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IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 Brasília - DF – Brasil 1 Desafios da regularização fundiária de assentamentos informais e empreendimentos de interesse social em áreas ambientalmente protegidas Maria da Graça Plenamente Silva (FAUUSP) Arquiteta e Urbanista, Mestre em Estruturas Ambientais Urbanas, e Doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAUUSP [email protected] Marta Dora Grostein (FAUUSP) Livre Docente da FAUUSP e Coordenadora do Laboratório de Urbanismo da Metrópole – LUME/FAUUSP [email protected] Nisimar Martinez Pérez Caldas Arquiteta e Urbanista, Mestre em Urbanismo pela FAUPUCAMP e Doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAUUSP [email protected] Resumo O artigo trata das interfaces entre a legislação urbanística e ambiental em processos de regularização fundiária e urbanística ou técnica de assentamentos urbanos informais. Tem como enfoque privilegiado a legislação municipal de São Paulo em contraponto com a legislação ambiental no âmbito estadual e federal, especialmente no que se refere à regularização de aglomerados urbanos em áreas de proteção aos mananciais e áreas de preservação permanente. Demonstra como, apesar da introdução de novos instrumentos jurídicos, como é o caso do Estatuto da Cidade, e dos Planos Diretores Municipais, os impasses relativos á regularização de aglomerados urbanos em ares ambientalmente protegidas e degradadas não foram superados. Essa situação determina uma condição de desigualdade entre ocupantes de núcleos que, embora informais ou em desacordo com a legislação urbanística, ocupam áreas com restrições de ordem ambiental ou não. Dessa forma, embora a legislação recente tenha garantido direito de moradia à população de baixa renda, essa condição não se estende a todos, determinando o surgimento de novas desigualdades. Palavras-chave Regularização fundiária, regularização urbanística, legislação urbanística e ambiental

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IV Encontro Nacional da Anppas

4,5 e 6 de junho de 2008

Brasília - DF – Brasil

1

Desafios da regularização fundiária de assentamentos informais e

empreendimentos de interesse social em áreas ambientalmente

protegidas

Maria da Graça Plenamente Silva (FAUUSP)Arquiteta e Urbanista, Mestre em Estruturas Ambientais

Urbanas, e Doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAUUSP

[email protected]

Marta Dora Grostein (FAUUSP)Livre Docente da FAUUSP e Coordenadora do

Laboratório de Urbanismo da Metrópole – LUME/[email protected]

Nisimar Martinez Pérez CaldasArquiteta e Urbanista, Mestre em Urbanismo pela FAUPUCAMP e

Doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAUUSP

[email protected]

Resumo

O artigo trata das interfaces entre a legislação urbanística e ambiental em processos de regularização fundiária e urbanística ou técnica de assentamentos urbanos informais. Tem como enfoque privilegiado a legislação municipal de São Paulo em contraponto com a legislação ambiental no âmbito estadual e federal, especialmente no que se refere à regularização de aglomerados urbanos em áreas de proteção aos mananciais e áreas de preservação permanente. Demonstra como, apesar da introdução de novos instrumentos jurídicos, como é o caso do Estatuto da Cidade, e dos Planos Diretores Municipais, os impasses relativos á regularização de aglomerados urbanos em ares ambientalmente protegidas e degradadas não foram superados. Essa situação determina uma condição de desigualdade entre ocupantes de núcleos que, embora informais ou em desacordo com a legislação urbanística, ocupam áreas com restrições de ordem ambiental ou não. Dessa forma, embora a legislação recente tenha garantido direito de moradia à população de baixa renda, essa condição não se estende a todos, determinando o surgimento de novas desigualdades.

Palavras-chave

Regularização fundiária, regularização urbanística, legislação urbanística e ambiental

IV Encontro Nacional da Anppas

4,5 e 6 de junho de 2008

Brasília - DF – Brasil

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Introdução

A questão da regularização fundiária e urbanística de assentamentos habitacionais informais

emerge, em meados da década de 1980, vinculada a princípio, à reivindicação popular de

segurança na posse e melhoria da qualidade de vida, através de dotação de infra-estrutura

básica. Nesse momento, temos também, a constatação, por parte dos agentes públicos, da

impossibilidade de reversão do quadro de ocupação informal para moradia através dos programas

habitacionais de provisão, que se mostraram quantitativamente insuficientes e financeiramente

inacessíveis para suprir às carências da população de mais baixa renda.

Nesse contexto, inicia-se a discussão sobre os aspectos fundiários e urbanísticos vinculados à

regularização de núcleos favelados, loteamentos ilegais e invasões diversas, surgindo a

problemática da ocupação de áreas ambientalmente protegidas e/ou degradadas em oposição ao

interesse de fixação da população nas áreas ocupadas.

As áreas urbanas que apresentam restrições ao uso em face de disposições da legislação

urbanística e ambiental, bem como as áreas ambientalmente degradadas, impróprias para o uso

habitacional, vêm sendo, historicamente, objeto de ocupação por assentamentos habitacionais

informais e, inclusive, por empreendimentos habitacionais públicos destinados à população de

baixa renda.

A escolha dos terrenos para implantação de conjuntos habitacionais, na maioria dos casos,

envolve limitações financeiras e, conseqüentemente, resulta na aquisição de áreas localizadas na

periferia, com condições físicas desfavoráveis, rejeitadas pelo mercado, portanto, de menor valor,

porém envolvendo maior dispêndio de recursos financeiros para efetiva e adequada utilização.

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Em ambos os casos, ocupações espontâneas ou empreendimentos habitacionais públicos,

verificamos que, além de danos ao meio ambiente, em face da inobservância dos requisitos

técnico-urbanísticos, a população residente está exposta, entre outros percalços, à condição

irregular de moradia e até mesmo à insegurança na posse.

Não obstante a introdução de novos instrumentos jurídicos, como é o caso do Estatuto da Cidade,

além de Planos Diretores Municipais, verificamos uma ausência no tratamento da problemática de

assentamentos habitacionais em áreas ambientalmente protegidas ou degradadas.

Essa situação determina uma condição de desigualdade entre ocupantes de núcleos que, embora

informais ou em desacordo com a legislação urbanística, ocupam áreas com restrições de ordem

ambiental ou não. Dessa forma, embora a legislação recente tenha garantido direito de moradia à

população de baixa renda, essa condição não se estende a todos, determinando o surgimento de

novas desigualdades.

A ocupação de áreas inadequadas pela população de baixa de renda

Considerando a ocupação habitacional pela população de baixa renda na Cidade de São Paulo,

verificamos, conforme descrito na tabela a seguir, uma evidente precarização nas condições de

moradia. Através das pesquisas levadas a efeito pelo próprio Município, constata-se que as

favelas localizadas à margem de córregos, portanto, em áreas de preservação permanente, que já

se constituíam em um percentual significativo dos aglomerados em 1973, passam a corresponder

a mais de 50% dos casos no final da década de 1980.

Outras situações, como por exemplo, a ocupação de áreas sujeitas à enchentes e erosões,

também se acentuam, chegando a cifra de 55% dos aglomerados. Embora as pesquisas

apresentem critérios de classificação diferenciados, em alguns casos, temos, por exemplo, a taxa

de quase 30% das favelas em áreas de declividade acentuada, englobando, portanto, encostas,

topos de morro e toda sorte de áreas impróprias ao uso habitacional.

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1.973 1987-89

declividade acentuada 29,40 29,27

declividade média 36,62

sobre aterro 3,20 0,38

terreno plano 34,20 34,11

margem de córrego (*) 30,50 51,63

várzea 2,70 1,63

sujeitas a enchentes, presença de erosão 32,20 54,58

sobre lixões 1,57

ocorrências de enchentes e grandes enxurradas 32,20 32,16

Obs. (*) Para a pesquisa de 1987 considera-se margem de córregos, rios ou represas

Fonte: PMSP (1973) e PMSP (1989)

Pesquisas PMSP

Características Físicas dos Terrenos Ocupados por Favelas

Características Físicas dos Terrenos Ocupados% dos terrenos

ocupados por favelas

Cabe ainda evidenciar, a ocupação de áreas de preservação aos mananciais, conforme tabela a

seguir, com a identificação das ocupações por favelas da parcela do território municipal onde se

concentra a maior incidência de áreas protegidas. Procedeu-se à identificação do recorte territorial

que correspondia às Administrações Regionais do Município, em 1973, que abrigavam em seus

limites significativa parcela das áreas protegidas e a compatibilização desse mesmo recorte, com

base na Pesquisa de 2000, contemplando as Subprefeituras (1) correspondentes. Através desse

comparativo é possível evidenciar o incremento de 235% no número de favelas e de quase 400%

no número de domicílios em favelas nessa região.

Esse incremento no número de favelas revela a significativa ampliação do território ocupado em

áreas de proteção aos mananciais e o incremento ainda maior no número de domicílios comprova

a densificação dos aglomerados e, por conseqüência, implica em maiores dificuldades na dotação

de infra-estrutura e adoção de medidas para reverter ou mitigar os danos ambientais.

1 O Município de São Paulo era dividido em Administrações Regionais até o advento da Lei 13.339/02 que oficializou um novo recorte territorial estabelecido no Município, criando as Subprefeituras, com novas atribuições. Para fins de estabelecermos uma comparação entre as pesquisas de 1973 e 2000, procedemos à seleção dos distritos que compunham as Adm. Regionais de Santo Amaro e Campo Limpo à época.

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AdministraçãoRegional Favelas Domicílios Favelas Domicílios Favelas % Domicílios %

Campo Limpo 237 31.610M'Boi Mirim 272 31.358

Campo Limpo 97 5.518 sub-total 509 62.968 412 424,74 57.450 1041,14Santo Amaro 43 1.629

Socorro 221 32.108

Cidade Ademar 198 20.036

Parelheiros 55 3.824

Santo Amaro 209 18.876 sub-total 517 57.597 308 147,37 38.721 205,13total 306 24.394 total 1026 120.565 720 235,29 96.171 394,24

Fonte: PMSP (1989) e PMSP/HABI/CEM (2000)

1987-89 2000 Acréscimo

Incremento de Favelas em Regiões com Áreas de Proteção aos Mananciais - APM´s

Subprefeituras

Obs. Os limites das Administrações Regionais de Campo Limpo e Santo Amaro, correspondem aos limites das Subprefeituras de Campo Limpo e M´Boi e de Mirim e Santo Amaro, Socorro, Cidade Ademar e Parelheiros.

Em linhas gerais, a forma de construção do espaço nos assentamentos informais, nos dizeres de

GROSTEIN (2001), determina a gênese de problemas de ordem sócio-ambiental:

“Nas parcelas da cidade produzidas informalmente, onde predominam os

assentamentos populares e a ocupação desordenada, a combinação dos

processos de construção do espaço com as condições precárias de vida urbana

geram problemas sócio-ambientais e situações de risco, que afetam tanto o

espaço físico, quanto a saúde pública, entre outros podemos citar: desastres

provocados por erosão, enchentes, deslizamentos; destruição indiscriminada de

florestas e áreas protegidas; contaminação do lençol freático ou das represas de

abastecimento de água; epidemias e doenças provocadas por umidade e falta

de ventilação nas moradias improvisadas, ou por esgoto e águas servidas que

correm a céu aberto. A escala e a freqüência com que estes fenômenos se

multiplicam nas cidades revelam a relação estrutural entre os processos e

padrões de expansão urbana da cidade informal e o agravamento dos

problemas sócio-ambientais”. (GROSTEIN, 2000: pp. 22)

Se a ocupação espontânea revela um quadro de degradação ambiental preocupante, a produção

pública de moradias de interesse social também se mostra dissociada de parâmetros adequados

para ocupação do território, inclusive em desacordo com os pressupostos da legislação

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urbanística e ambiental. Tomando por base a produção da COHAB-SP (2), verificamos, conforme

SILVA (2004), que conjuntos habitacionais de interesse social ocuparam também áreas

inadequadas sem a observância dos parâmetros técnicos definidos pela legislação. Considerando

as restrições impostas pela Lei de Parcelamento do Solo – Lei 6766/79, a autora indica a

inadequação de 23 empreendimentos de HIS, que se incluem em uma ou mais situações

restritivas indicadas pela legislação (3):

• Terrenos com declividade superior a 30% - 02 casos;

• Áreas onde a poluição impede condições sanitárias suportáveis – 02 casos;

• Terrenos aterrados com material nocivo – 01 caso;

• Terrenos aterrados com material nocivo e onde a poluição impede condições sanitárias

suportáveis – 01 caso;

• Terrenos com declividade superior a 30% e de preservação ecológica – 01 caso;

• Terrenos com declividade superior a 30% e onde as condições geológicas não aconselham a

edificação – 16 casos.

SILVA (2004) ressalta ainda o fato de que se as verbas destinadas à aquisição das áreas para os

empreendimentos habitacionais são reduzidas, os valores destinados às obras de infra-estrutura

também o são, embora muitas vezes apresentem um percentual totalmente desproporcional com

relação ao custo final das unidades habitacionais (4). Tais limitações financeiras determinariam a

adoção de alternativas técnicas inadequadas, como é o caso das contenções geotécnicas de

menor custo em áreas com declividade excessiva resultante de aterros vultosos e a precariedade

da infra-estrutura, com instalação parcial das redes de esgotamento, drenagem e outros.

Diante desse quadro, concluímos que a população de baixa renda ocupa, prioritariamente, áreas

que demandam investimentos significativos para adequação ao uso habitacional e/ou

2 A Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo - COHAB-SP, empresa der economia mista do Município de São Paulo,

entre 1965 e 2000, produziu 135.636 unidades habitacionais, em 78 conjuntos habitacionais envolvendo o parcelamento do solo e 17 conjuntos habitacionais na modalidade condomínio, correspondendo a 55% do parque de habitação popular produzida pelo Poder Público na Região Metropolitana de São Paulo no período.

3 Conforme a Lei 6766/79 - Art. 3º........Parágrafo único. Não será permitido o parcelamento do solo: I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; II - em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados; III - em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes; IV- em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.”

4 Como exemplo, temos o Conjunto Habitacional Castro Alves – Barro Branco I que segundo dados constantes do Relatório da Diretoria Técnica de Novembro/1985, teve o custo de 1.570.393 UPC’s, correspondendo; 3% ao valor do terreno, 53% ao valor das edificações e 44% ao valor da infra-estrutura.

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ambientalmente protegidas, portanto, de menor valor, em face da rejeição pelo mercado

imobiliário. A partir do advento do Estatuto da Cidade e da Medida Provisória 2220/2001, o direito

à moradia das famílias ocupantes de habitações informais passa a ser garantido, da mesma forma

como já o era para os moradores de conjuntos habitacionais, determinando a ação efetiva do

Estado na adoção de medidas necessárias para o assentamento habitacional definitivo nas áreas

ocupadas.

Surge, portanto, uma nítida diferenciação entre aqueles que ocupam áreas que, embora também

de urbanização precária, não se encontram em áreas protegidas onde há impeditivos legais e não

há condições de mitigação de danos ambientais decorrentes da ocupação e onde se coloca, como

única alternativa aparente, a remoção. Ocorre que, conforme já ressaltamos, a ocupação de áreas

impróprias é significativa, até mesmo por empreendimentos públicos, o que torna a remoção uma

medida totalmente inviável, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista social.

Há que se considerar a dimensão do problema na medida em que, somente nas áreas de

proteção aos mananciais dos reservatórios da Guarapiranga e Billings, há uma ocupação de

51.825 domicílios favelados, que abrigam uma população de 204.435 moradores, equivalentes à

quase 18% da população favelada e dos domicílios em favela do Município de São Paulo, e quase

50% dos domicílios favelados das Subprefeituras relacionadas na tabela anterior, sem contar com

os 56.862 domicílios em loteamentos clandestinos ou irregulares, que abrigam mais 216.588

moradores (5).

A legislação urbanística e ambiental

O tema da regularização urbanística e fundiária é relativamente novo, conforme descrevemos

anteriormente, portanto, enfrenta como um dos primeiros óbices a sua realização o fato de que o

conjunto das leis que regula o urbanismo e o meio ambiente versa sobre aprovação de “projetos”,

ou seja, as análises com subsídio nas leis consideram áreas não ocupadas e critérios técnicos a

serem observados para ocupação futura.

Encontra-se a primeira referência à questão da regularização de assentamentos informais na Lei

Federal 6.766/79, com referência aos parcelamentos irregularmente executados ou não

registrados, portanto, ilegais, estabelecendo prerrogativas à municipalidade para o procedimento

5 Conforme Pesquisa CEM/PMSP, com base em dados do Censo IBGE (2000).

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de regularização (6). A partir daí, cada vez mais, a legislação urbanística vem reconhecendo a

dualidade (7) da cidade real – formal e informal – recepcionando normas para fins da

regularização urbanística, até chegarmos às disposições do Estatuto da Cidade, onde a questão

da regularização é enfatizada.

No tocante à legislação ambiental, encontra-se uma situação oposta. A crescente destruição do

meio ambiente natural, especialmente as florestas, recursos hídricos, o que afeta

significativamente as condições de fauna e flora e até mesmo o clima, implica em uma tendência

também crescente no estabelecimento de normas cada vez mais restritivas, configurando um

conflito com as normas urbanísticas.

Em linhas gerais, os principais óbices da legislação ambiental, no que se refere à regularização de

assentamos produzidos informalmente, referem-se à ocupação de áreas ambientalmente

protegidas, como é o caso das Áreas de Proteção aos Mananciais – APM’s e das Áreas de

Preservação Permanente – APP’s, bem como a utilização de áreas impróprias ao uso habitacional

que, como vimos anteriormente, constituem-se restrições ao parcelamento do solo nos termos da

legislação federal.

Com o reconhecimento do direito à moradia dos ocupantes informais, inclusive de áreas públicas,

há, necessariamente, que se proceder a uma detida análise das restrições ambientais aos sítios

ocupados, de forma a aferir a compatibilidade da permanência das moradias em face das

condições físico-ambientais específicas de cada região e/ou aglomerado habitacional, e das obras

de engenharia passíveis de serem implantadas.

No que se refere às APP’s há que se considerar que essas áreas têm suas características

determinadas desde a edição do Código Florestal em 1965 (8), contudo verificamos um maior rigor

nas disposições legais que se seguiram. Em 1989, a revisão do Código Florestal (9), além de

6 Conforme arts. 38 e 40 da Lei 6766/79.7 A dualidade na produção do espaço urbano é definida por GROSTEIN (2001): “A dualidade verificada nos processos sócio-espaciais

de construção da metrópole contemporânea manifesta-se no reconhecimento de uma cidade “formal” assumida pelo poder público, onde se concentram os investimentos urbanos de todo tipo, de outra construída à sua margem, e que tem no conceito cidade informala expressão mais abrangente para designá-la, pois associa o fenômeno da expansão urbana ilegal ao da exclusão social. Nele está implícito o pressuposto que o acesso à cidade se dá de modo diferenciado e que é sempre socialmente determinado, compreende o conjunto das formas assumidas pelos assentamentos ilegais: loteamentos clandestinos/irregulares, favelas e cortiços”.

8 Lei Federal 4.771/65 – Código Florestal.9 Lei 7.803/89 determina alterações do art.2º, do Código Florestal, que passou a ter a seguinte redação: Consideram-se de

preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima seja: 1) de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de menos de 10 (dez) metros de largura; 2) de 50 (cinqüenta) metros para os cursos d'água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinqüenta) metros de largura; 3) de 100 (cem) metros para os cursos d'água que tenham de 50 (cinqüenta) a 200 (duzentos) metros de largura; 4) de 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; 5) de 500 (quinhentos) metros para os cursos d'água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; b) ao redor das

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tornar mais rígidos os limites de proteção aos cursos d’água, estendeu essas normas às áreas

urbanas. Foram estabelecidas como áreas de preservação permanente, as faixas ao longo dos

rios e cursos d’água, variando na proporção de 30 m (para cursos d’água com largura até 10 m) a

500 m (para cursos d’água com largura igual ou superior a 600 m), condição mais restritiva do que

a estabelecida pela Lei de Parcelamento que previa faixas não edificáveis de 15 m.

ANCONA (2007) enfatiza o fato de que essa alteração foi motivada pela necessidade de

adaptação do Código à Constituição de 1988, bem como pelo reclamo dos movimentos

ambientalistas em face da devastação da Floresta Amazônica. Não se justificaria, dessa maneira,

a ampliação das restrições em meio urbano, exigindo estudos técnicos que embasassem a

definição dessas APP’s, considerando aspectos geomorfológicos, índices pluviométricos e

condições da bacia hidrográfica na qual estão inseridas. Segundo a autora, faixas de preservação

específicas deveriam ser estabelecidas regionalmente, caso a caso, pelos governos locais, ao

invés da determinação de restrições no âmbito nacional com estabelecimento de larguras

genéricas.

Ainda segundo ANCONA (2007), dentre as funções das APP´s, apenas algumas se aplicariam ao

meio urbano, como é o caso da proteção da população humana dos efeitos das enchentes e da

poluição hídrica, mesmo assim, a autora identifica a necessidade de obras e estudos técnicos

específicos:

“Se as tipologias dos regimes naturais de drenagem das terras forem cruzadas

com as peculiaridades das áreas urbanizadas, onde prevalece a função de

proteger as população humanas dos efeitos das enchentes e da poluição hídrica

ensejando obras de saneamento ambiental e disciplinamento da drenagem,

surgirão tantas alternativas de solução, combinatórias de razões técnicas,

sociais, ambientais e econômicas, que o tratamento mais adequado seria a

definição de larguras de faixas específicas, estabelecidas caso a caso, pelos

governos locais”. (ANCONA, 2007: pp. 05).

lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou artificiais;c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados "olhos d'água", qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinqüenta) metros de largura; d) no topo de morros, montes, montanhas e serras;xe) nas encostas ou partes destas, com declividade superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive; f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação. Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo.

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No que se refere à proteção aos mananciais, no âmbito do Município de São Paulo, ainda temos a

vigência da legislação estadual instituída em meados da década de 1970 (10, de caráter

preservacionista, que se pautou em um zoneamento de usos altamente restritivo, abrangendo os

mananciais da Região Metropolitana de São Paulo, entre eles as bacias dos Reservatórios da

Billings e Guarapiranga. Essas restrições determinaram a redução do valor de mercado dos

terrenos inseridos na dita Zona de Proteção aos Mananciais, fato que, aliado à ausência de

fiscalização por parte do poder público, acabou por favorecer a atuação livre do setor privado e a

ocupação ilegal por parte da população de baixa renda, em loteamentos irregulares ou

clandestinos e favelas:

“Os problemas emergentes da ocupação das áreas de proteção em torno das

represas Billings e Guarapiranga, tem demonstrando que a lei em si não foi

capaz de conter completamente a ocupação dessas áreas. Tanto pelo fato do

governo do Estado ter deixado de aplicar a lei, renunciando gradativamente à

sua fiscalização como por problemas estruturais da expansão da malha urbana

mencionados inicialmente – a prática do loteamento clandestino entre outros.

Sintomas distintos de uma mesma postura.” (SOCRATES, GROSTEIN &

TANAKA, 1985: pp. 29).

10 Lei 898/75 e Lei 1.172/76.

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Durante duas décadas conviveu-se com o conflito ambiental versus social na discussão quanto às

alternativas de intervenção no território ocupado nas áreas protegidas das represas Billings e

Guarapiranga, cogitando-se até a desocupação forçada, medida inviável em face da dimensão do

problema do ponto de vista sócio-econômico. Com a instituição da legislação que passou a

regular o Sistema Estadual de Recursos Hídricos e, com o estabelecimento das bacias

hidrográficas como Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos (UGRH), o tema assume

uma nova dimensão. Conforme MARTINS (2006), em decorrência da introdução desse sistema de

gerenciamento dos recursos hídricos, foi aprovada uma nova legislação em 1997 (11)

estabelecendo diretrizes e normas para as bacias dos mananciais de interesse regional do Estado

de São Paulo.

Desde então foram constituídos Comitês de Bacia, compostos por representantes do Estado, dos

Municípios e da Sociedade Civil, que travam um longo processo de investigação técnica e

discussões. Para cada Área de Proteção e Recuperação dos Mananciais – APRM deve

corresponder uma lei específica, que tem por objetivo estabelecer as diretrizes e normas

direcionadoras de uso e ocupação do solo e parâmetros ambientais “garantidores dos padrões de

qualidade e quantidade de água”:

“Em lugar de uma lei estadual de uso e ocupação do solo que traga um

zoneamento que desconsidere as realidades locais, a proposta sugere Áreas de

Intervenção onde deverão ocorrer ações de recuperação das áreas degradadas

em decorrência de ocupações predatórias, bem como ações indutoras de usos e

atividades compatíveis com a recuperação dos mananciais. São elas: Área de

Restrição à Ocupação (ARO), Áreas de Ocupação Dirigida (AOD) e Áreas de

Recuperação Ambiental (ARA)”. (WHATELY, SANTORO & TAGNIN. 2008:

pp.9).

Para a bacia do Guarapiranga já há uma lei específica (12) que define usos e parâmetros para sub-

áreas dentro da Área de Ocupação Dirigida, com reconhecimento da condição de ocupação e

estabelecimento de índices de impermeabilidade. Também são estabelecidas condições para a

adequação dos sistemas de tratamento e disposição final de resíduos sólidos, que compreendem

análise de alternativas fora da Bacia, programas de redução de resíduos e proibição da disposição

de lixo proveniente de outras localidades. Contudo, a efetivação da Lei exige ainda a elaboração

11 Lei 9.866/97.12 Lei 12.236/2006.

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do Plano Diretor de Proteção Ambiental – PDPA, com a definição de limites das Áreas de

Intervenção e regulamentações específicas.

O texto legal reconhece ainda a possibilidade de instrumentos de compensação ambiental, já

existentes, tais como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN); doação de terrenos para

preservação ambiental; vinculação de áreas verdes existentes na bacia a empreendimentos ou

obras para atendimento dos parâmetros urbanísticos; intervenções para recuperação ambiental e

despoluição; previsão de recursos financeiros para viabilizar a aquisição de áreas e ações de

recuperação ambiental.

Há que se destacar, as obras executadas por conta do Programa de Saneamento Ambiental da

Bacia do Guarapiranga, constituído por cinco subprogramas: sistema de água e esgoto, coleta e

disposição de lixo, proteção ambiental, gestão e recuperação urbana, que são implementados

através dos municípios que compõe a bacia e pelo Governo do Estado. Esse Programa é

responsável pela melhoria das condições de saneamento e habitabilidade na região, favorecendo

a consolidação da ocupação nas ARO´s.

No que se refere a Billings (13) embora grande parte do território da bacia encontre-se ainda

preservado, destaca-se que as áreas com usos urbanos ocupam cerca de 15% da área, e geram

enormes danos para a qualidade da água uma vez que quase a totalidade da ocupação não conta

com sistema adequado de tratamento de esgoto, em muitos locais o esgoto sequer é coletado,

além do fato que mais de 40% das APP’s ao longo dos cursos d’água encontram-se ocupadas por

atividades humanas. Destaca-se ainda, a inexistência de um programa de saneamento nos

moldes do Guarapiranga, além do fato de que a formulação da legislação ainda suscita

questionamentos de ordem técnica:

“Os resultados (conforme estudos do Instituto Social Ambiental – ISA e

Universidade do SENAC) mostram problemas técnicos e fragilidades da atual

minuta de Lei Específica da Billings, como por exemplo, permitir aumento

significativo de população e expansão de ocupação urbana numa região a ser

protegida para o abastecimento de água da população metropolitana, ampliando

os riscos desse suprimento”. (WHATELY, SANTORO & TAGNIN, 2008: pp.15)

13 Conforme WHATELY, SANTORO & TAGNIN (2008).

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13

No que se refere à definição das áreas impróprias ao parcelamento do solo, que também podem

ser classificadas como restrições ambientais, temos as disposições da Lei 6766/79, conforme

anteriormente mencionado, restringindo o uso de áreas nas condições já descritas (14).

As efetivas condições de regularização: limites e avanços no Município de São

Paulo

Nesse quadro de revisões normativas, o Município de São Paulo, também promoveu

reformulações do seu aparato legislativo, a fim de proceder às atualizações necessárias para a

regulação urbanístico-ambiental, à luz da Constituição Federal (1988), do Estatuto da Cidade

(2000) e da MP 2220 (2002), resultando na aprovação do Plano Diretor Estratégico (PDE), em

2002, da Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS) e dos 31 Planos Regionais Estratégicos (PRE’s)

de cada subprefeitura, em 2004, entre outras.

O PDE (2002) apresenta-se como um instrumento estratégico da política de desenvolvimento

urbano na qual a problemática ambiental adquire relevância. Para o enfrentamento da questão, o

Plano estabelece o zoneamento de usos para a totalidade do município, dividindo-o em duas

macrozonas distintas e complementares, para as quais são adotados parâmetros urbanísticos

peculiares a cada situação.

O citado Plano estabeleceu o Programa de Recuperação Ambiental de Cursos D’água e Fundos

de Vale, que objetiva a implantação de parques lineares contínuos e caminhos verdes ao longo

dos cursos d’água, portanto, prevendo a remoção das habitações instaladas em áreas de risco –

inundáveis e erodíveis. O projeto lei do PDE propôs faixas não edificáveis de 30m, ao longo dos

cursos dágua e fundos de vale, destinadas à implantação de “caminhos verdes”. No entanto, no

advento da aprovação da lei a largura das faixas foi reduzida para 15 m (15), em conformidade

com a Lei Federal 6766/79, porém em desacordo com o Código Florestal. Cabe destacar que

tanto o Plano Diretor quanto a LUOS, no que se refere ao uso e ocupação de áreas

ambientalmente protegidas, remetem-se ao conjunto de leis estaduais e federais, tornando,

portanto, inócua a redução da faixa não edificante ao longo dos corpos d’água.

No que se refere à política de desenvolvimento urbano e habitacional o Plano Diretor introduz

como instrumento de regularização a Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), cuja finalidade é

14 Conforme N.R. nº 3.15 Conforme art 109 da Lei Municipal13.430/02

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assegurar a posse da terra e a regularização fundiária (16), em áreas públicas ou privadas

ocupadas por assentamentos precários – favelas, loteamentos informais, conjuntos habitacionais,

cortiços ou habitações coletivas e edificações informais insalubres e deterioradas. Sendo,

portanto, um instrumento jurídico de cunho urbanístico, que tem por finalidade estabelecer ou

restabelecer a ordem urbanística, reforçando a base legal existente, legitimando assim, as ações

de intervenção e de investimentos dos agentes públicos junto aos assentamentos informais de

baixa renda.

A introdução da ZEIS no aparato normativo visa contribuir e assegurar a formulação de planos,

programas e ações de regularização e recuperação urbano-ambiental, sendo um instrumento que

trata de questões complexas, que envolvem conflitos de interesses e embates sociais de difícil

encaminhamento. Esse instrumento permite a flexibilidade de parâmetros urbanísticos

específicos, para cada um dos assentamentos informais, mas, no que se refere aos conflitos

ambientais, vem se demonstrando ineficiente, pois, a inobservância dos parâmetros relativos à

legislação ambiental inviabiliza o processo de regularização.

A Resolução CONAMA 369/06 (17) determina o procedimento da aprovação de Planos de

Regularização Fundiária, no âmbito dos agentes ambientais municipais e estaduais, exigindo

audiência pública para a aprovação de cada um deles, bem como condiciona a intervenção às

áreas gravadas no plano diretor como ZEIS. Cabe ressaltar, que os assentamentos informais

delimitados nos perímetros das ZEIS, em áreas ambientalmente protegidas, desde que atendam

os pressupostos da MP 2220/01 podem requerer apenas a posse da terra através dos

instrumentos da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e da Concessão de Uso Especial

para Fins de Moradia (CUEM).

Segundo a citada Resolução, o órgão ambiental competente (18) poderá autorizar intervenção ou

supressão de vegetação em APP’s para a implantação de obras, planos, atividades ou projetos de

utilidade pública ou interesse social, ou para a realização de ações consideradas eventuais e de

16 A ZEIS surge na Lei Municipal 14.511/83 de Recife como figura jurídica a fim de garantir inicialmente a posse da terra.

Posteriormente com a regulamentação das áreas demarcadas que ocorreu em 1987, a lei estabeleceu a implementação de um Plano de Regularização das ZEIS (PREZEIS) criando novas possibilidades urbanísticas para os assentamentos informais.

17 Dispõe sobre os casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente – APP

18 A Resolução 369 condiciona a autorização por parte dos municípios, em seu parágrafo 2º, art. 4º: (...) desde que o município possua Conselho de Meio Ambiente, com caráter deliberativo, e Plano Diretor ou Lei de Diretrizes Urbanas, no caso de municípios com menos de vinte mil habitantes, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente, fundamentada em parecer técnico.

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baixo impacto ambiental. Para o caso de interesse social, são determinados requisitos para que

se autorize a supressão de vegetação, entre eles a regularização fundiária sustentável de área

urbana.

Resta claro, portanto, que a Resolução condiciona a autorização à sustentabilidade da

regularização fundiária que se pretende proceder. No entanto, conforme descreve ACSELRAD

(1999), sustentabilidade é uma noção a que se pode recorrer para tornar objetivas diferentes

representações e idéias. Não é possível, nos limites deste trabalho, aprofundar a discussão sobre

essas diferentes representações e idéias, porém é essencial a discussão de quais os atributos

pertinentes à classificação de uma regularização fundiária como sustentável.

Preliminarmente, tomando por base o texto da Resolução 369, é indubitável o entendimento de

que a mera concessão de uso, conforme facultado pelo Estatuto da Cidade e MP 2220/01 não se

prestaria à condição de sustentabilidade descrita na norma. Há que se considerar, portanto, a

necessária intervenção física, denominada como regularização urbanística ou regularização

técnica, que compreende o conjunto de projetos e obras que promovam a qualificação urbanística

e ambiental da área sob intervenção, consolidando o Plano de Urbanização. Temos, portanto, que

considerar a componente físico-urbanístico da sustentabilidade dos aglomerados urbanos,

conforme descreve GROSTEIN (2001):

“O avanço do processo de urbanização, sua escala e velocidade, não constituem

problema em si, não fosse o modo como ocorreu. A ele devemos estar atentos,

pois a sustentabilidade do aglomerado urbano/metropolitano, em sua

componente físico-urbanística, relaciona-se com as seguintes variáveis: a forma

de ocupar o território, a disponibilidade de insumos para seu funcionamento

(disponibilidade de água), a descarga de resíduos (destino e tratamento de

esgoto e lixo); o grau de mobilidade da população no espaço urbano (qualidade

do transporte público de massa); a oferta e o atendimento às necessidades da

população por moradia, equipamentos sociais e serviços e a qualidade dos

espaços públicos. Assim sendo, as políticas que os sustentam o parcelamento,

uso e ocupação do solo e as práticas urbanísticas que viabilizam estas ações,

tem papel efetivo na meta de conduzir as cidades no percurso do

desenvolvimento sustentado”. (GROSTEIN, 2001: pp. 20.)

Conforme a definição de GROSTEIN (2001), várias questões devem ser tratadas no processo de

regularização fundiária em APP’s para que as mesmas possam atender aos quesitos da lei. Nesse

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sentido, considerando as funções ambientais dessas faixas de proteção, há que se considerar

preliminarmente é a proteção da população humana dos efeitos das enchentes e da poluição

hídrica.

Considerando as condições de salubridade das populações que habitam as margens de cursos

d’água, há que se investigar, preliminarmente, as condições de sujeição a enchentes e/ou

inundações a que os moradores estariam expostos, bem como as condições e custos da reversão

dessa condição. Canalizações, retificações do curso, ampliação da calha e uma série de outras

medidas técnicas se prestam à reversão da sujeição à inundação e enchentes, condicionadas

apenas à análise de custos/benefícios e à análise das condições hídricas da bacia. Porém, em

casos como o da Região Metropolitana de São Paulo - RMSP, existem estudos dos sistemas

hidrológicos e definição das obras de canalização, reservatórios de retenção, etc. (19), onde a

viabilidade das obras propostas para determinado curso d’água devem compatibilizar-se com o

planejamento global das intervenções.

Paralelamente, ainda no que se refere às condições de salubridade da população, resta a análise

das condições de poluição do curso d’água. Córregos ou rios poluídos implicam em situação que

compromete o uso habitacional, em face dos detritos lançados, do risco das zoonoses e outras

doenças devidas à contaminação das águas e das margens. Nesse sentido, as obras necessárias

contemplariam à despoluição do corpo d’água, medida esta que implica em obras que extrapolam

os limites do projeto, pois compreendem a carga poluidora a montante, bem como a situação de

poluição na própria bacia hidrográfica.

Todas essas condições tornam extremamente complexas as medidas necessárias à garantir a

sustentabilidade do processo de regularização que se pretende empreender, sem contar com

medidas como a disponibilização de água potável, coleta e tratamento de esgoto e lixo, drenagem

urbana, condições de mobilidade da população e uma série de outros requisitos conforme

descritos na citação anterior de GROSTEIN (2001).

Considerando, ainda, que os percursos dos cursos d’água não se condicionam aos limites

administrativos dos Municípios, temos, em manchas urbanas contínuas como é o caso da RMPS,

a necessidade de compatibilização de medidas a serem adotadas, pois como já mencionado, a

condição de despoluição de determinado corpo d’água pode estar condicionada às obras à

19 Nos referimos ao Programa de Canalização de Córregos - PROCAV, programa de obras múltiplas realizadas em bacias hidrográficas

da Região Metropolitana de São Paulo, iniciado em 1987, atualmente na segunda fase de implantação.

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montante, que podem localizar-se no perímetro de outro município, comprometendo a viabilidade

da intervenção.

A situação descrita leva a novos embates entre os órgãos públicos responsáveis pela implantação

dos programas de regularização fundiária e os agentes responsáveis pelo licenciamento

ambiental, no âmbito municipal e estadual, conforme situação descrita por SANTOS (2007) no que

se refere a entraves entre a Prefeitura de Santo André e a Secretaria do Meio Ambiente do Estado

no que se refere à interpretação do termo “regularização fundiária sustentável”. Para SANTOS

(2007), a discussão no CONAMA do “Plano de Regularização Fundiária Sustentável”, conforme

proposto pelo Ministério das Cidades, determinava limites circunscritos à área de intervenção e o

entorno imediato:

“O Plano de Regularização Fundiária Sustentável para urbanistas, portanto,

circunscrevia-se à área de intervenção e seu entorno imediato, restringindo a

área de influência na sub-bacia hidrográfica. Tratava-se de Plano de dotado de

certa discricionariedade, uma vez que a prática reiterada de processos de

urbanização de assentamentos informais e sua regularização fundiária demanda

soluções técnicas específicas. Os limites aos Planos são dados pelas situações

de risco, pela disponibilidade imóveis para alocação de famílias e pelas

limitações técnicas a que as obras de urbanização estão adstritas.” (SANTOS,

2007: pp.11).

Dessa forma, conforme postulamos inicialmente, as obras necessárias às condições de

salubridade das famílias em APP’s não poderiam ser restritas aos limites do plano de

regularização daquela área específica, mas sim estariam inseridos em um contexto mais amplo.

Porém, definido a partir de critérios de ordem técnica, vislumbrando as condições da bacia

hidrográfica e não “para o município como um todo”, conforme a Secretaria do Meio Ambiente,

através do GRAPROHAB chegou a postular, nos dizeres de SANTOS (2007: pp.12).

O aprofundamento nas questões físico-ambientais envolvidas nos programas de regularização

fundiária, como no caso das APP’s, conforme anteriormente descrito, nos coloca frente ao esforço

de planejamento necessário para promoção da regularização de assentamentos habitacionais

informais, o que deve ser adotado dentro da urgência necessária, em face dos direitos

assegurados aos moradores dessas áreas por parte do Estatuto da Cidade e pela Medida

Provisória – 2220/01.

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A complexidade da tarefa de planejar e viabilizar programas de regularização fundiária, parte já da

atribuição dos agentes públicos no que concerne à formulação da legislação e tomada de decisão.

É certo que, os Municípios concentram a tarefa de legislar sobre seu território e, por conseqüência

tomar as decisões sobre as áreas que devem ser delimitadas como ZEIS para fins de

regularização fundiária. Contudo, no que se refere às questões de ordem ambiental, verifica-se,

ainda, uma dependência das aprovações no âmbito estadual, sem contar com limites físicos de

planejamento que requerem uma visão metropolitana, para solução dos problemas que

extrapolam os limites administrativos municipais.

Como exemplo de um planejamento dessa magnitude, temos o Programa Guarapiranga, onde

esforços estaduais e municipais se conjugaram para intervir em um mesmo território com objetivo

único de promover o saneamento e a recuperação ambiental da bacia hidrográfica que abriga um

dos mais importantes reservatórios de água da RMSP. Mesmo com a ação múltipla e a gestão

integrada, embora com todos os percalços descritos (20), a definição dos parâmetros da legislação

específica consumiu anos de debates e embates, sempre como foco principal a consolidação das

ocupações informais no interior da bacia, sem contar com a previsão do Plano Diretor de Proteção

Ambiental - PDPA, que deve contemplar entre outros aspectos os modelos de gestão do território,

com a atribuição dos diversos agentes, além de um sistema gerencial de informações.

Novos caminhos: a consideração dos múltiplos enfoques e as definições de regiões

de planejamento

Expusemos as questões anteriormente abordadas, com o intuito de demonstram com a

regularização fundiária e urbanística de assentamentos urbanos informais envolvem aspectos de

profunda complexidade. Quando do surgimento da questão “regularização”, toda a discussão

centrava-se na necessidade da flexibilidade dos parâmetros da legislação urbanística e ambiental,

que não se coadunavam com a estruturação da cidade real, que contemplava em seu território

uma expressiva parcela de informalidade.

Adequar a legislação, rever parâmetros técnicos, formular metodologias de intervenção, em

assentamentos habitacionais informais, são tarefas sobre as quais o meio institucional e

acadêmico vem se dedicando a mais de três décadas, no entanto, muitas questões devem ainda

ser tratadas.

20 A esse respeito ver MARCONDES (1999) e GONDOLO (1999).

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A luta para que os municípios ganhassem a autonomia, conquistada na Constituição de 1988, a

quase extinção dos mecanismos de planejamento e gestão metropolitanos, colocam hoje desafios

a serem superados, na medida em que se torna patente a necessidade de um planejamento

urbano definido a partir de uma base territorial, como é o caso das bacias hidrográficas e, como

também são, os transportes coletivos metropolitanos e o saneamento ambiental, compreendendo

a disposição e tratamento de esgoto e coleta e disposição de lixo.

Essas questões também nos apontam para a importância dos mecanismos de controle e gestão

das cidades e das metrópoles, demonstrando que mecanismos de fiscalização, gestão e controle

de processos, são tão, ou até mais, essenciais do que a própria legislação, como demonstra

claramente a situação dos mananciais da RMSP, que foram protegidos pela legislação, mas foram

deteriorados em face da falta de gestão pública.

Programas de regularização, também se constituem em tarefas para as quais há que se

estabelecer além de legislação adequada, compatível entre as diversas esferas de governo, e

instrumentos de planejamento, fiscalização e controle, adequados sistemas de gestão que

considerem o componente ambiental e a necessidade da complementaridade das ações em um

mesmo território.

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