e larga costa, Onde quebra Neptuno a fúria esquiva;Antre a praya, e pedra decomposta, O estranhado elemento se diriva, Com tanta mansidão, q. hua fateyxaBasta ter à fatal Argos anneyxa.Prosopopea Situada no cruzamento do paralelo, a oito graus e três minutos de latitude sul, e do meridiano de trinta e quatro graus e cinqüenta e sete minutos, de longitude oeste, a "barra do arrecife", assim chamada no Diário de Pero Lopes de Souza (1532), veio a ser a "ribeira do mar dos Arrecifes dos Navios", a que se refere o donatário Duarte Coelho Pereira em sua chamada carta foral de 12 de março de 1537, uma minúscula povoação de mareantes e pescadores que vivia em torno da ermida de São Pedro Gonçalves, por eles denominada de Corpo Santo. A situação da Vila de Olinda, juntamente com a nascente povoação do Arrecife e as terras de engenhos ao seu redor, despertou a atenção do cartógrafo português Luiz Teixeira que, na segunda metade do século XVI, traçou mapa aquarelado integrante do seu Roteiro de todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas e derrotas que há na Costa do Brasil desde o Cabo de Santo Agostinho até o Estreito de Fernão Magalhães, cujo códice

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encontra-se magnificamente conservado na Biblioteca Real da Ajuda (Lisboa). O mapa de Luiz Teixeira (c. 1573), descreve o trecho da costa pernambucana, situado entre a "terra da banda Sul" (hoje bairro da Cabanga) e a "Vila D'Olinda", inserindo na parte continental as Terras de yngenhos e fazdas, o "caminho para vila huma légoa", pelo primitivo istmo, apresentando no extremo deste algumas construções e a igreja de São Frei Pedro Gonçalves, tudo na primitiva povoação dos Arrecifes, origem modesta da cidade do Recife. Chamava-me a atenção o historiador José Antônio Gonsalves de Mello, neste mapa, para uma anotação do cartógrafo a um "de mestre Gaspar", possivelmente residência de algum clérigo ou cirurgião que vivia nos primórdios do povoamento do Recife, já referido em certo documento datado de Olinda 1571. O porto do Recife, tanto o Poço como o Lamarão, merece maior atenção pois no mapa estão representados um "Arrecife", posteriormente conhecido como "Banco do Inglês", e os "Baixos do Galeão", referência ao naufrágio do galeão do capitão Simão da Gama de Andrade, mencionado como "Galeão Grande São João" que "se desfez em Pernambuco" por volta de 1551, conforme carta de Tomé de Souza, datada deste mesmo ano, ao Rei de Portugal. Assinala, ainda, uma "Lajea", nas proximidades de Olinda, designada por Vital de Oliveira como "baixos de Olinda"; uma "Barreta", na faixa dos arrecifes do porto, depois conhecida como "Barreta dos Afogados", fechada em 1840, e a "barra por onde entram" no porto as embarcações. Em terra firme, também estão assinalados o Rio dos Afogados, o Rio Capibaribe e o Varadouro das Naus, no estuário do Rio Beberibe, assinalando-se de forma aleatória a localização dos primeiros engenhos. Segundo aquele documento as terras situadas no entorno de Olinda e do seu porto (Recife), localizadas nos deltas dos rios Capibaribe e Beberibe, estariam ocupadas por alguns desses engenhos. Alguns deles vieram dar seus nomes aos atuais bairros ou subúrbios do Recife, que conservaram as denominações primitivas: Várzea, Dois Irmãos, Camaragibe, Apipucos, Monteiro, Casa Forte, Cordeiro, Torre, Madalena. Outros ainda nas margens dos rios Jiqui/Jiquiá, Peres, São Paulo, Curado; Tejipió/Penedo de Baixo, Santo Amarinho, Ibura, São Francisco, Uchoa; Jaboatão, Bulhões, Recreio, Santo André, Socorro, Suassuna, Santa Ana, Goiabeira, Manacu; do Pirapama; do Una, bem como de outras bacias hidrográficas tão ricas em massapê e de boas matas.

O prédio da sinagoga

Data de 1636 o surgimento da nova sinagoga do Recife, que começou a ser construída na Rua dos Judeus no primeiro semestre daquele ano, segundo denúncia dos predicantes do Conselho da Igreja Reformada, Schagen e Poel, feita ao Conselho Político em 23 de julho: Em primeiro lugar, observa-se que os judeus que residem aqui começam a estabelecer uma assembléia em forma de sinagoga, o que deve ser impedido (Dag Notule). Em princípio funcionou a sinagoga em casa alugada, mas, logo depois, veio a ser construído um templo próprio em pedra-e-cal, possivelmente entre 1640 e 1641, conforme documento enviado ao Conselho dos XIX, com data de 10 de janeiro de 1641. Em cerca de 1637, com a construção da cidade Maurícia pelo conde João Maurício de Nassau, em terras da ilha de Antônio Vaz (hoje ocupada pelos bairros de Santo Antônio e São José), surgiu uma segunda congregação judaica, "do outro lado do rio", a Kahal

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Kadosh Maguen Abraham (Santa Congregação Escudo de Abraão), aonde veio exercer o rabinato o erudito Moyses Raphael de Aguilar. Formado em Amsterdã, onde em 1637 obteve o cargo de mestre da escola rabínica Ets Hayim, Moyses Aguilar embarcou para o Recife no início de 1641, acompanhado de um irmão, Aron Aguilar, e de um filho de sua irmã, Isaac de Castro Tartas, que veio a ser condenado pela Inquisição de Lisboa a morrer na fogueira em dezembro de 1647.8 Sobre ele, Daniel Levi de Barrios, cronista dos sefardins de Amsterdã, faz este elogio: Dos sinagogas el Brasil ostenta, Una en el Arrecife se ilumina com Abuab; com Aguilar se aumenta outra, Angélica en nombre y doctrina. 9 Em 1839, quando da publicação do Inventário dos prédios que os holandeses haviam edificado ou reparado até o ano de 1654, não se faz qualquer menção à sinagoga da comunidade Maguen Abraham, nem ao cemitério da comunidade10 localizado ao sul da ilha de Antônio Vaz, muito embora apareça com segurança a indicação do local onde funcionou a Zur Israel, a primeira sinagoga do Novo Mundo: Humas casas grandes de sobrado da mesma banda do rio, com fronteira para a Rua dos Judeos, que lhes servia de synagoga, a qual he de pedra-e-cal, com duas lojas por baixo, que de novo fabricarão os ditos Judeus.11 A sinagoga Zur Israel estava situada no sexto lote de terreno, construído a partir do norte, funcionando no primeiro andar de um prédio geminado, servido por uma só escada, no qual existiam no andar térreo duas lojas, bem próximas à "Porta de Terra", que dava saída para o istmo que ligava o Recife a Olinda. Estabelecida em prédio especialmente construído para tal fim, a sinagoga tinha suas atividades litúrgicas no primeiro andar, onde ocupava um amplo salão. Tinha encostado à parede da frente, voltado para o leste, o armário em madeira (Aron Hakodesh), no qual eram guardados os rolos da Torá, e, ao centro, a Tebá, local elevado destinado aos oficiantes na leitura dos rolos sagrados e cânticos, com cadeiras destinadas aos membros de projeção da comunidade, em frente da Tebá, e bancos nas laterais. Nesta primeira sinagoga em terras das Américas exerceu o rabinato o célebre Isaac Aboab da Fonseca que era português de nascimento. Natural de Castro Daire, distrito de Viseu, na Beira Alta, Isaac Aboab da Fonseca nasceu em 1605, tendo emigrado ainda criança com os seus pais para a França e, logo em seguida, para Amsterdã. Bisneto do último Gaon (máxima autoridade no ensino e interpretação da Lei) de Castilha, que em 1492 foi forçado a emigrar da Espanha para Portugal, estabelecendo-se na cidade do Porto, Isaac recebeu, ao nascer, o nome de Simão da Fonseca. Era filho de David Aboab e Isabel da Fonseca, que em 1612 já se encontravam em Amsterdã, "onde a família pôde, finalmente, observar com liberdade sua religião judaica". 12 Tendo estudado nas escolas judaicas daquela cidade holandesa, denominada de "A Jerusalém do Ocidente", Aboab da Fonseca foi, em 1626, designado Haham (rabino) da

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Congregação Beth Israel, função que ocupou até 1638 quando da unificação de três sinagogas ali existentes. Por desistência dorabino Menasseh ben Israel (1604-1657), veio a aceitar, em 1641, o convite da comunidade do Recife para vir presidir os serviços religiosos da sinagoga local, a Zur Israel, recebendo para isso o estipêndio de 1.600 florins anuais. Exercia ainda a função de Mohel, ou circundador, e vivia, ao que parece, exclusivamente do culto e do ensino do hebraico, da Torá e do Talmud para os que se iniciavam. A sinagoga Zur Israel era integrada de personagens ilustres como o Hazan (o leitor), Jehosua Velosino; o Rubi (o mestre-escola), Samuel Frazão e o Samas (guarda e mestre das crianças) Isaac Namias, Bodeck (encarregado da matança dos animais) Benjamin Levy, segundo relação dos funcionários no ano de 1649. No ano anterior, a 16 de novembro, houve a fusão das comunidades Zur Israel e Maguen Abraham, ocasião em que foi elaborado o Haskamot, ou seja, Regulamento de 40 artigos através do qual iria se reger as duas comunidades, subscrito por 172 membros, adultos do sexo masculino, pertencentes à comunidade residentes no Recife e em Maurícia. 13 Tal era a importância da comunidade do Recife naquela época que o famoso erudito Menasseh ben Israel, rabino de Amsterdã, cujo nome português era Manuel Dias Soeiro, esteve para partir para Pernambuco em 1640. No Recife já se encontrava residindo o seu genro, Ephraim Soeiro, e alguns membros proeminentes da comunidade judaica de então que vieram a ser por ele homenageados: David Senior Coronel, Dr. Abraão de Mercado,14 Jacob Mocata e Isaac Castanho. A homenagem se dá em 1641 quando da publicação da segunda parte de sua obra El Conciliador etc., em quatro volumes (Amsterdã, 1632-51), na qual Menasseh ben Israel faz incluir uma dedicatória das mais significativas: Nobilissimos y magnificos seÀores [...] y más SeÀores de nuestra nacion, habitantes en el Recife de Phernambvco, Salud. 1 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco. 1542-1654. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1989. 552 p. il. (Estudos e pesquisas; n. 65). Inclui dicionário biográfico dos judeus residentes no Nordeste (1630-1654) e índice onomástico. p. 136. 2 BARLAEUS, Gaspar. História dos feitos, recentemente praticados no Brasil etc. Tradução de Cláudio Brandão; Apresentação de Leonardo Dantas Silva; Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980. XIII, 410 p. il. 60 gravuras, reproduzidas em fac-símile da ed. de Amsterdã de 1647, 27 assinadas por Frans Post (1645). (Coleção Recife; v. 4). 3 LIPINER, Elias. "Um episódio da autonomia dos judeus na História do Brasil", Revista Comentário. Rio, 1972. ano XIII n.º 50 p. 53-82.. 4 CALADO, Frei Manuel. O valeroso Lucideno e triunfo da liberdade. 4. ed. Apresentação de Leonardo Dantas Silva. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: FUNDARPE; Diretoria de Assuntos Culturais,1985. 2v. (Coleção pernambucana; 2fase, v. 13), v. I, 350 p. v. 2, 318 p. il. p. 307

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5 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação. op. cit. p. 218-222. 6 Brasil Holandês O "Thierbuch" e a "Autobiografia" de Zacharias Wagener v. 2. Rio de Janeiro: Ed. Index, 1997, prancha 106, p. 197. WAGENER, Zacarias. Zoobiblion Livro de Animais. São Paulo, 1964, gravura 106. 7 MELLO, José Antônio Gonsalves de. "A Sinagoga do Recife holandês", in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro: v. 149, n. 358-361, p. 75-82, 1988. 8 LIPINER, Elias. Izaque de Castro: o mancebo que veio preso do Brasil. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1992. XIII, 322 p. il. (Descobrimentos; n.1) Bibliografia e índice onomástico e reprodução de páginas do processo nº 11.550 da Inquisição, Lisboa - ANTT. 9 BARRIOS, Daniel Levi de. Triumpho del Gobierno Israelitico Theocratico, Honores Funebres al [...] Jaxam Ishac Abuab. 10 O local do cemitério encontra-se assinalado no atlas desenhado por Johannes Vingbons (De JodseBegraef Plaets), em 1639, e repetido no mapa de Cornelis Bastiaansz Golijath, datado de 1648, que assim o assinala: Joden Kerckhof. 11 INVENTÁRIO das armas e petrechos belicos que os holandeses deixaram em Pernambuco e dos prédios edificados ou reparados até 1654. Recife: Biblioteca Pública de Pernambuco, 1940. 2. ed. p. 7. 12 BÖHM, Günter. Los sefardíes en los dominios holandeses de América del Sur y del Caribe 1630-1750. Frankfurt: Vervuert Verlag, 1992. p. 45. 13 Arnoldo Wiznitzer publicou o texto do Haskamot em 1953: "The records of the Earliest Jewish Community in the New World", in Publications of the American Jewish Historical Society, v. 42 n.º 3. Traduzido para o português em 1954, in Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 74. José Antônio Gonsalves de Mello transcreve alguns tópicos do documento e a relação dos 172 signatários do documento de 28 páginas; deixaram de subscrever Isaac Nahamias, Mose Israel Pena, Aron da Silva, Moseh Drago e Rafael de Mercado. in Gente da Nação op. cit. p.335-345. 14 Primeiro médico e boticário do Novo Mundo. Depois do seu regresso a Amsterdã, recebe autorização do "Lord Protetor" Oliverio Crowell para emigrar para Barbados e lá se estabelecer como médico. Günter Bßhm, op. cit. p. 79

Legado de Nassau é tema de fascículo do DIARIO

Edição de segunda-feira traz 10º encarte sobre ocupação holandesa

Em 1637, quando aportou no Recife, trazendo uma missão científica formada por pintores, astrônomos e médicos, o conde holandês João Maurício de Nassau-Siegen não imaginava

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que sua contribuição seria decisiva para a realização do maior e mais completo levantamento artístico, paisagístico, cartográfico e científico desta parte do Novo Mundo no Século 17. Nassau e o seu legado são o tema do próximo fascículo da coleção Os holandeses em Pernambuco: uma história de 24 anos, escrita pelo jornalista e historiador Leonardo Dantas e que o DIARIO DE PERNAMBUCO encarta na edição desta segunda-feira. Esse é o décimo fascículo de um total de 26 que serão encartados até o dia 29 de dezembro. Lembrado até hoje por moradores e visitantes do Recife, Nassau é mostrado pelo historiador como o responsável pela reorganização administrativa do governo, com a transformação do Conselho Político em "Conselho Secreto", composto por Adrien Van der Dussen, Mathias Van Ceulen e Jan Gijsseling. Coube a Nassau também promover no Recife uma verdadeira revolução no âmbito de sua paisagem urbana. Entre os feitos, destacam-se a construção das três primeiras pontes em grandes dimensões no Brasil. Uma ligando o Recife à Cidade Maurícia (onde hoje fica o Bairro de Santo Antônio), outra ligando a ilha ao continente na altura da Casa da Boa Vista (imediações do Convento do Carmo) e uma terceira sobre o rio dos Afogados. Nassau foi responsável ainda pela instalação do primeiro observatório astronômico das Américas, além, do calçamento de algumas ruas e saneamento urbano. O conde criou um grande jardim recreio, que era também um pomar e dispunha de alguns animais vindos das mais diferentes partes. Conta o historiador que, segundo testemunho do frei Manoel Calado, a construção de palácios e horto botânico ocupava todo o tempo do Conde de Nassau, "que andava pela ilha com um cordão, traçando ruas e praças, demarcando limites, construindo parques arborizados, tudo à moda da Holanda". No fascículo anterior da coletânea, foram mostrados detalhaes da vida de Nassau antes de chegar ao Brasil. Segundo Leonardo Dantas, o conde decidiu aceitar o cargo de Governador-Geral do Brasil por ter contraído débitos calculados em aproximadamente 500 mil florins. Gastos que se deviam especialmente às obras de sua casa, considerada o exemplo mais puro do classicismo holandês e que chegou a ser paradigma para as mansões da Holanda e da Inglaterra. O imóvel hoje abriga um dos mais importantes museus holandeses. Nassau foi nomeado Governador-Geral aos 32 anos de idade. Entre suas obrigações, ditava a Companhia, o conde deveria manter a lei e a ordem, proteger a fé, prevenir abusos, construir fortificações e regulamentar os direitos e os deveres dos habitantes.

Imagens do Brasil Holandês Albert Eckhout

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Pinceladas perfeitas e olhos decientista. Albert Eckhout, após muito observar,registrou primeiro em esboços, depoisem pinturas e gravuras, a hipnotizantenatureza do Nordeste Brasileiro.Através desses importantes registrosiconográficos é que o velho mundopode conhecer um Brasil real, a NovaHolanda do século XVII, bem diferentede todas as idéias fantasiosas que oseuropeus faziam deste continente.Por Monique Cardoso

"Mulher tupinambá" - Albert Eckhout mostra um ser nativo emprimeiro plano e ao fundo, a marca da invasão holandesa, umaenorme fazenda de cana-de-açúcar.

O pintor holandês Albert Eckhout foi companheiro de Frans Post na comitiva de Maurício de Nassau, quando o Conde veio governar o Brasil Holandês. Mas, apesar disso, não recebeu o mesmo reconhecimento que o colega. Ficou esquecido durante séculos e alguns, até hoje, contestam o valor artístico de sua obra, exaltando, apenas, seu valor documental. As comparações com Post foram inevitáveis, mas a produção dos dois pintores durante a permanência no Nordeste parece claramente complementar: um pintava as paisagens e o outro, os detalhes. A natureza e os tipos étnicos do Brasil Holandês ganharam mundo através de impressionantes painéis de Albert Eckhout, onde figuras são representadas em tamanho natural, a maioria das telas tinha mais de 2 metros de altura.

Nascido em Groingen, 1610, Eckhout faleceu na mesma cidade provavelmente em 1665, e há pouquíssimas informações a seu respeito. Sabe-se apenas que, depois de retornar à Europa, ainda serviu Nassau até 1653, sendo transferido então para Dresden, na Alemanha, onde trabalhou por dez anos para o Eleitor João Jorge II. No período em que permaneceu no Brasil - de 1637 a 1644 - Eckhout, além do Recife, conheceu o interior do nordeste, a Bahia e ainda o Chile, como participante de uma expedição enviada pelo Conde. Em terras da Nova Holanda, retratou os habitantes, a fauna e a flora com riqueza

Obra de Eckhout no Museu deCopenhagen, Dinamarca:melancias, cajus, magabas,abacaxis, cocos e maracujásem flor.

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de detalhes. Apesar do aspecto estático e documental, não se pode negar a perfeição artística das telas de Albert Eckhout. Seus personagens solitários ocupam exatamente o centro do espaço pictórico e parecem fitar, face a face, o espectador. A técnica e o estilo aplicados nas suas naturezas-mortas eram, sem dúvidas, consideradas inovadoras para o século XVII.

Choque entre a preservação da cultura nativa e a influência do homem branco sobre indígenas e mestiços: "Mameluca", de 1641, e "Homem tapuia", de 1643.

Quanto ao destino e preservação das obras produzidas no Brasil, Eckhout teve bem mais sorte que Post. É sabido que, no mínimo, as telas "brasileiras" do artista somam 21, nove etnográficas, onde são retratados os nativos e mestiços do Brasil, e 12 naturezas-mortas, frutas, legumes, vegetais em geral, e que elas encontram-se até hoje bem guardadas e catalogadas. Johan Maurits de Nassau-Siegen conservou-as em sua casa, em Haia, até 1654, quando ofereceu 23 originais de Eckhout - as telas "brasileiras" e dois retratos que se perderam num incêndio - ao gabinete de arte do Rei Frederico III, da Dinamarca. Hoje, a coleção de obras que Albert Eckhout pintou no nordeste do Brasil podem ser vistas no Museu de Copenhagen.

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Por conta do cuidado que o governo Dinamarquês dedicou ao seu acervo artístico, D. Pedro II, em visita ao país em 1876, pode conhecer as obras de Eckhout

e, impressionado com a beleza dos quadros e tendo reconhecido o valor artístico e histórico deles para o Brasil, encomendou cópias em tamanhos menores a Niels Aagaard Lutzen, que estão hoje preservadas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Mas, o número de telas produzidas na Nova Holanda por Albert Eckhout pode ser bem maior. Em 1652, alguns originais do pintor foram oferecidos ao Eleitor de Brandenburgo e, em 1678, outros foram dados de presente ao Rei da França. Algumas obras também podem ter sido destruídas em incêndios ocorridos no Nassauischer Hof e na Mauritshuis. É provável que o próprio Eckhout tenha conservado alguma coisa para si, pois obras suas apareceram em coleções particulares muito depois de sua morte. Embora algumas delas tenham se perdido durante a Segunda Guerra, ainda existem 80 telas produzidas nos dez anos em que artista esteve em Dresden, representando pássaros brasileiros. É inegável que as obras de Frans Post e Albert Eckhout ajudaram a criar um levantamento completo de conteúdos botânicos, etnográficos e zoológicos, provando que tal trabalho artístico contribuiu muito no estudo de um momento histórico pouco conhecido e ainda pouco explorado por total ausência de registros mais precisos, devido a falta de cientistas e pessoas responsáveis por documentar o Brasil durante o século XVII. Os croquis e gravuras de Eckhout também fazem parte do Livro de Barleaus, dos Manuais, da Miscellana Cleyeri e do Theatru Rerum Naturalium Brasiliae. De fundamental importância para um inventário mais completo da obra desse pintor do Brasil Holandês, este livro foi considerado destruído nos escombros da Biblioteca de Berlim, em 1945, mas veio a reaparecer na Biblioteca de Jagiellonska, na Cracóvia, Polônia, e conserva cerca de 400 pinturas a óleo sobre papel e desenhos atribuídos estilisticamente a Eckhout. Apesar de ter sido o primeiro pintor a exaltar as formas e cores exuberantes do Brasil, o pioneirismo não é o principal mérito de Eckhout. A fidelidade de reprodução dos elementos, seu conhecimento científico para expor de forma tão rica e bela o tropicalismo, a descrição minuciosa desta natureza exótica são fatores que nos mostram o quanto de sensibilidade era aplicada ao trabalho documental de Albert Eckhout, que divulgou ao mundo as imagens do Brasil, que até hoje, apesar da destruição ecológica, encantam visitantes do mundo inteiro. Fontes: Dicionário crítico da pintura no Brasil, José Roberto Teixeira

Natureza-morta representandoabóboras, couves, rabanetes epepinos-amarelos , espécietrazida da Holanda.

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Leite; O Brasil dos Viajantes, Ana Maria de Moraes Belluzzo e Revista Geográfica Universal.

Surgimento de um povo brasileiro

A ilusão de realidade nas pinturas de Albert Eckhout é mesmoespantosa. As figuras estão de certo modo destacadas dapaisagem, aspecto peculiar à técnica empregada por pintoresholandeses da época, que apesar da forte marca naturalista, nãodeixa de apresentar alegorias poéticas. Muitas características dostipos que habitavam o Brasil podem ser deduzidas a partir dasobras do artista, e o conjunto das telas brasileiras de Eckhoutmostra bem os dois lados da composição étnica da época: umBrasil que começava a se desenvolver também fora de suasrecentes cidades, ainda enquanto colônia, e outro queconfirmava, de certa forma, a imagem mitológica selvagem queos europeus possuíam da América. Albert Eckhout dividiu a etnografia brasileira em quatro estadoscivilizatórios, pintando oito painéis que representavam quatrocasais - tapuias, tupinambás, mestiços e negros - e o nono, queapresentava a "Dança tapuia". No óleo "Mulher tapuia", é feitouma série de registros iconográficos sobre a tribo, que podemser identificados facilmente: eram bárbaros, andavam nus e emmata virgem, conservavam hábitos originais apesar daconvivência com o homem branco e muitas vezes utilizavam-seda sobrevivência canibal; esse grupo foi recriado poeticamentepelo pintor holandês que procurou evidenciar o instinto animaldos tapuias. Já na obra "Mulher tupinambá" as diferenças entre as duas triboscontemporâneas são evidentes: Caça e pesca eram praticadascom ajuda de ferramentas e utensílios bastante evoluídos,produzidos pelos próprios indígenas. Hábitos europeus já haviamsido, no século XVII, incorporados aos costumes tupinambás epodem ser percebidos nas vestimentas mais cobertas e feitas dealgodão. A paisagem intocada também não era uma verdadeabsoluta no quadro sobre os tupinambás, no qual pode-seobservar, ao fundo, uma ampla plantação de cana, uma casagrande, um engenho. E só o fato de existir um casal negro entreos painéis de Eckhout, inspirado no homem africano, conduz oobservador à idéia de que o trabalho escravo já era utilizado pelogoverno de Nassau na produção canavieira em Pernambuco

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Maurício de Nassau, um conde sonhador

1636

Leonardo Dantas Silva Especial para o DIARIO

Em 1635 encontrava-se o Conselho Político do Brasil Holandês entregue aos cidadãos Pieter van der Hagen, Johan de Bruyne, Servaes Carpentier, Johanes van Walbeeck, sob o comando militar de Sigmund von Schkoppe. Cada um desses senhores, com interesses próprios e objetivos por vezes diversos dos da própria companhia, caracterizavam um governo de total falta de comando; como demonstra o coronel Chrestofle Arciszewski, em carta enviada ao Conselho dos XIX datada de novembro daquele ano. Na sua exposição, o brilhante cabo de guerra defende a criação de um Governo Geral com um reforço militar de 6000 soldados, a fim de garantir a conquista de dar uma solução ao "estado desesperador" das suas tropas. Segundo ele,"um terço dos soldados encontravam-se nus", sem fardamento, tostados pelo sol abrasador e, pela ausência de calçados, encontravam-se com os "seus pés devorados por bichos, que entravam por baixo das unhas formando feridas". O Conselho Político, por sua vez, encontrava-se mais preocupado com a exportação doaçúcar produzido, pouco se importando com a situação do corpo da tropa. Toda confusão deriva do fato que não há cabeça [...] Vocês precisam mandar, assim que possível, um general capaz que possa remediar todas as nossas inconveniências; enfatizava na ocasião Arciszewski.

Um nobre alemão

O Conselho dos XIX, reunido em Amsterdã, fez uma avaliação da situação da nova colônia e depois de contabilizar os ganhos com o apresamento de 800 navios, proporcionando lucros da ordem de muitos milhões de florins, chegou a conclusão de que a Companhia das Índias Ocidentais nos seus cinco anos no Brasil apresentava um passivo de 18 milhões de florins. No período de 1623 a 1636, a Companhia das Índias Ocidentais armara 806 navios, apresou na sua constante guerra de corso 547 navios ibéricos, que lhes renderam em 37 milhões de florins, para isso, porém, empregou a elevada soma de 45 milhões de florins, com a contratação de soldados mercenários e outras despesas, acrescidas das custas de manutenção de uma colônia em terras do Novo Mundo, cuja produção de açúcar e pau-brasil não vinha dando para cobrir tais despesas. Depois de somados os perdidos e os achados, a Companhia das Índias Ocidentais havia acumulado uma dívida de 18 milhões de florins, o que veio contribuir para a retração dos seus contribuintes, agravando ainda mais a situação. Após sucessivos encontros com o chefe da província da Holanda, príncipe Frederick Hendrick, foi estabelecido a criação de um Governo Geral e apresentado para o cargo o nome de um jovem oficial de cavalaria, de 32 anos de idade, o conde João Maurício de Nassau-Siegen, que por estar construindo sua faustosa residência na Haia encontrava-se necessitando de dinheiro para fazer frente às suas hipotecas. Alemão, nascido no castelo ancestral dos Nassau em Dilemburgo, a 17 de junho de 1604,

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João Maurício era o filho primogênito do Conde João VII e de sua segunda esposa, Margarida von Holstein-Sonderburg, uma parenta da família real da Dinamarca. Seu pai, por sua vez, era filho do conde João VI (1535-1606), conhecido como João, o Velho, que ao morrer deixou o território do seu condado a ser repartido como seus cinco filhos vivos. Na partilha, coube ao pai de João Maurício o pequeno condado de Siegen, para onde se mudou em c.1606 com toda a sua imensa família, formada por 25 filhos de dois casamentos, dos quais 20 chegaram a idade adulta. Como conseguir um futuro condigno a essa ninhada de pequenos condes e pequenas condessas com que o céu o contemplara?; indagaria mais tarde Besselaar em seu ensaio. Por esses motivos é que seu filho mais velho, João Maurício, um adolescente de 14 anos, foi enviado à casa de um tio paterno que se encarregaria de sua educação voltada para a carreira das armas. Os seus exíguos estudos foram realizados nas cidades de Basiléia, Genebra (1614-1615) e Cassel, deficiência que ele procurará suprir ao longo de toda a sua vida procurando-se cercar das mais brilhantes inteligências do seu tempo; o que proporcionou a José Van den Besselaar, o seguinte comentário: Assim. Maurício, menino ainda, deixou os estudos. Não sabemos se os deixou de boa vontade, se a contragosto. Só sabemos que ele, uma vez homem feito, mostrou ter uma cultura decerto não inferior a de outras pessoas de sua categoria, distinguindo-se de quase todas elas com o seu profundo interesse por assuntos científicos e culturais.1 Entregue à tutela do tio Guilherme Luís, Conde de Nassau-Dillemburgo, stadhouder da Frísia e Groninga desde 1584, vem ele receber uma instrução militar e se inteirar da complicadíssima organização política dos Países Baixos, tendo para isso permanecido dois anos em Leeuwarden. A Frísia e a Groninga eram as províncias mais setentrionais dos Países Baixos. O cargo de stadhouder, palavra que ao pé da letra significa lugar-tenente, era confiado a um alto funcionário, sempre pertencente a uma família nobre, que governava a província como representante do soberano. Cada uma das sete províncias neerlandesas, formadora dos Estados-Gerais, tinha o cargo de stadhouder. Mesmo depois do rompimento com a Espanha (1581), a figura continuou a existir, sendo cinco deles (Holanda, Zelândia, Utrecht, Guélria e Overijssel) pertencentes à Casa de Orange, e dois outros (Frísia e Groninga) eram alemães da Casa dos Nassaus. Não se tratava de um cargo hereditário, sendo os seus titulares nomeados para determinado período. Em 20 de agosto de 1621, ingressou Maurício, então com 17 anos, no exército da União, tendo ocupado o posto inicial de alferes. Em 1625 atingiu o posto de tenente-coronel, sendo promovido, quatro anos depois, a coronel. Em 1629 distinguiu-se na conquista da cidade de Bois-le-Duc, na parte setentrional de Brabante, integrando as tropas do príncipe Frederick Hendrick. Em 1632 participou da tomada de Maastricht, atual capital da província de Limburgo, e, em 1636, na retomada da praça de Schenkenschans, situada no ducado de Cleve (Alemanha), porto fluvial de suma importância para navegação no rio Reno.

Governador do Brasil Holandês

A execução da obra dos dois palacetes ficou a cargo do jovem Pieter Post (1608-1669), aluno de arquitetura, na corporação de São Lucas em Haarlem, dos renomados arquitetos Lieven de Key e Jacob van Campen Com esse último ele vem a trabalhar na Casa ten Nieuwburch em Rijswij (1633-1636), chegando a ser nomeado em 1645 "pintor e arquiteto" do príncipe Frederick Hendrick, para quem construiu o Palácio Real, o Oude Hof, e a Casa ten Bosch, a primeira na Haia e a segunda nos seus arredores.

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Para a construção do seu palacete, projetado dentro das linhas do classicismo italiano, João Maurício importou pedras da Bélgica, madeiras da Alemanha e do Brasil, pavimento de Luxemburgo, mármores da Itália, ferro de Li×ge, como se depreende das cartas, escrita em francês, trocadas por ele com Constantino Huygens. Muito embora tenha o palacete o traçado de Jacob van Campen, as suas sugestões e orientações sempre se fizeram presentes modificando, por vezes, o traço original do primitivo projeto; como quando se fez necessário àdemolição de uma primitiva ponte, situada nos limites do primitivo lote, que chegou a incompatibilizar o jovem conde com as autoridades da Haia. Por muitos anos Pieter Post vai acompanhar o conde João Maurício em seus sonhos, inclusive os por ele realizados no Brasil, onde veio o jovem arquiteto contribuir com o traçado da Cidade Maurícia, do Palácio de Friburgo, da Casa da Boa Vista e com a igreja dos calvinistas franceses. Com o desenvolvimento da construção da futura Mauritshuis (Casa de Maurício), o jovem conde ficou praticamente entregue aos credores. Calcula-se que em tal empreitada foi empregada a elevada soma de 600.000 florins, quantia avultada para época que veio deixar o conde João Maurício de Nassau seriamente endividado. Restava ao nobre, para sair de tal emaranhado de dívidas originárias da sua volúpia de construir, aceitar o convite do Conselho dos XIX e se transferir para o Brasil de onde, mesmo à distância, poderia dar continuidade a construção do seu sonho. Do Brasil ele continuará enviando, para serem utilizados por Pieter Post na construção da Mauritshuis, preciosas madeiras tropicais, marfim, mobílias e, sobretudo, caixas de açúcar que, transformadas em dinheiro, financiavam as demais despesas. Nada, portanto, era poupando para que o sonho de João Maurício excedesse em luxo e bom gosto. Foi tanto o dinheiro gasto naquela construção, um dos mais belos monumentos da Haia, hoje abrigando um dos mais importantes museus de pintura dos Países Baixos, que os senhores do Conselho dos XIX a apelidaram, maliciosamente, de Suikerhuis, isto é "Casa do Açúcar". A Mauritshuis (Casa de Maurício) é em nossos dias, segundo apreciação de Geert Arent Banck, "o exemplo mais puro do classicismo holandês e que chegou a ser paradigma para as mansões da Holanda e da Inglaterra".5 Em 1636, após os seus últimos sucessos como comandante militar na Alemanha, o conde João Maurício Nassau-Siegen, então com 32 anos, vem a ser finalmente convidado, pelo Conselho dos XIX da Companhia das Índias Ocidentais, a ocupar o cargo de Governador Civil e Militar do Brasil Holandês, por um prazo de cinco anos. Para o desempenho de tão altas funções ele receberia um soldo de 1500 florins mensais, o subsídio de 6000 florins para custear as despesas do seu equipamento pessoal, uma cota mensal para as despesas com a alimentação de sua corte e o direito de 2% sobre o total das presas de guerra, além de seu soldo de coronel do exército da União. João Maurício, devedor de uma hipoteca estimada em 500.000 florins, não pensou duas vezes na proposta. Em 4 de agosto de 1636, João Maurício vem a ser nomeado Governador-Geral do Brasil, por um período de cinco anos, com a garantia de assumir o seu posto de tenente-coronel quando do retorno à Holanda. Tal posto implicava, dentre outras atividades, "na manutenção da lei e da ordem, na proteção da fé, na prevenção de abusos, na construção de fortificações e na regulamentação dos direitos e deveres dos habitantes".

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De início prometeram ao novo governador uma frota compostade 32 naus e 7.000 homens, tal qual aconselhara o coronel Arciszewski em sua carta de novembro de 1635, mas o tempo foi passando e a promessa não se cumpria. Durante a espera tentou ele uma esquadra menor, com 12 naus e 2.700 homens, mas, fatigado pela demora e incerteza, João Maurício partiu de Texel, naquele mês de outubro, com apenas quatro navios e 350 homens sob o seu comando. Iniciava-se com conde João Maurício de Nassau-Siegen a idade de ouro da presença holandesa nas capitanias do Norte do Brasil, sete anos de relativa paz que vieram revelar o Novo Mundo à Europa de então. 1 BESSELAR, José Van den. Mauricio de Nassau, esse desconhecido. Rio de Janeiro: FAPERJ, 1982. p. 25 2 STRAATEN, Harald S. van der. Brazil a destiny: Duch contacts through the ages. Haia: Government Publishing Office, 1984. p. 73. 3 BESSELAR, José Van den. Op. cit. p. 38. 4 BESSELAR, João Van den. Op. cit. p. 36 5 BANCK, Geert Arent. "Memória e imaginário: pensando a cidadania atual no espelho do Brasil Holandês", in República das etnias. Rio de Janeiro:Museu da República, 2000. p. 51