iv encontro nacional da anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. e...

20
IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 Brasília - DF – Brasil _______________________________________________________ 1 (Etno) conhecimento e Práticas de Pesca nas Localidades do Município de Manacapuru – AM Marco Antonio de Souza Brito, mestrando da Pós-Graduação em Sociologia – UFAM [email protected] Antonio Carlos Witkoski, sociólogo, Profº. Dr.º do Depto. Ciências Sociais, pesquisador e vice- coordenador do NUSEC – UFAM [email protected] Therezinha de Jesus Pinto Fraxe, socióloga, Profª. Drª do Depto. Ciências Agrárias e coordenadora do NUSEC –- UFAM. [email protected] Tiago da Silva Jacaúna, mestrando da Pós-Graduação em Sociologia – UFAM [email protected] Raniere Garcez Costa Souza, Engº. Pesca, pesquisador PIATAM, mestrando da Pós-Graduação CCA – UFAM [email protected] Pedro Henrique Coelho Rapozo, Ciêntista Social, pesquisador do Nusec – UFAM [email protected] Resumo A pesquisa abordou o estudo das práticas de pesca, o etnoconhecimento e a etnoconservação dos recursos pesqueiros, enfatizando o conhecimento e a territorialidade dos pescadores de subsistência e dos pescadores artesanais (comerciais) das localidades Jaitêua de Baixo, Jaitêua de Cima e Cajazeira, Município de Manacapuru (AM) na apropriação dos ambientes aquáticos vitais estes agentes sociais.

Upload: dobao

Post on 08-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

1

(Etno) conhecimento e Práticas de Pesca nas Localidades do Município de Manacapuru – AM

Marco Antonio de Souza Brito, mestrando da Pós-Graduação em Sociologia – [email protected]

Antonio Carlos Witkoski, sociólogo, Profº. Dr.º do Depto. Ciências Sociais, pesquisador e vice-coordenador do NUSEC – UFAM

[email protected]

Therezinha de Jesus Pinto Fraxe, socióloga, Profª. Drª do Depto. Ciências Agrárias e coordenadora do NUSEC –- UFAM.

[email protected]

Tiago da Silva Jacaúna, mestrando da Pós-Graduação em Sociologia – [email protected]

Raniere Garcez Costa Souza, Engº. Pesca, pesquisador PIATAM, mestrando da Pós-Graduação CCA – UFAM

[email protected]

Pedro Henrique Coelho Rapozo, Ciêntista Social, pesquisador do Nusec – [email protected]

Resumo

A pesquisa abordou o estudo das práticas de pesca, o etnoconhecimento e a etnoconservação dos recursos pesqueiros, enfatizando o conhecimento e a territorialidade dos pescadores de subsistência e dos pescadores artesanais (comerciais) das localidades Jaitêua de Baixo, Jaitêua de Cima e Cajazeira, Município de Manacapuru (AM) na apropriação dos ambientes aquáticos vitais estes agentes sociais.

Page 2: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

2

Introdução

As comunidades ribeirinhas demograficamente distribuídas e estabelecidas ao longo das margens

dos rios, lagos e afluentes amazônicos se caracterizam por seu estilo de vida relativamente simples.

Neste contexto, o capital cognitivo, simbólico e as práticas sociais instituintes e constituintes deste

estilo de vida são expressão da memória social, identidade e organização da vida econômica destes

grupos sociais que vivem em interação com a várzea amazônica e seus recursos.

Por sua vez, este cotidiano em consonância com o contexto da sociedade global, revela a

multiplicidade de relações sociais (parentesco e vizinhança), saberes, valores e crenças que norteiam

o horizonte da vida ribeirinha. Esta dinâmica cultural também está em conformidade com processos

educativos e relações de gênero, cuja mentalidade e práticas estão subjacentes aos modos de

produção e reprodução da vida material, social e simbólica das comunidades.

O estilo de vida das comunidades ribeirinhas como parte e manifestação da relação recíproca com as

cidades amazônicas (OLIVEIRA, 2007) também obtém novos condicionantes culturais atribuídos à

concepção de vida moderna, que, absorvidos pelas comunidades são resignificados e se constituindo

em novos hábitos. Fato pertinente que em parte parece descaracterizar a particularidade cultural

destas comunidades, mas por outro lado, revelando a força do hábitus (BOURDIEU, 1979) na

permanência da própria tradição.

As mudanças sociais atuais são decorrentes de condições e estruturas temporais econômicas

divergentes que, por sua vez, podem ser identificadas nas características (positividades,

contradições e antagonismos) das atividades econômicas capitalistas em detrimento às economias

tradicionais, cujos desdobramentos se fazem refletir, além do poderio econômico, também nas

desigualdades sociais (BORDIEU,1979).

Nas localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, a atividade pesqueira como parte

componente e complementar associada a outras atividades produtivas de semelhante importância

(agricultura, extrativismo e caça) demonstra que as mudanças sociais ocorrem, no entanto, a tradição

do estilo de vida ribeirinho se mantém em virtude da organização social fundamentada em aspectos

importantes da cultura local, tais como: 1) a história social das comunidades; 2) os propósitos de vida

em comum; 3) a divisão do trabalho por gênero; 5) o mundo religioso; 6) a territorialidade; 7) a

identidade de grupo; 8) e a temporalidade da vida econômica.

Page 3: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

3

Portanto, é nesta perspectiva que a complexidade da vida ribeirinha é pensada. É neste contexto

social que o cotidiano dos pescadores de subsistência e pescadores artesanais se configura

enquanto universo cultural.

Área de estudo - Município de Manacapuru (AM)

A imagens abaixo descreve a localização da área de estudo (Figura 1):

Figura 1. Imagem de satélite: comunidades de várzea, município de Manacapuru – AM. Fonte: PIATAM2007

O município de Manacapuru está situado numa micro-região do Médio-Solimões – AM e localizado à

margem esquerda do Rio Solimões em confluência com a foz do pequeno rio Manacapuru. Esta

distante da capital do Estado, Manaus, 98 Km. Apresenta área territorial de 7.335,4 Km² e densidade

demográfica de 10,0 hab/Km². O município possui sete comunidades rurais localizadas na área de

influência do gasoduto Coari – Manaus. Estão situadas nas localidades Jaiteua de Cima, Jaiteua de

Baixo e Cajazeira e distantes da sede do município aproximadamente 0:45 h/min de motor

(barco/voadeira) na época da cheia e até 2:00 hs na época da seca, caminhando através do canal

principal e por múltiplos atalhos.

Lago SãoLourençoJaitêua

de Cima

Jaitêuade Baixo

Manacapuru

Lago SãoLourençoJaitêua

de Cima

Jaitêuade Baixo

Manacapuru

Page 4: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

4

Metodologia

Os dados obtidos para composição dos gráficos são originados do formulário BASPA, cujo conteúdo

se refere à perguntas, quadros e tabelas pertinentes aos aspectos da prática da pesca em relação

direta com as fases do ciclo hidrológico. Este formulário buscou captar dados para as equipes sub-

redes – ecologia de peixes, biologia, socioeconomia e tecnologia do pescado – para que possam

compreender a interdependência entre áreas do conhecimento, permitindo assim a leitura mais ampla

dos processos culturais e materiais relacionando homem e natureza.

Os dados obtidos nos formulários expressam o quantitativo de 64 unidade aplicadas, isto é, abrageu

a expectativa de 57% do total de famílias existentes nas localidades. De 100% das informações dos

formulários BASPA, a tendência geral da freqüência das informações do gráfico corresponde aos

ambientes de uso mais mencionados pelos pescadores de subsistência e artesanais (comerciais) das

localidades, ou seja, totalizando 67%. O restante das informações (33%) corresponde

aproximadamente a 53 ambientes mencionados com freqüências esparças (duas ou três vezes

mencionados no quantitativo geral).

As entrevistas abertas e observação participante também fizeram parte da rotina de trabalho.

Diversidade ecológica

A área de estudo é composta por diversos ambientes aquáticos: igarapés, poços, paranás, furos,

chavascais, aningais e lagos. Dentre estes, se destacam o Lago São Lourenço, o Lago Grande, o

Paraná do Jaitêua e o Paraná do Anamã muito procurados pelos moradores das localidades Jaitêua

de Baixo, Jaitêua de Cima e Cajazeira, pois apresentam abundância de recursos pesqueiros.

Estes ambientes são ligados entre si pelos caminhos de água (furos, canais, paranazinhos, entradas,

bocas), conformando uma densa paisagem labiríntica, local onde os peixes encontram condições

favoráveis ao desenvolvimento da vida – abrigo, alimentação e reprodução.

O Lago São Lourenço que margeia a localidade Cajazeira, e o Lago Grande, abrangendo direta e

indiretamente as margens das localidades Jaitêua de Baixo e Jaitêua de Cima, são circunscritos por

terras de várzea. Suas características, espacialidade e nível das águas, mudam de acordo com o

período do hidrológico – enchente, cheia, vazante e seca. Durante o período da enchente e cheia que

abrange os meses de novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril, maio e parte de junho, a

água adentra às florestas destas localidades, formando imensos igapós e chavascais que adensam

Page 5: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

5

vários corpos de água – igarapés e lagos interiores – para onde algumas espécies de peixes se

deslocam, seja para desova ou para alimentação e/ou reprodução de suas espécies.

Como observou Junk (1993) nesta época do ciclo das águas, os igapós, as margens dos lagos e

chavascais ficam repletos de árvores frutíferas. As frutas ao caírem das árvores para dentro da água,

servem de alimento para diversas espécies de peixes. Após a piracema e com a chegada da água

nova, as pequenas espécies de peixes que vieram neste movimento, e outras espécies, que ficaram

presas nestes ambientes na época da seca, passam a se alimentar destas frutas. Os peixes

engordam e crescem rapidamente, aumentando o interesse do pescador em capturá-las mais para

comercialização do que apenas para consumo. (Figura 2).

Figura 2 – Imagens do período da enchente. Da esquerda para a direita: a) Lago São Lourenço, Comunidade Nossa Senhora Aparecida, Cajazeira; b) Lago Grande, Comunidade Assembléia de Deus Tradicional, Jaiteua de Cima; Fonte: Marco Antonio de S. Brito. Trabalho de campo, janeiro de 2007.

O pescador de subsistência assim explica:

[...] eu começo a pescar na base de fevereiro em diante. Fevereiro, março, abril, maio, junho, por aí assim, né, direto. É nessa fase. Daí quando chega os mês de botar o roçado [julho, agosto, setembro], aí eu paro. Daí eu vou botar meu roçado pra trabalhá. Aí depois de colocado eu continuo de novo a pescar. O serviço é esse... Daqui ninguém pode sair. Sair daqui só se for pra outro canto, pra cidade ... Agora, meu serviço é esse: viver de pescaria e trabalhar em farinha, em roça. Eu gosto de pescar na época da cheia porque o peixe dá dinheiro e pescando não falta quase nada. É por isso que eu gosto.É que nem o trabalho da roça também. A roça todo tempo tá dando e a gente todo tempo tem o negócio do dinheiro. E assim que é a pescaria. Nós temos nossas experiências, por exemplo, tem a época que o peixe dá bem, dá peixe melhor, o peixe grande. Numa época dessa [janeiro/enchente] ele dá dinheiro, mas não dá muito assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender é o curimatá, o tucunaré, a aruanã, o roelo, a pirapitinga, o pirarucu, o pacu, o carauaçu. Esses outros peixes miúdo, [pacu e carauaçu] não pesco quase não. Porque quando o rio tá cheio, dá os peixe graúdo

Page 6: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

6

que é melhor de vender, né! (Sr. Dézinho, 45 anos, pescador de subsistência, comunidade Tradicional, localidade Jaitêua de Cima, Dez. de 2006, grifo nosso).

As localidades também são marcadas pelos períodos da vazante e seca. Este momento abrange os

meses de julho, agosto, setembro e outubro, havendo redução significativa dos níveis de água

nesses ambientes e, como conseqüência, o secamento dos principais locais de uso das

comunidades. Na rotina de vida das famílias, os igarapés são importantes, pois retira-se a água para

o consumo, banho e uso doméstico. Também são utilizados como caminho principal para o embarque

e transporte de pessoas e de produtos produzidos localmente. Nestes ambientes, a apropriação do

pescado também é fundamental para alimentação das famílias devido à facilidade de acesso

(proximidade das residências) e pela ambundância de recursos.

Conhecimento e práticas de pesca

Se para pesquisadores da ciência moderna, o conhecimento sistematizado representa o modo de

classificar, organizar e compreender a complexidade das coisas do mundo. O conhecimento dos

pescadores das localidades Jaiteua Cima, Jaiteua de Baixo e Cajazeira representa a ciência da

experiência de vida dos ribeirinhos em consonância com a várzea amazônica. Neste sentido, o

conhecimento acerca do comportamento dos peixes, do calendário da pesca, da classificação dos

peixes e seus alimentos evidencia sistemas próprios de classificação que implicam na escolha e

definição dos principais pontos de pesca.

Neste contexto, a experiência de vida dos pescadores expressa a intima relação entre o pensamento

e realidade social (GODELIER, 1981), ambos componentes estruturadores das relações sociais

existentes nas comunidades em face às expectativas de vida. O modo de apropriação dos recursos

naturais mediante estas representações revela informações e conhecimentos que, ao mesmo tempo,

norteiam as práticas produtivas tanto para o manejo como para conservação dos recursos

pesqueiros. Neste sentido, o pescador não é bonzinho e nem o bom selvagem. Ele sabe que

conservar é necessário, pois “a vida na várzea não é fácil” (Sr. Dézinho, 45 anos, pescador,

comunidade Tradicional, localidade Jaitêua de Cima, Dez de 2006).

Os pescadores detêm saberes tradicionais sobre os modos de manejo dos recursos pesqueiros que

são transmitidos por via oral de geração em geração (FURTADO, 1993). Assim, a experiência de vida

não significa apenas a reprodução de hábitos, valores e costumes. Ela é a expressão do senso

comum entendido como uma forma de conhecimento que envolve simbolismos, valores, técnicas e

Page 7: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

7

práticas que fundamentam e dão sentido às intervenção na realidade material e social vivenciada

pelos pescadores (GEERTZ, 1989).

Na várzea amazônica, o cotidiano de trabalho dos pescadores é marcado pelo tempo natural dos

sistemas ecológicos e pelo tempo mercantil das práticas econômicas, que pela conexão intrínseca

caracteriza o estilo de vida do pescador ribeirinho. Neste sentido, cabe ressaltar as reflexões de

Cunha (2000, p. 105):

“o pescador parece definir sua existência e demarcar os afazeres diários, não somente em função do calendário urbano – [mesmo que] sua vida [venha] sendo regida [com mais freqüência pelos ritmos impositivos] dos horários do relógio [da vida moderna] –, mas das principais safras de peixes que perpassam as estações do ano, [do ciclo das águas em seu cotidiano de trabalho].

Nesta condição, os ritmos dos processos de trabalho dos pescadores de subsistência e artesanais

das localidades se coadunam com elementos ecológicos, cuja composição é internalizada nas

práticas de pesca. Assim o sucesso nas pescarias dependerá da temporalidade dos sistemas

ecológicos e, ao mesmo tempo, da inteligência e capacidade perceptiva dos pescadores em relação à

movimentação dos peixes, o que influencia nas possibilidades de captura das diferentes espécies de

peixes que vivem em cardume ou em comportamento isolado.

Com base nas palavras de um pescador, é possível ter idéia do conhecimento dos grupos sociais das

localidades acerca da apropriação da ictiofauna ao indagá-lo sobre a influência da Lua (astro) em

suas atividades de pesca:

[...] a lua. Só vão por lua o peixe-boi, a anta, o veado, a quixadá, o caititu. Esses animais só comem assim. Eles vivem assim pra cima. Até no roçado na nossa plantação de mandioca, se nós plantarmos na lua nova ela dá uma planta boa, e se for na minguante ela não dá não. Assim mesmo são os bichos, eles vivem pela força da lua. Tem dias que você chega lá e não tem uma lua bem forte pra eles, eles não vem não. O peixe, o tambaqui são peixes de arribação. O pirarucu, o pirarucu ele vinha focar toda essa cabeceira, mas quando está no tempo do rio seco ele se banhava aqui pra cima (Sr. Abdias, 63, pescador polivalente, nov. 2006)

[...] numa época dessas, eles [os cardumes de tucunaré] estão saindo, porque a água está arriando, aí tá secando. Então, eles estão saindo, porque se não sair, eles ficam em terra, aí pra dentro, aí vão procurando o fundo, saindo pro fundo. Aí ele vai, vai, aí quando é novembro, a água nova já vem. Aí é a época da enchente, aí já vem entrando, aí que eles ganham as cabeceiras, os igapós... aí fica difícil o cara pegar ele. Mas esse é o momento bom de pescar, o peixe dá mais dinheiro e a procura da cidade é muita (Valder Souza, 47, pescador artesanal, ago. 2006).

Page 8: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

8

Deste modo, a pesca de subsistência e artesanal exige um conhecimento empírico e perceptivo do

pescador sobre o comportamento das espécies de peixe, sua alimentação e seus habitats aquáticos,

considerando também a influência dos fenômenos da natureza nesta interação pescador e meio

ambiente.

O lanço

O conhecimento dos pescadores se constrói na prática, trabalhando. Estes agentes sociais

geralmente levam seus filhos para acompanhá-los nas pescarias. O processo de aprendizagem da

criança ao trabalho inicia a partir do 5 anos de idade, momento que a criança começa a despertar

para as curiosidades do mundo – da natureza. A pesca no lanço é o momento mais significativo desta

experiência, pois esta prática expressa o conhecimento do pescador (pai) acerca dos pontos de

concentração de peixes. Cada lanço representa um ponto de pesca.

Este local é preparado no período da seca, ocorrendo a limpeza do terreno do lanço retirando troncos

de algumas árvores e galhos retorcidos (galhos emersos no período da seca) denominados

localmente como “cacaias”. O lanço fisicamente se caracteriza por um corredor ou caminho de terra,

cuja largura é suficiente (e não mais que isso, pois o “peixe estranha”) para o deslocamento de uma

canoa. O comprimento deve garantir as possibilidades de destender diversos tamanhos de

malhadeiras ou tramalhas para exercer as pescarias.

A limpeza é necessária para que não haja o enrosco das malhas (malhadeiras) no fundo do igarapé

ou do lago, o que pode ocasionar prejuízos (danificação) ou risco de acidentes ao entrar sucessivas

vezes na água para desprendê-la. Em seguida, se marca com golpes de terçado (facão) alguns

troncos ou galhos que servirão de referencial visual durante o período da cheia. Cada pescador têm

seu lanço. “Ninguém é dono do rio, mas o lanço é o trabalho do pescador. Para pescar no lanço do

outro se deve pedir licença” (O Sr. Rondon Filho, 31 anos, pescador comercial).

Vejamos abaixo, o local conhecido como igarapé da Terra Preta, próximo ao Lago Grande, onde foi

possível perceber o desenvolvimento desta prática (Figura 3).

Page 9: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

9

Figura 3 – Pesca no lanço no igarapé da Terra Preta, Comunidade Santo Antônio, Jaiteua de Baixo.Fonte: Marco Antonio de S. Brito. Trabalho de campo, 2007.

Como observado, as imagens seguem uma seqüência que permite pensar a pesca do lanço: a

criança geralmente conduz a embarcação. O pai orienta e lhe indica onde deve entrar com a rabeta

(canoa motorizada). Neste período, a criança vai observando as práticas do pai. O filho indaga,

critica, dá opiniões e advertências. O pai, por outro lado, pede para observar, e vai explicando, na

prática, como um lanço se difere do outro. Há lanços que dão mais peixes, outros, menos peixes. As

observações são importantes, pois cada lanço apresenta suas especificidades: uma delas é a

quantidade de fruta dentro e ao redor do lanço, o que permite mais concentração de peixes,

facilitando as capturas através das malhadeiras distendidas de um ponto de amarração (referência)

ao outro ponto do lanço.

É nesta rotina da vida do pai que a criança, ao acompanhá-lo, inculca e aprende a prática da pesca.

A habilidade e o conhecimento se desenvolve na experiência de vida, de modo gradual e paciente.

Apetrechos de pesca

Os apetrechos são confeccionados conforme a natureza do processo de pesca (FURTADO, 1993),

sendo de fundamental importância o conhecimento tradicional do pescador acerca dos seguintes

critérios: 1) o saber sobre o comportamento dos peixes que deseja capturar; 2) considerar os locais

onde vivem; 3) o que comem; 4) onde se reproduzem; 5) se são peixes de cardumes ou de

comportamento individual; 6) se são espécies de escama (couro) ou peixes lisos (pele fina); 7)

Page 10: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

10

conhecer a anatomia do peixe; 8) as especificidades em relação ao tamanho, caso seja grande ou

pequeno, o peso e a largura da boca.

Sendo apetrechos perfurantes, cortantes ou de aprisionamento, é imprescindível trabalhar as

dimensões e os cortornos físicos destes instrumentos, devendo-se levar em consideração o tipo de

material que são fabricados, ressaltando a dureza, a durabilidade ou a flexibilidade do material

empregado.

Os apetrechos confeccionados podem desenvolver maior ou menor eficácia no ato da captura do

peixe, sendo imprescindível a experiência do pescador no manuseio destes utensílios. Vejamos

abaixo, a composição do apetrecho arco e flecha, apresentado pelo senhor Moisés, pescador

artesanal, especificando a montagem da flecha, instrumento por ele fabricado e utilizado em conjunto

com o arco (Figura 4).

Figura 4 – composição física da flecha zagainha: 1) flecha montada; 2) partes da flecha; 3) ilustração da montagem; 4) o pescador manuseando-a. Local: Comunidade Tradicional, Jaiteua de Cima. Fonte: Marco Antonio de S. Brito. Trabalho de campo, 2007.

O apetrecho arco e flecha é um tipo de utensílio tradicional apropriado para a pesca de subsistência e usado durante o dia. É também utilizado em algumas circunstâncias na pesca comercial. Costuma-se também praticar outras formas de caça com este instrumento. O Sr. Moisés fabrica o arco e flecha somente para seu uso particular. É um conhecimento tradicional e prático que herdou de seu pai, o Sr. João Palheta, que atualmente mora em Manaus e está aposentado. Ele afirma que fabricar este instrumento é uma “inteligência maior do “caboclo-índio”. Uma herança herdada dos “índios Ajará”, seus antepassados. As espécies mais capturadas, de acordo com o pescador, são: o tucunaré, a sulamba, o pacu, o jaraqui e o tracajá. Os ambientes de pesca mais freqüentes para a captura destas espécies são: o lago, o igarapé e o chavascau. Ele afirma que o uso deste utensílio tem sido bastante reduzido devido a escassez do pescado nestes ambientes. O arco é constituído de três partes: 1) o corpo, a madeira de que é fabricado: a “árvore de canela de velho”. Um tipo de material leve e flexível de aproximadamente 1,5m; 2) o punho, representado pela linha

Page 11: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

11

de nylon 2mm; 3) o detalhe de amarração da linha chamado de “cava”. A flecha é constituída de peças (partes) que se encaixam através de orifícios em cada uma de suas extremidades. Deste modo temos: 1) a ponteira, também chamada de “zagainha”. É um perfil especial para flecha. É constituída de duas pontas de aço denominadas de “varão”, sendo com três “coroas” com perfis e detalhe em forma de “espinho”. Este detalhes tem a função de manter a presa capturada, pois não saem facilmente da carne, seja de peixe ou de qualquer animal (Caderno de campo, fevereiro de 2007).

O manuseio e eficácia do apetrecho de pesca requer o desenvolvimento da técnica corporal

adequada, o que geralmente pode ser desenvolvido ou reelaborado depois da fabricação destes

instrumentos. Ao usarem os utensílios como o arpão, o arco a flecha, a azagaia, a tarrafa e as

malhadeiras já pensaram no ato de sua confecção, os detalhes de apoio que ficarão encaixados ao

corpo – no ombro e nos braços – e que otimiza o manuseio no ato da pescaria. Após a fabricação dos

utensílios, os ajustes são realizados no dia-a-dia conforme a percepção do pescador seja com

relação ao tipo de peixe ou dos ambientes onde esta pescando. O sucesso da captura depende da

facilidade e da praticidade do movimento do corpo, sendo a experiência e o conhecimento acumulado

do pescador o melhor caminho para o bom êxito da pescaria.

O cotidiano dos pescadores

Nas localidades, o cotidiano dos trabalhadores da pesca é constituído de atividades e rotinas de

trabalho diversificadas (FURTADO, 1993). Tanto em atividades pesqueiras quanto agrícolas,

extrativistas e criatórias, a organização do trabalho está fundamentada e tem sentido na participação

ativa dos membros do grupo doméstico, ou seja, da unidade de produção familiar/camponesa,

contanto também com parcerias envolvendo os parentes e a vizinhança (FRAXE, 2000). A vivência

destas práticas durante as pescarias é muito comum nas comunidades, pois o pai atribui

responsabilidades a seus filhos e ensina-os empiricamente, a identificar e demarcar os melhores

pontos de pesca.

O gráfico (1) permite visualizar as tendências das práticas de pesca, considerando as relações

econômicas desempenhadas pelos trabalhadores da pesca que residem nas localidades

pesquisadas:

Page 12: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

12

Gráfico 1– Práticas de pesca. Fonte: NUSEC, 2008.

Conforme o gráfico (1), os pescadores de subsistência estão difusos nas três localidades, com

predominância nas localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima. O cotidiano de suas vidas é marcado

pela polivalências das atividades. Eles fazem da pesca mais uma de suas atividades voltadas para o

sustento familiar. Vendem o pescado mais nos períodos da enchente e cheia, pois o peixe se torna

mais rentável comercialmente em virtude das necessidades e demandas do mercado consumidor de

Manaus e Manacapuru. Preço também elevado pelas dificuldades de captura das espécies devido

aos fatores naturais relacionados à esse período do ciclo das águas.

Eles também se reconhecem como agricultores, pois, na condição de posseiros, proprietários ou

arrendatário, lavram a terra, criam gado, cultivam espécies agrícolas e caçam. Nestas localidades, o

plantio da mandioca e sua posterior transformação em farinha é a principal fonte de renda das

famílias dos pescadores. Também cultivam algumas frutas, tais como, a banana, a castanha, a

melancia, o abacaxi, a laranja e a cana-de-açúcar que servem mais para a subsistência do que para

comercialização.

As três localidades também reúnem a presença dos pescadores artesanais, praticantes da pesca

comercial mais intensiva. Eles estão mais presentes na localidade Jaitêua de Baixo (66,7%) e Jaiteua

de Cima (39%), nesta última, porém, com menos freqüência. Estes trabalhadores dependem

exclusivamente da renda da pesca para viver, pois é a principal fonte de renda das famílias.

Na comunidade Santo Antonio (Jaiteua de Baixo) a situação de dependência exclusiva da pesca

comercial se mantém pelo fato das atividades agroflorestais e agropastoris e extrativistas serem

pouco estimuladas ao desenvolvimento. Isto se dá primeiramente, em virtude da rentabilidade

Page 13: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

13

imediata que o pescado proporciona quando comparado às outras atividades que querem mais tempo

de trabalho da unidade de produção familiar/camponesa.

Em segundo, pela fartura do peixe que é relativamente constante nos ambientes de pesca devido às

circunstâncias naturais favoráveis. Porém, tal fartura nem sempre é freqüente, pois depende da sorte

do pescador e sorte significa conhecimento e trabalho constante. Este contexto também é marcado

pela concorrência entre os pescadores da localidade, que por sua vez, envolve pescadores de

localidades vizinhas e todos em competição com os diversos agentes sociais da pesca – pescadores

citadinos e barcos geleiros – que apresentam níveis de concorrências elevadas e desiguais

socialmente.

Em terceiro, devido aos problemas políticos internos (relações de poder e valores tradicionais) que

pela força do hábitus inviabilizam processos de negociação, acordos e consensos entre os moradores

que possívemente viria a beneficiá-los.

Alguns pescadores artesanais das localidades vivem em condições precárias de trabalho, pois não

possuem todas as artes de pesca. Assim, se associam ou trabalham para outros pescadores

(citadinos ou barcos de pesca) que lhes oferecem todos os apetrechos de pesca necessários para a

captura dos peixes. O desfecho da associação ou do trabalho visa dividir o lucro com o dono dos

meios de produção que sempre saem beneficiados deste processo.

No campo de disputa pela apropriação dos ambientes aquáticos, a presença dos pescadores

citadinos é constante em territórios de pesca das localidades, por isso são denominados pelos

pescadores das diversas comunidades pelo rótulo: pescadores de fora.

Estes pescadores também conhecidos como pescadores citadinos (FURTADO, 1993) geralmente são

filiados a Colônia de Pescadores. Se consideram e são considerados profissionais. Alguns

pescadores possuem muitas artes de pesca, têm vasto conhecimento acerca do comportamento dos

peixes possibilitando-os capturar grande variedade de espécies.

Os pescadores das localidades que pescam comercialmente, raramente possuem um arsenal de

pesca semelhante aos pescadores citadinos, pois são diversos em tamanho, variedade e de preços

elevados.

Porém, é importante ressaltar que alguns destes agentes sociais vivem da sazonalidade de pesca.

Fora desta época praticam diversas atividades: são ajudantes de construção civil, trabalham em

fazenda, voltam para as comunidades de onde vieram. Porém outros trabalhadores desta categoria

assumem a profissão de pescador continuamente durante o ano. A questão é que ambos nem

Page 14: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

14

sempre são proprietários dos meios de produção. Alguns deles trabalham e vivem em condições de

subalternidade aos patrões – donos de barcos de pesca e atravessadores. As longas jornadas de

trabalho, a dependências dos meios de produção, a informalidade da atividade que é justificada pelo

não-registro da carteira de trabalho, os baixos salários e os múltiplos acordos, marcam a

precarização do trabalho e a péssima qualidade destes trabalhadores.

Neste contexto, verificou-se que estes trabalhadores são marginalizados e o rótulo “pescadores de

fora” deve ser problematizado em relação direta com os processos econômicos a que estão inseridos

local e globalmente. Caso contrário, corre-se o risco de estigmatizá-los como gananciosos, o que é

comum durante as concorrências pela apropriação do pescado.

Territórios de pesca

Os territórios de pesca das localidades apresentam especificidades relacionadas à fatores ecológicos

(ecossistêmicos) e geofísicos que são fundamentais para existência contínua de determinadas

espécies de peixes durante o ciclo hidrológico. Considerando às áreas de atuação dos pescadores

das comunidades, há locais de pesca que secam completamente, outros, se mantém em virtude

destas especificidades. Cada local de pesca têm valor de uso para o pescador, seja para subsistência

ou comercialização. Porém, há critérios políticos entre os pescadores que definem o uso destes

recursos. Nesse sentido, parafraseando Leonel (1998), não há problemas e obstáculos ecológicos

que não sejam obstáculos, primeiramente, políticos. O gráfico (2) destaca a relação ambientes,

práticas de pesca e período hidrológico.

Page 15: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

15

Gráfico 2 – Ambientes e práticas de pesca. Fonte: NUSEC, 2008.

O trabalho de campo em consonância com a leitura do gráfico permite destacar que o Paraná do

Anamã é o ambiente de pesca mais freqüentando pelos pescadores de subsistência e artesanais da

localidade Jaiteua de Cima no período da seca (70,3%). Neste período, não há proibição para pesca,

mas sim, acordos de pesca1 entre os pescadores das localidades2 para que não seja retirado o

pescado para comercialização, apenas para o consumo. Já para os pescadores citadinos ou para

aqueles que queiram pescar comercialmente, o acesso com essa finalidade geralmente ocasiona

conflitos de pesca, podendo ser manifestos como ocorreu em contextos pretéritos.

Estes acordos são estabelecidos, pois este ambiente é o lócus principal de manutenção da

subsistência das famílias durante a estiagem, o que não se atribui à outros ambientes de pesca, pois

secam totalmente. No restante do ano, a pesca pode ser praticada com freqüência neste local.

Os pescadores da localidade Cajazeira e Jaiteua de Baixo, mesmo em circunstâncias favoráveis para

locomoção, ou seja, em períodos de enchente/cheia, geralmente não pescam no Paraná do Anamã,

pois alegam a longa distância deste em relação às comunidades. No entanto, o obstáculo de acesso

ao recurso não é necessariamente o aspecto geográfico, pois este é um dos poucos lugares que

possibilita a pesca na época da seca. Entende-se que a territorialidade de pesca reivindicada pelos

1 Estes acordos de pesca são estabelecidos entre os pescadores e moradores das localidades pesquisadas visando o controle das práticas de pesca comercial em seus territórios de pesca em períodos de escassez do pescado. Estas regras convencionadas são caracterizadas como acordos de pesca informais, pois são estabelecidas fora do campo jurídico oficial e não legitimadas pelo órgão oficial de Estado competente: o IBAMA. É nestas circunstâncias que os conflitos são gerados envolvendo pescadores de fora. 2 Localidades envolvidas nos acordos informais: localidades Cajazeira, Jaiteua de Cima e Jaiteua de Baixo.

Page 16: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

16

pescadores da localidade Jaiteua de Cima funciona como prolongamento dos direitos de usos das

suas territorialidades agropastoris, agroflorestais e extrativistas em consonância com processos

histórico-sociais de ocupação antigas e recentes (MASULO, 2007). Neste sentido, há uma espécie de

imperativo ético perpassando entre os agentes sociais que pescar lá para os pescadores das outras

localidades, significa adentrar nos ambientes de pesca dos moradores do Jaiteua de Cima,

O Lago do Jaiteua e o Lago Grande muito mencionados pelos pescadores das localidades Jaiteua de

Cima e Jaiteua de Baixo, são freqüentados em todo período do ciclo das águas, principalmente na

vazante, enchente e cheia, pois são ambientes que não secam totalmente em períodos de estiagem –

seca (vemos no gráfico relativo equilíbrio de uso). No entanto, havendo ocorrência da seca, é

estabelecido acordos entre os pescadores das localidades para que não haja pesca comercial com

muita intensidade. Estes acordos são necessários para garantir a o sustento das famílias das

comunidades.

Estas restrições “estabelecidas” entre os pescadores abrem possibilidades de uso de outros

ambientes de pesca, como é o caso da RDS Piranha3, local em destaque no gráfico por representar

os períodos da enchente e cheia, que, juntos, correspondem aproximadamente 90% de freqüência de

uso; períodos de maior rentabilidade do pescado.

Embora seja Reserva de Desenvolvimento Sustentável, é apropriada de maneira não oficializada

comercialmente, servindo de alternativa viável para prática da pesca comercial e de subsistência em

todos os períodos do ciclo hidrológico mediante à negociação com as lideranças das comunidades da

reserva e “escapando aos olhos” da fiscalização do IBAMA.

Segundo os pescadores das localidades Jaiteua de Baixo, Jaiteua de Cima e Cajazeira, as

possibilidades de acesso e uso da RDS Piranha no período da seca também ocorre. Esta condição é

possível através de instrumentos legais de comunicação entre a Prefeitura de Manacapuru, o IBAMA

(órgão coordenador e fiscalizador) e as lideranças das comunidades que se encontram no interior da

RDS. O motivo da permissão de acesso se dá em virtude do alto índice de mortandade de peixes em

diversos lagos da RDS neste período. Para não haver estragos desnecessários, a liberação e

concedida.

3 Reserva de Desenvolvimento Sustentável situada próxima às localidade Jaiteua de Cima e Jaiteua de Baixo. Sua titulação é oficial perante o Governo Federal e o IBAMA. Na época de sua criação não houve a participação oficial das localidades na definição dos seus limites geográficos e nem o esclarecimento dos benefícios e prejuízos aos moradores em face a essas determinações.

Page 17: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

17

As críticas dos pescadores das localidades que não tem acesso livre à RDS não correspondem a

este período, pois é obvio a necessidade de captura dos peixes em face às condições e fatores

naturais que obrigam as instituições públicas e órgãos oficiais de Estado a reverem restrições de

acesso e uso.

A questão que os pescadores colocam, é o impedimento de entrada à RDS em outros períodos do

ciclo hidrológico (enchente/cheia) alegando serem prejudicados pelas restrições de acesso e uso

previstas em lei, uma vez que denunciam o favorecimento e interesse de outros grupos sociais que

ganham dinheiro com está condição. Observam que as delimitações geográficas oficiais impostas às

comunidades não cobertas pelas dimensões da RDS Piranha fragilizam o exercício territorial da

pesca. Fato que gera diversos conflitos.

Esta situação que limita a prática territorial da pesca, se tornou mais insustentável pelos avanços dos

campos de gado que destruiu as matas ciliares da comunidade Nossa senhora Aparecida, Cajazeira

e pelo aumento da pesca comercial em ambientes de uso controlado pelas comunidades Santa Izabel

e Assembléia de Deus Tradicional (Jaiteua de Cima) e Santo Antonio (Jaiteua de Baixo). Neste

sentido, a pesca “negociada” beneficia uma minoria que participa do processo de “apropriação não

oficial” da RDS Piranha e o restante das comunidades das localidades Jaiteua de Baixo, Jaiteua de

Cima e Cajazeira ficando de fora.

Os pescadores também alegam que a quebra destas regras de uso da RDS Piranha tanto formais

quanto informais podem ocasionar, através da intervenção fiscal ou do “policiamento” dos pescadores

e das lideranças comunitárias da reserva, a perda dos utensílios de pesca, de serem excluídos da

associação de pescadores – da Colônia de Pescadores de Manacauru – e, como conseqüência, a

perda do salário defeso, cujo valor afirmam ser baixo demais para deixar a prática da pesca

totalmente no período de defeso.

Neste contexto de disputa pelos recursos naturais, cabe citar a experiência do Programa

PYRÁ4/UFAM nas Fabré (2003, p. 131),

O conflito pelos recursos naturais não desaparecerá, é pouco provável que se crie uma solução permanente, haja vista a dinâmica social e ambiental em torno dessas questões. Esta afirmação está plenamente inserida no contexto da experiência na condução das discussões participativas realizadas pelo PYRÁ. Nesse sentido pensamos que os instrumentos de co-gestão5 como os acordos de pesca estarão

4 Programa Integrado de Recursos Aquáticos e da Várzea. Programa de estudo e pesquisa interdisciplinar que envolve pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas/UFAM. Desde sua criação até 2006 esteve sob a coordenação dos pesquisadores Vandick da Silva Batista e Nídia Noemi Fabré, ambos Eng. de pesca. 5 IBAMA, Instrução normativa n. 29 de 31 de dezembro de 2002.

Page 18: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

18

destinados ao fracasso se não houver agentes externos para acompanhar e induzir a equidade no uso dos recursos naturais sempre que necessário.

Considerações finais

O discurso implementado pelas forças capitalistas traz uma reflexão que de fato negou a

incompatibilidade entre o ambiente e o crescimento. O discurso carrega elementos opostos entre a

falácia do desenvolvimento sustentável e as condições de crescimento por não evidenciar os conflitos

sociais. Enquanto a incorporação da natureza for instrumentalizada pela ampliação do capital com

vistas de calculabilidade monetária, enquanto negar a oposição, a contradição e diferenças às

alternativas ecológicas e socialmente justas opostas às estruturas econômicas vigentes, os discursos

continuarão a reproduzir-se.

Neste sentido, como alternativa e substituição às monoculturas das ausências (SANTOS, 2006),

típicas dos projetos desenvolvimentistas clássicos implementados pelos governos nos últimos anos

para Amazônia Central, observou-se que o conhecimento dos pescadores de subsistência e

pescadores artesanais das localidades são fundamentais para pensar o manejo dos recursos

pesqueiros com vistas à manutenção conjunta dos recursos naturais – terra, floresta e água

(Witkoski, 2007). Haja vistas as iniciativas dos acordos informais estabelecidas pelas localidades

Jaiteua de Baixo, Jaiteua de Cima e Cajazeira como motivação ante aos fatores naturais que são

inevitáveis, mas sobretudo, em relação à pesca predatória, a qual vem crescendo em ritmo acelerado

contemporaneamente.

Agradecimentos

A realização deste trabalho foi possível com apoio financeiro e técnico das equipes sub-redes PPG7

e PIATAM. Agradeço à PETROBRÁS pelo apoio financeiro, logístico e transporte. À FINEP pelo

apoio financeiro. E aos trabalhadores da pesca, pelo acesso de um estranho em suas vidas

laboriosas e de sabedorias.

Referencias bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. O Desencantamento do Mundo: Estruturas Econômicas e Estruturas Temporais. São Paulo: Editora Perspectiva S/A, 1979

Page 19: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

19

________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

CUNHA, Lúcia Helena de Oliveira. Tempo natural e tempo mercantil na pesca artesanal. In.: Diegues, Antonio Carlos (Org.). A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, NUPAUP/USP, 2000CASTRO, Edna; PINTON, Florence (Orgs.). Faces do trópico úmido: conceitos e novas questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Belém: Cejup: UFPA-NAEA, 1997.

FRAXE, Therezinha de Jesus. Homens Anfíbios: etnografia de um campesinato das águas. São Paulo: Anablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto do Governo do Estado do Ceará, 2000.

FURTADO, L. G. Pescadores do rio Amazonas: um estudo antropológico da pesca ribeirinha numa área amazônica. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1993.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora LTC. Coleção Antropologia Social, 1989.

GODELIER, M. A parte ideal do real. In: CARVALHO, E. A. (org). Godelier. São Paulo. Ática. 1981.

HAGUETE, T. M. Metodologias qualitativas na sociologia. Petrópolis: Vozes, 2000.

JUNK, W.J. Águas da Região Amazônica. In: SALATI, E. (Org.). Amazônia, Integração, Desenvolvimento e Ecologia. São Paulo, Brasiliense, 1983.

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Técnicas de Pesquisa. 5 ed; São Paulo: Atlas, 2002.

LEFF, E. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Tradução de Jorge Esteves da Silva. Blumenal: FURB, 2000.

LITTLE, P.C. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade, Brasília:UNB, 2002.

MALDONADO, Simone Carneiro. Mestres e Mares: espaço e indivisão na pesca marinha. São Paulo: ANNABLUME, 1993. (Selo Universidade; 7).

MASULO, M. J. Rios e Lagos: apropriação das águas pelos camponeses-ribeirinhos na Amazônia. In.: BRAGA, Sergio I.G. Cultura popular, patrimônio material e cidades. Manaus: EDUA, 2008.

LEONEL, Mauro. A morte social dos rios. São Paulo: Perspectiva: Instituto de antropologia e Meio Ambiente: FAPESP, 1998.

WITKOSKI, A.C. Terras, Florestas e Águas de Trabalho: os camponeses amazônicos e as formas de uso dos seus recursos naturais. Manaus: Edua, 2007.

OLIVEIRA, J.A. Cidades, rios e floresta: raízes fincadas na cultura e na natureza. In.: BRAGA, Sérgio I.G. Cultura popular, patrimônio material e cidades. Manaus: EDUA, 2008. SANTOS, B. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

Page 20: IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 ... · assim quando rio tá mais cheio. E quando tá cheio, o peixe que eu gosto de vender, assim que eu pesco pra mim vender

IV Encontro Nacional da Anppas4,5 e 6 de junho de 2008Brasília - DF – Brasil_______________________________________________________

20

FABRÉ, Nídia Noemi; RIBEIRO, Maria O. A. Sistemas Abertos Sustentáveis – SAS: uma alternativa de gestão ambiental na Amazônia. Manaus: EDUA, 2003.