introdução - repositório ufmg: home · 2019-11-14 · 10 introdução o objeto de estudo desta...

331
10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais do país que estabeleceram alguns dos modos fundantes de compreensão desse regime. Se é bem verdade que a consolidação acadêmica da Ciência Política proporcionou um profundo avanço na compreensão das diversas dimensões da democracia brasileira (através de estudos rigorosos e sofisticados, no que tange aos métodos e resultados de investigação, voltados precipuamente para a empiria), consideramos, todavia, que ainda não logramos integrar esses estudos com uma perspectiva histórica de longa duração, que avalie o processo inconcluso de formação de nossa democracia, e em que a compreensão da dimensão institucional da política não esteja dissociada da sua dimensão cultural. Precisamente por isso, nos voltamos para algumas das principais interpretações da democracia brasileira, forjadas na segunda metade do século XX; não porque julgamos que os trabalhos formulados pelo mainstream da Ciência Política sejam menos importantes do que essas interpretações, mas porque consideramos ser necessário fortalecer o diálogo crítico entre essas interpretações e esse campo epistêmico. Assim, a análise de obras de intelectuais brasileiros, tais como os estudados aqui Raymundo Faoro, Celso Furtado, Wanderley Guilherme dos Santos e Fernando Henrique Cardoso , que criaram tanto uma interpretação macro-histórica da democracia no país (de seus avanços e impasses), quanto uma linguagem política enraizada no debate e na prática dos atores e dos grupos políticos, pode indicar uma nova perspectiva para Ciência Política, isto é, mais atenta às mediações entre as dimensões “teórica” e “prática” da política, e entre as tradições intelectuais, a cultura política e a realidade vigente no Brasil hodierno. Antes de passar a exposição do caminho desta tese, cumpre considerar alguns elementos da formação da democracia brasileira. É Wanderley Guilherme dos Santos (1998) que chama a atenção para um aspecto frequentemente negligenciado pela Teoria Política 1 , qual seja, o caráter bastante recente da democracia no mundo. Rigorosamente falando, lembra ele, até a última década do final do século XIX, isto é, até a extensão dos direitos políticos às mulheres, não existiam democracias no planeta. Os países comumente identificados como democráticos eram, a rigor, oligarquias, na medida em que aqueles que podiam participar do poder político, ou como candidatos aos mandatos, ou como eleitores (sabendo que esses dois grupos não são idênticos), não 1 Optamos por grafar com letras iniciais maiúsculas todos os nomes que designam áreas ou campos do conhecimento científico debatidos nesse trabalho para diferenciar de seu uso comum.

Upload: others

Post on 25-Jul-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

10

Introdução

O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e

debatida pelos intelectuais do país que estabeleceram alguns dos modos fundantes de

compreensão desse regime.

Se é bem verdade que a consolidação acadêmica da Ciência Política proporcionou um

profundo avanço na compreensão das diversas dimensões da democracia brasileira (através de

estudos rigorosos e sofisticados, no que tange aos métodos e resultados de investigação,

voltados precipuamente para a empiria), consideramos, todavia, que ainda não logramos

integrar esses estudos com uma perspectiva histórica de longa duração, que avalie o processo

inconcluso de formação de nossa democracia, e em que a compreensão da dimensão

institucional da política não esteja dissociada da sua dimensão cultural.

Precisamente por isso, nos voltamos para algumas das principais interpretações da

democracia brasileira, forjadas na segunda metade do século XX; não porque julgamos que os

trabalhos formulados pelo mainstream da Ciência Política sejam menos importantes do que

essas interpretações, mas porque consideramos ser necessário fortalecer o diálogo crítico entre

essas interpretações e esse campo epistêmico. Assim, a análise de obras de intelectuais

brasileiros, tais como os estudados aqui – Raymundo Faoro, Celso Furtado, Wanderley

Guilherme dos Santos e Fernando Henrique Cardoso –, que criaram tanto uma interpretação

macro-histórica da democracia no país (de seus avanços e impasses), quanto uma linguagem

política enraizada no debate e na prática dos atores e dos grupos políticos, pode indicar uma

nova perspectiva para Ciência Política, isto é, mais atenta às mediações entre as dimensões

“teórica” e “prática” da política, e entre as tradições intelectuais, a cultura política e a

realidade vigente no Brasil hodierno. Antes de passar a exposição do caminho desta tese,

cumpre considerar alguns elementos da formação da democracia brasileira.

É Wanderley Guilherme dos Santos (1998) que chama a atenção para um aspecto

frequentemente negligenciado pela Teoria Política1, qual seja, o caráter bastante recente da

democracia no mundo. Rigorosamente falando, lembra ele, até a última década do final do

século XIX, isto é, até a extensão dos direitos políticos às mulheres, não existiam democracias

no planeta. Os países comumente identificados como democráticos eram, a rigor, oligarquias,

na medida em que aqueles que podiam participar do poder político, ou como candidatos aos

mandatos, ou como eleitores (sabendo que esses dois grupos não são idênticos), não

1 Optamos por grafar com letras iniciais maiúsculas todos os nomes que designam áreas ou campos do

conhecimento científico debatidos nesse trabalho para diferenciar de seu uso comum.

Page 2: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

11

constituíam a maior parte da população adulta.

Se nos países com tradição democrática mais “antiga”, como alguns da Europa

Ocidental e principalmente nos Estados Unidos, essa história já é, portanto, menor do que

usualmente se supõe, o que se dirá do caso brasileiro? A democracia brasileira é não apenas de

formação tardia, como também o são as linguagens e conceitos criados para dela tratar. Ex-

colônia de exploração de Portugal e maior país escravocrata do mundo moderno, o Brasil

ainda ficou fortemente marcado (entre outros de nossos traços antidemocráticos) pelos

interregnos autocráticos já em nossa recente história republicana. Deve-se lembrar que mesmo

o fim do regime monárquico se deu por aqui mediante um golpe militar, apoiado pelas

oligarquias escravagistas inconformadas com a abolição da escravatura aprovada pelo Império

(LYNCH, 2012, p. 282). Sobre o caráter incipiente da democracia brasileira, José Álvaro

Moisés reitera o argumento com igual propriedade:

(...) em mais de um século de regime republicano, os brasileiros

experimentaram as virtudes do regime democrático em apenas dois períodos

de duas décadas cada, ou seja, entre 1945 e 1964 e, mais recentemente, entre

1988 até o presente. Fora desses curtos períodos de tempo, predominaram no

país, durante a maior parte do século XX, sistemas políticos oligárquicos,

autoritários ou semi-liberais que, por definição, não asseguravam as

liberdades fundamentais, a competição política, participação popular ou os

direitos de cidadania. Em uma perspectiva temporal longa, portanto, a

democracia é um fenômeno relativamente novo no Brasil e, ao mesmo

tempo, frágil e descontínuo na experiência política dos brasileiros (2010, p.

270).

O mais recente dos períodos autoritários, iniciado com o golpe civil-militar de 1964,

durou vinte e um anos e deixou consequências indeléveis no país.2 Esses traços de nosso

passado autoritário mantêm-se atuais em nosso cotidiano precisamente por causa da transição

ocorrida para a democracia a partir da década de 1970. Longe de ter constituído uma ruptura

com o passado autocrático e uma refundação plenamente democrática do Estado brasileiro

(haja vista, entre outros fatores, as condições de autonomia parcial da Assembleia Constituinte

de 1987, a sucessão presidencial comandada por líderes do regime anterior, etc.), nosso

processo de “democratização” foi corretamente caracterizado pela literatura especializada

como uma transição negociada. Mais uma vez, as reflexões de Moisés sobre os impactos do

regime autoritário na cultura brasileira são dignas de destaque:

Entre nós, a democratização resultou de iniciativas de liberalização de

dirigentes do antigo regime seguidas de negociações com as lideranças

2 Toda a recente polêmica em torno à instauração da Comissão da Verdade, órgão que tem como

responsabilidade apurar os crimes políticos cometidos durante a ditadura militar, contando inclusive com

declarações públicas de insubordinação de certos militares em relação à presidenta da República e aos seus

ministros, ilustra o ponto em discussão.

Page 3: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

12

democráticas, mas o seu primeiro presidente civil foi escolhido pelo

Congresso Nacional segundo regras estabelecidas pelos governos militares.

Essa ambiguidade marcou a fase final de transição, e a votação da

Constituição de 1988 foi fortemente influenciada tanto por manobras de um

presidente egresso do autoritarismo, como por pressões dos militares em

torno de disputas sobre o tempo do mandato presidencial, o sistema de

governo, as relações entre o Legislativo e o Executivo e o papel do Estado na

economia (MOISÉS, 2008, p. 19).

Aspásia Camargo também destaca “a linha de continuidade com o regime anterior, e a

incapacidade crônica de promover efetivas mudanças” do novo regime (1989, p. 32),

enumerando diversos pontos de conflito não solucionados pela transição. Discordando

daqueles que veem o Estado brasileiro pós-redemocratização como excessivamente forte, a

autora alerta para a ausência de instituições estatais modernas e eficazes (nesse sentido,

“fracas”), capazes de prover à população os serviços públicos necessários, problema esse que

já se verificava no período autoritário. A autora defende, então, a necessidade não de se

reduzir o Estado, como propugnam alguns teóricos do neoliberalismo, mas de “minimizar o

Estado em suas funções obsoletas e irrelevantes” e “maximizá-lo em suas funções

prioritárias” (CAMARGO, 1989, p. 34). Mais grave do que esse legado do período

autoritário, diz ela, é a ausência de uma cultura democrática entre as elites brasileiras, ciosas

das máquinas tradicionais de poder, e também entre o povo que, em condições precárias de

subsistência, tende a dar prioridade às políticas substantivas adotadas, em detrimento de seu

conteúdo democrático.

A dificuldade final, mas decisiva, resulta da precariedade dos valores

democráticos na cultura política brasileira. As elites empresariais, em

geral hostis a políticas redistributivas, preferem sistemas de autoridade mais

concentrada, onde seu poder e influência se exercem de maneira mais direta

e eficaz. (...) E as massas populares – em estado crônico de carência –

continuam ainda, como nos tempos de Vargas, dando prioridade às políticas

substantivas (...) isso significa que legitimarão apenas uma democracia

operante, podendo eventualmente subestimar os males do autoritarismo

(idem, ibidem, p. 56, ênfases da autora, grifos nossos).

Renato Lessa diverge em parte da interpretação canônica descrita em termos de um

“pacto negociado” entre civis e militares, preferindo interpretar mais radicalmente que muitas

mazelas do regime democrático brasileiro decorrem, a rigor, da inexistência de qualquer

“pacto substantivo” feito à época. Mais preocupados em conseguir adesões para derrotar a

aliança autoritária na década de 1970, a dinâmica brasileira teria sido incapaz de completar o

processo de transição rumo à democracia, descrito pelo autor como um verdadeiro “negócio”

(LESSA, 1989).

O autor argumenta, no entanto, que a questão decisiva não foi exatamente o tipo de

Page 4: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

13

transição. A Espanha, esclarece ele, também foi marcada por um processo de

redemocratização “negociada”, ou de “transição por transação”, liderado por elites e

instituições oriundas do regime autoritário, mas não os condenou a “gerar um regime e um

governo de fisionomia anódina” (idem, ibidem, p. 65), conseguindo produzir um cenário

político de expiação do passado franquista e, ao mesmo tempo, de profundas transformações

substantivas e procedimentais. O autor conclui caracterizando em termos fortes nossa

transição como um “republicídio”, na medida em que a coalizão responsável por ele,

centralizada na Assembleia Constituinte, se deu sem coalização alguma com o demos, numa

negociação “intramuros” (extirpada de pactos substantivos), entre a polis (o Congresso

Nacional) e o governo (o Executivo federal).

Expressão paradigmática desse “desencontro” entre povo, poder Executivo e

Congresso Nacional é que enquanto vivíamos em 1985 um momento de intenso

republicanismo, ou seja, de participação e ocupação popular no espaço público (com a

campanha das “Diretas Já”), “operava-se uma negociação congressual que acabou por impor-

se como decisiva na transição para a Nova República” (idem, ibidem, p. 66). Ele arremata seu

argumento: “O autismo parlamentar e o basismo societário protagonizaram uma transição

desencontrada” (idem, ibidem, p. 66, grifos nossos).

Outro aspecto importante desse processo de redemocratização foi a constituição de

modelos teóricos a fim de se pensar as perspectivas e os limites da transição. Leonardo

Avritzer avalia as chamadas "teorias da transição para a democracia”, muito em voga no final

do século passado. Em geral, elas compreendem o autoritarismo como uma interrupção

provisória da democracia, sendo ele marcado precipuamente pelo poder de veto às decisões

democráticas. A redemocratização, desta feita, se limitaria à passagem do sistema autoritário

para o sistema democrático, tendo se completado quando tais vetos não são mais possíveis.

Todavia, tais teorias se mostram inócuas quando elas têm de explicar porque mesmo depois de

reestabelecidas as instituições políticas da democracia (direito de voto, direitos civis,

competição partidária e eleitoral, etc.), certos traços do autoritarismo permanecem presentes

na vida política do país, como acentuam com propriedade Camargo e Lessa acima citados.

Ao mesmo tempo em que as democratizações da América Latina e da

Europa do Leste consagraram as teorias da transição para a democracia

como a mais bem-sucedida abordagem acerca do assunto, elas colocaram um

paradoxo para tais teorias. Tal paradoxo poderia ser enunciado nos seguintes

termos: como seria possível que o autoritarismo constituísse apenas um

veto à livre coordenação da ação política e que, ao mesmo tempo,

características de uma ordem política autoritária permanecessem no

sistema político mesmo após a retirada desse veto? (AVRITZER, 1995, p.

Page 5: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

14

109, grifos nossos).

Contra a visada das “teorias da transição”, assumimos que a compreensão do processo

de consolidação da democracia requer atenção tanto à institucionalidade política (dimensão

tradicionalmente enfatizada por elas) quanto à formação dos valores e das intersubjetividades

que vigoravam e que subsistem hoje no país. Como pontua esse autor, nosso processo de

“transição” contribuiu para que nós convivêssemos no país com duas culturas, uma

antidemocrática (ou autoritária) e outra democrática, emergente. É como um processo de

formação inconclusa, que interpretamos a democracia brasileira no século XXI.

Sobre esse ponto, nos parecem muito instigantes os estudos de Moisés sobre a cultura

política brasileira.3 Embora o autor constate que, hoje, a democracia tornou-se a opção

política mais importante na América Latina (53%), ele alerta para o fato de que o Brasil está

entre os três países com índice mais baixo dessa porção do continente (40%). Mais importante

do que esse dado, todavia, é o elevado número de “ambivalentes” (54%), quer dizer, de

cidadãos brasileiros que apesar de preferirem a democracia a outros regimes políticos, não

aderem a ela como “the only game in town” (MOISÉS, 2008, p. 23). Assim, muitos

brasileiros, por exemplo, acham que intervenções militares são justificáveis para solucionar

problemas econômicos agudos, e mesmo entre os que preferem o regime democrático, há

muitos que desconfiam fortemente de várias instituições fundamentais para seu

funcionamento. Comparados aos cidadãos de outras nações latino-americanas que também

vivenciaram experiências negativas com regimes autocráticos, os brasileiros são mais

favoráveis a “regimes que excluem o parlamento e os partidos políticos” e “tem mais chances

de considerar que a democracia não corresponde às expectativas criadas durante o longo

processo de democratização” (idem, ibidem, p. 35). Conclui Moisés: há no país um forte gap

entre o ideal democrático e a prática democrática; esse hiato não está diminuindo com o

passar dos anos; e ele indica que os cidadãos não concebem os seus direitos de participação e

representação política como canais eficientes para enfrentar problemas como crises

econômicas e a corrupção.

Obviamente que as conclusões do autor poderiam ser relativamente diferentes, embora

referidas aos mesmos dados, pois elas tendem a ressaltar uma suposta “deficiência cívica” na

cultura brasileira, ao passo que seria possível interpretar esses dados como expressão de um

mau funcionamento dessas instituições, e não necessariamente um problema dos valores

3 O estudo citado a seguir baseia-se em dados coletados pelo Consórcio Latinobarômetro entre 2002 e 2004.

Page 6: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

15

morais dos cidadãos. Ao invés de um gap entre prática e cultura política, poder-se-ia

argumentar em favor de uma carência de efetiva representação dos interesses dos brasileiros.

De qualquer modo, parece-nos mais razoável compreender que o bom funcionamento

institucional não está separado da cultura política de um povo (antes dela também depende),

do mesmo modo que a cultura política brasileira vem sofrendo impacto pela vigência de

instituições democráticas há mais de duas décadas (como indicam os mesmos estudos de

Moisés).

Assim, dada a alta complexidade das variáveis culturais e institucionais em jogo e da

relação entre elas, a redemocratização não pode ser vista simplesmente como um processo em

que os atores deixam de vetar a livre competição pelo poder, na medida em que,

supostamente, isso não corresponde mais aos seus interesses. As “teorias da transição”

ignoram que os processos em curso em um sistema político não se resumem às ações

estratégicas de maximização de interesses individuais em situação de conflito, mas supõe

também uma disputa por valores. O pressuposto da racionalidade econômica presente nessas

análises implica, com frequência, no tratamento marginal e simplificador da cultura política.

As mencionadas teorias se equivocam igualmente ao abordar esse processo numa

perspectiva de curta duração: findados os vetos autoritários, o país ingressaria,

automaticamente, na democracia. É preciso tratar a democratização do país numa perspectiva

diacrônica de longo prazo, no qual se observa (ou não) a consolidação tanto dos aspectos

institucionais quanto dos culturais de uma sociedade democrática, ou mesmo a emergência de

uma cultura política ambígua, como descrevem Avritzer e Moisés.

Obviamente que as diversas considerações e ressalvas feitas até aqui sobre o contexto

adverso de refundação democrática devem ser matizadas com o reconhecimento inequívoco

dos avanços da democracia brasileira. Não apenas a Carta constitucional de 1988 contribuiu

positivamente na dimensão institucional (dos direitos da cidadania e da participação popular,

sobretudo), como a sociedade brasileira modificou-se bastante (por exemplo, expressando um

substancial ativismo da sociedade civil a partir dos anos de 1980), e mesmo a cultura

democrática nacional passou por alguns avanços. Como se viu, Moisés constata que a

preferência pela democracia no Brasil aumentou significativamente de 1989 a 2006, tornando-

se, destarte, majoritária. Além de ser um valor compartilhado pela maioria, as pesquisas

revelam que “a maior parte dos brasileiros é capaz de definir a democracia em termos que

envolvem duas das mais importantes dimensões do conceito, isto é, por um lado, o princípio

de liberdade e, por outro lado, os procedimentos e estruturas institucionais” (MOISÉS, 2010,

Page 7: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

16

p. 301), tais como eleições livres e idôneas, pluripartidarismo, etc.

Entretanto, é evidente que a adesão democrática e a crescente capacidade de

compreensão política do povo brasileiro não eliminam as ambiguidades e contradições

inerentes a esse processo. Como explicar, por exemplo, que a despeito desses pontos

positivos, a maior parte dos brasileiros ainda desconfie intensamente das instituições

democráticas em geral (dos partidos políticos, do Congresso Nacional e do Judiciário) e

confie, sobretudo, em instituições hierárquicas e não democráticas, tais como a Igreja e as

Forças Armadas? O aparente paradoxo, talvez, possa ser parcialmente solucionado na medida

em que incorporamos uma compreensão da democratização como processo histórico

inconcluso, não linear, de longo prazo e que envolve tanto os aspectos institucionais quanto os

culturais.

Em resumo, o processo de fundação da democracia no Brasil, iniciado formalmente a

partir do final da década de 1970, consistiu não apenas na conciliação de interesses entre os

diversos setores civis e entre os diversos setores militares, mas também na disputa sobre que

valores moldariam a democracia a ser criada, quer dizer, que tipo de democracia deveria

substituir o regime autoritário. A disputa normativa sobre a democracia fez parte desse

momento crucial da história do país.

É preciso ter muita clareza que não se trata apenas de duas possibilidades –

democracia versus autoritarismo –, precisamente porque cada um desses termos é

eminentemente polissêmico, podendo implicar em projetos políticos totalmente distintos.

Mesmo havendo certo consenso acerca da desejabilidade da democracia face à experiência

autoritária do passado, é evidente a discordância existente entre os atores políticos na

definição de quais valores, doravante, orientariam essa democracia a ser criada, discordância

essa que tendeu a aumentar na medida em que o passado autoritário ia, supostamente,

“ficando para trás”. Do mesmo modo, muitas e divergentes eram as “estratégias” consideradas

como mais adequadas para realizar a transição do autoritarismo para a democracia no país.

Por ora, cumpre reter que o aparente consenso democrático é estabelecido por antagonismo ao

regime autoritário, particularmente, ao governo militar instaurado a partir de 1964. Quer dizer,

é contra uma tradição autoritária brasileira, considerada como bastante influente em nossa

história política, que aos poucos se forma uma cultura democrática no país.

Boris Fausto caracteriza o autoritarismo como uma tradição de pensamento e prática

política que desponta no mundo após a Primeira Guerra Mundial e se consolida após a crise

econômica de 1929.

Page 8: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

17

No caso de um país periférico como o Brasil, a emergência de ideias

autoritárias se deu, nos anos 1920, na vigência de um regime oligárquico-

liberal, que ganhou forma com a proclamação da República. O liberalismo

foi associado às práticas oligárquicas, que pressupunham a fraude eleitoral, a

escassa participação política da população e o controle do país pelos grandes

estados, enfraquecendo o poder da União (FAUSTO, 2001, p. 14).

A fim de se evitar equívocos, é preciso diferenciar um regime autoritário de um

regime despótico ou tirânico, experiências já datadas desde a Antiguidade. O primeiro é

justificado como uma necessidade histórica de fortalecimento do Estado, sobretudo do poder

Executivo. Nessa direção, vários intelectuais do país não apenas defenderam, mas ajudaram a

formar um culto à figura do “presidente-ditador”, contra a organização da sociedade mediante

os partidos políticos e o parlamento. Autoritarismo, portanto, é precipuamente uma doutrina

antiliberal, que no caso brasileiro, se contrapunha historicamente à experiência da Primeira

República, denunciando o artificialismo das instituições introduzidas no país e fazendo o

elogio da centralização política imperial, sobretudo por meio do Poder Moderador.

Assumindo a prioridade do princípio da ordem sobre o da liberdade, os autoritários brasileiros

são também fortemente contrários à mobilização das massas para a promoção das mudanças

necessárias, diferenciando-se, dessarte, dos totalitários que, a partir do século XX, defendem

um movimento político de massas. É o poder do Estado, na figura do Executivo, que deve

promover “de cima para baixo” as transformações necessárias ao país que, na opinião dos

principais intelectuais autoritários brasileiros, consistiam principalmente em garantir a

unidade da nação. Nem tirania, nem totalitarismo, mas um regime autoritário, marcado pela

presença de um rei ou presidente capaz de educar e disciplinar as massas apáticas para uma

vida civilizada: eis o parâmetro geral de nossos autoritários, diz Fausto.

Apesar de remontar à nossa primeira experiência republicana, cabe notar que a

tradição autoritária brasileira só se tornou um objeto de estudo científico mais tardiamente,

durante o último período ditatorial, período no qual, como afirmamos anteriormente, se

estabelece um relativo consenso sobre a necessidade de se democratizar o país.

Nesse sentido, é mister recordar aqui os primeiros e principais estudos sobre o

autoritarismo brasileiro. Um deles é Ideologia autoritária no Brasil (1930-1945). Compilando

uma série de artigos publicados na década de 1970, Jarbas Medeiros, avalia a obra de cinco

pensadores decisivos, ainda que não os únicos, dessa tradição: Francisco Campos, Oliveira

Vianna, Azevedo Amaral, Alceu Amoroso Lima e Plínio Salgado. Se o trabalho de Medeiros

tem o mérito de ter chamado a atenção dos estudiosos para esse tema, no sentido de

considerar seriamente a tradição de pensamento autoritária (em um momento em que

Page 9: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

18

certamente tratar de autoritarismo era uma tarefa politicamente suspeita), elencando um

conjunto de intelectuais que, doravante, seriam frequentemente revisitados (inclusive pelo

trabalho supracitado de Fausto), ele não propõe, todavia, uma interpretação geral dessa

tradição e de sua relação com a realidade brasileira.

Outros dois trabalhos foram importantes no sentido de consolidar a delimitação dessa

tradição intelectual e política, também eles publicados aproximadamente na mesma época. O

primeiro é o de Wanderley Guilherme dos Santos (1978) que versa particularmente sobre a

obra de Oliveira Vianna, um dos maiores expoentes dessa tradição, interpretando-a como

expressão de um “autoritarismo instrumental”.4 Quer dizer, de acordo com Santos, a defesa

autoritária da centralização do poder do Estado como meio necessário de consolidar a nação

brasileira, contra o poder clânico e privado dos senhores de terra, não constituiria um fim em

si mesmo, mas estava condicionada à criação a posteriori de uma “ordem burguesa” no Brasil.

Ao contrário da obra de Medeiros, Santos propunha, como se vê, uma interpretação clara

sobre o nosso autoritarismo: consistiria ele, em geral, numa forma de análise realista e numa

adesão apenas instrumental à centralização política, dada as condições desfavoráveis do país

para a criação de uma sociedade liberal.5

No mesmo ano de 1978, Bolívar Lamounier publica um texto que também se tornaria

canônico para os estudiosos do autoritarismo brasileiro: “Formação de um pensamento

político autoritário na Primeira República”. Nele, o autor ataca frontalmente a interpretação

de W. G. dos Santos, afirmando que a imputação por esse intérprete de um desejo de adoção

de uma “ordem burguesa” aos intelectuais autoritários é completamente arbitrária. Lamounier,

então, propõe uma caracterização genérica desses autores como defensores de uma “ideologia

de Estado”, que buscava “conceituar e legitimar um sistema ideológico orientado no sentido

de conceituar e legitimar a autoridade do Estado como princípio tutelar da sociedade”

(LAMOUNIER, 1978, p. 356). Essa ideologia se define pela presença das seguintes ideias:

1) predomínio do princípio “estatal” sobre o princípio de “mercado”; 2)

4 Não é o caso de avaliar a interpretação de Santos da obra de O. Vianna neste espaço, ela mesma já antes

criticada. Todavia, não é demais destacar alguns traços do pensamento de Vianna não se conciliam com seu

suposto “liberalismo de fundo” ou “autoritarismo instrumental”, tais como: 1) sua concepção orgânica de

sociedade, recusando o primado do indivíduo e dos seus interesses; 2) a defesa da concentração de poder, tal

como vivenciada nas experiências do Segundo Reinado e do Estado Novo, ambos elogiados explicitamente

pelo autor; 3) seu ideário avesso ao mercado que vê na expansão do modo burguês uma ameaça às

instituições tradicionais, etc.. Sobre a obra de Vianna, é importante consultar, sobretudo, O pensamento de

Oliveira Vianna (BASTOS & MORAES, 1993). 5 Embora não faça nenhuma menção a esse importante trabalho, o estudo de Fausto recorre com frequência à

ideia de que alguns dos pensadores brasileiros assumem o autoritarismo apenas instrumentalmente, isto é,

como uma “necessidade histórica” e uma imposição da conjuntura nacional das quatro primeiras décadas do

século XX (2001).

Page 10: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

19

visão orgânico-corporativa da sociedade; 3) objetivismo tecnocrático; 4)

visão autoritária do conflito social; 5) não organização da sociedade civil; 6)

não mobilização política; 7) elitismo e voluntarismo como visão de

processos de mudança política; 8) O Leviatã benevolente (idem, ibidem, p.

359).6

Como se percebe, todos esses três cientistas políticos, Medeiros, Santos e Lamounier,

pioneiros no Brasil na análise do pensamento autoritário, caracterizam-no de modo distinto.

Não é o caso de se discutir pormenorizadamente aqui essas interpretações (ou de outros

autores), mas cumpre somente notar o destaque conferido pelos três intérpretes aos

intelectuais autoritários da primeira metade do século XX (particularmente até a década de

1930), como pensadores decisivos e influentes na formação do pensamento brasileiro.

Quer dizer, o autoritarismo foi não apenas uma linguagem política importante no

Brasil republicano, mas também uma linguagem que formou decisivamente os contornos de

duas experiências autocráticas que tivemos nesse período, o Estado Novo (1937-1945) e o

regime militar (1964-1985). Como comenta Fausto, a obra desses intelectuais autoritários

serviu como forma de legitimação de vários aspectos desses dois regimes. Mais do que tão

somente a lembrada intervenção estatal para mediação do conflito entre capital e trabalho,

advogada por Oliveira Vianna (que, como se sabe, trabalhou como consultor jurídico do

Ministério do Trabalho durante o Estado Novo), cumpre salientar a participação

paradigmática de Francisco Campos, sobretudo, no Estado Novo, por meio da formulação da

carta constitucional de 1937, e também como ideólogo anticomunista na legitimação do golpe

de 1964, com a redação (juntamente com Carlos Medeiros Silva) de alguns dos Atos

Institucionais (FAUSTO, 2001, p. 29).

Como se disse, é digno de nota que a delimitação desse objeto de estudo – o

autoritarismo brasileiro – ocorreu quase concomitantemente com as primeiras formulações de

entendimento mais sistemático e de defesa da democracia no país. Nesse sentido, podemos

pensar que o autoritarismo serviu como o outro da democracia, tanto porque o país vivia

efetivamente um regime não democrático, quanto porque se identificava um conjunto

influente de linguagens políticas de legitimação de um Estado autoritário. É preciso ter

clareza que a disputa normativa, intrínseca à vida política, quer entre autoritarismo e

democracia, quer entre diferentes concepções de democracia, envolve inevitavelmente uma

6 É intrigante notar como a caracterização do autoritarismo feita por esse autor converge com a sua própria

visão do que falta à democracia brasileira no século XXI: no quinto capítulo veremos que Lamounier é um

dos principais defensores, na Ciência Política brasileira, da reforma política, a ser realizada a fim de erradicar

uma suposta tradição política nacional estatista e corporativista, que contém, como se vê, traços típicos da

“ideologia de Estado”.

Page 11: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

20

disputa pela linguagem, isto é, pelo conteúdo semântico dos termos que, obviamente, se

definem reciprocamente. Assim sendo, a definição do que é “autoritário” é crucial para

delimitação de que tipo de democracia se deseja.

Podemos dizer que a democracia brasileira, como objeto de estudo e como valor

político fundamental, surge no país, portanto, num momento claramente antidemocrático,

como uma realidade a ser inventada. Não apenas não havia democracia quando começamos a

falar mais sistematicamente dela, como muito de nosso passado atestava contra os seus

valores e as suas instituições. É precisamente por isso, que os primeiros estudos da chamada

moderna Ciência Política brasileira, surgida em um período próximo a esse aqui discutido (ou

seja, entre o final da década de 1960 e o início da década de 70) se concentram primeiramente

no entendimento do regime autoritário, ainda que tivessem como horizonte normativo o

regime democrático. Sobre isso, Renato Lessa nos apresenta uma importante comparação com

a Ciência Política estadunidense, principal matriz dessa mesma ciência no Brasil:

No modelo original norte-americano, a ideia de uma Ciência Política

empírica para descrever a democracia pode ser marcada pela fusão entre dois

horizontes, o factual e o normativo. Em outros termos, tratava-se de estudar

– e de promover – a democracia como objeto realmente existente, e não

como fabulação. (...) Em nosso caso, uma Ciência Política configurada pelos

valores de uma ciência positiva e empírica tratou de investigar não a

democracia, mas o “autoritarismo”, e vislumbrar as formas de sua superação

(2010, p. 41).

Em suma, a formação das linguagens políticas no Brasil que adotam a democracia não

apenas como horizonte político, mas como problema de pesquisa central, ocorreu

concomitantemente: 1) a uma realidade política claramente autoritária, iniciada em 1964 e

reiterando traços de nossa política pregressa; 2) a crescente atenção de nossos intelectuais

para a importância do autoritarismo enquanto uma tradição de pensamento e prática política

no país a ser investigada e superada.

Outro aspecto a ser considerado é que enquanto nos “redemocratizávamos” no último

quartel do século XX, o mundo ocidental presenciava um forte avanço ideológico das

vertentes conservadoras do liberalismo, sobretudo, do neoliberalismo. Contestando as

linguagens liberais cívicas (como a do Estado de bem-estar social) e também a tradição do

socialismo, particularmente influentes na primeira metade do século XX, essas vertentes

disputavam o significado do conceito de liberdade, radicalizando sua dimensão atomista e

privada e exigindo, em suma, menos Estado e democracia, e mais mercado.

É verdade que esses “novos” liberais do final do século XX defendiam a democracia

representativa como o regime político que melhor realiza a liberdade individual. Não eram

Page 12: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

21

eles, evidentemente, autoritários. Entretanto, eles compreendem a democracia de modo

restrito, numa chave fortemente não participativa e elitista, quer dizer, somente como um

conjunto de regras para a disputa entre elites que necessitam do voto popular (GUERRA,

1998). Não se deve, assim, negligenciar o contexto ideológico mundial em que ocorre o

processo de “redemocratização” brasileira, caracterizado por uma expansão do liberalismo

conservador (como o neoliberalismo) e de retração do socialismo e do liberalismo cívico

(como o keynesianismo).

Dessa reflexão inicial, adotamos dois princípios centrais que justificam a presente

pesquisa. Em primeiro lugar, é precisamente porque a “redemocratização” brasileira não

envolveu uma ruptura mais radical com a cultura e a prática políticas de nossa experiência

autoritária é que problemas concretos de nosso passado mantêm-se presentes posteriormente à

transição. Longe de negar os avanços do recente regime democrático brasileiro, o que se quer

destacar aqui é que esse processo não superou dimensões fundamentais de nosso passado

político, criando, destarte, uma sociabilidade mais afim à democracia. Nesse sentido,

deficiências não solucionadas da democracia brasileira em pleno século XXI – tais como a

colossal desigualdade social, as assimetrias raciais e de gênero (expressões de uma sociedade

ainda fundamentalmente racista e patriarcal), a ausência de uma cultura do interesse público

(evidenciada pelo fenômeno sistêmico da corrupção), as profundas desigualdades regionais do

país, a concentração fundiária, a violência contra os pobres, a resistência das oligarquias

políticas e econômicas frente à ampliação da participação política, a dependência do país

frente à economia mundial, etc. –, todas elas já há muito denunciadas pelos pensadores

brasileiros, continuam, em alguma medida, a reivindicar uma solução mais contundente.

São, portanto, problemas estruturais da democracia brasileira, e não simplesmente

desajustes contingenciais, já que se formaram em processos de longa duração histórica e que

conformaram culturas políticas afins a esses problemas, tais como o privatismo, o machismo,

o racismo, o patrimonialismo, o elitismo, etc. Sendo assim, não podem ser devidamente

compreendidos a partir de estudos de “curta duração” e focados exclusivamente em suas

manifestações institucionais ou tópicas, como, às vezes, é comum em algumas abordagens do

mainstream da Ciência Política brasileira.

A segunda razão que justifica este trabalho remete ao processo de “transição

negociada”, que envolveu uma acirrada disputa sobre o que deve ser a democracia brasileira.

Os conflitos entre diversas culturas políticas estão no epicentro do processo de transição

democrática. Destarte, é possível associar aos problemas citados no parágrafo anterior,

Page 13: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

22

impasses normativos centrais na política contemporânea. Por exemplo: é condição para a

realização do ideal democrático a eliminação das desigualdades sociais, há tanto tempo

presentes no país? Como veremos, mesmo entre autores claramente “democráticos”, a

resposta a essa questão está longe de ser inequívoca. Entender os diferentes projetos de

democracia que concorrem entre si é condição necessária para se compreender tanto nosso

passado eivado de autoritarismo, quanto as perspectivas futuras da democracia entre nós.7

O caso brasileiro de transição para a democracia ficou marcado tanto pelo seu êxito

em garantir a estabilidade política e avançar em alguns aspectos institucionais e culturais,

quanto por algumas notórias continuidades em relação às práticas políticas autoritárias. Em

suma, o país emergiu de um duro período de restrição da liberdade e ingressou numa era

“democrática”, mas na qual tanto o significado de liberdade era dissociado da sua dimensão

pública, quanto o sentido da democracia era frequentemente desvinculado das ideias de

participação política, igualdade, soberania nacional e de bem comum, haja vista a expansão

das linguagens liberais conservadoras. O resultado é que, com frequência, o debate sobre a

nossa democracia, à época da transição, não conseguiu romper completamente com o

predomínio dessas linguagens, assumindo comumente a democracia apenas como o conjunto

mínimo de instituições para a competição política, concepção denominada usualmente de

“procedimentalista” ou “minimalista” e bastante influente na moderna Ciência Política

brasileira.

Mais do que somente expressar o domínio de certo tipo de linguagem política, esse

contexto foi marcado pela deslegitimação de qualquer discussão normativa sobre a

democracia. Ao mesmo tempo em que se assumia como uma concepção não valorativa e que

se limitava, supostamente, à “descrição” do mundo político, incorporava-se sub-repticiamente

a ideia de que esse entendimento da democracia era o único viável. Desta maneira, qualquer

visão alternativa de democracia passava a ser, então, caracterizada pejorativamente como

utópica, anacrônica ou mesmo como ameaçadora à liberdade individual.

O mesmo debate tampouco foi capaz de pensar adequadamente os problemas

históricos e os impasses normativos de nossa formação autocrática, colonial, escravagista e

patriarcal, pois, com frequência, os estudos realizados não buscavam recompor a longa

7 É preciso deixar claro o balizamento teórico adotado por essa pesquisa. Contra a nossa perspectiva, se

apresenta, por exemplo, uma concepção “não normativa” da “transição”, como a esposada por Adam

Przeworski, que assevera que o princípio do “auto-interesse estratégico é suficiente para compreender as

democracias” (PRZEWORSKI apud AVRITZER, 1995, p. 112). Defendemos, ao contrário, que o processo

de institucionalização política da democracia é tão relevante quanto o processo de enraizamento de uma

cultura afim à democracia. Falar em democracia é, destarte, falar dos conflitos não apenas de interesses, mas

também de hábitos e valores socialmente compartilhados

Page 14: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

23

história que resultava na democracia, como se o passado autoritário já não mais nos formasse

no final do século XX. Nesse sentido, se muito ganhamos com a exatidão dos novos estudos

sobre a política, como aqueles organizados a partir das diferentes vertentes da moderna

Ciência Política, ainda não conseguimos, todavia, integrar a visão sobre os problemas da

democracia brasileira numa perspectiva histórica e cultural de longa duração.8

Tendo esse cenário em vista, defendemos que é necessário retomar as interpretações

fundantes da democracia brasileira, evitando quer a visada exclusivamente institucionalista,

quer a abordagem de “curta duração”. Inserir a formação da democracia no Brasil numa longa

trajetória, ainda inconclusa, levar em consideração os traços tradicionais do país que não

sucumbiram a despeito das ondas modernizantes, foi o que, de fato, fizeram muitos de nossos

intelectuais no século XX. Eles formularam, portanto, interpretações que insere a formação da

democracia brasileira numa narrativa macro-histórica de formação do Estado e da sociedade

brasileira.

Procuramos, portanto, recuperar algumas dessas interpretações a fim de indicar como

elas são fundamentais na compreensão do processo de democratização da sociedade

brasileira. Argumentamos, ademais, que as obras desses intelectuais ajudaram a formar as

linguagens políticas da democracia utilizadas por alguns atores sociais no Brasil hodierno,

sendo parte integrante, em maior ou menor grau, de nossa cultura política. Quando, por

exemplo, se fala hoje sobre o novo desenvolvimentismo, a obra de Celso Furtado, com seu

quadro de conceitos e valores, é inevitavelmente evocada; o mesmo a respeito das questões da

corrupção e do patrimonialismo, referindo-se usualmente à obra Os donos do poder, de

Raymundo Faoro, etc.

Mas mais do que apenas mostrar a força argumentativa e a presença desses

intelectuais na vida pública brasileira, propomos a interpretação de que os principais

problemas de nosso regime democrático, identificados por esses pensadores, expressam a

formação incompleta e precária de uma efetiva república no país. Nesse sentido, defendemos

que a tradição política do republicanismo, que há algumas décadas retornou com mais vigor

na Teoria Política contemporânea, composta certamente de linguagens variadas e de diferentes

matrizes históricas, serve, não obstante, como marco teórico que possibilita reunir a obra

8 Claro que algumas das linguagens liberais conservadoras da democracia já receberam, mais recentemente,

fortes críticas. Muitas dessas críticas compõem hoje a Ciência Política brasileira, tais como a denúncia de um

baixo nível de participação política, o hiato entre os movimentos sociais e as instituições formais do Estado e

a falta de legitimidade popular de algumas instituições formais da política, etc.. Todavia, com frequência,

costuma-se cometer os mesmos erros do passado, a saber, a desconsideração da cultura política brasileira e a

precária incorporação de nossa história (inclusive, intelectual) na análise política.

Page 15: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

24

desses intelectuais brasileiros e compreender alguns dos dilemas envolvidos na

democratização de um país.

O republicanismo contemporâneo forma-se principalmente em resposta ao avanço

liberal conservador no final do século XX, antes mencionado, tendo como centro de sua teoria

o conceito de liberdade, pensado não apenas em sua dimensão privada e subjetiva, como

direito individual, mas também em sua dimensão pública, associada às noções de bem

comum, virtude, deveres cívicos, participação política e soberania. A partir da incorporação

dessa linguagem da Filosofia Política e de seu embate com a tradição liberal, estruturamos a

tese do seguinte modo.

No primeiro capítulo, discorremos sobre a inserção deste trabalho na subárea de Teoria

Política e do Pensamento Político e Social Brasileiro. Essas compõem, entre outros

subcampos, a Ciência Política acadêmica no país. Defendemos uma perspectiva historicista e

interpretativa dessa ciência que assevera a crucial importância dessas duas subáreas para a

compreensão das dimensões tidas como mais "objetivas" da política – mais enfatizadas pelo

mainstream dessa ciência no Brasil, tal como se verifica pela produção de estudos sobre

partidos e eleições, ou sobre políticas públicas, por exemplo. Associamos a predominância de

uma certa concepção de Ciência Política à própria hegemonia do pensamento liberal, que no

seu afã de constituir uma visão realista da política, estabeleceu certos princípios teóricos

como inquestionáveis, abrindo mão da “historicização” desses princípios e, às vezes,

reificando a realidade atual como única viável.

A limitação da reflexão política, todavia, implica, a nosso ver, na incapacidade de

constituição de alternativas à realidade social vigente que, no caso brasileiro, ainda se revela

marcada pela permanência de traços de nosso passado autoritário. Não é possível

compreender os principais problemas do regime democrático brasileiro e muito menos

vislumbrar soluções para eles tratando subsidiariamente a cultura política, cultura esta

também formada, ainda que por sucessivas e complexas mediações, pelas tradições

intelectuais do país.

No segundo capítulo discutimos a questão da democracia a partir de duas importantes

tradições de pensamento político moderno, quais sejam, o republicanismo e o liberalismo. A

rigor, essas duas tradições políticas não surgiram associadas ao princípio da soberania

popular. Entretanto, acreditamos que a disputa em curso no século XX-XXI entre essas duas

tradições está intimamente associada às expectativas do que deve ser a democracia na

contemporaneidade, mesma disputa que, como vimos, esteve presente em nosso processo de

Page 16: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

25

“transição” do autoritarismo e que se mostra ainda não de todo superado. Nossa abordagem

está centrada no conceito de liberdade, entendido como núcleo da polêmica supracitada em

que noções distintas de liberdade associam-se a concepções também diversas de democracia.

A liberdade, como conceito central do pensamento político moderno – expressão do próprio

caráter contingente, não teleológico e instituinte da realidade política – reúne em si outras

disputas a ela associadas que definem os contornos assumidos pelas democracias na

atualidade. Recorremos a essas tradições porque entendemos que não é possível compreender

as linguagens da política no Brasil sem uma compreensão das linguagens da política em geral.

Além disso, ainda que não se possa considerar que essas duas tradições esgotem todo o debate

da Teoria Política, consideramos que a polêmica do neorrepublicanismo com o liberalismo

pode aclarar alguns elementos desconsiderados quando se pensa na democratização de uma

sociedade como a nossa.

Para mostrar como esses intelectuais do Brasil recepcionaram essas tradições políticas

(republicanismo e liberalismo), modificando-as; para demonstrar que os problemas da

democracia identificados pelos intelectuais de nosso país não constituem apenas problemas de

conjuntura, circunscritos a momentos de nosso passado, mas dilemas presentes nas grandes

tradições do pensamento político; e para revelar como eles podem ser compreendidos em

conjunto, e não isoladamente, ou seja, como expressão da formação incompleta de uma

democracia verdadeiramente republicana, necessitamos recorrer a essas linguagens da

Filosofia Política a fim de verificar como esses mesmos dilemas foram por eles tratados.

Nesse sentido, é afirmado o princípio de que estudos de Pensamento Político e Social

Brasileiro, longe de constituírem apenas uma História das Ideias do país, é um modo também

relevante de teorização da política.

Procuramos, então, encontrar na tradição de pensamento político brasileiro algumas

das linguagens mais importantes da democracia entre nós. Selecionamos, com esse fito,

quatro intelectuais que construíram um campo discursivo que tem como horizonte normativo

e descritivo a democracia, contra a experiência e os valores do autoritarismo. Como se disse,

são eles: Raymundo Faoro, Celso Furtado, Wanderley Guilherme dos Santos e Fernando

Henrique Cardoso. Nosso propósito fundamental é abordar esses autores comparando a

concepção de democracia presentes em suas obras, concepções essas constituidoras de

linguagens políticas concorrentes e, em alguns casos, em diálogo explícito, num contexto

político comum que vai de nossa primeira experiência democrática à chamada Nova

República.

Page 17: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

26

Tem-se em vista, assim, a formulação de um panorama do pensamento político

brasileiro, centrando nossa atenção na formação das linguagens da democracia brasileira, e

não propriamente constituir um estudo sistemático e aprofundado da obra de cada um desses

intelectuais brasileiros. Precisávamos, pelo desenho de pesquisa adotado, abarcar não apenas

um número relativamente extenso de autores, como um intervalo temporal razoável. Todos

eles construíram sua trajetória intelectual tendo como pano de fundo a forte tradição

autoritária e a frágil tradição democrática do país ao longo desses aproximadamente cinquenta

anos: por um lado, o primeiro período democrático brasileiro (1945-64) – fértil de

transformações, mas também turbulento e instável (a relembrar com frequência a experiência

da ditadura varguista) – e, por outro lado (e principalmente), a vivência perturbadora do

regime militar de 1964, radicalizado em 1968 e, posteriormente o processo de

redemocratização do país e de funcionamento da democracia representativa no final do século

XX e início do XXI.

Obviamente que as obras deles não se restringem a uma só temática, a democracia,

nem esse é, necessariamente, o tema central de suas obras. Todavia, o que importa, no nosso

caso, é que ao se voltar para outros temas (como do subdesenvolvimento, por exemplo), essas

reflexões se constituíram também em linguagens específicas e fundamentais da democracia

brasileira. Nesse sentido, procurou-se dar especial atenção à vinculação entre democracia e os

conceitos-chave para esses autores.9

Como tínhamos em mente compor um panorama geral das linguagens políticas

brasileiras que tem como centro o tema da democracia, é claro que algumas ausências serão

sentidas. Devido às limitações de tempo e espaço inerentes a esta pesquisa, nem todos

pensadores importantes para a adequada e completa consecução desse objetivo podem ser

avaliados. Talvez a principal ausência refira-se à tradição socialista brasileira. A obra de

Florestan Fernandes, por exemplo, se constituiria em um objeto profícuo de reflexão sobre o

significado de democracia nessa tradição, e que acreditamos tem importante enraizamento nas

diversas vertentes do socialismo brasileiro. Alguns outros intelectuais, por certo, poderiam

também fazer parte de nossa análise, na medida em que pensaram a formação da democracia

brasileira a partir de alguns dos seus aspectos, tais como o domínio patriarcal sobre as

mulheres, a "dominação branca" sobre os negros e índios, etc., pois não são problemas menos

relevantes no país de hoje dos que os que aqui analisados. Muitos desses problemas, todavia,

9 Cumpre esclarecer que a análise feita aqui da obra desses autores é parcial, pois não pretendemos avaliá-las

completamente, nem tampouco o seu desenvolvimento ao longo do tempo (a não ser marginalmente, quando

isso evidenciar pontos importantes na concepção de democracia desses autores).

Page 18: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

27

não conseguiram formular na inteligência nacional, uma visão sistemática de longa duração

associada à formação histórica do país.10

Voltando à exposição do plano geral desta tese, o terceiro capítulo é o primeiro a se

dedicar à análise da obra de um dos intelectuais selecionados. Recorrendo ao pensamento de

Raymundo Faoro, pretendemos demonstrar como esse autor elaborou uma longa narrativa de

formação do poder político no Brasil, incorporando crítica e criativamente o conceito

weberiano de patrimonialismo. Em geral, a linhagem interpretativa do patrimonialismo é

relacionada, na literatura da Ciência Política, ao problema brasileiro permanente da

corrupção, entendida precipuamente como um desvio isolado de conduta de um agente

público (supostamente causado pela ineficiência de instituições de contenção à competição

individualista). Uma conseqüência dessa leitura seria considerar Faoro, crítico do Estado

patrimonial, um apologista do Estado Mínimo. Nossa proposta, ao contrário, tentou

demonstrar que não é adequado interpretar a obra desse jurista gaúcho como uma crítica

liberal-conservadora ao Estado brasileiro, estando sua compreensão mais próxima das

linguagens políticas do liberalismo cívico e do republicanismo. Assim, se Faoro é crítico do

patrimonialismo-estamental brasileiro é porque ele é, de fato, um defensor ativo da

constituição de uma cidadania plena no país; para isso, diria Faoro, cumpre refundar o Estado

brasileiro não segundo o princípio de legitimação do poder patrimonial, ou do mercado, mas

de acordo com a soberania popular. Conseqüentemente, o mal da corrupção brasileira não se

limita à apropriação tópica e indébita dos recursos públicos, mas diz respeito em primeiro

lugar à apropriação histórica do poder político pelo “patronato político brasileiro” – que em

sua prática das conciliações e transações “pelo alto” – usurpa o poder do povo, perpetuando o

divórcio entre a nação e o Estado.

No capítulo seguinte, a pesquisa analisa a obra de Celso Furtado, reconhecido como

maior expoente do pensamento econômico brasileiro. A interpretação aqui proposta consiste

em realçar a dimensão política do pensamento desse autor para quem o desenvolvimento

(tema recentemente reavivado no Brasil desde os dois governos do presidente Lula) não pode

estar desvinculado de um projeto de soberania popular e de nação. Se ainda persistem traços

de subdesenvolvimento no país, eles não se referem apenas ao atraso econômico, às

desigualdades regionais, à distribuição desigual da terra, etc., mas, igualmente, à nossa cultura

autoritária e oligárquica, diria Furtado. Um projeto de desenvolvimento do país tem que

10

Quanto ao problema indígena, certamente que poderíamos recorrer à obra do antropólogo Darcy Ribeiro, mas

isso só tornaria a pesquisa ainda mais difícil de ser executada em um tempo hábil, dada a especificidade da

linguagem criada por esse pensador, quando comparada aos demais autores escolhidos.

Page 19: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

28

necessariamente ser um projeto democrático e nacionalmente soberano de poder, como

propunha esse autor já no início dos anos 60. Como entendemos, a obra desse intelectual

nordestino constitui-se de um estoque rico e bem integrado de conceitos e valores que nos

permite pensar tanto os avanços quanto os obstáculos à democratização do país, sob uma

perspectiva afim a do republicanismo contemporâneo.

No quinto capítulo da pesquisa nos voltamos à discussão da reforma política. Assunto

frequente tanto na mídia quanto nos espaços formais do poder, as propostas de reforma

política são tomadas em conjunto a partir da caracterização da democracia como regime da

pluralidade e da competição do poder político. Para isso, recorremos à obra de Wanderley

Guilherme dos Santos e ao conceito central em sua obra de poliarquia. Avaliamos suas

críticas a algumas propostas de reforma política, entendidas pelo autor como tentativas das

tradicionais oligarquias brasileiras de barrar a "expansão cívica" em curso no país. O que se

apresenta, nesse caso, é uma importante interpretação que destaca os avanços institucionais do

último século e o potencial cívico da incipiente democracia brasileira, ainda que identifique

traços culturais não democráticos a serem superados.

O último capítulo se ocupa da obra de Fernando Henrique Cardoso. Ao contrário dos

demais intelectuais aqui estudados, a obra de Cardoso é mais frequentemente confrontada,

ainda que superficialmente, com seu projeto político, de liderança sobre o Partido da Social

Democracia Brasileira (PSDB), e concretizado de modo emblemático nos seus dois mandatos

como presidente da República. Interpretamos que esse autor foi capaz de constituir uma nova

linguagem liberal no Brasil, conciliando os valores da democracia, entendida como

fortalecimento da sociedade civil, aos do mercado. Ainda que não pretendamos avaliar nem o

legado do PSDB, nem tampouco a sua gestão como presidente do Brasil, sugerimos

(diferentemente das leituras que presumem ser a sua obra teórica irrelevante para a

compreensão de sua prática política) que é possível identificar elementos de continuidade no

seu pensamento que justificam, a princípio, a sua atuação política, no sentido de combater a

herança patrimonialista e a cultura “estatista” brasileira. O projeto de refundação do Estado

defendido por Cardoso, ainda bastante influente na política brasileira hodierna, se insere no

esforço desse pensador de consolidação de uma tradição liberal brasileira, atualizando-a para

incorporar centralmente a ideia de democracia e, ao mesmo tempo, radicalizando essa

tradição, sob a influência de alguns dos seus desdobramentos contemporâneos, na medida em

que opõe a liberdade à interferência do Estado.

Nossa abordagem das obras desses intelectuais procurou não somente destacar como

Page 20: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

29

elas são importantes na cultura democrática do país, evidenciando as suas contribuições em

relação às formas usuais de se pensar a democracia e seus principais problemas, mas também

em identificar os seus limites e contradições. Procurou-se, portanto, evitar uma deficiência

corrente dos estudos de Pensamento Brasileiro em que a análise da obra do intelectual

estudado confunde-se ou redunda no seu elogio acrítico.

Esperamos que ao longo dessa investigação (certamente marcada pelas insuficiências

ao se lidar com um número elevado de intérpretes do Brasil) ter conseguido apresentar uma

visão de conjunto (ainda que não exaustiva) da formação de nossa cultura política

democrática em que os pensamentos sobre a realidade política brasileira não se realizam

separadamente dela, mas compõem uma unidade sem a qual tanto a análise "empírica" da

política quanto a "teórica" ficam empobrecidas.

Como dissemos, apesar de alguns outros intelectuais importantes na criação de

narrativas de longa duração da formação da democracia brasileira não terem sido estudados

neste trabalho, a comparação entre os quatro autores aqui escolhidos – Faoro, Furtado, Santos

e Cardoso – permitiu vislumbrar não apenas as diferentes visões desse processo, como

também a própria modificação do pensamento político brasileiro, que durante o período

estudado, começa a se dedicar cada vez menos à questão nacional (organizador da inteligência

nacional até os anos 50) e se debruça sobre a democracia, tema doravante mais privilegiado.

Trata-se, em suma, de avaliar o período em que emerge no país discursos políticos da

democracia e as principais realizações intelectuais nesse sentido.

É interessante também perceber, a partir das considerações metodológicas do chamado

“Contextualismo Linguístico”, como que compartilhando o mesmo contexto intelectual e

político, cada um deles pôde compreender a democracia de modo distinto e formular, ao seu

modo, uma linguagem política dela e uma narrativa própria de sua formação no Brasil. Assim,

a partir de suas obras é possível pensar – sob diferentes perspectivas, às vezes

complementares, outras vezes, concorrentes – sobre o modo como se formou nossa

democracia, identificando, a partir de um processo de longa duração, seus avanços e

limitações. Assumimos, portanto, que elas constituem o que se convencionou chamar na

literatura especializada de “interpretações do Brasil”11

, nesse caso, centradas na formação de

11

Bernardo Ricupero (2011) recorre à mesma expressão em sentido similar ao aqui adotado. Como nesta

pesquisa, esse autor considera que as “interpretações do Brasil” (também denominadas por ele de “ensaios”)

são um “tipo” de texto político (tal como um gênero literário) em que se define um quadro amplo ou um

grande balanço da história brasileira, redundando num projeto político para o futuro do país. Ele afirma que

esse tipo de texto é típico de um período circunscrito da história brasileira, iniciado pela Proclamação de

República (1889) e a criação das primeiras universidades brasileiras (década de 30). Se é certo, como

Page 21: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

30

nossa democracia.

Ao estabelecermos o diálogo entre as obras desses intelectuais e os debates

contemporâneos sobre os problemas da democracia brasileira, esperamos também ter

demonstrado que as disputas em torno dela, não apenas de interesses, mas de valores, podem

resultar, de um lado, no reforço de suas raízes e perspectivas liberalizantes (inclusive segundo

suas versões conservadoras) ou, de outro modo, no aprofundamento de sua vocação

republicana. Em outras palavras, os processos de maior liberalização versus o de maior

republicanização da democracia brasileira compõem uma disputa normativa central em curso

no país e perpassa o entendimento dos seus principais problemas na atualidade. É certo que a

cultura e a prática política brasileira ainda são permeadas por elementos nem propriamente

liberais, nem republicanos, tais como o patrimonialismo ou o privatismo, por exemplo.

Entretanto, como procuraremos demonstrar, é possível compreender, em linhas gerais, alguns

dos principais embates da atual democracia brasileira a partir de uma disjuntiva entre as

linguagens liberais e as linguagens republicanas, cada qual organizando um campo de

conceitos e valores distintos em torno ao entendimento da liberdade e da democracia.

interpreta Ricupero, que esse “tipo” de texto deixou de ser o padrão de investigação, com a consolidação das

Ciências Sociais no país, acrescentamos que, mesmo após a década de 30, é possível encontrar essas

“grandes interpretações do Brasil”, inclusive em autores profundamente vinculados ao âmbito acadêmico,

como Wanderley G. dos Santos e Fernando H. Cardoso.

Page 22: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

31

1 – O debate teórico-metodológico e o Pensamento Brasileiro

Neste capítulo formularemos os princípios teóricos e metodológicos mais gerais que

orientaram a análise dos autores brasileiros a serem estudados. Em primeiro lugar,

discorremos sobre o senso comum em torno à relação entre teoria e prática política. Na

mesma seção, avaliamos em seguida como essa relação é concebida na área acadêmica da

presente pesquisa, a Ciência Política, dando particular atenção à chamada revolução

behaviorista. O mesmo é feito na seção seguinte no que concerne ao cenário brasileiro.

Passamos, então, à discussão metodológica na História das Ideias do Brasil, avaliando

criticamente, sobretudo, a obra de Daniel Pécaut que adota recorte temporal semelhante ao

recorte desta pesquisa e que, como ela, busca formular uma compreensão mais geral da

formação do pensamento democrático brasileiro. Feito isso, concluímos o capítulo propondo a

introdução de novos elementos metodológicos na análise das ideias, a partir das contribuições

do Contextualismo Linguístico, da História dos Conceitos e da obra de Mark Bevir.

1.1 – Teoria e prática política: o senso comum e a Ciência Política

A relação entre as ideias e as linguagens políticas, de um lado, e a própria realidade,

de outro, está longe de ser de facilmente interpretada. A própria distinção terminológica

falsifica essa relação, dando a impressão de que cada parte possa subsistir sem a outra,

constituindo separadamente um "mundo cultural" ou "mental" e outro "material". Não é raro

se defrontar com análises da política que a caracterizam como sendo moldada apenas pelo

jogo de interesses individuais, como se a política pudesse existir na ausência de conceitos,

valores e linguagens que a tornasse minimamente inteligível. Por outro lado, igualmente

problemático, é supor (algo mais comum entre aqueles que se dedicam à Teoria Política) que

as transformações da "cultura política" consistem num processo endógeno, "fora do mundo

real".12

Começando pelo segundo equívoco, trata-se do que Raymundo Faoro chamou de

"preconceito intelectualista". Concebe-se, no caso, a relação entre logos e práxis em três

estágios: a primeira atividade é a do puro pensamento, quando o indivíduo tem em mente

algo; haveria, destarte, "a proposição, enunciativa na sua consistência, premeditada, que

levaria, por estímulo interno, à ação" (FAORO, 1994, p. 14). Em seguida, esse indivíduo

12

Obviamente que o propósito aqui é acentuar as duas posições mais extremadas do debate, o que não

inviabiliza a existência de posições intermediárias.

Page 23: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

32

escolhe os meios para a consecução do fim visado e, num último momento, teríamos a própria

ação em sua concretude; em suma, "os eventos políticos seriam um reflexo da ideia" (idem,

ibidem, p.14). Assim, a história da política poderia ser convertida na história das ideias, de

modo que, ironiza o autor, o Contrato Social rousseauniano teria determinado a Revolução

Francesa, assim como a Declaração de Independência, a Independência norte-americana.

A primeira perspectiva, por sua vez, sugere que os atores políticos agem a partir de

uma lógica pragmática e individualista, isto é, mediante a experiência e em função da

maximização de seus interesses, a despeito de quaisquer ideais ou quadro de valores; a práxis

seria orientada apenas pela eficácia dos resultados, sem compromissos com ideias. No Brasil,

análises desse tipo são encontradas nos meios de comunicação (na avaliação de jornalistas e

declarações de políticos13

), bem como na produção científica.

Uma abordagem científica que expressa de modo exemplar essa última perspectiva é a

de que a democracia pode funcionar bem independentemente da cultura, de modo que sua

sobrevivência e sucesso dependeriam somente de alguns arranjos institucionais e da

prosperidade de sua economia. Contrapondo-se aos diferentes matizes do culturalismo (do

mais "fraco" ao mais "forte"), Adam Przeworski, José Cheibub e Fernando Limongi, por

exemplo, defendem radicalmente que renda per capita, taxa de crescimento econômico e

rotatividade de chefes de governo são os fatores determinantes para uma democracia

sucumbir a uma ditadura e vice-versa.14

Sustentamos que fatores econômicos e institucionais são suficientes para

gerar uma explicação convincente da dinâmica das democracias sem que

seja necessário recorrer à cultura. (2003, p. 10).

A concepção não-culturalista tem forte apoio empírico. Nessa visão a

13

Quando empossado como presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2010, o ex-senador José Eduardo

Dutra afirmou o seguinte: "O PT tem tido uma evolução natural desde sua fundação. Quando foi fundado

sofreu ataques, preconceitos da esquerda e da direita. Os partidos da esquerda tradicional, abrigados no

PMDB, diziam que o PT dividiria a oposição. O PT tinha uma visão um pouco exclusivista. Por questão de

sobrevivência, a gente não aceitava aliança. Em 2002, chegamos à Presidência. Um partido que chega a

administrar amplos espaços de poder tem que entender e se adaptar à realidade. Não pode perder seus

princípios, mas também não pode ficar amarrado no principismo. Ou seja, o PT hoje é um partido

pragmático" (Jornal O Globo, 16/02/2010, grifos nossos). Mais recentemente, o jornal Valor Econômico

noticiava a "ascensão de um pragmático", a respeito de outro petista indicado para ser o relator da Lei Geral

da Copa do Mundo de 2014, Vicente Cândido da Silva (Valor Econômico, 05/02/2011). O fato do PT ser

caracterizado hoje como "pragmático", mais do que outros partidos, se deve, talvez, ao senso comum de que,

antes de ganhar a presidência da República, o partido agisse mais em torno de ideais do que agora. Essa

compreensão reforça o entendimento de que, quando se disputa efetivamente o poder, os ideais e valores não

contam. 14

Conclusões muito semelhantes são deduzidas em texto anterior, ainda que não em polêmica com o

"culturalismo". "Se um país, um país qualquer selecionado aleatoriamente, deve ter um regime democrático

no próximo ano, que condições deveriam estar presentes neste país e pelo mundo neste ano? A resposta é:

democracia, riqueza, crescimento com inflação controlada, desigualdade decrescente, um clima internacional

favorável e instituições parlamentaristas" (PRZEWORSKI et al, 1997, p. 113, ênfases dos autores).

Page 24: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

33

democracia sobrevive porque é mais vantajoso para as forças políticas

relevantes, pautando suas ações por puro interesse próprio, obedecer ao

veredicto das urnas do que fazer qualquer outra coisa. (...) Nesses termos, a

democracia é um equilíbrio porque as forças políticas consideram que

obedecer aos seus veredictos atende melhor aos seus interesses (idem,

ibidem, p. 20-21, grifos nossos).

As culturas parecem ter pouco efeito sobre o estabelecimento da democracia,

e nenhum sobre sua sobrevivência (idem, ibidem, p. 31).

Como bem resume Moisés, “o que conta para essa perspectiva não são os valores

políticos ou a orientação normativa dos indivíduos, mas a eficácia das instituições com

relação aos fins almejados pelos atores políticos” (2008, p. 16). Seria interessante investigar

como se pode conceber o ser humano, dotado de interesses, mas sem que esses interesses

sejam constituídos pelos seus valores, linguagens, crenças, etc. Entretanto, cumpre destacar

que a percepção de que os ideais políticos não afetam de modo significativo a realpolitik é

também reforçada por diagnósticos do comportamento partidário, como os do brasilianista

Scott Mainwaring.

Em alguns de seus estudos (1995; 2005), este autor tem destacado que os cientistas

sociais não deveriam supor que a competição entre partidos é sempre ideológica ou

programática. No caso dos países que têm baixa institucionalização partidária, isto é, as

democracias e semidemocracias menos desenvolvidas, como o Brasil, os partidos são fracos e

indisciplinados, dando oportunidade ao voto de clientelista, ao populismo e aos políticos

personalistas, de um modo geral. Nesse sentido, argumenta Mainwaring, as próprias teorias

espaciais do voto – dividindo-o em direita, centro e esquerda, por exemplo – são pouco úteis

na compreensão do comportamento político dos eleitores e dos candidatos à eleição no Brasil,

uma vez que a competição partidária aqui é difusa do ponto de vista ideológico. Uma

consequência grave da fraca institucionalização do sistema partidário é que se torna difícil a

accountability eleitoral, na medida em que os eleitores não conseguem identificar claramente

os partidos e seus candidatos, vis-à-vis as suas promessas de campanhas e, por conseguinte,

votar racionalmente em função dos interesses que perseguem. Concluindo, pragmatismo

político seria o traço mais típico dos partidos no Brasil.15

Em resumo, conforme essas diferentes concepções que minimizam o impacto dos

ideais e dos valores na dinâmica da política, o objetivo principal da Ciência Política

consistiria, enfim, em identificar as variáveis (“não culturais") que mais interferem no

15

No quadro do presidencialismo brasileiro e da pluralidade de legendas partidárias efetivas (MELO, 2010a,

2010b)., a constatação de uma tendência pragmática, não obstante, não invalida totalmente a influência de

ideias e de concepções do agir político.

Page 25: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

34

comportamento político dos indivíduos, quantificá-las, avaliar o seu impacto diferenciado,

etc.

Isso significa também que, de acordo com essa visão frequente na Ciência Política, a

Teoria Política (uma de suas subáreas), ao operar precipuamente com conceitos, valores,

crenças e linguagens, funciona como um estoque de ferramentas necessárias e úteis ao

cientista político em sua tarefa de categorizar, classificar, distinguir e identificar as

instituições políticas, os atores da arena política, suas características, etc.; mas, ela é vista

como algo que não "alcança" o senso comum e, por isso, diz respeito, em última instância,

principalmente ao erudito. Se levarmos em conta a opinião de que a cultura tem pouco

impacto sobre a política, então, torna-se mais fácil compreender porque a Teoria Política é

vista como não prioritária na Ciência Política mainstream, servindo apenas instrumentalmente

ao balizamento do que realmente mais interessa: a análise empírica.

Terence Ball (2004) reconstrói o processo que ele denomina de "declínio da Teoria

Política" no mundo acadêmico. Ele relata que, apesar de algumas reações contrárias,

prevalecia, no século passado, um sentimento comum entre os especialistas de efetiva

decadência dessa área, variando apenas da opinião daqueles que, como David Easton,

decretavam entusiasticamente o fim dessa área de estudos (de modo análogo ao que se disse

acerca do fim das ideologias, num mundo em que teria se difundido um consenso normativo

nas democracias ocidentais), em prol de uma Ciência Política, depurada de elementos

históricos e normativos, aos que, como Sheldon Wolin, constatavam com pesar que esse

campo estava realmente diminuído de importância.

Da metade dos anos de 1950 para o início dos 1970, mais ou menos, era de

rigueur celebrar (se você fosse um "comportamentalista") ou lamentar (se

você fosse um "teórico") o "declínio da Teoria Política" (BALL, 2004, p.

10).

A tendência de declínio da Teoria Política, por sua vez, pode ser interpretada como

resultante do fato de que o modelo epistêmico dominante nessa área de conhecimento ser o

norte-americano, como assevera Ball: "o isolamento da Teoria Política em relação à política

sem dúvida teve bastante a ver com a dinâmica de profissionalização na academia norte-

americana" (idem, ibidem, p. 17). É a Ciência Política estadunidense, com seu viés

empiricista, que, em grande medida, estabelece um padrão de análise da política para o mundo

com o qual não se conforma facilmente a Teoria Política:

A Ciência Política é uma invenção americana. Apesar de aparentemente

exagerada, essa afirmação é em boa medida verdadeira. Claro que a ideia de

um esforço sistemático de compreensão da política é coisa bem mais antiga.

Page 26: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

35

(...) Em suma, a invenção do estudo sistemático da política não pode ser

atribuída aos americanos. O que estes fizeram, de fato, foi criar uma

profissão acadêmica especializada no estudo da política e

institucionalmente separada da História e da Filosofia. Mais tarde essa

disciplina se diferenciaria também da Sociologia, da Psicologia e da

Antropologia (FERES JR., 2000, p. 97, grifos nossos).

Em parte, por ter sido a vanguarda na criação da Ciência Política, a

academia americana tornou-se modelo para os departamentos da

Ciência Política em outros países e pólo exportador de tendências

teóricas e temáticas (idem, ibidem, p. 98, grifos nossos).

Todos sabemos da grande influência que, há décadas, as coisas da cultura

americana exercem no Brasil. A necessidade de parecer americano são,

para muitos, uma forma de escapar das frustrações de um Brasil que

parece sempre ficar aquém das expectativas. (...) Essa é a condição do

colonizado cultural. (idem, ibidem, p.107, grifos nossos).

De acordo com esse autor, o uso da expressão “Ciência Política” torna-se comum nos

Estados Unidos a partir do debate entre federalistas e antifederalistas no século XVIII. Como

disciplina acadêmica, porém, ela inicia-se neste país em 1857, com a nomeação do primeiro

catedrático nessa área; em 1880 é criado o primeiro departamento de Ciência Política e, em

1903, a APSA (Associação Americana de Ciência Política).16

Não é o caso aqui de rever em detalhes essa história, mas cumpre destacar que mais do

que somente espaços acadêmicos distintos, como destaca João Feres Jr., são criadas nos

Estados Unidos técnicas e práticas de pesquisa diversas das até então existentes e uma nova

linguagem sobre a política. Trata-se de um movimento duplo: a afirmação de autonomia

disciplinar aliada à criação de um novo discurso sobre a política. Em suma, como diz Renato

Lessa, a constituição de uma "comunidade epistêmica", dotada de "identidade, recursos

próprios, hábitos institucionais e linguagens próprias e compartilhadas e formas de expressão

e presenças públicas" (2011, p. 29).

Discordamos parcialmente de Feres Jr. quando caracteriza a formação da Ciência

Política brasileira e sua relação com os Estados Unidos como parte de um processo de

colonização cultural.17

Há um claro exagero em afirmar que a Ciência Política no Brasil imite

acriticamente a produção intelectual estadunidense, pois mesmo que houvesse um empenho

deliberado e comum por parte dos norte-americanos em alcançar isso (fato também objeto de

16

Visões menos críticas mas igualmente informativas da história da Ciência Política norte-americana podem ser

encontradas em Goodin e Klingemann (1998) e Almond (1998). 17

Sobre o processo de formação da ciência política no Brasil, sobretudo acerca de sua institucionalização,

consultar: Lamounier (1980; 1982), Schwartzman (1991), Veiga (1992), Miceli (1993; 1995), Reis (1993)

Oliveira (1995), Sorj (1995), Forjaz (1997), Vianna (1997), Almeida (2005) e Lessa (2010; 2011).

Page 27: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

36

controvérsia18

), caberia ainda verificar como nossos intelectuais reagiram a essa influência.

Mais razoável nos parece a avaliação de Lessa de que a "socialização de uma importante

geração de cientistas sociais (...) nos temas e nos padrões disciplinares da Ciência Política

norte-americana" é um fator absolutamente relevante na compreensão da formação da agenda

de estudos da Ciência Política brasileira, apesar de isso não resultar forçosamente em mera

Clonagem do modelo original, ainda que uma cultura disciplinar fortemente

afetada por uma inclinação positivista e por forte apego ao 'rigor

metodológico' tenha permanecido como legado perene e constitutivo da nova

identidade (LESSA, 2010, p. 32).

É a ciência social norte-americana, empiricamente orientada, rompendo

assim com a tradição ensaística e humanista das ciências sociais

predominante na sociologia européia e com uma ciência política marcada

pela Filosofia do Direito (VEIGA, 1992, p. 65).

Como se vê, avaliação similar é atestada por Laura da Veiga acerca da "nova" ciência

trazida para o país, para quem a complementação acadêmica de muitos brasileiros em cursos

de pós-graduação, realizados em centros de excelência em Ciência Política nos Estados

Unidos (sobretudo em cursos de doutorados), e mesmo a vinda de professores desses centros

para a academia brasileira foi decisiva. Também segundo Elisa Reis (1993), tratava-se de

consolidar um novo ethos de pesquisa, segundo o qual a pesquisa metódica e sistemática, de

forte viés empiricista, tornava-se rotina para o cientista social brasileiro, rompendo, assim,

com nossa tradição "ensaística". O mesmo afirma Sérgio Miceli, comentando o decisivo apoio

dado à Ciência Política brasileira pela Fundação Ford, que visava:

(...) incentivar a construção institucional de programas de pós-graduação e

de centros de pesquisa, dentro e fora das universidades; financiar o

treinamento no exterior de cientistas competentes e futuras lideranças

profissionais; subsidiar a introdução de disciplinas até então ausentes do

mercado intelectual interno, mormente Economia, Demografia e Ciência

Política; incentivar a adoção de uma nova divisão do trabalho científico

com assimilação de novas técnicas como a do survey, com a formulação e

execução de projetos de envergadura, com a incorporação de técnicas e

métodos quantitativos; bancar o desenvolvimento de uma cultura

acadêmica científica lastreada em padrões internacionais de desempenho e

ancorada numa profissionalização das atividades e carreiras intelectuais; em

suma, estimular a criação de uma verdadeira comunidade profissional

18

Sem entrar demais nesse debate, cumpre mencionar apenas que mesmo o polêmico apoio de instituições

estadunidenses (como a Fundação Ford) dado à Ciência Política brasileira na formação de professores,

concessão de bolsas de pós-graduação para intelectuais brasileiros, etc., se muitas vezes foi interpretado

como evidência de nossa condição de “colonizado” (num contexto em que, hipoteticamente, era preciso

combater com todas as armas o comunismo e aumentar a influência cultural estadunidense no mundo), é

encarado por outros, como Sérgio Miceli, como um processo mais complexo em que inclusive se destaca a

autonomia dessas fundações em relação às orientações políticas do governo norte-americano (MICELI,

1993).

Page 28: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

37

fundada em padrões críticos e competitivos. (MICELI, 1993, p.60, grifos

nossos).

Parte desse legado estadunidense, como se disse, é precisamente o isolamento da

Teoria Política em relação às demais subáreas da Ciência Política. Diversos trabalhos

vinculam esse isolamento ao viés naturalista, neopositivista19

e anti-normativo que

predominou na Ciência Política nos Estados Unidos e que teria surgido, ou se acentuado, a

partir da chamada revolução behaviorista, nos anos de 1950, como diz Ball, anteriormente

citado. Sobre isso, concordam Feres Jr. e Lessa:

(...) os cientistas políticos lançaram a behavioral revolution, um novo

esforço de produção de uma Ciência Política objetiva aos moldes das

Ciências Naturais. Um dos pontos programáticos da behavioral

revolution era a separação da Ciência Política verdadeiramente

científica da história do pensamento político e das teorias políticas

normativas. Na prática, essa proposta levou à criação da teoria política

como sub-área da Ciência Política, uma solução institucional que,

segundo Gunnel, acabou causando o isolamento da teoria política das

questões práticas mais candentes. (...) A análise da literatura de Ciência

Política produzida atualmente nos EUA mostra que textos de teoria política,

sejam eles clássicos ou modernos, são literalmente ignorados pela produção

acadêmica das quatro sub-áreas mais "científicas" da Ciência Política:

política americana, política comparada, relações internacionais e políticas

públicas (FERES JR., 2000, p. 101, grifos nossos).

A virada [behaviorista] pretendia afirmar tal conhecimento como uma

"ciência", com protocolos distintos daqueles utilizados pela Filosofia

Política, percebida como contaminada por fortes componentes

historicistas e normativos. (...) Os adeptos da revolução dirigiram pesadas

críticas à tradição da Filosofia Política - ou da Teoria Política (LESSA, 2010,

p. 36, grifos nossos).

Lessa avalia esse processo como parte resultante de um projeto educacional mais

amplo. De acordo com ele, por volta dos anos 1940 e 1950 ocorreu nos Estados Unidos um

processo de uma "virtual refundação" de boa parte do ensino superior, incluindo a Economia,

a Filosofia e a Ciência Política, a fim de superar um suposto "legado ideológico da década de

1930" (2010, p. 34). Essa “refundação” consistiu na afirmação de quatro princípios básicos: 1)

devoção às ciências “duras”; 2) busca pela objetividade do conhecimento; 3) confiança na

análise formal; 4) aversão às ideologias e anseio de "pureza disciplinar" (idem, ibidem, p. 35).

A "refundação" fez com que essas áreas perdessem uma disposição de função pública e de

maior interlocução com a sociedade, caracterizando-se, doravante, por valorizar mais os

marcadores internos de "qualidade" da ciência, como expressos pelo crescente

19

Trata-se fundamentalmente da influência dos autores do “Círculo de Viena”, como Karl Popper, Rudolf

Carnap, etc., sobre a Ciência Política norte-americana. Sobre isso ver: LACERDA, 2009.

Page 29: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

38

profissionalismo na área (via o treinamento sistemático dos estudantes nas disciplinas

específicas) e pela autonomia acadêmica (e não segundo os parâmetros de uma cultura

humanista e transdisciplinar, como ocorria anteriormente). Assim como a Economia afastava-

se da tradição da Economia Política, em especial das proposições keynesianas, aproximando-

se, por sua vez, da Econometria e incorporando uma linguagem mais formal, a Filosofia

convertia-se à virada linguística, distanciando-se da tradição mais clássica de discussão ética e

normativa, e a Ciência Política inaugurava uma nova linguagem para tratar a política, a partir

de modelos formais com forte destaque à estatística e à pesquisa empírica.

Mas, adverte o autor, o behaviorismo "não reinou de forma exclusiva e absoluta" nos

Estados Unidos (LESSA, 2011, p. 42). Já em meados de 1960, David Easton, um daqueles

que celebrara a "revolução", identificava uma virada pós-behaviorista, constituída

principalmente a partir das críticas à alegada neutralidade dos cientistas políticos numa

América crescentemente politizada. Gabriel Almond também discute os desdobramentos do

pós-behaviorismo, pós-cientificismo e das perspectivas desconstrutivas de uma visão neutra

da Ciência Política e de seu viés empiricista. Contestando àqueles que asseveram que não há

mais uma identidade desse campo, tendo em vista seu crescente pluralismo, Almond procura

reafirmar essa identidade, numa perspectiva que une o trabalho dos filósofos antigos ao dos

cientistas políticos contemporâneos:

Nosso tratamento neste capítulo avança e demonstra numa perspectiva

histórica que há uma versão privilegiada de nossa história disciplinar e que é

progressiva, medida pelo aumento de conhecimento e baseada na

evidência e na inferência. Isso incluiria o trabalho de escolas opostas, na

medida em que satisfazem essas regras. Excluiria as reivindicações e

proposições não fundadas nas evidências, ou não-falsificáveis pelas

análises lógica e de provas. Objetiva, rigorosa, acadêmica é de fato o

perfil privilegiado em nossa história disciplinar (ALMOND, 1998, p. 83,

tradução e grifos nossos).20

Mesmo admitindo que esse campo de conhecimento também teve suas fraturas e

tensões internas com o próprio padrão neopositivista a que se fez referência, permaneceu

influente o axioma behaviorista (como se vê pela própria reafirmação dele por Almond ao dar

prioridade ao rigor e à objetividade científica), de que as Ciências Naturais são um modelo

epistêmico a ser emulado pelos cientistas políticos. Nesse caso, caberia a eles encontrar leis

20

Our treatment in this chapter advances and demonstrates in its historical account that there is indeed

"privileged" version of our disciplinary history and that is a progressive one, measure by the increase of

knowledge based on evidence and inference. It would include the work of opposing schools, insofar as it

meets these standards. It would exclude those claims and propositions not founded on evidence, or not

falsifiable through evidence and logical analysis. Objective, rigorous, scholarship is indeed the privileged

thread in our disciplinary history.

Page 30: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

39

ou padrões, bem como formular modelos dedutivos que pudessem, rigorosamente, explicar os

fenômenos políticos. Como a démarche da Teoria Política parece ser mais interpretativa do

que explicativa, além de eminentemente normativa e histórica, essa subárea acaba tornando-se

periférica, tendo, conseguintemente, de ser utilizada topicamente, ou pensada como um

campo autônomo que, por seu turno, pouco tem a dizer às outras subáreas da Ciência Política.

O positivismo filosófico teve, por assim dizer, uma função normativa ou

reguladora do comportamentalismo, em que o positivismo definiu para

os comportamentalistas o que é a "ciência" - e o que a Ciência Política

deveria ser, se fosse para ser uma ciência. Primeiramente, a Ciência

Política deveria distinguir entre "fatos" e "valores". Em segundo lugar, ela

deveria ser "empírica" ao invés de "normativa". E, por fim, ela deveria ser

explicativa no sentido acima indicado. Toda explicação genuinamente

científica, de acordo com os critérios positivistas de suficiência explicativa,

depende da descoberta e do desenvolvimento de "leis" universais e eternas.

Boa parte da Teoria Política "tradicional" não se conformava aos

critérios positivistas de significância cognitiva e suficiência explicativa.

Por esses motivos, ela foi rejeitada como não-científica e, portanto,

destinada a ser superada no devido tempo (BALL, 2004, p. 13, grifos

nossos).

Como se sabe, a Teoria Política é tida como a subárea que tipicamente se constitui não

apenas de um repertório crítico sobre a política tal como praticada, como também de um

conjunto de prescrições normativas de como a política deve ser. Ora, se a Ciência Política

assumia a separação neopositivista entre fatos e valores, voltando-se supostamente apenas

para os primeiros, estava claro porque a dimensão teórica não poderia mais compor o núcleo

principal dessa ciência.

Cícero Araújo e Bruno Reis diferenciam alguns dos principais momentos desse

processo de formação e consolidação da Ciência Política nos Estados Unidos, sofisticando o

diagnóstico acima descrito. Segundo eles, numa primeira fase, desponta o esforço inicial de

"delimitação concreta dos objetos de estudo e no aperfeiçoamento da pesquisa empírica e dos

métodos e técnicas para esse propósito" (ARAÚJO & REIS, 2005, p. 57), como tipificam os

estudos de comportamento eleitoral. Como os autores reconhecem, havia inequivocamente

um "certo frissom de superação da Filosofia" (idem, ibidem, p. 58).

Numa etapa posterior, já se verificava um aumento relativo no interesse pela Teoria

Política quando se expande a chamada rational choice, a teoria da escolha racional ou

pública, isto é, os estudos que, baseados em modelos econômicos (particularmente da

microeconomia) tentam explicar o comportamento dos atores políticos, sobretudo em uma

democracia. Entretanto, como eles reconhecem, boa parte dos cientistas políticos se

contentavam em elaborar modelos abstratos para avaliar os dados empíricos, fazendo, desta

Page 31: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

40

feita, um uso limitado da teoria; ademais, deve-se acrescentar que o uso da teoria nessa escola

tende a recorrer, quase exclusivamente, às tradições que operam com o conceito de

racionalidade instrumental.

A mobilização pontual da Teoria Política pode ser encontrada também num terceiro

desdobramento, constituído pelas correntes que acentuaram a importância das instituições na

explicação da política, o chamado neo-institucionalismo. Se antes, na rational choice, o

diálogo interdisciplinar se dava mais com a Economia, agora ele ocorre em especial com a

área do Direito, e não com a Teoria Política, embora houvesse inúmeros elementos nessa área,

desde pelo menos a filosofia de Aristóteles, com a reflexão acerca do papel das instituições na

dinâmica política.

Poderíamos destacar um quarto desdobramento igualmente importante nos primeiros

momentos da Ciência Política estadunidense (embora seja menos uma corrente de

pensamento, como as demais, e mais uma área temática), que recebeu forte influência da

rational choice e com reflexos na produção científica internacional, as chamadas policy

sciences, ou políticas públicas. Subárea da Ciência Política surgida nos princípios da década

de 1950, incorpora boa parte dos pressupostos behavioristas antes elencados: neutralidade de

valores, cientificidade, quantificação como característica elementar do método de pesquisa e

preponderância dos estudos empíricos, em detrimento de uma perspectiva mais teórica.

Sintetizando a discussão desenvolvida até aqui, podemos dizer que as policy

sciences nasceram sob forte influência do pensamento acadêmico que

dominava as Ciências Sociais até a década de 1950, caracterizada pela

ênfase no "rigor científico". Nas policy sciences, essa atitude cientificista

levou ao enaltecimento dos métodos quantitativos e ao foco privilegiado

nos modelos econômicos. Com isso, muitas vezes, o método subordinou a

própria teoria (ANDREWS, 2005, p. 31, grifos nossos).

Andrews procura destacar como a subordinação da teoria ao método, nas políticas

públicas, produziu uma reificação da realidade social, na medida em que os cientistas

políticos consideravam os dados coletados como fatos independentes da própria pesquisa. A

busca pelo rigor metodológico tendia, assim, a substituir uma discussão teórica, que, se feita

de modo mais apropriado, levaria em consideração o processo de criação das categorias

analíticas pelo pesquisador, tidos então como “fatos puros”. Vê-se novamente que a

preocupação quanto à objetividade do conhecimento levava a um tratamento secundário e, por

isso, mais precário da discussão teórica.

Elemento adicional e politicamente relevante é a declarada intenção de que os

trabalhos científicos de políticas públicas servissem aos governantes como instrumento de

Page 32: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

41

aperfeiçoamento de suas decisões, tornando-as mais "racionais", constituindo esse saber numa

forma de "engenharia social" (idem, ibidem, p. 18). Embora assumissem uma postura de

imparcialidade, como boa parte dos cientistas políticos norte-americanos da época,

paradoxalmente, defendia abertamente a superioridade do regime democrático, em especial tal

como vivenciado nos Estados Unidos. A mesma incoerência é notada por Lessa, para quem

era frequente a combinação de um discurso de neutralidade quanto a valores e, ao mesmo

tempo, de compromisso com os ideais liberal-democráticos. Lessa e Andrews concordam

também que esses valores incorporados pelos cientistas políticos estadunidenses devem ser

compreendidos à luz do contexto político internacional da década de 1950, isto é, de intensa

disputa ideológica entre capitalismo (sob o modelo dos Estados Unidos) e socialismo (como

na União Soviética); isso não significa que eles tenham aderido invariável e totalmente aos

valores do anticomunismo, mas de algum modo respondiam ao debate típico da Guerra Fria.

Em suma, a história da Ciência Política estadunidense é mais complexa do que a

"caricatura" que retrata todo esse campo de estudos submetido uniforme e permanentemente

aos pressupostos da revolução behaviorista (LESSA, 2010, p. 38), mas não deixa, todavia, de

evidenciar uma forte tendência behaviorista, de afirmação de um tipo de ciência que se quer

empírica, objetiva, mormente neutra e que, por tudo isso, se afasta da reflexão "puramente

teórica". Ao afastar-se da teoria ou ao utilizar-se limitada e instrumentalmente dela, a Ciência

Política norte-americana acabava por reificar a realidade política vigente (tratando

marginalmente todas outras realidades políticas normativamente vislumbradas como

excessivamente utópicas e impossíveis) e, de modo incongruente com os princípios de uma

ciência axiologicamente neutra, endossando-a, com um suposto status científico de

racionalmente superior, sob o modelo da democracia liberal e eleitoral estadunidense.

Cumpre salientar um segundo aspecto desse processo cultural. Além das aparentes

incompatibilidades entre as abordagens "empírica" e "teórica" da política, mencionadas

acima, uma das razões aludidas no mainstream da Ciência Política norte-americana para

justificar o seu afastamento da Teoria Política, era de que os estudos nessa área haviam se

voltado sobre si mesmos, gerando um "culto ao antiquarismo" (FERES JR., 2000, p. 101) e

redundando em um conhecimento inócuo ou em pura "história das ideias" (LESSA, 2010, p.

36).

Segundo eles [os adeptos à revolução behaviorista], esse campo teria

esgotado sua capacidade de inovação intelectual e, dessa forma, refluído para

um mero esforço historiográfico a respeito dele próprio (idem, ibidem, p.

36, grifos nossos).

Page 33: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

42

Obviamente que essa avaliação torna-se razoável quando se tem como padrão as

Ciências Naturais. Não faz, de fato, sentido esperar que o campo teórico produza um

conhecimento de tipo idêntico ou semelhante ao das Ciências da Natureza - ou ao que se

idealiza normalmente a respeito do conhecimento que essas últimas produzem. Num cenário

de forte conotação neopositivista, restava à Teoria Política, portanto, contentar-se com seu

espaço marginal dentro da Ciência Política.

Terence Ball estabelece uma distinção sobre o trabalho teórico que (apesar dele

próprio mais tarde dela abdicar, dada a sua notória simplificação) nos é útil para pensar esse

problema. Conforme sua interpretação há uma teorização de primeira ordem e outra de

segunda ordem. A de primeira ordem é suscitada por questões candentes da sociedade, tais

como justiça, equidade, obediência à autoridade civil, etc.; tratam-se dos estudos mais

normativos de teoria política, como tipifica o clássico texto de John Rawls, A theory of

justice. A teorização de segunda ordem consiste, por sua vez, em "estudar, ensinar e comentar

os 'clássicos' do pensamento político" (BALL, 2004, p. 12). Para ele, foi o segundo tipo de

pesquisa que, infelizmente, acabou prevalecendo no universo acadêmico anglo-saxão até os

anos 1970, quando, então, se tem um reavivamento da teoria política.

Em contraste, muito do que se passa por Teoria Política na academia

deveria, de maneira geral, ser denominado de teorização de segunda

ordem. (...) A Teoria Política, tal como praticada nos departamentos de

Ciência Política, foi relegada a uma espécie de limbo ou morte viva: o

pior tipo. Muitos do que praticaram a teorização de segunda ordem não se

sentiam bem-vindos e alguns foram mesmo encorajados a negociar suas

transferências para os mais congeniais departamentos de Filosofia ou

História (idem, ibidem, p. 12, grifos nossos).

Vê-se que, mesmo entre os "entusiastas" do retorno da Teoria Política, como Ball,

entende-se que as teorizações de segunda ordem são de menor importância do que as de

primeira. Ou como ele diz adiante: mais importante do que aprender sobre (Platão,

Aristóteles, Hobbes, etc.) é aprender com. Todavia, ao contrário do que supõe o autor, os

estudos históricos não precisam necessariamente se limitar à exegese dos "clássicos", assim

como as "teorizações de primeira ordem" nem sempre se ocupam dos temas mais relevantes

para a sociedade.

Em instigante artigo, Donald Kelley discorre sobre as heranças e perspectivas no

mundo acadêmico da História das Ideias; cumpre destacar algumas de suas reflexões para o

presente debate. Em primeiro lugar, o autor assevera que essa área de conhecimentos é muito

mais do que a História da Filosofia, como dá a entender Ball; muito mais eclética do que a

segunda, ela não se resume à análise dos textos canônicos da filosofia (embora essa seja uma

Page 34: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

43

forte tendência nesse campo), reunindo ao mesmo tempo estudos sobre literatura, ciência,

economia, folclore, arte, política, religião, etc. Ao contrário da outra, a História das Ideias não

se limita à análise das "ideias puras", mas também ao seu uso ideológico e social. O campo da

História das Ideias Políticas, portanto, no qual se insere também esta pesquisa, é tão somente

um dos assuntos sobre os quais têm se ocupado os historiadores das ideias, mas se diferencia

da História da Filosofia por dedicar especial atenção ao significado político das ideias e ao seu

impacto na sociedade.

Numa visão mais ampla, então, a história intelectual não precisa (ou não

precisa mais) ser identificada com o cânone da Filosofia, com o tema da alta

cultura, com constrições sociais e elitistas, com as teorias intelectualistas da

causalidade na história. Ao contrário, deve ser vista como uma abordagem

ou com uma gama de abordagens, com a investigação histórica e de

interpretação em geral – abordagens que começam com formas culturais e

linguísticas, mas que não necessariamente presumem as convenções formais

e lógicas do discurso acadêmico. Os assuntos dos historiadores intelectuais

são textos ou seus análogos culturais; o campo inteligível de estudos" mais

geral é a linguagem, ou linguagens, e a história da filosofia não é o

modelo, mas sim uma província nesta arena maior de interpretação (KELLEY, 1990, p. 19, trad. e grifos nossos).

21

1.2 – Teoria e prática política: o caso brasileiro

Deixando por ora essa digressão de lado, cumpre esclarecer que no Brasil a revolução

behaviorista não se deu do mesmo modo e com a mesma intensidade, indicando, como já

afirmamos acima, que não se trata de relações intelectuais meramente reflexas. Lessa observa

que isso talvez tenha ocorrido pelo fato de que o contato de nossos intelectuais com essa

cultura tenha se dado num momento de crise da abordagem comportamentalista, e em que já

despontavam visões críticas e alternativas a ela.

Entendemos que a ideia de um "simples contágio", como demonstra Faoro (a respeito

da formação do liberalismo brasileiro em relação à tradição do liberalismo europeu e norte-

americano [1994, p. 63]), dificilmente esgota as complexas relações entre intelectuais de

diferentes países, como é também o caso dos cientistas políticos brasileiros em relação a essa

cultura acadêmica estadunidense. Mesmo o fato, realçado por Lessa, de termos sido

21

In the broadest view, then, intellectual history need not (or need no longer) be identified with the canon of

philosophy, with the subject of high culture, with elitist social constrictions, or with intellectualist theories of

causation in history. Rather it should be seen as an approach, or range of approaches, to historical

investigation and interpretation in general - approaches which begin with cultural and linguistic forms but

which do not necessarily presume the conventions of academic or even formally logical discourse. The

subjects of intellectual historians are texts, or their cultural analogues; "the intelligible field of study" more

generally is language, or languages; and the history of philosophy is not the model of but rather a province in

this larger arena of interpretation.

Page 35: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

44

"expostos" a um behaviorismo enfraquecido deve apenas compor o quadro mais geral de

interpretação desse processo, a ser constituído também por certos elementos próprios à cultura

brasileira, como a forte tradição de pensamento político já existente no país, e o elemento

mais geral de recriação crítica das categorias analíticas por nossos pensadores a fim de se

compreender o país e suas idiossincrasias (MOREIRA, 2008).

Mesmo estando sob a influência dessa cultura e incorporando várias de suas

características – "a forte preocupação metodológica, com ênfase quantitativa, e um claro

movimento de (...) autonomização da política, com relação a outros domínios cognitivos"

(LESSA, 2010, p. 39) – os cientistas políticos brasileiros se mostraram críticos a alguns

aspectos dessa "virada". Um deles é a alegada abordagem neutra da política. Aqui

"incorporava-se certo ethos cientificista, mas ao mesmo tempo praticava-se a crítica de uma

política apolítica'" (LESSA, 2011, p. 46). Não se replicou no país o discurso de separação

entre o cientista e o militante: boa parte de nossos politólogos participaram ativamente dos

debates e movimentos públicos, dando continuidade, em alguma medida, à tradição prévia de

pensamento político (que, não obstante, alguns deles renegavam). Por fim, é possível

constatar ainda que não ocorreu uma marginalização tão intensa da Teoria Política. Sobre isso,

Lessa salienta a postura de dois expoentes da ciência política acadêmica no Brasil, Fábio

Wanderley Reis e Wanderley Guilherme dos Santos, que concederam significativa atenção aos

temas da filosofia contemporânea bem como aos temas mais “objetivos” dessa área de

conhecimento. Em função dessas diferenças, considera-se que a Ciência Política brasileira

acabou se tornando muito mais plural do que a "matriz" estadunidense.

Mas, mesmo que em menor grau, se a Teoria Política não se isolou completamente da

Ciência Política mainstream no Brasil, também não conseguiu se estabelecer de modo

significativo dentro dela. Também aqui os estudos teóricos são, mormente, compreendidos ou

como instrumento da análise empírica, o fim último da atividade do cientista político, ou

como trabalhos auto-referidos de construção de modelos ideais da política ("teorização de

primeira ordem").22

São escassos os estudos de Teoria Política que procuram esclarecer a

relação identificada no início desta seção, a saber, entre ideias, crenças e linguagens políticas

e a prática política cotidiana no país, como se as primeiras tivessem pouca influência sobre a

segunda.

Na discussão sobre metodologia que acompanha a Ciência Política brasileira hoje se

22

Em pesquisa sobre a pós-graduação em Ciência Política no Brasil, Maria Hermínia Tavares de Almeida

constata que quase a totalidade dos artigos publicados em periódicos nacionais na área e que tratam de Teoria

Política se dedica à teoria contemporânea, com forte atenção normativa (2005, p. 117).

Page 36: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

45

constata, de fato, o desprestígio da teoria. Renato Lessa observa que a reivindicação de maior

atenção ao método, muito comum no meio, não é acompanhada de uma discussão de filosofia

da ciência e de teoria do conhecimento, o que explica, em grande medida, o viés do

treinamento metodológico ao qual são expostos os estudantes de Ciência Política no Brasil,

numa perspectiva claramente "afilosófica" (2011, p. 44).

Fábio Wanderley Reis, por exemplo, avalia que houve uma involução no ensino e

utilização de metodologia nessa área no Brasil, do fim dos anos 1970 ao final da década de

1990, o que, para ele, faz com que os trabalhos assumam um perfil predominantemente

descritivo, "de cunho jornalístico, historiográfico, etnográfico" (REIS, 1997, p. 8). Contra um

contorno mais "humanista" e "idiográfico" de ciência – como seria próprio à História e à

Antropologia – Reis argumenta que "a Sociologia e a Ciência Política encontram-se

claramente mais próximas do padrão 'científico', caracterizado pelo apego ao rigor, à

sistematicidade, à generalização e à busca de cumulatividade" (idem, ibidem, p. 9); seriam,

portanto, ciências nomotéticas. Note-se, por conseguinte, que embora esse autor reivindique

maior espaço à Teoria Política no âmbito da Ciência Política, ele concebe a primeira dentro

dos marcos da behavioral revolution, como se evidencia, em extensa, mas representativa

passagem:

Se me pedem uma comparação geral do avanço e qualidade da ciência social

feita no Brasil com a de outros países, creio que dá pra dizer algo a respeito

da Ciência Política. (...) Acho possível dizer que a França praticamente

não tem Ciência Política de maior interesse. Na Inglaterra há a tradição

erudita e ritualista de political theory, que produz com abundância

trabalhos agradáveis de se ler mas que me parece uma tradição

predominantemente estéril. Os eternos comentários sobre os clássicos, o

eterno voltar a Hobbes, Locke... (...) Mas os Estados Unidos são

claramente o país onde de fato as coisas acontecem, e não há como

deixar de destacar o seu papel, que tende a criar um forte efeito de

gravitação e a incorporar de um jeito ou de outro o que a aparece de

melhor na Europa (....). E a importância dos Estados Unidos se dá não só

no que se refere à produção da disciplina vista de maneira mais

convencional, mas também no plano das relações com outras disciplinas, que

têm tido consequências extremamente dinâmicas e positivas, como é o caso,

em particular, das relações com a Economia, com o forte impacto do

estabelecimento e difusão da abordagem da escolha racional. A força desse

impacto se mostra mesmo, aliás, de maneira meio surpreendente, na

revivescência da própria filosofia política, claramente influenciada pelo

impacto da perspectiva analítica básica que levou ao florescimento da

escolha racional (a welfare economics etc.), como no caso da obra de John

Rawls, por exemplo (REIS, 1997, p. 15-16, grifos nossos).

Vários pontos antes discutidos emergem novamente a partir dessa ilustrativa citação: a

centralidade da Ciência Política estadunidense, a irrelevância de outras tradições mais

Page 37: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

46

próximas à História e à Filosofia (França e Inglaterra) e a preeminência das teorias que

operam centralmente com a noção de interesses e de racionalidade instrumental, como a

rational choice. Avaliação muito semelhante reaparece em dois outros trabalhos importantes

de balanço da Ciência Política brasileira, o de Olavo Brasil de Lima Jr. e o de Gláucio Soares.

Segundo o primeiro, a produção em Ciência Política por aqui fica marcada por

"trabalhos eminentemente ensaísticos e jornalísticos" e por certo "ensaísmo de cunho

semifilosófico ou de história das ideias, baseado em fontes secundárias" (LIMA JR., 1999, p.

18). O autor considera que contra essa tendência, deve-se tomar como "requisito essencial

para o treinamento do cientista político (...) cursar disciplinas de alto nível de formação

quantitativa" (idem, ibidem, p. 49, grifos nossos).

Gláucio Soares, como os demais, se ressente da formação acadêmica dos cientistas

políticos brasileiros, constituindo o que ele chama de "calcanhar metodológico". O autor

entende que o país "anda na contramão da história" (2005, p. 73), pois enquanto a Ciência

Política internacional se dedica sistematicamente à utilização de métodos quantitativos e

qualitativos de pesquisa, ao treinamento dos estudantes em técnicas de pesquisa e estatística,

aqui se criou uma aversão à utilização dos primeiros e uma discussão muito mais

"epistemológica" do que "metodológica" (idem, ibidem, p.77), redundando em simples

"ensaios" sobre política (idem, ibidem, p.85). Diversas passagens do texto de Soares

expressam claramente a permanência e força do ethos behaviorista, contra, portanto, a um

perfil mais plural da Ciência Política brasileira.

Além disso, o autor afirma que a utilização de teoria no Brasil é distinta do modo

usual de se proceder nas universidades anglo-saxãs e escandinavas. Aqui "as teorias se

limitam a um cansativo cardápio requentado de 'grandes clássicos'" (idem, ibidem, p. 90),

repetindo aqui a tópica argumentativa presente nos outros dois autores citados, ao passo que

no estrangeiro, a teoria é criada para solucionar problemas práticos da sociedade. Nesse

sentido, o autor critica seus pares de serem "colonizados" teoricamente, recorrendo aos

autores tradicionais do Primeiro Mundo, tais como Habermas, Bourdieu, Marx, Weber, etc., e

ignorando a produção nacional e do Terceiro Mundo. Ironicamente, deve-se dizer que a

mesma imputação de "alienação" atribuída por Soares aos cientistas políticos brasileiros,

poderia ser feita a ele próprio, na medida em que critica a Ciência Política nacional por não

atender aos parâmetros dominantes dessa ciência no mundo, particularmente como é praticada

nos Estados Unidos.

Percebe-se, portanto, que para a maioria dos cientistas políticos, como revelam os

Page 38: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

47

textos de Reis, Lima Jr. e Soares, nossa formação acadêmica é deficiente no tocante à

metodologia por não enfatizar ainda mais o treinamento dos estudantes em técnicas de

pesquisa quantitativas e qualitativas, como ocorre nos países centrais. Por outro lado, é

exatamente contra essa defesa que argumenta Lessa – representando uma posição claramente

minoritária na Ciência Política nacional e com o qual concordamos – na medida em que essa

formação ou que a sua modificação nos parâmetros defendidos pelos autores supracitados

acentua a distância entre "teoria" e "empiria", além de subordinar a primeira à segunda.

Mesmo no Brasil, onde a teoria encontrou mais espaço na Ciência Política do que nos Estados

Unidos, enraíza-se, conseguintemente, a diferenciação entre os "estudiosos de teoria" e os

"estudiosos da empiria", replicando, nesse caso, a mesma distinção típica do mundo

acadêmico norte-americano. A respeito desse tema, avaliam criticamente Araújo e Reis, sobre

a situação brasileira, bem como Ball sobre a situação nos Estados Unidos:

O principal problema resultante é que essa situação tende a gerar, em vez de

uma simples divisão do trabalho que viesse a bem da produtividade global

da área, dois tipos de profissionais que frequentemente comunicam-se de

modo precário (ARAÚJO & REIS, 2005, p. 64, grifos nossos).

A divisão do trabalho curricular convencional designa aos teóricos a

tarefa de traçar e avaliar ideias, ideais e crenças, deixando para os

investigadores empíricos a tarefa de descrever e explicar o efetivo

comportamento dos agentes políticos. Essa divisão do trabalho sugere

que há dois domínios bem separados, um do pensamento ou de "teoria"

e o outro da ação ou do "comportamento", cada qual podendo ser bem

caracterizado sem referência ao outro. Mas essa divisão é notadamente

falsa. O agente que tem certas crenças não é separável do agente que atua.

De fato, suas ações não são nem mesmo descritíveis sem referência às suas

crenças - e vice-versa. Assim, a esperança de criar uma ciência do

"comportamento" político era em tudo tão equivocada quanto uma "história

do pensamento político" isolada. (BALL, 2004, p. 19, grifos nossos).

No caso brasileiro, acrescenta-se outro fenômeno digno de nota: a Teoria Política

(como subárea da Ciência Política) se distancia da Filosofia Política e das Humanidades em

geral (repetindo, ainda que com menor intensidade, a tendência norte-americana), enquanto

diferencia-se uma área interna à própria Teoria Política, o chamado "Pensamento Social e

Político Brasileiro". Pode-se dizer que o afastamento do Pensamento Brasileiro em relação à

Ciência Política é decorrente dos pressupostos neopositivistas e utilitários dominantes nessa

última área do saber:

Ela [a área do Pensamento Social e Político Brasileiro] se distancia da

ciência política e da economia como praticadas hoje em dia já que tais

disciplinas adotaram princípios mais formalistas, mais calcados em modelos

que tomam o indivíduo como centro de decisões racionais (SCHWARCZ &

BOTELHO, 2011, p.145).

Page 39: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

48

Essa subárea caracteriza-se por ser mais interdisciplinar, congregando, sobretudo,

cientistas políticos, sociólogos, antropólogos e historiadores.23

Há que se evidenciar também a

tremenda densidade teórica a que se chegou nessa subárea, com a publicação de inúmeros e

significativos estudos realizados nas últimas décadas.

Todavia, é notório que a grande maioria desses trabalhos centra a análise em um ou

poucos autores, ou escolas de pensamento, particularmente oriundos até a primeira metade do

século XX. Raros são os esforços de síntese em se delinear as tendências mais gerais da

inteligência nacional. Também não é comum encontrar estudos que investiguem a vinculação

entre as obras dos pensadores brasileiros e as práticas políticas do país (a não ser para

caracterizá-las, como foi comum num certo período do país, como ideológicas).24

Esses

trabalhos acabam assumindo, mesmo que tacitamente, que são mais propriamente estudos de

História das Ideias do que de Teoria Política, produzindo com frequência uma verdadeira

coletânea de memórias dos autores, por vezes confundindo-se com narrativas biográficas.

Como resume Arruda em recente simpósio de balanço dessa subárea:

Penso que a área do pensamento social e interpretações do Brasil cresceu e

tornou-se consideravelmente mais complexa nos últimos anos. É visível o

volume de trabalhos publicados nessa área temática, como é também

ponderável a diversidade de assuntos e das abordagens. A despeito disso,

domina, em minha opinião, o tratamento dos intelectuais que marcaram

a vida cultural brasileira, examinados seja no prisma de suas trajetórias

individuais, seja na perspectiva da sua geração. Há também nítida

concentração de estudos na geração de 1930, analisada em várias dimensões,

revelando a preferência pelos chamados ensaístas modernistas. Do ponto de

vista teórico-metodológico, creio que há grande diversidade, o que é, em

princípio, muito bom. Porém, tendo em vista o caráter variado de

estudos, confunde-se muitas vezes, diversidade com carência de rigor,

visível na construção de puros retratos das personagens em escrutínio (SCHWARCZ & BOTELHO, 2011, p. 141-142, grifos nossos).

Em resumo, são produzidos estudos de excelente qualidade nessa área, mas que se

caracterizam por focar momentos isolados do pensamento brasileiro, sem produzir quadros

ampliados de interpretação.

É preciso lembrar também que a consolidação acadêmica das Ciências Sociais

23

É sintomático que a ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política), entidade científica que reúne pós-

graduados nessa ciência, fundada em 1996, tenha um grupo de trabalho permanente de Teoria Política,

abarcando especialmente estudos de teoria normativa, e não tenha um espaço para a área de Pensamento

Brasileiro (Almeida, 2005, p. 115). É a ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em

Ciências Sociais), organização acadêmica brasileira que reúne pesquisadores de formação diversa, que

mantém um espaço constante para a discussão dessa subárea. 24

Claro que existem exceções. Uma excelente análise dessa relação, por exemplo, é estabelecida por Milton

Lahuerta a respeito da sociologia paulista na segunda metade do século passado, com particular acento para

obra de Fernando Henrique Cardoso (1999; 2001).

Page 40: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

49

brasileiras envolveu, ao tentar se equiparar com o padrão científico internacional, uma postura

de rejeição, ou, ao menos, em que se desprestigiava a tradição nacional de estudos de política

já existente como "ensaísta". Bernardo Sorj avalia, assim, que há uma tendência generalizada

de "reinventar a roda" nos estudos de política no Brasil, quer dizer, de ignorar a produção

intelectual do passado, supondo que "o país do futuro pouco tem a ganhar das gerações

anteriores e que o Brasil é um país a ser periodicamente inventado” (SORJ, 2001, p. 104).

Viveríamos numa situação de “desfiliados”, haja vista que não há continuidade entre as

gerações de intelectuais, nem cumulatividade de conhecimento (idem, ibidem, p. 100-101).

Como vimos, parecer semelhante é formulado por Gláucio Soares (2005), antes mencionado,

de que há alienação e colonialismo teórico na Ciência Política brasileira, bastante atenta à

produção teórica dos países do capitalismo central e ignorante quanto aos que se produz na

periferia do mundo.

O tema da imitação intelectual tem uma longa história no Brasil, no qual se inserem os

textos de Sorj e Soares acima citados. Embora não tenha sido o primeiro a denunciar uma

suposta tendência mimética de seus pares (basta lembrar, entre outros casos, a crítica de

Oliveira Vianna a Rui Barbosa no início do século XX), um intelectual tratou desse tema de

modo paradigmático: Guerreiro Ramos.

Segundo esse pensador baiano, não existia rigorosamente, pelo menos até 1958, um

pensamento sociológico genuinamente brasileiro. Isso porque, apesar de constituirmos uma

nação formalmente livre no mundo desde 1822, não teríamos ainda eliminado as formas de

pensamento colonial. Viveríamos, portanto, em uma situação de alienação cultural,

produzindo um pensamento não funcional, do ponto de vista das necessidades reais do país, e

servil e mecânico, em relação à incorporação da produção intelectual internacional. Contra

uma "sociologia enlatada", Ramos propunha uma sociologia marcada pela "redução

sociológica" que consistiria em assimilar as teorias estrangeiras às condições da nação

brasileira (ao contrário da repetição acrítica de categorias e modelos exógenos importados por

nossos intelectuais, ou de um simples revanchismo nacionalista), de modo a fundar uma

sociologia autêntica como um processo coletivo – e não circunscrito às elites intelectuais – e

real, reduzido às condições de uma ex-colônia escravocrata, como o Brasil. A sociologia

deveria constituir, ao contrário de sua prática corrente nas academias brasileiras, um "saber de

salvação" (RAMOS, 1996, p. 11), possibilitando à sociedade assenhorar-se de si mesma em

prol de um projeto político autônomo. Parte desse projeto de fundação de uma nova

sociologia implicava na recuperação dos antecedentes da redução sociológica nas tradições de

Page 41: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

50

pensamento brasileiro, algo realizado pelo próprio Guerreiro Ramos em relação a diversos

autores, como Sylvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, etc. (1957; 1996).

Esse tema – da autenticidade do pensamento político brasileiro – é retomado de modo

distinto ao de Guerreiro Ramos, mas igualmente crítico, por Raymundo Faoro. Em texto já

citado aqui anteriormente, Existe um pensamento político brasileiro?, o autor, avaliando a

formação da inteligência nacional como um desdobramento da cultura política lusitana e

europeia, chega à polêmica conclusão de que não há um pensamento político propriamente

nacional. À luz das matrizes liberais europeias e estadunidenses, Faoro assevera que o

liberalismo brasileiro, diferentemente dos modelos originais, se constitui como “farsa das

elites” que, a despeito de todo discurso, mantém-se ciosas do status quo pré-moderno,

escravagista e autoritário, não constituindo, destarte, uma prática política liberal, caracterizada

pelo autor como um catálogo de direitos e garantias individuais contra os abusos do Estado e

de agentes particulares.

Poder-se-ia inferir da tese de Faoro a predominância de um puro pragmatismo

político; interpretamos, todavia, que longe de isso atestar a pouca relevância dos ideais e das

linguagens políticas na vida brasileira, o que Faoro quer criticamente destacar é que essas

tradições não completaram sua formação enquanto linguagem política, a orientar a práxis

política, de modo que são outros os discursos (não liberais e não democráticas) que acabaram

imperando no país.

Novamente cumpre retificar: nem sempre os intelectuais brasileiros adotaram a atitude

de rejeição ao pensamento brasileiro, como sugerem Ramos, Sorj e Soares. Pode-se encontrar

em um ou outro autor (como é o caso do próprio Guerreiro Ramos) a intenção declarada de

"dialogar" com nosso passado intelectual. Todavia, é fato que, com mais frequência até a

primeira metade do século XX, julgou-se que esse passado intelectual servia apenas como

crônica de nossa história política, tendo mais valor como “documento histórico” do que como

conhecimento científico. A negação, em maior ou menor grau, das tradições de pensamento

brasileiro, está, assim, associada ao próprio processo de consolidação acadêmica de um

"novo" saber, como explicam André Botelho e Milton Lahuerta:

O processo bem sucedido de institucionalização das Ciências Sociais no

Brasil, iniciado com sua implantação como cursos universitários na década

de 1930 (Miceli, 1995, 2001), mas cujos principais resultados, em termos de

produção do conhecimento, começaram a surgir apenas em torno da década

de 1950 não raro levou a minimização da relevância da tradição

intelectual anterior genericamente identificada como "pensamento

social e político". É claro que mesmo a geração pioneira da

institucionalização soube reconhecer, ainda que de modo extremamente

Page 42: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

51

seletivo e desigual, o papel das gerações anteriores, sobretudo a dos ensaístas

dos anos 1920-30, no processo de formação das ciências sociais no Brasil

(CANDIDO, 1950; RAMOS, 1961; FERNANDES, 1980). No entanto,

como se tratava de demarcar um "campo científico", o próprio

desenvolvimento das ciências sociais foi pensado, em termos gerais, a

partir de uma polarização mais ou menos disjuntiva entre o "caráter

científico das ciências sociais" e o "pré-científico" do pensamento social

e político (2005, p. 7, grifos nossos).

Há muito, Wanderley Guilherme dos Santos denunciava a pouca atenção dada à

"história intelectual brasileira":

Com a única exceção dos artigos de Guerreiro Ramos, os demais textos

abordam a matéria com forte "bias" institucional, em vista do que esta

herança é imediatamente classificada como pré-científica, pela única razão

de ter sido produzida antes da criação das escolas de Ciências Sociais. Costa

Pinto, Djacir de Menezes, Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes

mostram a mesma atitude com respeito à produção cultural pré-

institucionalizada no Brasil: considerando que a institucionalização da

atividade científica teve início apenas na década de 30, toda (sic) produção

anterior a esta data constitui-se de ensaios mais ou menos irrelevantes;

portanto, é desnecessário, senão, inútil, descobrir, organizar e discutir

qualquer predecessor eventual dos tempos modernos (Santos, 1970, p.

147, ênfase do autor, grifos nossos).

Santos, nesse caso, contesta fortemente a visão institucionalista sobre o pensamento

brasileiro, identificando na obra de Florestan Fernandes a expressão mais atualizada dela.

Assim, como bem observam Keinert e Silva, Wanderley Guilherme dos Santos, ao defender a

existência prévia de uma robusta reflexão sobre a política no Brasil anterior à

institucionalização das ciências sociais, está contestando fortemente “o mito da fundação”

difundido pela Escola de Sociologia paulista que constituiria o marco da verdadeira ciência

política e sociológica no país (KEINART & SILVA, 2009, p. 240).

Além da suposta menor "cientificidade", as formas de reflexão sobre o Brasil, datadas

do período anterior à institucionalização das Ciências Sociais, foram, por algum tempo,

caracterizadas como fortemente ideológicas. O “ensaísmo brasileiro” seria politicamente

interessado, de forma que sua meta era menos "explicar" a realidade e mais "agir" sobre ela. O

caso mais exemplar dessa avaliação foi o tratamento claramente negativo dado à produção

intelectual do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), caracterizado genericamente

por Caio Navarro de Toledo como uma "fábrica de ideologias" (1977). Longe de ser uma

exceção, o mesmo pode-se dizer, conforme a opinião de Botelho e Lahuerta, acerca da

interpretação hegemônica na sociologia paulista sobre as tradições "nacionalista",

"desenvolvimentista" e "populista" (BOTELHO & LAHUERTA, 2005, p.10).

Como bem resume Lessa, a criação da Ciência Política brasileira, com seu surgimento

Page 43: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

52

no final dos anos 1960 e com a determinação de seus padrões disciplinares em torno das

décadas 1970-80, envolveu, assim, um duplo processo: por um lado, a incorporação dessa

história de "curta duração" (não mais do que quatro gerações de cientistas políticos formados

no país) numa perspectiva mais larga, em que a Ciência Política estadunidense, com sua forte

inclinação behaviorista, foi determinante e, por outro lado, a ruptura e a demarcação crítica

em relação às representações passadas de nossa política, o chamado "pensamento brasileiro"

(2011, p. 20-21). Discordamos, destarte, de Keinert e Silva (2009) para quem a “inovação

acadêmica” inclui a reivindicação de pertencimento a uma tradição intelectual nacional;

embora isso seja verdadeiro no pensamento de alguns desses politólogos (como W. G. dos

Santos) não expressa, todavia, a tendência geral e mais acentuada.

Lessa salienta outro aspecto relevante, o da "autonomização" do político e do campo

disciplinar da Ciência Política brasileira. Se a tradição "ensaísta" sempre esteve atenta aos

fenômenos políticos, pelo menos desde a fundação do Estado brasileiro, ela não reclamou

uma autonomia da política como dimensão do real, como viria acontecer com os cientistas

políticos a partir de fins da década de 60 (em busca da delimitação de sua ciência) que

contestaram, em maior ou menor medida, os "historicismos", "sociologismos",

"economicismos", etc. na análise política. Como já havíamos destacado a respeito da obra de

Wanderley Guilherme dos Santos (MOREIRA, 2008), particularmente sobre Sessenta e

quatro: anatomia da crise, como uma obra expressiva de um momento de fundação da

linguagem da moderna Ciência Política brasileira, Lessa assevera:

Ao contrário de narrativas, típicas do universo mental anterior a 1964, nas

quais a política era percebida como efeito de dinâmica sociais e históricas

mais amplas, a nova cultura científica tenderá a pôr em relevo a

autonomia dos fenômenos políticos e institucionais. Vale dizer a sua

capacidade de constituírem-se em certo sentido em causas de si mesmos e a

exigir aproximações analíticas de corte internalista (2011, p. 43, grifos

nossos).

A autonomização da Ciência Política esteve, então, associada a uma ênfase no

potencial explicativo das instituições políticas, tomadas como variáveis independentes,

entendendo que a política consistiria numa dimensão própria da realidade social, que não se

subsumi a estrutura socioeconômica (mas, ao contrário, muitas vezes a explica), dimensão

essa que se identifica, grosso modo, com a esfera do Estado. Como diz Fábio Wanderley Reis

criticamente a esse respeito:

A política teria a ver com entidades e processos que ocorrem no âmbito do

Estado (na esfera formal dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário),

estendendo-se no máximo, como no caso dos partidos políticos, a entidades

que se orientam pelo objetivo de obter o controle do Estado (2007, p. 453).

Page 44: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

53

O ônus, no entanto, dessa autonomização da Ciência Política, concentrando a análise

nas instituições, é exatamente a inclinação de se distanciar das outras linguagens de

entendimento da política, sobretudo a Filosofia, a História e mesmo a Sociologia,25

de modo

que a própria a cultura fica relegada a um segundo plano.

Certamente que a postura em desqualificar o passado intelectual brasileiro tem se

tornado menos comum, como sugere a referida expansão dos estudos de Pensamento

Brasileiro. Em primeiro lugar, porque agora, numa fase pós-positivista, os critérios de

distinção do conhecimento científico já foram duramente questionados. Se a qualidade do que

é empírico foi posta sob judice, a discriminação entre uma "ciência social", mais

"explicativa", e o pensamento brasileiro, mais "interpretativo", é difícil de ser sustentada

(LESSA, 2011, p. 2).

Além disso, a crítica ao positivismo, como já foi mencionado, questionou duramente a

suposta neutralidade de valores da ciência. Como demonstraram, por exemplo, os recentes

trabalhos na historiografia anglo-saxã (em especial: SKINNER, 1969; 1999; 2010; POCOCK,

2003), os textos políticos constituem inevitavelmente atos políticos por meio dos quais seus

autores procuraram afetar a realidade, na medida em que estabelecem um diagnóstico da

política e de seus problemas, e em que sugerem um prognóstico, com normas de ação para

que eles sejam superados. Nesse sentido, os autores brasileiros do passado, antes

caracterizados e menosprezados como "ideológicos", sob esse novo prisma, não podem

diferenciados dos do presente.

Todavia, apesar da expansão desse campo de estudos, entendemos que alguns dos

preconceitos próprios àqueles que rejeitaram de antemão as tradições de reflexão do Brasil

(como "pré-científicas" e "ideológicas"), permanecem, ainda que atenuados, entre os

cientistas políticos do país. Por essa razão, assume-se quase consensualmente que a produção

do campo do Pensamento Brasileiro não interfere realmente sobre a literatura “empírica” de

Ciência Política. De fato, como alertamos, os estudos "teóricos" raramente se dedicam a

explicitar as relações entre as ideias estudadas e a prática política contemporânea, dando por

vezes a impressão de que as modificações no plano cultural e intelectual ocorrem por fatores

internos a esse campo. Além disso, é comum que dentro do próprio campo, a Teoria Política

se diferencie do Pensamento Brasileiro a partir da suposição de que no último campo se faz

25

Fábio Wanderley Reis, a despeito de ter tido uma forte formação acadêmica na Ciência Política norte-

americana, denunciou com frequência os excessivos "politicismos" da Ciência Política brasileira, sendo

muito mais favorável a uma visada sociológica da política (REIS, 2004a, 2004b, 2007).

Page 45: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

54

mais (para usar a terminologia de Ball) "teorização de segunda ordem", uma vez que nos

dedicamos a "estudar, ensinar e comentar os clássicos" do Brasil. Todavia, o fato dos estudos

de Pensamento Brasileiro assumirem com frequência o desenho de pesquisa de História de

Ideias denota, talvez, uma deficiência nesse campo já notada acima, mas não implica

necessariamente que não se faça "teorizações de primeira ordem", isto é, que se teorize sobre

as questões mais importantes da política, nem que essas ideias não permaneçam presentes na

cultura política do país. Podemos dizer, mais uma vez recorrendo à distinção de Ball, que é

possível ao mesmo tempo aprender sobre e com os pensadores brasileiros.

Em resumo, chegamos nesse ponto às seguintes conclusões. Os estudos de Teoria

Política se afastaram, no século passado, da Ciência Política, que emergiu como campo de

conhecimento independente das demais humanidades, principalmente da Filosofia e da

História. Um fator determinante nesse processo foi o domínio do modelo norte-americano de

Ciência Política que, desde a revolução behaviorista, assumiu um contorno empiricista e com

pouca atenção à dimensão teórica. Como resultado, por um lado, os estudos empíricos de

Ciência Política ficaram prejudicados pelo uso restrito e instrumental da teoria (chegando ao

corolário extremo de que os conceitos e valores políticos não interferem na prática política),

ao passo que, por outro lado, os estudos de Teoria Política, encastelados nos próprios limites

dessa subárea, assumiram ou um caráter puramente normativo ou de "História das Ideias". No

Brasil, como vimos, todo esse processo foi recebido de um modo um pouco distinto: os

estudos de Ciência Política eram mais diversificados do que os nos Estados Unidos, o que

redundou, em alguns casos, numa maior importância dada à Teoria Política, mas que

frequentemente não permitiu que a dimensão teórica fugisse às alternativas antes citadas.

Fator adicional nesse processo foi que, com bastante recorrência, os estudos de Ciência

Política não incorporaram com centralidade as reflexões do passado intelectual brasileiro. Não

obstante, se criou dentro do campo epistêmico mais amplo das Ciências Sociais, outra subárea

que reconhecia a existência desse passado, o Pensamento Político Brasileiro. Todavia, esse

reconhecimento, por sua vez, não foi suficiente para que os trabalhos dessa subárea pudessem

investigar com sistematicidade a vinculação entre as ideias políticas brasileiras e a prática

política em nosso país. Por maior densidade que essa área de estudos venha alcançando nas

últimas décadas, ainda são raros os trabalhos que não se limitam à interpretação isolada e

específica de pensadores isolados ou de escolas de pensamento e que deem especial destaque

à vinculação supracitada. Tudo se passa como se os pensamentos sobre a realidade política

brasileira tivessem pouco a informar sobre ela na atualidade, de sorte que todo esforço nessa

Page 46: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

55

área se resumisse a registrar as ideias políticas como fatos "perdidos" no passado. A política,

tal como vivenciada "na prática" seria puramente pragmática, uma luta cruenta pelo poder,

não sendo afetada por essas ideias e ideais.

Obviamente que muito se conquistou com a crescente especialização entre aqueles que

estudam a política, tanto na área "teórica" quanto nos estudos mais "empíricos": trabalhos

mais rigorosos, do ponto de vista do método e da fundamentação "empírica", estudos de

extrema erudição, especialmente entre aqueles que se dedicam a estudar a "teoria", etc. O

avanço na análise da realidade política com o emprego de novas técnicas de pesquisa é

considerável, como demonstram muitos dos denominados "estudos empíricos da política".26

Obviamente que não é o caso de renegar ou subestimar as vantagens do processo de divisão

social do trabalho intelectual, mas de encará-lo criticamente, alertando para a tendência ainda

presente em que teoria e prática política ficam apartadas uma da outra, do ponto de vista da

análise, quando se teria muito a ganhar em pensar ambas como parte de uma mesma

realidade. Tomar como uma unidade o "mundo mental" e o "mundo material" (as dimensões

subjetivas e objetivas da política poderá) fornecer à Ciência Política novas formas de

compreensão dos fenômenos por ela investigados.

É necessário também lembrar que o processo de "declínio" da Teoria Política foi

parcialmente revertido por volta dos anos de 1970, produzindo um crescente interesse nessa

área. Pensando, sobretudo, no contexto estadunidense, Ball avalia que esse "renascimento" é

decorrente de diversos fatores, entre eles, o declínio do positivismo lógico, duramente atacado

então, e do qual se nutriu a abordagem behaviorista; as inúmeras reações aos diagnósticos

sobre o "fim das ideologias" e que se basearam na recuperação das tradições políticas; a

irrupção de inúmeros movimentos sociais de contestação que colocaram na pauta do dia

questões centrais da teoria política; a obra clássica de Rawls já mencionada que, nesse

contexto de crescente ativismo político, destacava, a despeito de todo seu formalismo, a

questão precípua da justiça; por fim, também os estudos formulados em torno à Escola de

Cambridge, como os trabalhos de Quentin Skinner e John Pocock, entre outros, numa

perspectiva mais fortemente historiográfica do que a de Rawls.

Mesmo constatando seu "retorno", Ball considera que a Teoria Política ainda deve

restabelecer as relações com as investigações "empíricas", para benefício da própria Ciência

Política. O mesmo parecer é formulado por Lessa, com o qual concordamos, para quem não é

o caso de "recusar a 'vocação empírica' da Ciência Política, em nome de um tratamento

26

Uma visão mais geral da Ciência Política brasileira é apresentada em diversos artigos que compõem os

seguintes livros: MICELI, 1999; MARTINS, 2010.

Page 47: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

56

pretensamente filosófico" (2005, p. 55), mas de procurar repensar o que é considerado como

objeto precípuo de exame dessa ciência. Isso significa que devemos considerar pensamentos,

conceitos, ideias, ideais, linguagens – elementos do que se convenciona entender como

"objetos" da teoria política – como tão "empíricos" quanto as instituições, partidos, políticas

públicas – "objetos" que compõem a Ciência Política mainstream, superando a dicotomia

entre "real", "prático", "empírico", de um lado, e "cultural", "ideal", "linguístico", de outro.

O desiderato desta pesquisa é atuar no mesmo sentido do movimento de "retorno" à

Teoria Política, não supondo se tratar de uma simples recuperação histórica de ideias

passadas, nem tampouco transformar a Teoria Política em uma área de pesquisas puramente

filosóficas, mas de ter particular atenção para a existência de outras visões sobre a política que

historicamente podem ter sido obscurecidas pela hegemonia de certas ideias (SKINNER,

1988; 1999). Além disso, as pesquisas de Teoria Política e de Pensamento Brasileiro devem

estar atentas à permanência dessas ideias na história e na cultura política do país e para o seu

impacto sobre o comportamento político dos atores. Como uma presença, notada ou não,

esses pensamentos, valores, conceitos participam do cotidiano político brasileiro de tal modo

que, sem eles, esse mesmo cotidiano seria incompreensível.

Longe, portanto, da abordagem não-culturalista discutida logo ao início deste estudo,

entendemos que a cultura se funde à realidade política "material" precisamente através da

linguagem e que é elemento indissociável da vida política. Desse ponto de vista, da

indissociabilidade da dimensão objetiva e da dimensão subjetiva da política, a disputa entre

linguagens políticas deixa de ser compreendida como mera querela de eruditos e passa a ser

considerada, ao mesmo tempo, como índice e como parte componente das disputas entre os

interesses, que, como dizia Maquiavel, dividem inevitavelmente o corpo político.

Segundo essa perspectiva teórica, esta pesquisa ambiciona investigar as linguagens

que fundaram as formas de se pensar e vivenciar a democracia no Brasil, particularmente na

segunda metade do século XX. Elas foram, em maior ou menor grau, incorporadas pelo senso

comum, fazendo uso de seus conceitos que, todavia, não sendo unívocos, são objeto de

constante disputa na tentativa de garantir o seu "verdadeiro" significado. A ideia de

democracia, nesse caso, ajusta-se perfeitamente a esse enquadramento, pois ela pode assumir

sentidos díspares e mesmo antagônicos: democracia minimalista, maximalista, social,

eleitoral, racial, etc. Como Tocqueville já havia sido anunciado, no século XIX, a democracia

tornou-se uma força histórica inexorável a dominar o cenário político mundial. Entretanto, o

preço a se pagar por isso foi precisamente o dissenso em torno de seu significado.

Page 48: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

57

Há mais de cinquenta anos, no mundo ocidental, a democracia tornou-se o

horizonte normativo da prática e do discurso políticos. Tamanho consenso

esconde uma profunda divergência quanto ao sentido da democracia:

como é comum em relação a palavras que se tornam objetos de disputa

política, os diferentes grupos empenhados em ostentar o rótulo promovem

sua ressemantização, adequando seu significado aos interesses que defendem

(MIGUEL, 2005, p. 5, grifos nossos).

Essas linguagens políticas ainda são fundamentais porque conseguiram estabelecer os

impasses normativos mais importantes da democracia. Isso significa que podemos identificar

nelas – linguagens formuladas em um tempo histórico específico – não apenas dificuldades

circunstanciais, mas um conjunto de problemas estruturais que são de difícil solução e que

ainda fazem parte de nossa realidade política. Nesse sentido, elas se inserem em tradições

mais amplas de pensamento político, que também debatem esses impasses, fazendo com que a

compreensão da obra desses autores brasileiros implique necessariamente em remetê-los a

essas tradições. Antes de passar à análise dos autores, então selecionados, cumpre retomar a

discussão antes realizada sobre "teoria" e "prática" política, não mais do ponto de vista da

história da formação do campo epistêmicos da Ciência Política e da Teoria Política, mas sim

tendo como foco a questão do método de investigação desta pesquisa.

1.3 – Uma discussão de método: crítica à abordagem sociológica

Como foi dito, a subárea de Pensamento Brasileiro carece de estudos em que não

apenas um ou outro autor é objeto de análise, uma ou outra geração ou escola de pensamento,

mas que forneçam um quadro interpretativo em que, por um lado, se avalie o

compartilhamento de um mesmo contexto histórico-discursivo por um conjunto de

intelectuais (esforçando-se em compreender como uma mesma temática foi diferentemente

tratada por eles) e se identifique as grandes tendências na inteligência nacional, e, por outro

lado, analise a relação entre a obra desses intelectuais e a própria realidade política.

O livro de Daniel Pécaut, Os intelectuais e a política no Brasil, é uma exceção a essa

regra e trata, aproximadamente, do mesmo período por nós investigado. Nosso intento é

inicialmente avaliar a contribuição de Pécaut, bem como as críticas dirigidas a sua obra e,

posteriormente, discorrer sobre as proposições do chamado "contextualismo linguístico" e da

"História dos Conceitos", além de algumas observações do cientista político Mark Bevir sobre

esse debate. Partindo da crítica da primeira abordagem, argumentamos que uma análise das

obras dos intelectuais escolhidos segundo as últimas abordagens – incorporando

Page 49: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

58

seletivamente alguns de seus princípios metodológicos – pode propiciar um entendimento

complementar mais rigoroso do pensamento da época e dos grandes impasses a que a

democracia brasileira está sujeita. Desse modo, o objetivo desta pesquisa não se limita a

reconstruir historicamente a gênese do pensamento democrático brasileiro, mas entende que

ao recorrer a esses autores, estamos igualmente teorizando sobre democracia; "teorização de

primeira ordem" e de "segunda ordem" são, assim, partes de um mesmo processo de

investigação.

O livro de Pécaut constitui um exercício de compreensão das transformações pelas

quais passou o pensamento político brasileiro pelo longo período que se inicia em 1920 até o

processo de redemocratização do país nos princípios da década de 1980. A tese fundamental

do autor é que nesse longo intervalo temporal pode-se deslindar a tardia emergência do tema

da democracia, algo que ocorre em torno dos anos 1970, marcado por profundas

ambiguidades sobre qual democracia se faz necessária no país.

O autor utiliza o conceito de "cultura política", entendendo por isso o próprio processo

de formação de identidade dos intelectuais. Toda cultura política, conforme sua explanação,

apresenta três aspectos essenciais: 1) a autoposição social dos intelectuais (por exemplo, os

intelectuais brasileiros, de 1930-45, se pensavam como elite dirigente, ao passo que a geração

de 1964-68 vai recusar o discurso “populista” e “nacionalista” da geração anterior, mas

permanece vendo a si mesmos como "destinatários privilegiados" do processo de abertura

política) [PÉCAUT, 1990, p. 196]; 2) as "representações do fenômeno político" (idem, ibidem,

p. 18), de modo que se antes a democracia era em geral rechaçada passa, então, a centralizar a

nova simbologia política que mobiliza os intelectuais; 3) as "articulações entre o campo

intelectual e a esfera política" (idem, ibidem, p. 18), associando a atividade intelectual aos

planos do Estado. Note-se que é precisamente essa terceira dimensão que foi salientada

anteriormente como crucial para a compreensão que une teoria à prática política. Pécaut

analisa a atuação militante da intelectualidade nacional segundo um recorte geracional que

estipula dois períodos: de 1920-40 e de 1954-64.

A primeira geração, de 1920-40, é composta de um conjunto de intelectuais

preocupados precipuamente com a nação e o povo que, na concepção deles, permaneciam

apenas latentes e, além disso, com as instituições da Primeira República que não se

adaptavam à realidade. Para solucionar essas deficiências, eles propunham o fortalecimento

do Estado a fim de organizar a nação “de cima para baixo” e, consequentemente, rejeitavam a

democracia representativa. O tema da democracia, até então, estava subordinado ao tema da

Page 50: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

59

nação brasileira, sendo, em geral, desvalorizado. Exemplar dessa geração seria a obra de

Oliveira Vianna para quem a natureza de nossa sociedade clânica e a disposição passiva e

insolidária do "povo-massa" tornava as instituições da democracia liberal, importadas para cá

- como os partidos políticos - irrelevantes e ineficazes, ainda que pudessem ser úteis e

admiradas em outros cantos do planeta (VIANNA, 1939).

De acordo com Pécaut, mesmo pensadores liberais como Fernando Azevedo, por

exemplo, acreditavam que era necessário "romper com o liberalismo sem disciplina"

(PÉCAUT, 1990, p. 87), instituindo um Executivo forte a fim de barrar o comunismo; quer

dizer, tanto os autoritários, quanto os liberais eram muito refratários à criação de uma

democracia representativa no país, na medida em que ela é identificada com o domínio das

oligarquias regionais, ou com a desorganização, ou com o imobilismo político.

Essa avaliação conforma-se à visão de que no Brasil, o liberalismo, incipiente desde o

Império, assumia traços claramente distintos de seu correspondente europeu e norte-

americano, como, por exemplo, ao fazer a defesa da escravidão e a manutenção do status quo

das oligarquias, conforme argumenta Wanderley Guilherme dos Santos (1999). Comentando o

período do Império, como vimos, Raymundo Faoro também atesta a inexistência de um

liberalismo brasileiro como um pensamento político propriamente dito, isto é, como cultura

política enraizada na prática, não porque não tenha incorporado a democracia (pois essa

tradição também pôde na história ser antidemocrática27

), ou porque defendesse o trabalho

escravo (liberalismo e escravagismo também não são, em sua origem, incompatíveis), mas

porque não consolidou um catálogo de direitos e garantias do indivíduo. Por aqui, a

preocupação da tradição liberal não era proteger o indivíduo perante o Estado, mas conciliar

os interesses da burguesia incipiente aos da aristocracia rural, configurando um Estado como

"um monstro patrimonial-estamental-autoritário" do qual toda sociedade continuaria

dependente (FAORO, p. 1994, p. 85).

Durante a primeira metade do século XX, a questão da democracia, embora aparecesse

pontualmente, ainda não era importante a ponto de dividir nossos intelectuais ou de fazer com

que eles se voltassem para o entendimento de sua dinâmica. Tratava-se, nos termos de Fábio

Wanderley Reis (2000, p. 238-240), do estágio de desenvolvimento político de "state-

building", uma situação em que a institucionalização do poder é mais premente do que da

institucionalização da autoridade, momento em que a questão da democracia (versus o

27

Em outro trabalho, Faoro assevera com propriedade: “ocorre que, historicamente, o liberalismo não foi, na

sua origem, democrático, senão burguês e, em muitos resíduos, aristocrático” (1981, p. 12-13).

Page 51: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

60

autoritarismo) se coloca.

Já a segunda geração, delimitada na análise de Pécaut pelo período de 1954 a 1964,

não entendia que a identidade nacional fosse um problema, mas sim a influência externa que

obstruía o desenvolvimento econômico e a emancipação das classes populares. Eles não

reivindicavam o papel de elite intelectual e política (ao contrário da primeira geração), mas

entendiam que na sociedade de classes que se formava no Brasil, eles seriam os intérpretes

dos anseios do povo, orientando-o em seu papel revolucionário; a sua função fundamental

seria de conscientizá-los em relação à sua ação política. O ISEB, símbolo da síntese nacional-

desenvolvimentista dos anos 1950 e 60, seria expressão desse período, ao declarar que tinha a

meta de “formular o ‘sentimento das massas’” e, através da análise crítica da realidade

nacional, “inventar a ideologia que iria presidir a revolução brasileira” (PÉCAUT, 1990, p.

104).

Além disso, pode-se acrescentar que em duas outras grandes tradições de pensamento

político no Brasil em meados do século passado, na esquerda brasileira, ainda bastante

marcada pela cultura stalinista e mediada pela força política do PCB (Partido Comunista

Brasileiro), e no nacional-desenvolvimentismo com seu legado getulista, como se vê, por

exemplo, na produção intelectual do ISEB, a democracia não aparecia como valor central.

Claro que o quadro geral esboçado por Pécaut, de encontrar tendências de longa

duração no pensamento brasileiro, deve ser nuançado com a análise específica dos autores

desse período. Apenas para exemplificar, pode-se dizer que Celso Furtado (1962), o expoente

maior do nacional-desenvolvimentista no país, já havia feito, antes da década de 70, a defesa

do regime democrático, assim como Wanderley Guilherme dos Santos, por nós antes estudado

(MOREIRA, 2008). O marco histórico dos anos 1970, portanto, serve tão somente como um

divisor analítico que, em grande medida, mas não com total precisão, corresponde às grandes

linhas da história das ideias no país.

De qualquer forma, é certo que a ideia de democracia não comparecia no centro das

linguagens políticas do país até o segundo quartel do século XX, sendo sua ocorrência mais

marginal do que se verificaria no futuro. Mesmo nos autores supracitados como "exceção" à

regra, Furtado e Santos, é correto dizer que embora já defendessem abertamente a legalidade

democrática, como outros, suas obras não tinham ainda, como eixo do seu pensamento, o

tema da democracia.

Eram, ao contrário, os temas da nação e do povo brasileiro que dominavam o discurso

político no país. Trata-se, por conseguinte, de um período de transição em que esses conceitos

Page 52: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

61

vão se tornando aos poucos menos importantes nas principais linguagens da política, sendo

substituídos pela questão da democracia que mobilizaria, portanto, mais fortemente nossos

intelectuais.

A obra de Pécaut é ampla tanto na dimensão temporal – sendo seu recorte analítico de

aproximadamente sessenta anos – quanto no tratamento dos autores, avaliando os intelectuais

mais à direita (no extremo, a tradição autoritária) ou mais à esquerda, os diversos partidos que

se formam no período, as instituições como a CEPAL (Comissão Econômica para a América

Latina e o Caribe), ISEB, CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Compartilhamos da preocupação do autor em tentar produzir uma interpretação mais alargada

do pensamento brasileiro. Nesse aspecto, reconhecemos o seu mérito em identificar a "grande

passagem" no pensamento brasileiro da emergência do tema da democracia substituindo o

tema da nação, ao qual estava antes subordinado. Além disso, nos identificamos com sua

proposta em estabelecer sistematicamente a relação entre o "mundo cultural" (ideias, valores,

linguagens, etc.) e a "prática política", ações, projetos, comportamentos, etc. (item três da sua

definição de cultura política). No entanto, discordamos de alguns pressupostos desse autor

justamente ao estabelecer essa relação.

Primeiro, é evidente que a análise de Pécaut não avalia, a não ser muito

marginalmente, os argumentos formulados pela intelectualidade, quer para rejeitar a

democracia liberal, quer para defendê-la; eles só compõem a tese do autor como prova a

posteriori das intenções políticas dos intelectuais. Todavia, asseveramos que adotar os

interesses políticos de um autor, supostos pelo intérprete, como critério hermenêutico por

excelência induz ao risco de: 1) homogeneizar as ideias de quem se supõe pertencer a um

mesmo grupo político, ou, ao contrário, diferenciá-las a priori em função do diferente

pertencimento social; 2) adotar um critério ex-ante de análise da história das ideias que

dispensa a análise das mesmas, assumindo a tese que deveria ser comprovada (e não

simplesmente pressuposta) de que os conceitos e os discursos são meramente epifenômenos

de uma realidade ontologicamente anterior. É por isso que o segundo item de sua definição de

cultura política, as "representações do fenômeno político" (PÉCAUT, 1990, p. 18), é quase

desconsiderado ao longo de seu estudo. Entendemos que é preciso levar em conta as

aspirações políticas dos intelectuais, suas obras como ações políticas, como faz Pécaut, mas

não como algo instrumentalizado que serve simples e necessariamente aos seus interesses,

mas como um elemento que condiciona e forma esses próprios interesses.

Julgamos que a própria gramática e linguagem política adotada por um intelectual, ou

Page 53: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

62

dominante em um contexto intelectual específico estabelece certos valores, limites e também

certas perspectivas de análises, que não são necessária e diretamente condicionadas pela

posição social do pensador. Embora não possa ser compreendida sem a referência a um

contexto sócio-político (e também a um contexto linguístico), uma obra de pensamento

político, não obstante, deve ser examinada como um conjunto de argumentos e teses que

possuem uma relativa autonomia em relação a ele, que deve obedecer a regras e princípios

próprios do discurso e que está relacionada a uma visão de mundo, que não é sempre

imediatamente derivável dos seus interesses sociais e políticos.

Discordamos, pois, da leitura que entende a linguagem como mero instrumento

exterior e acessório à consciência humana, a serviço de interesses políticos ou sociais,

experimentada como um reflexo dessa última ou da estrutura social; a linguagem é, com

efeito, condição para que os interesses políticos sejam formados, ainda que possa ser,

eventualmente, instrumentalizada para fins políticos específicos. Concordamos, nesse passo,

com a proposição do filósofo Antonio Gramsci acerca da natureza da linguagem como algo

que guarda em si uma concepção de mundo, uma “filosofia”, de sorte que há um inevitável

comprometimento com valores, projetos, crenças quando se faz uso dela (SCHIRRU, 2010, p.

315-317).

Se Daniel Pécaut concentra sua análise na inserção social das diversas gerações de

intelectuais brasileiros e, particularmente, de sua relação com o poder estatal, deixa, todavia,

de lado (justamente pela abordagem de que se serve) a avaliação dessas novas linguagens

políticas da democracia. Não fica claro, por conseguinte, de que modo a democracia passa a

ser mais fortemente incorporada no discurso dos intelectuais brasileiros em meados dos anos

1970 – precisamente porque sua "sociologia dos intelectuais" não confere uma dinâmica

própria às ideias dos autores, sendo essas entendidas apenas como um subproduto de seus

interesses políticos.

Permanecemos ignorantes em relação a que tipo de democracia foi então valorizada, já

que que o conceito de democracia é eminentemente polissêmico, podendo, receber diferentes

significados. No caso dos intelectuais aqui eleitos para análise, cumpre desde já salientar,

apenas a título de exemplo, a aparente discrepância sobre a visão que cada qual tem acerca da

democracia necessária ao país. Enquanto, por exemplo, Celso Furtado considera criticamente

nossa formação histórica subdesenvolvida, e tendo em vista seu ideal político republicano,

anseia pela eliminação das desigualdades sociais e regionais como condição para a vivência

efetiva da democracia, Wanderley Guilherme dos Santos, por outro lado, considera que é um

Page 54: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

63

erro exigir que essas desigualdades sociais sejam forçosamente eliminadas pela democracia

que, a rigor, só deve extirpar as desigualdades políticas entre os indivíduos, requerendo

exclusivamente a condição da igualdade política (SANTOS, 2007). Evidentemente que a

concepção de democracia de cada um desses autores pode guardar relação com os grupos

políticos existentes; todavia, como linguagem política e como expressão de uma visão de

mundo, ela visa não apenas ser "funcional" para algum desses grupos, mas também

persuasiva, coerente e, em última instância, verdadeira. Em resumo, é equivocado assumir o

parti pris de que todo discurso político cumpre uma função política específica, conforme

comenta Faoro (1994, p. 13-14).

Não é o caso, por outro lado, de propor uma leitura contrária à de Pécaut, uma

abordagem "idealista" das obras. O que defendemos é que não deveríamos limitar a

investigação em saber apenas se a democracia foi realmente mais valorizada pelos intelectuais

brasileiros em comparação ao passado, e quais vantagens materiais e simbólicas eles tinham

em fazer isso, mas, principalmente, de que modo ocorreu essa valorização nas linguagens

utilizadas na política.

É mister mencionar que a interpretação de Pécaut já recebeu uma primeira forte crítica

feita por Sérgio Miceli, que, a princípio, poderia constituir uma leitura alternativa à do

primeiro. Ele afirma que Pécaut assume uma postura "doutrinário-politicista", na medida em

que sua análise privilegia as motivações políticas dos intelectuais brasileiros (sua aspiração de

grupo dirigente), caracterizada, "mannheineanamente", como uma camada social "sem

vínculos" e operando, erroneamente, uma autonomia do político e um "cancelamento do

social": "a posição social dos intelectuais logo se esvazia de qualquer teor significativo de

determinação sobre suas práticas políticas" (MICELI, 1999, p. 110).

Se Miceli tem alguma razão quanto à fragilidade da argumentação de Pécaut ao traçar

uma linha de continuidade na intelectualidade brasileira em torno de uma suposta vocação de

elite esclarecida e de sua disposição a se submeter ao Estado, ele se equivoca claramente na

medida em que não vê que a deficiência de sua obra não se deve apenas à fundamentação

empírica débil, mas precisamente por ele não extrapolar os limites dessa abordagem. Nesse

sentido, é evidente que ambos os intérpretes, Miceli e Pécaut, compartilham de um mesmo

método de análise, qual seja, o de que o entendimento das ideias e conceitos políticos deve

partir não do que é dito, mas do por quem é dito.28

28

Outro trabalho que incorre nos mesmos problemas mencionados do determinismo sociológico é o de Luiz

Carlos Jackson sobre as gerações pioneiras na Universidade de São Paulo. Novamente vários autores e obras

são citadas, mas os discursos propriamente ditos são interpretados em função da “inserção social” de cada

Page 55: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

64

Pécaut também critica o trabalho de Sérgio Miceli. Para ele, Intelectuais e classe

dirigente no Brasil constrói uma sociologia dos intelectuais em que a noção de "interesses" é

central, entendendo por isso: 1) a origem social; 2) a identificação com um grupo específico;

3) a inserção no aparelho do Estado. Assim, Miceli compreende, por exemplo, a obra literária

do poeta Carlos Drummond de Andrade como resultante do fato de ele ser filho de uma

família rica, mas decadente de Minas Gerais, e que, portanto, se identifica com a elite

intelectual do período que tem por missão modernizar o Brasil, mas que, dada a falta de

oportunidades, "sucumbe à sedução dos empregos públicos" que lhe são oferecidos. Pécaut

conclui que a visada sociológica de Miceli é demasiadamente estreita, pois supõe a "supressão

da autonomia ideológica", incorporando a crítica de Antônio Candido a Miceli de que, o fato

de Drummond ter se empregado como funcionário do Estado, não significa, necessariamente,

que ele teve que "alienar" a "menor parcela de sua dignidade ou autonomia mental"

(PÉCAUT, 1990, p. 21).

Para Pécaut, seria preciso superar esse estreito determinismo, não obstante, sem

romper com a ideia de interesses ou com a abordagem da sociologia dos intelectuais, mas

admitindo algum grau de autonomia à dimensão do político. É por esse motivo que ele afirma

que as auto-representações dos intelectuais devem ser também consideradas. A correta

avaliação de Pécaut sobre a obra de Miceli, contestando que o posicionamento político de um

indivíduo seja forçosamente derivável da sua posição social, ainda revela uma deficiência

grave: o pensamento propriamente dito (materializado em livros, panfletos, artigos,

pronunciamentos, etc.) sequer é avaliado por esse estudioso a fim de verificar a suposta

correspondência com a posição social ou com os fins políticos. Em outras palavras, embora

reclame a concessão de maior autonomia do político, Pécaut ainda supõe que o pensamento

sobre o político está necessariamente condicionado pelas intenções políticas dos atores, o que

o impede de dar mais atenção a essa dimensão.

Os dois autores, portanto, não fornecem elementos suficientes para a compreensão das

mudanças discursivas pelas quais passou o pensamento político-social brasileiro no século

passado. Novamente, importa ressaltar que não se está advogando aqui a irrelevância da

“sociologia dos intelectuais” tout court; mais razoável parece ser a postura (estranhamente)

defendida pelo próprio Miceli ao final do texto supracitado, de que se têm mais a ganhar com

intelectual no grupo acadêmico em questão, pressuposta pelo intérprete e tida como “explicação última” para

o significado da obra. Sobre, por exemplo, as divergências teóricas entre esse grupo (composto por Florestan

Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, entre outros), Jackson afirma: “a heterogeneidade

social do grupo pode ter sido motivo de tensões internas, vinculadas a assimetrias derivadas das posses

desiguais de capital econômico, cultural e ‘de gênero’” (2007, p. 125).

Page 56: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

65

uma confluência de abordagens que nos parecem ser "complementares" (MICELI, 1999, p.

140). Ainda que não pretendamos descuidar dos elementos sociais e políticos na interpretação

das ideias, eles devem ser considerados menos como fator explicativo e ponto de partida da

análise, como supõem os autores supramencionados, e mais como limitações de época e fator

a ser avaliado a posteriori à leitura dos textos. Avançando no argumento a partir da análise de

outros referenciais teóricos – principalmente o contextualismo linguístico e a História dos

Conceitos – procuraremos demonstrar em que medida podemos enriquecer o diagnóstico do

pensamento político brasileiro do século XX com a adoção crítica e seletiva de alguns

princípios dessas correntes.

1.4 – Apontamentos metodológicos: contextualismo linguístico, História dos Conceitos e

a “Lógica da história das ideias”.

Por contextualismo linguístico ou Escola de Cambridge entendemos a produção que

há, aproximadamente cinquenta anos, tem sido elaborada por um conjunto de estudiosos que

contribuiu fortemente para a renovação dos estudos de teoria política. Por questões de

praticidade, nos limitaremos às obras de Quentin Skinner e John Pocock, os dois maiores

expoentes dessa Escola. Como se viu, essa escola de pensamento é considerada por Ball como

uma das responsáveis pelo renascimento da Teoria Política no mundo acadêmico, identificada

por alguns estudiosos como formuladores de uma "Nova História" (GUNNELL, 1982, p. 317-

318), ainda que seja encarada por outros cientistas políticos, como produtora de um

pensamento "estéril", de simples "retorno" aos clássicos (REIS, 1997, p.15-16). Como avalia

Gunnell, a abordagem mais filosófica das ideias políticas cedia lugar, a partir dessa escola, a

uma visão mais histórica das mesmas.

O texto seminal de Skinner, frequentemente citado por seus "discípulos" e seus críticos

é Meaning and understanding in history of ideas, originalmente publicado em 1969, em que

ele se contrapõe às mitologias comuns à História das Ideias. Seu sentido principal é criticar as

tradicionais Histórias das Ideias que as retiram de seus contextos originais. Para Skinner, esse

"vício" interpretativo gera quatro tipos de mitologias: a da doutrina, na qual proposições

dispersas ou circunstanciais de um autor clássico são reunidas num corpo doutrinário

pressuposto pelo intérprete; a da coerência, em que se presume que o autor quis elaborar um

sistema fechado de ideias, de modo que afirmações diversas e contraditórias em relação à

suposta "tese" fundamental desse autor são desconsideradas; a da prolepse, isto é, a atribuição

Page 57: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

66

de um valor histórico de antecipação à contribuição do autor, inexistente à época desse autor,

confundindo "o significado dos enunciados para o historiador com o significado para o autor"

(SILVA, 2010, p. 304), de modo que, por exemplo, já se poderia identificar na República de

Platão a concepção totalitária de política (SKINNER, 1988, p. 44); a do paroquialismo ou

localismo em que se estabelece semelhanças entre o universo cultural do intérprete e o do

pensador estudado, por exemplo, quando o primeiro associa a obra do segundo a um

pensamento com a qual está familiarizado. Como bem observa Ricardo Silva:

A característica comum a todas essas "mitologias" seria a produção de

interpretações "anacrônicas", mediante as quais são atribuídas a

determinado autor ideias e intenções cujos recursos linguísticos-expressivos

eram ainda indisponíveis no contexto histórico do proferimento (2010, p.

305, grifos nossos).

Percebe-se que o esforço intelectual de Skinner visa à reconstituição fidedigna do

significado do texto, tal como o seu autor pretendeu que ele fosse compreendido em seu

contexto original. Em geral, para essa escola de pensamento, "interpretação é uma questão de

encontrar o contexto em relação ao qual um texto é inteligível e fechando o contexto o mais

firme possível na tentativa de eliminar leituras alternativas"29

(GUNNELL, 1982, p. 318, trad.

nossa).

Skinner critica também os historiadores que privilegiam o contexto social na

abordagem de um texto que, de acordo com ele, confundem determinação causal e

compreensão; não é o caso que o contexto socioeconômico seja irrelevante para a

compreensão do ato linguístico, mas ele não explica, por exemplo, como numa mesma

conjuntura, autores possam expressar ideias e ter intenções tão díspares. É precisamente essa

perspectiva que identificamos como sendo própria de Pécaut e Miceli e com a qual

discordamos. Essa crítica de Skinner é particularmente interessada aos intérpretes da história

intelectual influenciados por certo clima “marxizante”, postulando um determinismo

econômico em relação às ideias, clima este dominante na academia anglófona no final dos

anos 1960, como reconhece o próprio Skinner em entrevista (SEBASTIÁN, 2007).

O autor se opõe também àqueles que supõem existirem ideias perenes na história do

pensamento político, de modo que cada pensador responderia às mesmas questões, formando

um contínuo mais ou menos homogêneo de pensamento. Em sua visada historicista, Skinner

crê que por mais inovador que seja um indivíduo, ele está limitado ao seu contexto histórico

específico.

29

Interpretation is a matter of finding contexts in which a text is intelligible and then closing the context tightly

as possible in an attempt to eliminate alternative readings.

Page 58: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

67

O autor condena igualmente o textualismo, caracterizado como a abordagem em que a

compreensão do significado de um texto se dá através da imersão profunda e sistemática na

obra do autor, lida e relida pelo intérprete. Skinner se posiciona contra os intérpretes que

assumiam o parti pris da autonomia textual e que, portanto, consideram que a compreensão

de uma obra implicava na imersão no texto em busca de uma ideia-núcleo; importa, segundo

ele, investigar o contexto discursivo em que ele foi gestado a fim de determinar que

significados estavam à disposição do pensador do passado, quais eram os pontos principais de

debate, etc. Esse é o erro em que incorre as leituras mais imanentes à obra de um autor. Não

raro, a abordagem textualista dos textos mais canônicos associava-se à ideia mencionada

acima de que os conceitos e problemas teóricos permaneciam incólumes ao longo da história

do pensamento político.

Mas em que, então, deve consistir o ofício do historiador das ideias? Para entender a

resposta skinneriana é necessário compreender a chamada "virada linguística", segundo a qual

"palavras também são atos" (SILVA, 2010, p. 306). Profundamente influenciado por esse

movimento intelectual, Skinner adota a taxonomia que diferencia três dimensões dos atos de

fala: a locucionária, correspondente ao conteúdo proposicional do proferimento, a

ilocucionária, relativa ao que o ator está fazendo ao dizer algo e a dimensão perlocucionária,

que diz respeito ao efeito produzido numa audiência. Para ele, as histórias das ideias

convencionais concentram a análise na dimensão locucionária dos atos de fala (o que se diz),

às vezes consideram em menor medida a dimensão perlocucionária (os efeitos do que se diz),

mas ignoram a ilocucionária. Todavia, argumenta ele, é nessa dimensão que reside a força do

ato linguístico, pois ela representa a intenção do autor (Cf. SKINNER, 1988, p.61).

De acordo com Skinner, o objetivo último do historiador é resgatar a intenção do autor

estudado ao proferir o conjunto de proposições que compõem o seu texto. A fim de evitar o

subjetivismo de sua perspectiva intencionalista, Skinner afirma que o historiador analisa não a

consciência de um autor, mas aquilo que este tornou público por meio da escrita. Cercando o

texto pelas convenções linguísticas e sociais em que ele se situa, o intérprete poderia detectar

que tipo de intenção um dado pensador teve ao proferir determinada sentença. Nesse sentido,

o contexto linguístico "determina" como "marco último" de uma obra, não de modo que ela

seja "espelho" do primeiro, mas de modo que limita as possibilidades de intenção ("o que ele

quis dizer") dadas em um enunciado numa determinada época.

Em suma, a conclusão negativa de Skinner sobre a história intelectual é que não é

adequado concentrar-se na obra de um único autor na busca de compreender o seu

Page 59: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

68

pensamento, ou rastrear a morfologia de um conceito isoladamente ao longo do tempo, nem

tampouco utilizar o contexto social como meio de compreensão suficiente das obras

avaliadas. A conclusão positiva, resultante de sua proposição metodológica é que se deve

procurar determinar todos os significados possíveis de um enunciado através da comparação

com o contexto linguístico em que ele foi feito (SKINNER, 1988, p. 64).

A contribuição desse autor parece ser inequívoca: primeiro ele reanimou o debate

sobre os estudos "teóricos". Em segundo lugar, fomentou um extenso e rico debate sobre a

tradição de pensamento político do humanismo cívico, contestando fortemente o liberalismo

hegemônico da segunda metade do século passado (SKINNER, 1999; 2010). Em terceiro

lugar, criticou de modo consistente todas as formas de anacronismos muito comuns nas

tradicionais histórias das ideias. Por essas razões, como se verá adiante, a sua obra é, em

grande medida, elogiada mesmo pela abordagem "alternativa" da História dos Conceitos

(RICHTER, 2006). Sua intenção em situar a compreensão dos textos nos seus respectivos

contextos históricos é vista como uma importante ferramenta a ser empregada nesta pesquisa.

Todavia, ela parece ter alguns limites claros. Ricardo Silva identifica três tipos de

críticas que são endereçadas a Skinner: a acusação de que sua abordagem redunda numa

forma de "antiquarismo", inócuo para pensar o presente; as críticas à equivalência entre o

significado de um texto e a intenção do autor; e a objeção quanto ao estatuto epistemológico

de sua metodologia.30

Como foi dito, Skinner considera um equívoco o entendimento de que os textos dos

autores do passado são verdades atemporais, de modo que eles poderiam apresentar soluções

para o nosso tempo, configurando o presentismo a ser evitado. Se todo texto está isolado em

um contexto específico, distinto do de seu intérprete, poderíamos nos perguntar qual é o

sentido de investigá-los. Como diz Femia, "se todos os eventos são sui generis, não podemos

escrever história; podemos apenas empilhar documentos" (apud SILVA, 2010, p. 322). A

crítica do antiquarismo é correta na medida em que revela a necessidade de se entender as

tradições de pensamento político ou as continuidades na história das ideias, em diálogo com

as preocupações do presente, evitando uma fragmentação da história.

Em vez da individualização do passado e de sua fixação em um contexto

radicalmente distinto do contexto do próprio intérprete, dever-se-ia

enfatizar as continuidades entre passado e presente; de outro modo, a

própria noção de tradição intelectual seria inconcebível. Caberia ao

historiador a busca de significado de um texto por meio de um "diálogo"

com as obras clássicas, buscando a "fusão de horizontes" entre passado e

30

Para outras críticas à obra skinneriana, ver: GUNNELL, 1982; TULLY, 1988.

Page 60: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

69

presente (SILVA, 2010, p. 322, grifos nossos).

Todavia, essa crítica se equivoca, pois julga ser necessariamente inútil o estudo das

ideias do passado se elas estiverem circunscritas à sua época. Como responde Skinner, é no

estudo das culturas do passado que também podemos encontrar novas concepções e soluções

para problemas para os quais os paradigmas do presente não apresentam solução. Mesmo não

sendo possível o aprendizado de uma sabedoria atemporal e universal a partir dos textos do

passado (como se todos os "grandes autores" tivessem respondido às mesmas questões), eles

permanecem sendo relevantes para a contemporaneidade, uma vez que nos auxilia a superar o

paroquialismo de nossos valores e crenças, desnaturalizando-as. Além de aguçar nossa

percepção sobre nossos valores, ele argumenta que o estudo das ideias do passado se justifica

na medida em que nos torna capazes de compreender que "as ideias que circulam no presente

estão longe de representar o coroamento de um processo racional de desenvolvimento

ideológico, para o qual os clássicos teriam contribuído decisivamente" (SILVA, 2009, p. 311).

Como diz o próprio Skinner:

Assim, exigir da história do pensamento uma solução a nossos próprios

problemas imediatos é cometer não simplesmente uma falácia metodológica,

mas algo como um erro moral. Mas aprender com o passado - e do

contrário não podemos aprender em absoluto - a distinção entre o que é

necessário e o que é mero produto de nossos dispositivos contingentes é

aprender a chave da autoconsciência mesma (SKINNER, 1988, grifos e

trad. nossa, p. 67).31

Nessa direção, nos parece primoroso seu estudo sobre republicanismo e a filosofia de

Thomas Hobbes, demonstrando que antes de se consolidar o conceito liberal de liberdade

como “não interferência", que se tornaria dominante no mundo moderno, havia um conceito

de liberdade que não se limita às organizações sociais do passado (não é uma concepção pré-

moderna de liberdade), mas que conformava o debate do qual participaram Hobbes, John

Milton, James Harrington, entre outros na Inglaterra do século XVII, em que a liberdade era

com frequência associada à participação no governo pelos cidadãos.

A História das Ideias, destarte, constitui-se uma ferramenta importante para a Teoria

Política, revelando utopias esquecidas, bem como aguçando nossa percepção sobre conceitos

herdados e seus usos na atualidade, nuançando aquela diferenciação feita por Ball entre dois

tipos distintos de teorização. Consideramos que é preciso evitar um historicismo excessivo

31

To demand from history of thought a solution to our immediate problems is thus to commit not merely a

methodological fallacy, but something like a moral error. But to learn from the past - and we cannot

otherwise learn at all - the distinction between what is necessary and what is the product merely of our

contingent arrangements, is to learn the key to self-awareness itself.

Page 61: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

70

que redundaria na dispersão da história em momentos fragmentados, impedindo-nos de

compreender as tradições de pensamento político que se formaram, assim como igualmente

devemos assumir que o exame de uma obra intelectual do passado é em si mesmo relevante,

na medida em que nos permite reavaliar nossos próprios conceitos e crenças.32

O segundo tipo de crítica a Skinner refere-se ao intencionalismo de sua abordagem.

Alguns contestam ser possível recuperar a intenção do autor de um texto; outros, como Paul

Ricouer não negam a possibilidade desse empreendimento, mas afirmam que identificar ato

ilocucionário (intenção) e o significado de um texto é uma impropriedade, pois o discurso

escrito possui características distintas da fala (caso em que ocorre essa equivalência entre

intenção e dimensão ilocucionária), como sua maior independência e o fato de não se dirigir a

um interlocutor fixo. As dimensões ilocucionária e perlocucionária, no caso do discurso

textual, mereceriam um tratamento diferenciado que não se encontra na teoria dos atos de fala

utilizada por Skinner.

Desde já, é mister enfatizar que a abordagem skinneriana, ao privilegiar o elemento

ilocucionário da linguagem, dá menor atenção a uma dimensão que se tornou bastante

estudada mais recentemente e que nos parece importante, a história da recepção dos conceitos

(efeito perlocucionário), principalmente pela área de estudos da História Conceitual, a ser

discutida adiante. Donald Kelley contesta a supremacia da intenção autoral, como se essa

resumisse o significado do texto – desconsiderando sua recepção e fortuna – asseverando que

já não é mais possível no campo da História das Ideias cometer esse equívoco:

Não podemos aceitar acriticamente a noção de um sujeito autônomo, ou o

autor soberano, que opera além das restrições da língua e da cultura.

Devemos rejeitar a simples equação entre o significado e a intenção do autor

não só por força de intimidação da tradição de linguagem e retórica, mas

também porque a história intelectual está ao menos tão preocupada com

a leitura e a escrita de textos - a recepção e a distorção, bem como a

criação e transmissão de ideias e da cultura (KELLEY, 1990, p. 24, trad. e

grifos nossos).33

Nesse mesmo conjunto de críticas a Skinner, Mark Bevir (2008) aponta as seguintes

deficiências no intencionalismo skinneriano: ao concentrar a análise na força ilocucionária

32

Nesse sentido, parece-nos apropriado ainda que parta de metodologia distinta da aqui adotada, a perspectiva

de Gildo Marçal Brandão de investigar as diversas linhagens do pensamento brasileiro, tomando em

consideração não apenas as semelhanças entre as obras de intelectuais de épocas distintas, como também as

suas diferenças e a diversidade do contexto em que cada qual está inserido (BRANDÃO, 2008). 33

We cannot accept uncritically the notion of an autonomous subject, or sovereign author, who operates beyond

the restrictions of language and culture. We must reject the simple equation between meaning and authorial

intention not only because of the intimidation force of language and rhetorical tradition but also because

intellectual history is at least as concerned with the reading and writing of texts - the reception and distortion

as well as creation and transmission of ideas and culture.

Page 62: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

71

dos enunciados, o historiador britânico teria dado ênfase excessiva na intenção consciente do

autor e não em suas crenças. Julgamos que esse aspecto destacado por Bevir é fundamental,

pois diz respeito à questão dos valores políticos e morais de um pensador. Assim, quando

falamos de uma linguagem política formulada por um intelectual, devemos considerar que

essa linguagem expressa uma concepção de mundo própria, dotada de valores e de um projeto

político; por outro lado, a dimensão intencional é também relevante na medida em que supõe

que todo pensador quer intervir no debate público como se agisse politicamente. Além disso,

Bevir comenta que se significado do texto e intenção do autor são equivalentes, o primeiro

parece, desta arte, não depender do processo de interpretação do texto, de modo que Skinner

adota uma perspectiva que ignora que um texto não tem um significado intrínseco ou único,

podendo ele variar para os leitores.

Uma última polêmica formada em torno à obra de Skinner diz respeito às premissas

epistemológicas de seu método. Salienta-se que o autor parece acreditar ser possível que o

intérprete de um texto, por um processo de autocontrole, separe radicalmente os seus próprios

conceitos dos do autor estudado, desconsiderando que, para que qualquer interpretação se

torne viável, é preciso um compartilhamento linguístico mínimo entre intérprete e o autor.

Muitos, portanto, asseveram que a proposta skinneriana leva, no limite, a uma nova forma de

positivismo, no qual se assume a premissa relativa à possibilidade de reconstrução objetiva do

passado. Concordamos que “descobrir a intenção original do autor” ("o que ele quis dizer

quando formulou determinada proposição?") não parece representar apropriadamente o ofício

inerentemente interpretativo.

Para Skinner, ademais, o historiador das ideias não deve se ocupar em avaliar a

veracidade ou falsidade das proposições de um determinado autor, sendo esse elemento

irrelevante na compreensão de um texto; importa considerar o "conflito ideológico" na

formulação das ideias, não exatamente a sua maior ou menor verdade. Entendemos que a

pesquisa aqui proposta não se resume à investigação historiográfica, mas faz uso dela para,

sim, julgar as principais linguagens da democracia no pensamento brasileiro, ponderando sim

sobre suas possibilidades e limites de compreensão do real. Na realidade, mesmo o próprio

Skinner não está simplesmente explicando a emergência de certas crenças, mas também as

avaliando criticamente, como demonstram seus estudos sobre o conceito de liberdade (1999;

2010).

A obra de John Pocock, outro importante membro da Escola de Cambridge, contribui

também para o aprimoramento no estudo das ideias políticas. Sua proposta em que as

Page 63: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

72

linguagens políticas em disputa em um contexto, ou as performances de cada pensador

(parole) em relação à tessitura linguística (langue), ressaltam, tanto quanto a de Skinner, que

qualquer obra de teoria política visa, entre outras coisas, atuar como força política em seu

contexto, polemizando com outros pensadores, prescrevendo estratégias de ação, intervindo

no debate público, etc. Note-se que todos intelectuais brasileiros selecionados nesta pesquisa,

atuaram por mais de meio século no espaço público publicando artigos em veículos de

comunicação de massa, alguns organizando movimentos políticos de reivindicação, ajudando

a formar os atores políticos. Nesse sentido, incorporamos com centralidade a noção de

linguagem política adotada por Pocock.

Esse autor se esforça em dar alguma solução a problemas antes levantados em

referência à obra skinneriana. Em primeiro lugar, reconhece que é preciso superar a ideia de

resgate das intenções de um autor a fim de se evitar certos paradoxos, principalmente o

círculo hermenêutico (no qual o texto revelaria a intenção do autor e essa, por usa vez, seria o

critério de interpretação do primeiro). Afirma que as intenções de um autor não são algo em

separado que existe na mente de um indivíduo; elas são determinadas também pelos modos de

discurso disponíveis em seu momento histórico. A parole de um pensamento encontra,

destarte, seus limites externos na langue compartilhada pelos falantes. Nesse sentido, a

história do pensamento político para Pocock torna-se a história do discurso (langue e paroles),

entendendo o discurso como o conjunto de linguagens e modos de argumentação (mais ou

menos retóricos, mais ou menos consistentes, etc.) existentes e em transformação em um dado

período. Em Pocock, a ideia de resgate da intenção é atenuada, mas não totalmente abolida;

quando se interroga sobre a parole, ele está se perguntando sobre o "lance" ou performance

pretendida por um autor em um determinado contexto.

A performance do texto é a sua performance como parole em um

contexto de langue. Esse contexto pode simplesmente dar continuidade às

convenções atuantes na linguagem. Ele pode servir para nos indicar que essa

linguagem continuava a ser usada em um mundo que estava em mudança e

que estava começando a mudá-la. Ou ele pode atuar tanto sobre quanto na

linguagem que é seu meio, inovando de maneiras que trazem mudanças

maiores ou menores, mais ou menos radicais, no uso da linguagem ou da

linguagem de segunda ordem que discorre sobre essa linguagem (...)

(POCOCK, 2003, p. 39, grifos nossos).

Como esse autor, acreditamos que os textos sobre política não devem ser

compreendidos apenas como peças de curiosidade intelectual, mas como ações que procuram

influenciar na realidade política de cada época. Atento às inovações discursivas, às

transformações de tópicas discursivas estabilizadas, ou à introdução de novos conceitos, o

Page 64: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

73

historiador da política (e o cientista político que dela faz uso) deve focar sua investigação no

público ao qual se dirige os textos, aos atos de fala que se tornam conhecidos e geram

réplicas, isto é, à recepção do texto no seu contexto (ato perlocucionário), de modo a perceber

se esse texto ou conjunto de atos discursivos produziu ou não um efeito constante no tempo

de transmissão e reiteração de linguagens, gerando, junto a outros escritos, uma tradição. No

caso de nossa pesquisa, será fundamental compreender como os diferentes intelectuais

formaram uma linguagem própria para tratar da democracia brasileira num contexto em que

nosso país era governado por presidentes não eleitos e que cerceavam frequentemente as

liberdades consideradas fundamentais a um regime democrático.

O autor nos alerta quanto a um possível equívoco já tratado anteriormente: ao perceber

como as linguagens políticas vão se constituindo ao longo do tempo, é preciso estar alerta

para não supor que elas refletem a experiência na qual estão circunscritas. Como ele diz, "a

linguagem reflete a si mesma e fala extensamente sobre si mesma" (idem, ibidem, p. 56,

grifos nossos), interagindo e não simplesmente reagindo aos fenômenos, como dizíamos ao

tratar dos trabalhos de Pécaut e Miceli. Sua perspectiva alarga bastante o horizonte de

possibilidades numa pesquisa como a nossa. Seguimos, nesse passo, a apreciação de Marcelo

Jasmim sobre sua obra:

Em primeiro lugar porque, embora também opere com a análise de obras e

de autores, o centro de sua reflexão metodológica desloca-se para a relação

entre as várias linguagens políticas que, no seu confronto sincrônico,

conformam a tessitura linguística (langue) na qual as diversas performances

(parole) se tornam possíveis e inteligíveis. Também em Pocock, o esforço de

desnaturalização da conceituação e dos horizontes teóricos contemporâneos

se faz presente (2005, p. 29).

Pocock chama a atenção (como Skinner) para a possibilidade de, ao encontrar novas

linguagens políticas "perdidas" na história, problematizar as linguagens políticas vigentes e

dominantes de nosso tempo, revelando, portanto, seu caráter contingente e por vezes

problemático. Vejamos agora as ideias de outra corrente influente na história das ideais

contemporâneas, a História dos Conceitos34

, baseando-se particularmente na obra do pensador

alemão Reinhart Koselleck.

A História Conceitual inicia-se em meados dos anos 60 com a publicação do livro

Futuro passado de Koselleck, e relaciona-se ao projeto maior de um conjunto de intelectuais

na edição de diversos dicionários de conceitos. Embora também tenha sido profundamente

34

Optou-se por grafar o nome dessa “abordagem” com iniciais maiúsculas justamente porque, como observa

acertadamente João Feres Jr (2009), a História dos Conceitos consiste em não apenas uma perspectiva na

História das Ideias (como é o caso da escola de Cambridge), mas em um campo próprio de estudos.

Page 65: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

74

afetado pelo "giro linguístico", existem algumas diferenças entre o seu modo de conceber o

fazer historiográfico e a "Escola de Cambridge".

Enquanto Skinner e Pocock procuram destacar os conflitos em torno das linguagens

políticas (e o uso pragmático e ideológico delas), os trabalhos de Koselleck concentram-se no

conteúdo semântico dos conceitos sociais e políticos e nas implicações desse processo na

teoria da história. Ele se volta para o processo de constituição do tempo histórico que

caracteriza a modernidade: se no passado, a História (Historie) referia-se ao conjunto de

relatos herdados do passado, que poderiam ser utilizados para a compreensão do presente

(historia magistra vitae), a partir do século XVIII, ela (Geschichte) passa a ser compreendida

como um processo único, marcado pela ideia de movimento.

Uma vez que nosso objeto de estudo não é a sua teoria da história, importa reter

algumas de suas contribuições para o campo da História das Ideias. A fim de superar

deficiências das tradições da História do Espírito e da História das Ideias de corte hegeliano,

influentes em seu país de origem, inclusive pela pressuposição de uma evolução intelectual

progressiva (contra a qual Skinner também se manifesta), Koselleck defendeu uma maior

contextualização dos conceitos do passado a fim de se evitar interpretações anacrônicas, bem

como a essencialização das ideias. Note-se na citação de Jasmim acerca do trabalho de

Koselleck, a proximidade de seu projeto com Skinner e Pocock:

Daí que a reivindicação metodológica mínima possa ser resumida nos

seguintes termos: os conflitos políticos e sociais do passado devem ser

descobertos e interpretados através do horizonte conceitual que lhes é

coetâneo e em termos dos usos linguísticos, mutuamente compartilhados e

desempenhados pelos atores que participaram desses conflitos. Desse modo,

o trabalho de explicação conceitual quer precisar as proposições passadas em

seus termos próprios, tornando mais claras as "circunstâncias intencionais

contemporâneas" em que foram formuladas (JASMIM, 2005, p. 32).

Com efeito, os três autores adotam uma perspectiva historicista, que deve ser

entendida como uma reação à Teoria Política e à história praticadas no segundo pós-guerra na

qual predominavam, de um lado, no campo mais geral da Ciência Política, a proposição

behaviorista da inutilidade da Teoria Política tradicional e, no domínio historiográfico em

particular, a valorização da história social em detrimento da história intelectual. Tornou-se

bastante conhecida nessa época a declaração de Peter Laslett, nos anos 1950, de que a Teoria

Política estava “morta” (BALL, 2004, p. 10). O certo é que, assim como fim das ideologias e

da história não se concretizou, os estudos de Teoria Política e de História Intelectual

frutificaram bastante, graças precisamente às tradições historiográficas inglesa e alemã.

Seus trabalhos constituem uma alternativa à instrumentalização simplificadora da

Page 66: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

75

Teoria Política, como meio de fundamentação de pesquisas empíricas (entendida numa chave

não-historicista) e também aos estudos teóricos puramente normativos. Entre esses "dois"

usos da Teoria Política, esses autores e a tradição que eles representam inauguram uma nova

forma de se conceber a História das Ideias e a Teoria Política, em que a primeira não é um

mero instrumento a serviço da segunda. Como defendemos anteriormente, Kari Palonen

afirma que a História Conceitual tal como praticada por Skinner e Koselleck, não é um

preâmbulo à Teoria Política, mas novo estilo de teorização em si mesma (SILVA, 2009, p.

306). Acreditamos que esse ponto de acordo entre eles é sumamente importante, pois se

percebe que ainda hoje os estudos de Pensamento Brasileiro são pouco considerados na

Ciência Política mainstream brasileira, como algo de menor importância que os estudos

"empíricos", e mesmo quando comparado à Teoria Política lato senso.

Deve-se destacar igualmente que Skinner, Pocock e Koselleck rejeitam o

epifenomenalismo em que conceitos, ideias e discursos são tratados como reflexos de uma

outra realidade (vimos como esse entendimento está presente nos trabalhos de Pécaut e

Miceli). Contestam igualmente as tradições de História das Ideias como algo intemporal ou

universal, chegando, no caso particular de Skinner a correr o risco de incorrer em uma nova

mitologia, a da fragmentação do passado. Assim, parece haver uma diferença mais de ênfase

do que uma incompatibilidade de abordagens entre a perspectiva koselleckiana e a de Skinner:

enquanto o último privilegia a dimensão sincrônica da história das ideias, Koselleck opera

com uma perspectiva diacrônica, avaliando a relação entre passado e futuro, quer como

herança teórica recebida, quer como a recepção de um conceito.35

A obra de Pocock parece

constituir uma terceira variante, pois destaca as linguagens políticas tanto na dimensão

sincrônica quanto na diacrônica.

Koselleck propõe uma tipologia de situações de mudança conceitual. Segundo ele,

quatro situações são possíveis: 1) a realidade e o conceito permanecem estáveis por um

período de tempo; 2) o estado de coisas e o conceito transformam-se concomitantemente; 3) a

realidade transforma-se, mas o conceito não; 4) o conceito é alterado sem qualquer

modificação no estado de coisas ao qual ele se refere. No caso do pensamento político-social

brasileiro da segunda metade do século passado, parece razoável assumir a hipótese que tanto

a realidade brasileira quanto o conceito de democracia utilizado para se referir a ela sofreu

profundas transformações (segunda situação). Urbanização e industrialização do país,

irrupção de movimentos sociais, consolidação parcial da competição partidário-eleitoral e

35

Feres Jr. propõe interpretação contrária à nossa (2005; 2009).

Page 67: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

76

posterior emergência de regime democrático conformam, grosso modo, algumas das

mudanças do Brasil desse período; do mesmo modo, parece claro, como já se mencionou

anteriormente, que o que se entendia por "democracia" variou substantivamente: "democracia

social", "máscara do domínio oligárquico", "democracia eleitoral" são alguns dos conteúdos

semânticos atribuídos ao longo do tempo pelos intelectuais brasileiros.

Observa-se que a relação entre realidade (pragmata) e linguagem (dogmata) é

compreendida por Koselleck muito mais complexamente do que na abordagem sociológica,

segundo a qual se supõe uma determinação da primeira em relação à segunda. Nessa direção,

o autor alerta para o fato de que os conceitos são ao mesmo tempo indicadores e fatores da

realidade: se eles "refletem" mudança e estabilidade do real, também são parte constitutiva

dele; pode-se dizer, partindo de Koselleck, que os conceitos de democracia no Brasil tanto

podem indicar mudanças e continuidades da realidade política nacional, como são elemento

integrante dessa realidade. Estamos, pois, considerando, "prática" e "ideal" político como

parte de uma única realidade.

O historiador alemão concorda com Skinner e Pocock ao destacar a natureza

polissêmica dos conceitos sócio-políticos, isto é, o fato de que eles são objeto de disputa entre

os atores no processo de sua definição, produzindo uma inevitável variação semântica. Como

foi dito, esse é o caso do conceito de democracia.

Outro ponto interessante é a relação entre o uso pragmático da linguagem, a sincronia

e a diacronia. Koselleck esclarece que a linguagem é única e irrepetível do ponto de vista de

seu uso cotidiano: alguém diz ou escreve algo determinado, num contexto específico, para

uma audiência em particular. Todavia, se a linguagem se resumisse a isso, não seria possível

contar uma história dos conceitos; para que a audiência possa compreender o significado

desse proferimento, é necessário o conhecimento prévio e compartilhado da semântica da

língua. Assim, conclui ele, quando um autor utiliza um conceito de forma não usual, é preciso

supor uma repetição semântica para que ele seja entendido: "trata-se de estruturas linguísticas

que se repetem e cuja repetição é necessária para que o conteúdo seja compreensível, ainda

que uma única vez" (KOSELLECK, 1992, p. 8). Entendemos que, nesse passo, Koselleck

encontra uma formulação mais razoável do que a skinneriana que pode produzir a mitologia

da fragmentação da história.

Devemos partir teoricamente da possibilidade de que cada uso pragmático da

linguagem (Sprachpragmatik), que é sempre sincrônico, e relativo a uma

situação específica, esteja continda também uma diacronia. Toda sincronia

contém sempre uma diacronia presente na semântica, indicando

temporalidades que não posso alterar (idem, ibidem, p. 8, grifos nossos).

Page 68: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

77

É preciso dizer que embora concordemos com boa parte das propostas de Skinner,

Pocock e Koselleck, acreditamos também que nenhum dos autores mencionados trabalha com

centralidade com a relação entre concepção de mundo associada às linguagens ou aos

conceitos políticos. Ao concentrar a investigação nas variações semânticas (como em

Koselleck), ou nas disputas em torno dos atos de fala (Skinner) ou das linguagens políticas

(Pocock) não devemos descuidar do fato de que todos esses elementos estão relacionados a

valores e projetos de organização política e social. Nesse sentido, afirmamos que é preciso ir

além de uma simples descrição das variações ou continuidades semânticas dos conceitos. É

digno de nota que, entre os autores avaliados, Skinner (o mais criticado dentre os três pelo seu

método) é o que mais assume essa preocupação, precisamente ao responder àqueles que o

acusavam de conceber a teoria política como um "antiquário":

A história da filosofia, e talvez especialmente da filosofia moral, social e

política, está aí para nos impedir de sermos muito facilmente

enfeitiçados. O historiador do pensamento político pode nos ajudar a

apreciar até onde os valores incorporados em nosso modo atual de vida,

e nossas maneiras de pensar sobre esses valores, refletem uma série de

escolhas feitas em épocas diferentes entre diferentes mundos possíveis.

Essa consciência pode ajudar a libertar-nos do domínio de qualquer uma das

explicações hegemônicas desses valores e de como eles devem ser

interpretados e compreendidos. Munidos de uma possibilidade mais ampla,

podemos nos distanciar dos compromissos intelectuais herdados e exigir um

novo princípio de investigação sobre esses valores (SKINNER, 1999, p. 312,

grifos nossos).

Encontramos também na obra recente de Mark Bevir algumas ponderações que

convergem com essa preocupação. Para esse autor, compreender a crença de um pensador, ou

a sua rede de crenças equivale a compreender o significado hermenêutico de seu texto. Ele

diferencia três tipos de significado de um texto: o semântico (diz respeito às condições de

verdade dos enunciados), o linguístico (refere-se às convenções de linguagem de uma época)

e histórico (relaciona-se a enunciados como expressões de crenças de indivíduos particulares).

Embora o segundo e o terceiro significados interessem mais imediatamente a uma pesquisa

como esta, objetivamos também avaliar a verdade dos enunciados por cada um dos

intelectuais escolhidos sobre o tema da democracia.

Concordando com Pocock e Koselleck, Bevir diz que, para iniciar a interpretação de

um texto, é necessário postular a existência de tradições, não como essências fixas e

uniformes, mas como conjunto de crenças e valores herdados em transformação no tempo.

A tradição fornece apenas um ponto de partida que nos permite explicar

por que as pessoas abraçaram determinadas crenças. Não fornecem um

contexto que aumente a nossa compreensão das crenças das pessoas. (...)

Uma das propriedades comuns a todas as tradições é que, embora os

Page 69: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

78

indivíduos comecem com elas, eles não se limitam aos modos por que os

indivíduos poderiam desenvolvê-las. (...) Eis por que as tradições não

bastam para explicar por que alguém adotou determinada rede de

crenças. Os indivíduos podem estender, modificar e até mesmo rejeitar as

tradições que herdaram (BEVIR, 2008, p. 276, grifos nossos).

A tradição fornece um pano de fundo que permite a compreensão das crenças de um

autor, mas não é critério suficiente, pois em seu interior é possível identificar pontos de

discordância. Considerar que dois ou mais autores se inserem em uma tradição de

pensamento, não implica homogeneizar os seus pensamentos, mas inseri-los inicialmente num

mapa mais geral de entendimento que, todavia, requer uma análise detida da obra de cada um

deles, atentando para suas divergências e concordâncias.

Deve-se também supor que toda tradição intelectual e política implica numa

continuidade temporal. Isso não significa postular uma intermitência da tradição: elas são

marcadas muito mais pela fragmentação e, muitas vezes, pelo desejo deliberado dos autores

de reconstituir e integrar-se à tradição. Como demonstra Pocock em relação ao "momento

maquiaveliano", tradições são esquecidas, "desaparecendo" do debate público por um longo

período e reaparecendo em outros momentos num claro esforço de recuperação e identidade

com o passado, como comprova a emergência do humanismo cívico na Revolução Gloriosa

na Inglaterra e, posteriormente, no movimento de independência dos Estados Unidos (1975).

No caso brasileiro, será interessante verificar como os diversos autores recorreram aos

intelectuais do passado, às tradições, na medida em que, como foi dito, o conceito e o valor da

democracia não havia se consolidado antes de 1970; muito pelo contrário, o que tínhamos

fundamentalmente era uma tradição de pensamento e prática autoritária de forte influência.

Bevir polemiza com Skinner a respeito da razoabilidade da tarefa de determinar uma

maneira correta de interpretar um texto. Como ele diz, um método é apenas um recurso

heurístico útil à pesquisa, e não uma garantia lógica de sua objetividade. Sem pretender

encerrar o riquíssimo debate sobre história intelectual de hoje, concordamos com esse autor

que a discussão do tema é por vezes mal compreendida como uma questão de escolha entre

alternativas metodológicas. Sobre isso, cumpre tecer dois comentários. Primeiro que não

parece razoável supor que a discordância ou convergência entre os autores citados (Skinner,

Pocock e Koselleck) resida numa querela sobre método; se a questão do "ofício" do

historiador ("como ele deve proceder em sua pesquisa?") é, sem dúvida, essencial para eles,

também o é a concepção de Teoria Política e da sua relação com a história. Muito dos

diferentes resultados colhidos por Skinner e Pocock, de um lado, e Koselleck, de outro,

resultam de interesses diversos, entre os quais se destaca o projeto koselleckiano de

Page 70: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

79

compreender os efeitos da modernidade sobre a compreensão da história. Em segundo lugar, é

insensato supor que todo esse debate deve findar numa escolha por um dos "métodos"

apresentados, ou de que se possa chegar a uma conclusão acerca da superioridade de um

deles. Objetos distintos demandam metodologias diferenciadas, e a excelência de um método

não pode ser aferida a priori; exige, sim, uma avaliação da aplicação concreta de um

determinado método. Nesse sentido, optamos por adotar uma concepção metodológica

formulada a partir do cotejamento e da incorporação crítica de alguns princípios de

investigação apresentados por esses três estudiosos, sem, todavia, endossar irrestritamente

algumas dessas propostas.

Bevir contesta também alguns pressupostos comuns à História dos Conceitos. Em

primeiro lugar, a indevida ênfase na análise de um conceito, tomado isoladamente; como já

observara Skinner, Bevir afirma que um conceito só adquire significação quando na sua

relação com outros conceitos. Para Skinner, é preciso estar atento à emergência (ou ao

desaparecimento) do conceito, e não do vocábulo, que pode emergir utilizando-se de termos

diferentes. Nesse sentido, como discutiremos adiante, o conceito de democracia se define em

relação a uma rede conceitual da qual ele é integrante. Assim, por exemplo, o conceito de

democracia na obra de Faoro está fortemente associado ao conceito de patrimonialismo, assim

como na obra de Furtado à noção de desenvolvimento. Equívoco similar é considerar que

existe uma história dos conceitos, quando na realidade, o que há está em questão é o uso que

se faz dos conceitos ao longo da história, isto é, os "jogos de linguagem" (SKINNER, 1988, p.

54-55).36

Para concluir, assumimos também a premissa de Bevir quanto à natureza interpretativa

da História das Ideias. Uma investigação dessa natureza não pode ser plenamente objetiva;

todavia, isso não implica assentir com o corolário pós-moderno, deduzido ingenuamente da

primeira proposição, de que nenhum conhecimento objetivo do mundo político é possível.

Mais razoável parece supor uma objetividade obtida por meio de fatos intersubjetivamente

compartilhados, isto é, a objetividade de uma interpretação na História das Ideias pode ser

aferida por meio da confrontação com leituras concorrentes. Contra uma visão naturalista da

Ciência Política, argumenta-se a favor de uma perspectiva histórica e interpretativa segundo a

qual se procurará criar uma narrativa que esclareça sobre a formação do pensamento sobre a

36

Skinner adverte que existem algumas diferenças entre o projeto koselleckiano da história conceitual e sua

abordagem (SEBASTIÁN, 2007, p. 114-115), de modo que quando enfatizamos as afinidades entre esses

autores, consideramos que essas divergências não tornam, todavia, as suas perspectivas incompatíveis.

Page 71: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

80

democracia no Brasil sem, todavia, supor ser capaz de explicar rigorosamente esse fenômeno.

Cumpre, nesse momento, retomar os pontos principais discutidos e que servem de

critérios metodológicos para esta pesquisa. Em primeiro lugar, a preocupação de ler os textos

tendo como referência o contexto histórico e discursivo em que foram formulados.

Reconhece-se assim a historicidade inexorável de cada pensamento, ainda que isso não

impeça a existência de continuidades intelectuais entre períodos históricos distintos. Segundo:

o cuidado permanente a fim de se evitar as mitologias comuns à História das Ideias. Embora a

intenção do autor seja visada pela pesquisa (mesmo adotando aqui a perspectiva dos usos

particulares da linguagem por um pensador, tal como propõe Pocock), não se deduz daí que

ela possa ser reconstruída fielmente, ou que ela esgote o significado de um texto; é preciso

igualmente considerar a fortuna de uma obra intelectual, além de, inevitavelmente, se

formular apenas uma interpretação sobre seu sentido. Em terceiro lugar, é preciso levar em

conta que os autores, em especial os pensadores da política, escrevem tendo em vista agir por

meio de seus textos, interferindo ativamente na cena pública. Essa premissa é particularmente

importante, pois está associada à nossa proposta de entender a prática e a teoria política como

dimensões intimamente associadas, embora isso não implique assumir a linguagem política

como instrumento da ação política, erro identificado nos trabalhos de Pécaut e Miceli. Em

quarto lugar, a centralidade de tradições como uma continuidade plural de conceitos e tópicas

argumentativas, entendida como recurso hermenêutico e ponto de partida na compreensão de

um pensamento político. Em quinto lugar, o entendimento de que a História das Ideias

constitui um modo fundamental de teorizar sobre a política hoje e não apenas um olhar sobre

o passado (“um preâmbulo à Teoria Política”). Por último, a atenção em avaliar os diferentes

significados atribuídos aos conceitos, bem como aos valores e projetos políticos a eles

vinculados, o que convencionamos chamar de visão de mundo.

A partir desse percurso esperamos ter demonstrado algumas vantagens na utilização

tópica e crítica de alguns elementos dessas “escolas” da História das Ideias e da Teoria

Política. Nosso desiderato é avaliar temas associados à democracia, temas fundamentais não

só do Pensamento Brasileiro, mas também da Teoria Política, realizando "teorização de

primeira e de segunda ordem", de modo que esses temas sejam avaliados em sua historicidade

e de acordo com a cultura política do país.

Todavia, se criticamos a visada que busca responder a esse conjunto de temas

desconsiderando as tradições intelectuais do Brasil, como se elas já não mais importassem ou

Page 72: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

81

não iluminassem nosso entendimento sobre a atualidade, seria possível igualmente objetar que

esses autores brasileiros não estão forjando isoladamente essas linguagens, mas incorporando

tradições teóricas mais amplas. Julgamos, portanto, que seria equivocado desconsiderar as

linguagens políticas que compõem a Modernidade ocidental e que foram recepcionadas,

amiúde de modo crítico e seletivo, pelos pensadores brasileiros. Cumpre, por conseguinte,

“ler” esses pensadores brasileiros à luz das grandes tradições de pensamento. Por essa razão,

discorreremos no próximo capítulo sobre duas linguagens da política que moldaram o mundo

moderno e que se tornaram presentes também na cultura política brasileira, a saber, o

republicanismo e o liberalismo.

Page 73: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

82

2 – Republicanismo e liberalismo: o dissenso sobre a liberdade e a democracia

Neste capítulo, discorremos sobre a complexa relação entre democracia e república.

Iniciamos a análise com o conceito de liberdade, apresentando o contexto em que reemerge o

debate sobre ele no fim do século passado. Longe de pretender uma sumarização da teoria

democrática, o que se intenta fazer a seguir é abordar o debate sobre a democracia a partir de

uma polêmica que lhe é fundante no mundo moderno, a saber, a disputa sobre o significado do

conceito de liberdade opondo a tradição liberal de pensamento político à republicana.

No contexto acima referido, ocorre um movimento duplo: de um lado o avanço de

algumas variantes conservadoras do liberalismo contemporâneo contra as tradições socialistas

e mesmo as vertentes do liberalismo cívico, principalmente a da socialdemocracia; de outro

lado, há também uma reação a esse avanço conservador, recuperando histórica e

filosoficamente uma tradição tida como "esquecida" na atualidade, o republicanismo. Distante

de ser um fenômeno circunscrito ao mundo acadêmico, a disputa entre essas linguagens da

política – liberalismo e republicanismo – sobretudo a partir dos anos 1970, indica e, ao

mesmo tempo, constituiu historicamente um fator definidor do debate público em que se

procurou estabelecer mais adequadamente as funções do Estado e da democracia no mundo

ocidental37

.

A partir daí avaliamos mais detidamente a concepção de liberdade de alguns dos

chamados neorrepublicanos: Maurizio Viroli, Quentin Skinner, Philip Pettit e Jean-Fabien

Spitz. Ver-se-á que apesar de não haver um consenso entre os autores, todos antagonistas, em

maior ou menor grau, das linguagens liberais e proponentes de uma visão alternativa da

liberdade, é possível estabelecer um conjunto de princípios comuns às suas formulações,

constituindo uma mesma tradição de pensamento político, o republicanismo, que, como o

liberalismo tem como conceito central a liberdade (HONAHAN, 2005, p. 162).

A análise se concentra nos autores contemporâneos, de modo que as referências aos

autores do republicanismo antigo e moderno são marginais, na medida em que esses

pensadores compõem assunto de interpretação dos primeiros ou em que fornecem

informações sobre temas não debatidos por eles. Ainda que a referência à teoria clássica seja

de grande valia, em nosso caso, a abordagem contemporânea se adequa melhor aos propósitos

da pesquisa na medida em que os primeiros autores mencionados respondem diretamente a

37

Utiliza-se aqui a ideia de Koselleck de que os conceitos (ou linguagens políticas, tal como preferimos) são

simultaneamente indicadores das mudanças e continuidades do “mundo real” da política e também fatores

constitutivos dele (cf. p. 76 desta tese).

Page 74: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

83

uma polêmica ainda em curso na Teoria Política e que nos interessa vivamente que, em suma,

diz respeito a um suposto anacronismo do republicanismo para compreender o mundo

contemporâneo. Contra as leituras segundo as quais seria equivocado recuperar conceitos do

republicanismo, tais como virtude cívica e bem comum, os neorrepublicanos procuraram

reatualizar essa tradição a fim de responder as principais questões que envolvem a Teoria

Política, sobretudo no que concerne às democracias ocidentais hodiernas.

Num terceiro momento, nos concentramos nos desdobramentos dessa concepção de

liberdade republicana em quatro temas relacionados à ideia de liberdade e em disputa entre

essas linguagens: bem comum, participação, igualdade e soberania. É precisamente em

relação a essas implicações que a polêmica entre republicanos e liberais revela mais

agudamente seu caráter de um conflito entre projetos políticos distintos, evidenciando ainda

mais os laços entre as dimensões subjetivas e objetivas da política.

Esperamos, ao longo desse percurso, destacar as perspectivas e limites da concepção

de democracia dos autores do neorrepublicanismo, concepção essa nem sempre explicitada.

Embora, os neorrepublicanos não apresentem uma concepção acabada e homogênea de

democracia, entendemos que o repertório conceitual do republicanismo fornece uma

linguagem integradora dos problemas das democracias contemporâneas, tendo como norte a

permanente superação de todos os obstáculos à realização plena da liberdade. Partimos da

interpretação de que muitos dos problemas das democracias atuais podem ser compreendidos

como um impasse em reafirmar suas raízes liberais – o que as levaria a complicadas aporias –

ou expandir e aprofundar seu exercício, incorporando a ela dimensões republicanas.

Desde já cumpre esclarecer que não se entende essas tradições como blocos

monolíticos e homogêneos de pensamento político, mas como conjuntos de discursos,

conceitos e valores que se prolongam descontinuamente no tempo e que, não obstante, supõe

divergências, tendências e linhagens internas, historicamente constituídas, caracterizando

ambas as tradições como eminentemente plurais. Assim, distingue-se, por exemplo, no

liberalismo, um liberalismo ético de outro econômico (Cf. BELLAMY, 1994), um social de

outro conservador, o conservador em suas subvariantes (o neoliberalismo, o

neoconservadorismo e o libertarianismo [Cf. GUERRA, 1998]), bem como na tradição

republicana, o republicanismo clássico do humanismo cívico, do período renascentista (Cf.

BIGNOTTO, 2000), um republicanismo “instrumental” de outro “forte” (Cf. HONAHAN,

2002), etc.

Page 75: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

84

2.1 – O contexto do dissenso

James Hankins, em recente balanço dos estudos em torno ao republicanismo (2003),

teve o mérito de identificar três momentos importantes desse "movimento" intelectual na

contemporaneidade. O primeiro deles é constituído pela publicação, em 1955, do estudo

seminal do historiador alemão Hans Baron, The crisis of Early Italian Renaissance. Com ele,

os estudiosos voltaram seu interesse para a existência de uma tradição intelectual chamada por

Baron de "humanismo cívico", forjada principalmente em algumas repúblicas italianas

durante o Renascimento, particularmente em Florença que, retomando traços da cultura greco-

romana, sublinhava a importância crucial dos ideais de patriotismo, de governo popular e de

devoção ao serviço público.

A obra seminal de Baron, por seu turno, retomava criticamente outro texto célebre

sobre o Renascimento, A civilização do Renascimento na Itália, de Jacob Burckhardt, que

asseverava como principal legado dessa tradição para a Modernidade a figuração do

indivíduo. “Esse homem-artista, individualista ao extremo, certo de suas potencialidades e de

sua capacidade para forjar a sua própria vida, representava, para o escritor suíço, o protótipo

do que viria a ser o homem moderno” (BIGNOTTO, 2001, p. 18). Contra essa interpretação,

Baron caracterizou a Renascença não como:

o momento de consolidação dos regimes monárquicos ou tirânicos, nos quais

o homem encontrou sua própria individualidade, mas sim a época do

surgimento de uma vida política rica, centrada em valores próximos aos

que haviam estado no centro da existência das cidades livres do passado (idem, ibidem, p. 18, grifos nossos).

Precisamente duas décadas após Baron delimitar o "humanismo cívico" como

fenômeno histórico, o livro The Maquiavellian moment, de John Pocock, argumentava que

essa tradição, chamada agora de "republicanismo clássico", constituiu na história das ideias

políticas da modernidade uma forma de linguagem própria, centrada nos ideais expostos por

Baron, retraduzidos criticamente e de modo paradigmático por Maquiavel, e que, depois de

serem obscurecidas pela hegemonia do pensamento político contratualista, sobretudo, anglo-

saxão, reapareceria nos discursos dos defensores do Parlamento inglês contra a monarquia

absoluta de Carlos I. Esse segundo marco no republican turn, mais do que somente ter sido

capaz de encontrar tópicas republicanas nos discursos de pensadores ingleses durante a

Revolução Gloriosa, principalmente James Harrington, conseguiu reconstruir o processo pelo

qual as ideias republicanas "atravessaram" o Atlântico, sendo incorporadas nos discursos dos

Page 76: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

85

defensores da independência das treze colônias britânicas na América, produzindo o que

Pocock chamou de "história túnel". Contra uma interpretação canônica da história dos Estados

Unidos, segundo a qual seus pais-fundadores teriam sido fundamentalmente influenciados

pelo pensamento de John Locke, Pocock revela que os mesmos ideais republicanos forjados

no Renascimento italiano, recuperados pelos ingleses do século XVII, foram armas

discursivas decisivas nas mãos dos pensadores norte-americanos, tais como Thomas Paine,

Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, entre outros, que, para contestar o domínio britânico,

se voltaram aos princípios do humanismo cívico, ainda que tivessem que adaptá-los às

condições sociais e culturais das treze colônias.

Um terceiro momento de redescoberta dessa herança intelectual se deu com a obra do

historiador inglês Quentin Skinner, As fundações do pensamento político moderno, publicada

poucos anos depois do estudo de Pocock. Contestando parcialmente a tese de Baron acerca da

inventividade dos humanistas cívicos e da singularidade de Florença (SKINNER, 1990, p.

122), Skinner rastreou alguns desses ideais republicanos no pensamento medieval escolástico

e na tradição da retórica antes do Renascimento.38

Todavia, apesar dessa ressalva que

“produzia um deslocamento cronológico relativamente às origens, retrocedendo no tempo e

inserindo os humanistas e Maquiavel numa linha de continuidade que viria da Idade Média

até a modernidade” (PANCERA, 2010, p. 29), o historiador de Cambridge reafirmava a

importância da tradição republicana na gênese do mundo moderno, isto é, no debate sobre a

constituição do Estado-nação que, além da via das monarquias absolutas, poderiam adotar a

solução de repúblicas, solução tida como viável e única a garantir plenamente a existência da

liberdade.

Hankins conclui que a despeito dos incontáveis estudos de revisionismo histórico

sobre o republicanismo (suscitados por essas três obras fundamentais acima citadas) terem

modificado em alguns aspectos a visão sobre o "humanismo cívico" ou "republicanismo

clássico" – inclusive distinguindo mais claramente Maquiavel, principal referência intelectual

do republicanismo moderno, do humanismo cívico (Cf. BIGNOTTO, 1991) –, não

conseguiram abalar as bases do modelo baroniano sobre o republicanismo, atestando, ao

mesmo tempo, o avanço diminuto da historiografia sobre esse período (HANKINS, 2003;

CONNELL, 2003), mas também a solidez desse modelo.

Em suma, os trabalhos de recuperação da tradição republicana iniciados por Baron

38

“Esse esforço de localização da ruptura com a Idade Média em um contexto preciso e restrito mereceu

críticas, em particular de historiadores, como Quentin Skinner, em seu As fundações do pensamento político

moderno” (BIGNOTTO, 2001, p. 20).

Page 77: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

86

reanimaram o debate na historiografia, particularmente no mundo anglo-saxão. O trabalho

também de historiadores como Bernard Bailyn (2003) e Gordon Wood (1992), ambos sobre as

fontes ideológicas da Revolução americana, acentuaram a presença de uma retórica poderosa

da liberdade comunal e do direito à resistência que vai além do individualismo lockeano,

assumido até então (ao lado de Montesquieu), como a principal influência teórica sobre os

revolucionários estadunidenses (Cf. HARTZ, 1991). Constitui-se, então, nos Estados Unidos

outra matriz do republicanismo, distinta da renascentista e da romana, registrada nos panfletos

e nos tratados de política e tipificada pelo associativismo dos cidadãos, objeto de admiração

de Aléxis De Tocqueville, no século XIX, e Hannah Arendt, no século seguinte.

Do mesmo modo, os estudos posteriores de Quentin Skinner sobre o debate sobre a

liberdade na Inglaterra revolucionária do século XVII, revelaram que antes do conceito de

liberdade como não-intervenção, formulado pelo filósofo Thomas Hobbes e, gradualmente,

incorporado às diversas tendências da tradição liberal, havia um conceito de liberdade

relacionado à tradição do humanismo cívico (chamado por Skinner de "neorromano")39

, que

entendia a participação nos assuntos públicos, o bem comum e a virtude cívica como meios

essenciais para a manutenção da liberdade. Foi contra essa tradição e a ideia de que um

Estado livre era conditio sine qua non para a liberdade, que Hobbes, de acordo com Skinner,

formulou seu Leviatã, tentando argumentar que a liberdade é a mesma numa república e num

governo despótico.

Iseult Honahan, avaliando o republican revival, diferencia três linhas de debate em

torno dessa tradição. Diferentemente da análise de Hankins, focada nos estudos da

historiografia, o trabalho de Honahan indica que o impacto desse “movimento” foi muito mais

amplo do que ter proporcionado uma nova visão sobre a história. A autora destaca uma

primeira linha de investigação que é precisamente aquela formada pelos estudos de história do

pensamento político. Nesse quesito, ela reafirma o diagnóstico de Hankins:

Baseando-se em temas de Arendt, J. G. Pocock traçou uma linha contínua de

Atenas e Aristóteles, passando por Maquiavel e Harrington, até a Revolução

Americana. Ele enfatiza as ideias de participação política, virtude cívica e

corrupção, e a especificidade e fragilidade histórica da política republicana.

Seu trabalho desafia a visão convencional que a revolução Americana foi

guiada unicamente pelos princípios de direitos naturais lockeanos. Quentin

Skinner traça uma posição com raízes romanas, que se cristalizaram no

humanismo renascentista, e que ganhou a formulação clássica com

Maquiavel, e mais tarde particularizada com o movimento inglês do século

XVII com Harrington e Sidney. Este é o centro da concepção neorromana de

39

Skinner opta por esse termo, ao invés do tradicional “republicanismo”, pois muitos pensadores dessa

tradição estudados por ele não postulam que a liberdade só seja compatível com regimes republicanos,

reconhecendo que ela pode subsistir sob uma monarquia com poderes limitados.

Page 78: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

87

liberdade, como um status de independência garantida pela limitação legal à

dominação arbitrária dos governantes (HONAHAN, 2005, p. 7, trad.

nossa).40

Uma segunda seara de debates sobre o republicanismo é a do constitucionalismo.

Particularmente nos Estados Unidos, o ideário republicano tem sido evocado para contestar a

visão tradicional sobre a constituição, entendida como limite legal ao poder, e compreendê-la

como um contínuo e histórico exercício de autogoverno, baseado menos nos interesses

particulares e mais no bem comum (como exemplo, Honahan cita a obra de Franck

Michelman).

Um terceiro campo do republican revival é o da teoria política normativa. Diferentes

teóricos têm recuperado ideias republicanas a fim de pensar problemas precípuos da política

contemporânea, alguns aproximando essa tradição da ideia de comunidade (caso de Michael

Sandel, por exemplo), outros centrando no conceito de liberdade (como é exemplar a obra de

Philip Pettit), outros destacando o elemento da participação (Carole Pateman) e, por fim,

alguns aproximando esse campo teórico da questão do reconhecimento (Charles Taylor).

Se o informativo texto de Hankins e o de Honahan nos fazem antever a complexidade

do republican revival, eles não explicitam, no entanto, que todo esse esforço intelectual de

recuperação da tradição do republicanismo respondeu, em grande medida, a uma revisão

anterior do liberalismo, processo este analisado de maneira exemplar por Roberto Guerra

(1998).

O renascimento da cultura do humanismo cívico, da cultura do

republicanismo em sua matriz anglo-saxã, a chamada Escola de Cambridge,

com todo o seu investimento em pesquisa histórica e filosófica, pode e deve

ser entendido na verdade como uma resposta a esta dogmatização do

conceito de liberdade como “liberdade negativa”, firmada em oposição a

uma outra liberdade, a positiva, compondo o oposto do conceito liberal em

uma equação simplificadora da questão (Guimarães, s/data, p. 6).

Esse revisionismo liberal, já mencionado neste capítulo, fez emergir diversas

tendências de liberalismo conservador ou proprietarista que, por sua vez, reagiam contra a

expansão na primeira metade do século XX do liberalismo ético, social ou igualitário. Além

40

Drawing on themes form Arendt, J.G. Pocock has outlined a continuing thread, from Athens and Aristotle,

through Machiavelli and Harrington, to the American Revolution. He emphasizes the ideas of political

participation, civic virtue and corruption, and historical specificity and fragility of republican politics. His works challenges a conventional view that the American Revolution was guided solely by Lockean natural-

right principles. Quentin Skinner traces a position with Roman roots, that crystallized in Renaissance

humanism, was given its classic formulation by Machiavelli, and was further specified in the English

seventeenth-century movement that included Harrington and Sidney. This has at its center a “neo-Roman”

conception of freedom, as the status of independence guaranteed by legal limitations on a ruler’s arbitrary

domination.

Page 79: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

88

do avanço liberal e que inaugurou o debate sobre a liberdade no século XX, compõem o

debate público do qual participam os neorrepublicanos, as críticas feitas ao modelo socialista,

particularmente a partir da experiência do comunismo soviético e da sua supressão da

liberdade41

.

O dissenso em torno à liberdade – formativo do pensamento político moderno – é

representativo das diversas formas de democracias possíveis, tanto descritiva quanto

normativamente. Quando neorrepublicanos discordam entre si, e mais fortemente divergem

dos autores liberais (que tampouco concordam do modo absoluto uns com os outros), estão,

na realidade, debatendo os principais problemas e as perspectivas da democracia, tal como

vivenciadas no fim do século XX e início do século XXI. A dominação dos assalariados no

mundo do trabalho, no lar, do homem sobre a mulher, o isolamento político-social dos

cidadãos nas grandes cidades, a soberania ameaçada dos países frente ao poder do capital, o

reconhecimento às diversas culturas e os problemas decorrentes da convivência delas, o papel

do Estado como promotor de políticas de reparação e de diminuição das desigualdades

sociais, enfim, uma miríade de problemas que compõem o debate sobre a democracia hoje e

que é atravessada por essas diversas linguagens da política e de seus entendimentos sobre o

que é liberdade. Como observa Honahan acerca do “esquecimento” e recente “retorno” do

republicanismo:

Influente na moderna Europa e América até o final do século XVII, o

republicanismo cívico foi até recentemente obscurecido pelos debates entre

liberalismo e socialismo. Mas ele se tornou mais uma vez objeto de interesse

e discussão desde a aparente vitória radical da democracia liberal sobre o

socialismo. Apesar dessa vitória, não é o caso de que todos “nós sejamos

liberais agora”. Uma nova linha de criticismo tem sido desenvolvida pelos

filósofos comunitaristas que destacam a dependência dos indivíduos no

contexto da comunidade, em reação ao que eles consideram como uma

ênfase excessiva do liberalismo na independência individual.

Simultaneamente, a prática da democracia liberal tem sido criticada pelos

atores políticos que reivindicam a restauração da comunidade, cidadania e

dos propósitos morais da política (HONAHAN, 2005, p. 1-2, trad. nossa).42

Contudo, prossegue a autora, se os comunitaristas têm razão ao criticar os paradoxos

41

O presente capítulo, em grande medida, ignora como a tradição socialista reagiu a esse debate entre liberais e

republicanos, simplesmente por uma questão de limitação de espaço. Seria interessante, num outro momento,

investigar o neorrepublicanismo à luz das correntes contemporâneas do socialismo. 42

Influential in modern Europe and America until the late eighteenth century, civic republicanism was, until

recently, rather overshadowed by the debates between liberalism and socialism. But it has becomes once

more a focus of interest and discussion since the apparently sweeping victory of liberal democracy over

socialism. Despite that victory, it is not the case that “we are all liberals now”. A new line of criticism has

been developed by communitarian philosophers who stressed the dependence of individuals on communal

contexts, in reaction to what they see as excessive liberal stress on individual independence. Simultaneously,

liberal democratic practice has been criticized by political actors who call for restoration of community,

citizenship and moral purpose to politics.

Page 80: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

89

decorrentes da ênfase liberal na independência dos indivíduos, os liberais parecem replicar

esses autores de modo igualmente certo, isto é, a ênfase comunitária coloca em risco um

princípio importante da democracia, a saber, a diversidade e pluralidade cultural e moral,

inclusive, como nota Luís Felipe Miguel (2005), aproximando-se, às vezes, de discursos

conservadores de apelo à tradição e aos costumes do passado. Ela prossegue:

Eu argumento que o republicanismo cívico oferece uma proposta alternativa

aos extremos do chamado debate entre liberais e comunitaristas, com uma

noção de comunidade política mais sofisticada que o padrão liberal, e menos

homogeneizada e exclusivista que o nacionalismo e outras formas de

comunitarismo (idem, ibidem, p. 2, trad. nossa).43

Obviamente que quando se fala em tradição liberal, opera-se com uma pluralidade de

pensamentos e linhagens, mas, ao mesmo tempo, com uma unidade, construída a partir do

compartilhamento de certos princípios mínimos. Como já foi dito no capítulo anterior, a

tradição é o ponto de partida do intérprete, não um critério absoluto e suficiente de análise de

discursos particulares. Guerra observa, nesse sentido, que o liberalismo contemporâneo – do

igualitário radical ao conservador-proprietarista – comunga dos seguintes princípios,

mobilizando-os de modo diferenciado: em primeiro lugar, uma concepção fortemente

individualista ou atomista, frente a toda perspectiva coletivista, entendendo o indivíduo como

um ser autossuficiente, pré-político, definido antes de “entrar” em contato com a sociedade,

como possuidor de direitos e liberdades que lhes são inerentes; em segundo lugar e em

concordância com o princípio acima exposto, a submissão da política e do Estado às leis

gerais que servem ao desenvolvimento dos indivíduos; isso implica, em terceiro lugar, a

primazia das leis sobre os homens; em seguida, a assunção da divisão e equilíbrio entre os

poderes, a fim de se evitar o abuso de poder; por fim, a preferência da democracia

representativa como meio mais adequado para o respeito dos princípios anteriores.

A preferência liberal pela democracia, aludida por Guerra, é, na realidade, algo recente

historicamente e a ser verificado em cada pensador. Como observa com propriedade Hankins,

nem o liberalismo, nem mesmo o republicanismo, anterior à primeira tradição, nascem

democráticos. Na realidade, muitos intérpretes defendem a tese de que o humanismo cívico

tenha, na Renascença, sido mais uma ideologia política criada para legitimar um governo

oligárquico ou aristocrático do que um governo de participação ampla (Hankins, 2003, p.

43

… I argue that civic republicanism offers the prospect of an alternative to extremes of the so-called liberal-

communitarian debate, with a notion of political community richer than of mainstream liberalism, and less

homogenizing and exclusive than nationalism and the others forms of communitarianism.

Page 81: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

90

11).44

Por isso, muitos deles questionaram o uso do termo “democrático” adotado por Baron

para qualificar as repúblicas italianas (CONNELL, 2003, p. 25). De fato, a tradição

republicana, bem como a liberal, só incorporaram os princípio do igualitarismo e do

universalismo a partir do Iluminismo, por volta do século XVIII.

De qualquer modo, é importante reter que na tradição liberal, de um modo geral, a

política não é compreendida como meio de realização da individualidade e da liberdade

humana; essas precedem a primeira e, ainda que a política sirva para salvaguardar os direitos

dos indivíduos, constitui, ao mesmo tempo, uma ameaça permanente a esses direitos. Como

veremos, o republicanismo apresenta uma visão antagônica à liberal, em que Estado e a lei

não se contrapõem à minha liberdade pessoal, mas são garantias dela. Nesse sentido, o

republicanismo, em suas diversas matrizes – e, portanto, também o neorrepublicanismo – é

um movimento de revalorização da política e da esfera pública. Ele emerge no debate

acadêmico rechaçando, assim, tanto o liberalismo conservador, quanto à ortodoxia comunista

de supressão da liberdade política e trazendo para o centro dessa discussão uma nova visão

sobre ela.

O liberalismo conservador, por sua vez, havia surgido como forma de contestação das

linguagens liberais que incorporam topicamente algumas reivindicações das tradições

socialistas, como a diminuição das desigualdades sociais, a legislação trabalhista e a extensão

dos direitos políticos a outros grupos, ainda que não abdiquem dos princípios liberais acima

descritos. Pode-se dizer que o principal precursor dessa tendência seja John Stuart Mill,

sobretudo em suas obras de maturidade como, por exemplo, Capítulos sobre o socialismo e A

sujeição das mulheres. Basicamente, esta escola filosófica do liberalismo, dando prioridade à

liberdade do indivíduo, assume a ideia de era possível maximizar as diferentes liberdades dos

membros da sociedade. Para garantir essa compatibilidade, os liberais éticos pressupunham

uma tendência à crescente harmonização entre os indivíduos que, em função do

aprimoramento moral dos indivíduos, dissolveria os conflitos potenciais entre eles;

compatibilização que, segundo alguns, não ocorreu.

Os liberais igualitários como Mill defendem sete princípios elementares: 1) a limitação

parcial do direito de propriedade; 2) o reconhecimento de algum grau de liberdade positiva; 3)

a igualdade da lei ante a igualdade de oportunidades; 4) uma maior redistribuição da riqueza;

5) a interferência limitada do Estado a fim de promover o bem-estar; 6) a democracia

44

Exatamente por isso, alguns estudiosos dissociam Maquiavel dessa tradição, na medida em que o secretário

florentino se mostrava mais favorável a uma república popular do que a uma aristocrática (BIGNOTTO,

1991, p. 103).

Page 82: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

91

representativa; 7) e a expansão da participação política aos cidadãos (GUERRA, 1998, p. 55).

Um liberal igualitário que exerceu considerável influência no período do pós-guerra foi

precisamente John Maynard Keynes, que defendeu que o liberalismo deveria se desprender

das concepções individualistas e do laissez-faire, fazendo com que o Estado intervisse na vida

social a fim de promover a manutenção do capitalismo, mas também a justiça social e a

liberdade individual.

Posteriormente a essas tradições igualitárias ou cívicas do liberalismo, que se enraízam

na cultura política ocidental de forma exemplar na cultura e prática política do Estado de

Bem-estar social, surgem pensadores que procuram revisar o liberalismo a fim de,

supostamente, recuperar o autêntico espírito do liberalismo clássico, sem incorrer nos

equívocos dos igualitários. Trata-se do liberalismo conservador contemporâneo, classificado

por Roberto Guerra segundo três subvariantes: o neoliberalismo (sobretudo Friedrich Hayek e

Milton Friedman), o neoconservadorismo (como Robert Nisbet) e o libertarianismo (tais

como, Robert Nozick e Murray Rothbard).

Apesar das diferenças internas, as correntes conservadoras desse tipo de liberalismo

comungam, por sua vez, de seis ideias básicas: 1) o direito absoluto à propriedade privada; 2)

a defesa do capitalismo como forma mais eficiente e justa de organização da economia; 3) a

limitação drástica da intervenção estatal a funções essenciais, como a proteção à propriedade

individual e aos contratos particulares; 4) a igualdade entendida somente como igualdade

perante a lei; 5) a democracia elitista, entendida como disputa não violenta pelo poder entre

líderes e endossada, apenas por meio do voto, pelo povo; 6) e a liberdade entendida em seu

sentido forte ou mesmo exclusivamente negativo, isto é, como gozo individual de direitos e da

privacidade. Como observa Guerra, todas as diferentes subvariantes do liberalismo

conservador contemporâneo insurgem agressivamente contra as instituições públicas do

Welfare State implantadas no pós-guerra na Europa e, em menor grau, na América do norte, e

também contra as tradições políticas socialistas.

No centro dessa polêmica está novamente o conceito de liberdade, assumido como

bandeira política do movimento liberal neoconservador, mas compreendido como conceito

negativo, e completamente dissociado das ideias de igualdade de oportunidades, de justiça

social, de autogoverno, que alguns liberais igualitários reconhecem como legítimas

(GUERRA, 1998, p. 233). Numa perspectiva claramente elitista, de redução radical do

princípio da soberania popular, em que as "massas" são associadas à apatia (naturalizada pelos

autores) e à irracionalidade (fruto de seu soi disant infantilismo político), esses autores se

Page 83: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

92

assumem (nos anos de 1970, isto é, no contexto de crise internacional do capitalismo e de

uma suposta falência do Estado de Bem-estar) como defensores de uma liberdade que se

forma privadamente e em antagonismo com o Estado, por oposição, na opinião desses

autores, às tradições que dão primazia à política e tornam o Estado onipotente. Como resume

o comentador espanhol, para os liberais-conservadores importa reduzir ao máximo o peso do

Estado e da democracia no mundo ocidental e aumentar o espaço de atuação do mercado

(GUERRA, 1998, p. 244).

Deve-se também lembrar que o conceito de liberdade negativa que perpassa as

diversas correntes do liberalismo conservador no século XX foi estabelecido de modo

paradigmático por Isaiah Berlin no controvertido texto Quatro ensaios sobre a liberdade, o

ensaio mais influente da teoria política contemporânea, segundo Skinner (2005, p. 20). No

referido livro, Berlin lança mão de uma argumentação convincente que assevera que a única

liberdade possível e desejável no mundo moderno é a liberdade negativa, isto é, "a ausência

de obstáculos que impedem minhas decisões reais, senão também ausência de obstáculos que

impedem minhas decisões possíveis, para agir de determinada maneira, se é isso o que quero"

(BERLIN, 1981, p. 144). A liberdade positiva, por seu turno, é definida como ser senhor de si,

ter autodomínio, participar ativamente do governo e dos assuntos públicos. Como nota

Skinner, nessa segunda acepção, só há liberdade se há política, isto é, a esfera em que a

liberdade se experimenta enquanto ação (2005, p. 24). Mas a abordagem de Berlin sobre o

tema da liberdade é, observa Bignotto, claramente reducionista:

A estratégia argumentativa do intérprete liberal é, pois, a de fazer um

amálgama de todas as experiências que não reconhecem a verdade da

definição da liberdade como ausência de constrangimento como a única

legítima. (...) De maneira explícita, ele diz a seu leitor que a única sociedade

livre é aquela organizada segundo princípios liberais (2003, p. 39).

Além de encarcerar o debate sobre a liberdade em apenas duas opções (liberdade

negativa versus positiva), simplificando-o demasiadamente, Berlin assevera que a concepção

muitas vezes aventada por filósofos e políticos jacobinos de outrora e comunistas de hoje

(como Hegel, Spinoza, Rousseau e Marx), mas também admitida por pensadores "liberais"

(como Locke, Montesquieu, Kant e Mill) de liberdade positiva, além teoricamente equivocada

(confundindo liberdade com reconhecimento social, igualdade ou justiça), é politicamente

perigosa. Supor que a liberdade seja uma realização do indivíduo racional na vida pública,

implica admitir a necessidade de perseguir os mesmos fins racionais para toda a coletividade

(”bem comum”); ora, essa harmonia estabelecida por leis racionais e válidas para todos,

Page 84: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

93

conclui Berlin, redunda em formas de governo e de autoridade que suprimem a pluralidade

dos indivíduos, cerceando a liberdade negativa, a única passível de existir. Da liberdade

positiva, associada à participação do cidadão nos assuntos públicos, Berlin deduz, então, o

despotismo.

Não se deve ter dúvida quanto ao caráter fortemente ideológico do texto de Berlin,

publicado originalmente em 1969 (PETTIT, 1997, cap. 1; SKINNER, 2005, p. 48). No

contexto da Guerra Fria, de franca disputa entre capitalismo e comunismo, Berlin esposa

assumidamente uma posição que associa liberdade positiva às tradições republicanas e

socialistas e estas a fórmulas autoritárias de governo. Como nota Guerra, a concepção de

liberdade negativa está associada, conseguintemente, à defesa do sistema econômico de livre

mercado, da distinção rígida entre o público e o privado, limitando o primeiro e ampliando o

segundo com vistas ao desenvolvimento do indivíduo e de uma concepção também negativa

do Estado que teria como função unicamente a proteção da vida, da liberdade e da

propriedade.

Para Berlin, o que seria desejável, portanto, é que as leis procurassem definir um

espaço máximo e inviolável da vida do indivíduo para que ele pudesse gozar privativamente

de sua liberdade negativa, abandonando por completo qualquer aspiração de promover justiça

social, diminuição das desigualdades, ou de reconhecimento dos indivíduos marginalizados,

opinião com a qual concordam os diversos liberais conservadores do século XX.45

Na realidade, os liberais conservadores contemporâneos, em geral, radicalizam sua

concepção negativa de liberdade. Por exemplo, o libertarianista radical Rothbard, criticando

as concessões de alguns liberais à intervenção do Estado em algumas situações e partindo de

uma noção de liberdade como propriedade, chega à formulação polêmica de que uma mãe

tem o direito legítimo de abortar o "invasor indesejado do seu corpo" (sua propriedade), bem

como os pais que, apesar de não poder violentar seus filhos (pois, nesse caso, violaria a

liberdade deles), têm pleno direito de deixá-los morrer de fome, frio ou de doença, "posto que

nada pode forçá-los a isso" (GUERRA, p. 135).

O conceito de liberdade negativa de Berlin, todavia, para ser bem compreendido,

inclusive com sua “antropologia do homem egoísta” (BIGNOTTO, 2003, p. 45), deve ser

remetido a uma tradição intelectual mais ampla a qual ele pertence. Formulado inicialmente

45

Admirável, como veremos adiante, é que a retórica berliana da liberdade exerceu uma influência considerável

mesmo sobre os neorrepublicanos, isto é, sobre aqueles que, a princípio, poderiam ser criticados por Berlin

por adotar um conceito diferente de liberdade, como é o caso notório de Skinner que, apesar de asseverar

uma concepção negativa de liberdade, continua utilizando a terminologia berliniana. Sobre isso, ver

especialmente o artigo do autor apresentado no Isaiah Berlin Memorial Lecture (SKINNER, 2005).

Page 85: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

94

por Jeremy Bentham, o conceito de liberdade negativa significa a ausência de lei, isto é, de

impedimento para minha vontade irrestrita. O filósofo utilitarista, ferrenho crítico da

Revolução Francesa e da Independência e da Revolução Americanas, declarava que as leis

não servem para a manutenção da liberdade, produzindo, com efeito, sua redução (PETTIT,

1997, p. 43-45). Liberdade resume Bentham, é simplesmente “ausência de coerção”.

Embora não seja o caso de recompor toda essa complexa tradição intelectual que se

forma desde o século XVII, importa relembrar alguns de seus momentos mais importantes,

inclusive que Bentham cria o conceito negativo de liberdade se apoiando claramente na

filosofia política de Hobbes. É na filosofia desse pensador seiscentista, portanto (que

dificilmente pode ser entendido como um “liberal” stricto senso, haja vista sua defesa da

soberania absoluta do Estado), que se encontra o núcleo fundante da concepção liberal de

liberdade.

Como já foi dito de passagem, Hobbes contestou sistematicamente a tradição

republicana, influente na Inglaterra revolucionária do século XVII, que associava liberdade a

um governo em que os cidadãos participam dos assuntos públicos. Conforme avalia Skinner:

"Hobbes é o mais formidável inimigo da teoria republicana da liberdade, e seus esforços

para desacreditá-la constituem um momento que faz época na história do pensamento político

de língua inglesa” (2010, p. 13, grifos nossos). Levando em conta que, para os republicanos, o

homem livre é o antípoda do escravo, ou seja, aquele que vive sob o arbítrio e domínio de

outrem, "Hobbes nega que o simples fato de viver numa dependência da vontade de outrem

desempenharia algum papel na limitação da liberdade do homem livre” (idem, ibidem, p.

147). Para ele, “a palavra liberdade significa propriamente ausência de oposição” (idem,

ibidem, p. 193). Somente, portanto, quando há uma oposição ou interferência é que a

liberdade sofre restrição, independentemente da forma de governo, da participação na vida

pública, etc. Todavia, diz Hobbes ao defender a monarquia inglesa, todo governo soberano

restringe necessariamente a liberdade, pois impõem leis, confrontando diretamente a

concepção republicana que afirmava que a liberdade só é possível em um regime soberano no

qual “todos os cidadãos dão seu consentimento ativo às leis que todos obrigam” (idem,

ibidem, p. 75). Por essa razão, apresenta a polêmica tese de que a liberdade é exatamente a

mesma numa república e num governo despótico: “não há diferença, ele [Hobbes] insiste,

entre liberdade sob o popolo em Lucca e a liberdade sob o sultão em Constantinopla”

(SKINNER, 2010, p. 153).

Pode-se também, mapeando as filiações intelectuais e a linhagem dessa concepção de

Page 86: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

95

liberdade como não interferência, como expressa por Hobbes, e como liberdade negativa,

como definida por Bentham e Berlin, identificar seus desdobramentos na obra de dois autores

influentes na tradição liberal, Benjamin Constant e Montesquieu.

Na palestra A liberdade dos antigos comparada à dos modernos, realizada em 1819 no

Athénnée Royal de Paris, Constant condena os excessos dos revolucionários franceses que

(em prol supostamente de se promover a liberdade como autogoverno) coibiram em seu país a

liberdade individual. O autor acredita que a liberdade como participação no governo só é

possível na Antiguidade; no caso dos países modernos, a única liberdade possível é a

liberdade individual, experimentada em regimes representativos:

É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser

preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira,

pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada

um o direito de expressar sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-

lo; de dispor de sua propriedade, e mesmo de abusar dela; de ir e vir sem ter

que obter permissão, e sem ter que prestar conta de seus motivos e seu

comportamento. É, para cada um, o direito de se reunir com outros

indivíduos, seja para avaliar seus interesses, seja para professar seu culto que

ele e seus associados preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e

horas de uma maneira mais conforme suas inclinações e seus sonhos. Enfim,

é o direito, para cada qual, de influenciar sobre a administração do governo,

seja para a nomeação de todos ou certos funcionários, seja por representação,

por petições, por reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menos

obrigada a levar em consideração (CONSTANT, 1997, p. 593-594, trad.

nossa)46

.

Quer dizer, contraposta à liberdade dos antigos, entendida como participação ativa no

governo, a liberdade no mundo moderno, única possível e desejável, é uma liberdade que se

dá "fora" do Estado, na esfera privada, no gozo de direitos individuais, ainda que, como

confessa Constant ao final do célebre ensaio, seja preciso um mínimo de participação na

escolha e vigília dos governantes para que essa liberdade moderna também não seja

sacrificada pelo uso privatista que possa se fazer do poder político.

O perigo da liberdade moderna consiste em que, absorvidos na fruição de

nossa independência privada e na busca de nossos interesses particulares,

renunciemos muito facilmente ao nosso direito de participar do poder

político (idem, ibidem, p. 616, trad. nossa).47

46

C'est por chacun le droit de n'être soumis qu'aux lois, de ne pouvoir ni être arrête, ni détenu, ni mis à mort, ni

maltraté d'aucunne manière, par l'effet de la volonté arbitraire d'un ou de plusieurs individus. C'est pour

chacun le droit de dire son opinion, de choisir son industrie et l'exercer; de disposer de sa proprieté, d'en

abuser même; d'aller, de venir, sans en obtenir la permission, et sans rendre compte de ses motifs ou de ses

demarches. Cést, por chacun, le droit de se réunir à d'autres individus, soit pour conférer sur intérêts, soit

pour professer le culte que lui et ses associés préfèrent, soit simplesment pour remplir ses jours et ses heures

d'une manière plus conforme à ses inclination, á ses fantasies. 47

Le danger de la liberté moderne, c'est qu'absorbés dans la jouissance de notre indépendance privée, et dans la

poursuite de nos intérêts particuliers, nous ne renoncions trop facilement à notre droit de partage dans le

Page 87: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

96

Assim, Constant formula um argumento que se constituiria doravante em quase um

dogma liberal, a saber, a incompatibilidade entre a vida moderna e a participação política

ativa dos cidadãos.48

Como nota Bignotto, a apatia política dos cidadãos modernos é, nessa

chave de entendimento, naturalizada. Todavia, se os indivíduos nos tempos atuais são

caracterizados atomizados, alheios à vida pública e unicamente interessados em sua satisfação

pessoal, cabe perguntar por que Constant entende que esses mesmos indivíduos sejam capazes

de escolher representantes políticos adequados para salvaguardar a sua liberdade moderna,

pergunta essa a que Constant sequer procura responder.

O autor entende que essa transformação do sentido da liberdade ocorreu em função de

quatro fatores. Em primeiro lugar, o aumento significativo no tamanho dos Estados produz,

inevitavelmente, uma diminuição na importância política de cada cidadão49

: "o republicano

mais obscuro de Roma ou de Esparta era uma autoridade. O mesmo não ocorre com um

simples cidadão da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos" (idem, ibidem, p. 599, trad.

nossa)50

. Além disso, há que se levar em conta a celebrada abolição da escravidão que privou

os indivíduos do tempo indispensável para deliberar em praça pública. O terceiro fator

associa-se ao segundo na medida em que as sociedades modernas, ao contrário da imensa

maioria das sociedades da Antiguidade, fazem com os cidadãos dediquem a maior parte de

seu dia ao comércio. Em Atenas, os cidadãos só interrompiam a atividade política

temporariamente em função das guerras. O mercado, ao contrário, induz os povos à paz;

todavia, cobra um preço por isso: a inexistência de tempo ocioso para a vida pública. Por fim,

a atividade do comércio produz nos indivíduos um apreço incomparável pela autonomia

individual; qualquer interferência na sua vida privada, como um dever público, é vista como

ilegítima, e o cidadão não está disposto a aceitar.

O pensador francês afirma (como asseveraria Isaiah Berlin mais de cem anos depois),

que a independência individual é um valor supremo na modernidade e que as instituições

típicas das sociedades republicanas do passado afrontam esse bem. Ele destaca a prática do

ostracismo em Atenas, retomando Aristóteles51

, bem como a censura romana a fim de

pouvoir politique.

48 Essa tópica comparece com frequência nas diversas tradições da moderna Ciência Política, desde o elitismo

democrático, o pluralismo democrático e a teoria da escolha racional, ainda que com algumas diferenças

entre elas (Cf. PATEMAN, 1992). 49

Como nota Bignotto, a tópica do tamanho reduzido dos Estados republicanos era comum no contexto de

Constant, tendo sido utilizada também por Montesquieu, Diderot, D’Alambert e Rousseau. 50

Le républicain le plus obscur de Rome et Sparte était une puissance. Il n'en est pas de même du simple

citoyen de la Grande-Bretagne ou des États-Unis. 51

Constant trata o tema com viés exclusivamente negativo, ao passo que o filósofo estagirita reconhecia que

Page 88: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

97

asseverar que as instituições da Antiguidade que possibilitavam a participação direta nos

assuntos públicos, oprimiam a liberdade individual, algo que absolutamente indesejável.

Como se viu, o próprio Constant reconhece a necessidade de compatibilizar a

liberdade individual e a liberdade política (o que Berlin também faz, em menor grau e sem

determinar minimamente que tipo de liberdade positiva seria aceitável [GUERRA, 1998, p.

119]). Constant assevera que a liberdade política é uma garantia da liberdade moderna e que

só pode se realizar na modernidade por meio do governo representativo, quer dizer, um

governo em que as autoridades políticas estão "mais ou menos" presas à opinião pública. Mas

será que a liberdade política nos governos representativos é condição suficiente para a

garantia da autonomia do indivíduo? Essa indagação não pode ser respondida de modo

satisfatório a partir da abordagem desse autor, nem tampouco por Berlin, na medida em que

ambos não determinam claramente por quais meios o governo representativo é obrigado a

levar em consideração a opinião de cada cidadão.

Algumas ponderações sobre o texto de Constant são necessárias. Em primeiro lugar,

deve-se destacar que ao diferenciar a liberdade dos antigos da dos modernos, o autor procura

argumentar que o legado da Revolução de 1789 é desastroso, na medida em que ao invés de

recuperar um modo de vida próprio dos antigos, leva à barbárie. Com efeito, Constant é um

profundo admirador do sistema parlamentar inglês e crítico feroz da matriz republicana

francesa. Um segundo ponto, relacionado ao primeiro, é que a Modernidade está apartada da

Antiguidade e não deve procurar resgatar essa herança na medida em que se pressupõe a

marcha do progresso. Como observa acuradamente Bignotto, o argumento de Constant da

dissociação entre duas formas de liberdade incompatíveis só é válido se assumirmos a

premissa de que os tempos atuais são outros e que caminhamos “inexoravelmente para um

abandono progressivo do passado em favor de uma nova ordenação social” (BIGNOTTO,

2003, p. 40). Baseando-se numa noção linear do tempo e rechaçando a sua concepção cíclica,

ainda comum no século XVIII, Constant constrói todo o seu argumento: “sem a noção de

progresso não é possível afirmar que os antigos foram deixados para trás de forma definitiva”

(idem, ibidem, p. 41).

A tópica de que a liberdade republicana (ou dos antigos) é incompatível com os

tempos modernos é, por sua vez, uma clara retomada, por sua vez, da tipologia de governos

feita por Montesquieu. Esse filósofo distinguia três tipos de regime político, classificados de

acordo com o número dos que governam e do "espírito" que predomina em cada um deles. As

essa prática pôde cumprir uma função importante na polis (Cf. WOLFF, 1999).

Page 89: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

98

repúblicas – que podem ser aristocráticas ou democráticas – são governos em que o povo, ou

parte dele, governa e seu espírito é a virtude. A monarquia é o governo de um só, agindo de

acordo com a lei, e nela prevalece o sentimento de honra. O despotismo é o governo de um só,

de acordo com sua própria vontade, no qual impera o medo. Todavia, acrescenta

Montesquieu, no mundo moderno, marcado pelo comércio, as repúblicas tornam-se difíceis,

na medida em que o sentimento de solidariedade essencial para o exercício da virtude pública

torna-se escasso.

A república da virtude cívica é admirável, mas anacrônica. As repúblicas

antigas eram pequenas e homogêneas, de modo que seus cidadãos são

interessados mutuamente; mas eram susceptíveis de serem derrubadas por

uma potência maior, e não são mais possíveis. As pessoas só podem ser

virtuosas quando a preocupação com sua reputação restringe seu

comportamento anti-social. Isto não é mais possível em sociedade maiores

e mais impessoais. Repúblicas não podem expandir sem perder o seu

espírito. Numa sociedade comercial podemos esperar negociações mais

justas com os outros, do que um comprometimento com o bem comum

(HONAHAN, 2002, p. 81-82, grifos e trad. nossa).52

Nesse contexto, a liberdade política não significa mais participação na política, mas

segurança contra um ataque ou punição arbitrária. Embora reconheça a atração exercida pela

liberdade política, segundo Iseult Honahan, Montesquieu assegura que a liberdade plena não é

mais factível na modernidade; a garantia da liberdade não reside mais na virtude dos cidadãos,

mas no controle mútuo e separação dos poderes. Contudo, por mais canônica que seja essa

interpretação da filosofia política de Montesquieu, repetida aqui por Honahan, ela não é isenta

de problemas.

Como bem observa Bignotto, a obra de Montesquieu foi decisiva tanto na formação do

republicanismo na França e nos Estados Unidos, quanto para os críticos dessa tradição que

nem sempre utilizaram de modo adequado os seus argumentos. Embora confessasse sua

preferência monárquica, o filósofo iluminista contribuiu para que se reivindicasse no contexto

em antecedeu a Revolução Francesa, limites ao poder real, independência dos parlamentos e

respeito à diversidade religiosa. Por muito tempo, o nome de Montesquieu, bem como o de

Rousseau, se incorporou à linguagem política do republicanismo francês. Ao mesmo tempo,

as ideias relativas ao tamanho dos Estados e a associação entre virtude cívica e república e

entre primeira e o mundo antigo, contribuíram para consolidar a ideia de que a república é

52 A republic of civic virtue is admirable but anachronistic. Ancient republics were small and coherent, so their

citizens could be mutually concerned; but they were liable to be overthrown by greater powers, and are no

longer possible. People can be virtuous only when concern for their reputation restrains their anti-social

behavior. This is not possible in larger, more impersonal societies. Republics cannot expand without losing

their souls. In a commercial society we can expect fairness dealing with others rather than commitment to the

common good.

Page 90: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

99

algo impossível de se realizar.

A primeira tópica, isto é, de que as repúblicas necessitam de que os Estados sejam

criados em territórios pequenos, de tal modo que possa haver proximidade social entre os

cidadãos é usualmente entendida como condição suficiente de impedimento das repúblicas,

mas os próprios norte-americanos criaram uma solução institucional para esse problema, a

saber, a federação de repúblicas. Assim, se territórios extensos e grandes populações criam

dificuldades para a convivência próxima entre os indivíduos, não tornam, para Montesquieu, o

governo republicano uma impossibilidade lógica.

O segundo topos, mais complexo que o primeiro, diz respeito à vinculação entre

república e sua paixão correspondente, a virtude cívica53

, e entre essa e a Antiguidade,

tornando essa noção, conforme diz Honahan, anacrônica. Em primeiro lugar, o fato de a

virtude ser a “mola” do governo republicano, não significa que ela seja exclusiva dessa forma

de governo ou que a república se baseie exclusivamente na virtude de seus cidadãos. O

próprio Montesquieu assevera que a virtude é também necessária na aristocracia, para refrear

os ímpetos da nobreza. Ademais, a Roma republicana, admirada e analisada por ele, é

destacada não apenas por causa da virtude dos romanos, do seu amor pela liberdade e do seu

ódio pela opressão, mas igualmente pelas suas instituições que, com um sistema de

contrapesos, soube coibir os abusos de poder. Segundo: em geral, os intérpretes tenderam a

compreender a noção de virtude como sinônimo de heroísmo, como sacrifício pessoal do

cidadão pela sua pátria. Como propõe Bignotto, o filósofo considera a virtude como um

sentimento e não como um imperativo racional, caracterizado como “submissão às leis,

obediência às regras de conduta, frugalidade e uso consciente de recursos públicos” (2010, p.

42), associando-a ao amor pela igualdade. A virtude cívica serve, portanto, antes como um

“ideal regulador” da ação humana, a ser fomentado pela educação dos cidadãos, que assume

que o desejável é que todos os cidadãos se comportem virtuosamente, ainda que isso não

ocorra exatamente assim.

Como vimos, os autores liberais, Constant e Berlin, associaram também as ideias de

Montesquieu sobre a virtude republicana à repressão, seu suposto corolário se fosse buscada

no mundo moderno. O raciocínio é aparentemente simples: se as repúblicas necessitam da

virtude cívica para serem regimes perfeitos, é necessário forçar os indivíduos a ela.

Obviamente que os críticos liberais supracitados têm em vista as revoluções, particularmente

a Francesa que, sabidamente, degenerou no Terror. Todavia, como observa Bignotto, eles não

53

Cícero é, com efeito, um dos autores mais influentes no republicanismo quando se trata do tema das virtudes

necessárias ao cidadão. Segundo ele, elas são de quatro tipos: prudência, coragem, justiça e temperança.

Page 91: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

100

apresentam nenhuma razão de por que, baseando-se em Montesquieu, qualquer ação virtuosa

deva, necessariamente, pressupor violência; é como se fizessem desse autor um “crítico avant

la lettre da Revolução Francesa” (BIGNOTTO, 2010, p. 56). Além disso, fica evidente que os

intérpretes liberais isolam o ideal da virtude cívica do ideal de liberdade, igualmente prezado

na tradição republicana, redundando, destarte, em opressão à individualidade.

Em resumo, interpretando mais rigorosamente as ideias de Montesquieu, o que se pode

afirmar é que as repúblicas são efetivamente “algo raro e difícil de ser erigido” (idem, ibidem,

p. 47), o que não implica em seu anacronismo ou sua irrelevância para a era moderna, ao

contrário do que afirmam autores liberais contemporâneos (BOBBIO, 2002, p. 9-11;

MANENT apud BIGNOTTO, op.cit., p. 36).

O curioso é que o próprio Montesquieu apresenta elementos em diversas passagens de

seu texto, O espírito das leis, que desautorizam a exegese que assevera a impossibilidade da

via republicana: quando trata das leis de uma democracia, fala factualmente de repúblicas

democráticas (BIGNOTTO, op.cit., p. 39); quando distingue as repúblicas democráticas das

aristocráticas, tais como as existentes nas cidades italianas; quando fala das repúblicas

comerciantes, como Atenas e que, por conseguinte, poderiam, a princípio, se compatibilizar

com a cultura da centralidade do comércio na vida moderna; e quando sugere a possibilidade,

antes mencionada das “repúblicas federativas”, compensando a fraqueza da defesa do

território das pequenas repúblicas, argumento bastante influente entre os republicanos norte-

americanos do século XVIII (Cf. MADISON, 1979).

Mais do que discutir pormenorizadamente a obra de Montesquieu, importa enfatizar a

similaridade entre seu pensamento e de Constant e dele em relação à retórica de Berlin e dos

liberais neoconservadores, que modificam claramente os topos argumentativos originais.

Essas tópicas asseveram basicamente que no mundo moderno o ethos comercial dificulta a

vivência da liberdade política plena, positiva, republicana, restando experimentá-la

fundamentalmente como não interferência, ou seja, negativamente. Além disso, acrescentaria

Berlin, o valor supremo do indivíduo precisa ser compatibilizado com o pluralismo de

valores, horizonte inarredável dos tempos modernos, de acordo com interpretação canônica de

Max Weber, o que, na sua concepção, inviabiliza a liberdade positiva, concebendo-a como a

realização de todos os indivíduos pela participação política que visa um bem comum.

Temos assim três passos distintos da argumentação: um que afirma que a república é

anacrônica por causa da preponderância do ethos mercantil (ou porque não há consenso sobre

valores, no caso de Berlin e Weber); em segundo lugar, o assentimento com a ideia de que a

Page 92: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

101

liberdade republicana consiste na participação ativa na política; e o terceiro, que essa

liberdade redunda necessariamente em opressão aos indivíduos. Montesquieu assente apenas

às duas primeiras partes da argumentação, com a ressalva da possibilidade factível de uma

federação de repúblicas; Constant, Berlin e os neoconservadores às três outras, com a ressalva

que, ao contrário de Constant, esses últimos contestam qualquer importância da participação

política. Sobre isso, Skinner observa o impressionante êxito dessa longa linhagem de

pensamento:

O desafio contrarrevolucionário de Hobbes ganhou eventualmente a

batalha. Para citar a própria ladainha de Berlin, encontramos a linha

básica de seu argumento usada por David Hume, Jeremy Bentham, e em

certa medida por John Stuart Mill e inclusive com mais fidedignidade

(poderia ter incluído Berlin) por Henry Sidgwick. Esta grande tradição do

utilitarismo clássico resultou sendo capaz de menosprezar qualquer

interpretação rival da liberdade, tachando-a como perigosa ou confusa

(2005, p. 29, grifos e trad. nossa).54

O que se verifica, portanto, como denuncia Skinner com propriedade, é um processo

de dogmatização em torno ao conceito de liberdade, que se acentua nos anos 1970 com a

retomada de um debate com uma rica e longa história intelectual. Mais do que simplesmente

repetir os argumentos dos autores do passado – Hobbes, Montesquieu, Bentham e Constant –

Isaiah Berlin, bem como os liberais conservadores de diversas tendências, estão, nesse

contexto de disputa ideológica, reafirmando o caráter privado e anti-estatal do conceito liberal

de liberdade a fim de se opor às tradições da socialdemocracia, bem como do socialismo,

igualmente influentes na segunda metade do século XX, e, em alguma medida, do

republicanismo.

Demos relevo aqui aos diversos momentos do debate intelectual no século XX

ocorrido no mundo anglo-saxão. Isso não significa que fora deste a liberdade não estivesse

sendo também discutida. Apenas como exemplo, cumpre lembrar a obra do filósofo francês

Claude Lefort que, também desde os anos 1970, se volta ao tema do republicanismo. Oriundo

de uma vertente marxista heterodoxa, Lefort vai aos poucos aproximando seu horizonte de

reflexão da tradição republicana a fim de refletir sobre a liberdade humana. Nesse sentido, seu

trabalho sobre Maquiavel teve o mérito de destacar o elogio do florentino à república e, mais,

às repúblicas com grande participação popular. Diferentemente das leituras republicanas do

54

El desafio contra-revolucionario de Hobbes ganó eventualmente la batalla. Por citar la propia letanía de

Berlin, encontramos la línea básica de su argumento usada por David Hume, Jeremy Bentham, en certa

medida por John Stuart Mill e incluso con más cercania (podría haber añadido Berlin) por Henry Sidgwick.

Esta gran tradicíon del utilitarismo clássico resultó siendo capaz de menosprezar cualquier interpretación

rival de la liberdad tachándola de perniciosa o de confusa.

Page 93: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

102

pensamento de Maquiavel que se concentravam nos Discursos sobre a Primeira Década de

Tito Lívio dando pouca importância para O príncipe (e que, portanto, eram acusadas de serem

parciais), Lefort foi capaz de identificar um conjunto de pressupostos relativos à natureza da

política que confere unidade à obra do secretário florentino (PANCERA, 2010, p. 33-35). Essa

unidade consiste no pressuposto de que a política é inevitavelmente o espaço do dissenso e do

conflito, ou dizendo de outro modo, os inevitáveis humores dos homens que cindem ao meio

o corpo político: o desejo de domínio dos “grandes” e o desejo, não simétrico, de não

opressão do povo. A “solução” encontrada para esses conflitos produz as formas de regime

existentes: o principado, a república e a licença, representando a dissolução radical e

indesejável do corpo político.

Para além dessa discussão, cabe salientar que nesse contexto de avanço do liberalismo

conservador (proprietarista e elitista) que atacou fortemente as variantes do liberalismo social,

o retorno à tradição republicana, quer na academia francesa ou na anglo-saxã, não consiste

apenas em uma disputa entre eruditos sobre a interpretação correta dos textos da filosofia

política, mas em uma reação política e teórica contra os equívocos de interpretação e as

insuficiências das matrizes do liberalismo na compreensão dos principais dilemas da política

da atualidade.

2.2 – Os significados neorrepublicanos de liberdade

Reconhecendo que o republicanismo é também marcado por diversas correntes

internas (assim como o liberalismo) e que combinam de modo específico os conceitos de

virtude cívica, liberdade e participação política (HONAHAN, 2005, p. IV), pode-se definir

essa tradição de pensamento político do seguinte modo:

A política republicana está preocupada com a possibilidade dos cidadãos

interdependentes deliberarem sobre e realizar os bens comuns a uma

comunidade política em desenvolvimento, pelo menos tanto promovendo os

interesses individuais quanto protegendo os direitos individuais. Enfatizando

a responsabilidade pelos bens comuns, o republicanismo define-se para além

das teorias “libertárias” centradas nos direitos individuais. Enfatizando que

esses bens comuns são politicamente compreendidos, o republicanismo

marca a diferença com as teorias liberais da neutralidade que excluem

questões substantivas sobre valores e sobre bens da política. Finalmente,

enfatizando a construção política da comunidade política, os republicanos se

distinguem dos comunitaristas para quem a política expressa uma

comunidade de valores pré-políticos (HONAHAN, op.cit, p. 1, trad. nossa).55

55

Republican politics is concerned with enabling interdependent citizens to deliberate on, and realize, the

common goods of an historically evolving political community, at least as much as promoting individual

Page 94: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

103

A autora argumenta que o republicanismo, por conseguinte, distingue-se das tradições

liberais e comunitaristas pela importância que confere às dimensões da liberdade, da virtude

cívica e do bem comum como constructos artificiais e absolutamente relevantes para a

política. Todavia, o procedimento de autodefinição do republicanismo por oposição a outras

tradições, como o liberalismo e o comunitarismo, não está isento de problemas. Mesmo entre

aqueles que identificam essa tradição como particular e distinta das demais, não entram em

consenso sobre quais os seus valores e conceitos-chave e os pensadores nela devem estar

inclusos: Maquiavel, Aristóteles, Rousseau e mesmo Locke são, por exemplo, por uns

aproximados do republicanismo e por outros afastados dessa tradição. Entretanto, mais do que

pensar a tradição como uma questão de descendência genética (HONAHAN, 2005, p. 4-5),

importa ter em mente que uma tradição é por si só algo construído retrospectivamente, por

aqueles que, retornando ao passado, procuram deliberadamente visões de mundo afins às suas,

com vista ao entendimento do tempo presente (ARENDT, 1997).

Em um belo livro, Diálogo em torno da república, o desacordo entre Maurizio Viroli e

Norberto Bobbio expressa bem a complexidade do dissenso entre republicanos e liberais e a

dificuldade de se definir essas tradições:

VIROLI Alguns estudiosos da teoria política sustentam que existe uma

tradição de pensamento político republicano que se distingue tanto da

tradição liberal quanto da tradição democrática.

No juízo destes especialistas, juízo do qual partilho, a teoria política

republicana caracteriza-se em primeiro lugar pelo princípio da

liberdade política. O liberalismo entende a liberdade como ausência de

interferência; a democracia identifica a liberdade "no poder de estabelecer

normas a si próprias e de não obedecer a outras normas além daquelas

estabelecidas a si próprias" (são palavras suas); ao contrário, o

republicanismo identifica a verdadeira liberdade na ausência de

dependência da vontade arbitrária de um homem ou de alguns homens.

(...).

BOBBIO Na minha formação de estudioso da política, nunca me detive sobre

o republicanismo ou a república. Pouco ou nada conheço dos teóricos de

republicanismo, que são aqueles que inspiraram você (...).

A república é uma forma ideal de Estado fundada sobre a virtude dos

cidadãos e sobre o amor da pátria. Virtude e amor pela pátria eram os

ideais jacobinos, aos quais depois agregaram o Terror. A república na

realidade precisa do Terror. Você se recorda do famoso discurso sobre

virtude e Terror. Para mim, a república é um Estado ideal que não existe

em lugar nenhum. É um ideal retórico; portanto, para mim é difícil

interests or protecting individual rights. Emphasizing responsibility for common goods sets republicanism

apart form libertarian theories centered on individual rights. Emphasizing that these common goods are

politically realized sets republicanism apart from neutralist liberal theories which exclude substantive

questions of values and the good from politics. Finally, emphasizing the political construction of political

community distinguishes republicans from communitarians who see politics as expressing the pre-political

shared values of a community.

Page 95: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

104

compreender o significado que você atribui à república e que os

republicanos entendem por república. Nem mencionemos então a

República italiana (BOBBIO, 2002, p. 9-11, grifos nossos).

Vê-se que a interlocução entre os dois intelectuais gira em torno de três principais

questões: a distinção entre três tradições de pensamento político – liberalismo, republicanismo

e democracia – em função de três significados diferentes de liberdade; a relação entre Estado

opressor e o republicanismo; e a existência ou não de repúblicas e de uma tradição

republicana.

Digno de nota é a correta identificação por parte de Viroli de que no centro da teoria

política republicana, em suas diferentes vertentes e variações, se situa o princípio da liberdade

política. Em Republicanism, o autor reitera que é a partir da tradição do republicanismo

moderno, criada no fim da Idade Média nas cidades italianas, chamada por outros estudiosos

de humanismo cívico, que o princípio da liberdade é o cerne da política, de modo que suas

instituições devem preservá-la (VIROLI, 2002, p. 3). Como já foi dito, não apenas o

republicanismo a essa época, mas o liberalismo, emergente posteriormente na aurora da

modernidade, também formula sua linguagem política a partir de uma compreensão específica

sobre a liberdade, princípio este que é objeto precípuo de embate dos processos

revolucionários que constituíram a política moderna.

Também importante é a diferenciação feita por Viroli entre democracia e república.

Aristóteles foi quem primeiro fez mais claramente essa distinção, caracterizando a república,

politeia, como um regime misto. Para o estagirita, há basicamente três tipos de regime

político, distinguidos segundo o número dos que governam: monarquia, aristocracia e

democracia. Cada um desses regimes pode ser apropriado em certas condições, mas todos eles

são identificados como instáveis e tendem a se corromper, transformando-se em,

reciprocamente, tirania, oligarquia e oclocracia, o que ocorre quando o poder político é

utilizado para atender não ao bem comum, mas a interesses particulares. A democracia é

caracterizada como o governo dos "muitos", e criticada por Aristóteles pelos excessos que

frequentemente comete, como é o caso da utilização do ostracismo para fins particulares.

Como pondera Honahan:

Na visão de Aristóteles, a interpretação ateniense da igualdade no acesso à

vida política (isegoria) é errada, já que o povo é desigual em talento, riqueza

e outras contribuições para a sociedade. Igualdade política deve ser mantida

para iguais (Política 1283b13). Os melhores regimes dão direito à palavra

não apenas proporcionalmente ao número, mas devido às suas contribuições

em virtude, talento, sabedoria e riqueza. O número é apenas um tipo de

contribuição, equivocadamente tomada pelos democratas como a única que

Page 96: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

105

importa (HONAHAN, 2002, p. 22, tradução nossa).56

A politeia, ao contrário, é definida como um regime da mediania, em que a existência

de elementos aristocráticos e monárquicos (VIROLI, 2002, p.5; HANKINS, 2010, p. 455)

ajuda a conter as desmedidas por maior igualdade praticada pelo demos.

Na prática, o melhor regime (denominado de "governo" – politeia) é uma

mistura de aristocracia e democracia. Ele reconhece mérito e talento assim

como o número, e realiza o governo no interesse de todos, por procedimentos

mais ou menos democráticos. Altos cargos podem ser restritos ao virtuoso

através de nomeação por eleição. Mas o povo tem o direito à palavra na

assembleia e nos júris, pode ser pago para assistir, e muitos cargos podem ser

escolhidos por sorteio, com uma qualificação mínima de propriedade. Essa

mistura combina elementos de diferentes regimes; ela não implica em manter

um equilíbrio (ou uma separação) de instituições, grupos sociais, ou poderes

na sociedade, como o termo "governo misto" geralmente veio significar no

pensamento republicano posterior. Ele provê um compartilhamento de

poderes entre as classes no autogoverno; logo, essa forma de governo pode

prover um arranjo harmonioso e manter sob controle a ameaça sempre

presente da guerra civil, ou o conflito entre os grupos sociais (HONAHAN,

2002, p. 22-23, trad. nossa).57

É correto afirmar que, em geral, a distinção entre república e democracia permaneceu

com razoável consenso na teoria política antiga e moderna, ainda que, obviamente, os termos

"república" e "democracia" tenham variado razoavelmente de significado. Nesse sentido

também, podemos encontrar diversos pensadores essencialmente republicanos, tais como

Cícero e John Milton que não são democratas, pois defendem muito mais uma república de

feitio aristocrático do que popular, na medida em que a participação dos cidadãos comuns

deve ser limitada a espaços e funções específicas. Sobre Maquiavel, por exemplo, afirma:

Republicanismo na sua versão clássica, a qual eu identifico Nicolau

Maquiavel, não é uma teoria da democracia participativa, como alguns

teóricos reivindicam, tendo em vista fontes mais recentes. É sim uma teoria

da liberdade política que considera que a participação nas deliberações

soberanas necessária para a defesa da liberdade apenas quando ela

permanece com suas fronteiras bem definidas (VIROLI, 2002, p. 4, trad.

56

In Aristotle's view, the Athenian interpretation of equality of access of political life (isegoria) is mistaken,

since people are very unequal in talent, wealth and others contributions to society. Political equality should be

kept for equals (Politics, 1283b13). Better regimes give the citizens a say proportional not just to their

numbers, but to their contributions in virtue, talent, wisdom and wealth. 57

In practice, the best regime (termed polity - politeia) is a mixture of aristocracy and democracy. It recognizes

merit and talent as well as number, and realizes government in the interest of the whole, by some more, and

some less, democratic procedures. High offices can be restricted to the virtuous through appointment by

election. But the people can have a say in assembly and juries, can be paid to attend, and many offices can be

chosen by a lot, with a minimal property qualification. This mixture combines elements of different kinds of

regimes; it does not implies maintaining a balance (let alone set separation) between institutions, social

groups or powers in society, as the term "mixed government" generally came to convey in later republican

thought. It provides a share in self-rule for all classes fo citizens; thus this form of government can provides a

harmonious arrangement, and keep at bay the ever-present threat of civil war, or fo conflict between social

groups.

Page 97: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

106

nossa).58

Certamente que Viroli tem razão em dissociar a defesa de uma democracia radical do

pensamento de Maquiavel. Todavia, o lugar de Maquiavel como republicano e não um

democrata está longe de ser consensual. John McCormick, por exemplo, ataca frontalmente as

interpretações antidemocráticas da obra de Maquiavel, como teórico da liberdade neorromana,

feitas por Skinner e Pettit, dando especial atenção às “tendências pró-plebeias do pensador

florentino, realizando um esforço para trazê-lo para o leito do radicalismo democrático

contemporâneo” (SILVA, 2011, p. 46). Se o esforço de McCormick ajuda a contrabalançar a

leitura de Maquiavel como um pensador que entende a liberdade apenas negativamente como

segurança individual, garantida pelas leis e pelo civismo dos cidadãos, ele parece exagerar ao

atribuir anacronicamente a Maquiavel um valor, democrático, ausente ao contexto desse autor.

Tanto o republicanismo quanto o liberalismo, a rigor, nascem como linguagens

políticas reticentes à democracia, não incorporando o princípio da soberania popular ou

apenas o fazendo de modo parcial. Assim, embora não estejamos em condições de discutir

pormenorizadamente aqui as interpretações da obra maquiaveliana, cumpre destacar a

ponderada leitura de Newton Bignotto que, inspirado na obra de Lefort sobre esse filósofo,

assevera que ainda que o termo democracia fosse incomum à época do pensador florentino,

fica evidente, pelas críticas que ele faz à república de Veneza, que a participação ampla do

povo torna o regime mais livre e mais forte frente às ameaças externas (BIGNOTTO, 1991, p.

102-109).

Conforme a interpretação de Lefort, a partir da tese sobre os desejos no corpo político,

Maquiavel teria concluído que o povo é o melhor guardião da liberdade do que os nobres, pois

além de não ansiarem o domínio ou a expansão deste (como se dá com os “grandes”), ele, ao

acostumar-se com a vida livre, dificilmente aceita viver sob a servidão, o que faz deles

inimigos da opressão interna e também externa. Como demonstra Bignotto (1991), longe de

idealizar o povo como elemento virtuoso, Maquiavel alerta que ele também pode se

corromper, trazendo a ruína para a política, pois se tem o desejo de não opressão, não tem

necessariamente o saber da conservação da liberdade; nesse caso, se a liberdade do povo é

entendida como condição necessária para o bem público, ela certamente não é condição

suficiente, dependendo também de boas leis, portanto, da ação prudente do legislador-

58

Republicanism in its classical version, which I identify with Niccolò Machiavelli, is not a theory of

participatory democracy, as some theorists claim, having in mind more recent sources. It is, rather, a theory of

political liberty that considers citizens participation in sovereign deliberation necessary to defense of liberty

only when it remains within well-defined boundaries.

Page 98: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

107

fundador, da contínua solução dos conflitos políticos e de uma boa dose de fortuna.

Assim, a superioridade da república no pensamento de Maquiavel não implica em

desconsiderar as condições para sua realização, a “verdade efetiva das coisas”, nas palavras

desse pensador. República na obra maquiaveliana está associada à igualdade, assim como o

principado à desigualdade: cidadãos acostumados à condição de maior igualdade estão mais

aptos à vida republicana. Podemos dizer também que uma república ampla, isto é, não

aristocrática, é uma solução política melhor, na medida em que ela, ao considerar todos os

humores da cidade, canaliza os conflitos para o reforço da ordem, evitando a instabilidade

gerada toda vez que um determinado grupo social é excluído do processo político e tende a se

voltar contra a ordem. Além de canalizar os conflitos, regimes políticos “estreitos”, tendem a

produzir o fenômeno de que os grupos poderosos identificam os seu bem particular como o

bem comum. Como explica Gabriel Pancera:

A exclusão de parcelas do corpo político sugere também a promiscuidade

dos interesses públicos e privados, a qual, uma vez efetivada, permitia que o

grupo governante acabasse por identificar o seu próprio bem como sendo o

bem comum, na medida em que os demais integrantes se encontravam

ausentes ou não possuíam canais para manifestarem sua posição (2010, p.

49).

O republicanismo maquiaveliano revela, portanto, sua afinidade com o que mais

séculos se consolidaria com um ideal democrático amplo, em que a participação dos cidadãos

nos negócios públicos não é compreendida como fonte de instabilidade, mas precisamente o

contrário, como aquilo que garante a tranquilidade na república, ainda que isto esteja longe do

ideal de harmonia e paz social dos humanistas. Contrariamente àqueles que defendiam a

exclusão de certos grupos políticos do ordenamento institucional, a fim de se evitar o

acirramento dos conflitos produzindo maior estabilidade, Maquiavel defendia precisamente o

contrário: era preciso criar canais de participação para os diferentes grupos a fim de dar vazão

aos humores de cada um deles. A exclusão política, por exemplo, das facções desejosas de

poder, implicaria, posteriormente, no fortalecimento da sua autoridade particular em

detrimento da ordem pública. Ao incorporar esses grupos, institucionalizando o conflito,

Maquiavel esperava que em compensação ao quinhão de poder concedido a eles, conquistava-

se a sua submissão às leis do Estado, produzindo, portanto, estabilidade política (PANCERA,

2010).

Nesse sentido, ainda que não entendesse o povo como detentor legítimo do poder

político, ele o via como a melhor garantia, ainda que insuficiente para impedir a corrupção

desse poder. Em resumo, se é verdade que a tradição do humanismo cívico estava ligada

Page 99: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

108

fortemente ao “projeto de poder” das elites florentinas contra a ameaça externa e contra as

pressões populares, como realça McCormick, e que o republicanismo maquiaveliano, nesse

contexto, era mais “autenticamente popular” (BIGNOTTO, 2001, p. 110), parece-nos

exagerado qualificá-lo segundo o signo da democracia.

Importa reter que, na opinião de Viroli, o conceito republicano de liberdade não

implica necessariamente em autogoverno, mas sim na ausência de "vontade arbitrária de um

homem ou de alguns homens". O republicanismo, para esse autor, é muito mais uma teoria

que supõe um governo representativo dotado de limites constitucionais do que uma forma de

democracia marcada por intensa participação popular (Cf. VIROLI, 2002, p. 6).

Assim, democratas e republicanos divergem acerca do valor da participação política:

enquanto os primeiros consideram que a participação ativa dos cidadãos deve ser sempre

fomentada, os teóricos do segundo tipo a entendem como um “meio de proteger a liberdade e

selecionar os mais virtuosos e bem qualificados cidadãos para as posições de liderança,

encorajando-os então a uma cultura política hostil à dominação” (VIROLI, 2002, p. 11, trad.

nossa).59

Ainda que de modo impróprio, é por causa desse elemento aparentemente

“aristocrático” dos cidadãos mais qualificados, que McCormick afirma que os “democratas

devem ficar preocupados quando os filósofos empregam a linguagem do republicanismo”,

pois historicamente o republicanismo “clama por golpes aristocráticos contra governos

populares ou justifica a consolidação oligárquica quando regimes democráticos foram

derrubados” (MCCORMICK, 2011, p. 141, trad. nossa).60

Em outro texto, esse mesmo autor

afirma que o “republicanismo, em sua forma antiga e moderna de teoria e prática, garante a

posição privilegiada das elites mais do que facilita a participação política do povo em geral”

(2003, p. 615)61

.

O conceito de liberdade republicana, de acordo com Viroli, difere em primeiro lugar

do conceito liberal, segundo o qual basta não sofrer interferência para ser livre; mas, para o

autor, os republicanos também divergem da concepção democrática de liberdade que, segundo

suas palavras, "é um tipo de liberdade positiva que se expressa na participação direta nas

deliberações soberanas" (VIROLI, 2002, trad. nossa, p. 11)62

. Para o autor, liberdade

59

... As a means to protect liberty and select the most virtuous and best-qualified citizens for positions of

leadership, thus encouraging a political culture that is hostile to domination. 60

Democrats should worry when philosophers employ the language of “republicanism” (…). Republicanism,

historically, often prompted aristocratic coups against popular governments or justified oligarchic

consolidation once more democratic regimes had been overthrown. 61

Republicanism, in ancient and modern political theory and practice, guarantees the privileged position of

elites more than facilitates political participation by the general populace. 62

Democratic liberty is a type of positive liberty that express itself in direct participation in sovereign

Page 100: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

109

democrática opõe-se à heteronomia. Como na concepção republicana, nessa última não há

oposição entre liberdade e lei. A liberdade republicana, assevera Viroli, é definida como não

dependência: um escravo que tenha como dono um senhor benevolente e que, portanto, não

interfira em sua vida, ainda assim não é livre, pois vive sob sua dependência. Assim, conclui o

autor, "a dependência é uma violação mais grave à liberdade do que a interferência" (idem,

ibidem, trad. nossa, p. 10)63

. Por outro lado, um governo representativo, limitado por leis

válidas para todos, interfere, mas não produz dominação.

Viroli reconhece que foi Rousseau (mas estranhamente identificado por ele mais como

um autor da teoria democrática do que do republicanismo) que melhor diferenciou obediência

de servidão, identificando a liberdade com a lei que impõe exatamente os mesmos

constrangimentos a todos, e a não liberdade com o privilégio que alguns tem de não se

submeter ao que submete todos os outros: “um povo livre obedece, mas não é servo, possui

líderes mas não senhores; ele obedece as leis, mas obedece somente as leis, e é devido à força

das leis que ele não é forçado a obedecer homens” (ROUSSEAU apud VIROLI, op. cit., p. 9,

trad. nossa)64

.

Vê-se, enfim, que Viroli adota a concepção de liberdade como não dependência ou não

dominação, quer dizer, expressa de maneira negativa, ainda que o autor advirta que a

concepção republicana de liberdade não é, segundo a terminologia de Berlin, nem positiva

nem negativa: "é fácil ver que a concepção republicana de liberdade não é nem negativa nem

positiva descritas por Berlin e Constant" (2002, p. 40, trad. nossa).65

Como esse autor

reconhece, sua identificação com essa formulação da liberdade republicana converge com a

opinião de dois importantes estudiosos dessa tradição, Quentin Skinner e Philip Pettit.

Um ponto importante é que Viroli caracteriza o republicanismo clássico como uma

tradição que se inicia, a rigor, com as repúblicas do Renascimento italiano, Florença, Veneza,

Siena, Gênova e Luca. Para o autor, teria se criado a partir dessa experiência política uma

nova ciência de governo, baseado no senso de dignidade e de direitos de todos os indivíduos.

Destarte, ao contrário, de Grécia e Roma, sociedades baseadas na escravidão, as repúblicas

italianas conseguiram conciliar a liberdade individual com a busca por riqueza material e

espiritual. Se a visão de Viroli é, ao que parece, excessivamente idealizada no tocante a esse

deliberations.

63 (...) that dependence is a more painful violation of liberty than interference.

64 “A free people obeys, but it does not serve, it has leaders but not masters; it obeys the laws, but it obeys only

the laws, and it is due to do strength of the laws that it is not forced to obey men. 65

It is easy to see that the republican conception of liberty is neither the negative nor positive described by

Berlin and Constant".

Page 101: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

110

senso universal de dignidade (basta pensar na exclusão política das mulheres nas repúblicas

da Itália, bem como das constantes disputas belicosas entre elas, de tal modo que a “grandeza”

de uma república podia significar a ruína de outra) ela, de qualquer modo, marca uma forte

consenso entre ele, Skinner e Pettit: a recusa em associar republicanismo a experiência da

polis grega. Ao diferenciar a tradição democrática da republicana, eles chamam a atenção para

o fato de que os teóricos da liberdade republicana conheciam a possibilidade de que o governo

da maioria cometesse excessos, incorrendo numa tirania do maior número ou da maioria.

Outro ponto importante mencionado no diálogo entre Viroli e Bobbio é a associação

entre republicanismo e opressão pelo Estado. Essa acusação recorrente, já tratada

anteriormente a partir dos argumentos de Benjamin Constant e Isaiah Berlin, é contestada por

Viroli de dois modos: primeiro, salientando que a liberdade republicana tem, como o

liberalismo (que, na sua concepção, “tomou de empréstimo” esse valor do republicanismo), a

individualidade como um bem a ser protegido pelo Estado, que não pode ser suprimido por

uma harmonia que se impõe aos indivíduos. Isso significa que o republicanismo, conclui o

autor, é uma teoria adequada aos tempos atuais, na medida em que ele não postula que os

indivíduos sejam coagidos a abdicar de seus negócios e interesses particulares. Em segundo

lugar, associando a opressão estatal a uma apropriação não necessária do republicanismo,

ocorrida na matriz francesa. Segundo o autor, foi a condenação da sociedade mercantil,

insistindo na primazia da vida política em relação a essa, que fez com que o republicanismo

francês degenerasse em jacobinismo. O autor assevera que a crítica à mercantilização da vida

é uma tópica do republicanismo jacobino, não do republicanismo clássico que, na obra de

Maquiavel reafirma a compatibilidade pela busca de riquezas e grandeza pessoal e a liberdade

política republicana.

Contra, portanto, a tese de que a república é anacrônica, Viroli argumenta que o

ideário republicano contribuiu fortemente para a formação do mundo moderno através das

mencionadas cidades republicanas da Itália, na Holanda, na Inglaterra, na América e,

especialmente, constituindo um repertório ético fundamental para o Iluminismo que, através

de Voltaire, D`Alembert e Rousseau, se apropriaram dele (Cf. VIROLI, 2002 p. 31). Se o

autor parece ter razão quando acentua a importância histórica do republicanismo na

modernidade, sua solução de dissociar a matriz francesa de uma versão mais “fidedigna” do

republicanismo é claramente insatisfatória. Como esse ponto será retomado adiante, cumpre

apenas salientar que a mesma “solução” é identificada nas obras de outros dois

neorrepublicanos, Skinner e Pettit.

Page 102: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

111

De qualquer modo, embora se insira no debate da Teoria Democrática contemporânea,

a verdade é o republicanismo de Viroli não constitui de modo claro e consistente um novo

modelo de democracia. Suas assertivas acerca da compatibilidade entre, de um lado,

economia de mercado, pluralismo cultural e individualidade e, de outro lado, e um governo

republicano – dotado de garantias constitucionais contra as situações de dependência e

dominação – não são, todavia, suficientes para se pensar sistematicamente a democracia

contemporânea.

O principal texto de Skinner sobre especificamente a questão da liberdade é Liberdade

antes do liberalismo. Nele, o historiador inglês procura reconstruir o contexto discursivo na

Inglaterra e caracterizar a ascensão e queda da teoria neorromana de liberdade. Trata-se,

enfim, de localizar o momento decisivo em que o liberalismo, como modelo para se pensar a

liberdade política, triunfa, deixando essa teoria desacreditada. No século XVI e XVII, os

defensores da autonomia do Parlamento, frente ao poder real inglês, personificado por Carlos

I, entraram em um embate ideológico intenso com os defensores do poder absoluto do rei,

sobretudo Hobbes. Partindo de uma concepção materialista e determinista da realidade, esse

filósofo afirma que a liberdade consiste em não ter o corpo impedido de agir de acordo com

seus poderes: "quando dizemos que alguém agiu livremente, isto quer simplesmente dizer que

ele realizou uma ação que tinha vontade de realizar, e o fez sem estorvo ou impedimento

externo" (SKINNER, 1999, p. 19). Na concepção hobbesiana, a liberdade inicia-se quando a

lei silencia-se.

O que Skinner demonstra habilmente é como Hobbes, apropriando-se da linguagem

neorromana da liberdade, com a qual ele manteve contato em seus estudos humanistas de

juventude (SKINNER, 2010, cap. 1), subverteu o sentido original de liberdade civil, até então

associado ao ideal clássico do Estado livre. Logo após essa retórica poderosa expressa no De

Cive, mas, sobretudo, no Leviatã, vários defensores da causa parlamentar, como Marchamont

Nedham, John Milton, James Harrington, entre outros, responderam publicamente a Hobbes

reafirmando o entendimento clássico de liberdade. Recorrendo aos moralistas e historiadores

romanos como Cícero, Tácito, Salusto, bem como aos republicanos do renascimento italiano,

em particular Maquiavel, os autores ingleses reafirmavam a associação entre liberdade a

governo livre, entendendo por isso as formas radicais de governo representativo. Para eles, ao

contrário de Hobbes, defensor da soberania absoluta, a liberdade individual e a liberdade da

cidade estão necessariamente vinculadas.

Haveria, segundo a teoria neorromana, duas formas para o indivíduo e a cidade

Page 103: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

112

perderem a liberdade. A primeira é ser coagido a agir de um modo que não está prescrito ou

que é proibido por lei. O tirano que usurpa a propriedade individual é um exemplo vivo à

época desse primeiro caso. Mas a liberdade não é limitada apenas pela coerção aberta. O

segundo caso, já tratado na análise sobre Viroli, consiste em não sofrer alguma interferência

direta, mas viver numa condição em que isso pode ocorrer; trata-se da sujeição ou

dependência política. Como exemplifica Skinner

Você pode na prática continuar a gozar da plena gama de seus direitos civis.

O simples fato, porém, de que seus governantes possuem tais poderes

arbitrários significa que o gozo continuado de sua liberdade civil permanece

o tempo todo dependente da boa vontade deles (SKINNER, 1999, p. 62,

grifos nossos).

Esse é o caso contra o qual se voltavam os republicanos ingleses no século XVII: a

prerrogativa real de certos poderes, como o veto sobre decisões dos parlamentares ou a

criação de novos tributos sem a concomitante aprovação dos mesmos pelo Parlamento.

Novamente aparece aqui a formulação da concepção republicana, ou nos termos de Skinner

neorromana de liberdade, como não dependência ou não dominação.

Quando a simples vontade do rei é transformada em lei, todos os cidadãos são

reduzidos à servidão. Em vários momentos de sua obra, o historiador inglês enfatiza que a

liberdade civil é definida pelos republicanos romanos, pelo humanismo cívico e por

Maquiavel no Renascimento italiano, e pelos defensores da autonomia do Parlamento na

Inglaterra revolucionária por oposição à condição do escravo. Esse importante ponto da teoria

republicana revela sua radical diferença com o liberalismo: enquanto este entende que a

supressão da liberdade se dá enquanto permanece a interferência, qualquer que seja ela, de

modo que, findada a interferência, volto a ser livre, para a primeira tradição a ausência de

liberdade já ocorre e continua subsistindo simplesmente na ausência de direitos, ainda que não

haja interferência alguma (Cf. SKINNER, 2005, p. 33).

Pode-se brevemente retomar nesse ponto a discussão importante no Brasil no fim do

século passado sobre a distinção entre autoritarismo e democracia a fim de estabelecer a

seguinte analogia. Supondo que o golpe de 1964 consistiu apenas em uma interrupção

provisória do regime democrático brasileiro, realizada precisamente para preservar a

democracia e afastar a ameaça comunista (como os defensores do golpe propugnavam à

época), e supondo que nossos presidentes militares não eleitos não suprimissem nossa

liberdade, poderíamos concluir, a partir da teoria hobbesiana da liberdade – mas não a partir

da concepção de liberdade dos autores republicanos – que permanecemos livres e que só a

Page 104: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

113

perdemos quando da ocorrência de vetos autoritários. A partir do prisma republicano, mesmo

sob o domínio de ditadores “ilustrados”, supostamente convictos do credo democrático,

viveríamos sob o signo da servidão, e não da liberdade. Essa distinção, como se vê, é

fundamental para rechaçar por completo o entendimento da redemocratização apenas como

fim dos vetos autoritários.

Cumpre dizer que Skinner prefere intitular de teoria “neorromana” e não

“republicana” da liberdade, pois muitos teóricos a que ele faz referência (como Cícero) não

eram, segundo ele, propriamente republicanos, isto é, antimonárquicos. Esses revoltosos

ingleses, entre eles Nedham e Milton, entendiam que uma monarquia limitada por leis feitas

por um corpo político independente é compatível com as condições de um Estado livre.

República não se opõe nessa chave de compreensão a monarquia, mas a despotismo. Nesse

sentido, o uso "republicano" é na opinião de Skinner equívoco para se referir a essa escola de

pensamento. Liberdade neorromana associa-se, na concepção do autor, não exclusivamente às

repúblicas, mas a governo livre que significa fundamentalmente o governo que permite o

direito a cada cidadão de "igual participação na elaboração de leis", que implica em poder

"decretar e revogar leis" (SKINNER, 2005, p. 35).

O mesmo aspecto é salientado, por exemplo, por Renato Janine Ribeiro (2005). Como

explica, o termo “monarquia” descreve o governo de um só, ao passo que respublica não se

refere ao número dos que governam, mas com que finalidade é exercida o poder: o bem

comum. Sendo assim, conclui esse autor, até a Revolução Gloriosa e a emergência da matriz

republicana inglesa, acreditava-se que um monarca poderia governar “republicanamente”, isto

é, em função do bem comum.

Segundo Hankins, há de fato uma imprecisão conceitual acerca do significado de

república: “no período pré-moderno, por contraste, respublica era um termo aplicado a uma

grande variedade de regimes, à realeza bem como à aristocracia e ao governo popular e

mesmo à oligarquia” (2010, p. 453, grifos e trad. nossa).66

O próprio Aristóteles, principal

referência grega no uso do termo politeia, que deu origem a respublica, usa o termo de modo

dúbio, ora significando qualquer forma de constituição política, isto é, organização formal da

política, ora como uma forma específica de constituição, o governo da virtude dos cidadãos

(idem, ibidem, p. 456).

Hankins, todavia, apresenta opinião parcialmente divergente da de Skinner, ao afirmar

66

In the premodern period, by contrast, respublica was a term applied to a wide variety of regimes, to kingship

as well as to aristocracy and popular government, sometimes even to oligarchy.

Page 105: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

114

que é precisamente na Renascença italiana que o conceito de república fica caraterizado em

oposição à monarquia. Como diz ele, embora os humanistas não acreditassem que a

respublica excluísse a possibilidade do governo de “um só”, eles imaginavam que esse

governo deveria dar origem posteriormente a um governo amplo. De qualquer modo, é a

partir do século XVIII, assevera Hankins, com os processos revolucionários francês e norte-

americano que o espírito antimonárquico se consolida definitivamente no ideário republicano.

Em textos mais recentes, Quentin Skinner explora ainda mais essa concepção de

liberdade que, para ele, como a concepção liberal, é negativa, mas distinta e superior a ela.

Além da liberdade negativa (liberdade de interferência) e a positiva (de seguir um tipo de

vida, entendendo a política como realização plena da natureza humana), descritas por Berlin,

haveria um terceiro tipo: estar livre de viver sob a dependência de outrem. Tendo como

origem o direito romano e medieval – em que o status do cidadão, sui iuris, é definido por

oposição ao de escravo, sub potestate – os teóricos da liberdade neorromana entendem que

viver sob a existência de poderes arbitrários, ainda que esses poderes não sejam efetivamente

exercidos, é viver na servidão. A única forma de garantir a liberdade individual é, por

conseguinte, o governo livre, uma república, marcada não pela participação direta e ampliada

do povo, mas pela sua participação limitada, que estimule a virtude cívica, a devoção à coisa

pública e a capacidade de priorizar o interesse público em detrimento do particular. Um

governo das leis, em que todos, inclusive os governantes (que pode, a princípio, ser um

monarca), se submetam a elas e ao bem comum. Liberdade, em resumo, é não dependência,

ideal individual e negativo e que pressupõe instrumentalmente a participação política e as

virtudes cívicas como sua garantia.

Como observa James Hankins, Skinner parece ter se distanciado de seus primeiros

escritos sobre o republicanismo, inclusive abandonando essa terminologia, e se aproximando

cada vez mais da posição assumida por Philip Pettit. Ao contrário do que argumenta Pocock

que, em sua caracterização da tradição republicana associa o pensamento de Maquiavel ao de

Aristóteles (à experiência da polis e ao seu elogio da vida pública), Skinner afirma que os

neorromanos, inclusive Maquiavel, entendiam a liberdade somente como um status individual

de salvaguarda pelas leis da dependência arbitrária. Assim, gradualmente, Skinner estaria

distinguindo essa tradição da teoria da democracia participativa e indicando que a liberdade

como não dependência é uma alternativa não somente à liberdade como não interferência,

mas também como participação política. Fica, todavia, a dúvida acerca de “quanto” e de que

tipos de participação política e de civismo são necessários para a preservação da liberdade

Page 106: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

115

neorromana. Skinner fala vagamente sobre uma capacidade que talvez as instituições não

tenham, que é o caráter coercitivo da lei que deve assegurar o mínimo necessário de

participação e de devoção ao interesse público, necessários à liberdade:

Daí, mais uma vez, as leis os forçou a serem livres, coagindo-os para a

defesa da sua liberdade, quando o seu instinto natural de autopreservação

levaria-os à derrota e, portanto, à servidão”(SKINNER, 1993, p. 306, trad.

nossa). 67

De qualquer modo, o mesmo juízo a respeito da obra de Viroli se impõe sobre a de

Skinner: não há uma teorização sistemática sobre a democracia, e mesmo que seja razoável

considerar que o autor pretenda influir sobre o debate entre liberais e neorrepublicanos acerca

do que deve ser a democracia na contemporaneidade, seus estudos constituem-se mais de

investigações historiográficas a respeito de tradições intelectuais e políticas esquecidas no

tempo.

Philip Pettit é, por seu turno, autor de influente obra sobre o republicanismo na Teoria

Política contemporânea. Em Republicanism, o autor defende que o ideal republicano de

liberdade é mais bem descrito como “não dominação”. Melhor do que o ideal liberal de não

interferência (que a partir da Revolução Americana assume o lugar do republicanismo como

pensamento político hegemônico, produzindo um “golpe de Estado” contra a liberdade

republicana [PETTIT, 1997, p. 50, trad. nossa]), complacente com diversas formas de

dominação, como as sofridas pelos trabalhadores assalariados em relação a seus patrões, pelas

mulheres em relação a seus maridos, a concepção de liberdade como não dominação tem duas

vantagens sobre a primeira: ela permite distinguir a interferência arbitrária – produzida por

um senhor, um patrão ou um marido dominador – da interferência legítima e condizente com

a liberdade, isto é, aquela provocada pelas leis promulgadas por um governo legítimo sobre os

indivíduos.

Assim, diferentemente do liberalismo que pensa que quanto mais leis, menor a

liberdade individual, o republicanismo assevera que as leis são essenciais para criar as

condições de exercício da liberdade individual. Além disso, o ideal de não dominação obsta a

existência de casos em que ainda que não haja uma interferência clara, há dominação; por

meio de mecanismo institucionais (como o da representação, da rotatividade nos cargos de

poder, da separação entre os poderes), o indivíduo está preservado não apenas de

interferências arbitrárias, como também de viver sob a boa vontade de outrem (dominação).

67

Hence, once again, their laws forced them to be free, coercing them into defending their liberty, when their

natural instinct for self-preservation would have led them to defeat and thus servitude.

Page 107: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

116

Mas, como se percebe, e Pettit apressa-se em esclarecer, o ideal de não dominação não

é um ideal positivo de liberdade. Diferenciando-se de uma tradição “populista” da liberdade,

ancorada em especial na obra de Rousseau, que identifica liberdade e autogoverno, a não

dominação consente quanto à importância da participação política ampliada e da democracia

apenas enquanto meio de salvaguarda da liberdade, entendida, destarte, como segurança

individual e tranquilidade de vida. Para ele, é precisamente por não se identificar com a

concepção aristotélica ou rousseauniana de liberdade que a concepção republicana de

liberdade tem grande valor para a Teoria Política contemporânea. Uma vez que não pressupõe

que a liberdade se dá pela “ativação” da vida pública, a liberdade republicana, conclui Pettit, é

compatível com o pluralismo de valores que caracteriza a modernidade.

Assim, os autores centrais no debate sobre a liberdade associados ao retorno do

republicanismo, Viroli, Skinner e Pettit, se atacam o atomismo liberal e sua concepção

negativa de liberdade, se mostram igualmente críticos ao que chamam de modelo neo-

ateniense de liberdade (ou “populista”), ou ainda a certas linhagens do comunitarismo

contemporâneo. Contra essas tendências teóricas, identificadas na obra precursora de

Aristóteles e, contemporaneamente, no pensamento de Hannah Arendt, Charles Taylor,

Asladair MacIntyre, Michael Sandel, entre outros, que supostamente definem a liberdade

como a realização de um fim coletivamente compartilhado, Viroli, Skinner e Pettit formulam

uma concepção de liberdade que não se vincula necessariamente às formas ampliadas de

democracia.

É verdade que entre Skinner e Pettit existem não apenas afinidades, mas também

diferenças teóricas. Skinner argumenta que Pettit sugere que a liberdade republicana pode

encarnar elementos negativos e positivos, ao passo que o primeiro reafirma que ela deve ser

descrita em termos exclusivamente negativos (SKINNER, 2005, p. 39). Assim, o historiador

inglês, apesar de reconhecer a influência da obra do filósofo irlandês sobre seu pensamento,

se mantém descrevendo a liberdade como um conceito neorromano, entendendo-o como não

dependência (e não como não dominação), como um conceito essencialmente negativo

individual. Pettit, por seu turno, afirma que enquanto Skinner supõe que a liberdade deve ser

entendida como não dominação e não interferência, de tal modo que tanto os liberais clássicos

quanto os neorromanos estão preocupados em reduzir a coerção sobre o corpo e a vontade, o

filósofo irlandês afirma que liberdade é simplesmente não dominação, de tal modo que ele

tem como prioridade política a redução não da interferência, como os primeiros (por exemplo,

destaca a interferência bem vinda de leis justas), mas a eliminação de qualquer forma de

Page 108: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

117

dominação (PETTIT, 2002, p. 342). A diferença fundamental entre eles seria uma sutil ordem

de prioridades: Skinner entende que dominação sem interferência e interferência sem

dominação são situações equivalentes, ao passo que Pettit entende que a primeira situação é

pior do que a segunda.

Para além da questão da interpretação de Pettit sobre a obra de Skinner (ela mesma

marcada por variações no entendimento do conceito de liberdade) e das pequenas diferenças

entre eles68

, cumpre entender de que modo a compreensão desse conceito constitui uma

alternativa à compreensão liberal desse conceito e sua relação com o significado de

democracia.

Começando pela segunda indagação, no caso de Pettit, essa relação fica bastante

evidente, pois longe de se limitar à investigação histórica, como Skinner, o filósofo irlandês

quer demonstrar a contribuição da teoria republicana da liberdade para a Teoria Democrática

contemporânea. Assim, ao contrário do historiador de Cambridge, Pettit se aventura a

formular uma concepção de democracia, condizente com sua definição de liberdade como não

dominação, o que ele chama de “democracia contestatória”. Já em seu trabalho seminal

Republicanism, o autor esclarece o que entende por essa noção: ao contrário de uma

concepção de democracia assentada sobre o consenso, nesse modelo o que mais importa não é

o governo fazer o que o povo determina, mas o fato de o povo sempre ter em seu poder

contestar o que os governantes fazem (PETTIT, 1997, p. IX). Como nota Ricardo Silva

(2011), o modelo de “democracia contestatória” de Pettit assevera que além do momento

eleitoral, é preciso garantir canais institucionais para que o povo possa questionar as políticas

adotadas, “despolitizando” a democracia, isto é, retirando dos políticos profissionais a

prerrogativa de a avaliação sobre elas.

Percebe-se claramente que se o cidadão é convocado a participar, no modelo

contestatório, isto se dá claramente numa chave negativa e reativa, em que nos fóruns

deliberativos e decisórios possa reclamar maior responsividade dos políticos a partir de

decisões já previamente adotadas. Pettit diferencia-se, por conseguinte, da ideia de

democracia participativa, supondo por essa ideia uma situação de forte ativismo dos cidadãos

mobilizados em prol do interesse público, contexto esse, afirma ele, impossível de se realizar

na atualidade. O acento de sua concepção democrática recai no bom funcionamento das

instituições existentes para a realização da contestação. Com efeito, é possível dizer que o

mesmo acento pode ser constatado, como se viu, nas obras de Viroli e Skinner. Entretanto, a

68

Ver os textos de Ricardo Silva a esse respeito (2008; 2011).

Page 109: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

118

aposta institucionalista de Pettit e de seus pares mostra-se frágil à luz da própria tradição

republicana na qual ele se baseia:

A não fundamentação do seu argumento em uma necessidade de maior

participação dos cidadãos na vida pública para, por exemplo, reivindicar

maior simetria entre direitos e deveres, leva-o previsivelmente a buscar uma

lógica de “provisão constitucional”, isto é, uma construção de leis e

instituições baseadas na não-dominação e em direitos publicamente

reconhecidos que se assentariam não no consenso mas no facilitamento de

sua possível contestação constitucional (Guimarães, s/data, p. 11).

Entretanto, como nota Juarez Guimarães, a expectativa de eliminar as variadas formas

de dominação de uma sociedade, fortalecendo os direitos individuais, sem a contrapartida de

ampliar o espaço de participação e deliberação pública é insuficiente. É preciso que o

republicanismo aproxime-se dos campos teóricos mais fortemente democráticos a fim de

expandir o conceito de liberdade e democracia, para não incorrer nas deficiências próprias das

linguagens liberais conservadoras.

Sobre a possibilidade de o republicanismo constituir uma concepção alternativa de

liberdade ao liberalismo, Viroli observa, muito impactado pelos escritos de Pettit, que este

último logrou um assombroso sucesso em postular uma concepção de liberdade como não

interferência; também foi bem sucedido em defender os indivíduos contra a interferência do

Estado e de particulares, mas foi displicente com as diversas reivindicações por mais

liberdade de homens e mulheres que vivem em situação de dominação, vivendo, na expressão

de Pettit, com os “olhos baixos” diante de seus “senhores” (VIROLI, 2002, p. 58; PETTIT,

1997). Concordando com Viroli, podemos dizer, no entanto, que a concepção esposada por

ele, Skinner e Pettit, apesar de serem importantes na demarcação do campo conceitual

republicano em relação ao liberalismo, é ainda insuficiente para obstar todas as formas de

dominação presentes nas democracias atuais. Destarte, nos encaminhamos para análise da

obra de outro neorrepublicano, Jean-Fabien Spitz, que apresenta críticas afins às por nós

formuladas.

Segundo esse autor, concordando nesse aspecto com Viroli (2002), Skinner (1999) e

Pettit (1997), o pensamento político liberal tornou-se hegemônico no mundo contemporâneo,

deixando o conceito de liberdade órfão de um de seus pais. Isso ocorreu na medida em que o

republicanismo, tradição formadora da modernidade e que apresenta outra concepção de

liberdade foi interpretado como uma teoria anacrônica e como estando necessariamente

associada ao totalitarismo, quer dizer, como se implicasse na negação do indivíduo em

benefício de toda a coletividade (SPITZ, 1995, p. 4-5). É contra essa hegemonia liberal,

Page 110: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

119

portanto, que o esforço desse autor se dirige, tentando demonstrar a via alternativa da

liberdade a partir do republicanismo.

Em primeiro lugar, cumpre destacar as diferenças mais evidentes entre as duas

linguagens da política. O liberalismo, baseado na filosofia do direito, pensa o indivíduo como

portador de direitos inalienáveis, pré-políticos, dando destaque para a necessidade de se

garantir a estabilidade política, como condição para o gozo da liberdade privada. O Estado,

nessa acepção, não tem uma função moralizadora, na medida em que os valores são formados

privadamente, tendo ele simplesmente a responsabilidade de salvaguardar o desenvolvimento

livre e autônomo dos indivíduos; esfera pública e esfera privada ficam apartadas uma da

outra.69

O republicanismo, ao contrário, prioriza não a estabilidade, mas a legitimidade do

poder político, entendendo os direitos dos indivíduos como dependentes da própria realização

dos fins comuns à sociedade. Nesse sentido, é através da política e do Estado que o cidadão e

sua moralidade se formam intersubjetivamente com os seus concidadãos, não a despeito deles;

a política, na tradição republicana, assume, portanto, um fim ético, qual seja, o da criação

coletiva da sociabilidade e da liberdade.

Para Spitz, o liberalismo, iniciado em meados do século XVII e em crescente ascensão

a partir daí, se organiza em torno a três princípios básicos: a neutralidade de valores do Estado

(num ambiente de crescente laicização da política, com o qual contribui também a tradição

republicana), os direitos invioláveis dos indivíduos e a definição jurídica de liberdade, quer

dizer, a ideia de que os mecanismos constitucionais são os meios principais de garantia contra

a tirania e a usurpação particular.

Contra a linguagem liberal, o republicanismo denuncia o ceticismo moral liberal, que

supondo uma posição neutra acaba por naturalizar uma ética individualista e utilitária, em que

a persecução dos interesses privados, em detrimento do interesse público, assume ares de

inevitabilidade. Além disso, a tradição republicana se propõe a pensar a ordem política justa e

igualitária como formadora dos direitos e dos deveres individuais, rompendo com a lógica

naturalista ou pré-política dominante no liberalismo. Numa absoluta reciprocidade de direitos

e deveres, a tradição republicana pensa a lei como emanada da própria coletividade que deve

obedecê-la não apenas em função da coerção atrelada a ela, mas também pela legitimidade de

seu fundamento; por fim, contesta a concepção negativa de liberdade como uma perda de

69

Embora Spitz não atente para este aspecto, o liberalismo ético inglês do século XIX, de John Stuart Mill e

T.H. Green, por exemplo, considerava o Estado como um agente ético, mas essa corrente liberal encontrava

séries dificuldades em conciliar um sentido mais privado de liberdade, como desenvolvimento moral

diferenciado e autônomo, com a função “paternalista” do Estado, necessária para garantir as condições desse

mesmo desenvolvimento (BELLAMY, 1994).

Page 111: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

120

liberdade em que o cidadão se distancia da política, se tornando incapaz de determinar seu

próprio destino.

Contra a dogmatização do princípio do politeísmo de valores, expresso

paradigmaticamente por Weber e Berlin, Jean-Fabien Spitz se insurge destacando os impasses

produzidos pelo liberalismo que polariza as esferas privada e pública, a vida do indivíduo da

do cidadão. Mais do que isso, o autor critica as recentes formulações neorrepublicanas que,

por incorporar princípios da linguagem liberal, incorrem nas mesmas dificuldades, ainda que

anseiem em constituir uma linguagem da política alternativa à liberal. Skinner, e podemos

acrescentar, Pettit e Viroli, ao incorporarem a concepção de liberdade negativa se sentem

constrangidos a recusarem qualquer concepção não atomista da sociedade, supondo que ela

sempre derive na supressão das individualidades e nos horrores do jacobinismo e do

totalitarismo.

Todavia, alerta Spitz, não é possível compatibilizar o elogio da participação política e

virtude cívica, mesmo que apenas instrumentalmente como condições necessárias à liberdade,

com uma concepção negativa da liberdade; esses autores neorrepublicanos, como os liberais,

naturalizam a concepção de liberdade como independência individual ou como status de

segurança, e não justificam racionalmente a legitimidade desse ideal, não percebendo que tal

assentimento entra em contradição com o axioma do politeísmo de valores. Dizendo de outro

modo, contraditoriamente, os neorrepublicanos asseveram a necessidade de que o cidadão dê

prioridade ao interesse público, como forma de manutenção de sua própria liberdade, e,

concomitantemente, reafirmam que é necessário respeitar o politeísmo moral.

Pode-se dizer que a principal contribuição de Spitz ao debate sobre republicanismo e

sobre a liberdade é a sua ênfase sobre a dimensão inerentemente moral da política. Isso

significa que, para ele, uma concepção de liberdade dissociada supostamente de qualquer

quadro de valores, aparece como uma aberração teórica. Contra uma concepção jurídica de

liberdade, supostamente neutra, e contra uma leitura do republicanismo como uma tradição

também negativa da liberdade, entendendo esta como um status de segurança garantido pelo

governo das leis (as instituições), o livro La liberté politique apresenta uma nova visão sobre

a tradição republicana, recusando as dicotomias presentes no debate sobre a liberdade – dos

antigos e dos modernos, negativa e positiva – e reconhecendo a riqueza dessa tradição para

pensar a política contemporânea, mas fora dos parâmetros e dos impasses da linguagem

liberal. A partir de agora é possível pensar se o conceito neorrepublicano constitui uma

alternativa à concepção liberal. Fica evidente, como foi sugerido, que se os autores repudiam

Page 112: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

121

a concepção liberal ao afirmar a concepção republicana, aproximam-se dela ao negar sua

identificação com a tradição da democracia.

O movimento de diferenciação entre democracia e república, tema de nosso capítulo,

diz respeito também à tentativa desses autores de se distinguirem de outra corrente teórica,

crítica do liberalismo contemporâneo, o comunitarismo. Tido por alguns como uma variante

do republicanismo (MIGUEL, 2005, p. 21), a tradição comunitária guarda algumas

semelhanças com a primeira tradição, mas não se confunde com ela. Em primeiro lugar,

ambas acentuam a insuficiência do liberalismo como referência teórica para se pensar a

liberdade e a democracia; em segundo lugar, as duas tradições fazem o elogio da vida pública,

da vita activa, como dizia Arendt (2010), revalorizando o pensamento político clássico. Para

todos eles, normativamente falando, a política não se resume à lógica dos interesses privados,

mas deve visar o bem de toda a coletividade. Todavia, as afinidades acabam aqui. Ao

contrário do republicanismo que acentua uma moralidade pública como um constructo

político, artificial, os autores comunitaristas partem do pressuposto de um consenso moral

prévio à política, o que os leva a flertar com a “direita”, na medida em que enfatiza a

importância da manutenção dos valores familiares, das tradições e costumes, contra as forças

do mercado e da intervenção estatal também (idem, ibidem, p. 22).

De acordo com Viroli, a “geografia da teoria política” (2002, p. 7, trad. nossa) não

deveria ver no republicanismo uma variante da teoria democrática ou do liberalismo. Ao

contrário, um correto mapeamento dessas três tradições, advoga esse autor, caracterizaria o

republicanismo como uma tradição mais antiga e de referência para as outras duas, de modo

que cada uma delas, lamentavelmente, enfatizaria apenas um dos aspectos da teoria

republicana: o liberalismo teria incorporado as ideias de que o poder soberano deve ser

limitado pelas leis, de que a meta da política é defender o indivíduo e seus direitos (vida,

liberdade e propriedade) e também da necessidade de separação dos poderes; enquanto a

teoria democrática teria dado atenção apenas ao princípio da soberania popular. Liberalismo e

teoria democrática, assevera Viroli, são historicamente “províncias do republicanismo” (2002,

p. 8, trad. nossa). Para o autor, o liberalismo “pode ser considerado como um empobrecimento

e um republicanismo incoerente” (idem, ibidem, p. 61, trad. nossa) 70

, pois enquanto o

republicanismo quer reduzir ao máximo os constrangimentos derivados de interferências

arbitrárias e de dependência, o liberalismo resume a questão da liberdade a da não coação.

Mais do que avaliar a correção histórica da interpretação de Viroli, cumpre notar que

70 A citação completa é: From a theoretical point of view, liberalism can be considered an impoverished or

incoherent republicanism, but not an alternative to republicanism.

Page 113: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

122

sua argumentação opera no sentido acima mencionado, de aproximar o republicanismo do

liberalismo. O próprio autor sugere que se o republicanismo é incompatível com o

libertarianismo (uma forma conservadora radical do liberalismo contemporâneo), ele é

compatível com o liberalismo, e deveria ser incorporado pelos teóricos dessa tradição, por ser

um ideal de liberdade mais “útil para as democracias contemporâneas do que o liberal”

(VIROLI, op. cit., p. 63-64), incorporando a ideia de deveres cívicos, patriotismo, justiça

social, que não são antagônicas às linguagens liberais. Por mais que queira apresentar a

verdadeira origem do liberalismo, como uma tradição que surge em polêmica e incorporando

criticamente elementos da linguagem republicana, por mais que tente destacar a atualidade do

ideal republicano de liberdade, Viroli acaba, nesse movimento argumentativo, diminuindo a

importância da tradição republicana em se constituir como alternativa à linguagem liberal.

Como observa Spitz, além de questionável do ponto de vista histórico e interpretativo,

tal esforço leva o republicanismo a incorrer nas mesmas deficiências do liberalismo, como a

visão atomística da sociedade – criticada em especial por autores identificados como

“comunitaristas” – a rígida separação entre a esfera pública e privada – alvo frequentemente

revisitado pelas feministas denunciando a miopia da teoria política clássica para a dominação

de gênero (Cf. PATEMAN, 1993), além de não ser capaz de compatibilizar de modo sólido o

princípio do politeísmo moral – princípio liberal aceito por alguns neorrepublicanos – com a

defesa do ideal cívico, do patriotismo, etc.

Viroli argumenta, muito corretamente, que as ideias de civismo e patriotismo,

defendidas como necessárias à liberdade, segundo o republicanismo, não implicam em

sacrifício pessoal ou em heroísmo pelos cidadãos, mas a expansão de certas paixões, como o

amor pela vida livre, o gosto por uma vida em segurança, sem dominação, ou a sede por

glória, isto é, pelo reconhecimento público pelo serviço prestado ao bem comum, e a

limitação de outras paixões. Mesmo assim considerado, o ideal cívico republicano confronta-

se evidentemente com o princípio liberal que considera a moralidade como assunto privado,

legitimando a priori qualquer tipo de vida, o que Viroli parece não perceber.

Uma útil diferenciação entre as diversas formas contemporâneas de apropriação da

tradição republicana é feita por Honahan. A autora afirma que os autores neorrepublicanos,

em geral, dão bastante destaque às ideias de liberdade, virtude cívica, participação política e

reconhecimento, de maneira diversificada. Dessarte, seria possível diferenciar duas formas

gerais de se apropriar desse repertório conceitual: a do republicanismo instrumental, que

entende o exercício ativo da cidadania como meio de garantir da liberdade individual e menos

Page 114: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

123

como uma atividade intrinsicamente importante; e a do republicanismo forte que salienta a

importância da participação no autogoverno e na realização do bem comum (HONAHAN,

2005, p. 9).

Conforme vimos, três dos autores aqui revistados, Viroli, Skinner e Pettit aproximam-

se mais da descrição do “republicanismo instrumental”. Como vimos também, os três se

esforçam para destacar a “superioridade” do conceito republicano de liberdade, em relação ao

liberalismo, mas ao mesmo tempo aproximam esse conceito dessa última tradição, como um

conceito compatível com os ideais do indivíduo e do pluralismo de valores. Todos eles,

diferenciam a tradição republicana de uma democracia participativa ou “populista” e ancoram

sua concepção democrática num conjunto de instituições republicanas, mais do que na

participação dos cidadãos na vida pública. Spitz, por sua vez, pode a princípio ser

compreendido à luz do que a autora chama de “republicanismo forte”, aproximando essa

tradição, nesse caso, não do liberalismo, mas da democracia. Todavia, o grande mérito desse

autor é demonstrar que na tradição republicana é possível compatibilizar o conceito de

liberdade individual e, portanto, assumir como um valor da política republicana o pluralismo

de valores, com o de liberdade como autogoverno.

Se as abordagens de Viroli, Skinner e Pettit constituem momentos importantes de

crítica ao liberalismo, ainda não são suficientes para formular conceitos coerentes de

democracia e de liberdade que sejam, de fato, distintos dos conceitos próprios ao liberalismo e

que consigam incorporar as diversas reivindicações de emancipação, justiça, reconhecimento

e maior igualdade. Entendemos que as deficiências dessa nova visão sobre a liberdade

decorrem: 1) do assentimento acrítico da ideia de politeísmo moral, impedindo

dogmaticamente de pensar a construção democrática de interesses públicos, o que os

republicanos de outrora entendiam por “bem comum”; 2) do distanciamento da tradição

democrática, caracterizada pejorativamente por Pettit de “populista”, e entendida sob a chave

berliana da “liberdade positiva”; 3) da incorporação de uma visão atomista da sociedade em

detrimento de suas relações com outros cidadãos, pressupostas nos ideais republicanos de

civismo e patriotismo. A obra de Spitz, por outro lado, é importante, não porque apresente

uma visão acabada e coerente da liberdade e da democracia, mas porque indica os pontos de

contato e tensão entre essas linguagens da política, republicanismo e liberalismo, e sugere um

caminho mais sólido de formulação do republicanismo contemporâneo.

Page 115: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

124

2.3 – Quatro temas de disputa em torno à liberdade

Tendo examinado a posição desses autores neorrepublicanos sobre o conceito de

liberdade, conceito esse formado em polêmica com as linguagens liberais dominantes na

segunda metade do século XX, passaremos agora à análise das suas implicações sobre outros

quatro temas inter-relacionados. Embora já tenhamos tangenciado esses temas anteriormente

nosso desiderato agora é destacar como as linguagens liberais e republicanas se diferenciam

entre si e como as diferentes correntes do neo-republicanismo também se posicionam de

modo distinto em relação a eles.

2.3.1 – Bem comum

O primeiro dos temas diz respeito à relação entre liberdade e bem comum. Como se

sabe, a noção de bem comum ou bem público faz parte das diversas linguagens do

republicanismo, passando pelas suas diversas matrizes históricas. No Renascimento, por

exemplo, os humanistas cívicos recorrem a essa noção a partir principalmente da obra do

filósofo estoico Cícero a fim de, no seu elogio da vida ativa (contra a valorização medieval da

vida contemplativa), acentuar a premência do interesse público sobre o interesse privado

(BIGNOTTO, 2001, p. 91).

A ideia de bem comum foi duramente atacada por autores liberais como Isaiah Berlin

por suspostamente defender a submissão do indivíduo, de seus interesses e de suas

prioridades, às decisões da coletividade. “Anacrônica, opressiva, moralista ou irreal”

(HONAHAN, 2005, p. 148, trad. nossa)71

são termos com frequência utilizados para

desqualificar a noção de um acordo sobre valores como condição da vida política.

Já tratamos da crítica do anacronismo feita à tradição republicana, agora também

remetida à noção de bem comum. Como vimos, a ideia de que o ideário republicano não se

aplica à contemporaneidade está assentada na interpretação original e canonizada pela

tradição de interpretação liberal da obra de Montesquieu que, como se viu, apenas dizia serem

raras as condições de uma república, mas não impossíveis.

Um ponto a ser ressaltado é que, embora essa noção seja oriunda da filosofia de

Aristóteles, interpretada por alguns como comunitarista (Skinner e Pettit) e por outros como

republicana (Honahan), ela não é exclusiva do republicanismo.

71

“(...) anachronistic, oppressive, moralistic ou unrealistic”.

Page 116: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

125

Os liberais éticos, tais como Adam Smith e John Stuart Mill, consideravam o Estado

como um “educador ético” que deveria interferir na vida social dos indivíduos, no mercado

inclusive, a fim de impedir o individualismo possessivo dos mesmos. Para isso, eles

concebiam o Estado dirigido por uma “elite patriótica”, que em função da educação e da

posse de propriedades, agiriam responsavelmente, deliberando “racional e

desinteressadamente sobre o bem comum dentro da estrutura de um código moral

compartilhado” (BELLAMY, 1994, p. 14, grifos nossos).

Os liberais éticos defendem que a estabilidade social apóia-se em um

conjunto de normas, crenças e valores compartilhados que são intrínsecos às

sociedades industriais modernas. Eles identificavam esta moralidade com

um conjunto de direitos e habilitações básicos, capazes de assegurar

Liberdade máxima e igual a todos (idem, ibidem, p. 444, grifos nossos).

Entretanto, como reconhece Bellamy, o liberalismo ético, ao assumir o preceito da

maximização das liberdades individuais, incorreu em um difícil problema que consiste em

como compatibilizar os diferentes “tipos” de liberdades individuais (econômica, associativa,

religiosa, social, etc.). Por exemplo: como conciliar a minha liberdade religiosa, que pode

implicar em considerações pejorativas sobre alguns grupos sociais (como os ateus), com a

liberdade de outros cidadãos de não serem tradados de modo discriminatório? O que se

percebe é que ao compartimentar a liberdade em diferentes subtipos, formadas privadamente e

não numa esfera pública em que valores básicos são compartilhados e criados

intersubjetivamente, essa importante linguagem do liberalismo, mostrava claramente seus

limites. Como definir, segundo um critério racional e objetivo, qual liberdade deveria ser

priorizada em detrimento de outra?

Se não existe um ideal objetivo de liberdade, as reivindicações para expandir

o conceito de liberdade dependerão, pelo menos em parte, das diferentes

compreensões subjetivas da importância relativa de várias Liberdades, que

provavelmente colidiriam entre si (idem, ibidem, p. 11).

A solução para esse tipo de impasse, na visão dos liberais éticos do século XIX, viria

com o passar do tempo, quer dizer, a partir do pressuposto do progresso material e moral, os

próprios cidadãos chegariam a consensos. No entanto, as mudanças sociais produzidas pela

expansão da Revolução Industrial, como a criação de uma ordem competitiva de mercado,

ávida de lucro (o que, para os liberais éticos, não seria o fim da ação do indivíduo na medida

em que ele fosse se aperfeiçoando moralmente) e a expansão do sufrágio universal, criando

um contingente eleitoral maciço e bastante heterogêneo, fez com que essa linguagem do

liberalismo parecesse incapaz de compreender a nova realidade, tornando-se “anacrônica”

Page 117: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

126

(idem, ibidem, p. 14).

(...) a distribuição desigual da riqueza resultava na frequente satisfação dos

caprichos dos ricos em detrimento doas mais urgentes necessidades dos

pobres. Tais fatores significaram que, na prática, a economia de mercado deu

origem, não a uma sociedade cooperativa entre os indivíduos mutuamente se

desenvolvendo, mas a uma série de grupos com interesses conflitantes (idem,

ibidem, p. 13).

O Estado deixa de ser visto como árbitro moral das disputas entre os indivíduos, que

tenderiam a decrescer com o progresso, e passa a ser visto como instrumento dos interesses

econômicos que deveria regular e, portanto, como meio de opressão à liberdade individual.

O liberalismo econômico que substituiu o liberalismo ético procurou, portanto, adaptar

essa tradição às novas condições do século XIX e XX de emergência do capitalismo, negando

a ideia do “Estado educador”; com isso, ele se mostrou frequentemente “desencantado”,

cético, ou mesmo cínico em relação à concretização do ideal liberal clássico ou de qualquer

ideal político na nova ordem emergente. Os “liberais realistas” não pensam mais na

possibilidade de uma convergência de opiniões e valores. Desiludidos com qualquer “consolo

metafísico”, identificando toda “moralização” com “desejo de poder”, associando os conflitos

de interesses a conflitos irreconciliáveis de valores, os “liberais realistas” afirmam

categoricamente a impossibilidade de qualquer acordo sobre a ideia de bem, de tal modo que

a política e, inclusive, a democracia longe de ser um meio de expressão desse acordo, é vista

com frequência como um instrumento de controle social. Expressão paradigmática desse

liberalismo “realista” é a sociologia da dominação formulada por Max Weber, que, como se

sabe, exerceu enorme influência sobre as teorias da democracia formadas pela moderna

ciência política. Como resume Guimarães:

Este mundo novo da Modernidade já nasce fechando-se ao próprio sentido

da noção do mundo público, como valores universalmente compartilhados,

interditando, portanto, a própria identidade do cidadão republicano e fazendo

do princípio da soberania popular uma contrafação destinada

inevitavelmente à nostalgia de um passado que talvez nunca tenha existido e

de um futuro sem acolhida nas razões que governam a política. Sem a raiz

do mundo público, cindida a própria figura do cidadão, sitiada por uma

escala crescente de constrangimentos sistêmicos e burocráticos, o último

refúgio estóico (sic) da liberdade seria a subjetividade de cada um (s/data, p. 8-9, grifos nossos).

Como foi dito, o princípio weberiano do politeísmo de valores é tomado como axioma

fundamental da tradição liberal, com tal força que acaba por desautorizar qualquer discussão

normativa da política, na medida em que se pressupõe que isso eliminaria a pluralidade, isto é,

as bases para a liberdade liberal.

Page 118: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

127

Desta forma, o liberalismo moderno e contemporâneo ficou profundamente marcado

pela defesa da democracia concebida não como um consenso sobre valores em busca de um

fim coletivamente desejado, mas simplesmente como procedimentos, neutros

axiologicamente, que não guardam qualquer compromisso com um fim específico. As

definições minimalistas ou procedimentais da democracia, já mencionadas no primeiro

capítulo, influentes na moderna Ciência Política, são, desta feita, decorrência direta do

assentimento com esses princípios liberais-conservadores, formulados em polêmica com o

liberalismo ético e com republicanismo.

Mas as críticas à negação da discussão normativa da política revelam a inconsistência

da tese liberal. O filósofo canadense Charles Taylor, por exemplo, asseveram o caráter inócuo

da liberdade liberal na medida em que não há um quadro mínimo de valores a fim de pautar as

escolhas individuais. Como indivíduo poderia ser livre em suas escolhas sem basear-se numa

moralidade (constructo coletivo)? Além disso, essa tradição aponta corretamente a ênfase

excessiva do liberalismo sobre os indivíduos, concebendo-os isoladamente, como mônadas,

quando na realidade eles são inerentemente parte de uma sociedade.

A Modernidade é, conforme a descrição weberiana, caracterizada pela racionalização e

desencantamento do mundo, no qual nenhum horizonte ético comum é vislumbrado. Contudo,

a racionalidade aqui é definida fora de seu contexto histórico contingente, particular,

arrogando-se paradoxalmente, princípio impeditivo de qualquer discussão sobre valores e, ao

mesmo tempo, valor inquestionável de uma civilização. A inconsistência lógica é patente: “o

liberalismo só pode professar o agnosticismo ou uma neutralidade axiológica em relação a

certas verdades, mas não quando avalia as suas próprias verdades ou princípios”

(Guimarães, s/data, p. 22, grifos nossos).

Para além da antinomia liberal, é possível pensar em bem comum sem, todavia, supor

uma imposição opressiva e homogênea aos indivíduos. Como avalia Honahan, o bem comum

pode ser interpretado segundo três sentidos básicos. Em primeiro lugar, como o bem de um

grupo social específico, pensado em termos orgânicos, unitários ou corporativos. 72

Em

segundo lugar, como o agregado de bens individuais, sem, todavia, o estabelecimento de um

bem válido igualmente para todos. Mas a autora observa que não precisamos, entretanto, nos

limitar a pensar em bem comum ou a partir de uma noção pré-moderna, orgânica, e outra em

72

É preciso dizer que Honahan interpreta as filosofias de Aristóteles e Rousseau, expressões distintas do

republicanismo, como exemplo típico do primeiro significado de bem comum. Nesse sentido, a intérprete

segue as leituras “liberais” sobre esses autores. Uma visão mais rica de Rousseau, por exemplo, pode ser

encontrada em Matthew Simpson (2006 e 2007), a ser discutida adiante.

Page 119: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

128

que só existem os bens individuais dispersamente organizados. Há um terceiro sentido que

considera o bem comum como um “conjunto de condições para os bens individuais”

(HONAHAN, op. cit., p. 151). Esse terceiro sentido é aceito inclusive por autores não

propriamente republicanos, como John Locke e John Rawls, bem como pelos republicanos

“instrumentais”, tais como Skinner.

Cumpre dizer que o republicanismo, mesmo em sua versão “instrumental” (mais afim

ao liberalismo), pressupõe na comunidade política um compartilhamento de valores cívicos

que, democraticamente compactuados, orientam a vida pública. Nesse sentido, ele escapa da

objeção feita aos liberais quanto à questão normativa. Todavia, o republicanismo precisa ainda

formular coerentemente a ideia de bem comum, principalmente, refutando a associação dessa

ideia com a de opressão. Não é o caso de tentar demonstrar neste espaço a plausibilidade

dessa solução no quadro do republicanismo. No entanto, é o caso sim de, pelo menos, indicar

uma solução possível para a relação entre liberdade e bem comum, a ser encontrada

precisamente em um dos autores mais atacados, não apenas pela tradição liberal, mas também

por parte da tradição republicana, a saber, Jean-Jacques Rousseau.

A filosofia política desse filósofo foi duramente criticada, principalmente após a

Revolução Francesa, como legitimadora de um tipo de tirania, a da maioria. A ideia

subjacente é de que “Robespierre teria se servido das obras do pensador genebrino para levar

a cabo sua política durante o Terror” (BIGNOTTO, 2010, p. 91). Autores como Benjamin

Constant, Isaiah Berlin, Karl Popper (1974) e Giovanni Sartori (1994) contribuíram para

consolidar a ideia de um “Rousseau totalitário”, cometendo flagrantemente um equívoco de

interpretação historiográfica (a mitologia da prolepse, definida por Skinner). Os modelos de

república elogiados por Rousseau – Esparta e Roma principalmente – não podem ser

adequadamente qualificados como totalitários. Mesmo a ideia de tirania, às vezes associadas à

noção de “vontade geral”, nunca foi, de fato, atribuída pela historiografia à Esparta ou a Roma

republicana.

Para se contornar essa abordagem que nos informa pouco sobre o pensamento de

Rousseau, é preciso voltar, mesmo que brevemente, para a sua obra. Bignotto alerta, de

partida, para as tensões internas à obra desse pensador. Expressão disso são os elementos

“conservador” e o “democrático radical” em seu pensamento. Seu ideal de relações sociais

baseadas na sinceridade e na amizade, sua crítica ao luxo e à vaidade, sua crítica ao mundo do

comércio como decadência civilizacional, seu elogio à virtude dos antigos, etc. são, de acordo

com esse intérprete, elementos que podem ser devidamente considerados como conservadores

Page 120: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

129

e mesmo anacrônicos. Todavia, é também na obra de Rousseau que se encontra formulado o

princípio da soberania popular, em que a igualdade de todos é afirmada como condição para a

liberdade, exceto das mulheres, uma vez que ele ainda opera numa chave patriarcal. Por esse

motivo, Mary Wollstonecraft, republicana inglesa do século XIX, ao mesmo tempo em que

ataca os críticos conservadores da Revolução Francesa, como Edmund Burke, critica também

Rousseau, na medida em que apenas os direitos dos homens são afirmados, mas não o das

mulheres. Contra o ideal rousseauniano de “anjo doméstico”, Wollstonecraft reivindica a

mesma igualdade entre os homens para as mulheres, defendendo a extensão do direito a se

educarem formalmente nas mesmas instituições e os direitos políticos (MOTTA, 2009, p. 80).

Conforme demonstra Carole Pateman de modo contundente, as linguagens políticas

clássicas da modernidade, sobretudo liberalismo e republicanismo, silenciam-se sobre as

relações assimétricas entre homens e mulheres, na medida em que é separada a esfera privada

da vida da pública, condenando as mulheres à condição de ausência liberdade. O “contrato

sexual” (PATEMAN, 1993), anterior ao contrato social e seu fundamento, precisa, portanto,

ser rompido a fim de garantir a liberdade para ambos os gêneros, pois como dizia a

republicana Wollstonecraft, a submissão das mulheres é prejudicial não apenas a esse grupo,

mas a própria moralidade pública.

Mas se as mulheres devem ser excluídas, sem direito à palavra, da

participação dos direitos naturais da humanidade, prove primeiro, para

rechaçar a acusação de injustiça e inconsistência, que elas são desprovidas

da razão; de outro modo, esta falha na sua nova constituição sempre

mostrará que o homem deve, de alguma forma, agir como um tirano, e a

tirania quando levanta sua fachada descarada em qualquer parte da sociedade

sempre solapará a moralidade (WOLLSTONECRAFT apud MOTTA, 2009,

p. 126).

A pensadora inglesa, no caso, retoma um argumento comum à tradição republicana, a

saber, que a condição de servidão gera uma tendência servil, uma atitude passiva incompatível

com a liberdade (SKINNER, 2010, p. 195). Contra a tradição republicana patriarcal, a obra de

Wollstonecraft serve para desnaturalizar completamente a não liberdade das mulheres,

acentuando a dimensão subjetiva da liberdade como elemento fundamental para se pensar

essa tradição na contemporaneidade.

Mas mesmo na matriz republicana francesa, posterior a Rousseau, pode-se encontrar

argumentos anti-patriarcais. Em sua defesa de uma educação republicana, baseada nos

princípios da “igualdade, universalidade, gratuidade, laicidade e humanidade” (BIGNOTTO,

2010, p. 282), o marquês de Condorcet, por exemplo, contestava a exclusão política e

educacional das mulheres, afirmando que ela prejudicava não apenas a socialização das

Page 121: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

130

crianças em casa, como também ofendia o interesse público e a razão, na medida em que não

podia ser defendida racionalmente. Assim, contra a naturalização de um papel da “mulher”

presente na obra de Rousseau, Condorcet defendeu publicamente, como Wollstonecraft, que o

ensino deveria ser o mesmo para mulheres e homens.

Também não é adequada a interpretação corrente de que Rousseau é puramente

utópico quando faz o elogio de uma república democrática. Como argumenta Bignotto, ele

estava plenamente cônscio das dificuldades de adoção de um regime de participação ativa dos

cidadãos no mundo moderno, marcado por Estados em grandes territórios e de vasta e

diversificada população, de tal modo que se tornava difícil o conhecimento mútuo entre eles

para estimular a preocupação com o bem comum. Nesse sentido, o filósofo, notório pela sua

admiração das repúblicas da antiguidade, afirma “os povos antigos não são mais um modelo

para os modernos” (ROUSSEAU apud BIGNOTTO, 2010, p. 101). Consciente dos desafios

impostos às repúblicas pelos tempos modernos, o filósofo não abdica dessa tradição, em

particular das referências aos historiadores e pensadores romanos e renascentistas, colocando

a virtude, não apenas cívica (como em Montesquieu), mas também moral, no centro da

política. Ora, do elogio rousseauniano da vida ativa não se deduz, todavia, a opressão da

comunidade sobre os indivíduos. Bignotto esclarece esse ponto asseverando a tensão da qual

estava consciente Rousseau entre a realização individual e a realização do ideal do cidadão

republicano:

Nesse ponto, ao contrário dos que acusam Rousseau de querer suprimir o

indivíduo em nome da construção de um corpo político uniforme povoado de

cidadãos virtuosos, devemos lembrar que em momento nenhum ele

afirma que os desejos podem ser subsumidos pelo interesse público sem

que isso provoque uma alteração na relação entre os membros do corpo

político. O caráter artificial do contrato e a dificuldade de realizá-lo

derivam do fato de que o indivíduo não pode ser fundido no cidadão. No

pensamento do genebrino convivem, portanto, um individualismo extremo e

uma vontade de fundar um corpo político uniforme (...). A plena realização

do cidadão destrói o indivíduo, da mesma maneira que o indivíduo entregue

à busca da satisfação pessoal destrói o exercício da cidadania (BIGNOTTO,

2010, p. 134, grifos nossos).

A melhor resposta para este dilema de Rousseau e do republicanismo – conciliar a

noção de bem comum com a de liberdade – foi talvez inicialmente decifrado por Matthew

Simpson que apresenta os diferentes significados de liberdade na obra desse filósofo.

Segundo esse intérprete, é possível identificar quatro tipos diferentes de liberdade na obra de

Rousseau: a natural, a civil, a democrática e a moral, sendo que as três últimas estão em

tensão umas com as outras. A primeira subsiste no estado de natureza e implica poder fazer

Page 122: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

131

tudo o que se quer. É precisamente ela que se perde na vida política, o que a torna, portanto,

menos relevante. A civil significa a oportunidade dos cidadãos de fazerem suas escolhas sem

coerção do Estado ou de particulares. Muitos intérpretes salientam apenas essa dimensão da

liberdade, vendo em Rousseau um pensador liberal. A liberdade democrática consiste no

autogoverno; é também o sentido de liberdade mais comumente identificado na obra de

Rousseau, às vezes, concluindo que, como a escolha individual deve ser conciliada com a

vontade geral, o autor seria um “proto-totalitário” (BERLIN, 1981, p.184). A liberdade moral

ou autonomia, quarto significado desse conceito, refere-se à obediência à lei determinada pelo

próprio indivíduo, sendo ele capaz de agir de acordo com o seu próprio juízo. Trata-se de uma

educação auto-imposta pelo homem no sentido de controlar seus apetites e paixões. Esse

último significado de liberdade foi particularmente incorporado por Kant em sua filosofia na

figura do imperativo categórico.

Em geral, conclui Simpson, os intérpretes do filósofo acabaram se atendo a apenas um

dos quatro sentidos de liberdade, ou simplesmente se atendo as tensões entre esses

significados como índice da incongruência da teoria política rousseauniana. Ele destaca que

Rousseau não pensa ingenuamente o par conceitual liberdade democrática e liberdade civil,

tendo plena clareza quanto à dificuldade em se compatibilizar os dois significados. Nesse

sentido, não procede a ideia de que a afirmação do bem comum implica na supressão da

liberdade; certamente da liberdade natural, mas não da liberdade civil. Além disso, cumpre

lembrar que, para Rousseau, a vontade geral, tema do Contrato social, e expressão

democrática do republicanismo desse autor, tem forçosamente o caráter da universalidade,

não determinando ou interferindo sobre aquilo que não é do interesse público. Sobre a

vontade geral soberana, ele afirma: “Convenção legítima porque tem como base o contrato

social, equitativa porque comum a todos, útil porque não pode ter outro objeto senão o bem

geral, e sólida porque tem por garantia a força pública e o poder supremo” (ROUSSEAU,

2006, p. 41-42).

Longe de assumir o pensamento rousseauniano como solução acabada para os

impasses da teoria política, retomamos a obra desse pensador para, por um lado, desarticular

as leituras unilaterais da tradição liberal em relação à noção de bem comum, caracterizando-a

como dogmática, não-realista e opressiva, e, por outro lado, para indicar que é possível,

através do campo conceitual do republicanismo, conceber a política como um acordo sobre

valores universais, democraticamente estabelecidos e que, por conseguinte, podem, a

princípio, ser compatíveis com a liberdade individual (civil).

Page 123: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

132

Diferentemente do comunitarismo, segundo o qual a política é construída a partir de

um consenso moral entre os indivíduos, para o republicanismo prevalece a ideia de que esse

consenso moral é construído através da política, livre e democraticamente organizada e que,

portanto, é compatível com a pluralidade dos modos de vida dos seres humanos. Nessa chave

de compreensão, o Estado é pensado como uma instituição ético-política e não como

instituição neutra que simplesmente arbitra os conflitos de interesses previamente constituídos

na esfera privada entre os indivíduos.

2.3.2 – Participação política

O segundo tema diz respeito ao papel da participação política, isto é, a relação entre

sociedade e Estado a fim de assegurar a liberdade. Começando pelo liberalismo é certo que o

tema foi tratado diversamente pelas suas vertentes e autores, mas pode-se dizer que, como

para essa tradição o conceito de liberdade é, em geral, caracterizado como ausência de

obstrução à vontade do cidadão, isto é, dissociado da condição pública de formação da

liberdade, (separada, por conseguinte, da ideia de autogoverno), a participação política não é

central, necessária, nem tampouco constitui necessariamente a liberdade individual. Com

frequência, os liberais entendem que a maior garantia para a liberdade está num conjunto de

instituições (separação dos poderes, garantias constitucionais, controle externo das

instituições, sistema de contrapesos, etc.) e não propriamente na participação ativa dos

cidadãos nos assuntos da política.

É certo que os liberais éticos, como John Stuart Mill, entendem que certo grau de

participação política, instrumento de desenvolvimento moral dos indivíduos, seja também

necessária à liberdade e ao sistema político – inclusive tendo ele incorporado ao seu

pensamento a reivindicação feminista da ampliação dos direitos políticos às mulheres e dos

trabalhadores – ainda que se mostrasse reticente a respeito do impacto desestabilizador dessa

participação. Entretanto, o reconhecimento quanto à necessidade de participação, dificilmente

pode ser conciliado com sua concepção negativa de liberdade, concebida em permanente

oposição à liberdade dos outros indivíduos.

Mas é certamente nas correntes liberais conservadoras em expansão no século XX que

podemos perceber com maior evidência a separação liberal radical entre participação política

e liberdade. Fortemente influenciados por Weber – defensor do parlamentarismo e forte

crítico da “democracia plebiscitária” – e dos teóricos das elites, Vilfredo Pareto, Gaetano

Page 124: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

133

Mosca, Robert Michels, esses autores defendem a democracia representativa dissociando-a do

princípio de soberania e de participação popular.

Como defendem os elitistas democráticos, a democracia consiste exclusivamente em

um método de tomada de decisões, não um fim em si mesmo, não tendo qualquer

comprometimento com determinados resultados (diminuição das desigualdades sociais ou

promoção do bem-estar dos indivíduos, por exemplo). A participação direta dos cidadãos nos

regimes democráticos contemporâneos é vista não apenas como impraticável, haja vista a

enorme extensão geográfica média dos Estados e sua numerosa população, mas também

indesejável. A irracionalidade das massas, tema frequente dessa escola, levadas à esfera

pública e sua incapacidade de compreender questões complexas tecnicamente, interditam a

presença do cidadão comum nas esferas deliberativas. Em resumo, a participação legítima e

aceitável é apenas a eleitoral. Mesmo essa é descrita destacando-se suas distorções (como a

manipulação do povo pelos demagogos), e não influi decisivamente sobre as decisões dos

governantes. Num tom que se diz “realista”, mas que, de fato, tangencia o cinismo, esses

autores afirmam que a única democracia possível não é o “governo do povo”, mas o “governo

dos políticos” (GUERRA, 1998, p. 165).

Portanto, a democracia deixa de ser um ideal moral ou um tipo de

organização política que contribua para desenvolver plenamente as

capacidades dos indivíduos. Não é tampouco um sistema que persiga a

participação política dos cidadãos, nem pretende contribuir na formação de

um espaço de opinião e vontade coletivas (idem, ibidem, p. 165, trad.

nossa).73

Entretanto, como a literatura especializada tem mostrado com recorrência

(PATEMAN, 1992; AVIRITZER, 1996), não são apenas as linguagens liberais conservadoras

que são avessas ou reticentes à participação ou a dissociam da realização da liberdade. Isso

também se verifica em correntes mais recentes que, inclusive, criticam o elitismo

democrático, como o pluralismo e as teorias econômicas da democracia.

Na concepção pluralista de poliarquia de Robert Dahl, por exemplo, o eixo da

participação política é constitutivo da democracia, mas isso não significa que a democracia

necessite de uma participação ativa e ampliada dos seus cidadãos; democracia, diz Dahl, não

é, a rigor, o governo do povo, mas o governo de minorias em competição pelo poder, que,

73

Por tanto, la democracia deja de ser um ideal moral o un tipo de organización política que contribuya a

desarollar plenamente las capacidades de los indivíduos. Nos es tampoco un sistema que persiga la

participación política de los ciudadanos, ni pretende contribuir a la formación de un espacio de opinión y

voluntad coletivas.

Page 125: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

134

uma vez eleitas, tem de ser responsivas em relação aos seus eleitores (DAHL, 1989).

As teorias econômicas da democracia, por seu turno, apesar também de criticarem a

imputação elitista de irracionalidade ao cidadão-eleitor, ainda entendem que o bom

funcionamento de uma democracia prescinde da participação ativa dos cidadãos, que teriam

que arcar com um custo superior aos benefícios esperados por isso (DOWNS, 1999).

Poderíamos também recordar as teses sobre a “ingovernabilidade” da democracia, produzida

pelo incremento da participação política nas últimas décadas, gerando uma sobrecarga de

governo, um “excesso de democracia” (HUNTINGTON apud GUERRA, 1998, p. 212).

Não é o caso, obviamente, de retomar aqui as diversas vertentes do liberalismo

contemporâneo e o lugar da participação política no sistema liberal. Mas é preciso reter que as

vertentes liberais, em geral, apontam para uma “despolitização do cidadão”, reivindicando

uma moderação nos modos da participação política dos indivíduos nas democracias hodiernas

e isolando a sua liberdade do mundo público. Como observa Bignotto: “(...) em boa parte da

tradição liberal desde o século XVIII, faz coincidir a constatação da contínua retirada dos

indivíduos da cena pública com a progressiva realização da natureza humana” (2006, p. 463).

Além de serem questionáveis vários pontos relativos à apatia política (naturalizada por

essas correntes), à irracionalidade e aos prejuízos produzidos pelo excesso de democracia,

mais importante é ressaltar a notória contradição resultante do liberalismo, sobretudo, de suas

linhagens conservadoras, qual seja: a de alegar uma suposta neutralidade de valores no trato

da política (definindo democracia apenas em função de seus meios e não em função de fins

morais aos quais ela estaria comprometida) e, ao mesmo tempo, “construir um modelo

normativo de democracia que já não aceita a democracia realmente existente” (GUERRA,

1998, p. 219).

O tema da participação e sua relação com a liberdade na tradição republicana, por

outro lado, não é menos complexo. Todavia, apesar de variantes matizes que ele assume em

matrizes, linguagens e autores distintos dessa tradição, pode-se dizer que a participação

política seja pensada, sobretudo, positivamente.

Como vimos, Honahan distingue duas grandes linhagens republicanas, diferenciando-

as particularmente em função de como é pensada a participação política. No republicanismo

instrumental, sem assentir com a ideia de que a natureza humana se realiza a partir da

participação, isto é, sem conceber a liberdade positivamente, como autogoverno (SKINNER,

2005, p. 24), os autores afirmam que a melhor maneira de garantir a liberdade individual é

viver sob um regime republicano, isto é, aquele que não apenas garante o direito, mas

Page 126: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

135

estimula a vida ativa de seus membros. Os autores reafirmam um tema igualmente importante

da tradição republicana, a da virtude cívica. Mesmo nesta vertente instrumental, “fraca”, a

liberdade depende da participação virtuosa de seus cidadãos que devem ser capazes de se

ocuparem do interesse comum, e não se isolarem em suas preocupações privadas.

Ora, se isto é verdade para o republicanismo instrumental, é ainda mais evidente na

linhagem do republicanismo forte. Aqui, não apenas a participação dos cidadãos é

compreendida como funcional à liberdade, mas como parte constitutiva dela. É somente por

meio da vida pública que o indivíduo pode se realizar. A obra de Hannah Arendt representa

uma expressão contemporânea típica dessa vertente. Sua admiração pela revolução norte-

americana, por exemplo, está diretamente associada ao ethos participativo dos cidadãos

estadunidenses que continuamente não apenas aquiescem às leis, mas zelam pelo bem

comum, sobretudo, através de suas associações.

A ideia de virtude cívica está longe de corresponder, entretanto, a um ideal heroico,

santo ou de sacrifício do cidadão pela sua comunidade política, tal como alguns críticos

liberais sugerem. O cidadão virtuoso da teoria republicana, convocado a participar da política,

não se identifica nem com a figura do “herói revolucionário”, que destituído de interesses

particulares está disposto a se sacrificar pelo bem da coletividade, nem tampouco com o

cidadão liberal que, isolado do espaço público, goza de sua felicidade privadamente. Tanto a

perda da identidade individual na identidade coletiva, primeiro caso, quanto a destruição do

interesse comum, a apatia e o isolamento auto-interessado dos indivíduos, no segundo caso,

devem ser evitados, segundo o ideal cívico da tradição republicana (BIGNOTTO, 2006).

Assim, não é preciso retomar os exemplos dos heróis da Antiguidade para se pensar,

segundo o republicanismo, a participação política na Modernidade. Por outro lado, não é

desejável compreender esse tema a partir da disjuntiva entre liberdade dos antigos (ou

positiva) e liberdade dos modernos (ou negativa), como propõem Constant e Berlin. Ao

aceitar o reducionismo liberal em que todas as formas de participação cidadã na vida pública

são incluídas na rubrica “liberdade dos antigos” ou “positiva”, estamos igualmente

restringindo o debate mais amplo e, com efeito, complexo e inconcluso de se pensar os

dilemas da participação política nas democracias contemporâneas.

Em resumo, pode-se afirmar que para os liberais de hoje, em geral, a principal garantia

à liberdade encontra-se nos freios institucionais aos poderes, sendo eles, em geral, céticos

quanto à possibilidade e à importância de uma participação ampla e cívica na

contemporaneidade. Para os republicanos, ainda que importante, o sistema institucional é

Page 127: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

136

insuficiente e deve ser complementado pela dedicação ativa ao interesse público de todos os

cidadãos. Nesse sentido, como a liberdade republicana é pensada em relação à esfera pública,

essa tradição se aproxima de outros campos da Teoria Democrática contemporânea,

igualmente críticas do paradigma liberal de democracia:

(...) a cultura do republicanismo, de forma mais rigorosa em sua matriz

democrática, estabelece um vínculo indissociável entre autogoverno e

liberdade individual, firmando a partir daí a gênese pública ou política da

liberdade. Isto é, o inimigo da liberdade, além da condição heterônoma

social, ou de gênero e de raça, é o mando ou a lei arbitrária, originada e

exercida sem o consentimento livre e público dos cidadãos e cidadãs. Não é

adversária da liberdade a lei que resulta da participação ativa dos cidadãos

ou cidadãs. Daí porque a cultura do republicanismo seja afim as teorias

participativas e deliberativas e adversária das teorias elitistas da democracia

(GUIMARÃES, s/data, p. 5).

2.3.3 – Igualdade

O terceiro tema que divide liberais e republicanos, igualmente associado ao conceito

de liberdade é o da igualdade. Como considera Guerra (1998), o conceito de igualdade pode

assumir uma ambiguidade semântica, dando origem a confusões. Por um lado, sugere a

semelhança entre coisas e pessoas; por outro, pode ser compreendido como princípio de

justiça, isto é, como critério a organizar as relações humanas. “Igualdade como identidade” e

“igualdade como justiça” são dois sentidos bastante diferentes do mesmo termo. Além disso,

pode-se interrogar sobre que tipo de igualdade se está referindo: igualdade perante a lei,

social, econômica, etc.

Não é correto, certamente, caracterizar o republicanismo como uma teoria política

igualitária. Já dissemos anteriormente, que a liberdade constitui o núcleo da teoria republicana

e é em relação a ele que o princípio da igualdade se submete, pensado como uma de suas

condições. Também é certo que os autores republicanos não concordam totalmente a que tipo

de igualdade é necessário para a manutenção da liberdade. Como já foi dito, alguns intérpretes

inclusive consideram, talvez excessivamente, o republicanismo como uma forma de

manutenção política das desigualdades, dos privilégios das elites (MCCORMICK, 2011).

Cumpre, nesse caso, revistar alguns autores republicanos do passado a fim de verificar a

relação entre liberdade e igualdade.

Seguindo nesse passo a interpretação de Honahan, pode-se dizer que a igualdade é

diferentemente tematizada pelas diversas correntes do republicanismo. A título de exemplo, na

linhagem do republicanismo antigo – grego e romano – a igualdade não é considerada como

Page 128: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

137

meta absoluta da política; todavia, para garantir o exercício da virtude cívica é essencial que

as desigualdades entre os cidadãos de um governo livre sejam limitadas. Para ser virtuoso,

não basta uma educação adequada, ou instituições que promovam o comportamento cívico;

são necessárias também condições materiais mínimas. Precisamente por isso, Aristóteles

caracteriza a politeia como o regime marcado pelas classes médias, no qual, portanto, a maior

parte da população é dotada de recursos para participar da vida política.74

É preciso lembrar,

todavia, que a igualdade de condições requisitada por Aristóteles diz respeito, entretanto, ao

corpo de cidadãos, claramente desiguais em relação aos escravos e às mulheres a quem é

negado a participação no corpo político. Cícero igualmente é um crítico da riqueza excessiva,

vendo na desigualdade um fator de instabilidade em Roma. O Estado republicano tem por

dever minorar a pobreza, garantir o atendimento das necessidades básicas de todo cidadão,

ainda que seja responsável também pela proteção à propriedade, comum e privada.

O republicanismo moderno na figura de Maquiavel, por exemplo, também

compreende que uma relativa igualdade econômica e social é condição para a república.

Embora não seja hostil ao comércio e à riqueza, o luxo e a ostentação, diz o secretário

florentino, produz inveja e cobiça, sendo necessário que o Estado promova o ideal da

austeridade. Em outras palavras, o desejo dos “grandes” de domínio deve ser compatibilizado

com o desejo de não dominação do povo. Nessa vertente do republicanismo, Honahan destaca

também a obra do pensador inglês James Harrington. Para ele, quem não tem condições

materiais para manter-se livre, torna-se inevitavelmente servo de outrem. Por essa razão,

Harrington entende que todo cidadão de uma república deve ser um proprietário de terras,

ainda que em escala modesta, propondo em pleno século XVII, a adoção de uma lei agrária, a

fim de garantir terras aos cidadãos e, conseguintemente, sua independência individual.

Mas certamente é Rousseau o autor republicano mais fortemente associado à defesa da

igualdade. Sua defesa de um modo de vida austero condena as desigualdades sociais como

não naturais e ilegítimas e como uma ameaça corruptora à república e ao bem comum. Assim,

os seres humanos nascem desiguais em talento, força, etc., diz Rousseau; a partir do contrato,

no entanto, a igualdade é estabelecida entre todos os cidadãos. Ele afirma: “o direito de cada

particular sobre seus próprios bens está sempre subordinado ao direito da comunidade sobre

todos” (ROUSSEAU, 2006, p. 29). Longe de defender a extinção da propriedade privada, o

filósofo genebrino entende que como a propriedade só existe por meio do contrato social que

74

Como se sabe, a função do ostracismo, prática de expulsar um cidadão ateniense dos limites da polis, tinha a

função precisamente em recobrar o equilíbrio ameaçado pela presença de um indivíduo “desigual” em

riqueza, glória ou sabedoria.

Page 129: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

138

refunda democraticamente o Estado, esse, por seu turno, tem por função garantir que o poder

econômico não sirva de base de domínio de um indivíduo sobre outro.

Enfim, ainda que assuma feições distintas em cada uma das linhagens ou das matrizes

do republicanismo, a ideia de igualdade está intimamente relacionada ao fim ético do Estado

que é garantir a liberdade política de seus cidadãos. Destarte, para usar a terminologia de

Roberto Guerra, não apenas a igualdade perante a lei é afirmada como importante para a

liberdade – o status de não-dependência assegurado aos indivíduos pelo “governo das leis”

(SKINNER, 1999) – mas também, em algum grau, a igualdade de oportunidades, a igualdade

social e a igualdade econômica, visto ser preciso garantir as condições objetivas e materiais

para impedir situações propícias à dominação e à dependência.

Nesse passo, é preciso dizer também que as linguagens do liberalismo se distinguem

entre si quanto ao tratamento da igualdade. O liberalismo ético ou social compreende a

necessidade de que a ela não se resuma à igualdade formal, legitimando, em algum grau, a

interferência do Estado sobre as propriedades, com vistas a garantir a liberdade individual e a

harmonia social. Assim, esses autores incorporam as ideias de justiça social, justiça

distributiva e a crítica ao direito absoluto à propriedade. Keynes, por exemplo, propunha uma

clara aproximação entre capitalismo e trabalhismo, entendendo como necessária a intervenção

estatal sobre o mercado a fim de prover uma distribuição mais igualitária das riquezas.

Diferentemente, os liberais conservadores posteriores atacam precisamente a ideia de

que igualdade possa significar algo muito além de tratamento igual perante a lei. Friedrich

Hayek, por exemplo, expoente do neoliberalismo no século XX, condena a associação entre

liberdade e distribuição igualitária dos bens. Afirmando que os homens não são naturalmente

iguais entre si, Hayek chega a uma conclusão oposta à do republicanismo e à do liberalismo

ético: nenhum governo tem o direito legítimo de discriminar coativamente os indivíduos para

alcançar uma maior igualdade material entre eles. Numa sociedade de mercado, a alocação de

recursos se dá espontaneamente segundo uma dinâmica cega, uma “mão invisível”, e qualquer

tentativa de responsabilizar os indivíduos pela condição desigual de seus semelhantes é

arbitrária e opressiva; “não há possibilidade de justificar a redistribuição das riquezas porque

não existe possibilidade de atribuir a ninguém a responsabilidade pelas desigualdades geradas

pela ordem espontânea do mercado” (Guerra, 1998, p. 143, trad. nossa).75

Para os neoliberais, se o Estado se arroga o direito de redistribuir riquezas por meio de

uma política tributária regressiva, por exemplo, ele está rigorosamente substituindo o mercado

75 No hay posibilidad de justificar las redistribuiciones de la riqueza porque no existe posibilidad de atribuir a

nadie la responsabilidade por las desigualdades a que da lugar el orden espontaneo de mercado.

Page 130: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

139

por um sistema de economia dirigida, caracterizada por eles como paternalista e onipotente, o

que implica em grave redução da liberdade individual. Novamente cumpre lembrar como as

correntes conservadoras liberais que retomaram o debate sobre liberdade afrontavam tanto a

tradição da socialdemocracia, quanto do socialismo.

Em geral, para justificar sua defesa da igualdade exclusivamente formal, os liberais

conservadores recorrem às diferenças biológicas e físicas entre os indivíduos, naturalizando

aquilo que é decorrência do mundo político. Os libertarianistas, por exemplo, radicalizam a

postura dos neoliberais asseverando que a ideia de justiça não está relacionada à de igualdade.

O filósofo húngaro Anthony de Jasay, por exemplo, argumenta que todo Estado é

inerentemente opressor e que, além da força, costuma “comprar” o consentimento dos

indivíduos oferecendo certos benefícios, retirados de outros indivíduos. Assim,

diferentemente de Hayek para quem há um Estado capitalista legítimo, para de Jasay o Estado

é sempre um “adversário” a ser combatido, criado pelos processos de democratização e

redistribuição de riquezas. Percebe-se que segundo as vertentes liberais conservadoras, a

igualdade é pensada sempre em oposição à liberdade do indivíduo, resultando na defesa de

um Estado mínimo:

Evitar o perigo da onipotência da política pressupõe para eles reduzir as

políticas redistributivas e esquecer o ideal de justiça social, em suma,

desmantelar o Welfare State, dado que (...) é impossível alcançar a justiça

através da forma do Estado. (...) A partir desse momento a regulação política

do processo social e econômico, a luta contra a pobreza e a marginalização, a

erradicação das discriminações raciais, em síntese, a manutenção de uma

legislação educativa, sanitária ou de seguridade e proteção social não

constituem fins que devam ser perseguidos coletiva e política ou

estatalmente (GUERRA, 1998, p. 156).76

3.3.4 – Soberania

O quarto e último campo de disputa entre as linguagens do republicanismo e do

liberalismo constitui-se em torno à ideia de soberania. Como documenta Skinner, o

republicanismo moderno está claramente preocupado com a soberania do corpo político. A

liberdade individual é, destarte, ameaçada não apenas pela dependência interna entre os

76 Evitar los peligros de la omnipotencia de la política presupone para ellos reducir las políticas redistributivas,

olvidar el ideal de justicia social, em suma, desmantelar el Welfare State dado que (...) es imposible alcanzar

la justicia bajo dicha forma de Estado. (...) A partir de esse momento la regulación política del processo social

y económico, la lucha contra la pobreza y la marginalización, la erradicación de las discriminaciones raciales,

em sínteses, el mantenimiento de uma legislación educativa, sanitária o de seguridade y protección social no

constituyen fines que deban ser perseguidos colectiva y política o estatalmente.

Page 131: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

140

concidadãos, como também pela dependência do Estado em relação a outros Estados ou

forças políticas e econômicas não controladas pelo primeiro.

Nesse sentido, o republicanismo, na emergência da era moderna, teve que se mostrar

compatível o desiderato de constituição de Estados fortes, guarnecidos contra a ameaça

externa de invasão ou de dependência. Além da situação em que as bases da liberdade são

minadas pelo governo manifestamente tirânico, despótico, há outra maneira em que isso

também ocorre: “quando um corpo político se encontra sujeito à vontade de um outro Estado

em consequência de colonização ou conquista (SKINNER, 1999, p. 49).

Os humanistas cívicos, por exemplo, associavam fortemente a liberdade dos cidadãos

à independência política de suas cidades. Leonardo Bruni, por exemplo, assevera que não

estando submetida a nenhuma forma de tutela externa, a cidade torna-se responsável pela sua

história.

O que assistimos é a consolidação da reivindicação de soberania, que se

vinha gestando desde a época das comunas medievais. O que Bruni avança é

uma ideia de autonomia que não somente confere a liberdade de criar leis e

de derivar sua organização do povo, mas de agir em conformidade com sua

própria história (BIGNOTTO, 2001, p. 126).

Nesse debate, insere-se o ideal de pátria. Entre os humanistas cívicos o ideal de pátria

revelava a primazia da vida pública, ainda a partir de uma visão da política fortemente

influenciada pelo cristianismo, isto é, como seu fim fosse o estabelecimento da paz, visão esta

que será atacada pelo republicano Maquiavel. Como Bruni, o humanista Matteo Palmieri, no

início do século XV, afirma: “nenhuma obra humana é mais valiosa do que aquela que se

ocupa com o bem-estar da pátria, que conserva a cidade e ajuda manter a união e a concórdia

numa bem-ordenada comunidade“ (PALMIERI apud BIGNOTTO, 2001, p. 191).

Tal como assevera Viroli, a matriz do republicanismo italiano caracteriza a virtude

cívica, condição da liberdade, como amor à pátria; patriota é o cidadão disposto a agir e servir

o interesse público. No diálogo antes referido, Bobbio objeta Viroli afirmando que o

patriotismo também foi uma bandeira comum aos regimes totalitários:

Tome cuidado com o amor pela pátria; pense no lema “Dulce et decorum est

pro pátria mori” (É doce e nobre morrer pela pátria), repetido infinitas vezes

e escrito sobre os frontões dos edifícios públicos. Também o fascismo

referia-se à pátria, dizia que era preciso dar a vida pela pátria. A palavra

pátria se presta a enganos por parte daqueles que detêm o poder. Esse lema,

pense bem sobre ele, é sim um lema republicano, mas quem se aproveita de

um lema desse gênero? Quem é que pronuncia esse lema? São com

frequência os tiranos, grandes e pequenos (BOBBIO, 2002, p. 19).

Como se vê, Bobbio novamente associa republicanismo a totalitarismo, reafirmando

Page 132: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

141

uma tópica que, como vimos, remonta, sobretudo, a Benjamin Constant e a Isaiah Berlin.

Contudo, o sentimento de patriotismo não se confunde com a paixão política baseada no

compartilhamento de valores pré-políticos, derivados do fato de “terem nascido no mesmo

território, pertencerem à mesma raça, falarem a mesma língua, adorarem os mesmos bens,

terem os mesmos costumes” (VIROLI, 2002, p. 13, trad. nossa)77

. Da mesma maneira, e pelo

mesmo motivo que republicanismo não é equivalente a comunitarismo (ainda que tenham

suas semelhanças com essa outra tradição), esclarece esse intérprete, patriotismo não se

identifica com nacionalismo cultuado pelos fascistas. Viroli esclarece:

Patria indica a ‘res publica’, ou seja, a constituição política, as leis e o modo

de viver que delas deriva (e, portanto, também uma cultura); natio indica o

lugar nativo e aquilo que está ligado ao lugar, como etnia e a língua

(BOBBIO, op. cit., p. 23-24).

É importante destacar que, para o republicanismo, não se trata de um sentimento

natural, mas de algo estimulado pelas leis e pelos costumes, criados politicamente através da

participação dos cidadãos no autogoverno.

Patriotas republicanos consideram o amor pela pátria como uma paixão a ser

instigada e constantemente reforçada por meios políticos; nacionalistas

pensam nisso como um sentimento natural a ser protegido da contaminação

cultural e da assimilação cultural. A pátria dos republicanos é uma

instituição moral e política; a nação dos nacionalistas é uma criação natural

(VIROLI, 2002, p. 15, ênfase do autor, trad. nossa).78

Outra importante diferença entre o ideal republicano de soberania e as linguagens

nacionalistas é que se essas podem, como no caso do fascismo, ser compatibilizadas com

princípios políticos autoritários, o republicanismo pressupõe, como vimos, a eliminação de

todas as formas de opressão, isto é, a realização da liberdade em todas as suas dimensões, no

espaço privado e no público. O patriotismo republicano não é um ideal de obediência dos

cidadãos frente à autoridade e inconteste do Duce, como sugere Bobbio, mas de construção

democrática de um espaço público que reivindica, sim, a participação política e o civismo

daqueles que o compõem.

Como observa Skinner, se é verdade que as diferentes linguagens do republicanismo

asseveram a importância do patriotismo, também o é que a questão do colonialismo e da

77

(…) being born in the same territory, belonging to the same race, speaking the same language, worshipping

the same goods, having the same customs. 78 Republicans patriots considered love of country an artificial passion to be instilled and constantly reinforced

by political means; nationalists thought of it as a natural feeling to be protected from cultural contamination

and cultural assimilation. The patria of republicans is a moral and political institution; the nation of the

nationalists is a natural creation.

Page 133: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

142

ausência da soberania de um país não era um problema central para a tradição republicana até

a experiência política norte-americana. É a partir da luta dos colonos americanos pela

independência do domínio inglês que a questão da soberania, antes pouco tratada, é atrelada

diretamente ao tema da liberdade. Entendemos, portanto, que é na matriz republicana

estadunidense, pelas próprias circunstâncias históricas que a constituíram, que se estabelece

mais claramente o vínculo forçoso entre liberdade individual e liberdade da comunidade

política e soberania nacional. Sobre o sentido de soberania nesse contexto de difusão do

ideário republicano do século XVII, principalmente do período que antecede a Independência

Americana à formulação da carta constitucional, há que se prestar atenção para dois aspectos.

Em primeiro lugar que se consolida no interior das associações civis constituídas na

colônia norte-americana, a ideia de que somente a assembleia de cidadãos é soberana. Cada

cidadão é senhor de seu interesse e é também responsável pelo interesse público; ele se

submete ao corpo político na medida em que esse é legítimo, quer dizer, na medida em que

ele representa a vontade popular. A cultura religiosa do calvinismo – uma religião

“descentralizada”, dirigida por pastores e desligada do Estado – contribuiu decisivamente para

estabelecer as bases do associativismo democrático que marca as práticas republicanas desse

país. Vê-se, portanto, a corporificação do princípio de soberania popular, ainda que limitada,

pois os pais-fundadores da república estadunidense, em geral, mantinham-se reticentes em

relação à participação política ampliada.

Madison, por exemplo, nos artigos 10, 14 e 39 de O Federalista, alega que a nova

constituição norte-americana cria não uma democracia, mas uma república: as primeiras

caracterizam-se pelo governo direito do povo e pelo território diminuto, ao passo que as

segundas são marcadas pela eleição de representantes que administram o governo escolhidos,

direta ou indiretamente, pelo povo. Outro aspecto republicano do sistema político

estadunidense, segundo Madison, é seu caráter anti-aristocrático, haja vista a proibição dos

títulos de nobreza. Assim, o republicanismo estadunidense não se identifica com a democracia

direta. Mesmo assim, pode-se constatar claramente um ethos democrático nesse tipo de

experiência republicana, formado a partir do associativismo igualitário e da cultura da

igualdade, avessa aos privilégios adscritícios de uma sociedade de nobres.

Em segundo lugar, além do elemento democrático, o princípio de soberania nacional,

no caso dos Estados Unidos, esteve fortemente associado à contestação da monarquia como

regime político legítimo. Consolida-se a ideia de que se o poder político legítimo emana da

vontade popular, então, o poder hereditário dos reis é inevitavelmente arbitrário.

Page 134: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

143

Como vimos anteriormente, Skinner diferencia a tradição neorromana da republicana.

Para ele, a primeira tradição que se consolidou tanto no Renascimento italiano quanto na

revolução inglesa, assevera que a liberdade política plena é compatível com a monarquia,

desde que limitada pelas leis e pela participação cívica dos cidadãos. O republicanismo

estadunidense formulado, então, mostra-se claramente distinto dessa primeira tradição.

Hankins (2010) fala, nesse sentido, de um “exclusivismo” antimonárquico do republicanismo

moderno que assevera que um governo legítimo deve estar necessariamente baseado na

vontade do povo que escolhe livremente seus representantes; república se opõe, nessa matriz,

à monarquia.

O Senso Comum do escritor inglês Thomas Paine, publicado em 1776, o panfleto

político mais influente no processo de Independência das treze colônias no contexto de uma

enorme difusão panfletária (Cf. BAILYN, 2003), apresenta eloquentemente os dois elementos

acima descritos: a vocação democrática e antimonárquica do republicanismo norte-americano.

Contra a fundamentação do poder nos costumes ou em Deus, Paine salienta os males da

monarquia inglesa como uma verdadeira afronta à liberdade dos povos, de tal modo que a luta

americana, diz ele, é não apenas a luta de um país específico por soberania, mas representa a

“causa de toda humanidade” (PAINE, 1982, p. 7). O critério de hereditariedade de

fundamentação do poder, adotado pela monarquia inglesa (modelo constitucional adotado por

muitos iluministas, como Montesquieu, e influente na história da tradição republicana), é uma

afronta à liberdade dos povos e não pode ser admitido em nenhuma hipótese (BIGNOTTO,

2010, p. 272-273). Nesse texto, Paine argumenta de modo ousado, reivindicando para si o

título de republicano (associado, no contexto anglo-saxão, aos regicidas), pela legitimidade da

resistência dos colonos ao monarca inglês e pela imediata separação das treze colônias da

metrópole. Em tom inflado, o republicano Paine conclama com toda sua verve:

Ó você que ama a humanidade! Você que ousa se opor, não apenas à tirania,

mas também ao tirano, apresente-se! Todas as partes do mundo estão

assoladas pela opressão. A liberdade foi perseguida em todo o mundo. A

Ásia, a África, há muito a expulsaram – a Europa a considera uma estranha e

a Inglaterra já lhe deu aviso que se vá. Ó, receba a fugitiva e prepare com o

tempo um abrigo para a humanidade (PAINE, 1982, p. 36).

Como vimos, o republicanismo, particularmente na sua expressão norte-americana,

assume a soberania dos povos como condição para a liberdade; colonialismo, imperialismo,

domínio econômico, político ou de qualquer outra natureza de outra potências são, nessa

chave de entendimento, formas de dependência que não podem ser toleradas.

É claro que não estamos sugerindo que o liberalismo simplesmente legitime ou aceite

Page 135: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

144

essas formas de dominação. É preciso sempre lembrar que o conceito de liberdade liberal é

fundamental na Teoria Política, particularmente porque se baseia nos princípios da

superioridade absoluta das leis em relação à vontade dos humanos e de se estabelecer limites

invioláveis à segurança individual. Como destaca Bignotto:

Esses limites comportam, por exemplo, a interdição da aplicação retroativa

de uma lei nova para qualquer acusado de crime, a negação de qualquer

condenação sem julgamento, a suspensão de perseguições a minorias ou a

dissidentes políticos, a interdição da tortura e da delação de parentes

próximos. Ao analisarmos esses dois princípios, não teríamos dificuldade

em conferir-lhes validade e em reconhecê-los como esteios fundamentais

da democracia contemporânea (2003, p. 39, grifos nossos).

Todavia, como a gênese da liberdade liberal é privada e individual, e não pública, no

que tange à questão da soberania nacional, essa tradição acabou assumindo um viés mais

cosmopolita; o comprometimento com ideais como o patriotismo, ou com a soberania

nacional, são, em geral, rechaçados, para uma linguagem que se quer neutra e isenta de

assertivas normativas.

Procuramos ao longo do presente capítulo reconstituir as principais disputas entre

essas duas importantes tradições de pensamento político, liberalismo e republicanismo, e

demonstrar como essas disputas remetem a um dissenso formativo e central sobre a liberdade.

Ambas tradições contribuíram decisivamente para o modo como se pensa e se pratica a

política no mundo atual. Destarte, essas disputas permanecem ainda nos conflitos que cindem

os regimes políticos, particularmente as democracias; revela-se que não se trata apenas de

conflitos entre atores racionais que buscam maximizar a satisfação de seus interesses

particulares, mas de embates entre valores distintos.

A democracia expandiu-se como projeto político mais consensual no final do século

XIX e durante os séculos XX e XXI. Sua maior aceitação se deu, todavia, concomitantemente

à formação de um dissenso interpretativo sobre sua real significação. Entretanto, apesar da

fragmentação da ideia de democracia em diferentes sentidos, é correto dizer que tanto na

mídia quanto nas ciências sociais tende-se a aceitar a ideia de que ela corresponde aos

"regimes concorrenciais do Ocidente” (MIGUEL, 2005, p. 5). A consolidação desse sentido

de democracia esteve associada à própria hegemonia do liberalismo no século XX como

pensamento político central no mundo. Como avalia Bellamy:

O liberalismo do século XX enfrentou o curioso destino de declinar

regularmente, em muitos países, como força eleitoral exclusiva de um

partido específico, enquanto prevalecia e até crescia como uma teoria básica

ou um conjunto de pressuposições e sentimento de um tipo supostamente

Page 136: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

145

neutro e universal, que domina o espectro ideológico do pensamento

político. Hoje todas as associações importantes empregam a linguagem

liberal dos direitos, da liberdade e da igualdade para expressar e

legitimar suas opiniões e para demonstrar uma correspondente

aceitação geral das concepções liberais de democracia e do mercado. Dos

conservadores da Nova Direita aos socialistas democráticos, parece que

todos agora somos liberais.

Até certo ponto, esta situação não é surpreendente, visto que os ideais e a

política liberais moldaram os Estados e os sistemas sociais e econômicos

do século XIX, criando a estrutura institucional e os valores dentro dos

quais vive e pensa a maioria dos ocidentais (1994, p. 9, grifos nossos).

Em geral, a democracia é tomada pela linguagem liberal contemporânea como o

regime político que melhor se adequa ao princípio da liberdade. Como resume Roberto

Guerra: "a realidade é que nas sociedades democráticas desenvolvidas, talvez com exceção

dos partidários do totalitarismo fundamentalista, todos nos proclamamos defensores da

liberdade e da democracia" (1998, p. 10, trad. e grifos nossos).79

Liberalismo, democracia e

liberdade associaram-se com tal força no século XX como se fosse impossível pensar os

últimos dois conceitos fora ou contra as linguagens liberais. Como celebrava Sartori, "o vento

da história mudou de rumo (...) o vencedor é a democracia liberal" (apud GUERRA, 1998, p.

14, trad. nossa).80

Contra o significado liberal e hegemônico de democracia – entendida estritamente

como regime de competição pelos cargos de poder eletivo – e o sentido de liberdade a ele

associado – como não interferência – se insurgem os neorrepublicanos asseverando a

incapacidade das linguagens do liberalismo em solucionar o hiato entre a sua prática e o seu

sentido mais normativo (autogoverno, governo do povo, etc.).

O reavivamento da polêmica sobre a liberdade no final do século XX está intimamente

associado a um dissenso sobre o que deve ser a democracia na contemporaneidade. Pode-se

interpretar, portanto, que a tremenda variação semântica da democracia (entendendo-a desde

uma chave liberal conservadora do elitismo democrático, como a vigência de instituições de

competição pelos cargos de poder entre elites, até à visão que a associa à ampliação da

participação em diversas instâncias [Cf. CUNNINGHAM, 2009]), relaciona-se à

indeterminação do que seja a liberdade. Diferentes concepções de liberdade, em suma, se

articulam a diferentes visões a respeito da democracia, suas condições, seus resultados

esperados, etc.

79

La realidad es que en las sociedades democráticas desarolladas, acaso con la excepción de los partidarios del

totalitarismo fundamentalista, todos nos proclamamos defensores de la libertad y la democracia. 80

El viento de la historia ha cambiado de rumbo...el vencedor es la democracia liberal.

Page 137: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

146

Isto é, se a democracia, em sua polissemia de sentidos, tornou-se um valor

de referência universal na contemporaneidade, ela pode ser definida como o

tipo de regime que permite o exercício da liberdade dos indivíduos. Se a

polissemia de sentido é quase um atributo da formação de uma

universalidade de referência, em um mundo ainda mais submetido a tantas

clivagens políticas e culturais, a pergunta “mas o que é mesmo democracia?”

pode e deve ser imediatamente vinculada à questão: “mas o que é mesmo

liberdade?” (GUIMARÃES, s/ data, p. 4).

Se republicanos e liberais polemizam em torno do conceito de liberdade é porque esse

debate ocorre em uma parte do mundo (Europa Ocidental e norte da América), em que as

democracias se consolidaram há muito. Quando os primeiros desferem duras críticas à

democracia liberal é precisamente para dizer que, apesar dos avanços em relação aos regimes

autocráticos do passado, ela não satisfaz todas as condições para um cidadão ser livre; a

liberdade liberal é insuficiente tendo em vista as diversas demandas por maior igualdade de

oportunidades, reconhecimento de direitos de minorias, responsividade, transparência pública

dos governos, etc.

Nesse sentido, não é arbitrária a escolha desta pesquisa ao adotar o conceito de

liberdade como categoria analítica central para o entendimento das grandes disputas hoje em

torno à democracia. Quer dizer, por trás de um aparente consenso sobre a preferência desse

regime, grassa um profundo desacordo, ainda em curso, acerca do seu real significado; esse

dissenso é decorrente, por sua vez, de uma disputa anterior sobre o significado da liberdade,

supostamente mais satisfeita numa democracia do que em qualquer outro regime.

Como observa acertadamente Philip Pettit, existem muitas linguagens políticas rivais

nos sistema políticos contemporâneos, mas todas elas invocam a noção de liberdade; a

linguagem da economia fala em liberdade de estabelecer contratos quaisquer com

particulares; a dos direitos em liberdade de expressão, liberdade religiosa, etc.; a do bem-

estar, ao tratar da desigualdade, da pobreza, da exploração fala das condições efetivas para o

exercício da liberdade; a da democracia, da legitimidade do povo decidir livremente. Em

suma, conclui o filósofo irlandês: "essa sobreposição do idioma da liberdade nos dá a

indicação da sua importância para todos, ou pelo menos todos nós que nos identificamos com

o estilo das democracias ocidentais, naturalmente remetidas à noção de liberdade". (PETTIT,

2002, p. 6, trad. nossa).81

Quando transpomos para o contexto brasileiro, novas questões surgem. Não é recente

a acusação de que no Brasil não se consolidou uma cultura política republicana. Igualmente se

81

This overlapping idiom of freedom gives an indication of the importance that all us, or at least all of us who

identify with western-style democracies, naturally assign to the notion of freedom.

Page 138: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

147

encontram avaliações de que em nosso país nem o Estado liberal mínimo foi ainda

universalizado (SANTOS, 1993). Também não são poucas as deficiências identificadas no

funcionamento da democracia brasileira que, ao contrário de suas congêneres da Europa

ocidental e do norte da América, é um experimento claramente incipiente e marcado por

revezes autoritários. Pensando no nosso caso, deve-se ter clareza de que nós começamos a

recepcionar as exposições contemporâneas do liberalismo e, num segundo momento, do

republicanismo sobre a liberdade num contexto de clara restrição da mesma, tendo em vista a

situação política criada pelo golpe de 1964. Como escreve arrojada e lucidamente Raymundo

Faoro, ainda durante a vigência do regime autoritário:

Se a liberdade pode ser arbitrariamente suspensa ou anulada, todas as

garantias de funcionamento do governo serão inúteis, redutíveis, em última

instância, à boa vontade do detentor do poder. Se os juízes e os jurados

podem ser presos arbitrariamente, quem seriamente assegurará que suas

sentenças são imparciais, quando, sobre elas, pesa sempre a ameaça, oculta

ou ostensiva, da mão do chefe e dos delegados do Poder Executivo? Que

garantia há de que uma lei foi deliberada livremente, em favor do povo, se os

legisladores estão permanentemente ameaçados de serem expulsos do

Congresso e, além de expulsos, encarcerados? O despotismo e a anarquia

têm em comum o fato de que assentam sobre o arbítrio. Uma vez instaurado,

o arbítrio penetra em todas as instituições, desfigura todo o quadro

governamental, sem que resguarde dentro dele, uma ilha onde se abrigue a

liberdade. (1981, p. 14).

É preciso considerar que a fundação da democracia no Brasil, a partir da década de

1970, se deu num contexto em que o país mal acabava de “sair” de mais um período

autoritário de sua história, a partir de um processo de conciliação com as forças golpistas, e

tinha que prestar conta de nossa história, bastante avessa ao valor da liberdade: escravagista,

colonizada, patriarcal, racista, desigual, etc. Destarte, sobretudo em nosso caso, a visada

republicana da liberdade apresenta-se como interessante possibilidade analítica e normativa

de expansão radical da democracia e do valor da liberdade. Sem desconsiderar as

insuficiências e a diversidade dessa tradição construída ao longo de muitos séculos e em

contextos bastante distintos, assumimos que republicanizar a democracia brasileira

significaria, portanto, aumentar sua potência emancipatória, rompendo com seu legado

autoritário, presente tanto nas instituições, quanto na cultura política do país, ao mesmo tempo

em que se superariam certas aporias da tradição liberal.

Page 139: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

148

3 – Raymundo Faoro: a linguagem republicana da corrupção e as duas agendas da

Reforma do Estado brasileiro

“O Estado não será, pelo fato de ser Estado, inimigo

da liberdade...” (Faoro, 2009, p. 19).

O capítulo inicia-se com a retomada sucinta de alguns dos argumentos correntes sobre

a corrupção no Brasil. Identifica-se a associação deles com o conceito de patrimonialismo,

sendo Faoro o principal intelectual a utilizar-se dele de modo sistemático no país. A linhagem

de interpretação do Brasil via patrimonialismo tenderia, segundo a opinião de alguns

estudiosos, a naturalizar a corrupção, tomada como traço do caráter nacional e do legado

ibérico; um “vício de origem” a nos obstar sempre o caminho à modernidade. Além disso,

essa linhagem localizaria a corrupção unicamente no aparato estatal, deixando de

compreendê-lo na sua relação com a sociedade civil. Por essas razões, alguns dos estudiosos

mais recentes propõem a substituição da tese do patrimonialismo no entendimento da

corrupção por outras hipóteses.

De acordo com o suposto exclusivismo estatista, distinguem-se duas ideias de

corrupção associadas ao patrimonialismo e que, a princípio, encontrariam guarida na obra de

Faoro: uma “liberista” que denuncia a opressão histórica do Estado brasileiro e que redunda

numa visão de valorização das virtudes do mercado e num projeto de minimização do aparato

estatal. O projeto neoliberal de Estado mínimo seria legitimado, por assim dizer, pela tese do

patrimonialismo brasileiro. Outra é aquela que, de fato, baseia-se no diagnóstico de uma

hipertrofia estatal, produtora de uma atrofia da sociedade civil, mas que, ao invés de resultar

numa cultura anti-estatista, defende a refundação do Estado brasileiro com base numa

concepção de soberania radicalmente democrática, assentada numa ordem de direitos e

garantias individuais universalizados. Essas duas interpretações constituíram agendas

diferenciadas de reforma do Estado brasileiro e, até o hoje, disputam o campo da moderna

Ciência Política e o legado da obra de Faoro.

Nosso desiderato é demonstrar que a obra faoriana não implica necessariamente o

assentimento com uma antropologia do brasileiro como “ser corrompido”, ainda que, com

efeito, tenda a compreender a corrupção como decorrência da disposição estamental do

Estado. Mesmo assim, a corrupção na obra faoriana ultrapassa o mero significado de

ilegalidade ou de malversação de recursos públicos, não se localizando exclusivamente no

Estado. Ademais, defendemos que não existem elementos satisfatórios para se compreender o

pensamento de Faoro segundo a chave de interpretação anti-estatista, estando sua linguagem

Page 140: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

149

mais próxima das correntes do liberalismo cívico e ético e mesmo do republicanismo. Assim,

se o conceito de patrimonialismo remete inevitavelmente ao quadro conceitual weberiano,

pensador esse sim, formulador de um liberalismo conservador desencantado (BELLAMY,

1994), a sua utilização por Faoro combina-se, ao contrário, com um dever-ser rousseauniano

em que democracia e república, igualdade social e liberdade estão fortemente associados

(GUIMARÃES, 2009, p. 84). Como indicamos, a apropriação do quadro conceitual

weberiano e a adoção de um ideário político radicalmente democrático, por parte de Faoro,

não está isenta de problemas.

Para fazer a defesa de nossa interpretação, nos voltaremos primeiramente aos

conceitos de patrimonialismo e estamento, nucleares da obra Os donos do poder, tanto em sua

dinâmica propriamente política – referida à dimensão da soberania e da legitimidade do poder

– quanto em sua dimensão econômica – com a ideia correspondente de “capitalismo

politicamente orientado”. Caracteriza-se, então, a obra mencionada como uma narrativa de

longa duração da formação e usurpação do poder político de seus legítimos detentores – o

povo brasileiro.

As hipóteses e conjecturas, em aberta rebeldia aos padrões consagrados,

inspiram-se no propósito de abarcar, num lance geral, a complexa, ampla e

contraditória realidade histórica. Um longo período, que vai do Mestre de

Avis a Getúlio Vargas, valoriza as raízes portuguesas de nossa formação

política (...) (FAORO, 2001, p. 14).

É, portanto, com o sentido de constituir uma grande síntese do sentido da formação do

poder político no Brasil e de seus desvios (e não de relatar esses longos cinco séculos que nos

formam com a riqueza de detalhe que requer com freqüência a historiografia contemporânea)

que Faoro escreve sua obra magna. Como observa com propriedade Francisco Iglésias

(2009b), se falta à obra de Faoro uma análise mais detida dos diversos momentos de nossa

história (chegando a dar um tratamento marginal a episódios fundamentais na transformação

do país, como a Abolição da escravidão, por exemplo) é porque o autor quis, sobretudo,

identificar o sentido geral de formação de nosso país. Reiteramos também aqui a leitura de

alguns intérpretes que realça a centralidade da liberdade no pensamento político de Faoro,

estando esse conceito associado inequivocamente à participação dos cidadãos na vida pública

e à realização dos anseios do povo, sobretudo, de justiça social.

Para encerrar este capítulo, retomamos ao final a discussão sobre corrupção,

demonstrando que, para Faoro, ela é um traço estrutural do Estado e da sociedade brasileira na

medida em que o poder político é exercido visando objetivos ilegítimos, ou seja, que

satisfazem apenas aqueles que se nutrem de relações espúrias e privatistas com o Estado (o

Page 141: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

150

chamado “patronato político brasileiro”), contrariando o interesse público. Mais do que

ilegalidade (PINTO, 2011, p. 51), a corrupção está, segundo Faoro, relacionada à

ilegitimidade do poder político, assumindo, nesse caso, o significado mais amplo que os

filósofos da Antiguidade conferiam ao termo. Uma compreensão segundo o pensamento

político de Faoro não se limita, portanto, ao entendimento corrente de corrupção como a

apropriação indébita de bens materiais públicos (embora a incorpore também). Longe de uma

abordagem puramente institucionalista ou monetarista desse fenômeno, a obra de Faoro

aponta para os traços socioculturais, historicamente constituídos, típicos da corrupção, ainda

que – é preciso reconhecer – esse autor não tenha desenvolvido a reflexão sobre esses traços.

Associamos, então, a visão decorrente da corrupção na narrativa faoriana à linguagem política

republicana, segundo a qual corrupção consiste na degradação dos fundamentos da vida

pública, envolvendo necessariamente tanto o Estado quanto a sociedade civil. Propomos,

como se vê, uma interpretação distinta da relação entre patrimonialismo e corrupção na obra

desse pensador brasileiro, apostando na sua pertinência na avaliação desse problema.

De fato, a corrupção faz parte, tanto objetiva quanto subjetivamente, da “paisagem” do

Brasil contemporâneo. Como diz Fernando Filgueiras,

Quando se abre o jornal, no Brasil, não é raro nos defrontarmos com

escândalos do mundo político. Casos de malversação de recursos públicos,

uso indevido da máquina administrativa, redes de clientela e tantas outras

mazelas configuram uma sensação de mal-estar coletivo, em que sempre

olhamos de modo muito cético os rumos em que a política, no Brasil, tem

tomado (2009, p. 387).

Todavia, o problema está longe de ser exclusividade de nosso país. Como já diziam os

pensadores antigos Aristóteles e Políbio, a corrupção faz parte da ordem política, não sendo

possível eliminá-la totalmente; ao contrário, o que ela demanda é precisamente a criação de

mecanismos de controle para que o corpo político perpetue-se ao longo do tempo

(FILGUEIRAS, 2008, p. 33). De qualquer modo, pesquisas realizadas recentemente indicam

que grande parte da população brasileira identifica na corrupção um problema central de

nossa política:

A corrupção tornou-se um dos principais problemas para a gestão pública e

para a democracia, questão essa amplamente reconhecida pela opinião

pública no Brasil. Sabemos que 73% dos brasileiros consideram a corrupção

como muito grave e 24% como grave (AVRITZER & FILGUEIRAS, 2011,

p. 7).

Isso significa que quase a totalidade (97%) da população brasileira tem a percepção de

Page 142: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

151

que o Brasil é um sistema político corrompido, revelando, destarte, a importância de se

formular um entendimento crítico e amplo desse problema (BIGNOTTO, 2011). Como bem

observa Celi Pinto (2011), a espetacularização dos escândalos de corrupção pela mídia

brasileira, como também a sua exploração eleitoral pelos políticos e partidos em disputa,

contribui para consolidar o senso comum de que política brasileira se resume à corrupção.

Cria-se a imagem de que, no Brasil, a corrupção é “endêmica” (BIGNOTTO, op. cit., p. 21).

Como asseveram diversos estudiosos, a opinião corrente no Brasil está fortemente

marcada por um moralismo no tratamento do tema, como se ser ou não corrupto consistisse

meramente em uma questão de caráter pessoal. Assim, aliado à crença de que a corrupção se

dá prioritária ou exclusivamente na dimensão estatal, produzida por atos ilícitos de

funcionários públicos (FILGUEIRAS, 2009, p. 408), a opinião pública brasileira acaba

considerando moralmente a política como uma atividade negativa, em geral:

Os eleitores, o povo enfim, é construído pela mídia e se reconhece

facilmente como tal, como os trabalhadores honestos e vítimas das gangs de

corruptos indiscriminadamente. Os eleitores se autoreconhecem como

aqueles que trabalham, pagam impostos, obedecem às leis e sustentam a

camarilha que não faz nada. De políticos nem querem ouvir falar; seria

melhor até que não existissem (PINTO, 2011, p. 13, ênfase da autora).

Dessarte, temos uma situação interessante: embora quase a totalidade dos brasileiros

julgue que a corrupção é um fenômeno endêmico e grave no país, a sua maior parte acredita

também que o povo “é menos afetado pela corrupção que suas instituições” (BIGNOTTO,

idem¸p. 25). A cultura política dominante associa, portanto, corrupção ao Estado. O

diagnóstico é simples: a corrupção é uma deficiência das instituições estatais, praticada

principalmente por burocratas e políticos profissionais, que por ausência de decoro cometem

atos ilícitos contra a sociedade civil que, por seu turno, reage, cada vez mais, indignada com a

falta de boa moral. Como resume Pinto: “existe corrupção porque existem pessoas corruptas;

e que, se os gestores públicos não fossem corruptíveis, não haveria corrupção” (PINTO, 2011,

p. 50).

É preciso recordar que um dos motes do regime autoritário de 1964 foi precisamente a

corrupção, sendo o golpe (ou a “revolução” como chamavam seus defensores) justificado para

combater esse mal secular brasileiro. Como observa Heloísa Starling, a concepção de

corrupção dos militares era puramente moral, destituída de qualquer conteúdo político:

Já a noção de corrupção assimilada pelas forças armadas sempre esteve

associada à identificação de uma desonestidade específica: o mau trato do

dinheiro público. Reduzia-se a furto. Na fantasmagoria do quartel, corrupção

era resultado dos vícios produzidos por uma vida política de baixa qualidade

Page 143: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

152

moral e vinha associada, às vésperas do golpe, ao comportamento viciado

dos políticos diretamente vinculados ao regime nacional-desenvolvimentista.

No meio militar, em geral, o juízo era sempre o mesmo: um problema de

ordem moral, fácil de detectar e medir, e a qualidade de seu controle

razoavelmente simples de ser obtida: diante da corrupção dos dinheiros,

a honestidade se fazia força e, se os velhos padrões de demagogia e

desonestidade continuavam vigorando na parte corrupta do país – o

Estado, a vida política –, sempre era possível regenerar a sociedade.

Uma sociedade vista por eles, diga-se de passagem, como incapaz de

solucionar por si só o que o regime nacional-desenvolvimentista não queria

ou não conseguia resolver: os políticos desonestos podiam trocar de cargo,

mas continuavam os mesmos: a democracia não alcançava destituí-los

(2008, p. 251-252, grifos nossos).

Percebe-se, portanto, uma forte semelhança entre a concepção de corrupção dos

dirigentes políticos do regime militar e o senso comum brasileiro contemporâneo: a corrupção

como um mal estatal que deriva da falta de decência dos agentes públicos e em relação a qual

a democracia tem pouca ou nenhuma capacidade de controle. Isso indica, mais uma vez, que

não conseguimos romper com a cultura e as linguagens políticas típicas de nosso passado

autoritário, na medida em que a moralização da política e a banalização da corrupção

(PINTO, 2011) produzem uma despolitização do debate público, ainda presentes. Os efeitos

desse processo e dessa continuidade cultural são perversos, como comenta Starling:

De um lado, quebra-se o princípio da confiança, o elo que permite ao

cidadão associar-se para interferir na vida de seu país. De outro, degrada-se o

sentido do público. Por conta disso, nas ditaduras, a corrupção tem

funcionalidade: serve para garantir a dissipação da vida pública. Nas

democracias – e diante da República – seu efeito é outro: serve para

dissolver os princípios políticos que sustentam as condições para o exercício

da virtude do cidadão (2008, p. 259).

Assim, os danos produzidos pela corrupção numa democracia excedem e muito o mal

uso dos recursos públicos, tão denunciados pela mídia brasileira. Sobre isso, Newton Bignotto

comenta:

À luz da experiência brasileira, podemos dizer que uma abordagem

puramente econômica ou funcional da corrupção relega a um segundo plano

uma dimensão do fenômeno que contém um risco muito maior à democracia

do que aquele resultante dos prejuízos causados pelo desvio do dinheiro

público. É a própria existência de um regime livre que se encontra

ameaçada em seus valores e direitos (2011, p. 39, grifos nossos).

Nesse sentido, a forte presença da corrupção no imaginário político brasileiro e o fato

dela pautar com freqüência o debate político do país é, a nosso ver, expressão de um processo

de “degradação da vida democrática e republicana” (idem, ibidem, p. 39).

Isso não significa endossar simplesmente esse imaginário ou ignorar os avanços feitos

Page 144: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

153

nessa área no Brasil nas últimas décadas. Como afirmam Avritzer e Filgueiras (2011), muitas

formas de controle da corrupção foram criadas desde a Constituição de 1988, sobretudo, no

que tange ao poder Judiciário e às formas internas da administração pública. Celi Pinto

também destaca os avanços no combate à corrupção, não sendo mais o país um caso das

“‘repúblicas das bananas’ dos anos de 1950, 1960”. Ainda assim, prevalece no imaginário

popular a ideia de que o Brasil continua essencialmente um país corrupto, como se a

corrupção fosse um traço inerente ao caráter do brasileiro. A naturalização da corrupção anda,

é preciso dizer, lado a lado com a sensação difusa de impunidade, haja vista que a despeito

das inúmeras investigações e mecanismos de controle, poucos foram efetivamente punidos no

país: “o controle aumenta, a punição permanece baixa e os casos de corrupção continuam

existindo e pautando negativamente a opinião pública” (AVRITZER & FILGUEIRAS, 2011,

p. 22).

Filgueiras destaca também que apesar de inexistir uma “teoria da corrupção no

Brasil”, faz-se fortemente presente no país uma linhagem de interpretação que associa

reiteradamente corrupção a patrimonialismo.

Supõe-se que a tradição política brasileira não respeita a separação entre o

público e o privado, não sendo o caso brasileiro, um exemplo de Estado

moderno legitimado por normas impessoais e racionais. O patrimonialismo é

a mazela da construção da República, de maneira que ele não promoveria a

separação entre os meios de administração e os funcionários e governantes,

fazendo com que esses tenham acesso privilegiado para a exploração de suas

posições e cargos. Dado o patrimonialismo inerente à construção da cena

pública brasileira, a corrupção é um tipo de prática cotidiana, chegando

mesmo a ser legitimada e explícita no âmbito de uma tradição

estamental e tradicional herdada do mundo ibérico (2009, p. 388, grifos

nossos).

Há, de acordo com Filgueiras, uma relação de causalidade pressuposta neste

entendimento comum ao país. Em primeiro lugar, a afirmação da cultura e prática política

ibérica ainda marcante na formação dos hábitos e instituições brasileiras, caracterizada pela

presença sufocante de um Estado patrimonial que, por definição, desconhece as fronteiras

entre o público e o privado. Conseqüentemente e, em segundo lugar, há associação entre esses

hábitos e instituições políticas típicas de uma sociedade patrimonial e a prática da corrupção.

Porque patrimonial, o Brasil seria, ipso facto, corrupto, sendo a corrupção essencialmente

localizada no Estado e na administração pública. Na opinião de Filgueiras, a linhagem de

interpretação patrimonialismo/corrupção, que tem no pensamento de Raymundo Faoro seu

principal expoente, engendraria o anseio de que por meio de reforma do aparato estatal

pudéssemos erradicar esse mal do país. Em outra passagem o autor acrescenta:

Page 145: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

154

Culpa-se, sobremaneira, nossa herança histórica deixada pelo mundo ibérico,

que teria feito com que o Brasil não conhecesse o processo de racionalização

típico do Ocidente e incorporasse os valores e princípios do racionalismo

protestante, ascético e voltado para uma ética dos deveres e do trabalho. O

projeto de interpretação do Brasil fornecido pela vertente do

patrimonialismo tende a tomar esse pressuposto como característica

antropológica, alicerçado em uma visão muitas vezes derivada de outras

experiências sociais. Afinal a herança do patrimonialismo ibérico deixou

algumas mazelas na constituição da sociedade brasileira, o que

acarretaria, sempre, projetos de ruptura com o passado (idem, ibidem, p.

387, grifos nossos).

Assim, Filgueiras identifica na interpretação do patrimonialismo uma “antropologia”

do brasileiro segundo a qual nós tenderíamos, inevitavelmente, à corrupção. Como descreve o

autor, trata-se de uma forma de essencialização da corrupção remetida ao caráter nacional,

obstando, por conseguinte, a transformação do país rumo à modernidade.

Sendo o patrimonialismo um problema estatal (Faoro) e societal (Holanda),

nossos vícios de origem – a corrupção em particular – são explicados por um

traço distintivo de caráter do brasileiro, que estaria relacionado a uma

história de parasitismo social explícito, tendo em vista uma sociedade

estamental e patriarcal, pouco afeita ao capitalismo e ao mundo dos

interesses (FILGUEIRAS, 2009, p. 392).

Celi Pinto também ressalta que as explicações correntes sobre a origem da corrupção

indicam o peso de nossas tradições políticas, como o clientelismo e o patrimonialismo. Como

Filgueiras, Pinto procura se contrapor a essa linha de interpretação, acentuando que a

corrupção não é necessariamente um problema da pré-modernidade, mas que pode se

compatibilizar com a institucionalidade típica das democracias contemporâneas.

Em resumo, alguns dos recentes estudos sobre corrupção no Brasil indicam que: 1) a

corrupção ocupa lugar central no imaginário político brasileiro; 2) nesse imaginário, a

corrupção é compreendida como algo natural e inevitável, dado, supostamente, o caráter do

brasileiro suscetível a esse tipo de “vício”; 3) como explicação para a origem dessa corrupção

“natural”, apresenta-se a interpretação que assevera a herança ibérica do patrimonialismo na

configuração do Estado brasileiro; 4) a interpretação da corrupção via patrimonialismo

assume, portanto, o padrão civilizacional “moderno” como referência para o diagnóstico do

caso brasileiro; 5) essa interpretação tende a localizar a corrupção como um problema da pré-

modernidade do aparato estatal brasileiro; 6) ela também se caracteriza fortemente por uma

visão moralista como se a corrupção fosse causada pela falta de caráter dos agentes públicos.

Assim sendo, alguns dos estudiosos da corrupção concordam que é preciso superar essa

explicação que liga corrupção a patrimonialismo:

Page 146: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

155

Na linhagem do pensamento político brasileiro derivada de Faoro, o

patrimonialismo é um problema típico do Estado, conforme uma rigidez

estrutural na sociedade brasileira (...). A herança deixada na organização do

Estado e da atividade econômica por Portugal explica a corrupção do

presente. (...) Acreditamos, por outro lado, que a corrupção não pode ser

explicada, hoje, pelo conceito de patrimonialismo de Faoro, porque não

há, no Brasil, um sistema de legitimação tradicional e as práticas de

corrupção não são apenas derivadas do poder estatal, mas têm, uma

ressonância na cultura política (idem, ibidem, p. 390, grifos nossos).

A vinculação da obra de Faoro a esses pressupostos é, todavia, parcialmente

questionável. Não é o caso de afirmar aqui que o conceito de patrimonialismo é, em si,

suficiente para a compreensão do problema da corrupção brasileira, nem de postular que

existe uma teoria da corrupção no pensamento de Faoro. Mas cumpre questionar a ideia de

que interpretação da formação de nosso país em Os donos do poder implica numa concepção

do caráter corrupto do brasileiro e uma atenção exclusiva à dimensão estatal.

Ao contrário de abandonar por completo a tese do patrimonialismo, acreditamos, por

outro lado, ser necessário complementá-la com a análise das formas de controle existentes no

mundo contemporâneo e com as formas de corrupção ligadas à esfera privada e ao mercado.

Dizendo de outro modo, julgamos que sem o recurso à tese do patrimonialismo, torna-se

difícil, a nosso ver, compreender a formação de uma cultura política ainda presente no país

que não distingue o público do privado e que ambiguamente tende a identificar corrupção a

Estado e a dissociá-la das práticas corruptas realizadas cotidianamente na esfera privada

(BIGNOTTO, 2011, p. 35-36). Além disso, avaliamos que a longa narrativa do Brasil

formulada por Faoro é importante de ser considerada, pois amplia a discussão sobre corrupção

para além do problema da malversação dos recursos públicos, referindo-se diretamente ao

problema da legitimidade do poder político, e indicando como a democratização desse poder é

ao mesmo tempo solução para ambos os problemas. Nesse sentido, assumimos a proposta de

Kátia Mendonça em conciliar uma perspectiva de longa duração histórica com os estudos

mais focados topicamente próprios à moderna Ciência Política:

A importância de um reencontro com as ideias de Raymundo Faoro nos dias

de hoje reside principalmente na sua atualidade. A análise da estrutura

política que Faoro empreende permanece válida para a compreensão dos

problemas que ocorrem no nível superestrutural e remetem à questão da

aplicabilidade de parâmetros de longa duração à ciência política, ou mais

especialmente às relações entre história e política (MENDONÇA, 1995, p.

181).

Mais problemática, com efeito, é certamente a associação entre a interpretação

faoriana do Brasil e um projeto de reforma político-administrativa a fim de tornar o Estado

Page 147: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

156

mais poroso aos interesses que compõem o mercado. Essa, por exemplo, é a influente leitura

de Luiz Werneck Vianna em “Weber e a interpretação do Brasil”. Vianna caracteriza a obra Os

donos do poder como uma interpretação paradigmática do “patrimonialismo de Estado”, ao

lado da obra Bases do autoritarismo brasileiro, de Simon Schwartzman (diferentemente da

linhagem do “patrimonialismo de sociedade civil”, tal como formulado por Florestan

Fernandes e Maria Sylvia de Carvalho Franco). No caso do “patrimonialismo de Estado”, diz

ele, constitui-se uma “metafísica brasileira” – patrimonial, estamental, do capitalismo de

Estado, etc. – a qual os dois autores, Faoro e Schwartzman, contrapõem uma “física dos

interesses”. Romper com nossa não-modernidade, com o “Oriente Político”, assevera Vianna,

implicaria para esses intelectuais reformar o Estado de tal modo que ele fosse permeável aos

interesses da sociedade civil, das classes sociais, substituindo o padrão de cooptação pelo da

representação, “imprimindo à matriz do interesse a marca do particularismo privatista

antípoda à formação da cultura cívica” (VIANNA, 1999, p. 38). Vê-se que Vianna aproxima a

obra de Faoro às linguagens neoliberais de reforma política, que asseveram a necessidade de

diminuição das funções e do tamanho do Estado ao mesmo tempo em que as transfere ao

mercado. É como uma apologética do mercado e da sociedade civil, portanto, que Luiz

Werneck Vianna caracteriza a narrativa faoriana. Ainda que existam certas passagens de Os

donos do poder que, de fato, dão a entender que se trata de um autor “contra o Estado”,

apostamos, a partir de uma análise mais detida dessa obra e de textos posteriores do autor, que

o pensamento de Faoro é fortemente crítico em relação a essas linguagens do liberalismo,

defendendo a necessidade de fortalecimento da dimensão pública e democrática do Estado

brasileiro.

É preciso ter muita clareza que a divergência entre essas duas leituras da obra de Faoro

e da aplicação do conceito de patrimonialismo à interpretação do Brasil de desdobram em

projetos políticos concorrentes, com enraizada polêmica na moderna Ciência Política

nacional. De um lado, aqueles que, apoiando-se na tese do patrimonialismo, asseveram o

gigantismo, a ineficiência e obsoletismo do aparato estatal brasileiro, contraposto à, suposta,

maior eficiência do mercado na alocação dos recursos. De outro lado, estão aqueles que

procuram formular um outro projeto de Estado, não-patrimonial, através do fortalecimento e

da concomitante democratização do aparato estatal. Assim, a discussão sobre a correta

interpretação da obra de Faoro (na qual se insere este trabalho) se transforma numa disputa

política em que se procura apropriar esse importante legado de um projeto de Estado

específico.

Page 148: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

157

A principal razão para nosso radical desacordo com a tese de Vianna é que Faoro

constituiu no país uma linguagem intransigente de defesa da liberdade, não compreendida

meramente como não-interferência dos indivíduos, mas como participação e autonomia dos

mesmos numa esfera pública plenamente democrática. Para justificar essa interpretação,

passemos à análise dos conceitos-chave para esse pensador.

3.1 – Patrimonialismo e estamento

O conceito de “patrimonialismo estamental”, nuclear da obra Os donos do poder,

remete, como se sabe, à sociologia weberiana. Muito e satisfatoriamente já se disse sobre isso

(Cf. CAMPANTE, 2003; 2009a), de tal modo que fica aqui reafirmado o diagnóstico acerca

do uso seletivo e heterodoxo de Faoro em relação às categoriais weberianas, aliás, como o

próprio autor já destacara no prefácio à segunda edição de sua obra (FAORO, 2001, p. 13).

Também se deixa de lado aqui, conscientemente, toda a polêmica que envolveu o próprio

autor em relação à obra de Sérgio Buarque de Holanda acerca do pioneirismo da utilização do

conceito de patrimonialismo na interpretação da realidade brasileira (FAORO, 2007).

Tendo em vista que a apropriação faoriana do conceito de patrimonialismo redunda

numa formulação distinta da sua formulação “original”, importa nesse passo nos voltarmos

brevemente para o modo como esse autor opera com esse conceito. Para Faoro (assim como

para Weber), patrimonialismo refere-se a uma forma específica de dominação tradicional que

se opõe à dominação moderna, uma vez que a primeira se constitui sempre através de laços

pessoais ou privados, ao passo que a segundo se organiza segundo princípios impessoais.

Tal como para o sociólogo alemão, a questão da dominação é abordada a partir de um

viés mais propriamente político do que sociológico; quer dizer, importa, para esses autores,

sobretudo, delinear as instituições estatais ou para-estatais que garantem a obediência dos

governados (CAMPANTE, 2009a, p. 97). O racionalismo personalista que predomina na

ordem patrimonial é caracterizado, assim, como uma forma de dominação política avessa às

normas impessoais e rígidas próprias às democracias liberais:

Há, portanto, uma tensão profunda, conclui, entre as visões de mundo

marcadas pelo patrimonialismo personalista e noções de cunho liberal-

democrático, como a de lei universal, que junge mesmo os governantes e os

poderes político-estatais que as formulam e aplicam, ou como a da

necessidade, por parte dos governantes, de prestar contas ao povo de seus

atos políticos (CAMPANTE, 2009a, p. 117).

Como se vê, através da esclarecedora passagem, a tese de Faoro compreende as

Page 149: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

158

seguintes proposições: 1) no Brasil consolidou-se uma ordem política patrimonial; 2) essa

ordem é profundamente particularista e excludente, consolidando a cultura dos privilégios

concedidos pelo Estado a alguns grupos, e não a cultura dos direitos universais; 3) esse

Estado, pela sua própria organização, não estabelece uma cultura do público, distinta dos

interesses privados, favorecendo a ineficiência e a corrupção; 4) a democracia constitui-se

apenas superficialmente, não integrando o povo – o legítimo detentor da soberania política – e

o Estado; 5) não há liberdade plena porque o Estado não se constitui para assegurá-la

universalmente, mas para ameaçá-la. Em resumo, liberdade e democracia verdadeiras são

incompatíveis com a ordem política patrimonial brasileira.

Cumpre voltar um pouco na argumentação e destacar que a tese fundamental de Faoro

é que a estrutura de poder patrimonial constituída em Portugal desde o século XII foi

transplantada para a sua principal colônia no século XV, o Brasil, e, particularmente reforçada

pela vinda da família real portuguesa em 1808; mesmo a Independência, ou a Proclamação da

República, entre outros eventos de possível ruptura com nosso passado colonial, não foram

capazes de derruir por completo o patrimonialismo. Em outras palavras, o legado ibérico foi

decisivo na história brasileira como um passado a nos obstar o caminho à modernidade. Essa

se constituiria sempre num ideal buscado pela ação voluntarista de nossas elites, um plano

formulado “pelo alto” e imposto à nação, constituindo um processo de modernização, e não

de modernidade, sempre malogrado (FAORO, 1992). Nesse processo, o estamento incorpora

as ideologias estrangeiras, originalmente emancipadoras, como o liberalismo político, mas

apenas superficialmente, adequando-as aos seus interesses privados: “o estamento absorve as

técnicas importadas, refreando a elite ocidentalizadora, para que as novas idéias, as ideologias

não perturbem o domínio da sociedade, domínio, mesmo vestido de palavras novas,

tradicionalmente cunhado” (FAORO, 2001, p. 113).

A ordem patrimonial se caracteriza pelo fato de que “o poder político se organizar de

forma análoga e extensiva ao poder doméstico, patriarcal, e por isso se legitima pelo modelo

da autoridade tradicional e ao mesmo tempo arbitrária e compassiva do pater” (CAMPANTE,

2009a, p. 117). Trata-se, portanto, do conteúdo do poder político, privado e não público.

A formação política de Portugal inicia-se, por assim dizer, com o patriarcado, a casa

organizando a sociedade, agrária e voltada para o consumo. Com o advento da economia

monetária, surge o patrimonialismo, tendo “os companheiros do rei teriam se convertido

[gradativamente] em súditos e se estabeleceria o quadro administrativo” (RICUPERO, 2011,

p. 160). Tanto no patriarcalismo, quanto no patrimonialismo o fundamento do poder político é

Page 150: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

159

a devoção ao “pai”, isto é, o fundamento do poder é privado.

Essa figura resume e simboliza, em sua pessoa, a coletividade familiar, daí o

poder patrimonial ser fundamentalmente personalista, veiculando um tipo de

racionalismo particularista, avesso a estipulações normativas rígidas e

formais. A comunidade política, expandindo-se a partir da comunidade

doméstica, toma desta, por analogia, as formas e, sobretudo, o espírito de

“piedade” a unir dominantes e dominados (CAMPANTE, 2009a, p. 116-

117).

A dominação tradicional – tanto patriarcal quanto patrimonial – ignora a

impessoalidade e a igualdade típicas das ordens liberais capitalistas que configuram o cidadão

moderno. Todavia, as sociedades patriarcais típicas são marcadas pelo poder concorrente dos

senhores da casa; no patrimonialismo o Estado se consolida e suplanta esse poder. Dizendo de

outro modo, no patriarcalismo a esfera do oikos invade o domínio público, de tal modo que o

governante age publicamente como ainda um senhor da casa; no patrimonialismo, a esfera do

Estado interfere em toda vida social segundo o interesse do estamento e do próprio

governante. Em ambos, não se constitui separadamente esfera pública e esfera privada: no

patriarcalismo pela força da esfera da casa, no patrimonialismo pela ação onipresente do

Estado.82

O aparato estatal patrimonialista não está fundado num princípio de legitimação

racional e impessoal (como o contrato entre indivíduos livres), mas ainda no sentimento

tradicional de reverência dos súditos perante o governante. O líder patrimonial assume, assim,

uma feição política paternalista, mantendo seus “filhos” sempre em situação de heteronomia.

É, portanto, como uma situação específica e intermediária entre o Estado moderno, dotado de

suas burocracias, e as sociedades patriarcais tradicionais puras que Faoro caracteriza o

patrimonialismo

É preciso destacar que Faoro fala que o padrão político brasileiro é do tipo não apenas

patrimonial, mas, como já foi mencionado, “patrimonial-estamental”. Cumpre um

esclarecimento sobre a categoria de estamento, em longa, mas instrutiva passagem de autoria

do próprio Faoro:

Esta corporação de poder se estrutura numa comunidade: o estamento. Para a

compreensão do fenômeno, observe-se, desde logo, que a ordem social, ao se

afirmar nas classes, estamentos e castas, compreende uma distribuição de

poder, em sentido amplo – a imposição de uma vontade sobre a conduta

alheia. A estratificação social, embora economicamente condicionada, não

82

Assim, por exemplo, o conceito de patriarcalismo constituiu uma linhagem de interpretação importante no

Brasil, ligando autores como Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre: em todos eles,

destaca-se a preeminência do oikos na realidade política brasileira, sobretudo, dos grandes proprietários

rurais.

Page 151: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

160

resulta na absorção do poder pela economia. O grupo que comanda, no qual

se instala o núcleo das decisões, não é, nas circunstâncias históricas em

exame, uma classe, da qual o Estado seria mero delegado, espécie de comitê

executivo. A classe se forma com a agregação de interesses econômicos,

determinados, em última instância, pelo mercado. (...) A classe se forma de

um grupo disperso, não repousa numa comunidade, embora possa levar, pela

identidade de interesses, a uma ação congregada, a associações e

comunidades, criadas e desfeitas ao sabor das atividades propostas

ocasionalmente ou de fins a alcançar, em benefício comum. De outra

natureza é o estamento – primariamente uma camada social e não

econômica, embora possa repousar, em conexão não necessária real e

conceitualmente sobre uma classe. O estamento político – de que aqui se

cogita, abandonado o estamento profissional, por alheio assunto – constitui

sempre uma comunidade, embora amorfa: os seus membros pensam e agem

conscientes de pertencer a um mesmo grupo, a um círculo elevado,

qualificado para o exercício do poder. A situação estamental, a marca do

indivíduo que aspira aos privilégios do grupo, se fixa no prestígio da

camada, na honra social que ela infunde sobre toda sua. (...) Ao contrário da

classe, no estamento não vinga a igualdade das pessoas – o estamento é, na

realidade, um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade

social (2001, p. 60-62).

Percebe que a definição de estamento é formulada por contraposição à de casta e,

principalmente, de classe. O primeiro conceito diz respeito a uma comunidade diferenciada

pelo seu status político, pela honra, pelo seu estilo de vida, ao passo que a classe se define

pelo mercado, isto é, pela posição na distribuição de bens e serviços; o estamento se define

pelo que consome, a classe pelo que produz. Ao contrário das classes que, em seu interior,

desconhecem diferenciações pessoais, a lógica social dos estamentos é a da desigualdade,

segundo a qual o maior ou menor prestígio, decorrente de sua proximidade dos centros

decisórios de poder, discrimina os indivíduos.83

Como se vê, Faoro, ao incorporar o referencial teórico weberiano acaba por assumir

implicitamente a ideia de que as classes se constituem economicamente à revelia do Estado e

da política. Cumpre observar, no entanto, que as classes econômicas são, obviamente,

constituídas por meio da política, por exemplo, ao Estado garantir jurídica e coercitivamente a

propriedade privada. Não se deve, ao contrário do que as obras de Weber e Faoro sugerem,

balizar a diferença entre classe e estamento como uma expressão da diferença

ontologicamente anterior entre economia e política.

Na interpretação de Faoro, como o rei de Portugal estabelecia desde a formação do

Estado nacional monopólios e privilégios, não foi possível que se constituísse um mercado

competitivo, desimpedido das imposições estatais; logo, as classes sociais não constituíram os

83

Rubens Campante observa que enquanto Weber fala sempre em estamentos no plural, Faoro refere-se ao

estamento político brasileiro, como uma comunidade uma e homogênea (CAMPANTE, 2009a, p. 113).

Page 152: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

161

grupos sociais que tipificam os países capitalistas modernos (RICUPERO, 2011, p. 161). Seu

poder acabou se apoiando não na aristocracia rural ou, posteriormente, na burguesia, mas no

próprio estamento político. O diagnóstico vale, obviamente, tanto para a metrópole quanto

para sua colônia, o Brasil, que incorporou o mesmo modelo de civilização.

Um aspecto digno de nota na longa passagem supracitada é a deliberada contestação

por parte de Faoro de uma visão marxista ortodoxa da política. Mais do que negar qualquer

influência de Marx sobre esse autor, o que parece ser correto é sinalizar a sua insatisfação

com autores de influência marxista, na medida em que, para Faoro, cumpre reafirmar a parcial

independência da política em relação à economia, ao caracterizar o grupo politicamente

dominante não como uma classe que faz do Estado uma espécie de “comitê executivo”

próprio. Já no prefácio à segunda edição d’ Os donos do poder o autor esclarece: “o ensaio se

afasta do marxismo ortodoxo, sobretudo ao sustentar a autonomia de uma camada de poder,

não diluída em uma infra-estrutura esquemática, que daria conteúdo econômico a fatores de

outra índole” (FAORO, 2001, p. 13). O estamento, conseguintemente, não é uma classe

social, nem o Estado mero instrumento de dominação de classe. Tampouco, diz ele, o

estamento constitui-se em uma elite, no sentido atribuído ao termo pelos autores elitistas, quer

dizer, Mosca, Pareto e Michels.

A nobreza burocrática, vincada pela tradição apurada da secular aristocracia,

não se confunde com a elite, a classe política ou dirigente, a oligarquia

destilada pela ação organizatória de grupo. (...) Só por abuso terminológico,

por transposição analógica, confundir-se-á a aristocracia com a elite, erro de

que se acautelou Pareto. (idem, ibidem, p. 108-109).

As elites, tal como compreendidas por esses autores, referem-se a uma experiência da

Modernidade, mais precisamente ao temor das classes médias nos séculos XIXI e XX em

relação à incorporação política das massas, um temor da “sombra de Rousseau” (idem,

ibidem, p. 109). O estamento é, ao contrário, um fenômeno anacrônico, com características

pré-modernas, uma aristocracia não mais de sangue ou agrária, mas “burocrática” e política.

Mas quem, então, compõe socialmente o estamento? Faoro não parece dar uma

resposta clara a essa questão decisiva. Daí porque se ressente, com freqüência, da falta de uma

análise mais detida acerca dos fundamentos sociais do patrimonialismo na obra faoriana,

como aponta, por exemplo, Francisco Iglésias a respeito de seu par conceitual, o estamento:

A insistência no estamento burocrático pode ter sua razão, mas nem sempre é

esclarecida. O que é mais digno de nota é que a interpretação que daí resulta

é às vezes frouxa. Dizer que o estamento burocrático é que conta pode

colocar ao leitor uma pergunta: quem o constitui, quais as pessoas que o

configuram? Se o livro pretende analisar os donos do poder e a formação do

Page 153: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

162

patronato político, poder-se-ia afirmar, em síntese, que o poder é conduzido

pelo estamento burocrático. O que não é dizer muito, pois cabia dizer quem é

ele, quem o constitui. (2009, p. 55-56).

Iglésias critica com certa razão a ausência de uma caracterização mais detalhada do

estamento político brasileiro, isto é, o ator central na trama de nossa história. Entretanto, essa

ausência, não se justifica, mas se explica tendo em vista que a perspectiva adotada pelo livro,

como se disse antes, é político-institucional, mais do que propriamente sociológica. Nesse

sentido, Os donos do poder é um livro de interpretação política do Brasil, não uma obra, a

rigor, de Sociologia. Seu foco é o Estado brasileiro e o estamento que nele se instaurou desde

nossa origem colonial, não nossa estrutura social. De qualquer modo, fica evidente uma

limitação da obra de Faoro, na medida em que sua análise política fica carente de maior

fundamentação sociológica. Sobre o sentido da noção de estamento na obra de Faoro,

Campante comenta:

Na verdade, se substituíssemos, nas páginas do livro, o termo “estamento”

por “patronato político” ter-se-ia um grande ganho compreensivo – pois é

disto, em último caso, de que Faoro fala: de um patronato que ele vê

definido em termos políticos e não propriamente sociológicos (2009a, p.

114).

O estamento se define politicamente por ser ele o grupo que governa, ao contrário, diz

Faoro, das classes que negociam. A crítica de Iglésias acerca da noção faoriana de estamento

refere-se também à aparente indecisão do autor em considerá-lo como parte integrante do

Estado ou diferenciá-lo do líder patrimonial. De fato, não fica claro qual é o significado

sociológico do termo, como antes já destacamos.

O Estado é assim apropriado espuriamente pelo estamento burocrático que o

instrumentaliza para seus interesses privados. O povo é assim alijado do

poder que se torna apanágio do patronato que se comporta como se fosse o

legítimo proprietário da soberania: “(...) Faoro também aponta que este

Estado patrimonial é, na verdade, instrumentalizado por um estamento

burocrático, que assim impõe ao restante da sociedade seus critérios e

objetivos particularistas (...)” (CAMPANTE, 2008, p. 183).

Cumpre esclarecer que quando se fala em estamento burocrático não se está tratando

da burocracia em seus moldes modernos, tal como retratada por Weber. Ao estamento

burocrático falta o espírito tipicamente moderno, a impessoalidade, a meritocracia respaldada

em um saber técnico, a racionalidade instrumental:

O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio

com o estamento, de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no

sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da apropriação do

cargo – o cargo carregado de poder próprio, articulado com o príncipe, sem

Page 154: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

163

a anulação da esfera própria de competência (FAORO, 2001, p. 102, grifos

nossos).

Estamento político ou patronato político que vive em função dos privilégios, do

tratamento diferenciado, que necessita da distinção social conferida pelo status para manter

todo o resto da população numa situação de dominação e dependência. Ele não é

propriamente uma casta, um grupo social totalmente fechado; tampouco é uma classe social,

marcada pela delimitação econômico-produtiva, permeabilidade e igualdade interna entre seus

pares. Como grupo social semi-fechado que se encastela no Estado, um aparato burocrático

pré-moderno e pré-capitalista, o estamento se diferencia pelo seu estilo de vida, pela

ostentação e luxo, “pelo consumo improdutivo que lhes transmite prestígio” (FAORO, 2001,

p. 103), pelo desprezo ao trabalho rotineiro e manual e pela valorização dos títulos

honoríficos; o estamento – engendrado endogenamente pelo próprio sistema político – se

diferencia de todo o resto da sociedade numa formação social de tipo de uma pirâmide: sem

contato com a base da pirâmide, o estamento desdenha dela, formulando um saber e uma

cultura escolástica, alheio aos problemas da maioria.

O estamento constitui, para esse autor, o principal entrave à modernidade brasileira,

pois ele “se fecha sobre a nação, apropria-se da soberania nacional, controla o governo,

amesquinhando as demais classes, indiferente à autonomia do reino” (FAORO, 2001, p. 106).

Como presença incômoda, a organização estamental atravessa “muitos séculos: séculos

portugueses e séculos brasileiros, todos unidos sob a mesma linha, intangível ao corte, à

renovação e ao desaparecimento” (idem, ibidem, p. 107). Mais adiante, o tom pesaroso do

texto é reiterado: “quatro séculos de hesitações e de ação, de avanços e recuos, de grandeza e

de vacilação serão a resposta de um passado teimosamente fixado na alma da nação” (idem,

ibidem, p. 114).

Passando da noção de estamento para a de patrimonialismo estamental, cumpre

considerar que, como lembra Campante, o significado desse conceito em Faoro destoa do

significado atribuído por Weber, referidos às sociedades patrimoniais fortemente

descentralizadas ou mesmo feudais.84

Ora, na opinião de Faoro, o Brasil está longe de poder

ser caracterizado como feudal em qualquer momento de sua história. Concordando com

diversos historiadores (com o português Alexandre Herculano e com brasileiro Caio Prado Jr.,

por exemplo, pouco citado no texto, mas decisivo quanto à polêmica no país acerca de nosso

84

Campante (2009a, p. 118-119) demonstra que a diferenciação entre patrimonialismo e feudalismo por Weber

não é, todavia, precisa e destituída de variações.

Page 155: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

164

suposto feudalismo), Faoro insiste que Portugal, e por conseqüência, o Brasil, jamais

conheceu algo próximo dessa realidade social: “Patrimonial e não feudal o mundo português,

cujos ecos soam no mundo brasileiro atual (...)” (FAORO, 2001, p. 35). Ao contrário da

sociedade feudal que desconhece o Estado nacional, dada a dispersão do poder pela

sociedade, no patrimonialismo, o soberano se sobrepõe de modo onipotente ao cidadão: “na

sua falta [do feudalismo], o soberano e o súdito não se sentem vinculados a noção de relações

contratuais, que ditam limites ao príncipe e, no outro lado, asseguram o direito de resistência,

se ultrapassadas as fronteiras de comando” (idem, ibidem, p. 35). Como observa Bernardo

Ricupero:

Estaria aí, para Faoro, a excepcionalidade portuguesa e depois brasileira. A

experiência de dominação tradicional da metrópole não teria conhecido

feudalismo, tendo sido quase imediata a transição do patriarcalismo para o

patrimonialismo (2011, p. 160).

Vê-se, portanto, pela própria forma como o poder é organizado que toda a ideia de

direitos individuais, própria da ordem liberal e impessoal, e que teve como precedente o

feudalismo, não poderia vingar enquanto o patrimonialismo estamental subsistisse: “o sistema

patrimonial, ao contrário dos direitos, privilégios e obrigações fixamente determinados do

feudalismo, prende os servidores numa rede patriarcal, na qual eles representam a extensão da

casa do soberano” (FAORO, 2001, p. 38). Sobre a adoção do patrimonialismo pelo Brasil

colônia, o Faoro afirma:

O direito se dirigia ao delegado real, ao agente do soberano, e só daí se

projetava ao indivíduo, instrumento de desígnios superiores, vigiado de

cima, do alto, sem autonomia moral e sem incolumidade jurídica (...). Não

havia, a rigor, direito civil, nem direito comercial, mas direito

administrativo, que se prolonga na tutela de direitos dos indivíduos,

presos e encadeados, freados e jungidos à ordem política (2001, p. 85-86,

grifos nossos).

A inexistência de uma ordem jurídica que garanta a autonomia individual atravessa a

história de nosso país como uma mácula permanente que, para o autor, nos obsta o acesso às

benesses da civilização moderna e ocidental. Como dissemos anteriormente, estamento se

opõem à classe não porque essa seja uma categoria puramente econômica, mas porque à

formação de uma sociedade de classes, em alguns países do Ocidente, verificou-se à

concomitante e gradual consolidação da cidadania moderna.

Isso significa que quando Faoro está enfatizando a onipresença do estamento político

na história do Brasil ele está, ao mesmo tempo, denunciando a ausência secular do cidadão em

nosso país. Para esse autor, o avesso do estamento é precisamente o cidadão moderno,

Page 156: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

165

portador de direitos e deveres e que participa da organização do poder político, do mesmo

modo que o contrário do patrimonialismo é a soberania popular. Desse modo, diz Faoro, a

organização estamental desconhece o governo plebeu, pois nela “a soberania popular funciona

às avessas, numa obscura e impenetrável maquinação de bastidores, sem o efetivo concurso

da maioria, reduzida a espectador que cala ou aplaude” (idem, ibidem, p. 111).

3.2 – Capitalismo politicamente orientado

O rei é o bom príncipe, preocupado com o bem-estar dos súditos, que sobre

eles vela, premiando serviços e assegurando-lhes participação nas rendas.

Um passo mais, num reino onde todos são dependentes, evocará o pai do

povo, orientado no socorro dos pobres. Ao longe, pendente sobre a cabeça do

soberano, a auréola carismática encanta e seduz a nação (FAORO, 2001, p.

103).

A dominação do Estado “paternalista”, própria ao patrimonialismo, impede o livre

desenvolvimento da sociedade civil, das classes e seus interesses, tornando-as dependentes do

primeiro. Ao invés de se constituir em um árbitro das disputas e relações entre os diversos

grupos da sociedade civil, como se dá em um Estado moderno, no patrimonialismo, o Estado

é parte integrante e, mais, protagonista dessas disputas e relações, de tal modo que a melhor

estratégia para ter seus interesses e demandas atendidas passa pelo acesso privilegiado e

particularista ao Estado, seus dirigentes e sua “burocracia”.

Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre todos os súditos, senhor da

riqueza territorial, dono do comércio – o reino tem um dominus, um titular

da riqueza eminente e perpétua, capaz de gerir as maiores propriedades do

país, dirigir o comércio, conduzir a economia como se fosse empresa sua

(idem, ibidem, p. 38).

Não é demais pontuar nesse passo que Faoro, ao partir da sociologia weberiana, acaba

assumindo alguns de seus pressupostos, isto é, de que o Estado possa vir a ser um ente

imparcial no conflito entre os interesses particulares. A nosso ver, longe de arbitrar “à

distância”, o Estado constitui-se como regulador que define quais disputas são legítimas,

quais são os meios legítimos dela, organizando diretamente os campos de interesses em

conflito.

De qualquer modo, como se vê, para Faoro, o caráter patrimonial se estende não

apenas sobre a organização política, mas influi decisivamente nos contornos de sua

estruturação econômica. Apropriando-se de mais uma noção weberiana, Faoro afirma que

tanto Portugal, quanto no Brasil (em nosso caso, valendo o diagnóstico até a atualidade, na

Page 157: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

166

opinião do autor) desconhecem o capitalismo moderno, genuíno, sendo o Estado um meio que

o líder patrimonialista encontra para aumentar suas riquezas.

Os países revolvidos pelo feudalismo, só eles, na Europa e na Ásia,

expandiram uma economia capitalista, de molde industrial. A Inglaterra, com

seus prolongamentos dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, a França, a

Alemanha e o Japão lograram, por caminhos diferentes, mas sob o mesmo

fundamento, desenvolver e adotar o sistema capitalista, integrando nele a

sociedade e o Estado. A Península Ibérica, com suas florações coloniais, os

demais países desprovidos de raízes feudais, inclusive os do mundo antigo,

não conheceram as relações capitalistas, na sua expressão industrial, íntegra

(idem, ibidem, p. 40-41).

Do ponto de vista de Faoro, os países que não conheceram o feudalismo, como

Portugal e o Brasil, não vivenciaram, outrossim, a economia de mercado com sua

racionalidade típica e a dinâmica classista que a caracterizam. Ao invés dessa economia ser

movida pela ação com vistas ao lucro, numa ordem impessoal e previsível, ela fica marcada

pela ação do Estado que por meio do tratamento diferenciado aos indivíduos impede a

predominância das relações capitalistas.

O Estado torna-se uma empresa do príncipe, que intervém em tudo,

empresário audacioso, exposto a muitos riscos por amor à riqueza e à glória;

empresa da paz e da guerra. Estão lançadas as bases do capitalismo de

Estado, politicamente condicionado (...) (idem, ibidem, p. 40).

Se do ponto de vista político, portanto, o patrimonialismo se expressa pela atrofia da

sociedade civil, a apatia popular e o privatismo do Estado, do ponto de vista da economia essa

formação social se caracteriza pela ausência de uma sociedade tipicamente competitiva.

Como observa Campante, ao contrário do que usualmente se pensa, para Weber, o que

caracteriza o capitalismo moderno não é propriamente o desejo de ganho material, mas a

existência de uma ordem em que tal desejo possa ser buscado segundo uma lógica

disciplinada e racional, isto é, através da exploração ordenada e previsível do trabalho e das

oportunidades da sociedade de mercado. Faoro, portanto, incorpora a distinção weberiana

entre capitalismo moderno ou industrial e capitalismo politicamente orientado ou capitalismo

de Estado. Como diz o intérprete:

Assim, o patrimonialismo, segundo Weber, impede a economia racional pelo

caráter errático, casuístico, imprevisível de sua política fiscal, de seu

“modelo” administrativo e de seu sistema jurídico. Desta forma, sob a

dominação de poderes patrimoniais pode, sim, florescer o capitalismo, mas

aquele de tipo monopolista, ou de arrendamento de tributos e cargos, ou de

fornecimentos ao Estado e de financiamento de guerras, ou o capitalismo

colonial e de plantation (...) (CAMPANTE, 2009a, p. 110).

Page 158: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

167

Diferentemente do capitalismo moderno ou industrial, orientado pela exploração

calculada das oportunidades do mercado, o capitalismo de Estado é marcado pela exploração

casuística de monopólios, concessões, isenções e outros privilégios concedidos pelo líder

patrimonial e pelo estamento a certos grupos sociais, temporariamente:

O capitalismo comercial, politicamente orientado, só ele compatível com a

organização política estamental, sempre gradativamente burocrática, ajusta a

si o direito, limita a ideologia econômica, expande-se em monopólios,

privilégios e concessões (FAORO, 2001, p. 87).

Assim, contrariamente ao padrão moderno ocidental, no patrimonialismo o Estado não

se assume enquanto fiador de uma ordem que permite aos atores econômicos a ação calculada

relativa a fins; trata-se de uma ordem personalista, na qual o acesso privilegiado e

diferenciado ao poder político – e não a ação economicamente eficiente – leva ao ganho

material; exatamente por ser personalista, o capitalismo politicamente orientado é também

uma ordem econômica na qual prepondera o casuísmo e o arbítrio. Como sintetiza Campante:

Não há “regras do jogo” estáveis na economia, pois elas atendem ao

subjetivismo de quem detém o poder político. Esse arremedo de capitalismo,

afirma Faoro, adota do moderno capitalismo a técnica, as máquinas, as

empresas, sem aceitar-lhe, contudo, a “alma” - a racionalidade impessoal e

legal-universal. Um arranjo tradicional, mas maleável frente à modernidade,

a qual aceita seletivamente, mas sem que esta lhe modifique a racionalidade

personalista e casuística. Assim, o capitalismo não brota espontaneamente da

sociedade, mas vicia-se no estímulo e na tutela estatal: tire-se do capitalismo

brasileiro o Estado e pouco ou nada sobrará, adverte Faoro (2009a, p. 111).

Obviamente que Faoro (nem tampouco Weber) não está considerando que o

capitalismo de tipo industrial dispensa o Estado. No capitalismo moderno, o Estado é também

fundamental para garantir a existência de uma ordem jurídica impessoal que torna possível a

calculabilidade da ação; no capitalismo politicamente orientado, mais do que isso, o Estado é

importante porque ele é o principal meio de ganho econômico, através das diversas

modalidades de privilégios.

3.3 – Soberania popular, legitimidade e liberdade

Como vimos, para Faoro, tanto o passado político português, quanto o brasileiro,

desconheceram a organização política genuinamente popular, sendo a soberania apropriada

privadamente pelo estamento que se formou em torno ao Estado. De fato, a ausência do povo,

como ator político independente e autônomo, contrasta na grande narrativa de interpretação

Page 159: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

168

que é Os donos do poder com a tutela do estamento em relação ao primeiro. Nesse sentido,

podemos ler essa obra como uma denúncia do autor a nossa história que negou

sistematicamente o povo como legítimo detentor da soberania no Brasil. Do ponto de vista

normativo, Faoro se opõe frontalmente à linguagem política liberal conservadora, inclusive

em sua vertente weberiana. Como nota Campante:

Enquanto Weber parte, como já visto, de uma postura trágica e aristocrática,

que repele a junção entre razão e normatividade, e cuja expressão

metodológica é o recurso heurístico ao conhecimento condicional e

relativista do tipo-ideal, o pensamento de Faoro é, fundamentalmente, ético-

político, ou seja, compreende, além das dimensões analíticas e descritivas,

uma avaliação normativa – que nada tem de condicional ou relativista - da

relação política entre os homens, um olhar crítico sobre os valores e

condicionamentos políticos que, no Brasil, levaram à formação de um

padrão de sociedade marcado pela falta ou insuficiência de Liberdade – tese

que é mais “filosofia” que “ciência” política (2009a, p. 126).

Isso significa inicialmente que a obra de Faoro tem explícita e claramente um

propósito de avaliar a realidade brasileira segundo um dever-ser que consiste na defesa de um

projeto político que se contrapõe à realidade patrimonial e estamental. Além de se diferenciar

de Weber (para quem o politeísmo de valores e a impossibilidade da ciência justificar juízos

de valor faziam com que suas proposições assumissem um caráter relativista e desencantado),

Faoro se distancia dessa referência teórica na medida em que à democracia e à liberdade são

atribuídos significados que superam a abordagem procedimentalista da democracia e a visada

privatista da liberdade. Se Faoro pode ser considerado, portanto, um liberal, é com certeza de

um outro tipo de liberalismo do assumido pelo sociólogo alemão. Novamente, a análise

precisa de Campante nos serve como baliza:

Uma filosofia política [a de Faoro] prenhe de um liberalismo que não se

limita ao âmbito formal e muito menos ao chamado “liberismo” econômico,

ao liberalismo puramente de interesses econômicos – é um liberalismo de

direitos, afim à democracia, que expressa um comprometimento ético-

filosófico com a ideia (sic) de Liberdade entendida como um postulado de

dignidade e de capacidade intrínseca de todo ser humano. Ou seja, o

conceito original de patrimonialismo, construído por Weber a partir de uma

perspectiva não só instrumental em relação ao objetivo de entendimento da

civilização ocidental, mas também pessimista, formal e elitista, foi

introduzido, no Brasil, por um intelectual liberal clássico, iluminista, em cuja

postura não há dissociação entre razão e compromisso ético/emotivo com a

vida. Um pensador que talvez Weber definisse como essencialista, tributário

do que ele chamava de uma “cosmovisão” - mas é justamente isso que se

traduz em um liberalismo no qual há, ao contrário do que ocorre em Weber,

possibilidade de uma ética com conteúdo universal (2009a, p. 126).

Ao contrário de Weber que, partindo do diagnóstico trágico e resignado da crescente

Page 160: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

169

racionalização do mundo moderno e da inevitável perda de liberdade dos indivíduos, sendo a

democracia de massas uma “escola” de elites que poderiam funcionar como contrapeso

parcial ao processo de aumento de poder das burocracias, Faoro compreende que um poder

político legítimo deve ser necessariamente fundamentado num corpo político ampliado e

mobilizado para o interesse público. Dessa feita, se a sociologia weberiana produziu toda uma

linhagem liberal conservadora, consolidada pelos autores posteriores denominados de elitistas

(AVRITZER, 1996), a leitura política de Faoro sobre o Brasil o identifica claramente das

vertentes cívicas da linguagem liberal e o aproxima da linguagem política republicana85

.

Sobre as linguagens liberais, fica claro, como já se disse, que Faoro não apenas

distancia-se, mas contesta o liberalismo puramente econômico, dos interesses (o também

chamado “liberismo”), vendo nele não a solução, mas a consolidação da cultura do privilégio,

do favorecimento, da exclusão e da distinção social que marcou a história patrimonial

brasileira. Nesse sentido, interpretações como de Luiz Werneck Vianna (1999) que o

aproximam desse tipo de linguagem política nos parece insustentáveis. Não é o liberalismo de

mercado, mas sim o dos direitos universais, das garantias inalienáveis de todo indivíduo, da

separação dos poderes como freio contra o arbítrio, que Faoro adota em sua narrativa.

Nesse sentido, cumpre anotar que a diferenciação e a imputação de uma suposta

contradição entre o Faoro “pensador” e o Faoro “ator político”, isto é, entre, de um lado, um

suposto intelectual anti-estatista e apologético do mercado e, de outro lado, o conhecido

militante da defesa dos direitos dos brasileiros e corresponsável, como presidente da OAB

(Ordem dos Advogados do Brasil), pelo retorno do habeas corpus no país no contexto da

ditadura é absolutamente improcedente. Faoro, ator político e teórico, deve ser visto como

severo crítico do liberalismo que naturaliza a exclusão social e que restringe a liberdade,

como ele mesmo diz:

Se o Estado de Direito se volta à contenção da força pelo direito, ele está

diante do problema da liberdade, que lhe cumpre guardar e amparar. (...)

O liberalismo apenas armado contra o Estado mostrou-se incapaz, pela

feição elitista, de corporificar uma doutrina democrática de governo –

não admira, portanto, que, no governo, os liberais fossem conservadores

ainda mais enragés do que aqueles que se sucediam nos postos.

Faltava-lhe a disposição de banhar-se nas águas, às vezes turbulentas, do rio

que atravessa e inunda a cidade política (FAORO, 2009, p. 21-22, ênfase do

autor, grifos nossos).

85

Avaliaremos no sexto capítulo desta tese a obra de Fernando Henrique Cardoso, outro pensador brasileiro a

recorrer à noção weberiana de patrimonialismo. Veremos como, nesse caso, a crítica ao Estado patrimonial se

vincula à defesa de um “liberalismo de mercado”, inclusive avaliando texto do próprio Cardoso a respeito da

obra de Faoro, evidenciando as diferenças o campo teórico e normativo dos dois.

Page 161: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

170

A citação acima, retirada de um discurso proferido por Faoro como presidente da

OAB, revela o compromisso político e ético desse intelectual com a ordem dos direitos, da

liberdade e da democracia, numa época do país em que elas eram tão dura e flagrantemente

ameaçadas, compromisso esse também constatável em sua “obra teórica”.

Assumimos a leitura que vê na obra de Faoro, sobretudo em suas publicações mais

tardias, um crescente interesse por autores que não se adéquam às linguagens liberais, sendo

ao contrário, crítico delas, tais como Maquiavel, Rousseau e Hegel. No prefácio à segunda

edição de Os donos do poder, o próprio Faoro adverte (imediatamente após a asseverar que

“este livro não segue, apesar de seu parentesco, a linha de pensamento de Max Weber” e que

“se afasta do marxismo ortodoxo, sobretudo ao sustentar a autonomia de uma camada de

poder, não diluída numa infraestrutura esquemática”) que “estão presentes, nas páginas que se

seguem, os clássicos da ciência política, Maquiavel e Hobbes, Montesquieu e Rousseau,

relidos num contexto dialético” (2001, p. 13).

Acreditamos que Faoro encontrou na sociologia weberiana um conjunto de conceitos

que permitiu a ele a compreensão ampla do processo de organização do poder político no

Brasil, sobretudo através dos conceitos de patrimonialismo e estamento. Entretanto, a própria

utilização seletiva e heterodoxa desses conceitos revela que as afinidades entre Faoro e Weber

paravam por aí. Se em Weber nos deparamos com uma visão elitista e pessimista da política,

em Faoro há certamente um outro horizonte de possibilidades. A identificação precisa quanto

à diferença normativa entre esses autores é feita por Campante: de acordo com esse autor,

Faoro parte precisamente do “substrato ético-político” que para Weber, em função do

politeísmo moral, era impossível de ser estabelecido, qual seja, o jusnaturalismo.

Direitos subjetivos inatos, liberdade, contrato social, constitucionalismo,

primado da Lei impessoal. Foi dessa fonte doutrinária, dessa manifestação

específica e moderna da antiga e caudalosa tradição do Jusnaturalismo que

Faoro bebeu. Assim, não será à maneira formal-elitista de Weber, mas à

maneira democrática de Rousseau que Faoro irá fundamentar o poder

político na extensão, no espraiamento, e não na contenção e exclusão - o

poder político é tão mais legítimo quanto mais pessoas o possuam, um

modelo baseado no consentimento e na participação. Nesse entendimento, o

que a exclusão e a concentração social de poder veiculam não é

propriamente um poder político legítimo – é algo que está mais para a força

bruta. E, como dizia Rousseau, da força não nasce nenhuma moralidade, e,

portanto, nenhum direito, e, portanto, nenhuma obrigação de obediência.

Esta é a grande, certeira e reiterada mensagem de Faoro: a permanência

secular, entre nós, de um padrão oligárquico e ilegítimo de poder político

(CAMPANTE, 2009a, p. 127).

Assim, se Weber forneceu a esse autor o instrumental analítico fundamental de

Page 162: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

171

interpretação do país, foi em autores como Maquiavel, Rousseau, e Hegel – proponentes de

uma visão distinta de liberdade e Estado em relação à visão liberal – que Faoro encontrou o

horizonte normativo que norteia seu trabalho. A principal razão disso é que em Weber, como

vimos, o sentido de liberdade fora profundamente restringido, dado o inexorável processo de

racionalização e burocratização do mundo moderno, além da inviabilidade, para esse autor,

que a política pudesse constituir um modo de vida para o cidadão comum participar. Como

diz Juarez Guimarães, porque a liberdade está no epicentro das preocupações teóricas e

existenciais de Faoro que a ciência política weberiana mostra-se profundamente limitada,

tendo esse autor, conseguintemente, que se voltar para as linguagens da filosofia política que

compreendem a política como realidade instituída a partir da liberdade humana.

A advertência de Faoro deveria ser levada a sério. Isto é, ao não encontrar na

obra de Marx e nas leituras sociológicas da cultura marxista uma

problematização conceitual densa do tema da formação do Estado, de sua

soberania, de sua legitimação, Faoro voltou-se para a obra de Weber, fazendo

um uso livre de suas categorias e (...) buscando a linguagem da filosofia

política.

(....)

É este Faoro com Weber-além-de Weber, que utiliza a sua sociologia da

dominação mas busca uma linguagem própria da soberania popular e dos

direitos do cidadão, que evidencia a riqueza e os impasses da sua obra

(GUIMARÃES, 2009, p. 88,).

Assim, aquilo que para Weber constituía não só algo inevitável, mas na modernidade

algo cada vez mais evidente – a dominação política – para Faoro é aquilo que cumpre superar.

Sua apropriação do conceito de patrimonialismo estamental, portanto, depende de um

compromisso do autor com um valor ontologicamente anterior ao uso desse conceito, a saber,

a liberdade. Dizendo de outro modo, a obra de Faoro consiste na denúncia persistente e

indignada de que em nosso país se consolidou uma organização política, na bela

caracterização feita por Campante, “liberticida” (2009b, p. 138). Concordamos, então, com a

avaliação desse intérprete, para quem” a grande, certeira e reiterada mensagem de Faoro” é “a

permanência secular, entre nós, de um padrão oligárquico e ilegítimo de poder político (idem,

ibidem, p. 138).

Vê-se que o problema fundamental de Faoro é a legitimidade do poder político, tema

tratado novamente pelo autor no texto Assembléia Constituinte: a legitimidade recuperada.

Um poder político iletígimo, imposto pela força, pelo mando tradicional (como é típico no

Brasil patrimonial) não produz uma moralidade pública, absolutamente necessária ao bom

governo. Em passagem com inspiração claramente rousseuaniana, Faoro adverte seus

contemporâneos: “o arbítrio, ainda quando cercado de “leis”, embora se proteja na força, não

Page 163: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

172

consegue estabelecer as bases de nenhum governo efetivo e estável” (1981, p. 13). O texto

escrito durante o processo de abertura política no país, apontava para a necessidade de

restauração da autoridade política que dependia que não reiterássemos o padrão do conchavo,

de transação e de acordo intra-elites, isto é, que o povo fosse efetivamente tomado como

aquele a quem justamente compete o exercício do poder: “é axiomático afirmar que, se todo o

poder emana do povo, a atividade constituinte é que lhe confere expressão, revelando a raiz da

legitimidade” (idem, ibidem, p. 95). Como observa Kátia Mendonça (1995, p. 187-188), a

onipresença do patronato político na história brasileira comprovava-se, entre outros fatores,

pela recorrência das transações e conciliações feitas no país a fim de se evitar uma

transformação sócio-política mais profunda, tais como ocorridas na formação do Império, na

Abolição da escravatura, na proclamação da República, etc.

Assim, o patronato político brasileiro que exclui o povo das decisões públicas, que se

apropria da soberania como se fosse patrimônio particular, que instrumentaliza o Estado para

garantir seu status quo, solapa por si só qualquer legitimidade que possa vir a ter o Estado

brasileiro na medida em que esse prescinde da participação e do consentimento da maior parte

dos seus cidadãos. Por outro lado, um poder político privatista e autocrático não permite

qualquer tipo de responsividade, essencial à vida democrática. O autor clamava à época,

contra as propostas reformistas (de reformas pontuais à Constituição vigente à época e

legitimada pelos ditadores), pela constituição de uma assembléia constituinte exclusiva,

condição indispensável para superação de nosso atraso patrimonial e não democrático:

O que há no Brasil de liberal e democrático vem de suas constituintes e o

que há no Brasil de estamental e elitista vem de suas outorgas, das emendas

e dos atos de força. Nunca o Poder Constituinte conseguiu nas suas quatro

tentativas vencer o aparelhamento de poder, firmemente ancorado ao

patrimonialismo de Estado, mas essas investidas foram as únicas que

arvoraram a insígnia da luta, liberando as energias parcialmente frustradas. O

malogro parcial não presta como argumento contra as constituintes, senão

que , ao contrário, convida a revitalizá-las, uma vez que, franqueadas das

escoltas estatais e autoritárias, encontrarão, o rumo da maioria e da

sociedade real, sempre jugulada pela sociedade política oficial. O que a

imperfeição da obra mostra é, apesar da adversidade, que o rio da

democracia não tem outro leito onde possa correr (FAORO, 1981, p. 92).

Faoro tinha plena consciência das dificuldades de se romper com esse padrão ilegítimo

de poder político que é o patrimonialismo estamental e, segundo alguns intérpretes, teria até

enfatizado excessivamente essas dificuldades, resultando numa visão pessimista sobre o

Brasil. Bernardo Ricupero, por exemplo, observa que não se encontra em Os donos do poder

um “programa positivo” para o país, e que a única esperança é depositada no surgimento de

Page 164: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

173

um novo grupo social, composto pelo proletariado urbano, pela pequena burguesia, etc., mas

que mesmo assim, poderá apenas, ao cabo, reforçar o poder do estamento burocrático e não

destruí-lo. Ele conclui: Faoro “fornece uma visão fundamentalmente desesperançada da

política e da sociedade brasileira (2011, p. 177). Renato Lessa caracteriza, no mesmo

diapasão, a narrativa de Faoro como um verdadeiro “pesadelo”, “uma história que a todo

momento repõe as razões de seu atraso” (2009, p. 67). O próprio título do capítulo de

encerramento da obra Os donos do poder, “A viagem redonda: do patrimonialismo ao

estamento”, sugere a ideia de que estaríamos presos a um tempo circular, condenados a viver

em um padrão político de exclusão e dominação. É fácil identificar nessa obra passagens a

justificar um total pessimismo quanto ao futuro do Brasil (MENDONÇA, 1995, p.191-192).

Obviamente que o contexto político pouco auspicioso tanto da primeira edição do livro

Os donos do poder (1958) e, principalmente, da segunda edição (1975) explica em parte o

pessimismo do autor. Todavia, se considerarmos as obras posteriores do autor, como

Assembléia Constituinte acima citada, em que a tese central de Os donos do poder é reiterada,

é evidente que o autor não só ansiava pela superação de nosso atraso, como também via

algumas possibilidades reais de que isso viesse a ocorrer. Essas possibilidades indicam, como

mostramos, que a superação do patrimonialismo requeria a democratização do poder, única

forma possível de restauração da autoridade política legítima.

A questão sobre o pessimismo de Faoro é derivada da interpretação de que a tese do

patrimonialismo redunda numa visão “imobilista” da história brasileira. É verdade que a

leitura de Os donos do poder por vezes provoca no leitor a sensação de que ao longo de cinco

séculos, tudo mudou no Brasil, permanecendo, paradoxalmente, a mesma coisa (Cardoso,

2013). Não é o caso aqui de avaliar as críticas feitas, particularmente por historiadores, acerca

da correção da interpretação faoriana sobre o Brasil. Contudo, Rubens Campante sugere uma

distinção a ser considerada a esses repeito, entre conservadorismo e imobilismo. De fato, a

tese de Faoro é de denúncia de conservação de um padrão de organização do poder político

ilegítimo no país; isso, todavia, não implica na recusa em admitir transformações de nossa

estrutura econômica, política e social. Concluindo, esse interprete esclarece:

A questão é que, como os fundamentos do poder político continuam estreitos

e seletivos, tais mudanças podem, eventualmente, até ameaçar, mas nunca,

pelo menos até o presente, conseguiram modificar a estrutura política de

domínio, que se traduz num padrão oligárquico e autoritário de sociedade. O

desafio de adaptação às mudanças faz com que esse padrão seja reiterado

sob diferentes formas, mas fundado sobre a mesma substância política. A

continuidade, portanto, não é vista sob a perspectiva sociológica, ou

econômica, mas ético-política, relacionada ao padrão ilegítimo de poder

Page 165: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

174

(CAMPANTE, 2009a, p. 141).

Nesse sentido, julgamos, como Campante, que a narrativa criada em Os donos do

poder, com uma abordagem mais próxima da Filosofia Política do que da moderna Ciência

Política, da Sociologia ou da História, opera muito mais por generalização do que pela análise

empírica e específica, o que explica parcialmente as diversas ênfases do autor ao longo do

livro, sempre em tom de denúncia, da continuidade do patrimonialismo estamental, do padrão

elitista e liberticida de poder político e mesmo da “ausência” do povo brasileiro como

protagonista de sua história. É a dimensão normativa, enfim, que determina o tom

fundamental da obra, não a dimensão descritiva, explicando em parte, o aparente

“imobilismo” da história brasileira. É certo que essa ênfase normativa limita o alcance da obra

de Faoro, na medida em que falta a ela tanto uma fundamentação sociológica mais sólida,

quanto a consideração mais matizada da história do país. No entanto, dessa fragilidade

histórico-sociológica advém também a força retórica do livro, mais evidente, segundo alguns

intérpretes (IGLÉSIAS, 2009b), na primeira edição do livro Os donos do poder (1958), mais

concisa, do que na segunda (1975)86

.

É por seu comprometimento inarredável com o valor e a idéia de liberdade

que Faoro, realmente, deixa de perceber, por vezes, dinâmicas e conquistas

sociais e nacionais específicas, tanto na história brasileira quanto lusitana

(CAMPANTE, 2009a, p. 135).

No tocante à permanente ausência do povo na narrativa de Faoro, discordamos

parcialmente da avaliação de Campante. Diz ele:

E Faoro também se aproxima de Weber no foco analítico elitista, na ausência

de consideração da dinâmica do setor popular em si. Ou seja, embora destile

uma crítica em tons de ira profética à elite brasileira e denuncie o

estrangulamento do princípio ocidental-iluminista da soberania popular por

tal elite, Faoro paga, estranhamente, tributo ao caráter formal-elitista da

teoria da dominação de Weber. As camadas desprivilegiadas da população

brasileira são vistas por Faoro de maneira indiferenciada, como uma espécie

de massa inerme, mero receptáculo permanente dos influxos e do aguilhão

da elite estamental. O povo brasileiro, para Faoro, é, em adjetivos seus,

colhidos ao longo de suas obras: desvalido, supersticioso, castrado,

sebastianista, resignado, incapaz, parasitário, abúlico (idem, ibidem, p. 144,

grifos nossos).

É verdade que a dominação do estamento político-burocrático é fundamentalmente

definida pela completa ausência política do povo, do ponto de vista de sua narrativa. Há

86

Uma pesquisa interessante que não realizamos seria o cotejamento crítico das duas edições dessa obra,

levando em consideração o contexto diverso do país (1958, primeira experiência democrática brasileira) e

1975 (após o golpe de 1964 e seu recrudescimento com o AI-5).

Page 166: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

175

excessos, portanto, não só na caracterização do estamento como onipotente, quanto do povo

como “abúlico”:

No esquema explicativo de Faoro sobre o Brasil, ausência de povo é

presença constante. Abúlico, o povo brasileiro não constituiu uma sociedade

civil contraposta ao Estado. Confrontadas a uma fraqueza popular congênita,

as rusgas entre o estamento e o rei (ou o presidente da república) seriam,

então, na melhor das hipóteses, deixadas em segundo plano, quando não

simplesmente ignoradas (CAMPANTE, 2009a, p. 115-116).

Nesse sentido, identifica-se realmente uma tensão inerente à obra faoriana. Como

conciliar sua defesa normativa da soberania popular, como único princípio legítimo de

organização do Estado com a descrição de um povo incapaz de agir politicamente, sempre

passivo e refém das transações e manipulações do estamento? A onipotência aparente do

patronato político brasileiro e a fragilidade do povo em Os donos do poder dificulta a defesa

da democracia como solução para superação do patrimonialismo. Essa tensão, todavia, é

atenuada em obras posteriores, como Assembleia Constituinte, revelando que Faoro não

concebe o povo apenas como ator passivo da história do Brasil. Ao que parece, o tom mais

explicitamente democrático da obra da segunda obra é decorrente menos de uma variação

normativa da linguagem faoriana, e mais da própria natureza desse escrito, de intervenção

política direta no contexto da redemocratização do país, o que não é propriamente o caso de

Os donos do poder.

No entanto, a sociologia weberiana é elitista tanto na dimensão descritiva, quanto na

dimensão normativa: as massas são tomadas como, de fato, incapazes na modernidade de

participarem ativamente da política e elas são associadas à irracionalidade, à demagogia, isso

por um autor com um quadro de valores profundamente aristocrático, como demonstra o

estudo de Campante (Cf. 2009a, cap.1). A obra de Faoro, ao contrário, não contém um

elitismo do mesmo modo. Normativamente falando, esse autor está comprometido com os

valores da participação popular e da consolidação de uma cidadania ampla e plena; se os

movimentos populares são, de fato, pouco considerados ao longo de Os donos do poder é

porque, como vimos, o obra segue muito mais uma linha filosófica do que propriamente

sociológica ou histórica. Em outras palavras, o desiderato de Faoro não é recontar a história

do Brasil ou descrever sociologicamente o país; mas voltar-se para a criação de uma

linguagem política centrada na noção de liberdade e ancorada nas tradições da Filosofia

Política, do liberalismo ético e do republicanismo.

Assim, convém reconhecer os limites da empreitada de Faoro. A conciliação entre o

quadro conceitual weberiano e o horizonte normativo rousseauniano é, como se vê, prenhe de

Page 167: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

176

tensões. Em primeiro lugar, é verdade que Faoro adota, em certa medida, o padrão

civilizatório do Ocidente como ideal a ser alcançado pelo país. Quando ele fala que aqui não

se consolidou uma sociedade de tipo capitalista e moderna, marcada pela racionalidade,

calculabilidade, impessoalidade, etc. está, por assim dizer, “pagando o preço” pela utilização

do marco teórico de Weber que, como demonstra Campante (2009a), não apenas se esforçou

para fornecer uma compreensão ampla e sistemática, como defendeu a “superioridade” desse

modelo civilizacional do qual ele era representante. Pode-se compreender a obra de Faoro

como expressão, portanto, de uma idealização do Ocidente? Fernando Henrique Cardoso

sugere que sim, pois comenta que a obra de Faoro “deixa entrever certa nostalgia dos ideais

americanos do self government temperados com pitadas de social-democracia” (2013, p. 228,

grifos nossos).

Sem deixar de perceber as tensões presentes na obra de Faoro, mas ao contrário de

Cardoso, consideramos que não nos parece razoável que Faoro assuma uma postura ingênua

de irrestrito elogio dessa civilização, isto é, de que simplesmente reafirme nossa “falta” ou

“atraso” em relação a esses países. Nesse tom interpretativo e contra a ideia de que Faoro

constitui uma sociologia da “falta” sobre o Brasil, Guimarães afirma: “seria, no entanto,

demasiado confundir a criticidade do argumento de Faoro com a reiteração das teses dos

nossos desvios ou faltas de origem em relação ao paradigma liberal clássico” (2011, p. 83).

Guimarães propõe que melhor do que pensarmos a obra de Faoro, entre outras, como uma

“narrativa da falta” é tomarmo-la a partir do conceito de formação, que “permite pensar o

Brasil fora de uma negatividade em relação a um padrão, em geral, idealizado de república”

(GUIMARÃES, 2011, p. 91) e ao mesmo tempo considerar as disputas e perspectivas não

determinadas e ainda em curso de superação dos atrasos de nosso país.

A interpretação de Faoro como anti-iberista ou um americanista, um defensor acrítico

do modelo político anglo-saxão (VIANNA, 1999) não parece considerar o propósito e as

próprias ressalvas de Faoro. Profundamente crítico da tradição brasileira em imitar

superficialmente as ideologias importadas (FAORO, 2007), parece pouco razoável que esse

mesmo autor tenha incorrido neste erro. Em texto tardio, Faoro avalia criticamente essa

tradição, criticando claramente o esforço voluntarista das elites brasileiras em modernizar o

país, sem alterar a sua estrutura sócio-política e distinguindo da verdadeira modernidade. A

modernização imposta de cima, à força, revelou-se em diversos momentos de nossa história,

para o autor, como um desejo de manutenção da ordem de privilégios e exclusão que é o

patrimonialismo estamental brasileiro (Cf. FAORO, 1992)

Page 168: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

177

Se a ordem liberal-democrática dos países ocidentais é adotada como ideal normativo

na análise de Faoro, isso não significa que ela pressuponha sua mera imitação e replicação: “o

desenvolvimento não pode ser a matéria de decretos, nem é assim que uma nação aprende de

outra. Uma elite não pode, pela compulsão, pela ideologia, gerar a nação” (FAORO, 1992, p.

20, grifos nossos). Ao contrário, como comenta Guimarães (2009, p. 83), é por centrar sua

narrativa na liberdade e por entender nossa formação como a sua reiterada negação que Faoro

acaba desvalorizando, às vezes, excessivamente, os elementos e as conquistas nacionais,

como é o caso da abolição da escravatura ou o legado varguista para a consolidação dos

direitos no país.

Outro ponto de difícil solução decorrente da combinação tensa entre o campo analítico

weberiano – fortemente desencantado e resignado frente ao processo crescente de

dominação/burocratização – e o horizonte normativo liberal-democrático de Faoro, com forte

conteúdo cívico – é que a partir de seu diagnóstico (da contínua reacomodação do estamento

político frente às transformações do país para manutenção da ordem patrimonial) fica difícil

entrever os caminhos para a tão ansiada realização da liberdade. Como superar o bloqueio

patrimonial para o desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente popular e livre? A

obra de Faoro, nesse sentido, transita de uma perspectiva aparentemente pessimista para uma

mensagem de esperança que, todavia, não consegue apresentar os meios de sua realização.

Essa combinação tensa e complexa talvez explique também o porquê da pouca estabilização

da obra desse autor que ocupa um “lugar problemático” no pensamento brasileiro, como nota

Juarez Guimarães (2009, p. 77).

De qualquer modo, cumpre ressaltar o essencial identificado, mais uma vez, por

Campante (2009a), a saber: que Faoro assume uma linguagem política liberal diversa da de

Weber, tanto por supor a possibilidade da concretização de uma moralidade comum, expressa

na doutrina do jusnaturalismo, e mais ainda pela adoção incondicional da ideia de democracia.

Recordando, por exemplo, o texto aqui já discutido de Benjamin Constant, Faoro adverte de

que, em sua origem, o liberalismo, temendo o impacto da entrada das massas na polis, era

claramente antidemocrático (FAORO, 2007, p. 110-111).

O liberalismo advogado por Faoro está – por assumir um conteúdo fortemente cívico e

participativo – distante do liberalismo weberiano e elitista, assim como diverge

profundamente do liberalismo que vê o Estado como permanente ameaça à liberdade. Se

Faoro reivindica a implementação de uma sociedade capitalista e moderna no país, isso não

significa que o seu liberalismo resuma-se a uma defesa do mercado. Como esclarece

Page 169: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

178

Campante:

É certo que, para Faoro, a condição, incontornável, de remoção do arranjo de

poder tradicional e antidemocrático no Brasil seria o pleno estabelecimento

de um capitalismo moderno (...). Isso não faz dele um liberista, que defende

e mira apenas na suposta liberdade econômica ou que coloca tal tipo de

liberdade como condição crucial, temporal e ontologicamente anterior ao

estabelecimento das liberdades políticas, sociais e civis, para o início de um

caminho virtuoso no Brasil (2009b, p. 127-128).

Nesse sentido a interpretação de Luiz Werneck Vianna da obra de Faoro como

expressão de uma cultura anti-estatista e de defesa das virtudes do mercado (expressas no

Brasil, supostamente, pelo protagonismo paulista), isto é, como um autor afim às propostas

neoliberais de reforma do Estado não é correta. O próprio autor, quando viu seu pensamento

associado a esse tipo de proposta, se esforçou rapidamente em esclarecer a direção de seu

pensamento. Escrevendo em meados dos anos 1990 – quando Fernando Henrique Cardoso,

então presidente da República e seu ministro Luiz Carlos de Bresser Pereira afirmavam que

era preciso combater os “donos do poder” reformando e “enxugando” a máquina estatal

(CAMPANTE, 2009b, p. 140) – Faoro alertava:

Propõe-se agora, depois de muitas modernizações, mais uma modernização,

supostamente legitimada pelas urnas. Trata-se não de uma modernização

pombalino-positivista, mas de uma modernização neoliberal, com o

rótulo de social-liberalismo. Ela quer ser uma “centroesquerda”

conservadora. O projeto se imporia, na confessada retórica de seu principal

fautor, trazido nas asas de Mosca e Pareto. (...) Mais uma vez uma elite

dissidente – dissidente, porém conservadora – pretende, pela via do

Estado, anular o Estado. (...) O Estado, diante de estarrecedores índices de

miséria, se limitaria, na sua administração, a promover e, se houver sobras

públicas, a assistir a população. Abdicaria de um programa de distribuição de

renda – entregues à mão invisível – com todas as suas implicações

econômicas e sociais, por exorbitante aos fins do Estado (1992, p. 20, grifos

nossos).

Em entrevista concedida pouco antes de sua morte, Faoro diferencia claramente sua

crítica ao patrimonialismo brasileiro da crítica neoliberal a essa formação histórica:

Há quem diga que, para o capitalismo brasileiro, bom Estado é aquele que

governa cada vez menos. Não é verdade, o Estado aqui governa muito.

Governa muito e mal. O melhor governo não é o mais ausente, é aquele

que protege os interesses nacionais, abre o mercado interno. Eu vejo na

televisão o produtor de alguma coisa dizendo-se obrigado a exportar porque

ninguém tem dinheiro para comprar seu produto. O Estado tem de ser

capaz de proteger todos os cidadãos e não só aqueles sujeitos que o

servem (FAORO, 2008, p. 304-305, grifos nossos).

Constata-se como a identificação desse autor com o “liberismo” ou com o

Page 170: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

179

neoliberalismo não é procedente. Para Faoro, assim como para Norberto Bobbio (1994), o

liberalismo que cumpre precipuamente consolidar é não propriamente o liberalismo

econômico, mas o liberalismo dos direitos, da cidadania assegurada por um Estado forte e

democrático. Faoro mostra-se, portanto, profundo crítico dos que concebem o Estado como

“inimigo da liberdade”, para recorrer ao título de seu discurso na qualidade de presidente da

OAB em 1978. Nesse mesmo sentido, ele reconhece a importância ímpar dos direitos

modernos da cidadania, contestando aqueles que os concebem como “direitos burgueses”. No

início da década de 1990, o autor pondera sobre a possibilidade do PT desempenhar um papel

de transformação do Brasil; em relação, então, à tradição marxista e ao legado da revolução

russa ao mundo, ele afirma:

Quer dizer, no momento em que abandonou o legado liberal e aceitou a

democracia meramente como valor instrumental, Lênin estava criando uma

revolução que inviabilizava todas as outras. O PT tem de fazer esta crítica e

estabelecer, em primeiro lugar e fundamentalmente, que tem na democracia

um valor universal. Aquela história que nós cansamos de ouvir sobre as

liberdades burguesas é bobagem. As liberdades não são burguesas, as

liberdades são universais. Os direitos do homem não são burgueses, são

universais. Quer dizer, trata-se de, a partir daí, fazer a crítica que a

sociedade brasileira está exigindo, porque a crítica que tem de ser feita aqui

é a crítica democrática. Num país onde há desigualdade, nós estamos vendo,

de qualquer lugar que olharmos, desigualdades de renda, desigualdades

jurídicas, desigualdades que consolidam ou promovem privilégios de toda

sorte (FAORO, 2008, p. 155, grifos nossos).

O liberalismo de Faoro assenta-se assim sobre dois pilares: como um “bom jurista”, o

Estado de Direito, assegurando a todos os indivíduos liberdade plena, inclusive com as

condições materiais de sua realização (como redistribuição de renda) e, além disso, a

democracia, isto é, o assentimento com a ideia de que o único regime político legítimo é

aquele que incorpora ao máximo o povo nas decisões públicas, reportando sempre a ele,

verdadeiro soberano, o direito de decidir os rumos da nação. A defesa de uma sociedade e de

um Estado mobilizados pela universalização dos direitos e da cidadania compõe a pauta

política da obra de Faoro que, como se viu, ainda que desse a impressão de uma rota sem

saída, afirmava sempre a necessidade de persistir tentando.

3.4 – Corrupção e democracia

Como demonstra Guimarães, as linguagens políticas do liberalismo operam

frequentemente com a dicotomia entre Estado e sociedade civil. Conforme elas, o Estado é

Page 171: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

180

concebido como uma entidade mais corruptível do que a sociedade civil, supostamente lócus

do progresso, da liberdade e da eficiência (2011, p. 84). Assim, na tradição liberal, em geral,

“quanto mais” Estado, mais corrupção.

A questão central do diagnóstico é o caráter potencialmente corruptível do

Estado: seu tamanho, sua regulação econômica excessiva, as carências de

representação e de controle de suas funções, a força irracional da política ou,

mais simplesmente, a contradição aberta entre os valores normativos

democráticos e a dura realidade dos interesses nos Estados contemporâneos

(GUIMARÃES, 2011, p. 86).

O projeto liberista se configura, então, com o seguinte receituário: para diminuir a

corrupção, seria necessário privatizar e desregulamentar, diminuindo a esfera de atuação e

responsabilidade estatal. Ora, se Faoro recorre à linguagem de defesa da independência da

sociedade civil frente ao Estado (linguagem essa, é verdade, similar a utilizada por autores

liberais conservadores), não a faz para “coincidir com a mera predominância das esferas

econômica e do interesse material” (CAMPANTE, 2009b, p. 128). Não há nesse autor uma

idealização de uma sociedade civil virtuosa, promotora do desenvolvimento e da civilização.

Nesse sentido, é preciso qualificar a crítica que Faoro faz ao Estado como a crítica ao Estado

patrimonial e estamental que, como vimos, impede a consolidação de uma ordem legal de

direitos universais dos cidadãos, consolidando ao longo do tempo uma cultura política que

tolera o privilégio, que se acostuma a não diferenciar o público do privado.

As pesquisas de opinião sobre corrupção no Brasil hodierno revelam que se a maioria

da população de mostra bastante preocupada e indignada com os escândalos de corrupção –

que, supostamente, envolve apenas políticos profissionais – ela não identifica,

paradoxalmente, em seus atos do cotidiano, formas de corrupção. Assim, é elevado o número

de brasileiros que considera admissível, vender o voto em troca de um bem material

concedido pelo candidato ao cargo, em caso de necessidade, subornar um funcionário público

para conseguir alguma vantagem pessoal, ou sonegar imposto, por exemplo. “(...) quanto mais

próximos da vida privada, mais ambíguas são as posições das pessoas a respeito dos atos que

podem ser considerados corruptos” (BIGNOTTO, 2011, p. 35). Devemos lembrar que práticas

corruptas como o nepotismo – só recentemente proibido pela legislação brasileira – se

envolvem funcionários do Estado, também pressupõem a participação de cidadãos comuns,

tolerantes com os privilégios.

Como Bignotto observa, é imprescindível avaliar esses dados inquietantes à luz de

nossa formação histórico-cultural em que o patrimonialismo se constituiu como um “modelo

de organização que ao longo da história misturou as esferas [pública e privada] e contribuiu

Page 172: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

181

em muitos momentos para a sua indistinção (idem, ibidem, p.26). Mas, cumpre perguntar, de

que modo mais específico a interpretação de Faoro pode nos auxiliar na compreensão do

problema da corrupção brasileira. Para encerrar este capítulo, nos debruçaremos agora sobre

cinco linhas de respostas a essa questão, asseverando a atualidade e as limitações desse

pensador na compreensão desse fenômeno.

Em primeiro lugar, porque o patrimonialismo é ele mesmo uma forma corrupta de

governo, no sentido republicano e aristotélico do termo (Wolff, 1999), uma organização do

poder político desviante que não se dirige para o bem comum, mas para o interesse particular,

é que o sistema político brasileiro se configurou historicamente como corrupto. Na medida em

que o patrimonialismo não garante, tanto no nível da institucionalidade política, uma ordem

de direito universais, quanto no nível da economia, uma ordem de exploração previsível das

oportunidades de mercado, mas, ao contrário, uma “ordem” casuística e arbitrária de

privilégios, títulos e concessões, ele é – amplamente considerado – como um regime político

corrupto. Assim, patrimonialismo se opõe à democracia por ser uma forma corrompida de

legitimação do poder político, pois enquanto a segunda é a uma forma de governo legítima, o

segundo constitui uma apropriação indevida da soberania popular. Então, mesmo que

eventualmente os atores ou agentes públicos não se apropriem indevidamente dos bens

públicos materiais (não cometam, assim nenhum ato ilegal), ainda assim podemos ter

corrupção.

O segundo sentido de corrupção presente na obra faoriana é o de ineficiência. Um

regime político patrimonial não se pauta pela eficácia na alocação dos recursos públicos,

sendo sua lógica perdulária, já que – não estando baseado no consentimento e na participação

popular – ele não é também responsivo frente à sociedade. A contratação de amigos e

familiares, não estabelecidos por mérito e competência para os cargos, só recentemente

proibida por lei no país, explica-se, destarte, através dessa formação histórica em que o

público é tomado pelo patronato político como patrimônio particular a ser explorado.

Um terceiro sentido de corrupção que se associa a patrimonialismo seria exatamente o

mais comum deles, a apropriação ou desvio dos recursos públicos. No entanto, essa forma

quase hegemônica dos significados de corrupção deve ser entendida em referência aos

sentidos anteriores, particularmente, do primeiro sentido. É porque o Estado brasileiro foi

fundamentalmente patrimonial, isto é, um regime dirigido para a manutenção dos privilégios

do patronato político, que esses sentidos – ineficiência estatal e desvio de bens públicos – se

sustentam. Sobre os dois últimos significados de corrupção, Campante resume:

Page 173: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

182

Por todas essas razões, o patrimonialismo é um tipo de poder político no

qual a fronteira entre as esferas pública e privada é pouco delimitada. É um

sistema político intrinsecamente tendente à ineficiência administrativa e à

corrupção. (CAMPANTE, 2009a, p. 117)

Ou seja, os fundamentos personalistas do poder, a falta de uma esfera

pública contraposta à privada, a racionalidade subjetiva e casuística do

sistema jurídico, a irracionalidade do sistema fiscal, a não-profissionalização

e a tendência intrínseca à corrupção do quadro administrativo, tudo isso

contribui para tornar a eficiência governamental altamente problemática no

patrimonialismo, especialmente em comparação à eficiência técnica e

administrativa que Weber vê em um sistema de poder racional-legal-

burocrático. E como tal eficiência é um dos atributos básicos do capitalismo

moderno, todos esses fatores mencionados funcionam, também, como um

obstáculo à constituição deste em sociedades patrimoniais (idem, ibidem, p.

125).

Um quarto significado de corrupção presente na obra de Faoro consiste numa cultura

do privilégio, do favor, do particularismo, etc. Para Faoro, um dos fatores de estabilização do

patrimonialismo e da sua não superação no Brasil contemporâneo é precisamente o fato de

que ele se enraizou nas práticas sócio-culturais dos brasileiros. O processo de “naturalização

dos privilégios” de que fala Celi Pinto (2011, p. 46-47), em que parlamentares, por exemplo,

justificam a utilização indiscriminada de passagens aéreas, compradas com dinheiro público,

por familiares com o argumento de que “sempre foi assim” – são expressões cotidianas de

uma sociedade em que a desigualdade, a assimetria de direitos universalmente compartilhados

se enraizou culturalmente.

É verdade, como nota Campante (2009a) que não encontramos na obra de Faoro uma

análise sistemática da cultura política resultante de nossa formação patrimonial, na medida em

que o enfoque desse autor é político-institucional, sendo essa mais uma limitação dessa obra.

No entanto, se tal análise deve ser buscada em outros autores brasileiros (CAMPANTE,

2009a, cap. 4), não é verdade que na obra faoriana ela esteja totalmente ausente. Em Os donos

do poder, Faoro caracteriza não apenas a degradação do Estado brasileiro, dirigido pelo

estamento político e ignorante da nação, mas a degradação dos costumes do país, como, por

exemplo, o fato de nosso empresariado ser incapaz de romper com a lógica dependente das

concessões estatais, ou a oscilação do comportamento do povo brasileiro entre o parasitismo e

milenarismo, por exemplo.

Talvez, a leitura de um Faoro “pessimista” encontre aí mais uma de suas explicações: é

por não avaliar totalmente os desdobramentos culturais do patrimonialismo que a sua obra –

focada no desenvolvimento do Estado – dê a impressão de um passado sempre presente a nos

Page 174: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

183

atormentar. A transformação da cultura política brasileira derivada de nossa história

patrimonial talvez seja a chave para o controle do problema da corrupção. O enfoque de Faoro

é, com razão, político-institucional, necessitando, sim, de análises complementares em que a

cultura política seja analisada com mais centralidade. Entretanto, tratar a obra de Faoro como

uma visão exclusivamente estatista é um equívoco.

O quinto ponto da relação entre patrimonialismo e corrupção diz respeito à questão do

modo de sua superação. Esse sentido é importante por ampliar o debate sobre corrupção para

além da questão dos recursos públicos e de sua utilização. Quer dizer, contra patrimonialismo

e corrupção, importa, para Faoro, ter mais democracia. Se patrimonialismo consiste numa

forma de organização do poder político inerentemente corrupta – pelo conteúdo do poder

privado que lhe é típico – é preciso garantir – como uma forma de reposição dos fundamentos

da vida pública – a democratização do Estado brasileiro. Nesse sentido, é preciso destacar a

convergência entre a proposta política de Faoro e uma vertente que se constitui na moderna

Ciência Política que retomou com centralidade o tema do interesse público87

. Ambas

prescrevem a democratização do Estado brasileiro como forma de controle da corrupção,

incluindo, por exemplo, a aplicação das formas de democracia participativa à administração

brasileira a fim de aumentar o controle sobre o Estado.

Bignotto sugere que a análise da corrupção não se limite a um “quadro de referenciais

muito gerais”, que sejamos capazes de compatibilizar a “construção de uma base de dados

confiável” com uma “abordagem teórica que incorpore as peculiaridades de nossa história”

(2011, p. 30). O grande risco da abordagem patrimonialista é, além de construir uma narrativa

em que a transformação histórica não possa ser vislumbrada, enfatizar excessivamente a

corrupção como um mal do Estado, desconsiderando a sua relação com a sociedade civil e

com o mercado (2011, p. 33). No entanto, como vimos, há na obra de Faoro elementos para se

pensar a cultura numa sociedade patrimonial. Por outro lado, a não incorporação de uma

narrativa de longa duração de formação de nosso país, como o é a obra faoriana, parece

impedir o entendimento de porque não se formou aqui uma esfera do interesse público.

Guimarães comenta que, nas linguagens do republicanismo, corrupção significa “o

impedimento ou o desvirtuamento da vontade soberana do povo, introduz o reino dos

privilégios ao acesso a direitos e deveres e devasta o interesse público pela força do

privatismo e do particularismo” (2011, p. 88). Nesse entendimento de corrupção, a obra de

Faoro se revela, por causa dos cinco sentidos de corrupção antes discutidos, não, a rigor,

87

Sobre isso consultar, por exemplo, o conjunto de textos presentes em Avritzer, 2008.

Page 175: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

184

como uma abordagem liberal, mas mais propriamente republicana, de exigência da

instauração de uma ordem simétrica de direitos e deveres a obstar os privilégios e de uma

sociedade efetivamente democrática.

Nesse sentido, esperamos ter demonstrado que a atualidade do pensamento político de

Faoro não se refere ao fato dele ser frequentemente lembrado como a referência para uma

compreensão essencialista ou puramente estatista de corrupção, muito menos como um autor

neoliberal, propositor de um Estado mínimo, mas por ele constituir uma interpretação de

formação do Brasil em que a liberdade é continuamente obstada por uma forma de

legitimação do poder não democrática e corrupta.

Page 176: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

185

4 – Celso Furtado: a linguagem democrática do nacional-desenvolvimentismo brasileiro

O início do século XXI no Brasil ficou marcado pela retomada do debate sobre

desenvolvimentismo. O fracasso das iniciativas de privatização do Estado brasileiro e a

derrocada parcial da ideologia neoliberal, evidenciada pela última crise do capitalismo

financeiro internacional em 2008, contribuíram para que se retomasse uma agenda pública

criada nos anos 1950-60, em torno ao conceito de subdesenvolvimento. Essa retomada vem

sendo caracterizada como “novo desenvolvimentismo”, ou “neodesenvolvimentismo”, e

referida principalmente às gestões do governo federal Lula e Dilma.

Aloísio Mercadante Oliva, em sua tese de doutorado As bases do novo

desenvolvimentismo no Brasil: análise do governo Lula, afirma que a partir de 2003 houve

uma inflexão na evolução da economia brasileira, no sentido de criar e consolidar certas

tendências, tais como crescente distribuição de renda, inclusão social, dinamização do

mercado interno, combate à pobreza e incorporação da sustentabilidade como vetor do

desenvolvimento, além da solidificação da democracia e das instituições republicanas do país

e da conquista de sua autonomia no plano político internacional. Obviamente que a

caracterização de Oliva pode ser objeto de suspeição em função de seu notório envolvimento

com o Partido dos Trabalhadores (PT) e com os governos Lula e Dilma. Contudo, a

identificação desses governos com o novo desenvolvimentismo, pode ser encontrada mesmo

entre seus “adversários” políticos.

O Brasil, ao retornar ao desenvolvimentismo, está voltando a se comportar

como uma nação independente. Havia deixado de agir assim em 1991,

porque vivia uma profunda crise, e porque a hegemonia neoliberal americana

sobre todo o mundo era, então, quase irresistível.

Mas desde meados da década passada a sociedade brasileira começou a

perceber que o projeto neoliberal era um grande equívoco e que havia

alternativa para ele. Como a crise financeira global de 2008 demonstrou de

maneira cabal, as políticas econômicas neoliberais não eram boas nem

mesmo para os países ricos.

Dessa maneira, a hegemonia neoliberal entrou em colapso e as forças

desenvolvimentistas – os empresários industriais, os trabalhadores e uma

parcela da classe profissional – fortaleceram-se, o que abriu espaço para que

o governo Dilma aprofundasse seus compromissos para com elas

(BRESSER PEREIRA, 2011, s/p).

E ainda:

Desde 1991 a política econômica do Brasil se pautava pela ortodoxia

convencional ou o Consenso de Washington. A partir, porém, de 2006 já com

Guido Mantega no Ministério da Fazenda e Luciano Coutinho no BNDES, o

governo Lula começou a mudar a estratégia de desenvolvimento em direção

Page 177: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

186

ao novo desenvolvimento.

Em 2009 um passo decisivo foi dado nesse sentido com o início do controle

da entrada de capitais. Agora no nono mês do governo Dilma Rousseff, a

decisão do Banco Central de baixar a taxa de juros, surpreendendo o

mercado financeiro, e a decisão do governo de taxar a importação de

automóveis com menos de 35% de conteúdo nacional consolidam essa

mudança (BRESSER PEREIRA, 2011, s/p).

A declaração é de Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da fazenda de José Sarney

e ministro da Reforma do Estado do governo de Fernando Henrique Cardoso, períodos de

tendência neoliberal e antidesenvolvimentista. Ela indica, assim, que mesmo alguns setores

inicialmente avessos ao projeto desenvolvimentista, tendem a se curvar a ele atualmente.

A estudiosa do desenvolvimentismo Vera Alves Cepêda também reitera a filiação dos

governos Lula e Dilma com essa tradição, destacando a sua atualidade. Em diversas passagens

a autora supracitada associa algumas das políticas públicas desses governos ao

desenvolvimentismo, tais como:

A questão nacional que cimenta o novo-desenvolvimentismo, presente nas

políticas públicas federais da última década e em seu projeto de sustentação

(PAC I e PAC II), apoia-se no diagnóstico da exclusão social como eixo do

problema atual (...) (CEPÊDA, 2012, p. 84).

E, adiante:

O outro ângulo das políticas recentes apontam, no entanto, para o papel

estratégico do consumo e da renda popular no processo de desenvolvimento

econômico e social. A via de desenvolvimento por consumo de massa,

transferência de renda direta (como Bolsa Família), políticas de crédito

popular e economia social são características importantes de uma acepção de

economia pelo “lado da demanda” – pela tese do mercado interno e pela

inovação via multiplicação de empreendedorismo popular (idem, ibidem, p.

85).

Como se vê, a recuperação do desenvolvimentismo, em geral, e da obra de Celso

Furtado, em específico, é compreendida como diretamente relacionada a um conjunto de

medidas tomadas pelo governo federal brasileiro a partir de 2002, tais como a busca por maior

soberania nacional frente ao mercado internacional, fomento ao mercado interno, retomada do

protagonismo do Estado em setores estratégicos da economia, proteção à indústria nacional,

diminuição das desigualdades regionais e sociais, submissão da estabilidade financeira às

metas de crescimento econômico e geração de emprego, etc.88

88

Cumpre lembrar que, em junho de 2010, foi lançado ao mar o primeiro navio construído em 13 anos no

estado do Rio de Janeiro, por determinação da Petrobrás. A embarcação, intitulada de “Celso Furtado”, serviu

simbolicamente como marco da retomada da indústria naval e como índice da associação do governo Dilma

com o nacional-desenvolvimentismo. Ver: http://www.centrocelsofurtado.org.br/interna.php?ID_S=69.

Page 178: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

187

Muitas dessas iniciativas já eram preconizadas por Furtado desde a publicação de sua

obra mais conhecida Formação econômica do Brasil (1959) e continuaram a ser reivindicadas

por ele até o fim de sua vida, em 2004, como condição necessária para a superação do atraso

nacional. Se o legado furtadiano é, em geral, reconhecido como relevante no entendimento da

economia mundial hoje e na formulação de estratégias para países como o Brasil, ele, todavia,

implica considerar também os aspectos do subdesenvolvimento brasileiro que ainda não

foram plenamente superados.

De fato, a linguagem política criada por Furtado identifica no Brasil hodierno um

conjunto de problemas que são aglutinados compreensivamente a partir da categoria de

subdesenvolvimento, tais como a distribuição de renda, a concentração fundiária, o atraso

relativo do Nordeste e de outras regiões não industrializadas, a nossa capacidade ainda

limitada de resistir às crises da economia mundial, a direção das exportações brasileiras para o

setor de commodities, etc. Quando, em 2003, perguntado se concordava com a tese de que o

Brasil tinha iniciado o século XX como uma economia agrário-exportadora, baseada no

trabalho escravo, para se transformar numa nação industrializada e fortemente urbanizada,

apoiada no trabalho assalariado, Furtado respondeu:

Em primeiro lugar, eu diria que é uma ilusão imaginar que o Brasil

provavelmente se desenvolveu nessa escala. A verdade é que o Brasil

continua sendo uma constelação de regiões de distintos níveis de

desenvolvimento, com uma grande heterogeneidade estrutural, e graves

problemas sociais que preocupam a todos os brasileiros (2003, p. 11,

grifos nossos).

O autor afirmava, então, a perenidade do subdesenvolvimento brasileiro. O que

queremos destacar é que a obra de Furtado permanece atual, portanto, não apenas porque ela é

identificada com as políticas promovidas pelos governos Lula e Dilma (fato notado por

diversos estudiosos), mas também porque o Brasil, segundo o diagnóstico furtadiano, não

conseguiu superar plenamente o subdesenvolvimento. Apesar do crescimento do país, da sua

forte industrialização frente ao passado, a questão social desponta, entre outros fatores, como

prova do atual subdesenvolvimento, isto é, o fato que uma imensa massa de cidadãos não

desfrutar ainda das benesses da modernidade. O próprio autor reconhecia a dificuldade de

explicar a permanência de tantos entraves ao desenvolvimento do país:

O Brasil tem terras abundantes e baratas, tem mão-de-obra (sic) disponível.

Por que enfrenta tantas dificuldades? Por que tem crescentes problemas

sociais? Por que o desenvolvimento é só para servir uma minoria? Eu não

consigo explicar (idem, ibidem, p. 14).

Dizendo de outro modo, a simples associação entre os governos Lula e Dilma e o

Page 179: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

188

pensamento político desenvolvimentista não esgota toda a riqueza conceitual e normativa do

que veio a ser no passado o desenvolvimentismo e, sobretudo, a proposta particular do

nacional-desenvolvimentismo que teve em Celso Furtado o seu maior representante.89

Nesse

sentido, o consenso sobre a relevância do seu pensamento pode, paradoxalmente, obscurecer

alguns de seus princípios basilares e de seus objetivos históricos, inclusive a fim de verificar

em que medida essas recentes políticas públicas são, com efeito, nacional-

desenvolvimentistas.90

Nosso desiderato é, precisamente, demonstrar que a obra de Furtado constitui uma

linguagem muito particular de falar sobre a democracia, a partir do ideário nacional-

desenvolvimentista, diferentemente de outras vertentes do desenvolvimentismo. Como no

caso de Raymundo Faoro (esse, a partir da linguagem do patrimonialismo), o economista

paraibano conseguiu criar um léxico conceitual em que a democracia é pensada com

centralidade e tal léxico, como se vê, se incorporou aos principais debates sobre a democracia

brasileira na contemporaneidade. De acordo com nossa interpretação, a linguagem

democrática do desenvolvimento construída por Furtado se estabelece a partir de cinco ideias-

chave.

A primeira delas consiste na tese segundo o qual não há democracia nem

desenvolvimento sem inclusão social. A justiça social aparece, portanto, como condição

necessária e urgente à consolidação da cidadania brasileira, expressando uma concepção

substantiva de democracia e diferenciando o autor de tendências influentes do

desenvolvimentismo.

A segunda ideia-chave dessa linguagem, relacionada à primeira, se expressa na

tematização das desigualdades regionais presentes no país, com especial atenção à questão do

Nordeste brasileiro. Para Furtado, uma das marcas do subdesenvolvimento a qual estamos

presos é a heteronomia estrutural, social e tecnológica, verificada dentro de uma nação; no

caso brasileiro, entre o Sul-Sudeste e as regiões Norte-Nordeste. Assim, como é forçoso

garantir a autonomia da nação brasileira frente às forças externas, é igualmente necessário, diz

Furtado, eliminar a relação desigual entre as regiões mais e as menos desenvolvidas.

A terceira ideia associa o par conceitual desenvolvimento-democracia à soberania

nacional, o que fez com esse autor divergisse tanto dos setores da intelligentsia do

89

O mais extenso e sistemático mapeamento desse debate foi feito por Ricardo Bielschowsky (1996), obra de

referência para o presente trabalho. 90

Obviamente que não poderemos no espaço deste capítulo explorar metodicamente em que medida as políticas

“neodesenvolvimentistas” dos governos Lula e Dilma se identificam ou não com o projeto político nacional-

desenvolvimentista e democrática de Celso Furtado.

Page 180: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

189

neoliberalismo, como Eugênio Gudin, quanto do desenvolvimentismo não nacionalista, como

Roberto Campos. Pelo mesmo motivo, Furtado se posicionou contra o modelo de crescimento

econômico obtido pelos militares via endividamento externo e, posteriormente contra a

submissão do país aos organismos financeiros internacionais, como o FMI (Fundo Monetário

Internacional), no contexto da globalização. A ideia furtadiana de autodeterminação da nação

é afim à matriz de pensamento republicana, para a qual não há liberdade, individual ou

coletiva, quando se está submetido à dominação de potências estrangeiras.

A quarta ideia diz respeito ao vínculo indissociável entre desenvolvimento e

democracia, não submetendo a segunda ao primeiro (como era comum entre os pensadores do

período em que Furtado inicia sua produção intelectual), mas considerando a democracia

como parte integrante do processo de superação do subdesenvolvimento. Nesse quesito é

importante notar como Furtado rompe ao mesmo tempo com as linguagens economicistas da

política e com as correntes que não desvalorizavam a criação de uma democracia frente o

imperativo de se modernizar o país.

Por fim, a última ideia mestra da linguagem furtadiana evidencia, mais uma vez, a

atualidade do seu pensamento, para quem o desenvolvimento nunca deveria se opor à

sustentabilidade; antes pressupõe um uso racional e preservador do solo e dos recursos

naturais, ainda tão abundantes no país em pleno século XXI.

É preciso dizer que a linguagem furtadiana da democracia não é propriamente uma

proposta explícita do autor. Seu desiderato parece ser o de fornecer uma explicação coerente e

sistemática de nosso atraso, bem como dos caminhos para superá-lo. Certamente por ter tido

uma formação intelectual que não o manteve em contato direto com as linguagens da filosofia

política, Furtado não se preocupou em explicitar teórica e sistematicamente todos os

corolários de sua concepção de desenvolvimento e de democracia. Nesse sentido, a obra

furtadiana carece de uma teorização sistemática sobre a democracia (nem esse parece ter sido

o propósito desse autor), mas um certo discurso político em que ela aparece como ideia-

chave. Assim sendo, o presente trabalho procurará precisamente estabelecer as relações entre

o seu modo de compreender esses temas e as disputas mais importantes travadas no interior da

Teoria Política atual, tentando identificar algumas afinidades entre a obra furtadiana e a

tradição republicana de pensamento político.

Para explorar todas essas cinco nuances, bem como as possibilidades e os limites da

linguagem democrático-desenvolvimentista de Celso Furtado, contrastando-a com as

linguagens políticas concorrentes, é mister retomar alguns de seus conceitos mais

Page 181: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

190

fundamentais, como o de desenvolvimento, de subdesenvolvimento e de soberania nacional.

Desde já, cumpre dizer que essa linguagem se constitui como contraponto às

linguagens conservadoras e elitistas do liberalismo, que tendem a minimizar a importância da

democracia e da justiça social numa sociedade capitalista contemporânea. Assim sendo, como

no caso da obra de Raymundo Faoro, o exame da obra furtadiana é também uma forma de

repensar os dilemas mais fundamentais das linguagens políticas formativas da modernidade,

discutidas nos segundo capítulo desta tese – republicanismo e liberalismo.

4.1 – O Subdesenvolvimento e a CEPAL

O conceito de subdesenvolvimento é consequência do longo debate em torno à

ideologia do desenvolvimentismo, iniciado nos anos de 1930 e consolidado mais

consistentemente nos anos 50. Segundo Bielschowsky, essa “ideologia” de transformação da

sociedade brasileira era composta dos seguintes pontos:

a) A industrialização integral é a via de superação da pobreza e do

subdesenvolvimento.

b) Não há meios de alcançar a industrialização eficiente e racional no

Brasil através das forças espontâneas do mercado; por isso, é necessário que

o Estado a planeje.

c) O planejamento deve definir a expansão desejada dos setores

econômicos e os instrumentos de promoção dessa expansão; e

d) O Estado deve ordenar também a execução da expansão, captando e

orientando recursos financeiros, e promovendo investimentos diretos

naqueles setores em que a iniciativa privada seja insuficiente (1996, p. 7).

A partir desses pontos fundamentais, o autor distingue três variantes do

desenvolvimentismo: o “setor privado”, o “setor público não nacionalista” e o “setor público

nacionalista”.91

A despeito de algumas divergências, essas três vertentes concordavam quanto

à necessidade de se estimular a criação de um capitalismo industrial moderno no país e, para

tal fim, planejar a economia. Pode-se dizer, muito sinteticamente, que os desenvolvimentistas

do “setor privado” privilegiavam os interesses empresariais, sendo seu maior expoente

intelectual o economista Roberto Simonsen (considerado um “patriarca” do

desenvolvimentismo, visto que lançara as bases desse pensamento ainda na década de 1930).

Os do setor público não nacionalista, como Roberto Campos, “preconizavam soluções

privadas, de capital estrangeiro ou nacional, para projetos de inversão na indústria e na infra-

estrutura (sic)” (BIELSCHOWSKY, 1996, p. 77), sendo a intervenção do Estado na economia

91

Além desses três subtipos de desenvolvimentismo, Bielschowsky avalia as correntes neoliberal e socialista

que conformaram o “ciclo ideológico do desenvolvimento”

Page 182: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

191

admissível somente em casos excepcionais. Por fim, havia os intelectuais e atores políticos

reunidos no “setor público nacionalista”, como Celso Furtado, que defendiam a “estatização

dos setores da mineração, transportes, energia, serviços públicos de modo geral e alguns

segmentos da indústria de base” (idem, ibidem, p. 77).

A questão crucial do debate entre essas correntes incidia sobre a conveniência ou não

da intervenção do Estado para garantir o crescimento econômico. Como bem obseva José

Luís Fiori (2011), todo o debate desenvolvimentista das décadas de 50-60 não consistiu

propriamente na divergência entre economistas ortodoxos (neoclássicos ou liberais) e

“heterodoxos” (keynesianos e estruturalistas), mas sim na disputa acerca da necessidade e da

eficácia da intervenção do Estado como promotor do desenvolvimento. Vê-se, portanto, que a

afirmação corrente de que políticas públicas adotadas no período Lula e Dilma são de tipo

“desenvolvimentista”, sem maiores distinções e detalhes, corre o risco de tratar como

homogênea uma tradição de pensamento e prática política que, historicamente, foi e ainda é

bastante diversificada.

Vera Alves Cepêda propõe a distinção entre “desenvolvimento” e

“desenvolvimentismo”, também relevante para o presente trabalho. Para ela, o primeiro termo

é de uso mais largo na filosofia, significando genericamente o “evoluir exponencial da energia

contida nas formas de produção” (2012, p. 75). Na tradição da economia, desenvolvimento é

diferenciado de crescimento econômico, pressupondo, no primeiro caso, que a autorregulação

do mercado é insuficiente para promover o progresso de uma nação; para haver

desenvolvimento, faz-se necessário a ação corretiva e racional que, sob essa perspectiva, não

pode ser exercida por um agente econômico individual (esse, capaz somente de promover o

“crescimento econômico”). O dualismo entre crescimento versus desenvolvimento expressa,

diz a autora, a disputa na teoria econômica entre aqueles que defendem o laissez-faire, o livre-

mercado, incólume de interferência estatal, e aqueles que veem imperfeições e desajustes

inerentes nesse tipo de funcionamento da economia. O “desenvolvimentismo”, por sua vez,

corresponderia a um conjunto de postulados não necessariamente assumidos pela noção mais

ampla de desenvolvimento.

(...) o desenvolvimentismo nasce de uma constatação de deficiência

estrutural e crônica como base lógica de intervenção com objetivo de

transformação. Portanto, é mais que desenvolvimento: é mudança social

sistêmica, orientada e sustentada politicamente (CEPÊDA, 2012, p. 79,

grifos nossos).

Assim, afirma a autora, o desenvolvimentismo está associado ao diagnóstico de atraso

de certas sociedades, nas quais o capitalismo não se consolidou completamente, gerando, por

Page 183: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

192

conseguinte, o “subdesenvolvimento”.92

Como observa corretamente Cepêda, o

subdesenvolvimento, dentro da linguagem do desenvolvimentismo, é compreendido como o:

(...) resultado das relações históricas que brotaram do desenho realizado pelo

colonialismo, pela expansão mercantilista, pela arquitetura do comércio

internacional ricardiano e por novas formas de dominação econômica, que

incluíram excluindo mediante a posição subalterna e complementar

(geralmente na fórmula do modelo primário-exportador) (idem, ibidem, p.

80, ênfases da autora).

Assim, a ideologia do desenvolvimentismo, como caracteriza Bielschowsky, foi

engendrada a partir da ideia de que as teorias econômicas tradicionais, particularmente

aquelas que garantem um funcionamento ótimo da economia de mercado quando ausente as

interferências externas, não podem ser admitidas nem como explicação para o atraso

econômico, social e político de alguns países (como os da América Latina) e muito menos

como solução para a superação desse atraso:

E esse movimento [desenvolvimentismo] combinado afasta-se dos

paradigmas da teoria econômica clássica, em dois pontos essenciais: no

reconhecimento de que a patologia do subdesenvolvimento resulta do efeito

perverso da tese da mão invisível (que funciona às avessas nas economias

primário-exportadoras) e na patologia dos gargalos estruturais, do atraso

tecnológico e dos limites do investimento endógeno, presentes mesmo em

situações de arranque (...) ou brecha histórica. Tanto a formação do

subdesenvolvimento (modelo mercantil-exportador) quanto na situação de

brecha histórica/arranque são recusados postulados centrais do liberalismo

como a premissa das vantagens competitivas, da inércia progressiva do

arranque e da autonomia decisória dos agentes econômicos privados

(BIELSCHOWSKY, 1996, p. 80).

Destarte, o desenvolvimentismo apresenta-se como teoria alternativa ao cânone na

economia clássica, focando nos países que – por razões de ordem histórica – permaneceram à

margem do capitalismo numa condição de subalternidade, ainda que não mais propriamente

colonial.

Ainda segundo Cepêda, no Brasil, o desenvolvimentismo se formou historicamente

incorporando duas linhagens do pensamento brasileiro: de um lado, o legado das grandes

interpretações do Brasil, formuladas desde o final do século XIX até os anos 1930, a partir de

pensadores como Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de

Holanda, Gilberto Freyre, etc., que, em geral, procuram compreender as razões do atraso

brasileiro a partir de aspectos diversos da identidade nacional. De outro lado, a tradição no

pensamento brasileiro de autores que associam esse atraso ao estatuto colonial do país, à sua

92

No entanto, como veremos, mais do que um “capitalismo inconcluso” (CEPÊDA, op. cit., p. 80), o

subdesenvolvimento não é, para Furtado, uma etapa anterior ou mal superada de capitalismo, mas uma forma

de concretização do sistema capitalista mundial em certas regiões do globo.

Page 184: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

193

condição econômica agrário-exportadora, tais como Caio Prado Jr. e Roberto Simonsen.93

Nesse sentido, a proposição de Francisco de Oliveira faz coro à exigência corrente de que a

obra de Furtado, particularmente Formação econômica do Brasil, seja colocada ao lado dos

“demiurgos do Brasil”, isto é, as grandes obras de interpretação do passado e destino da

nação,

(...) que moldaram, definitivamente, nossa maneira de compreender a

formação da sociedade, do Estado e da nação, com suas formas sociais,

econômicas, políticas e culturais, com seus estigmas e modos de

relacionamento que nos imprimiram um selo especial (OLIVEIRA, 2009, p.

489).

Cumpre, contudo, esclarecer que a noção específica de subdesenvolvimento não é

exclusivamente brasileira, tendo sido gestada teoricamente no interior da CEPAL (Comissão

Econômica para a América Latina), organismo criado pela ONU em 1948 e presidida

inicialmente pelo economista argentino Raul Prebisch, que formulou não apenas uma

teorização importante acerca do capitalismo mundial, compreendido pela díade conceitual

centro-periferia, como propôs um conjunto de ações a serem promovidas pelo Estado a fim de

superar o subdesenvolvimento.94

Contra a ortodoxia econômica segundo a qual o processo de difusão tecnológica

mundial tenderia a favorecer indistintamente todos os países, Prebisch inovou ao sustentar a

tese da “deterioração dos termos de troca” e da consequente necessidade do planejamento

estatal da economia. A crítica à econômica clássica já aparece num dos primeiro documentos

formulados por Prebisch quando na CEPAL, o “Manifesto Latino Americano”, de 1949, em

que o argentino exorta os economistas do continente à independência teórica e à contestação

da falsa universalidade pretendida pela econômica clássica e neoclássica.

De acordo com essa tese, os países que se industrializaram primeiro são favorecidos

nas transações econômicas com as nações atrasadas ou que se industrializaram mais

tardiamente:

Na periferia, que teve a função de suprir o centro com alimentos e matérias-

93

Furtado adotou nas suas primeiras obras propriamente de economia (desde sua tese de doutorado, defendida

em Paris em 1948) o método estruturalista na análise econômica, combinado com a perspectiva histórica, o

que permitiu à sua obra produzir uma narrativa de longo prazo da formação do Brasil e de seus impasses.

Como identificou corretamente o historiador francês Fernand Braudel, a partir da interpretação furtadiana do

Brasil, o país é compreendido como um elemento dentro de um sistema mais amplo que é o capitalismo

mundial, e que viveu sua fase de expansão a partir do século XV. Nesse sentido, ainda que Caio Prado Jr. seja

raras vezes citado por Furtado em suas obras, é certo que ambos partem de uma mesma perspectiva de

interpretação do país: a condição atual atrasada brasileira só pode ser compreendida a partir de uma visão

integral do sistema capitalista. 94

Maiores informações a respeito do contexto de criação da Cepal, ver: MORAES, 1995.

Page 185: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

194

primas a baixo preço, o progresso técnico só foi introduzido nos setores de

exportação, que eram verdadeiras ilhas de produtividade, em forte contraste

com o atraso do restante da produção (BIELSCHOWSKY, 1996, p. 16).

Criticando a tese corrente de que a especialização no comércio internacional seria

inevitavelmente vantajosa para todos os países, Prebisch sustenta que os produtos primários

exportados pelos países periféricos tem baixa elasticidade-renda num mundo crescentemente

industrializado, isto é, são cada vez menos importantes na economia dos países centrais, ao

passo que os produtos manufaturados exportados pelos últimos (e consumidos pela periferia)

têm elevada elasticidade-renda. Logo, a assimetria entre centro e periferia tenderia a

aumentar. Assim, a expansão mundial do capitalismo não trouxe (nem trará no futuro),

automaticamente, uma maior equidade entre as nações, mas, ao contrário, dividiu o mundo em

um centro desenvolvido e uma periferia cada vez mais subdesenvolvida.

A alocação de recursos na periferia, para Prebisch, acaba consolidando uma

heterogeneidade estrutural das economias subdesenvolvidas, excessiva no setor exportador e

deficitária nos demais setores da economia nacional. Aqueles que são beneficiados pela

elevada produtividade das exportações, no entanto, não buscam aplicar o capital no

desenvolvimento de outras atividades rentáveis, como a indústria. As elites, historicamente

favorecidas pelo padrão primário-exportador, ao contrário, reproduzem na periferia os padrões

de consumo típicos dos países desenvolvidos, utilizando a renda para ostentação e luxo.

Enfim, falta a elas o espírito próprio aos capitalistas que permite empregar a poupança interna

na expansão do capital:

O círculo vicioso da estagnação, nos países subdesenvolvidos, é aí

nitidamente apontado: baixa produtividade pela ausência de capital, ausência

de capital pela estreita margem de poupança, estreita margem de poupança

pela baixa produtividade. Mais ainda: a margem de poupança não é apenas

restrita, mas também impropriamente utilizada (MORAES, 1995, p. 40,

ênfases do autor).

A única possibilidade de quebrar esse “círculo vicioso” do subdesenvolvimento é, na

visão dos intelectuais da CEPAL, através da industrialização que permitirá reter os frutos do

progresso técnico e superar a deterioração dos termos de intercâmbio95

. A difusão desigual do

progresso técnico, quando confrontados centro e periferia do sistema capitalista internacional,

produtora do subdesenvolvimento tenderia, caso contrário, a se eternizar pelo simples

funcionamento do mercado, exigindo, portanto, um ato político de ruptura liderado pelo

95

Como se verá, Furtado, em suas obras iniciais, parece dar razão a esse tipo de argumento, mas em textos

posteriores argumenta que a industrialização é causa necessária, mas não suficiente do desenvolvimento,

como comprovou a história brasileira de 1950-80.

Page 186: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

195

Estado.

Prebisch considerava que logo após a crise de 1929, que afetou drasticamente as

economias desenvolvidas, ter-se-ia criado, todavia, a possibilidade de um processo

espontâneo de industrialização para o mundo subdesenvolvido. Se isso transformou essas

economias, não conseguiu, no entanto, superar por completo o subdesenvolvimento, já que

elas permaneciam fracamente diversificadas, com baixa integração entre os setores

econômicos de cada país e pouco produtivas, com a exceção, é claro, do setor de exportação96

.

Vê-se, portanto, que mesmo em condições relativamente favoráveis às nações

subdesenvolvidas, o capitalismo mundial não eliminava a distinção estrutural entre centro e

periferia. Prova disso é que essa última continuava a se defrontar com problemas típicos do

subdesenvolvimento, tais como desemprego crescente, desequilíbrio externo e inflação.

Como foi dito, a partir desse diagnóstico formulado na CEPAL, concluía-se pela

necessidade do Estado empreender um planejamento global e racional da economia, com

vistas a superar esses entraves estruturais ao desenvolvimento: “o planejamento aparece no

pensamento cepalino como corolário natural do diagnóstico de desequilíbrios estruturais na

industrialização espontânea dos países periféricos” (MORAES, 1995, p. 26).

Esse planejamento previsto pela CEPAL envolveu desde a avaliação precisa da

economia da cada país (estimativa sobre a taxa de crescimento econômico, de poupança

interna, a capacidade de importar, etc.) até medidas diretas de substituição de importação, de

proteção a certos setores da economia nacional, etc. A “política econômica intervencionista,

protecionista e industrializante” é, para os autores cepalinos, a “única esperança de

sobrevivência para um mundo que desejasse combinar estabilidade, controle social e

liberdade de iniciativa” (idem, ibidem, p. 36). A proposta cepalina, sob a pena de Raul

Prebisch, pode, destarte, ser resumida nos seguintes termos:

a) O empresariado no centro capitalista teria maior capacidade sindical e força política para

reter os ganhos do progresso técnico.

b) Enquanto isso, nos países periféricos, constata-se a incapacidade de concorrência

empresarial e debilidade dos sindicatos.

c) As elites periféricas têm grande propensão ao consumo ostentatório e imitativo.

d) As proposições anteriores indicariam a necessidade de industrialização induzida pelo

Estado para reter os ganhos.

e) Logo, defende-se uma política que corrija a especialização supostamente “natural”:

recomenda-se o protecionismo e a intervenção pública (idem, ibidem, p. 38, ênfase do

autor).

Percebe-se que o pensamento cepalino de meados do século XX foi fundamental para

96

Diagnóstico muito similar ao de Prebisch foi formulado por Furtado em 1959, com a publicação de

Formação econômica do Brasil, a respeito do governo de Getúlio Vargas. Voltaremos a esse ponto adiante.

Page 187: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

196

demonstrar a inadequação do arcabouço teórico da economia clássica, forjada no contexto dos

países centrais, para compreender a natureza do subdesenvolvimento e para, doravante,

propor um projeto político de sua superação.

Prebisch identificava que seu empreendimento intelectual visava conformar uma

verdadeira “síntese entre socialismo e liberalismo” (PREBISCH apud MORAES, 1995, p. 34)

de modo a garantir a propriedade privada e a liberdade individual (prezada pelas sociedades

liberais modernas) e, ao mesmo tempo, corrigir os problemas da economia de mercado,

socializando o excedente de produção e diminuindo as desigualdades sociais. Nesse sentido,

parece apropriado o comentário de Reginaldo Moraes ao sustentar que a teoria cepalina não

deve ser entendida como mero apêndice à economia clássica, ou seja, como um capítulo à

parte formulado para entender especificamente a dinâmica da periferia e que, posteriormente,

quando já superado o subdesenvolvimento, poderia ser descartado. O que é, de fato, proposto

é em lugar do “capitalismo predatório e instável”, “um novo pacto internacional, fundador

do Estado Mundial de Bem-Estar” (MORAES, 1995, p. 43, grifos nossos).

Prebisch e a CEPAL foram profundamente influenciados pela revolução produzida na

economia pelo inglês John Maynard Keynes, um liberal cívico importante do século XX.97

Como keynesiano, Prebisch assevera a necessidade da intervenção do Estado a fim de superar

a “defasagem entre os efeitos sociais e provados da alocação espontânea dos recursos

produtivos” (idem, ibidem, p. 34). A intervenção sistemática e planejada do Estado sobre o

mercado seria a condição para garantir a racionalidade desejada no plano macroeconômico,

necessária para compensar, no plano micro, a irracionalidade própria aos agentes econômicos

individuais. O Estado, mediante a política fiscal, creditícia, alfandegária e monetária, além do

investimento feito em setores estratégicos da economia, deveria perseguir o interesse comum

da sociedade numa perspectiva de longo prazo.

Moraes acrescenta que a CEPAL elabora um projeto político recorrendo à ideia de uma

técnica “neutra” para promover o desenvolvimento, técnica essa formulada por uma

intelligentsia que se vê responsável pelo destino da nação e que procura se apresentar como

não pautada pela disputa partidária e política local: “a comunidade dos gestores politicamente

referendados é nos sonhos cepalinos, a única sociedade possível, no futuro e nos níveis

racional e mundial” (idem, ibidem, p. 49, ênfases do autor).98

97

Seguimos, nesse passo, as interpretações de: BELLAMY, 1994; GUERRA, 1998. 98

Voltaremos a tratar da concepção de intelectual público própria a Furtado. De qualquer modo, cumpre anotar

que a caracterização do seu pensamento como “tecnocrata” parece excessiva, haja vista o caráter

notoriamente democrático do planejamento estatal proposto por ele.

Page 188: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

197

Sob essa perspectiva, avalia o autor, os cepalinos se depararam no seu projeto de

superação do subdesenvolvimento com dilemas de difícil solução, tais como: como convencer

a sociedade, condicionada pelo subdesenvolvimento, da necessidade do “sacrifício” imediato

a ser feito para as melhoras futuras, isto é, “persuadir os privilegiados de que o projeto

reformador lhes convém?” (idem, ibidem, p. 50) Mais ainda: como realizar essa transformação

sistêmica das sociedades periféricas sem uma “regimentação ‘totalitária’ da economia?”

(idem, ibidem, p. 47). Como a “parteira da história”, comenta Moraes, a CEPAL assumia a

responsabilidade de fomentar a ruptura com laços históricos duradouros, contrariando

interesses nacionais arraigados e mesmo desestabilizando o centro do capitalismo através de

uma “economia da razão” e de uma “política da persuasão” (idem, ibidem, p. 52). De acordo

com a sua interpretação, Prebisch e os demais autores cepalinos acreditavam que a solução

consistiria, inevitavelmente, em alguma forma de tutela racional do Estado e de seu

estamento, aliado à liderança da burguesia nacional, sugerindo claramente que o projeto

cepalino continha em germe um elemento não democrático.99

4.2 – A contribuição furtadiana

Vários dos elementos antes descritos como típicos do pensamento desenvolvimentista

e cepalino estão também presentes na obra de Celso Furtado. A devida apreciação de seu

pensamento requer, no entanto, o contraste com as tendências do debate desenvolvimentista,

bem como com o pensamento gestado no interior da CEPAL, da qual o pensador brasileiro fez

parte. Falando nos termos propostos por John Pocock, a identificação da langue furtadiana

requer a compreensão da parole própria à época em que esse autor escreveu. Se Furtado foi,

como defendem alguns de seus intérpretes, o intelectual mais importante dessas duas

tradições, é porque não se limitou a reiterar suas proposições fundamentais, mas propôs uma

nova compreensão acerca do subdesenvolvimento e, sobretudo, do Brasil. Sobre isso, resume

Bielschowsky:

Celso Furtado foi o grande economista da corrente desenvolvimentista de

tendência nacionalista no Brasil. Co-autor das teses estruturalistas, aplicou-

as ao caso brasileiro e divulgou-as no país com grande competência, dando

consistência analítica e garantindo unidade mínima ao pensamento

econômico de parcela significativa dos técnicos governamentais engajados

no projeto de industrialização brasileira. Seu fôlego inesgotável e sua

admirável capacidade de combinar criação intelectual e esforço executivo,

99

Novamente, esse diagnóstico de Moraes sobre a Cepal parece no mínimo contestável e, no caso da obra

furtadiana, certamente equivocado.

Page 189: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

198

assim como sua habilidade e senso de oportunidade para abrir espaço às

tarefas desenvolvimentistas que propagava, explicam a enorme liderança que

exerceu entre os economistas da época. Tornou-se, indiscutivelmente, uma

espécie de símbolo da esperança desenvolvimentista brasileira dos anos 50

(1996, p. 132).

Juarez Guimarães reitera a importância desse autor, considerando-o um “clássico”, na

medida em que “sua obra contém uma narrativa coerente sobre as origens, a identidade e o

destino do Brasil” (2000, p. 18). Esse autor pondera ainda que Formação econômica do

Brasil é um “livro orgânico, no sentido de que é expressão máxima da inteligência nacional-

desenvolvimentista” (idem, ibidem, p. 18).

Sobre esse ponto, Bielschowsky assevera que a proeminência de Furtado como

intelectual da corrente nacional-desenvolvimentista é consequência de três contribuições

fundamentais de sua obra. Em primeiro lugar, o fato de ter formulado uma defesa bem

fundamentada da “liderança do Estado na promoção do desenvolvimento”

(BIELSCHOWSKY, 1996, p. 134). A obra Formação econômica do Brasil, foi decisiva na

história do nacional-desenvolvimentismo e na CEPAL uma vez que conseguiu dar

consistência histórica à abordagem estruturalista típica dessa escola:

Para entender o significado da inovação que a obra contém, é necessário ter

em conta que, no início dos anos 50, a referida abordagem apresentava-se

ainda duplamente vulnerável: em primeiro lugar, o quadro analítico

estruturalista encontrava-se imperfeitamente delineado e a argumentação

pecava por falta de sistematização, o que tornava a proposta cepalina de

análise às teorias convencionais difícil de ser aceita; e, em segundo lugar, era

indispensável a essa proposta a demonstração de que a evolução histórica

dos países que em meados do século XX continuavam subdesenvolvidos era,

necessariamente, distinta daquela dos países desenvolvidos (idem, ibidem, p.

162-163).

Ainda que admitisse a contribuição de capitais estrangeiros (em alguns segmentos da

economia e sob o controle do Estado), Furtado acreditava que só a direção estatal da

economia poderia internalizar os centros de decisão, acabando com a histórica submissão do

Brasil aos interesses estrangeiros. Como se vê, a defesa da intervenção estatal está atrelada ao

diagnóstico da não superação do subdesenvolvimento via mecanismos do mercado e da

afirmação incondicional do princípio da soberania nacional como requesito para o

desenvolvimento, constituindo, como havíamos dito, um dos pontos fundamentais de sua

linguagem política republicana.

Uma segunda contribuição fundamental de Furtado foi, na opinião de Bielschowsky, a

justificação de que a política monetária e cambial estivesse submetida à política de

desenvolvimento, contestando as exigências que eram feitas à época pelos programas de

Page 190: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

199

estabilização propagandeados pelo FMI.

Um terceiro ponto destacado pelo autor é o compromisso com o bem-estar social

presente na obra furtadiana: a meta do desenvolvimento não poderia, destarte, estar separada

da redistribuição da riqueza e da melhoria das condições matérias de vida dos brasileiros.

Como já dizia o próprio Furtado:

As grandes tensões sociais que caracterizam a vida nacional na fase

atual parecem ter a sua causa principal no desajustamento existente

entre as expectativas criadas pelo próprio desenvolvimento no conjunto

da população e o limitado acesso permitido aos frutos desse

desenvolvimento. Constitui um equívoco, generalizado entre os leigos,

supor que as tensões são causadas pelo sacrifício que o desenvolvimento

exige da população. Desenvolvimento, por definição, significa aumento na

disponibilidade bens e serviços para fins de consumo e investimento. E não

há aumento de investimento, numa economia de livre empresa, sem haver

também aumento de consumo. Desta forma, desenvolvimento é aumento de

consumo, e aumento de consumo não pode ser identificado com alguma

forma de sacrifício (FURTADO, 1962, p. 41, grifos nossos).

No contexto tenso dos anos que precederam o golpe militar no Brasil, vemos Furtado

afirmando que se o desenvolvimento não se concretizasse em melhorias evidentes para o povo

brasileiro, as melhorias sociais, econômicas e políticas obtidas no interregno 1945-62

poderiam ser subtraídas. Pois, para Furtado, o Brasil nos anos 1960 já havia conseguido

superar alguns dos entraves do subdesenvolvimento, diversificando a economia,

industrializando-se, mas estava longe de superar o quadro geral do subdesenvolvimento, haja

vista, entre outros fatores, que as desigualdades sociais no mesmo período elevaram-se

substancialmente.

Vera Alves Cepêda caracteriza o “velho desenvolvimentismo” como uma proposta que

foca na promoção da industrialização pesada; nesse caso, a questão da distribuição da riqueza

é posta como uma meta secundária. Sobre isso ela comenta:

O mote crescer antes, para distribuir depois não é acidental, mas uma

metáfora exemplar do compromisso e custos sociais necessários no projeto

de desenvolvimento (2012, p. 84).

Como a própria autora esclarece, esse mote foi introduzido pelo economista Roberto

Simonsen na década de 1930, início do ciclo ideológico do desenvolvimentismo, e novamente

reiterado por Delfim Neto, durante o regime militar (1964-85), ou seja, no fim do período do

“velho desenvolvimentismo”, para justificar o modelo de crescimento adotado com clara

concentração de renda. Celso Furtado, ao contrário de muitos desenvolvimentistas, contestou

radicalmente esse princípio de que primeiro era necessário fazer crescer o bolo, para depois

reparti-lo:

Page 191: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

200

Um dos poucos intelectuais apartados dessa proposição no período foi

Furtado ao afirmar que a distribuição de renda como centro da dinâmica para

a superação do subdesenvolvimento e por definir desenvolvimento enquanto

um projeto holístico de modernização da cultura e instituições com equidade

social (idem, ibidem, p. 87).

É interessante observar como a obra furtadiana é ainda hoje lembrada como uma

reivindicação robusta e incondicionada por justiça social. Como afirmamos, esse é um dos

cinco pontos fundamentais de sua linguagem política. André Singer, por exemplo, ao tratar

das políticas que melhoram as condições materiais de vida do povo brasileiro empreendidas

no governo Lula (e que, segundo a tese fundamental de seu livro, teriam contribuído para um

realinhamento eleitoral no país), tais como a expansão do crédito consignado, a valorização

real do salário mínimo, as políticas de transferência direta de renda, (como o programa Bolsa

Família), etc., relembra que a exclusão social é um tema caro à ciência social brasileira, e foi

paradigmaticamente expressa nas obras de Furtado e Caio Prado Jr.:

Para Celso Furtado e Caio Prado Jr., as virtualidades e empecilhos que tinha

a nação para romper o círculo vicioso do atraso estavam vinculados à

existência da massa de miseráveis do país (SINGER, 2012, p. 16, ênfases do

autor).

A tese de Singer é que as transformações sofridas no Partido dos Trabalhadores

resultantes do lulismo – políticas progressistas assentadas sobre um pacto político

conservador – fizeram substituir o lema da “luta de classes” e de um projeto de confrontação

com o capital por outro desenvolvimentista, cuja “gramática é nacional-popular” (idem,

ibidem, p.122-123), com clara inspiração (podemos acrescentar) na obra furtadiana.

A reivindicação histórica de Furtado por justiça social coincide perfeitamente com sua

atuação política, por exemplo, na formulação do projeto da SUDENE, da qual foi o principal

criador e diretor, e das reformas de base, quando era ministro do Planejamento do governo

João Goulart. Como no caso de Faoro (em que identificamos uma concordância entre o

homem público, defensor do Estado de direito democrático, e o autor de Os donos do poder),

percebe-se claramente que a obra intelectual de Furtado condiz com sua atuação pública a fim

de construir no Brasil um Estado desenvolvimentista que conciliasse políticas de bem-estar

social com um perfil profundamente democrático. Ao vincular desenvolvimento à inclusão

social, este autor estava considerando que era urgente que o Estado brasileiro promovesse a

universalização da cidadania no país.

Como argumenta Singer, o golpe de 1964 é não somente uma abrupta interrupção num

processo de crescente redistribuição de renda (como se verifica nos decênios anteriores ao

golpe), como um retrocesso social na medida em que o projeto desenvolvimentista dos

Page 192: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

201

militares (do qual o economista Delfim Neto foi um dos principais formuladores) fez com que

crescesse a desigualdade de renda no país. Nesse sentido, Singer observa que as políticas de

diminuição da pobreza, de valorização do salário mínimo, etc. adotadas na primeira década do

presente século, fizeram com que as desigualdades sociais no Brasil do século XXI, depois de

substantiva, mas insuficiente melhora, voltassem a atingir os patamares de antes do golpe.

Sobre o tema da justiça social no pensamento de Furtado, Bielschowsky observa que

“o peso maior de sua argumentação iria residir na ideia de que a reestruturação agrária a

redistribuição de renda são reformas indispensáveis” (1996, p. 154) para o desenvolvimento

do país. Sobretaxar o consumo das classes mais ricas significa não apenas garantir maior

equidade social, como também promover a poupança interna do país, condição para o

crescimento econômico.

Está estatisticamente demonstrado que o desenvolvimento implica

desconcentração na distribuição de renda. Admite-se mesmo que seria

impossível lograr o nível de renda per capita dos Estados Unidos, da Suécia

ou da Austrália com uma estrutura de distribuição da renda como a que

prevalece no Brasil. Não há dúvida alguma de que o desenvolvimento exige

e provoca essa redistribuição (FURTADO apud BIELSCHOWSKY, 1996, p.

157-158).

Vê-se que a posição de Furtado é antagônica a certas vertentes do liberalismo que

tendem a naturalizar as desigualdades sociais e tomar de modo absoluto e incontestável o

direito à propriedade privada, como nota Guimarães (2000, p. 29).

Chegamos, portanto, a um segundo ponto fundamental da linguagem democrática

furtadiana: as desigualdades regionais. Furtado, além de ter conhecido de perto a região a

mais pobre do Brasil, empenhou-se tanto intelectualmente à compreensão da questão do

Nordeste, como homem público, no qual se destaca sua atuação na criação e direção da

SUDENE. Seu esforço consistiu em contestar a visão tradicional acerca do Nordeste e das

políticas voltadas para ele, visando substituir as medidas de combate à seca e de

assistencialismo que mantinham o povo local sob o domínio dos grandes proprietários de

terra:

As análises de Furtado partiam frequentemente de uma crítica à tradição

assistencialista de combate às secas. O autor argumentava, então, que

também se sobreestimava a importância do problema das secas,

relativamente às dificuldades econômicas da região como um todo. Além

disso, dizia, estaria sendo dado um tratamento equivocado ao próprio

combate às secas. Segundo Furtado, a escassez de água deveria ser encarada

como uma situação permanente a ser devidamente enfrentada

(BIELSCHOWSKY, 1996, p. 159).

Furtado contestou publicamente o senso comum brasileiro no que diz respeito às

Page 193: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

202

políticas estatais dirigidas ao combate da seca do Nordeste. Ao invés de combater a escassez

de água, o autor propunha uma política que permitisse ao nordestino a fixação naquele

território e a adequação de suas atividades econômicas ao bioma local. Para o autor, a

principal limitação da região não é, a rigor, a carência de água, mas o seu mau aproveitamento

econômico; ele propõe, então, um maior conhecimento dos recursos naturais da região, o

desenvolvimento de técnicas de produção adequadas ao meio, tal como a implantação de uma

política migratória, deslocando a fronteira agrícola para além da caatinga, industrializando

parte do Nordeste e aproveitando o excedente de mão de obra da região semiárida, e tornando

a economia da região mais diversificada. Ele, destarte, contrariava “a tese das elites regionais,

que patrocinavam a política hidráulica para acumular água em suas terras e aumentar a

dominação sobre os mais vulneráveis” (ARAÚJO, 2009, p. 37).

Assim, a crítica de Furtado acerca das políticas adotadas para o Nordeste tem duas

vertentes principais. A primeira consiste em realçar a sua ineficiência, uma vez que tratavam a

seca como o mal maior da região, desconsiderando-a como traço intrínseco àquele

ecossistema, assim como a neve faz parte do mundo dos esquimós (FURTADO, 2009, p. 24).

A segunda vertente de críticas do autor consiste em denunciar que as tradicionais políticas

assistencialistas de combate às secas apenas reforçavam os laços de dependência entre os

camponeses e os grandes latifundiários. Elas, enfim, minavam as bases sociais para garantir a

consolidação de uma autêntica democracia na região. Como resume Tânia Bacelar de Araújo

acerca do projeto furtadiano para o Nordeste: importa “montar uma nova estrutura produtiva,

agora mais consistente com a ecologia regional e menos excludente socialmente” (2009, p.

40).

Há ainda a questão da industrialização da região, sobre a qual Furtado formulou uma

opinião bastante atípica. Mesmo tendo participado da formulação do Plano Trienal do

governo de Juscelino Kubistchek, o autor não o poupou quando se tratava de analisar o

modelo de industrialização adotado nos anos 50 no país. Como nota Araújo, se era de fato

louvável o esforço do governo federal em promover a industrialização – uma das metas do

governo desenvolvimentista preconizado por Furtado – era condenável o fato de que esse

esforço não apenas não era dirigido para combater as desigualdades regionais, como as

aprofundava, fazendo com que boa parte dos investimentos em indústria se dirigisse para o

Centro-Sul brasileiro, especialmente para São Paulo. Como observa a autora, a crítica de

Furtado é fortemente contra-hegemônica, haja vista que à época predominava um sentimento

otimista quanto ao lema dos “50 anos em 5”. É nesse contexto que Furtado formulará sua tese

Page 194: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

203

do “comércio triangular”, a fim de sustentar sua crítica a forma desigual de desenvolvimento

promovido pelo Estado no país. Para defender essa tese,

Ele denunciou, assim, a existência de um importante vazamento de renda via

o que chamou de “comércio triangular”. Isto porque, para proteger a

industrialização nascente, o mercado consumidor do Nordeste era obrigado a

comprar bens do Sudeste, quando podia usar seu saldo comercial com o

exterior para importar os bens de que necessitava, em geral a preços mais

vantajosos. Furtado mostra, assim, que o Nordeste financiava parte do

processo de industrialização que se intensificava em outra região (ARAÚJO,

2009, p. 36).

Percebe-se que a avaliação de Furtado acerca das desigualdades regionais mais do que

ser simplesmente uma tematização de um problema local, o do Nordeste, incide sobre a

própria questão federativa brasileira. Segundo Francisco de Oliveira, Celso Furtado é o:

Único clássico do pensamento social brasileiro que colocou a questão da

federação no centro de suas preocupações teórico-práticas, propondo, no fim

da década de 1950, a refundação do pacto federativo, mudando-lhe a escala e

os recortes, para uma espécie de federação regionalizada (2001b, p. 218).

Sua proposta de revigorar o federalismo brasileiro implicava que o planejamento

estatal da economia considerasse “os custos ecológicos e sociais da aglomeração espacial das

atividades produtivas”, ignoradas pelas empresas privadas e públicas, além do “fortalecimento

da instituição parlamentar”, isto é, o “poder que reúne os representantes do povo de todas as

regiões” (FURTADO, 1999, p. 56).

Ricardo Ismael pondera que Furtado foi o grande expoente intelectual do modelo de

“federalismo cooperativo” vigente no país entre 1945-64. Diferentemente do federalismo dos

Estados Unidos, a situação de profundas assimetrias econômicas e sociais e dependência de

entes da federação em relação a outros, exigiria, no nosso caso, a adoção de um modelo

federativo no qual se dá uma descentralização parcial dos recursos públicos federais,

destinados a órgãos decisórios intermediários – como a SUDENE – apoiados em uma forma

de planejamento dirigido pela União, mas de forma não-autoritária. Ismael contrapõe

corretamente a proposta furtadiana do federalismo cooperativo ao do “unitarismo autoritário

do Estado Novo, defendido por Oliveira Vianna” (ISMAEL, 2009, p. 236), justificada, como

se sabe, pelo caráter insolidário de nossos costumes e poder privado dos oligarcas, na opinião

de Vianna. Como bem observa Ismael, para Furtado, era necessário encontrar uma solução

democrática para o problema das desigualdades regionais que debilitavam o pacto federativo:

“a saída não era abandonar o regime democrático nem tampouco seguir os rumos do

federalismo da República Velha” (idem, ibidem, p. 236, grifos nossos).

Page 195: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

204

O reformismo furtadiano (que se opunha às soluções autoritárias da direita, bem como

às revolucionárias da esquerda) pretendia, por meio da criação de instâncias decisórias

intermediárias entre a União e os estados, transformar a estrutura social desigual das regiões

mais atrasadas do país. Nesse sentido, a consecução de tal finalidade destruiria as bases

sociais da dominação oligárquica, histórica nessas regiões, evidenciando, portanto, o sentido

de democratização inerente ao projeto furtadiano para o Nordeste. Ao mesmo tempo, o

federalismo cooperativo pressupunha um papel decisivo a ser desempenhado pelo Congresso

Nacional: “não apenas porque reúne as bancadas estaduais diretamente responsáveis pela

formulação do pacto federativo, mas também por conduzir o processo de redemocratização”

(ISMAEL, op. cit., p. 244). Seria necessária uma ampla cooperação entre governadores dos

estados e as bancadas no Legislativo a fim de garantir a realização do planejamento federal

para o desenvolvimento dessas regiões.

Em lugar de propor simplesmente mudar a representação na câmara dos

deputados, para favorecer os estados mais populosos, tese simplista que

frequentemente percorre os discursos em São Paulo, ousou propor a

mudança na forma da articulação federativa e uma gestão compartilhada dos

recursos nacionais entre a União e os estados, propondo, também, uma nova

representação que não lhe substituía aquela inspirada nos princípios

democráticos, mas acrescentava-lhe a dimensão regional, para remar contra a

tendência de desfiguração da federação pelas enormes pressões do próprio

desenvolvimento (OLIVEIRA, 2001b, p. 219).

Além das medidas para promover a diversificação econômica e a industrialização do

Nordeste, o autor considerava que uma distribuição mais equânime das terras era condição

sine qua non para a superação do atraso da região, sobretudo na região agreste:

Para o agreste, recomendou uma ampla reforma da estrutura agrária, que

liberasse as terras ocupadas pelos latifúndios pecuaristas, de modo a ampliar

a economia camponesa, até então dedicada ao cultivo de alimentos, em

condições de absoluta escassez de terras (e de capital) e, consequentemente,

de baixíssima produtividade (BIELSCHOWSKY, 1996, p. 161).

Sem reforma agrária não seria possível expandir a oferta de alimentos na região. Tânia

de Araújo observa que Furtado julgava que era preciso garantir terra e educação para toda a

população:

Ele estava convencido, à luz do que ocorrera, que, enquanto não se mexer na

estrutura fundiária e não se promover o acesso da população ao

conhecimento, a tragédia regional não será equacionada. O investimento é

apropriado pelas elites, não chega à população (ARAÚJO, 2009, p. 41).

A reforma agrária era defendida pelo autor inclusive porque a concentração da terra

favorece existência de estruturas sociais desligadas do processo produtivo e inclinadas a

Page 196: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

205

elevados padrões de consumo, que distorcem as importações e prejudicam a o equilíbrio das

contas do país.

Além do problema da improdutividade e do desperdício verificado no modo de vida

das classes proprietárias de terra no Brasil, Furtado está particularmente preocupado com a

suas consequências políticas, tais como conhecia com propriedade em sua região de origem, o

Nordeste. O poder dos “coronéis” era um dos entraves na visão de Furtado para a

implementação das reformas necessárias à superação do subdesenvolvimento100

. Como

comenta Ismael: “a reforma agrária tornava-se urgente para quebrar a estrutura social fechada

do setor rural e garantir o acesso aos direitos sociais dos trabalhadores rurais” (2009, p. 242).

Pelo conjunto das suas propostas, Furtado foi duramente criticado pela direita e pela

esquerda: pela primeira, por contrariar seus interesses tradicionalmente satisfeitos pelo

Estado; pela segunda, ainda que propusesse a realização da distribuição de terras em certas

regiões do país, por não defender a revolução socialista. O projeto reformista de constituição

de um Estado desenvolvimentista era, para ele, uma forma de atender às reivindicações

sociais legítimas dos excluídos no Brasil e garantir a abertura política a duras penas

conquistada.

Para fugir à ameaça golpista, à direita e à esquerda, a reforma agrária compunha uma

agenda pública defendida por Furtado na década de 1950-60, junto às reformas tributária

(com vistas a distribuir renda por meio de uma tributação progressiva) e administrativa (a fim

de combater a corrupção e a ineficiência). Para o autor, o Brasil corria dois grandes riscos na

década de 1960: se o desenvolvimento não produzisse uma substancial melhora nas condições

objetivas de vida do povo brasileiro, poder-se-ia ter uma revolução no campo, visto as

condições relativamente piores da zona rural; de outro lado, a intolerância das elites

econômicas brasileiras frente às reformas desenvolvimentistas necessárias, protegidas pelo

Congresso nacional profundamente conservador, poderia engendrar um golpe a fim de

silenciar as reivindicações populares. No período pré-golpista em que Furtado escreve, fica

claro o seu compromisso incondicional com a democracia, desde aquela época.

Retrospectivamente, Celso Furtado, que, como seu então diretor, viu a SUDENE ser

completamente desmontada pelos dirigentes militares, considerava que o golpe de 64

representou também uma perda diferenciada do ponto de vista da região, sendo o Nordeste,

mais uma vez, aquela que deveria pagar o maior custo por esse retrocesso.

Quaisquer que hajam sido as intenções dos autores do golpe militar de

1964, o seu efeito principal foi, sem lugar a dúvida, a interrupção do

100

Voltaremos a esse ponto quando falarmos mais diretamente sobre sua concepção de democracia.

Page 197: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

206

processo de mudanças políticas e sociais, entre elas, em primeiro lugar, a

construção que se iniciava de uma nova estrutura agrária em nosso país. Cabe acrescentar que o dano maior do golpe foi feito ao Nordeste, onde

era mais vigoroso o movimento renovador em curso de realização e onde

eram, e ainda são, mais nefastos os efeitos do latifúndio (FURTADO apud

ARAÚJO, 2009, p. 42, grifos nossos).

É importante destacar que se o duro golpe que a democracia brasileira sofreu em 1964

fez com que somente quarenta anos depois se recuperasse o mesmo nível de desigualdade

social verificado no início da década de 60 (com os governos Lula e Dilma, como argumenta

André Singer [2012]), o mesmo não pode ser dito a respeito da reforma agrária. Como avalia

Singer, mesmo com governos relativamente progressistas no início do século XXI,

permanecemos basicamente reféns ainda da política agrária consolidada pela ditadura civil-

militar que exclui o cidadão brasileiro comum do acesso à terra, negando-lhe uma base social

fundamental para o exercício da liberdade. Ao lado das desigualdades sociais e regionais, da

tributação regressiva, etc., a concentração fundiária brasileira é mais uma comprovação da

insuficiência do desenvolvimento promovido no país nas últimas décadas.

Retomando o argumento, é preciso dizer que Furtado caracteriza a economia

subdesenvolvida como uma estrutura dual: de um lado, um setor produtivo, o exportador,

marcado pela elevada produtividade e para qual toda a economia é dirigida; de outro lado, o

setor de subsistência, de baixa produtividade. A dualidade estrutural da economia

subdesenvolvida impede ao livre desenvolvimento do mercado interno e a internalização do

centro dinâmico da economia.

Isso implica que para conseguir desenvolver os países latino-americanos é necessário

utilizar de estratégias distintas das adotadas nos países centrais, especialmente uma atuação

mais contundente do Estado nas primeiras no sentido de forçar a diversificação da economia.

Vê-se claramente, nos argumentos do pensamento furtadiano a presença intelectual de Raul

Prebisch, conforme foi avaliado anteriormente.

Ainda nesse quadro intelectual, Furtado afirma que a heterogeneidade tecnológica –

consequência inevitável da estrutura dual do subdesenvolvimento – produz, por seu turno,

reduzido nível de excedente, o que significa pouca poupança para investir, inviabilizando a

industrialização espontânea. Furtado, como Prebisch, estava particularmente preocupado com

o modo pelo qual um país incorpora a tecnologia. Para ele, a autonomia ou heteronomia no

desenvolvimento tecnológico contribui para determinar a condição economia de um país, se

desenvolvido ou subdesenvolvido. Prebisch já havia questionado o princípio basilar da

economia clássica que assevera as vantagens comparativas da especialização econômica, ou

Page 198: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

207

seja, países como Brasil não seriam prejudicados pela ausência de indústria, já que o mercado

externo demandaria continuamente a produção de matérias-primas. Bielschowsky,

didaticamente, resume os principais pontos de convergência do pensamento de Furtado e do

de Prebisch:

a) conceituação do subdesenvolvimento periférico;

b) identificação da industrialização espontânea, compreensão de seu

significado e da sua dinâmica básica;

c) visão da industrialização periférica como processo histórico sem

precedentes e problemático;

d) teorização sobre inflação;

e) teorização em favor da industrialização, protecionismo e planejamento

(1996, p. 137).

Para Prebisch, como vimos, subdesenvolvimento é pensado como uma situação de

heterogeneidade econômica típica da periferia do capitalismo. Logo, o desenvolvimento é

compreendido como uma crescente homogeneização do sistema econômico de um país. De

acordo com Bielschowsky, a obra de Furtado sofistica essa compreensão na medida em que

sustenta que o subdesenvolvimento não deve ser entendido como uma mera etapa passada do

desenvolvimento; ao contrário, subdesenvolvimento e desenvolvimento são partes integrantes

de uma mesma diacronia de expansão do capitalismo internacional:

O subdesenvolvimento deve ser compreendido como um fenômeno da

história moderna, coetâneo do desenvolvimento, como um dos aspectos

da propagação da revolução industrial. Desta forma, o seu estudo não pode

realizar-se isoladamente, como uma “fase” do processo de desenvolvimento,

fase esta que seria necessariamente superada sempre que atuassem

conjuntamente certos fatores. Pelo fato mesmo de que são coetâneos das

economias desenvolvidas, isto é, das econômicas que provocaram e

lideraram o processo de formação de um sistema econômico de base

mundial, os atuais países subdesenvolvidos não podem repetir a experiência

dessas economias. É em confronto com o desenvolvimento que temos de

captar o que é específico ao subdesenvolvimento (FURTADO, 1968, p. 3-4,

grifos nossos).

Subdesenvolvimento, portanto, está relacionado à desigualdade estrutural verificada

em uma sociedade. O refinamento teórico possibilitado por Furtado nos faz compreender

melhor a história do Brasil, por exemplo, como parte de um longo processo, iniciado com as

grandes navegações e acelerado com a Revolução Industrial do século XVIII e que se

desdobrou em três configurações sociais distintas: a primeira que corresponde a formação dos

primeiros países industrializados do mundo; a segunda que consistiu “no deslocamento das

fronteiras de atividade econômica desses países a terras ainda desocupadas

(BIELSCHOWSKY, 1996, p. 138), como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália; e, por

Page 199: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

208

fim, a formação das nações subdesenvolvidas, isto é, estruturas econômicas híbridas, nas

quais alguns setores comportam-se como capitalistas e outros como tipicamente pré-

capitalistas.

A argumentação furtadiana de caracterização do subdesenvolvimento se dá por

contraposição às outras nações, particularmente as da segunda configuração como é o caso da

nação estadunidense. Se nesse último país o desenvolvimento “em fins do século XVIII e a

primeira metade do XIX constitui um capítulo integrante do desenvolvimento da própria

economia europeia” (idem, ibidem, p. 168), no Brasil a organização da economia se dirigia para

fortalecer as estruturas do subdesenvolvimento. Quando comparados Estados Unidos e Brasil,

no período de suas independências, salta aos olhos as diferenças econômicas e sociais que

levara o primeiro ao desenvolvimento acelerado e o segundo a permanência do

subdesenvolvimento, sobretudo no que diz respeito à industrialização, distribuição da terra,

dinamismo do mercado interno, diversificação da economia e disseminação de um padrão

tecnológico.

O atraso relativo do Brasil em relação aos Estados Unidos deve-se à sua

“não-integração”, no momento apropriado, nas “correntes em expansão do

comércio mundial”. Suas profundas “dissimilitudes” em relação aos países

adiantados compreendem a dualidade tecnológica, dada pela formação de

uma ampla economia de subsistência, e a pequena diversificação do aparelho

produtivo, dada pela inexistência de condições propícias à geração de um

processo cumulativo interno de produção e consumo (BIELSCHOWSKY,

1996, p. 174).

As diferenças estruturais entre a economia norte-americana e a brasileira tendiam,

segundo Furtado, a se reforçar ao longo do tempo. No primeiro caso, quando a economia

estava em expansão verificava-se uma crescente homogeneização da sociedade e quando ela

entrava em crise, visto que ela era profundamente diversificada (não concentrada no setor de

exportação), produzia-se uma socialização das perdas e o capital automaticamente se dirigia

para outras atividades. No caso dos países subdesenvolvidos, como o Brasil, a situação de

crescimento econômico favorecia a concentração de renda – uma vez que era o setor

exportador que gozava das benesses da expansão – e no caso de crises econômicas, ocorria

uma socialização das perdas.

Os mecanismos de socialização das perdas transferem “para a massa” os

prejuízos impostos pelo mercado externo. A crise não tem efeitos

saneadores, “não enseja baixa de custos nem compatibiliza a produção

nacional e o nível dos salários reais”. Pelo contrário, reitera a concentração

da renda, a debilidade do mercado interno, o crescimento voltado para fora e

– muito importante – retarda a “formação no país de um autêntico espírito de

empresa” (MORAES, 1995, p. 61).

Page 200: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

209

Como Prebisch, Furtado identifica uma grande dificuldade em alterar a estrutura

econômica dos países subdesenvolvidos: mesmo um processo de industrialização induzido

poderia manter preservada a heterogeneidade tecnológica, medida pela proporção de mão de

obra empregada nos setores pré-capitalistas e a força de trabalho total. Além da

heterogeneidade tecnológica, há o problema estrutural de baixa poupança interna que indica a

possibilidade de perpetuação do subdesenvolvimento. Nesse sentido, ele também critica o

consumo supérfluo das elites favorecidas pelas exportações que, desequilibram as contas

externas do país e não contribuem para a diversificação da economia. Além da proposição de

que o Estado deveria aumentar os investimentos e os tributos sobre essa parcela privilegiada,

o autor identificava no fortalecimento do mercado interno a principal solução para a

superação do subdesenvolvimento.

Há, nesse passo, um ponto de convergência entre os dois autores até aqui analisados.

Tanto Faoro, quanto Furtado asseveram o empenho de parte das elites nacionais em

modernizar o Brasil. Todavia, ambos são profundamente críticos desse processo, na medida

em que a modernização promovida não rompe com as estruturas arcaicas de poder e privilégio

existentes no país. Assim, se para o jurista de Vacaria a modernização brasileira não trouxe

modernidade – ficando o país ainda carente de uma cultura política de direitos universais –,

para o economista de Pombal, ela foi incapaz de superar as estruturas do subdesenvolvimento.

O subdesenvolvimento não pode ser superado pela mera modernização do

país, pois esta não é capaz de romper a assimetria estrutural na capacidade

de introduzir e difundir o progresso técnico entre o centro e a periferia e, no

interior desta, entre estruturas econômicas e sociais altamente heterogêneas

(GUIMARÃES, 2000, p. 28).

Nesse ponto é preciso destacar, além da influência de pensadores brasileiros como

Prado Jr, e da escola cepalina, o teor keynesiano na obra furtadiana. Bielschowsky, por

exemplo, afirma que se Furtado, sabiamente, não replicava meramente o receituário

keynesiano (dadas as condições particulares das economias subdesenvolvidas que, ao

contrário das desenvolvidas, conviviam com carência da poupança interna e com ciclos

econômicos), por outro lado, não deixava de incorporar dois preceitos básicos dessa corrente

econômica, a saber: “a noção de que o mercado interno constitui um elemento essencial de

dinamização da produção e da renda” (BIELSCHOWSKY, 1996, p. 135), quer dizer, o já

mencionado axioma de que crescimento econômico seria induzido por um crescimento da

demanda (contrariamente ao que preconizava a teoria economia clássica e schumpeteriana); e

a contestação de que o capitalismo tende naturalmente a uma situação de equilíbrio e

eficiência máxima, requerendo, conseguintemente, o planejamento estatal.

Page 201: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

210

O que se deduz disso é que a obra de Furtado deve ser compreendida como uma crítica

ao liberalismo conservador e, mais ainda, como uma tentativa de superação do

keynesianismo, uma vez que essa corrente não serve para compreender a dinâmica do

subdesenvolvimento. Se Furtado anseia pela refundação do Estado brasileiro, influenciado,

certamente, pela cultura liberal do Welfare State, essa mesma cultura não é suficiente para o

horizonte analítico e normativo desse autor, fortemente marcado pela experiência de viver na

periferia do capitalismo – no Brasil – e, ademais, na periferia dessa mesma nação – no

Nordeste. Como comenta Juarez Guimarães:

Como compreender, em síntese, o campo analítico-normativo da reflexão de

Celso Furtado? É certo que ele se formou em contato com a cultura do

chamado liberalismo social do pós-guerra, que tinha na matriz keynesiana o

seu centro configurador. Mas, em Furtado, o diagnóstico das imperfeições do

livre funcionamento do mercado é radicalizado para a indicação de suas

distorções estruturais na periferia do capitalismo e, neste contexto, o

planejamento e a intervenção estatal, de remédios anticíclicos, ganham a

importância vital para a própria definição das bases do dinamismo

econômico (2000, p. 21).

A questão de repensar o Estado brasileiro se relaciona às ideias-chave de Formação

econômica do Brasil. Ao asseverar que subdesenvolvimento não deveria ser compreendido

como uma etapa anterior do desenvolvimento, Furtado questionava teses amplamente aceitas

na economia até então, como a teoria dos cinco estágios de desenvolvimento de Rostow. Ora,

se o desenvolvimento fosse o corolário natural do subdesenvolvimento, como propunha esse

último autor, não se justificava a intervenção do Estado sobre a economia. Na visão

furtadiana, ao contrário, o subdesenvolvimento só poderia ser superado através de reformas

estruturais que, por sua vez, não podem ser realizadas pelo mercado; é necessária, nesses

casos, a intervenção do Estado por meio do planejamento estratégico da economia.

(...) se um país acumulou tamanho atraso, como é o caso do Brasil, não pode

sair dessa situação pelo mercado. Este não é suficiente, pois não fará as

transformações estruturais necessárias. O mercado concentra renda e é

preciso desconcentrar (FURTADO, 1968, p. 16-17).

A argumentação de Furtado quanto à necessidade da intervenção do Estado é, como se

disse, estabelecida comparativamente. Nos países centrais, como Europa e Estados Unidos, a

diversificação inicial da economia fomenta a desconcentração da renda, aliada à consolidação

crescente da sociedade civil, especialmente dos sindicatos. Isso faz com que o crescimento

econômico compense a inerente tendência do capital de concentrar a riqueza. No caso dos

países subdesenvolvidos, originariamente dotados de uma economia agroexportadora, a

concentração da renda e de capital, e a debilidade da sociedade civil – frente ao poderio

Page 202: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

211

político e econômico das elites – não permite esse tipo de compensação; não há tampouco

acirramento da luta de classes, o que garante ao empresariado a manutenção de seus

privilégios em escala única:

Nos países subdesenvolvidos, a grande reserva de mão-de-obra à disposição

dos empresários inibiria o processo de luta de classes. Assim, o setor

capitalista dessas economias seria pouco dinâmico. De um lado, temos uma

classe dirigente acomodada por instituições sócio-políticas seculares e

acostumada a altas taxas de lucro. De outro, uma pressão sindical

insuficiente para empurrar os capitalistas à modernização e à concorrência

(MORAES, 1995, p. 67).

O capitalismo que se consolida no subdesenvolvimento é, portanto, de natureza ainda

mais perversa do que nos países capitalistas centrais: as fortes assimetrias sociais ao invés de

ensejarem a mudança, contribuem para a estagnação.

É preciso ter clareza também quanto a amplitude do conceito de desenvolvimento

formulado Furtado, visto que, como se vê, esse não o compreende a partir de uma ótica

exclusivamente econômica. Isso o leva, em primeiro lugar, a diferenciar claramente

desenvolvimento de crescimento econômico:

(...) todos percebemos que um país pode crescer muito, como o Brasil

cresceu e continuar subdesenvolvido. Por que o Brasil não reduziu o

subdesenvolvimento, se o seu PIB cresceu 100 vezes no século XX?”

(FURTADO, 1968, p. 16).

Os anos 1970 foram claramente a comprovação da tese furtadiana de que o

crescimento econômico não é suficiente para promover o desenvolvimento.101

Em O mito do

desenvolvimento econômico, o autor critica fortemente a ilusão promovida pelos dirigentes

militares de que, enfim, o Brasil superaria o atraso econômico e social em que vivia. A

despeito de ter crescido a taxas comparativamente muito altas, garantidas pelo endividamento

externo, o Brasil não promovia a desconcentração de renda: isso significava que a economia

interna do país continuava frágil e distorcida, já que a massa da população não tinha como

consumir, e a economia era dirigida para suprir o padrão de consumo das elites, culturamente

subordinadas às culturas do capitalismo central.

A concentração de renda tem efeitos perversos sobre a economia: além de fazer com

que a população não tenha renda para o consumo e gerar, como consequência, um mercado

interno fraco, elas criam um desequilíbrio externo, já que a elite – pautada pelos padrões de

consumo dos países desenvolvidos – tende a aumentar a demanda por produtos importados,

fazendo com que o custo de divisas seja maior do que a renda nacional, culminando em dívida

101

Retomaremos à frente esse ponto ao discutirmos a dimensão inerente de sustentabilidade na concepção

furtadiana de desenvolvimento, diferenciando-o do mero crescimento econômico.

Page 203: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

212

externa, privatizações e atração de capitais de curto prazo.

A desvirtuação do consumo produzida pelo padrão elitista de importação inibe

também a diversificação da economia nacional. É por isso que as nações subdesenvolvidas

caracterizam-se pela rigidez de seu aparelho produtivo; isso as expõe ainda mais às crises

econômicas mundiais. Era necessário, para Furtado, flexibilizar a oferta, o que só é possível

em situação de crescimento econômico. Nesse sentido, como um típico cepalino, ele defende

que é preciso priorizar o desenvolvimento em detrimento, num primeiro momento, da

estabilidade econômica. O Estado promotor do desenvolvimento deveria garantir taxas

elevadas de crescimento, mesmo se fosse preciso conviver com taxas inflacionárias

relativamente elevadas.

A inflação é um problema típico dos países subdesenvolvidos: em situações de

crescimento, a oferta de produtos mostra-se limitada, haja vista a rigidez do aparelho

produtivo, ao passo que a demanda se torna crescente; o desequilíbrio entre oferta e procura

produz desequilíbrio inflacionário. Todavia, ao invés de outros desenvolvimentistas e dos

neoliberais que priorizam as metas de estabilidade econômica, Furtado sustenta que essas

devem estar submetidas a uma prioridade maior: criar empregos, fomentar o mercado interno

e melhorar as condições materiais de vida do povo. Assim, para ele, a inflação só é realmente

superada mediante o planejamento estatal que, intervindo na economia, faz com que, a longo

prazo, a oferta se torne mais elástica, satisfazendo a procura por novos e mais produtos. Esse

tópico – a subordinação da estabilidade monetária à questão do bem-estar social – revela mais

uma vez a força do topos keynesiano da justiça social como função precípua do Estado,

sobretudo, nas condições do subdesenvolvimento.

(...) Furtado entendia que o processo da industrialização nas economias

periféricas, pela via de substituição de importações, tomava de surpresa suas

estruturas produtivas heterogêneas e pouco diversificadas, gerando pressões

de demanda sobre uma série de fatores. Considerava típica de economias

subdesenvolvidas uma discrepância entre a “oferta rígida” e uma “procura

dinâmica”, que provocava uma tendência básica ao desequilíbrio monetário.

Entendia também que as exigências de importações resultantes da própria

dinâmica de industrialização periférica tornam o balanço de pagamentos

continuamente desequilibrado, sobretudo quando as exportações tendem a

estagnar ou mesmo a declinar – em quantidades e preços – por escassez de

demanda internacional. (...) Contestava as políticas monetaristas por

considerá-las inócuas – porque o desequilíbrio se manifestaria a cada nova

fase do crescimento do sistema – e, por entender que as medidas recessivas

obstruem investimentos estratégicos e provocam sobrecapacidade na

significativa parcela da economia que não sofre de rigidez de oferta. Em

suma, sua posição fundamental era a de que as preocupações com

estabilidade, embora importantes, devem ficar subordinadas ao objetivo

maior, isto é, o desenvolvimento econômico (BIELSCHOWSKY, 1996, p.

Page 204: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

213

148, grifos nossos).

4.3 – Soberania nacional

Entendemos também que a ideia de soberania nacional está no centro do pensamento

de Furtado, expressando um conceito de liberdade política que associa a autonomia da nação à

liberdade dos indivíduos, merecendo, deste trabalho, um destaque à parte. Sobre isso,

esclarece Bielschowsky:

Furtado acreditava que o sucesso da industrialização brasileira dependia

fortemente do controle que os agentes nacionais pudessem ter sobre as

decisões fundamentais à economia do país. Pensava, por isso, ser

indispensável uma ampla participação estatal na captação e alocação de

recursos, através de um sistema de planejamento abrangente e de pesados

investimentos estatais. Considerava também necessário um controle do

capital estrangeiro (1996, p. 151).

Esse ponto expressa fortemente o conteúdo “nacionalista” de seu pensamento. É

preciso ter clareza que a ideia de nação sofreu um duro ataque de parte dos intelectuais e

políticos brasileiros no século XX. De um lado, certas linhagens socialistas que identificam

no ideário nacional com uma forma de ideologia que arrefece o conflito e a consciência de

classes. Assim, a proposta furtadiana reforçaria, destarte, o ethos “populista” brasileiro que

subsume no projeto de nação a permanência do capitalismo e de suas assimetrias. De outro

lado, a moderna Ciência Política brasileira que, gradualmente, propôs ou aceitou a

substituição da agenda da nação pela de democracia, partindo de uma linguagem política

liberal, mais afim a um espírito cosmopolita.102

De qualquer modo, a partir das duas visadas, a

proposta furtadiana de afirmação da soberania nacional é vista como anacrônica e/ou

ideológica.

Todavia, antes de dar razão a essas abordagens é preciso ter clareza de que

“nacionalismo” Celso Furtado é defensor. No chamado “ciclo desenvolvimentista”, Furtado,

como expoente do nacional-desenvolvimentista, contesta, de um lado, as propostas dos

autores neoliberais (como Gudin), para quem o controle de capitais estrangeiros ou as

barreiras ao comércio internacional era altamente contraproducente; e, de outro lado, critica a

posição de muitos desenvolvimentistas do setor público, não-nacionalistas (como Roberto

Campos, influente economista na formulação da política econômica brasileira no último

período militar), que consideravam o capital privado nacional insuficiente para promover o

102

Esse tema foi tratado mais extensamente no capítulo 1 desta tese e será retomado no capítulo concernente à

obra de F. H. Cardoso.

Page 205: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

214

desenvolvimento, necessitando do aporte do capital estrangeiro.103

Para Furtado, o ideário nacional-desenvolvimentista é justificado, sobretudo, pela

própria posição geopolítica em que o Brasil se inseriu historicamente. Mais uma vez,

incorporado pelo processo de expansão da economia europeia no século XV, o país foi, a

rigor, uma “colônia de exploração”104

de Portugal, até o século XIX, e depois, altamente

dependente da Inglaterra, uma vez que os centros de decisão do país permaneciam externos à

nação. Do intervalo de 1950 a 60, com a industrialização e a diversificação do setor

produtivo, o país teria conseguido, pela primeira vez em sua história, “transferir para o país os

principais centros de decisão de sua vida econômica” (FURTADO, 1962). Entretanto, com o

golpe de 1964 e o modelo de crescimento econômico implantado nos anos 70, via

endividamento externo, o país novamente comprometia sua autonomia frente às potências

estrangeiras. Na década de 1990, com a expansão do neoliberalismo e o apelo para a

integração do Brasil aos grandes conglomerados econômicos internacionais (como a ALCA

[Área de Livre Comércio das Américas], defendida pelo governo norte-americano), se

debilitaria ainda mais a nossa soberania nacional:

Em uma época de transição como a atual, o mais importante é preservar a

margem de autonomia que nos permita utilizar o peso internacional do Brasil

para mobilizar e coligar forças na defesa dos interesses de povos que lutam

para preservar sua independência. (...) Em nenhum momento de nossa

história foi tão grande a distância entre o que somos e o que

esperávamos ser (FURTADO, 1999, p. 26, grifos nossos).

No contexto da globalização percebe-se claramente o alerta de Celso Furtado com a

crescente perda de autonomia do Brasil frente às pressões do mercado externo. Suas críticas à

submissão da política econômica brasileira ao FMI, a aposta na abertura irrestrita à

globalização, a ausência de discriminação na importação (sobretaxando produtos de luxo em

comparação a produtos essenciais), problemas agravados pela ausência de poupança interna,

tornavam o Brasil muito mais refém das crises internacionais e do movimento do capital

financeiro. O programa de privatizações do patrimônio nacional, o endividamento externo a

fim de garantir o crescimento do consumo e dos investimentos e o combate à inflação, de

dolarização, empreendidos durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, representavam

para Furtado um regresso ao “estatuto semicolonial” (idem, ibidem, p. 42).

É igualmente necessário deixar claro que o nacionalismo furtadiano é destituído de

103

Cf. BIELSCHOWSKY, 1996, cap. 4 e 5. 104

A diferenciação entre "colônia de produção" ou "exploração" e colônia de povoamento é do pensador francês

Paul Leroy-Beaulieu, utilizado também por Gilberto Freyre e Celso Furtado (OLIVEIRA, 2001, p. 321).

Page 206: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

215

qualquer conteúdo autoritário, diferentemente de uma longa tradição brasileira que, inclusive,

se consolida no discurso dos militares do país, conforme demonstra Boris Fausto (2001). Ao

invés de ser expressão da negação da democracia, Furtado, desde as suas obras de juventude,

asseverou a necessidade de conciliar o projeto desenvolvimentista da nação com a

democratização do poder. Sobre isso, Francisco de Oliveira esclarece:

Valorizar o nacional não é nem populismo, nem xenofobismo. Pois o espaço

nacional é ainda a forma onde se pode construir um processo democrático,

colocando a possibilidade concreta de intervenção do povo e das classes

sociais dominadas ao alcance de suas possibilidades civis e sociais. Pensar

num espaço internacional ou globalizado como virtualidade democrática

seria delírio se não fosse escárnio. Portanto, quando se postula a questão do

Estado Nacional o que está em jogo é a soberania do povo (OLIVEIRA,

2001b, p. 219).

Acreditamos que o nacionalismo furtadiano é uma das razões pelas quais esse

intelectual mais do que somente ter se enraizado na cultura política brasileira, foi, de fato,

incorporado ao próprio pensamento latino-americano. Sua especial atenção a esse tópico,

possivelmente decorrente de sua experiência na CEPAL e quando da formulação de projetos

de planejamento estatal em outros países, fez de Furtado um instrumental teórico relevante

que não se circunscreve ao caso brasileiro, servindo para pensar o modo de integração do

continente à economia mundial no século XX-XXI. As nações latino-americanas, pelo próprio

processo de colonização a que foram submetidas, teriam, destarte, uma vocação nacionalista

bem compreendida por Celso Furtado. A nação valorizada por Furtado, como constructo

político necessário à manutenção da liberdade, aproxima-se muito da ideia de pátria proposta

por diversas matrizes do republicanismo.

Outro ponto identificado pela presente pesquisa que caracteriza a linguagem nacional-

desenvolvimentista desse autor é o estabelecimento de um liame inseparável entre democracia

e desenvolvimento. Dois anos antes que nós sofrêssemos um tremendo golpe em nossa

liberdade, em 1964, o autor, como que prognosticamente, discordava radicalmente daqueles

que opunham a liberdade ao desenvolvimento econômico.

(...) a experiência histórica dos últimos decênios criou a aparência de uma

forçada opção, para os países subdesenvolvidos entre a liberdade individual

e rápido desenvolvimento material da coletividade. Essa falsa alternativa tem

sido apresentada por contendores de ambos os lados da controvérsia, isto é,

em defesa da liberdade ou do bem-estar das massas (FURTADO, 1962, p.

21).

Como se vê, o autor criticava os que, à direita, sugeriam a necessidade de suprimir a

liberdade, crescentemente exigida pelos brasileiros, e os que, à esquerda, argumentavam ser

Page 207: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

216

necessária a mesma medida para garantir a “salvação” final (idem, ibidem, p. 21). Sua crítica

endereçava-se à experiência russa na qual a liberdade humana foi suprimida de maneira

intolerável, por exemplo, através da coletivização compulsiva dos excedentes agrícolas:

(...) Mas ainda mesmo que deixássemos de lado a dolorosa experiência

agrária soviética, cabe reconhecer como evidência universal que o rápido

desenvolvimento econômico dos países de economia coletivista tem sido

acompanhado de formas de organização político-social em que se

restringem, além dos limites do que consideramos tolerável, todas as formas

de liberdade individual. Essas restrições, se bem que aceitas voluntariamente

nas fases de ardor revolucionário, dificilmente poderiam ser toleradas como

formas normais de convivência humana (idem, ibidem, p. 22).

Entretanto, a crítica furtadiana à experiência dos países do comunismo real não resulta

na negação completa do marxismo como linguagem política fundamental à modernidade. Ao

contrário, o autor reconhece diversos méritos dessa linguagem que a fazem tão sedutora,

especialmente aos jovens brasileiros da época. Tomando o marxismo como um “estádio

superior do humanismo” (idem, ibidem, p. 17), Furtado enumera diversos aspectos dessa

tradição teórica com a qual concorda: “o reconhecimento de que a ordem social que aí está se

baseia, em boa medida, na exploração do homem pelo homem” (idem, ibidem, p. 17), de que a

ordem social é histórica, portanto, passível de mudança, devendo realmente ser superada.

Como um humanista – ainda que formado em outras tradições teóricas – Celso Furtado

identifica-se com o marxismo em relação ao seu anseio de emancipação humana e seu

otimismo dada a capacidade de se autodeterminar das sociedades. Sua divergência emerge

quando certas apropriações dessa teoria supõem ser legítimo substituir a realização imediata

da liberdade pelo desenvolvimento material. Contra isso, o autor, ainda que sem o saber,

prestes a viver em seu país uma ditadura cruel, postulava que:

O problema fundamental que se apresenta é, portanto, desenvolver técnicas

que permitam alcançar rápidas transformações sociais com padrões de

convivência humana de uma sociedade aberta. Deste ponto de vista, em uma

sociedade aberta, onde foram alcançadas formas de convivência social

complexas, a revolução do tipo marxista-leninista representa óbvio

retrocesso político (idem, ibidem, p. 26).

O autor afirma, contrariamente ao que apregoa o “marxismo-leninismo”, que a

substituição da ditadura de uma classe (a burguesia) por outra (o proletariado), não é

justificada pela ampliação da vida material, pois essa ampliação não ultrapassa em benefícios

perenes à sociedade ter logrado construir formas superiores de organização política, tal como

é a democracia. Destarte, o método revolucionário, ao se impor por meio da violência e não

do consenso, acaba, diz o autor, pervertendo os próprios valores que o orientavam.

Page 208: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

217

Mas a democracia não se constitui apenas, como pode parecer num primeiro momento,

apenas em um ideal normativo na obra furtadiana, mas também em um objeto de análise do

autor. Em 1962, por exemplo, o autor procurava avaliar as perspectivas e limites do regime

democrático entre nós. Para ele, a democracia brasileira havia chegado a uma situação de

impasse uma vez que o Legislativo, dispondo de grande poder de agenda no país e dominado

pelos coronéis locais (sobrerrepresentados pela legislação eleitoral que garantia peso político

excessivo aos estados menos populosos e mais atrasados), impedia a aprovação das reformas

necessárias ao desenvolvimento do país propostas pelo Executivo federal. Para ele, inclusive,

essa seria a explicação principal para o golpe dado em 1964: um impasse entre, grosso modo,

um Executivo progressista e um Legislativo conservador, propiciado por uma necessidade de

transformação social profunda e instituições políticas que favoreciam a manutenção do status

quo.

Assim, se alguns críticos, como Wanderley Guilherme dos Santos (1986), tem alguma

razão ao questionar a visão furtadiana da realidade brasileira pré-1964, na medida em que

Furtado não dispõe nem formula uma teorização rigorosa das instituições políticas, é incorreto

afirmar que esse autor aborda a política como um epifenômeno da estrutura econômica. O

tratamento insuficiente da política, no caso, é decorrência das limitações própria à época em

que Furtado escrevia (que ainda não havia incorporado o instrumental próprio à moderna

Ciência Política), e não de uma visada economicista da política.

Cumpre notar que o diagnóstico furtadiano sobre a crise de 1964 expressa um

pensamento claramente republicano. Segundo essa tradição, particularmente na obra de

Maquiavel105

, é necessário que os conflitos entre os diversos grupos sociais sejam canalizados

pelas instituições políticas, de tal modo que essas sejam capazes de processá-los segundo as

regras do jogo, evitando, assim, que esses grupos procurem vias não institucionais de

satisfação de seus interesses. Para Furtado, o grande dilema é que o Congresso Nacional

permanecia, a despeito de seu papel fundamental no ordenamento político brasileiro, refém

dos interesses particularistas regionais e, portanto, incapaz de responder satisfatoriamente aos

novos movimentos e reivindicações populares do pré-64.

Reginaldo de Moraes avalia que Furtado propunha, como solução para o impasse em

que o país se encontrava, uma renovação da representação popular e um fortalecimento do

105

Essa teria sido, segundo o pensador florentino, a grande sabedoria política dos romanos. De acordo com

Bignotto, “contra toda a tradição medieval, que via na paz o valor supremo da vida política, Maquiavel

acreditava que os conflitos internos haviam sido responsáveis pela grandeza de Roma. (...) Para serem

positivos é necessário que os conflitos sejam travados dentro de um quadro institucional reconhecido por

todos como legítimo” (2007, p. XXXV).

Page 209: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

218

Executivo, com a participação e direção, nesse poder, dos intelectuais, a fim de identificar as

“aspirações sociais” e apresentar os caminhos à nação. Sua solução, na interpretação de

Moraes, continha elementos não democráticos, na medida em que, supostamente, considerava

que certas decisões públicas devem ser tomadas por “técnicos”, capacitados para isso. É

verdade que algumas passagens das obras de Furtado, tomadas isoladamente, sugerem a

proposição de uma tecnocracia:

Já se começa a compreender que é grande a responsabilidade que cabe ao

Govêrno (sic) Federal no encaminhamento e na solução do problema do

Nordeste. Mas ainda se está longe de perceber que a primeira condição

para que o Govêrno (sic) assuma essa responsabilidade é atribuir-lhe

autoridade técnica (FURTADO, 1962, p. 104, grifos nossos).

Mas longe de apoiar a tecnocracia, o conjunto da obra furtadiana revela que, se certos

assuntos devem ser tratados tecnicamente, isto é, isolados dos conflitos políticos locais (como

as políticas hidráulicas adotadas no Nordeste), as “diretrizes da política de desenvolvimento

devem ser amplamente debatidas” (idem, ibidem, p. 104, grifos nossos). Longe de uma

concepção da economia como uma técnica a decidir os rumos da nação, baseado em uma

suposta neutralidade e objetivada absolutas, o autor afirma, anos depois:

Em outras palavras: somente os sistemas sociais estão em condição de

ordenar a hierarquização dos valores substantivos. As atividades econômicas

ordenadas pelos mercados traduzem valores dos indivíduos,

microeconômicos, que são necessariamente heterogêneos e não-

adicionáveis, exceto mediante uma redução quantitativa. O valor de um

pedaço de pão, para um faminto, não pode ser medido com a mesma

escala com que se afere o valor da comida de quem nunca se sentiu

verdadeira fome (FURTADO, 1999, p. 19, grifos nossos).

Fica evidente que as questões de que trata a economia, são questões sobre valores

morais e envolvem, inevitavelmente, escolhas e disputas normativas, e não assuntos a serem

solucionados “imparcialmente” por técnicos. Se Furtado reclama a si mesmo e aos intelectuais

brasileiros não a prerrogativa (como sugere Moraes), mas o dever ético de compreender o país

e propor caminhos para a superação do subdesenvolvimento, parece bastante distante de seu

pensamento a defesa de um Estado tecnocrata, liderado por um poder Executivo forte e

racional, a tutelar a nação (solução essa adotada, sim, por diversos intelectuais brasileiros,

como, por exemplo, Oliveira Vianna). Nesse sentido, é necessário distinguir o

comprometimento de Furtado como homem público (enquanto formulador do Plano Trienal,

diretor da Sudene e ministro do planejamento do governo Goulart) da tradição nacionalista

encabeçada por Getúlio Vargas, reconhecida, sim, por Furtado como importante marco na

política brasileira (por romper com o padrão de sujeição da nação ao estrangeiro e fomentador

Page 210: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

219

da indústria), mas distinta do seu próprio nacionalismo que esteve comprometido, ao longo de

toda a sua trajetória intelectual e política, com o valor da democracia. Ao intelectual cabe o

papel de fomentar a reflexão na opinião pública e, se for possível, participar junto ao povo das

decisões públicas fundamentais; ao Estado, realizar aquilo que o mercado por si só é incapaz

de fazer, isto é, superar os entraves estruturais do subdesenvolvimento. Mas tanto a

responsabilidade da intelligentsia quanto a estatal pressupõe a condição democrática: não

apenas a permanência dos direitos políticos fundamentais como o voto, ou a competição e o

pluralismo partidário, mas a própria inclusão social sem qual, para Furtado, a cidadania não se

concretiza.

Por fim, é preciso ter clareza que no projeto político furtadiano, a democracia é

concebida como compatível com Estado interventor, com o Estado promotor do bem-estar

social. Nesse sentido, esse autor fornece um meio de crítica aos liberais que associam

intervenção estatal com redução da liberdade pessoal (FURTADO, 1962, p. 75). Como ele não

parte de uma concepção procedimental de democracia, mas sim de um ideal comprometido

com a inclusão social, o Estado democrático não apenas pode, como tem o dever de garantir

as bases sociais efetivas para o exercício da cidadania. Nesse sentido, o pensamento de

Furtado aproxima-se do liberalismo cívico e do republicanismo.

O último ponto a ser avaliado aqui diz respeito à tematização da ecologia como parte

integrante do projeto furtadiano de desenvolvimento do Brasil.

Em primeiro lugar, cumpre destacar a antecipação de Celso Furtado ao relacionar

economia e ecologia numa época em que as externalidades ecológicas negativas nem sequer

eram um tema de debate sistemático na área econômica. Clóvis Cavalcanti (2009) e Juarez

Guimarães (“A construção de um novo paradigma”, s/data) concordam que O mito do

desenvolvimento econômico, livro lançado em 1974, representa o primeiro momento em que o

tema aparece no pensamento do autor.

Assim sendo, à incorporação avançada de Furtado da discussão sobre ecologia em um

livro de economia (o que era completamente incomum à época), acrescente-se a crítica

contrária desse autor ao senso comum da época de elogio e otimismo irrestrito ao processo

conhecido como “milagre econômico”. À época, o país, tutelado pelos dirigentes militares,

vivia taxas de crescimento anuais variando entre 9 a 14% (1970-74). Como observa

Guimarães, Furtado decidiu contestar publicamente um mito sagrado:

A lucidez do economista brasileiro ia de par com sua coragem de denunciar

o padrão de um crescimento chamado à época de “milagre econômico” e que

provaria não ter bases históricas sólidas. Chamava, então, de mito esta visão

de futuro que assimilava irreflexivamente desenvolvimento a progresso e

Page 211: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

220

progresso ao simples crescimento econômico. Denominando este mito de

“vaca sagrada” dos economistas, faz as perguntas fundamentais: “Por que

ignorar na medição do PIB, o custo para a coletividade da destruição dos

recursos naturais não renováveis, e o dos solos e florestas (dificilmente

mesuráveis)? Por que ignorar a poluição das águas e a destruição total dos

peixes nos rios em que as usinas despejam seus resíduos?” (GUIMARÃES,

s/data, p. 2, grifos nossos).

Nesse contexto, esse intelectual afirmava categoricamente que acreditar que os

padrões de consumo usufruídos pelos indivíduos de países ricos poderão, no futuro, ser

usufruídos pela população dos países pobres é uma ilusão (Cf. FURTADO, 1974, p. 75). O

autor havia lido o relatório do Clube de Roma, intitulado The limits of growth, em que os

autores afirmavam que a expansão do modelo capitalista para outras regiões do planeta

levaria, num futuro próximo, a um cataclismo planetário, em função do esgotamento dos

recursos naturais necessários para promoção do crescimento econômico:

(...) os autores do estudo se formularam a seguinte questão: que aconteceria

se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos

os povos da terra, chega efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais

formas de vida dos povos ricos chegam efetivamente a universalizar-se? A

resposta a essa pergunta é clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a

pressão sobre os recursos não-renováveis e a poluição do meio ambiente

seriam de tal ordem (ou, alternativamente, o custo do controle da poluição

seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria

necessariamente em colapso (FURTADO, 1974, p. 17, ênfases do autor).

Entretanto, Furtado não se limitou a endossar apenas o alerta dos economistas

envolvidos nesse relatório: criticou-os por não consideraram dois fatores associados à

expansão do capitalismo mundial. Em primeiro lugar porque eles desconsideraram totalmente

a relação de dependência entre o centro do capitalismo e sua periferia, condição sem qual não

teria sido possível que o primeiro alcançasse o patamar de desenvolvimento logrado. Em

segundo lugar, Furtado denuncia um aspecto ainda mais importante: que esse patamar exitoso

de desenvolvimento desfrutado pelas nações ricas compromete (ou mesmo inviabiliza) a

possibilidade de expandir o desenvolvimento econômico para os países periféricos na medida

em que assumiu um padrão civilizatório predatório, de esgotamento, no limite, dos recursos

naturais.

A exigência do desenvolvimento sustentável seria apenas uma expressão, entre outras,

no pensamento de Furtado de que o problema maior não é econômico, e a própria economia

nunca deve ser compreendida como uma “ciência pura” e separada das demais ciências

sociais. O maior prejuízo do economicismo – presente na difusão do milagre econômico – é

precisamente desconsiderar os aspectos problemáticos desse tipo de crescimento econômico,

Page 212: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

221

injusto (socialmente falando), autoritário (do ponto de vista da política democrática) e

predatório (do ponto de vista da ecologia).

Mas, como esclarece Cavalcanti, esse mito do crescimento não é algo datado

historicamente, o que faz das críticas furtadianas, portanto, ainda mais atuais. A “loucura do

crescimento” (CAVALCANTI, 2009, p. 214) é uma ideologia até hoje presente que faz com

que se pense, usualmente, o desenvolvimento de uma nação apartada da questão da

sustentabilidade desse processo.

Nesse ponto é preciso retomar uma distinção feita por Furtado, já discutida

anteriormente: crescimento econômico não implica necessariamente desenvolvimento, sendo

o último uma noção mais abrangente. Se crescimento – objeto de atenção privilegiado dos

economistas – se mede quantitativamente, o segundo se expressa uma por uma melhoria na

qualidade de vida de uma comunidade humana, nas palavras de Furtado, na possibilidade de

se “enriquecer o universo do qual a humanidade faz parte” (idem, ibidem, p. 212). Nesse

sentido, Cavalcanti propõe pensar, a partir das ideias de Furtado, o desenvolvimento

sustentável como um processo em que: (1) “tanto o uso da energia não renovável quanto o dos

materiais é minimizado, com (2) mínimos impactos ambientais e com (3) simultânea

maximização da satisfação (bem-estar, utilidade) social” (idem, ibidem, p. 214).

Cabe aqui tecer o seguinte comentário: mesmo a incorporação da discussão acerca da

sustentabilidade do crescimento econômico, adotada, como se disse, muito tardiamente na

Economia acadêmica e nas políticas públicas, se fez de modo enviesado. Sustentabilidade

como uma exigência econômica é tradicionalmente justificada em termos de garantir o nível

de bem-estar da humanidade (item 3 da citação acima), isto é, de modo instrumental, ao passo

que o “fluxo material energético”, isto é, os próprios recursos naturais, são tratados

marginalmente: em geral, “atua-se de costas para o meio ambiente, com olhos apenas para o

fluxo psicológico de satisfação pessoal” (idem, ibidem, p. 216).

Quando se volta à obra de Furtado percebe-se que as duas dimensões da

sustentabilidade (manutenção dos recursos naturais e garantia do bem-estar das futuras

gerações) são igualmente consideradas. Isso permitiu ao autor não se limitasse às conclusões

do Clube de Roma, argumentando que era necessário compreender que a pobreza do

subdesenvolvimento estava profundamente relacionada com a riqueza do mundo

desenvolvido e com o padrão insustentável de crescimento assumido por esse último. A partir

desse novo paradigma proposto por Furtado pode-se pensar na justiça e responsabilização não

apenas das gerações que promoveram uma civilização predatória (e que mina as bases de

Page 213: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

222

convivência das gerações vindouras de seres humanos), mas também em relação aos países

ricos (que inviabilizam a repetição de um mesmo padrão de crescimento para a periferia do

mundo).

Outro ponto da proposta ecológica de Celso Furtado é a preocupação e a exigência

normativa de que o processo de desenvolvimento não implicasse na destruição das culturas

tradicionais. Pensando, por exemplo, no caso do Nordeste, Furtado propunha que o

planejamento de desenvolvimento da região:

Deveria permitir formas mais racionais de ocupação, de produção nas terras

férteis, de incentivo seletivo à industrialização, de superação dos padrões

coronelísticos de dominação, de distribuição de renda e de irrigação dos

solos áridos com frutos democraticamente distribuídos (GUIMARÃES, s/

data, p. 3).

Assim, o desenvolvimento sustentável defendido por Furtado implica a utilização

responsável e respeitosa do meio ambiente, e também o respeito a outras culturas (“não

capitalistas”) como, a princípio, legítimas de coexistirem no planeta. É nesse sentido que

Juarez Guimarães afirma que se “a angulação” da obra furtadiana é “econômica, a

problemática é claramente civilizatória e deriva, pois, para a sociologia (a formação social),

para a política (centros de decisão do poder), e para a cultura (autonomia ou alienação)”

(2000, p. 18).

Concluindo acerca desse tema, podemos resumir que a concepção desenvolvimentista

de Furtado envolve os seguintes pressupostos: 1) o centro do sistema capitalista assumiu um

custo, em termos de depredação do mundo físico, tão grande que é inviável expandi-lo para a

sua periferia; 2) esse custo garantiu o usufruto por parte dos países mais ricos e das gerações

passadas e atuais, que foram e serão pagas por aqueles que não se beneficiaram deles, a saber,

os países mais pobres e as próximas gerações; 3) esse custo envolve não apenas a degradação

dos recursos naturais, mas também das culturas tradicionais que não se adéquam ao

“progresso” mundial.

A partir desses três pontos podemos afirmar que a “ecologia do desenvolvimento” de

Celso Furtado (GUIMARÃES, s/data, p.1), representa uma crítica à própria civilização

Ocidental moderna, ao seu modo de conciliar a expansão do desenvolvimento com uma

utilização responsável dos recursos naturais e em relação às outras culturas. Isso comprova

que o autor não pode ser considerado um intelectual idealizador dessa civilização, um

“americanista” (VIANNA, 1997), como se propusesse acriticamente a mera imitação de um

Page 214: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

223

modo de vida social logrado nos países desenvolvidos.106

Fernando Henrique Cardoso

observa acertadamente que a obra furtadiana se desdobra em uma “crítica cultural-

civilizatória”:

O estilo de capitalismo consumista, à moda dos Estados Unidos, não se pode

generalizar, sob a pena de tocarmos anos limites das possibilidades de uso

racional de recursos. Daí a modernidade de Celso Furtado (2013, p. 217).

Uma civilização consumista em escala planetária é não apenas insustentável

materialmente como culturalmente indesejável, na visão furtadiana. Como comenta

Cavalcanti a respeito de seu pensamento:

O desafio, para ele, seria mudar o curso da civilização para uma lógica

dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da

cooperação entre os povos, com o estabelecimento de novas prioridades para

ação política em função de uma nova concepção de desenvolvimento, posto

ao alcance de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio ecológico

(2009, p. 227-228, ênfases do autor, grifos nossos).

Como crítico da civilização capitalista, Furtado, além das razões antes enunciadas de

sua linguagem política, é um profundo contestador de um certo elogio liberal à

mercantilização da vida humana, endossada pela ideologia da concorrência, da maximização

dos interesses individuais, etc., a despeito dos seus resultados catastróficos:

Como visão de mundo orgânica ao capitalismo, o liberalismo tem limites

insuperáveis para ir à raiz do impasse ecológico: a valorização do capital

pressiona à mais ampla mercantilização dos bens e serviços; a

mercantilização cria incessantemente padrões artificiais e predatórios de

padrões de consumo, ao mesmo tempo que a busca do lucro incentiva

tecnologias agressivas ao meio-ambiente; a crença nas virtudes do mercado

cria limites à regulação institucional destas potências destrutivas inscritas na

dinâmica do capitalismo; valores do egoísmo, da concorrência e da

dominação minam uma cultura solidária, fraterna e democrática receptiva a

um novo paradigma ecológico (GUIMARÃES, s/ data, p. 1).

4.4 – Novo desenvolvimentismo e democracia

Como vimos no último decênio, o desenvolvimentismo voltou a ser considerado como

uma orientação das políticas do governo federal. Autores de diversos campos e tendências

identificam nas gestões Lula e Dilma um protagonismo do Estado no planejamento da

economia, tais como a promoção da industrialização, o combate às desigualdades sociais e

regionais, a ativação do mercado interno por meio do favorecimento do crédito consignado e

106

“Nem iberista nem americanista, a obra de Celso Furtado pode-se qualificar no enquadramento do Brasil

como ‘outro Ocidente (...)’” (GUIMARÃES, 2000, p. 20).

Page 215: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

224

da valorização do salário mínimo. Entretanto, como mostramos brevemente, o

desenvolvimento, enquanto tradição teórica e política, não é homogêneo e ausente de tensões

internas. Nesse sentido, procuramos explorar o nacional-desenvolvimentismo, uma tendência

dentro dessa tradição, exclusivamente a partir da obra de Celso Furtado. Assim, segundo

alguns intérpretes, a obra furtadiana estaria servindo de baliza teórica para diversas medidas

tomadas recentemente pelo Estado brasileiro.

Apesar de ser evidente um crescente interesse público pela obra furtadiana, a sua

associação a essas novas políticas não é consensual. André Singer, como vimos, caracteriza o

“lulismo” como um novo padrão de políticas progressistas (muitas delas afins ao projeto

furtadiano), mas assentado sobre um pacto “conservador”. Seguindo o raciocínio sugerido por

Singer, a ausência de uma tributação progressiva e de maior esforço em promover uma

reforma agrária, como (podemos acrescentar) um padrão de desenvolvimento ainda predatório

do meio ambiente e das culturas tradicionais107

, entre outras medidas, afasta parcialmente os

governos Lula e Dilma do que nos caracterizamos aqui como projeto desenvolvimentista de

Furtado.

Clóvis Cavalcanti, também, é da opinião de que, no que tange à questão da

sustentabilidade, esses governos divergem claramente do ideal furtadiano, na medida em que

endossam o modelo civilizatório do capitalismo central:

O mundo atual, dominado pela lógica do consumismo, pelo mecanismo de

mercado e pelo sistema capitalista, obriga a que não se pense em outra coisa

na sociedade senão crescer, crescer, crescer – crescimento econômico, é

claro. Não por acaso, com efeito, que a prioridade do governo brasileiro,

desde 2007, esteja sendo o Programa de Aceleração do Crescimento,

popularizado pela sigla PAC (2009, p. 199).108

Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social) do governo Lula, em artigo recentemente publicado109

, criticou

fortemente o governo Dilma, na medida e que ele assume um discurso desenvolvimentista,

mas adota, na prática, políticas ortodoxas de estabilização monetária, com resultados como a

desnacionalização da indústria, baixo crescimento econômico, etc.

107

Sem pretender julgar a correção da avaliação de Cavalcanti, cumpre apenas lembrar a polêmica em torno à

construção da Usina de Belo Monte, ou em torno à promulgação do novo Código Florestal, durante o

mandato da presidenta Dilma Rousseff. 108

É curioso que o mesmo programa governamental, o PAC, seja tomado como exemplo por Vera Alves Cepêda

como indício do caráter desenvolvimentista desses governos, tendo em vista o empenho estatal na economia

(2012, p. 84). 109

LESSA, Carlos. Entrevista, Folha de São Paulo, 14/01/2013. In:

http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1213859-dilma-precisa-de-coragem-para-colocar-em-pratica-o-que-

fala-diz-carlos-lessa.shtml Acesso em: 03/03/2013.

Page 216: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

225

Faz-se necessário, assim, avaliar criticamente em que medida as políticas adotadas

ainda estão ou não presas à linguagem política neoliberal, ou se elas romperam efetivamente

com ela incorporando o ideário anti-liberal do nacional-desenvolvimentismo de Celso

Furtado. O propósito do presente trabalho, todavia, não nos permite propor soluções para tais

questões. Num esforço bem mais modesto, procurou-se aqui apresentar as principais

características da linguagem política furtadiana, sobretudo, no que concerne à democracia.

Esse esforço é, no entanto, uma etapa necessária para a solução de tais questões.

De qualquer maneira, fica evidente, pelas declarações dos intelectuais aqui citados,

que a obra furtadiana é, com efeito, objeto de disputa da política atual, quer para quem deseja

associá-la a esses governos, quer para quem procure dissociá-la da mesma. Seu pensamento,

nesse sentido, permanece fundamental para a compreensão da política brasileira hodierna,

demonstrando a força da linguagem política forjada por ele.

Essa linguagem furtadiana da democracia, conforme interpretação aqui proposta, está

assentada sobre cinco ideias-chave. Em primeiro lugar, a ideia de que não há

desenvolvimento, nem democracia sem a expansão da cidadania real, sem a inclusão social de

inúmeros brasileiros ainda vítimas da fome, do desemprego, da carência de políticas de bem-

estar universalistas, etc. Em segundo lugar, o princípio de que a consolidação da democracia e

do desenvolvimento pressupõe a eliminação das desigualdades regionais brasileiras, o que

implica em repensar o federalismo brasileiro à luz de sua história. A terceira ideia motriz da

linguagem furtadiana consiste na afirmação da soberania nacional como meta do

desenvolvimento, expressão de um nacionalismo democrático, segundo o qual a liberdade

interna ao país se vê ameaçada pela sua posição econômica, social e culturalmente subalterna

no mundo. Ao vincular desenvolvimento econômico à democracia, não subsumindo o

segundo termo ao primeiro, Furtado estabeleceu aquilo que consideramos a quarta ideia

mestra de seu pensamento, fazendo dele um pensador central para a tradição do

desenvolvimentismo brasileiro, doravante, aberto em uma de suas vertentes, ao valor da

democracia. Por fim, a ideia de desenvolvimento sustentável caracteriza a atualidade da

linguagem democrática de Furtado que não se configura como uma idealização do capitalismo

ocidental, mas como uma reflexão questionadora acerca da civilização predadora do meio

ambiente e das culturas “arcaicas” ainda existentes.

É o próprio liberalismo, como “horizonte civilizatório” (GUIMARÃES, 2000, p. 20)

que é questionado por Celso Furtado em cada um dos pontos acima citados: a desvinculação

da democracia e do desenvolvimento da inclusão social; a desconsideração das assimetrias

Page 217: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

226

regionais historicamente constituídas e naturalizadas pela doutrina liberal do livre-comércio; a

adoção de uma posição cosmopolita num mundo capitalista fortemente marcado por relações

de dependência e dominação entre as nações e empresas; a subsunção da democracia a outros

desideratos, como o do crescimento econômico, o que contribuiu para legitimar a ditadura

civil-militar, responsável pelo “milagre econômico”; e a conivência ou mesmo apologia de

um padrão de crescimento produtor de um esgotamento irresponsável dos recursos naturais e

predatório em relação às culturas tradicionais.

Através desses cinco pontos, Furtado criou um modo próprio de falar sobre a política

brasileira, latino-americana e mesmo mundial, que destoa das linguagens “liberistas”, muito

influentes desde o final do século passado e que ainda disputam o significado de termos como

liberdade e democracia. Essa linguagem mostrou-se muito mais próxima do campo semântico

e normativo do republicanismo do que do liberalismo, ainda que, como se disse no início

deste capítulo, não fosse o objetivo de Furtado explicitar a relação de sua obra com os temas e

discussões que animam a Teoria Política.110

110

Seguimos, no caso, a interpretação de Juarez Guimarães, para quem: “Ora, em nossa opinião, a importância

do pensamento de Celso Furtado (...) está no fato de ele ser a primeira grande síntese de uma proposta de

refundação republicana do Brasil” (GUIMARÃES, 2000, p. 23, grifos nossos).

Page 218: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

227

5 – Wanderley Guilherme dos Santos: a linguagem da moderna Ciência Política e a

reforma política no Brasil

Nas últimas duas décadas, o debate sobre as instituições políticas da democracia

brasileira tem se intensificado bastante. Inúmeras propostas de reforma política têm sido

apresentadas no Congresso Nacional e pela mídia a fim de corrigir as supostas imperfeições

de nosso sistema político, sendo que algumas delas podem vir a serem aprovadas em breve.111

Adoção do parlamentarismo, do voto facultativo, do financiamento exclusivamente público

das campanhas eleitorais, da cláusula de barreiras para os partidos “pequenos”, da proibição

das coligações partidárias para os cargos de representação proporcional, da substituição desse

sistema de representação (válido para os cargos eletivos da Câmara dos Deputados,

Assembleias estaduais e Câmaras municipais) pela representação majoritária, implementação

do modelo de voto em lista fechada (ao contrário do modelo atual em que o eleitor pode

escolher em qual candidato especificamente quer votar), em suma, são as principais

modificações sugeridas desde a redemocratização do país. Em geral, defende-se que a adoção

de tais medidas serviria para corrigir as deficiências herdadas de nosso sistema político –

supostamente – oligárquico, populista, corrupto, centralizador, fragmentado, instável e

distorcido do ponto de vista da representação no Congresso Nacional, etc.

Bolívar Lamounier em texto publicado logo após o impeachment do ex-presidente da

República Fernando Collor de Melo, em 1992, resume, em parte, algumas das razões mais

comuns favoráveis à reforma política. Para ele, o Brasil, no referido período, estaria vivendo

um processo de crise aguda por causa do esgotamento de seu sistema político. Esse sistema,

que teve suas bases estabelecidas por Getúlio Vargas a partir dos anos 1930, caracteriza-se por

um tripé “extremamente problemático”, formado por:

Arranjos excessivamente consociativos na esfera eleitoral-partidário,

corporativismo na área sindical e presidencialismo plebiscitário como

suposto fator de unificação, na cumieira do sistema político (LAMOUNIER,

1992, p.40, grifos nossos).112

111

Atualmente, no Senado já estão prontos para votação os seguintes projetos: PL 268/2011 (determina o

financiamento exclusivamente público de campanhas eleitorais), PEC 38/2011 (altera a data de posse para os

cargos de presidente e governadores), PEC 42/2011 (estabelece que lei ou emenda constitucional que altere a

legislação eleitoral deve passar primeiro por referendo). In: http://www.senado.gov.br/ (acesso em

13/04/2013). O projeto que prevê financiamento exclusivamente público de campanhas eleitorais, voto em

lista pré-ordenada e fim das coligações nas eleições proporcionais encontra sérias dificuldades de ser

aprovado na Câmara dos Deputados, mas pode vir a ser objeto de reivindicação de um movimento da

sociedade civil encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores. In: http://www.cartacapital.com.br/politica/pt-

coletara-assinaturas-para-projeto-de-reforma-politica/ (acesso em 13/04/2013). 112

Como veremos no capítulo referente à obra de Fernando Henrique Cardoso, o diagnóstico de Lamounier

aproxima-se muito da proposição do então presidente da República de erradicar toda herança da Era Vargas

Page 219: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

228

O primeiro aspecto (consociativismo) é, conforme o texto, decorrente do sistema de

representação proporcional que faz com que o Executivo federal tenha que lidar e negociar

com um grau muito elevado e diversificado de partidos na Câmara dos Deputados. O sistema

de representação proporcional adotado por Vargas teria tido o propósito, à época, de quebrar o

monopólio das oligarquias estaduais, garantindo um mínimo de pluralismo na Câmara federal.

Assim, o Código Eleitoral de 1932 introduziu parcialmente a representação

proporcional no País (associado ao voto secreto, à criação de um ramo do

Judiciário encarregado de organizar e gerir todo o processo eleitoral, do

alistamento à diplomação dos eleitos, e ao voto feminino). Logo após a

Segunda Guerra Mundial, a representação proporcional foi aperfeiçoada com

a introdução do sistema D’Höndt (permanecendo, porém, até hoje as

distorções decorrentes da adoção dos estados como distritos eleitorais). Na

mesma época foi recusado o voto em lista bloqueada, em favor do voto

preferencial (o eleitor escolhe livremente um candidato individual na lista de

um partido) (...). Acrescente-se ainda a lista de elementos consociativos a

existência, desde 1945, de um sistema multipartidário, com extrema

facilidade para a formação de partidos e a concessão quase automática a

estes, após o registro legal, de importantes recursos de poder, como o acesso,

uma vez por ano, a uma cadeia nacional de rádio e televisão. No bojo da

recente redemocratização, foi finalmente repelido o último entrave ao pleno

consociativismo, que era a proscrição dos partidos considerados extremistas

(na prática, os marxistas) (idem, ibidem, p. 50).

A longa, mas ilustrativa passagem revela o conjunto de problemas e respectivas

soluções identificadas por Lamounier no sistema político brasileiro. A representação

proporcional, adotada nos modelos de democracia consociativa, conforme definição clássica

de Arend Lijphart (2003), comenta Lamounier, normalmente é adotada a fim de conceder

certas garantias a minorias étnicas ou religiosas. O mecanismo consociativo da representação

proporcional teria como efeito, todavia, no caso brasileiro, produzir um sistema político-

partidário fragmentado, com dificuldade de estabelecer uma maioria estável na Câmara dos

deputados.

Aliado a esse mecanismo, haveria ainda os agravantes do voto em lista aberta e da

facilidade da formação de partidos. Equacionando-se esses elementos (representação

proporcional mais voto em lista aberta e multipartidarismo) o resultado inevitável seria,

conclui Lamounier, a ingovernabilidade, da qual teria sido “vítima” o ex-presidente Collor de

Melo: ainda que legitimamente eleito para o Executivo Federal, viu-se incapaz de governar,

dada a ausência de uma base parlamentar sólida.

De acordo com o autor, o segundo elemento do tripé que compõe o sistema político

do país. Como se verá, a compreensão dessa herança é decisiva também na interpretação de Santos acerca da

formação da democracia brasileira, sendo essa compreensão, entretanto, bastante diversa da dos primeiros

autores.

Page 220: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

229

brasileiro é o corporativismo sindical. Para Lamounier, a tradição varguista de “remover os

conflitos capital/trabalho da arena político-partidária e confiná-los a um subsistema

específico, no qual preponderassem enfoques judiciários e administrativos” (idem, ibidem, p.

47) chegara a uma situação inaceitável. O processo de negociação de conflito entre

trabalhadores e empresários passara a ser, a partir da década de 1930, tutelado pelo Estado

que, por meio do monopólio da representação sindical em uma determinada jurisdição

territorial e do imposto sindical obrigatório, conseguiu controlar os trabalhadores com vistas a

promover a “paz social”. Mesmo sendo duramente criticado como “fascista”, o

corporativismo varguista teria sido mantido na tradição política brasileira por décadas,

também após a Constituição de 1988, ainda que agora muito mais deficiente, já que o governo

não teria mais o mesmo controle coercitivo sobre os sindicatos. De qualquer modo, ainda

estaríamos a meio caminho do pluralismo sindical, lamenta Lamounier.113

O terceiro elemento caduco legado pelo getulismo à política brasileira seria o

“presidencialismo plebiscitário”:

Com a Revolução de 1930 e principalmente após a repressão aos

extremismos comunista e integralista e a implantação do Estado Novo

(1937-1945), começa a surgir a figura do líder político apoiado diretamente

pelo povo, transformando-se correlativamente o próprio entendimento do

presidencialismo como forma institucional. Tinha início aí a radicalização

plebiscitária desse sistema, que o transforma praticamente no oposto do

modelo norte-americano de checks and balances. Se neste último prevalece

uma ideia de equilíbrio entre forças equivalentes, no presidencialismo

plebiscitário brasileiro (e latino-americano) prevalece a ideia de um

Executivo personalizado, como centro de fixação de todo o sistema político;

centro único mais poderoso e que se arroga maior legitimidade que os outros

dois poderes, teoricamente iguais e independentes, previstos na Constituição

(LAMOUNIER, 1992, p. 52, ênfases do autor).

Um sistema político, portanto, além de fragmentado, do ponto de vista partidário-

eleitoral, corporativista e tutelar da sociedade civil, por fim, susceptível à emergência de

líderes políticos que, ao assumirem o poder Executivo, dispensam e negligenciam as

instituições políticas básicas de uma democracia moderna. Ao invés de instituições políticas

sólidas e duradouras a gerar estabilidade política ao longo dos séculos, como,

hipoteticamente, são as norte-americanas, as brasileiras, critica Lamounier, seriam uma cópia

imperfeita das primeiras e produtoras de recorrente ingovernabilidade.

113

Esse tema escapa parcialmente ao escopo da presente pesquisa. Embora não se pretenda tratar

extensivamente da questão do corporativismo sindical brasileiro, veremos que o autor aqui a ser analisado,

Wanderley Guilherme dos Santos, compreende a mesma dinâmica de modo razoavelmente diferente de

Lamounier (com implicações sobre a sua narrativa de formação da democracia no país), tendo contribuído

para o surgimento de uma outra “linhagem” de estudos sobre o tema no Brasil, da qual se destaca o trabalho

de Ângela Castro Gomes, orientado por Santos (1988).

Page 221: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

230

O autor afirma que cada um desses elementos tomados isoladamente já é

problemático; mas é particularmente mais perigoso (segundo os modelos de democracia

formulados por Lijphart) a combinação do sistema de representação proporcional e o

“presidencialismo plebiscitário”: “facilitando a proliferação partidária, a RP [representação

proporcional] ‘aumenta a probabilidade de presidentes sem maioria parlamentar e

consequentemente de impasses entre Executivo e Legislativo’” (idem, ibidem, p. 54). Como

se vê, para esse intérprete da política brasileira, a tradição varguista, como um todo, constitui

um legado que se contrapõe à consecução de uma democracia moderna no Brasil.

Dado o diagnóstico, Lamounier passa então a descrever como reformar nosso

arcabouço institucional. Negando a razoabilidade da aplicação imediata de um sistema

bipartidário e do voto distrital puro (em substituição ao multipartidarismo e ao sistema de

representação proporcional), o autor defende que:

O caminho mais promissor para reorganização institucional do País se

encontra na combinação entre parlamentarismo e representação

proporcional. Mas parlamentarismo, como disse, munido de defesa contra o

fato historicamente consumado da nossa fragilidade partidária; representação

proporcional, mas num formato institucional distinto do que temos praticado.

Parece-me que, sob este último aspecto, que a adaptação do modelo alemão

seria a alternativa apropriada, na medida em que associa o critério

proporcional na alocação global de cadeiras a uma mecânica distrital

(majoritária), para o preenchimento de metade das vagas, com a prévia

exclusão de partidos que não atinjam 5% da votação nacional (idem, ibidem,

p. 54).114

Parlamentarismo, voto distrital misto e cláusula de barreiras para os partidos

“pequenos”: eis a pauta defendida pelo cientista político Bolívar Lamounier, frente à

iminência de um plebiscito popular sobre a forma de governo, que viria a ser realizado em

1993.

Em um texto seu mais recente, escrito em coautoria com Amaury de Souza, o autor

retoma o discurso da necessidade premente de se realizar uma reforma política no Brasil.

Baseando-se em entrevistas feitas com “104 cientistas políticos e juízes” (SOUZA &

LAMOUNIER, 2006, p. 44), os dois asseveram:

Nas últimas três décadas, firmou-se entre os economistas juristas e cientistas

sociais e também entre as principais agências multilaterais o entendimento

de que o desenvolvimento econômico e social requer um concomitante

processo de aprimoramento político institucional. Um entorno institucional

adequado e moderno contribui para a eficiência e o bem-estar da sociedade

114

O autor esclarece pouco a respeito do modelo institucional alemão, limitando-se a afirmar que ele combina

parlamentarismo, no qual há a cláusula segundo a qual o Legislativo pode retirar a confiança no primeiro-

ministro (desde que indique imediatamente um sucessor), com um sistema partidário não petrificado, mas

disciplinado.

Page 222: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

231

(idem, ibidem, p. 49).

Mais adiante, complementam:

As limitações do modelo político brasileiro há tempos clamam por uma

reforma institucional. A chave dessa reforma é a necessidade de se fortalecer

o sistema partidário, desde logo, pela redução do número de partidos e

reforço da disciplina partidária, criação de mecanismos mais eficientes para

coordenar as relações entre o Executivo e o Legislativo, e estabelecimento

de laços mais forte entres os eleitores e seus representantes (accountability)

(idem, ibidem, p. 49, ênfases do autor).

Novamente emerge o tema do multipartidarismo e da sua inevitável consequência, na

opinião dos autores, a fragmentação partidária, suposta causa, por seu turno, da

ingovernabilidade crônica brasileira. Profilaticamente recomendam, mais uma vez, a adoção

da cláusula de barreiras de 5% dos votos nacionais, como requisito sem o qual um partido não

está qualificado para a representação parlamentar, a adoção de um sistema eleitoral misto

“que combinasse disputas majoritárias em distritos uninominais com eleições proporcionais

de lista fechada nas circunscrições estaduais” (idem, ibidem, p. 56), além da criação de

dispositivos específicos para garantir a disciplina partidária, indo, assim, ao encontro a alguns

projetos em discussão no Congresso, pelo menos, em suas diretrizes gerais115

.

Lamounier e Souza resumem o debate brasileiro sobre a reforma política do seguinte

modo: de acordo com eles, esse debate inicia-se em meados da década de 80, particularmente

com a Comissão Afonso Arinos, quando do processo de elaboração constitucional. Nesse

primeiro momento, prevaleceu o espírito de reformar de modo abrangente o sistema político

brasileiro, inclusive com a adoção do parlamentarismo. Após a derrota da opção

parlamentarista no plebiscito de 1993, o debate assume cada vez mais um caráter mais

incremental, com propostas de mudança reduzida e focalizada. O terceiro momento, por sua

vez, seria marcado por mudanças endogenamente produzidas (como a da “verticalização”

imposta pelo Tribunal Superior Eleitoral) e a permanência de propostas de intervenções

pontuais, entretanto, com razoável dificuldade, até agora, de serem implementadas.

Levando em consideração esse histórico, os autores lamentam-se do “fatiamento” da

reforma política em propostas específicas e não vinculadas, bem como da retirada da pauta

pública de transformações mais substantivas, como a adoção do parlamentarismo (vencido em

115

O PL 267/2011 (cria a cláusula de desempenho que exige que os partidos elejam, no mínimo, três deputados

de três diferentes estados) o PL 266/2011 (trata da disciplina partidária), a PEC 43/2011 em conjunto com a

PEC 23/2011 (cria o sistema eleitoral de listas preordenadas para os cargos da Câmara Federal). In:

http://www.senado.gov.br/noticias/Especiais/reformapolitica/noticias/veja-como-esta-a-tramitaao-de-cada-

projeto-da-reforma-politica.aspx (acesso em 13/04/2013).

Page 223: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

232

dois plebiscitos nacionais na história do país, em 1963 e 1993).

Lamounier e Souza, com efeito, podem se considerados como intelectuais

representativos de uma corrente importante na Ciência Política brasileira e com razoável

visibilidade nos meios de comunicação de massas que ressalta a ineficiência, a instabilidade e

o anacronismo de alguns aspectos da democracia brasileira e defendem, por conseguinte, a

necessidade de uma ampla reforma política no país. Estando mal a democracia nacional,

argumentam, é urgente transformar suas instituições.

Entretanto, apesar de tentar fundamentar seus próprios argumentos na opinião

majoritária de “especialistas” da política (idem, ibidem, 2006, p. 44), a posição desses autores

está longe de ser consensual. Mesmo na Ciência Política, campo epistêmico que concentra

boa parte do debate especializado sobre a reforma política, cada uma dessas propostas é

bastante controversa, recebendo, às vezes, fortes objeções. Há, inclusive, uma vertente

frontalmente contrária à representada por Lamounier que se constitui de certa apologia do

regime democrático brasileiro em seu estado atual que, ainda que não seja considerado como

isento de problemas, é caracterizado, sobretudo, pelos seus avanços em incorporar boa parte

dos indivíduos do país a polis democrática e em tornar a disputa pelos cargos de poder cada

vez mais competitiva. Nessa vertente, destaca-se, sobremaneira, a obra do cientista político

Wanderley Guilherme dos Santos.

Santos pode ser considerado um dos “pais-fundadores” da Ciência Política brasileira

que, no final dos anos 1960 e junto a uma geração de outros intelectuais (da qual fez parte

também Lamounier), contribuiu para a delimitação e a autonomização desse campo

acadêmico de estudos, através da incorporação de metodologias e linguagens novas para se

pensar a política. Nesse sentido, diferentemente de muitos dos autores aqui estudados, o

discurso sobre a política aparece alicerçado num novo modo de compreendê-la – próprio da

Ciência Política – e, no caso de Wanderley Guilherme, em que as instituições políticas são

tomadas como variáveis independentes ou intervenientes do processo político, não

compreendido como mero resultado da estrutura social ou da economia, por exemplo. Trata-

se, portanto, de uma linguagem de afirmação da autonomia da política e que se especializa no

entendimento do funcionamento das instituições políticas da democracia116

.

116

Em relação aos autores aqui estudados, é verdade que a reivindicação de autonomia da política aparece

também na obra de Faoro (contra a vulgata marxista segundo a qual o Estado é o “comitê executivo da

burguesia”) e também na de Fernando Henrique Cardoso (contra as interpretações economicistas à direita e à

esquerda, como veremos no próximo capítulo). De qualquer modo, Santos é dentre todos os autores

estudados aquele no qual sua linguagem é mais fortemente formada pela moderna Ciência Política, ao lado

de Cardoso, influenciado por esse campo epistêmico, mas mais fortemente pela Sociologia (sobretudo,

Page 224: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

233

Santos, como se disse, tem se esforçado em defender os aspectos positivos do atual

sistema político brasileiro, não se opondo a qualquer forma de reforma política, mas àquelas

que, na sua opinião, limitam o potencial da democracia brasileira, especialmente a adoção da

cláusula de barreiras para os partidos “menores”, o voto em lista fechada e a substituição do

sistema de representação proporcional pelo majoritário (voto distrital misto ou puro), como

vimos, justamente a terapêutica recomendada por Lamounier e Souza à política brasileira.

Para Santos, tais propostas representam um esforço das oligarquias tradicionais do país

temerosas frente ao processo de expansão cívica, vivenciado no país a partir dos anos 1990,

visando, basicamente, reduzir a competição política.

Além de ter um papel de destaque na cena pública brasileira no que tange à avaliação

da qualidade de nossa democracia e, por conseguinte, no debate sobre a reforma política,

Santos – conforme interpretação aqui defendida – formulou uma nova e importante narrativa

acerca da história da formação de nossa democracia117

. Nesse sentido, se justifica a sua

inclusão no rol dos autores aqui estudados, ainda que sua obra seja ainda relativamente pouco

avaliada pelos estudiosos da área de Pensamento Social Brasileiro.118

Nessa narrativa, a democracia brasileira emerge dos conflitos internos à oligarquia do

passado em um processo que não é teleológico nem encarcerável, e, portanto, sujeito a

retrocessos, como constituiria o caso da ofensiva neo-oligárquica implícita nas solicitações de

reforma política. O caso brasileiro de formação da democracia, na visão do autor, é

particularmente mais complexo que o das democracias mais antigas do mundo, dado que sua

formação se dá em um contexto institucional adverso, na medida em que nem mesmo a

integração do território nacional já havia sido plenamente realizada e ela já tinha que lidar

simultaneamente com pressões por ampliação da participação política e também por

distribuição da riqueza. Dessarte, as reivindicações democráticas começam a se fazer sentir

ainda no século XIX, concomitantemente à necessidade de se criar um Estado e uma

sociedade liberal no país.

A democracia, como fenômeno mundial, é caracterizada por Wanderley Guilherme

como uma invenção de efetividade muito recente, dado que é irreal falar em democracia antes

da consolidação do sufrágio universal, o que se começou a ocorrer na última década do século

francesa).

117 Sobre esse papel, apenas a título de exemplo, cumpre destacar a palestra proferida pelo referido autor no

Senado federal a respeito da estratégia de redemocratização do país a ser adotada (Cf. SANTOS, 1978b, parte

III). 118

O autor foi, de modo sistemático, primeiramente estudado por nós (MOREIRA, 2008) e acaba de ter sua obra

como objeto de livro a ser publicado (DULCI, no prelo).

Page 225: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

234

XIX119

. Nesse sentido, a dinâmica da democracia é ainda pouco compreendida pelos

especialistas, o que deveria sugerir cautela ao tentar modificar as suas regras de competição

política, argumenta ele: os efeitos das inovações institucionais tendem, conforme indica a

história, a contrariar as expectativas de seus propugnadores. Ao contrário daqueles que

interpretam a democracia como uma experiência consolidada e de enraizamento longevo,

Wanderley Guilherme apresenta uma visão na qual a passagem dos regimes oligárquicos para

a democracia é algo ainda recente, inconcluso e passível de regresso.

Como horizonte normativo da consolidação da democracia no Brasil, o autor reafirma

a necessidade de manter os atuais níveis de competição política (pelos cargos eletivos de

poder) e de participação política (sobretudo, eleitoral) e de realizar, ao mesmo tempo, a

constitucionalização de todo território brasileiro, isto é, a expansão dos direitos mínimos aos

cidadãos. É essa última dimensão – a dos direitos civis e não a dos direitos políticos, ou da

democracia propriamente dita – que, argumenta o autor, ainda exige universalização. Por

conta disso, o autor assevera que, no Brasil, subsiste ainda um “híbrido institucional”,

caracterizado pela excessiva legislação poliárquica que contrasta com a sociabilidade

hobbesiana, presente em algumas situações do país, e que acaba tendo pouco efeito sobre ela.

Sob essa perspectiva, a constituição de uma ordem liberal válida em todo território nacional é

tarefa ainda por se realizar.

Essa interpretação do Brasil criada por Wanderley Guilherme dos Santos expressa uma

linguagem política bastante particular, formada em evidente contato com os conceitos e

métodos forjados pela moderna Ciência Política, especialmente da matriz estadunidense, da

qual Santos foi um dos primeiros a se apropriar de modo sistemático no Brasil. No entanto,

longe de constituir uma mera imitação de ideias forjadas alhures, essa apropriação constitui-se

de uma reflexão crítica, seletiva e criativa, como é o caso da crucial incorporação por parte de

Santos da teoria da poliarquia, formulada na primeira metade do século XX pelo cientista

político norte-americano Robert Dahl120

. É através precisamente do conceito de poliarquia

que Wanderley Guilherme constrói sua interpretação da formação da democracia brasileira e,

ao mesmo tempo, se arma contra aqueles que, segundo ele, querem atualmente reverter esse

processo, concentrando o poder político.

Além disso, sua linguagem revela ter sido formada em contato com a tradição do

119

Segundo Santos, os dois primeiros países a adotarem o sufrágio universal (estendendo, então, o voto às

mulheres) foram a Nova Zelândia (1893) e a Austrália (1901). Em geral, tal conquista só se expandiria para

boa parte do resto do globo após da Segunda Guerra Mundial (Cf. SANTOS, 2007a, p. 13). 120

Cf. MOREIRA, 2008.

Page 226: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

235

liberalismo cívico, na qual se destaca a obra do inglês John Stuart Mill, e, ao mesmo tempo,

com alguns autores do Pensamento Social Brasileiro, como José de Alencar e Oliveira Vianna,

entre outros, retomados por Santos em seus pioneiros estudos nessa área121

e que, segundo

ele, tinham como meta última a consolidação de uma ordem burguesa no Brasil.122

Partindo dessa confluência do liberalismo cívico e democrático – identificável nas

obras de Mill, Alencar e Vianna e, mais recentemente, Dahl – Wanderley Guilherme dos

Santos não intervém polemicamente no debate público apenas contra os que, receosos da

perda de poder e privilégios, se armam contra ela (pretendendo, segundo sua opinião,

restringir a competição política), mas também contra aqueles que – baseando-se numa

concepção de democracia participativa ou do neorrepublicanismo123

– identificam um déficit

democrático entre nós atualmente. Aqueles, por exemplo, que avaliam negativamente a

democracia no país face à permanência de grandes desigualdades sociais, Santos contra-

argumenta que a democracia não deve ser julgada por aquilo que não compete a ela, pois o

desiderato fundamental dessa forma de regime político é tão somente a erradicação das

desigualdades políticas entre os cidadãos de um país, o que, na sua opinião, vem ocorrendo

satisfatoriamente no Brasil. Assim, como um expoente do liberalismo democrático e cívico

brasileiro, Santos reatualiza o debate, visto anteriormente por este trabalho, entre as tradições

liberal e republicana, criticando essa última tradição no que tange à sua utilidade em avaliar as

democracias contemporâneas.

O percurso deste capítulo compreenderá quatro momentos distintos. No primeiro

iniciamos a exposição da interpretação de Wanderley Guilherme acerca da formação da

democracia brasileira, construída à luz da teoria poliárquica, adotada por ele como melhor

modelo conceitual das democracias contemporâneas. No caso, evidencia-se o desejo do autor

em compreender se o país cumpriu os requisitos mínimos de uma poliarquia e se esse regime,

de fato, organiza a vida social brasileira. No segundo momento discutiremos um tema

fundamental em sua interpretação do Brasil, qual seja, a construção do Estado nacional e da

ordem burguesa e a contribuição e limites da política de Getúlio Vargas na realização dessas

121

Sobre isso, conferir o primoroso artigo de Christian Edward Lynch, “A constituição de um campo de estudos:

Wanderley Guilherme dos Santos e a pesquisa sobre o pensamento político brasileiro (1963-1978)”, presente

em: DULCI, no prelo. 122

O autor, em texto pioneiro já citado nesta tese, defende que o pensamento de Oliveira Vianna deve ser

caracterizado como “autoritário instrumental”: dado as condições adversas à construção de uma ordem liberal

no Brasil do final do século XIX e início do XX, Vianna teria concebido um projeto em que o Estado torna-se

o protagonista para a criação (segundo meios adequados ao contexto local) de uma sociedade liberal (Cf.

SANTOS, 1978). 123

O autor tende a identificar as duas vertentes da Teoria Democrática e associá-los à defesa de mecanismos de

participação direta, como os plebiscitos. Far-se-á adiante a crítica desse procedimento.

Page 227: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

236

metas. A questão da ordem burguesa ou liberal, na concepção desse autor, é encarada como

um patamar necessário para o bom funcionamento da poliarquia, patamar esse ainda não

conquistado plenamente no Brasil. Com frequência, as propostas de reforma política são

justificadas a fim de negar a influência da tradição varguista sobre a política nacional (como

vimos, por exemplo, no discurso de Lamounier), o que justifica essa pequena digressão na

argumentação. Num terceiro momento, retomamos mais diretamente a discussão sobre o

conceito de poliarquia, e seus limites, a fim de considerar as críticas de Santos à suposta re-

oligarquização da democracia brasileira. Por fim, avalia-se a contribuição de Santos em

relação à discussão acerca de alguns pontos da reforma política defendida por alguns, levando

em consideração a disputa normativa entre as linguagens políticas do liberalismo e do

republicanismo, no que tange à definição do que deve ser a democracia na

contemporaneidade. Nesse passo, buscaremos destacar a contribuição de sua obra, bem como

os seus limites na compreensão do que temos denominado de republicanização do país. Ainda

que não concordemos com alguns pontos do pensamento desse autor, reconhecemos a sua

importância na conformação de uma linguagem política relevante no Brasil hodierno que

reafirma o compromisso necessário com as instituições políticas da competição democrática,

exemplarmente examinadas por ele.

5.1 – Poliarquia: a apologia da competição política

Assim como no caso dos demais pensadores analisados neste trabalho, a exposição do

pensamento político de Wanderley Guilherme dos Santos não tem a pretensão de abranger

toda a sua obra ou de acompanhar as modificações pelas quais ela passou ao longo do

tempo.124

Ao se concentrar no conceito de poliarquia, a presente pesquisa está, de fato,

pressupondo que a teoria poliárquica, embora não seja a única referência importante da obra

de Santos, é certamente aquela que melhor a caracteriza, do ponto de vista de que conceito de

democracia o autor se vale. Sobre isso, o autor afirma em diversas passagens:

Para efeito de ordenação do raciocínio, vou utilizar o modelo [de ordem]

sugerido por Robert Dahl (...), a ele incorporando ponderações adicionais,

que, a meu ver, esclarecem a natureza das diferenças entre as formações

históricas latino-americanas e européia e anglo-saxônica (SANTOS, 1993a,

p. 27).

Considero a teoria da poliarquia de Robert Dahl, mesmo com as

imperfeições que possa ter, ainda como a mais econômica e eficiente

124

Para isso, ver: MOREIRA, 2008.

Page 228: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

237

reflexão para entender as sociedades democráticas contemporâneas. Não

conheço nenhum modelo mais rico e desafiador. (SANTOS, 2008).

O conceito de poliarquia é utilizado por Dahl, desde em Um prefácio à teoria

democrática (livro publicado inicialmente em 1956), para descrever a concepção de

democracia que procura conciliar a maximização das metas da soberania popular e da

igualdade política com o funcionamento das democracias realmente existentes na

modernidade, e visa separar, parcialmente, as discussões normativas das discussões empírico-

descritivas sobre os regimes democráticos.

Assim, a poliarquia, diferenciada do que se entende genericamente por democracia,

não deve ser entendida rigorosamente com o governo no qual a maioria governa (no sentido

de que a política adotada seja idêntica ao desejo da maioria), nem tampouco requer uma

participação plena de todos os cidadãos. Não se trata, portanto, de um controle total do povo

sobre seus governantes, mas de um controle parcial, compatível com a realidade política

contemporânea. Ainda que imperfeita, a poliarquia, segundo Dahl, é o regime político que

melhor se aproxima do ideal democrático.

Polemizando com James Madison, pai-fundador da democracia estadunidense, Dahl

defende que a poliarquia é um tipo de regime político que se baseia sua existência muito mais

numa confluência de condições sociais prévias, do que nos freios constitucionais ao poder tão

prezados por Madison:

Durante a história, a poliarquia tem estado intimamente vinculada a um tipo

de sociedade que se caracterizou por uma série de elementos inter-

relacionados: um nível relativamente alto de mobilidade e de riqueza per

capita, um crescimento secular dessa mobilidade e dessa riqueza, um alto

grau de urbanização, uma população agrícola relativamente pequena e em

rápida diminuição, uma grande diversidade populacional, ampla

alfabetização, uma quantidade comparativamente grande de pessoas que

alcançam o ensino superior, um sistema econômico em que a produção está

principalmente a cargo de empresas relativamente autônomas, cujas decisões

se orientam em grande medida para o mercado nacional e para os mercados

internacionais, e níveis relativamente altos de indicadores de bem-estar

econômico e social (DAHL, 1993, p. 300, trad. nossa).125

Esse composto de fatores inter-relacionados constitui o que Dahl chama de sociedade

125

“A lo largo de historia, la poliarquía há estado íntimamente vinculada a un tipo de sociedad que se caracterizó

por una serie de elementos interrelacionados: un nivel relativamente alto de ingreso y de riqueza per cápita,

un crescimento secular de esse ingreso y esa riqueza, un alto grado de urbanización, una población agrícola

relativamente pequeña o en veloz diminuición, gran diversidad ocupacional, amplia alfabetización, una

cantidad comparativamente grande de personas que asistem a instituciones de ensenanza superior, un sistema

económico en que la producción está principalmente a cargo de empresas relativamente autónomas cuyas

decisiones se orientan en gran medida al mercado nacional y a los mercados internacionales, y niveles

relativamente altos de los indicadores del bienestar econômico y social”.

Page 229: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

238

“moderna, dinâmica e pluralista” (MDP). Moderna porque é uma sociedade industrializada,

com elevados índices de riqueza, consumo, educação, diversidade ocupacional, população

urbana, etc. Dinâmica já que nela subsiste um crescimento econômico e um aumento contínuo

no padrão de vida dos indivíduos. E pluralista porque não há uma concentração, mas sim uma

dispersão entre os atores sociais desses recursos socialmente relevantes. Embora não

considere que uma sociedade MDP seja condição suficiente para a poliarquia, ela é um fator

decisivo para a estabilidade poliárquica.

No livro Poliarquia (originalmente de 1971), Dahl assevera que poliarquias são

definidas por ser um governo responsivo às preferências de seus cidadãos, ou seja, por ter que

prestar contas continuamente a eles. Para que isso ocorra, é forçoso que oito garantias sejam

oferecidas aos indivíduos. São elas:

1) liberdade de formar e aderir a organizações; 2) liberdade de expressão; 3)

direito de voto; 4) elegibilidade para cargos públicos; 5) direito de líderes

políticos disputarem apoio (5a: direito de líderes políticos disputarem votos);

6) fontes alternativas de informação; 7) eleições livres e idôneas; 8)

instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de

eleições e de outras manifestações de preferência (DAHL, 2005, p. 27).

Essas oito garantias podem ser compreendidas também segundo dois eixos distintos do

processo de democratização: a liberalização ou institucionalização (“public contestation”),

por um lado, e a participação, por outro lado. Os regimes poliárquicos são regimes

amplamente (ainda que não totalmente) liberalizados e participativos. A dimensão da

liberalização caracteriza-se pelo grau de liberdade e igualdade que possui a oposição de

competir pelo poder e contestá-lo abertamente. A dimensão da participação, pelo grau de

inclusão política da sociedade, ou seja, pela “proporção da população habilitada a participar,

num plano mais ou menos igual, do controle e da contestação à conduta do governo” (DAHL,

2005, p. 28). Em conformidade com essa definição bidimensional, o autor classifica os

regimes políticos em quatro tipos: 1) hegemonias fechadas (baixas participação e

liberalização); 2) hegemonias inclusivas (baixa liberalização e alta participação); 3)

oligarquias competitivas (baixa participação e alta liberalização); 4) poliarquias (altas

participação e liberalização).

Dahl propõe como hipótese que a sobrevivência de um regime político competitivo,

como o é a poliarquia, depende dos custos da tolerância serem menores do que os custos da

supressão. Dito de outro modo, uma poliarquia é um regime que possui um alto grau de

“segurança mútua”, segundo o qual tanto a oposição quanto o governo sentem-se mais

propensos a aceitar as regras do jogo competitivo, do que em destruí-las. Mas quais seriam as

Page 230: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

239

condições necessárias para a vigência desse sistema de segurança mútua? Dahl considera em

Poliarquia sete variáveis, mas, em função dos objetivos do presente trabalho, considerar-se-á

apenas uma, a saber, a seqüência histórica em que ocorreram a liberalização e a ampliação da

participação126

.

No que diz respeito a esse fator, do ponto de vista estatístico, é mais provável que surja

uma poliarquia estável quando a liberalização precede a ampliação da participação, pois a

prática competitiva, nesse caso, se restringe inicialmente a poucos grupos, mais coesos entre

si, só depois sendo estendida a outros indivíduos. As garantias mútuas são, na realidade, um

fator que diminui os custos da tolerância, na medida em que cada grupo político tem a

expectativa de que a tolerância dos grupos rivais não provocará a sua própria destruição. Os

outros caminhos da democratização seriam, dessarte, mais arriscados, exatamente por não

terem consolidado esse sistema de segurança mútua e por ser improvável de isso ocorra

quando já há um número muito grande e heterogêneo de líderes representando camadas

sociais diversas.

Entretanto, continua o autor, essa seqüência histórica (na qual a liberalização precede a

participação) estava vedada aos países que se democratizavam no século XX, visto que a

pressão por ampliação da participação já era muito forte a essa época e muitas barreiras desse

segundo eixo já haviam postas de lado. Assim, a maioria dos regimes políticos de hoje são

hegemonias inclusivas (quando não são poliarquias), pois já estabeleceram o sufrágio

universal. Nesse sentido, afirma Dahl, o grande desafio para esses países é a construção desse

sistema de garantias mútuas sob a vigência de participação ampliada.

Ora, como se sabe, o Brasil é justamente um caso de democratização tardia, que se

enquadraria, a priori, nesse segundo grupo. Levando em consideração esse prognóstico pouco

otimista, Wanderley Guilherme dos Santos adotou a teoria da poliarquia para pensar a

realidade brasileira, mas também propôs correções a essa teoria que, em alguma medida,

tornam-na mais complexa e sensível a outras dinâmicas do processo de democratização. Seria

o Brasil no fim do século XX uma poliarquia? Como deve ser compreendida a história

brasileira à luz da teoria poliárquica e, mais, quais são os principais desafios para a

consolidação de um regime desse tipo entre nós? A resposta a essas questões demanda a

análise de alguns dos mais importantes textos de Santos.

126

Essa é a variável sistematicamente discutida por Wanderley Guilherme dos Santos. As outras seis variáveis

são: 1) ordem socioeconômica (concentração ou dispersão dos recursos); 2) ordem socioeconômica (nível de

desenvolvimento); 3) existência de igualdades e desigualdades; 4) pluralismo subcultural; 5) crenças dos

ativistas políticos; 6) controle estrangeiro (Cf. DAHL, 2005).

Page 231: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

240

No livro Razões da desordem, Wanderley Guilherme procura analisar, em comparação

com a experiência inglesa (tomada por Dahl como exemplo da criação de uma poliarquia),

como se formou a ordem brasileira, enfatizando duas questões comuns às sociedades

modernas, a saber, o “alargamento da participação e da institucionalização da competição

política” e a “integração institucional”, sendo que somente o primeiro processo foi analisado

com centralidade por Dahl (SANTOS, 1993a, p. 9).

Por volta de 1840, a Inglaterra teria terminado o seu primeiro surto de industrialização

e se preparava para adoção do livre-comércio e do imperialismo, que auxiliaria o país a passar

de forma muito menos instável que seus vizinhos europeus pelos séculos XIX e XX. Esse

processo econômico foi fundamental, pois teria permitido a integração institucional da nação,

garantindo, por seu turno, um mercado nacional integrado, um sistema de comunicação e

transporte ampliados, etc. Além dos índices econômicos favoráveis à estabilidade política

inglesa, outro fator de estabilização, de acordo com Santos, consistiu no fato de que o país

contou com um sistema político aceito por boa parte das lideranças operárias. Mesmo que

restrito a poucos grupos (as tradicionais oligarquias do país), o regime de competição política

pôde, assim, se institucionalizar, constituindo o sistema de segurança mútua. Uma vez já

institucionalizada a competição pelos cargos de poder, esse regime foi ampliando aos poucos

a participação mediante a extinção de barreiras ao jogo político (renda e gênero,

principalmente).

Até aqui, nada de novo: Santos repete a descrição de Dahl na qual a liberalização

precede à ampliação da participação, gerando, por suposto, maior estabilidade política. Santos

observa, contudo, que houve um terceiro momento desse processo de constituição da ordem

política que não foi avaliado por Dahl. Somente depois de liberalizado e com alta participação

política, quer dizer, com as identidades políticas dos atores já formadas por meio dos partidos,

é que o sistema político inglês começa a solucionar a questão social (problema distributivo),

quer dizer, a construir o seu Estado de bem-estar através de uma legislação provendo auxílio

aos pobres, seguro-desemprego, seguro-saúde, etc.127

Comparado à experiência da Inglaterra, a experiência da formação da ordem brasileira

revela-se bem diversa. Sendo uma colônia, e não uma metrópole, o mesmo processo de

acumulação de riquezas via expansão mundial do comércio, que favorecera a integração

127

Parece-nos que Wanderley Guilherme, para construir essa narrativa da história política inglesa, tomada como

referência para a compreensão do caso brasileiro, se vale, fundamentalmente, da obra clássica sobre a

formação da cidadania moderna: Social class, citizenship and social development (1965), de T.S. Marshall.

Page 232: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

241

nacional inglesa, gerou, no Brasil, segmentação e desigualdade entre as regiões brasileiras128

.

O Brasil, como outros países do continente latino-americano, vivia “extemporaneamente” o

problema liberal básico, a criação de uma sociedade de mercado. O autor recupera, nesse

passo, a obra de Oliveira Vianna, subscrevendo seu diagnóstico acerca do caráter clãnico e

errático da sociedade brasileira que impediu a formação de uma ordem burguesa do período

colonial à Primeira República:

Quando o Brasil se separou de Portugal, portanto, a sociedade nacional

apresentava baixíssima integração através do mercado. A unidade econômica

e social básica era o clã parental, baseado na propriedade, e capaz de obter a

submissão da toda a mão-de-obra ‘livre’ que vivesse no interior ou na

periferia dos domínios.

A experiência com a descentralização liberal, realizada nas primeiras

décadas pós-Independência, resultou na captura das posições de autoridade

pelos membros do clã, agora transformado em clã eleitoral. Todos os

‘cidadãos’ habilitados a escolher o prefeito, a autoridade judiciária local e o

chefe da polícia pertenciam à força de trabalho não-escrava, em tudo e por

tudo dependente dos proprietários da terra. Os latifúndios detinham o

monopólio de trabalho e, consequentemente, controlavam as vidas dos que

deles dependiam. A oligarquização das estruturas políticas foi produzida e

legitimada pelos métodos liberais impostos pelo governo central.

Quando os conservadores reagiram e deram início à centralização imperial,

os perdedores teriam sido os proprietários de terra e não os ‘cidadãos’. O

sistema republicano, continua Oliveira Vianna, não alterou o padrão básico

das relações sociais e econômicas. A sociedade brasileira ainda e

basicamente oligárquica, familística e autoritária (SANTOS, 1998b, p. 47-

48).

Não havia uma ordem burguesa no Brasil, da colônia à Primeira República. A

participação nas eleições, restrita a aproximadamente 2% da população brasileira, revelava o

elevado grau de repressão vigente. O pacto oligárquico, ainda que instável, mantinha sob seu

comando o Estado federal brasileiro que pouco podia contra os “leviatãs estaduais”. No

cenário de nossa primeira experiência republicana, o Estado brasileiro ainda não conseguia se

impor sob todo o território, sendo, na realidade, tomado de assalto pelos oligarcas regionais

mais influentes.

O que Wanderley Guilherme quer ressaltar é que o projeto do liberalismo político,

idealizado pelas elites brasileiras, até princípios do século XX, era, todavia, inviável, haja

vista a natureza da sociedade reinante no país – oligárquica, insolidária e autoritária. Sem uma

ideologia liberal capaz de gerar, independentemente da ação estatal, solidariedade social entre

os brasileiros, a reação contra essa desintegração da nação foi dada, segundo Santos, pelas

128

Como vimos, Celso Furtado trata desse processo de desigualdade social ao longo de toda a sua obra a partir

da noção de subdesenvolvimento, não utilizada aqui por Santos, na medida em que a ideia de nação

(associada ao conceito de subdesenvolvimento) não faz parte de seu campo teórico-normativo.

Page 233: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

242

esferas administrativa e militar. A solução por aqui foi, destarte, claramente dissonante do

pacto liberal clássico: “O Príncipe deu origem à sociedade, fundou a nacionalidade e,

portanto, legitimou o Estado, não o inverso” (SANTOS, 1998b, p. 19).

O verdadeiro divisor de águas com esse padrão, nesse sentido, foi a Revolução de

1930, pois, doravante, o Estado brasileiro, em condições ainda de baixa institucionalização e

participação política limitada, garantiria precocemente os direitos sociais, sendo utilizados a

fim de garantir a submissão política dos atores sociais ao Estado129

.

A partir da contraposição entre as histórias políticas da Inglaterra e do Brasil (bastante

resumidas e simplificadas aqui), percebe-se que o autor quer ressaltar um aspecto omitido

pela teoria poliárquica que, para ele, é de extrema relevância: com relação à variável

“seqüência histórica”, seria possível, por conseguinte, pensar em outras possibilidades do

processo de democratização, não antevistas por Dahl, se o problema distributivo fosse levado

em consideração. O caso brasileiro seria exemplar nesse sentido, mas não o único, no qual a

legislação social foi empregada em momentos de crise e de reduzidas liberalização e

participação política, como foi os casos do Estado Novo (1937-45) e da ditadura militar

(1964-85).

Tendo em vista essa outra seqüência de democratização nacional, indaga-se o autor:

pode-se tomar o Brasil no fim do século XX como uma poliarquia? Avaliando as

características típicas de sociedades poliárquicas (muitas delas já mencionadas por Dahl em

passagem anterior), Santos procura demonstrar que, segundo a teoria dahlsiana, o Brasil já é

uma poliarquia.

A primeira delas é a acumulação material. O país não apenas cumpriu, no intervalo

entre 1965 e 1980, o requisito da acumulação, com uma média de crescimento do PIB de

8,8% (Santos, 1993a, p. 81), como a estrutura econômica da nação tornou-se acentuadamente

diversificada. Verificou-se, concomitantemente, intensa urbanização e crescimento das

associações civis, quebrando o monopólio organizacional corporativista. Pode-se, então, dizer

que a sociedade brasileira no final do século XX é uma sociedade certamente moderna,

dinâmica e plural (ainda que não igualitária), tal como previsto por Dahl como condição

necessária (ainda que insuficiente) para a poliarquia.

A segunda característica é a expansão do eleitorado. Wanderley Guilherme apresenta

dados que comprovam que o eleitorado brasileiro teve uma média de crescimento de 31,2%

entre 1945 e 1986. Verifica-se também que a expansão do eleitorado ocorreu simultaneamente

129

O tema da Revolução de 1930 e da tradição varguista ou trabalhista ocupa um lugar importante no

pensamento desse autor e será retomado no próximo tópico.

Page 234: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

243

ao aumento da competitividade do sistema político brasileiro: “De 1950-1966 e, depois, a

partir de 1974, o sistema partidário brasileiro foi, e é, competitivo” (SANTOS, 1993a, p. 88,

grifos nossos).

O último traço típico das poliarquias é que a correlação entre participação, por um

lado, e renda e educação, por outro lado, aplica-se também à sociedade brasileira, sendo,

portanto, atendido como os demais. Levando em consideração que todos esses quesitos foram

assegurados, pergunta-se, então, o autor:

Ao que parece, e por todas as evidências, os requisitos de um sistema

poliárquico foram atendidos apropriadamente pela sociedade brasileira (...).

[Tudo isso] devia manifestar adequada capacidade de aprendizado diante de

crises, reduzida taxa de desperdício e maior velocidade de recuperação após

períodos de dificuldade. Por que tal não acontece com a poliarquia

brasileira?(SANTOS, 1993a, p. 89, grifos nossos).

A resposta de Wanderley Guilherme à pergunta de porque o país ainda não constituíra

integralmente uma poliarquia no fim do século XX exige levar em consideração, mais

detidamente, outro elemento fundamental de seu pensamento: a formação da ordem burguesa

no Brasil.

5.2 – A ordem burguesa e a Era Vargas

Como se viu, o modelo poliárquico não leva em conta como se deu a incorporação dos

diversos segmentos sociais (em especial, os trabalhadores e os empresários) na ordem

política, mas apenas a posição temporal dos dois eixos, liberalização e participação. Deixa de

responder, portanto, porque, mesmo cumprindo todos os requisitos de uma poliarquia estável,

alguns países não lograram atingi-la. O caso brasileiro, de precoce ampliação dos chamados

direitos sociais, sem que os processos de liberalização da competição política e de ampliação

da participação política tivessem sido concluídos, sugere uma outra via de democratização,

tipicamente utilizada pelos países da América Latina.

Em um contexto no qual as identidades políticas foram formadas sem a mediação dos

partidos e antes da constituição da ordem política e da ideologia liberal, os atores envolvidos

no conflito distributivo procuraram vocalizar suas demandas não por meio da participação ou

da competição partidária, mas através da influência direta e privilegiada com parte da

burocracia estatal que, numa situação favorável, funcionava como árbitro dessa disputa.

Fica evidente, argumenta o autor, três consequências perversas dessa seqüência

Page 235: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

244

histórica e desse formato institucional produzido no Brasil no início da década de 30. Em

primeiro lugar, a já mencionada, submissão do operariado em relação à burocracia estatal. Em

segundo lugar, a irrelevância dos partidos políticos nacionais, instituições fundamentais nas

poliarquias130

. Esse formato institucional, chamado por Santos de corporativismo

subdesenvolvido, no qual o conflito social está dissociado do processo político partidário,

sendo resolvido pela própria burocracia estatal, não produziu o sistema de segurança mútua e

a consolidação das instituições poliárquicas, uma vez que às demandas da população foi dada

outra solução. A terceira consequência negativa dessa formação histórica é a própria utilização

das políticas sociais a fim de compensar a participação limitada e a pouca competitividade

política. Se essas políticas, no caso inglês, representaram um fator de ainda maior integração

política, no Brasil, ao contrário, significaram, em resumo, um obstáculo à institucionalização

do sistema político.

Contra os que diagnosticavam uma crise de governabilidade nos anos 1990 (como é o

caso de Bolívar Lamounier, antes discutido), o autor apresenta uma outra explicação para a

“dificuldade governativa brasileira”. Santos defende que o principal dilema da ordem

brasileira no século XX consiste num híbrido institucional aqui instaurado: por um lado, “uma

morfologia poliárquica, excessivamente legisladora e regulatória” e, por outro, um

“hobbesianismo social pré-participatório e estatofóbico” (SANTOS, 1993a, p. 79).

Este formalismo poliárquico, todavia, assenta-se sobre uma sociedade que,

plural embora quanto à multiplicidade dos grupos de interesse, é

essencialmente hobbesiana, por isto que suas características poliárquicas

correspondem a pouco mais do que minúscula mancha na turbulenta

superfície do país (idem, ibidem, p. 80).

Como em um estado de natureza hobbesiano, a fragilidade das normas de convivência,

aliada à ignorância do comportamento dos outros atores, produz uma desconfiança

generalizada, prevalece-se, então, os códigos privados de comportamento. Trata-se, segundo

Hobbes, da “guerra de todos contra todos”, condição natural do ser humano, destituído de

Estado:

(...) durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz

de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição

a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos

os homens (HOBBES, 2003, p. 109).

130

Deve-se lembrar que várias das propostas de reforma política no Brasil são justificadas como medidas

necessárias para combater a fragilidade partidária, como a cláusula de barreiras, o voto em lista fechada e a

perda de mandato para parlamentares que troquem de partidos. No entanto, Santos parece considerar algumas

dessas medidas, particularmente as duas primeiras, formas antidemocráticas e regressivas de organização da

competição eleitoral, como discutiremos adiante, no próximo tópico.

Page 236: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

245

De acordo com o autor, nessas circunstâncias de total negatividade do espaço público,

o poder público pode intervir tanto para se restabelecer a solidariedade social, quanto para

fomentar o abuso privado. Dois comportamentos contribuiriam para o agravamento da

situação. Em primeiro lugar, quando a punição aos transgressores da norma social se dá de

modo aleatório e independentemente das instituições apropriadas. Em segundo lugar, quando

se consolida um sistema oligopólico de venda de proteção (ao modo da máfia). Para o autor, a

sociedade brasileira é uma versão descentralizada desse sistema oligopólico, sendo assim

ainda pior do que esse, na medida em que não se tem a garantia da proteção, nem se sabe o

custo da adesão a tal sistema.

Cruamente falando, o que se descobriu foi a existência de um Estado

altamente regulatório, criador de grupos de interesses rentistas, que não

consegue fazer-se chegar, enquanto Estado mínimo, à vasta maioria da

população. Esta, por seu turno, recusa as instituições centrais das poliarquias

– partidos, sindicatos, associações – e até mesmo as instituições que

justificam a existência do Estado – a justiça e a polícia como garantidoras da

lei (SANTOS, 1993a, p. p.114).

O resultado ulterior desse estado de natureza da sociedade brasileira é, na visão de

Wanderley Guilherme dos Santos, uma “cultura cívica predatória”, com um padrão de

interação social de soma zero quando bem sucedida (apenas um ator ganhando), ou de soma

negativa quando fracassa (todos perdem, desperdiçando os esforços empregados).

Curioso pensar que a tese do híbrido institucional de Wanderley Guilherme retoma o

tema caro aos intelectuais da década de 1920 e 30 dos “dois Brasis” e a dicotômica da

realidade nacional, identificada e discutida por Santos em seus textos.131

Justo dizer que não se

trata dos “dois Brasis” de Euclides da Cunha, um rural, atrasado, órfão de políticas públicas e

o outro, urbano e modernizado. É possível falar em “dois Brasis” somente porque Santos

supõe haver um hiato entre a ordem institucional (poliárquica) e a ordem social (hobbesiana).

As funções básicas de uma poliarquia eficaz, a saber, provisão de

segurança, proteção, previsibilidade e administração da justiça, não chegam

a alcançar extensão considerável do universo social brasileiro. Não se

trata aqui, porém, e isto é de extraordinária importância e extrema gravidade,

de uma segmentação geográfica (...), nem um hiato explicável pela

estratificação das classes ou pela distribuição de renda. (...). Os dois Brasis

apontam para uma dicotomia institucional, um híbrido, do qual

participam ricos e pobres, profissionais liberais, líderes sindicais e

empresários, em todas as regiões do país (SANTOS, 1993a, p. 100-101,

ênfase do autor, grifos nossos).

131

Ver, por exemplo: SANTOS, 1970. Para uma análise crítica do estudo de Wanderley Guilherme, consultar:

LYNCH, 2013.

Page 237: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

246

Assim, o principal problema político do país resulta de uma assimetria entre as

instituições políticas, de natureza efetivamente poliárquica, e a esfera social, de natureza

hobbesiana, quer dizer, insolidária, marcada ainda pelo conflito e pela desconfiança, gerados

pela ausência ou pela ineficiência da atuação estatal em garantir direitos mínimos aos

cidadãos do país.

Existe no Brasil um estado de natureza em sentido hobbesiano, ou seja,

aquele no qual o conflito é generalizado e a regra constitucional vigente é

cada qual administrar seus próprios problemas, sem apelo a instâncias

superiores, aceitas pelas partes beligerantes (SANTOS, 1993a, p.109).

Apesar do país ter vivido quatro décadas de prosperidade econômica, desde os anos de

1950, as instituições típicas de uma poliarquia, no entanto, não obtiveram credibilidade

automática por aqui. O descrédito com a eficácia governamental – expresso tanto pelo

indivíduo que, violentado, não procura o auxílio da polícia, quanto por aquele que dispensa o

recurso do voto como mecanismo de participação – é visto pelo autor como decisivo no

insucesso de algumas políticas públicas.

Aqui a avalanche regulatória do Estado não chega ou não tem vigência, e a

institucionalidade é outra, muito diversa da arquitetura elaborada ao longo

do primeiro governo Vargas e regulada desde então. É este híbrido que faz

com que o governo democrático, um vazio de expectativas legítimas, um

vazio de respeito cívico. Nem por isto, o país é caótico ou ingovernável;

apenas, como se verá, existem soberanias concorrentes e o governo é

múltiplo (idem, ibidem, p. 80).

Santos argumenta, destarte, que se os “especialistas” da política (como Lamounier) e

parte da opinião pública revelam a impressão difusa de um mal funcionamento da

democracia, isto se deve menos a uma deficiência das instituições políticas e mais a uma

carência de direitos constitucionais e liberais mais elementares:

A democracia brasileira ainda não foi capaz de suprimir as mais elementares

desigualdades políticas existentes aqui. Por exemplo, os essenciais direito de

ir e vir, de associação, de opinião, de acrescentar itens à agenda pública é

diferencialmente distribuídos pelas regiões e pelas classes sociais. O Brasil

ainda não resolveu o seu problema liberal, parte constitutiva essencial

de qualquer democracia representativa (SANTOS, 2008, s/p., grifos

nossos).

Para o autor, há uma péssima distribuição dos direitos constitucionais no país (mais

grave do que a sempre lembrada distribuição de renda).

É inaceitável, por exemplo, que os direitos de opinião, de ir e vir e de

organização não tenham o mesmo valor no Norte e no Sul do país, no

Sudeste e no Centro-Oeste. Nem é compatível com o estágio democrático do

povo brasileiro que o direito aos serviços básicos do Estado – saúde,

educação, segurança – não seja consumido na mesma proporção pelos que

Page 238: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

247

estão no topo e pelos que estão na base da arquitetura social (SANTOS,

2007a, p. 25).132

Numa situação na qual os direitos liberais mínimos não estão plenamente assegurados,

as dimensões básicas da poliarquia – liberalização e participação – ficam também

comprometidas. Como pode um eleitor gozar livremente de seus direitos políticos quando está

ainda submetido ao arbítrio de particulares, podendo ser preso, violentado ou perseguido, etc.,

questiona-se o autor. Sem uma cultura cívica capaz de dar sustentação efetiva às instituições

poliárquicas já existentes, o autor vê com descrença qualquer reforma institucional. Ele se

explica, ironicamente: “não se trata de pessimismo, mas neste momento, não há cultura cívica

no país, apenas natureza. Exuberante, é claro, como convém a um país tropical” (SANTOS,

1993a, p. 135). A sociabilidade hobbesiana de que fala continuaria a subsistir, a despeito da

expansão poliárquica, sobretudo, em relação a certos grupos sociais ou a certas regiões do

país:

São interações pré-constitucionais, próprias do híbrido institucional

brasileiro, conduzidas conforme imperativos hobbesianos. Universalizar o

consumo dos direitos constitucionais básicos se converte em inalienável

condição para que o país seja capaz de superar o drama de não poder ser

conservador, sob pena de degradar-se ainda mais e de criar com eficiência a

novidade que redime a ousadia pelo sucesso (SANTOS, 2007a, p. 116).

Para o autor, é imprescindível expandir o Estado Mínimo a fim de garantir eficácia à

ação estatal. É por isso que o autor polemizava, na década de 90, contra a política adotada

pelo governo federal brasileiro em sucatear o Estado brasileiro – já frágil – sob a suposta

justificativa de ele ser corrupto, gigante e clientelista. É esse Estado, inicialmente criado por

Vargas, o único capaz de garantir os direitos liberais ou constitucionais aos cidadãos

brasileiros, como os relativos à segurança que Wanderley Guilherme via ser duramente

criticado não apenas por liberais, como Fernando Henrique Cardoso e Bolívar Lamounier,

mas por setores da esquerda brasileira.

Ainda nos tempos que correm, a memorialística de oposição sucumbe à

estereotipada imagem de ditador, em política, e populista em matéria social,

como apropriado e suficiente resumo do significado histórico de Getúlio

Vargas. A medida do controle sobre a sedimentação da memória nacional

exercida pelo liberalismo radical, convertido em conservadorismo autoritário

sempre que as situações solicitarem, é estimável pela larga extensão em que

a opinião à esquerda compartilha o mesmo conjunto de estereótipos. A partir

da segunda metade dos anos 1960, o assalto ao espólio de Vargas incorporou

recrutas oriundos da esquerda cuja estridência conseguiu, em alguns

momentos, sobrepujar as próprias vozes do tradicionalismo liberal (...). A

132

Nota-se, novamente a respeito a respeito das desigualdades regionais brasileiras, a semelhança entre a

reflexão de Santos e a de Celso Furtado, em geral, citado criticamente pelo primeiro.

Page 239: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

248

declaração propositiva do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de que

iria terminar com a Era Vargas veio a ser o pico de glória do até então

murmúrio das catacumbas (SANTOS, 2006a, p. 17).

Para esse autor, embora os críticos tenham razão em apontar como aspectos negativos

da tradição política inaugurada por Vargas o autoritarismo, mais evidente na “face

policialesca” do Estado Novo, não conseguem compreender Vargas “como reação a estímulos

e desafios propostos pelas circunstâncias, independente de seu castilhismo ou autoritarismo”

(idem, ibidem, p. 17). O que Santos procura fazer é, sem desconsiderar tais aspectos, destacar

como as políticas de Vargas romperam, ainda que parcialmente, com uma ordem social

tipicamente autoritária e oligárquica, como era a do Brasil no princípio do século XX.

Wanderley G. dos Santos tratou da era Vargas pela primeira vez no livro Cidadania e

justiça (1979). A obra visa, na realidade, avaliar os esforços recentes do regime autoritário,

pós-1964, em implementar reformas nas políticas referentes às políticas sociais. Santos

procura demonstrar que elas não apenas aumentaram as desigualdades sociais existentes

(concordando com o diagnóstico furtadiano antes analisado acerca do modelo econômico de

crescimento adotado pelos militares), como também reforçaram a tradição brasileira, iniciada

por Vargas, em combinar esforços de uma distribuição mais equitativa da riqueza disponível

com restrição à participação política.

Reconstruindo historicamente a legislação brasileira sobre política social, Santos

afirma que no século XIX reinava a total ausência de leis sobre proteção social, combinada

com um princípio laissez-fairiano de não-regulamentação das profissões. Sob esse prisma, a

partir da Revolução de 1930, inaugura-se uma nova ordem na política brasileira que

permaneceria vigorante até a década de oitenta, a saber, a cidadania regulada, pois o Estado

brasileiro começa a interferir diretamente na esfera da produção e na questão social.

Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes

encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de

estratificação ocupacional, e que ademais, tal sistema de estratificação

ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos

todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em

qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei (SANTOS,

1979, p. 75, ênfases do autor).

Isso significou que o reconhecimento da cidadania dependia do reconhecimento

formal por parte do Estado da profissão exercida pelo indivíduo. Todos que exerciam

profissões não reconhecidas por lei (como os trabalhadores domésticos, por exemplo)

tornaram-se, por conseguinte, pré-cidadãos. Se isso significou um avanço em comparação

com a ausência institucional anterior (com a criação de vários direitos para os trabalhadores

Page 240: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

249

que coibiam os “excessos” do processo de produção), representou, por outro lado, a

possibilidade para o Estado em conter as pressões do operariado e, assim, “domesticar” os

atores envolvidos. As relações de trabalho que se resolviam privadamente, agora, passaram a

ser reguladas e decididas pelo aparato estatal. Destarte, aliada à repressão dos trabalhadores, o

governo de Vargas cria uma legislação trabalhista que pune aqueles que não estão

regularizados, como é o caso de vários sindicatos, e premia aqueles que se inserem na ordem

regulada por meio dos benefícios sociais.

Apesar de caracterizar a tradição varguista como criadora da “cidadania regulada”,

certamente um elemento antidemocrático de nossa política, Santos não compartilha com

Lamounier e outros estudiosos desse diagnóstico preponderantemente negativo. Em O ex-

Leviatã brasileiro, a propósito das já mencionadas declarações do então recém-empossado

presidente da República Fernando Henrique Cardoso, o autor afirma:

Isso vem a propósito da recente mensagem de que o Brasil se poria às portas

do futuro assim que se desfizesse da herança institucional deixada por

Getúlio Vargas. Nem o legado varguista era tão condenável, nem a proposta

de apagá-lo tão inocente (SANTOS, 2006a, p. 9).

Para Santos, a primeira contribuição de Vargas à política brasileira constituiu na

construção do Estado nacional, integrando todo o território, algo que a “República Velha” não

havia logrado fazer (como denunciava Oliveira Vianna). Mas, além da integração nacional, a

tradição varguista foi responsável por resolver quase simultaneamente (o que em geral se faz

sucessivamente) outros dois dilemas fundamentais da ordem social moderna, a redistribuição

das riquezas socialmente produzidas e a participação política ampliada, ainda que essa tenha

sido feita de forma tutelada.

Em comparação a outras histórias nacionais, deve ser registrada a

simultaneidade entre o assentamento das bases do Estado-nação, durante o

primeiro governo Vargas (1930-45), e o início da incorporação

institucionalizada da participação política de segmentos sociais até então à

deriva da sociedade organizada (idem, ibidem, p. 14).

Entretanto, como se disse, tanto a direita, quanto a esquerda compartilham dos

mesmos estereótipos sobre Vargas, desconsiderando ou subestimando o valor que teve para a

sociedade brasileira a incorporação à sociedade política de setores antes totalmente

marginalizados, como trabalhadores e as mulheres e a intervenção no conflito entre capital e

trabalho, garantindo aos trabalhadores brasileiros o amparo da lei há muito reivindicado,

argumenta Wanderley Guilherme.

A maior dificuldade em se solucionar concomitantemente os problemas da integração

Page 241: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

250

nacional, da participação política e da redistribuição é que a mera criação de uma ordem

liberal promoveria, por aqui, a continuação do domínio exclusivo dos oligarcas, como já

ocorria na Primeira República. Assim, a via de modernização partindo da integração nacional,

seguida da ampliação da participação política e, por fim, da redistribuição – sequência

adotada pelos países desenvolvidos e endossada, em parte, por Robert Dahl – não era viável

para o Brasil. A solução encontrada por Vargas foi o autoritarismo, instaurado a partir de

1937:

A resposta do regime de Vargas às dificuldades da hora consistiu em lançar

mão de mecanismos de inclusão controlada, próprios de sociedade de baixa

institucionalização política (idem, ibidem, p. 22).

É nesse sentido que o democrata Wanderley Guilherme dos Santos dá destaque à obra

do autoritário (na sua visão, um “autoritário instrumental”) Oliveira Vianna: no início do

século XX, esse pensador brasileiro teria sido capaz de perceber que a constituição de uma

ordem liberal no Brasil exigia, paradoxalmente, a utilização de meios não liberais. Sem

pretender aqui discorrer sobre a adequação dessa interpretação cumpre anotar que, para

ambos, o governo Vargas necessitava, naquele contexto, de utilizar do autoritarismo a fim de

romper com o Estado e a sociedade oligárquicas.

Outros dois pontos relacionados ao legado varguista e condenados, em geral, pelos

especialistas (como Lamounier, por exemplo) são reavaliados por Santos. O primeiro se refere

ao “tamanho” do Estado brasileiro. Contra o mito do “gigantismo” do Estado brasileiro e a

ideia de que seria preciso “enxugar a máquina pública”, Santos assegura que em 1981, o gasto

do setor público no Brasil representava 19,5% do PNB, ao passo que a média, entre países

com renda per capita semelhante ao Brasil, era de 27,6% (SANTOS, 1993b).

Wanderley Guilherme contesta também a tese de que existe uma relação entre

perversões burocráticas e manipulação eleitoral e de que em todo quadro administrativo

público do Brasil exista a possibilidade de troca no mercado de votos. A ideia de um Estado

clientelista – em voga entre alguns estudiosos da política brasileira – não encontra

fundamento, já que, a partir de 1943, a entrada na carreira do funcionalismo público se fez

precipuamente via concursos. Para ele, a recusa da população comum em recorrer às

instituições estatais na solução de seus conflitos não é decorrente de uma rede de relações

clientelísticas, como sugerem alguns, como se fosse capaz de resolvê-los através do contato

pessoal com políticos. Mesmo se essas pessoas procurassem os políticos para vender os seus

votos, matematicamente, isto teria pouco efeito, dado o alto coeficiente eleitoral mínimo para

ser eleito no Brasil. É provável, conclui ele, que o fenômeno do clientelismo se circunscreva

Page 242: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

251

marginalmente nas ocupações menos importantes da administração pública. Ou seja, se todas

essas razões não impedem o “tráfico de influência”, “não justifica o estereótipo de que o

Estado brasileiro estivesse assujeitado ao sistema de espólios” (SANTOS, 2006a, p. 99).

Percebe-se claramente quanto a esse tópico, como Wanderley Guilherme se posiciona

contrariamente às correntes liberais conservadoras, como o neoliberalismo, que vêm no

Estado um empecilho à democracia, valorizando parcialmente certos feitos da Era Vargas.

Além disso, ao negar a tese do Estado clientelista, em que os políticos e a burocracia

“vendem” serviços em troca do voto do eleitor, o autor está reafirmando que os resultados

eleitorais brasileiros são legítimos, na medida em que expressam, de fato, a vontade livre dos

cidadãos do país.

Um segundo ponto importante relacionado à interpretação de Santos da tradição

inaugurada por Vargas é que ela teria dado início à ruptura com o padrão político oligárquico

brasileiro (a despeito dos próprios líderes revolucionários serem também membros das

oligarquias). Pode-se dizer que com a Era Vargas se inicia um processo de decadência das

oligarquias políticas tradicionais, como decorrência da ação do Estado:

Entre as últimas eleições pré-Revolução de 1930 e as reinauguraram a

competição, o eleitorado que veio a eleger a Assembléia (sic) Constituinte de

1945 havia crescido bastante. Entre as duas Constituintes (1934-1945), em

particular, o eleitorado aumentou em 406% (SANTOS, 2006a, p. 217).

Assim, mesmo considerando as heranças negativas da tradição varguista no sistema

político nacional, particularmente o corporativismo subdesenvolvido, a cidadania regulada e

o autoritarismo, Wanderley Guilherme conclui que essa tradição criou as condições

necessárias para a construção inicial da poliarquia brasileira, institucionalizando

gradualmente a competição política e, inclusive, a participação política de setores antes

marginalizados da população brasileira.

A incorporação dos trabalhadores urbanos, operários e empregados no setor

de serviços, à vida política organizada, inegável avanço democrático,

estava comprometida pelo controle que o Estado passava a ter, legalmente,

sobre a vida sindical do país ao transformar os sindicatos em instituições de

direito público (SANTOS, 2007a, p. 22, grifos nossos).

O Código eleitoral de 1932, além de garantir maior lisura aos pleitos eleitorais (com os

novos procedimentos para o processo de alistamento dos eleitores, a adoção do voto secreto, a

Page 243: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

252

criação da Justiça Eleitoral) garantiu a extensão do sufrágio para as cidadãs brasileiras, ainda

que essas medidas tenham sido limitadas em intervalo temporal subsequente (1937-45)133

.

Vale insistir que o crescimento do eleitorado brasileiro, depois das eleições

do pós-Estado Novo, em 1945, superou em vários múltiplos a expansão do

sufrágio nos demais países quando estes admitiram o voto feminino (...)

(SANTOS, 2006a, p. 219).

Mas qual é o real impacto da ampliação do eleitorado, iniciado com Vargas e

continuado até 1998, com a abolição da interdição dos analfabetos ao voto? Para Santos, essa

mudança na sociedade brasileira produziu efeitos irreversíveis. Quando o número de

competidores é restrito e o eleitorado, em sua maioria, vive na zona rural, esse se encontra

basicamente dependente dos clãs familiares que competem pelo poder através das eleições. À

medida que o eleitorado se expande, tornando o eleitor um anônimo e preponderantemente

da cidade, essa dinâmica acaba.

Políticos cortejam os eleitores porque os temem e quanto mais intensa for a

competição, maior é a insegurança dos candidatos sobre o veredicto público.

Com o crescimento do eleitorado e do número de eleitores, além da

percepção de que a maioria absoluta dos eleitores revela plena autonomia na

escolha de seus candidatos (...), os resultados eleitorais tendem a se tornar

cada vez mais imprevisíveis” (idem, ibidem, p. 223).

A imprevisibilidade da competição eleitoral – marca idiossincrática do regime

poliárquico – produz, por seu turno, outras consequências não previstas.

Grandes eleitorados, significando encarecimento em votos do mandato,

elevado número de competidores, disposição dos votantes para julgamentos

autônomos (vide taxas de renovação) e absoluta aleatoriedade na

transformação da cardinalidade do voto [número absoluto de votos] em

ordenamento de posições, via quocientes, são os determinantes principais da

espessa imprevisibilidade de resultados eleitorais em sociedades, como a

brasileira, de altíssima competitividade. Natural, em conseqüência, que os

candidatos à carreira política busquem estratégias para a redução da

imprevisibilidade, cuja eficácia, contudo, é, em geral, de precária

confiabilidade (idem, ibidem, p. 234, grifos meus).

Como se viu, a incorporação política, inicialmente tutelada, e ampliada por Vargas

criou as condições para a vigência no futuro de instituições poliárquicas no Brasil. Essa

transformação da política nacional, costumeiramente menosprezada pelos analistas políticos

que se limitam a caracterizar Vargas como um ditador ou um populista, trouxe consequências

novas e radicais para a construção da democracia brasileira. Todavia, tal processo, como se

poderia prever, contém potencialmente formas de regresso ao nosso passado oligárquico.

133

Resumo didático sobre as inovações deste período pode ser encontrado em: NICOLAU, 2002.

Page 244: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

253

Essas formas estariam sendo defendidas, na visão de Wanderley Guilherme, sob a bandeira da

reforma política brasileira, verdadeiras “máscaras institucionais do liberalismo oligárquico”

(SANTOS, 1994).

5.3 – Regresso: resistências oligárquicas

No artigo “Poliarquia em 3D”, Wanderley Guilherme volta à teoria poliárquica a fim

de destacar a insuficiência dessa teoria para compreender outra dinâmica fundamental

presente no processo de democratização e formativa da história brasileira, a saber, a

reoligarquização do poder político. Na concepção de Santos, seria necessária a adição de um

terceiro eixo aos dois eixos da teoria poliárquica (liberalização e participação) para distinguir

melhor as democracias das oligarquias.

A poliarquia é o sistema político que combina, por um lado, ampla competição

eleitoral, com regras públicas e regulares, e sem o uso de violência por parte dos competidores

(primeira condição), com, por outro lado, a participação política ampliada na competição

eleitoral (segunda condição), relembra esse autor. Sendo assim, pode-se dizer que as

oligarquias caracterizam-se por satisfazer a primeira (liberalização), mas não a segunda

condição (participação), já que o jogo político está restrito a poucos. Tanto a democracia,

quanto a oligarquia são sistemas políticos igualmente representativos, na medida em que

satisfazem o requisito do consentimento unânime sobre os requisitos de pertencimento,

inclusive a respeito de quais indivíduos devem ser excluídos do corpo político. O que as

distingue é que, sendo escassa a competição no caso das oligarquias, torna-se mais ou menos

previsível o seu resultado, ao passo que nas poliarquias o resultado da competição eleitoral é,

no limite, aleatório.

Santos assevera que as teoria democráticas não só desconsideram essa familiaridade

entre esses sistemas políticos, poliarquia e oligarquia, como também costuma dar um

tratamento ambíguo a esta última, na medida em que classifica a oligarquia como próxima do

autoritarismo, quando quer criticá-la, e associa-a à democracia, quando quer elogiá-la. Não

percebendo a similitude entre essas duas formas de sistema representativo, os analistas

políticos, em detrimento da História, fecharam os olhos para o fato de que várias sociedades

do passado, tidas como democráticas, não passavam, na realidade, de oligarquias134

.

Ao longo do século XX, todas as atuais democracias européias consideradas

134

Exemplar, nesse sentido, seria a obra do mundialmente conhecido politólogo Samuel Huntington, que fala

das três “ondas democráticas”.

Page 245: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

254

antigas, para não dizer clássicas, foram regimes oligárquicos, em que

prevaleciam inúmeras restrições à participação, fraude, e corrupção

eleitorais, violência associada à competição política, em muito semelhantes à

Velha república brasileira (1889-1930) (...) (SANTOS, 1997, p. 14).

É importante frisar que essas oligarquias do passado demonstraram, de acordo com

Wanderley Guilherme, ser altamente estáveis, o que só não foi percebido porque elas eram

identificadas como democracias e se associava estabilidade apenas a regimes democráticos.

Para Santos, esses regimes, inicialmente oligárquicos, foram capazes de constituir um sistema

de segurança mútua e, só no desenrolar do século XX, transformaram-se em poliarquias, sem

a ocorrência de qualquer violência institucional. Desta feita, a institucionalização das regras

de competição política, que tem como princípio o sistema de garantias mútuas, é um fator de

estabilidade de qualquer sistema representativo, quer poliárquico, quer oligárquico.

Esse é um ponto de crucial divergência com a teoria de Dahl. Conforme se discutiu,

esse autor considera que a estabilidade poliárquica está, entre outras variáveis (como a

constituição de uma sociedade do tipo MDP), relacionada a uma seqüência histórica

específica, em que institucionalização se deu antes da ampliação da participação, permitindo a

socialização dos atores políticos e a criação de um sistema de garantias mútuas, que tornaria

mais razoável assumir o ônus da derrota eleitoral do que romper com as regras do jogo de

competição política. O que Santos quer ressaltar é que o sistema de garantias mútuas não pode

ser a variável explicativa específica para o sucesso de algumas poliarquias, já que ele é

condição necessária para estabilidade de qualquer governo representativo, inclusive as

oligarquias. A estabilidade própria às poliarquias deve, portanto, consistir em outro

fenômeno135

.

Outro erro comum das teorias contemporâneas da democracia seria também supor que

a passagem de regimes não-democráticos (oligarquias ou autocracias) para democracias, e

vice-versa, implica sempre em violência física ou institucional. Se oligarquia e democracia

são apenas variações do sistema representativo, como argumenta Santos, é possível transitar

entre um e outro sem qualquer tipo de violência, como a pressuposta em um golpe de Estado.

A distinção de Santos entre esses três sistemas políticos visa destacar, portanto, o seguinte

ponto: a transição para as democracias sempre foi pensada em relação ao autoritarismo,

descartando a possibilidade de que essas se convertam em sistemas oligárquicos. Isso

significa que dependendo do número de competidores do jogo político é possível não ser

ainda democrático sem se tornar necessariamente autoritário:

135

Em passagem a ser discutida adiante, o autor afirma que a estabilidade da democracia é, até hoje, um enigma.

Page 246: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

255

Em geral subentende-se que o rompimento com o regime absolutista

inaugura imediatamente a democracia, observando-se a partir desse

momento sua expansão, tanto geográfica, isto é, no número de países que

experimentaram a ruptura com o autocratismo, quanto civilmente, ou seja,

no aumento da quantidade de pessoas admitidas ao jogo representativo. Ao

longo desse segundo processo é que se registrariam retrocessos a formas

não democráticas, omitindo-se a importante possibilidade de

manutenção do sistema representativo, portanto, não autoritário, mas

cancelando-se algumas características de sua variante democrática (SANTOS, 1998a, p. 208, ênfase do autor, grifos nossos).

Como se viu, Dahl enumera oito condições necessárias a uma poliarquia, sendo que a

quarta condição diz respeito exatamente à possibilidade concorrer pelos cargos em disputa

(“elegibilidade”). O próprio Wanderley Guilherme afirma acerca da obra Poliarquia:

“elegibilidade, também se sabe, recebe o número quatro na lista de oito condições da

poliarquia” (SANTOS, 1998a, p. 220). Mas o autor considera que essa dimensão é tratada de

modo ambíguo por Dahl, ora significando elegibilidade no sentido fraco, ora no sentido forte.

Santos sugere, então, o acréscimo de um terceiro eixo da democratização chamado de controle

(direito de ser votado), distinguindo-o mais claramente da participação (direito de votar).

A distinção justifica-se inicialmente porque, em geral, as regras eleitorais de

qualificação do eleitor não são idênticas as de qualificação do elegível (apenas como

exemplo, tenha-se em vista a diferença da idade mínima para ser eleitor e para ser eleito no

Brasil). Mas a principal razão para fazer essa diferenciação consiste em que admitir a

possibilidade que do mesmo modo que um país pode avançar muito na institucionalização e

pouco na participação (elegibilidade no sentido fraco), pode também avançar muito na

participação e pouco no controle (elegibilidade no sentido forte). Uma última e crucial

justificativa para a introdução do terceiro eixo no modelo poliárquico é que, nas poliarquias,

quando consolidado o sufrágio universal, por meio da alteração legal das regras de

competição política, é possível restringir a representatividade alterando, não o eixo da

participação, mas o do controle.

Pode-se dizer também que, sob a perspectiva do autor brasileiro, a teoria poliárquica

trata a competição política, como um todo, de modo simplificado. Não se trata apenas de

competição de candidatos ou entre partidos, mas de inúmeras possibilidades, tornando mais

complexos e diversificados os caminhos que levam de um regime fechado a uma poliarquia e

vice-versa:

Aqui entende-se que a competição política pode estar referida a quatro

processos distintos: competição entre partidos, competição entre candidatos,

competição intrapartidária entre os candidatos e competição entre os

candidatos independentemente de filiação partidária. Esta última faceta é

Page 247: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

256

duplamente relevante. Pelo lado analítico, porque permite considerar um

caso tipológica e logicamente possível de sistema político que a reflexão de

Dahl não contempla, além de ampliar o número de trajetórias virtuais de

regime fechados a poliarquias plenas. E empiricamente, porque da existência

de efetiva competitividade dependerá o entendimento mais preciso de

conceitos corriqueiros na análise – entre eles, especificamente o de

oligarquia –, em geral, só considerados enquanto constructos de análise

(SANTOS, 2007b, p. 40-41).

O modelo inicial de Dahl, como vimos, prevê quatro possibilidades: primeiro,

reduzidas competição institucionalizada e participação política (hegemonia fechada);

segundo, elevada competição entre elites mas reduzida participação (oligarquia); terceiro,

elevada participação e reduzida competição institucionalizada (hegemonia inclusiva); por fim,

a poliarquia. Entretanto, alerta o autor brasileiro:

Não há uma detida avaliação da possibilidade de que a participação dos

eleitores seja extensa, a competição institucionalizada e, em geral, seus

resultados aceitos, mas que o número de participantes da disputa seja

reduzido por intermédio de regras previamente acordadas. Mediante

tratativas e negociações entre adversários estabelece-se um convênio

limitando a oferta de candidatos ao escrutínio popular, traduzido o acordo,

com frequência, em normas legais. Nesse caso, o regime não deixa de ser

poliárquico, do ponto de vista da extensão da participação e do ordenamento

jurídico que garante a disputa política, sendo porém oligárquico quanto ao

número de competidores reais (SANTOS, op. cit., p. 41).

As distinções propostas por Santos são, portanto, entre, de um lado, a

institucionalização da competição política e a definição de quem está qualificado para ser

candidato-representante, e, de outro lado, o candidato a um cargo eletivo e o mero cidadão-

eleitor. A manipulação oligárquica dos elegíveis, no sentido forte do termo, pode ocorrer de

maneiras variadas: limite de idade, por meio da exigência de vinculação partidária, tempo de

residência, restrição a partidos pequenos, proibição de candidaturas avulsas, designação de

candidatos por listas fechadas, etc.

Na vida política atual, a mais frequente barreira à entrada na competição é a

exigência de que o candidato a candidato seja filiado a um partido político.

Cria-se aí uma alavanca burocrático-partidária que pode demandar e obter

legislação adicional sobre todas as demais condições que um postulante

deverá preencher para conquistar o direito de se apresentar na arena

competitiva (SANTOS, op. cit., p. 41).

Por exemplo, num contingente de 106 milhões de eleitores (conjectura o autor nos fins

dos anos 90), a administração do eixo do controle no Brasil consegue reduzir para 5 milhões o

número dos competidores potenciais (sem levar em conta aqueles que não se interessarão

competir). Conclui-se, portanto, que:

Page 248: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

257

A essencialmente incompleta teoria da poliarquia tem ocultado a relevância

fundamental do eixo da elegibilidade, torcendo a cronologia da história

política das nações, obscurecendo a distinção entre sistemas representativos

oligárquicos e sistemas representativos poliárquicos, limitando o

entendimento das dinâmicas possíveis, oligárquicas e poliárquicas, e,

finalmente, desconhecendo o caráter não-encarcerável e, pois, reversível, de

sistemas poliárquicos, mesmo na ausência de rupturas institucionais

(SANTOS, 1998a, p. 226, ênfases do autor).

Assim, enquanto a condição de eleitor dificilmente pode ser restringida (e se o for,

somente mediante violência institucional), a condição de elegível pode ser alterada dentro das

regras do jogo democrático. O que Santos procura evidenciar é que, mesmo satisfeitas as oito

condições dahlsianas, é possível uma poliarquia retroceda a uma oligarquia se houver

limitação legal da elegibilidade.

Para o autor, essa dinâmica combinatória entre os três eixos é crucial para entender

todas as alternativas em jogo no processo de democratização, visto que, na sua opinião, a

maior parte dos conflitos políticos da atualidade ocorrem tendo como foco o eixo do controle

e não da participação. Dada a consolidação do sufrágio universal, a principal disputa numa

democracia moderna consistiria na restrição ou ampliação do número dos elegíveis (não dos

eleitores). Esse seria o campo de batalhas crucial da democracia brasileira na atualidade,

inclusive da brasileira, como comprovam as propostas de reforma política, argumenta

Wanderley G. dos Santos.

Para contestar os argumentos dos “neo-oligarcas”, o autor afirma que esses criam uma

“historiografia do boato”, reiterando falsas verdades sobre a qualidade da atual democracia

brasileira e sobre os supostos benefícios das inovações institucionais.

Registrei várias vezes que a sociedade brasileira começava a superar o

sistema oligárquico longevo de mais de meio século. Em verdade, nos

últimos 15 anos a sociedade brasileira submeteu a processo, com sentença

preliminar de obsolescência, mais de 100 anos republicanos. É contra essa

espetacular revolução institucional, em direção a maior descentralização do

poder, que uma alerta coligação de acadêmicos, imprensa e políticos se

movimenta com o objetivo de interromper a democratização do país e fazê-

lo retroagir a maquiado regime oligárquico (SANTOS, 2006b, p. 161).

O autor define, assim, precisamente qual é a sua posição de partida no debate sobre

reforma política, derivada de uma concepção de democracia fundamentalmente poliárquica:

Sustento que será mais democrático o sistema que oferecer maior

competição eleitoral e maior competição partidária; de maneira oposta, são

oligárquicas as propostas que redundem em subtrair graus de liberdade ao

eleitor na opção por partidos e candidatos (SANTOS, 2006b, p. 161).

Page 249: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

258

A partir dessa definição, o autor enumera os diversos fatores de democratização da

sociedade brasileira: a diminuição crescente da barreira para o voto (renda, gênero e educação

formal), os processos de consolidação da justiça eleitoral (tornando os pleitos cada vez mais

idôneos), a legalização de partidos antes proibidos no país (inclusive os partidos de esquerda),

a veloz expansão do eleitorado nacional (que, entre 1950 e 1991 cresceu 720%, ao passo que

a população nacional teve um aumento de apenas 183%136

), sendo ela mais acentuada nas

regiões antes marginalizadas da competição política (Norte e Centro-Oeste), o crescimento no

número de partidos políticos e a sua nacionalização, iniciada a partir de 1945, a elevação do

número médio de candidatos aos cargos eletivos e, por fim, um oscilante, mas satisfatório

índice de renovação parlamentar.

É nesse sentido que o autor fala de um processo de “expansão cívica” no Brasil: “é na

distribuição temporal, porém, que o extraordinário movimento cívico de transformação da

população em cidadãos-eleitores aparece e impressiona” (SANTOS, 2007b, p. 56, grifos

nossos)137

. Falando literalmente de uma “alvorada” democrática brasileira (1998b, p. 192), o

autor, em sua apologia das atuais instituições políticas brasileiras, sentencia:

A partir de 1994, todas as regiões brasileiras já haviam incorporado mais de

50% da população à disputa eleitoral. Sem dúvida, foi o extraordinário

processo de conversão que inundou o mercado de votos e tornou impossível

a continuidade oligárquica, mantido o sistema proporcional, pela redução da

oferta de competição: são muitos os partidos, grande o potencial

competitivo, elevadas as chances de vitória. Precisamente porque esse não é

um processo natural irreversível, nada impede que o eleitorado brasileiro

venha a perder, no futuro, alguns dos graus de liberdade de escolha recém-

conquistados, em particular no que diz respeito à competição nos estados,

nos quais o abrupto aumento na intensidade da competição foi notável. Até

aqui, contudo, está evidenciada a fundamental transformação do sistema

eleitoral-partidário brasileiro, que passou de oligárquico a poliárquico

(SANTOS, 2007b, p. 57, ênfase do autor, grifos nossos).

Santos acredita que essa nova ofensiva oligárquica se explica na medida em que, a

partir de 1985, cresceu a imprevisibilidade da competição política no Brasil, conforme

indicam os dados, e que o eleitorado brasileiro estaria aproveitando das oportunidades de

oxigenar a vida política do país, ameaçando, enfim o poder dos neo-oligarcas:

O sistema brasileiro é competitivo. Sempre o foi, equilibradamente, como se

viu, pelo lado da demanda por renovação. Não obstante os antigos “currais”

eleitorais, o patrimonialismo, e o distributivismo cartorial, sempre houve

probabilidade razoavelmente elevada de renovação, transformada para

muitos, em cruel realidade de derrota eleitoral. O outro lado da moeda, o da

136

Cf. SANTOS, 1998b, p. 172. 137

Em outro texto seu (2007b, p. 24), o autor destaca que se o eleitorado brasileiro, em 1945, correspondia a

16,2% da população adulta do país, em 2006 ele atingira 69%.

Page 250: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

259

oferta de competição, apareceu, depois do intervalo militar, de eleições

constrangidas, como a grande novidade da política brasileira. Se o eleitorado

sempre esteve disposto a consagrar, como moderação, novos representantes,

as opções de escolha mudaram drasticamente de patamar nas últimas duas

eleições (SANTOS, 1994, p. 41).

Assim, ao se posicionar contra algumas das reformas políticas, Wanderley Guilherme

está enfatizando que o sistema político brasileiro se institucionalizou consideravelmente,

inclui um enorme contingente de cidadão brasileiro, já é bastante competitivo, e que a agenda

mínima de reformas proposta não é outra coisa que uma “subversão institucional”: um

atentado oligárquico contra as instituições da recente poliarquia brasileira.

O programa de inspiração oligárquica padece da hybris demiúrgica. Todos os

sustentáculos fundamentais da ordem política deveriam ser substituídos,

posto que são responsáveis pelos males do país. As instituições substitutas,

por sua vez, assegurariam eficiência, justiça, ética e representatividade à

política e aos políticos, garantindo harmonia entre os poderes. É possível que

algum oligarca subscreva de boa-fé esse diagnóstico, mas no íntimo a

maioria deles aspira ao mais subversivo atentado institucional já imaginado

por civis no último meio século da vida brasileira (SANTOS, 1998b, p. 146-

147, ênfases do autor).

Mas quais seriam as principais propostas dos neo-oligárquicas de reforma política?

Trataremos aqui de quatro delas, as mais comentadas pelo autor em questão: o sistema

eleitoral de representação majoritário, a redução no número de partidos políticos, a adoção do

voto em lista fechada e, por fim, um maior número de instrumentos de participação direta.

A primeira delas diz respeito ao sistema eleitoral de representação proporcional

adotado para a Câmara dos Deputados, as Assembleias estaduais e as Câmaras municipais. De

partida, o autor alerta que a ofensiva oligárquica se dirige preferencialmente para o Congresso

Nacional, pois é nele que a competitividade teria alcançando um grau mais elevado:

Este tratamento depreciativo e preconceituoso teve início bem antes da

campanha do plebiscito [de 1993], sendo óbvios os motivos e a escolha da

vítima. É no Congresso que se reflete a crescente competitividade do sistema

político brasileiro, e é nele também que se manifesta com veemência a

agonia do controle oligárquico (SANTOS, 1994, p. 4).

Conspirando contra os princípios assegurados na Constituição de 1988, haveria, na

visão de Santos, uma tentativa de convencer, por cinco razões principais, a opinião pública

brasileira dos supostos males do sistema proporcional. Em primeiro lugar, argumenta-se a

favor de sua maior representatividade, ou seja, o sistema eleitoral majoritário seria o que

melhor representa a população de país, sem distorcê-la. Falso, replica Santos:

Em países de primeiro mundo, políticos e analistas de acatada reputação

Page 251: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

260

reconhecem que sistemas eleitorais majoritários (denominados por aqui de

“distritais”) violam o ideal de correspondência entre distribuição do poder

parlamentar, que asfixiam minorias políticas, ainda que ideologicamente

expressivas ou numericamente significativas e que favorecem a

oligarquização do sistema partidário-parlamentar (idem, ibidem, p. 6).

Além disso (como John Stuart Mill [1981] já havia argumentado), o autor afirma que o

sistema eleitoral de representação distrital, defendido por muitos (como Lamounier e Sousa,

antes mencionados), peca por “desperdiçar” os votos dos eleitores que não formaram a

maioria, excluindo, portanto, as minorias, defeito esse do qual não padece o sistema

proporcional.

Uma segunda razão é que sistema eleitoral proporcional produziria um eleitorado mais

fragmentado. Esclarecendo sobre isso, Santos assevera há nesse argumento uma inversão de

causalidade: na realidade, não é que o eleitorado se fragmente por causa do sistema

proporcional, mas que o sistema proporcional mostra-se fragmentado quando o eleitorado já o

é fragmentado. Precisamente por isso, esse sistema se justifica mais o que o distrital:

O sistema revela, não produz o espectro de cristalização eleitoral. Um

parlamento constituído por via proporcional é praticamente uma xerox da

cara do eleitorado. Ao contrário, um parlamento majoritariamente fabricado

é um artefato do legislador e seu filho bastardo (idem, ibidem, p. 12).

Um eleitorado diversificado cultural, ideológica ou etnicamente demanda, argumenta o

autor, um sistema eleitoral capaz de representar proporcionalmente todos os estratos sociais.

Uma terceira justificativa apresentada pelos neo-oligarcas é, relata Wanderley

Guilherme, que existiria uma tendência mundial em substituir esse sistema pelo distrital

majoritário. Destarte, o sistema proporcional mostrar-se-ia anacrônico, ultrapassado. Mais

uma vez Santos contra-argumenta afirmando que se há alguma tendência nas democracias

modernas é precisamente a contrária: “todos os países de representação proporcional optaram

por ele após longa experiência com o sistema majoritário, este sim o mais antigo, o do atraso”

(idem, ibidem, p. 7). A própria Inglaterra, na qual funciona o sistema majoritário, estaria

vivenciando uma pressão por substituí-lo pelo proporcional.

Um terceiro motivo elencado pelos defensores dessa reforma política é que o sistema

distrital diminuiria os custos da campanha eleitoral, sabidamente elevados nas democracias

hodiernas. Sobre isso, o autor ironiza:

Toda competição democrática é cara. Em sistemas proporcionais ela é cara

por causa da abundância de competidores; em sistemas majoritários é

caríssima pela escassez de postos em disputa. Por menor que seja o distrito

uninominal – ponha-se, dez eleitores –, o candidato que obtiver seis votos

leva o mandato, sendo dois os candidatos, e os demais quatro votos vão para

o lixo. Não é difícil imaginar o valor de cada um desses seis votinhos (idem,

Page 252: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

261

ibidem, p. 7).

Um último, mas não menos importante, fator que justificaria a substituição do sistema

eleitoral de representação proporcional pelo majoritário ou distrital seria a sua maior

estabilidade. O autor contesta semelhante associação, esclarecendo em longa, mas importante,

passagem, a respeito de sua concepção de democracia;

Estabilidade política é tema controverso e jamais foi demonstrado que seja

consequência de qualquer uma das instituições políticas: sistemas ou formas

de governo, regimes, códigos eleitorais ou partidários. Ao que sugere a

experiência mundial, estabilidade política não resulta da presença, mas da

ausência de certas condições. Em outras palavras, não existem condições

suficientes para a democracia, somente condições necessárias. Assim, por

exemplo, prometer estabilidade política através de milagrosa modificação do

sistema eleitoral só não é ridículo porque configura apropriação indébita da

fé pública. De seguro, o que há efetivamente comprovado é que sistemas

eleitorais majoritários, em qualquer de suas variantes, violentam os

princípios de justiça alocativa e distributiva e cristalizam oligarquias

partidário-parlamentares (idem, ibidem, p. 6).

Percebe-se que aliada à defesa moderada do autor do sistema proporcional, assume-se

que não se deve esperar maior representatividade de sistemas eleitorais, isto é, de modos de se

transformar votos em cadeiras nos parlamentos.

É frequente, na controvérsia ‘sistema eleitorais majoritários versus sistema

proporcionais’, sustentar-se o argumento de que os primeiros asseguram

melhor qualidade dos corpos representativos e, portanto, decisões mais

inteligentes. Ora, os sistemas eleitorais não filtram caráter ou

competência parlamentar, apenas traduzem a capacidade diferencial

dos candidatos em acumular votos. Não existe correspondência direta

entre capacidade de acumular votos e competência parlamentar (SANTOS,

2007b, p. 80, grifos nossos).

Na opinião do autor, o sistema majoritário não pode, assim como o proporcional, ser

qualificado, de partida, como mais representativo, haja vista que a qualidade da representação

só é garantida pela qualidade do voto do eleitorado.

(...) diz-se que o sistema majoritário aproxima o representante do

representado. Falso. O sistema faccionaliza e discrimina entre os

representados, deixando órfãs todas as minorias, independentemente do

tamanho. O eleito legisla para os seus eleitores, que forma maioria relativa,

pois assim é a regra maximizante do mandato imperativo-majoritário.

Quanto mais parcial for, maiores as chances de reeleição e, por aí, o sistema

oligarquiza-se, discriminando o eleitor. Diz-se ainda que o sistema

majoritário garante a qualidade da representação. Falso. Quem garante a

qualidade da representação é o voto do eleitor e o sistema majoritário não

impede que facínoras e corruptos, ou devassos, apresentem-se à competição

(...). Aliás, toda semana o sistema político inglês, e também o norte-

americano, majoritários, oferecem suculentos escândalos à curiosidade

internacional (SANTOS, 1994, p. 8).

Page 253: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

262

Para Santos o tema da estabilidade (já avaliado na discussão que ele mantém com a

teoria da poliarquia e suas limitações) é um tema caro, haja vista que, com frequência, a

democracia brasileira é desqualificada como instável, como vimos no discurso de Lamounier

e Sousa. Em resumo, na opinião do autor, a proposta institucional do sistema distrital,

defendido por esses últimos, é, na realidade, uma forma de elitizar a vida democrática

brasileira no século XXI:

O megaeleitorado brasileiro explodiu os diques da competição confinada o

que significa mais opções de escolha para o eleitor, que só deixa de se

beneficiar disso por via do artefato compressor do distritalismo majoritário

caso venha a ser implantado. Mesmo com índice e métrica tão severos como

os aqui utilizados, fica comprovado que, sem manufatura, institucional, o

oligopólio elitista não se sustentará com facilidade (SANTOS, 2007b, p. 56).

Outro ponto da reforma política relacionado à estabilidade é o número de partidos. A

proposta da cláusula de barreiras visa impedir a proliferação de partidos e a criação de

pequenos partidos que serviriam como “legendas de aluguel”. Além disso, um número

elevado dificultaria a escolha do eleitor e, pior, tornaria o país “ingovernável”, dado que o

Executivo teria que construir uma base aliada excessivamente heterogênea. Em suma,

multipartidarismo estaria associado, com frequência, à fragmentação partidária e, essa por seu

turno, à ingovernabilidade.

Contra essa interpretação que estaria na base de “repetidas propostas de legislação

excluindo partidos, ou estabelecendo condicionantes à sua participação plena no processo

competitivo” (idem, ibidem, p. 9), Santos afirma que fragmentação político-partidária não é o

resultado do número elevado ou reduzido de siglas partidárias, mas da distribuição das

cadeiras no Parlamento entre os partidos que as conquistaram. Em outras palavras: elevado

número de legendas partidárias não implica necessariamente em numeroso conjunto de

partidos parlamentarmente efetivos. Mesmo um sistema bipartidário pode atingir um índice

elevado de fragmentação se cada um dos partidos obtiver 50% dos postos em disputa, assim

como, como comprova a história brasileira, o multipartidarismo pode resultar em um

Parlamentou pouco fragmentado. O número de partidos efetivos, completa ele, varia a longo

da vida das democracias, oscilando segundo as preferências do eleitorado.

No entanto, mais importante que isso, para o autor, o argumento é pérfido porque o

fator fragmentação não é causa suficiente da ingovernabilidade, como sugerem alguns.

Wanderley Guilherme argumenta que países cronicamente instáveis, como a Itália, possuem

índices de fragmentação menores do que os países escandinavos, conhecidos por serem

Page 254: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

263

secularmente estáveis. Mais: o Brasil possui índice menor do que esses países, assim como

menor do que a Alemanha, exemplo de sistema majoritário-distrital frequentemente citado

pelos defensores da reforma; por fim, a África do Sul possui reduzida fragmentação

partidária, sendo sabidamente menos democrático do que os exemplos antes citados. Em

resumo, não há nenhuma correlação clara entre sistema eleitoral e fragmentação partidária e,

muito menos, entre essa e instabilidade. Um sistema político fragmentado apenas requer o

estabelecimento de coalizões amplas, nada mais.

Outro argumento apresentado por Santos contra qualquer medida que venha a limitar o

número de partidos, além de qualquer critério (como os 5% de votos nacionais, já propostos)

serem completamente arbitrários, é que mesmo partidos que possuem, no limite, apenas um

único representante no Parlamento é tão legítimo quanto um partido majoritário:

Cada representante de um partido de cem deputados é curador da

mesmíssima legitimidade implícita no mandato do representante solitário. Os

outros noventa e nove outros membros do partido não lhe acrescentam nada

em dignidade, embora sejam utilíssimos em falcatruas. Não há, pois,

fundamento para impedir que alguém, eleito, exerça o mandato, ou para que

seja obrigado a mudar de partido (estelionato eleitoral) porque sua

agremiação não alcançou um número cabalístico inventado pelos oligarcas.

Um deputado equivale a um sobre quinhentos e três avos de poder

parlamentar; não produz instabilidade alguma. Mas corresponde a cem por

cento da representação de quem nele votou. Cassá-lo equivale a induzir seus

eleitores a buscarem canais alternativos à vida institucional para manifestar

insatisfação ou registrar demandas (SANTOS, 1994, p. 16).

Há também a putativa associação entre o elevado número de candidatos e uma maior

dificuldade de escolha por parte do eleitor. Sobre isso, o autor comenta:

Claro que a propaganda atual, insistindo em que o elevado número de

candidatos é algo pernicioso porque confunde o eleitor, é pura tergiversação.

Elevado número de candidatos reduz as probabilidades, ex ante, da eleição

de cada um. Quanto maior o número de candidatos, maiores as opções do

eleitor, maior a competição entre eles e mais agudo o requisito de

competência em obter votos (1998b, p. 179, ênfases do autor).

Segundo a concepção de democracia esposada por Wanderley Guilherme, um

indicador de democratização é precisamente o número médio de candidatos por cargos em

disputa. Quanto maior o número de candidatos, mais competitivo e democrático é o sistema

político, pois maiores são as opções de escolha do eleitorado e maior o valor de cada voto.

É oportuno lembrar que o aumento da competição entre elites, inclusive

políticas, constitui a mais importante defesa do cidadão-eleitor, assim como

no mercado econômico é a concorrência que trava excessivos aumentos e

oferece ao cidadão-consumidor a possibilidade de escolha. Um sistema

político oligárquico, isto é, de baixa competitividade, possui os mesmos

atributos de uma economia oligopolizada: restringe a liberdade de escolha do

Page 255: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

264

eleitor, pela redução na oferta de candidatos, e aumenta o custo de seus

serviços (a taxa de impunidade se eleva e os políticos ficam mais livres para

impor suas preferências específicas). Por isso, a democratização estimula a

competitividade e a competitividade colabora para maior democratização

(idem, ibidem, p. 169-170).

Um último argumento utilizado contra a “permissividade” da legislação eleitoral

brasileira na criação dos partidos é que, supostamente, usam-se alguns partidos como

legendas de aluguel. Sobre isso, Wanderley Guilherme replica que não é a existência dos

pequenos partidos, por si só, fonte de problema. Ao contrário do que usualmente se avalia, os

partidos menores desempenharam um importante papel histórico na democratização do país,

aproximando-se dos eleitores mais afastados das grandes capitais:

Em matéria de conveniência é indispensável perceber que os pequenos

partidos fazem parte da malha institucional que vem agregando à política

organizada aquelas populações até agora periféricas – o extremo norte, o

centro-oeste e o interior dos grandes estados. Este é o nosso “faroeste”,

incorporado econômica mas não politicamente à nação, e próximo do estado

de natureza (SANTOS, 1994, p.16).

Resumindo, Wanderley Guilherme dos Santos não encontra nenhuma razão que

justifica a adoção de qualquer medida a fim de limitar o número de agremiações partidárias,

vendo nela apenas o desejo disfarçado de tornar a poliarquia brasileira, uma oligarquia:

Para polêmica, anoto a inferência de que cláusulas de barreira não são

mecanismo para prevenir excessos de fracionalização, mas mecanismos para

reduzir a competição e a representação político-partidárias (SANTOS,

2007b, p. 109, ênfases do autor).

É interessante notar que os temas da estabilidade política, da fragmentação partidária e

do sistema eleitoral proporcional acompanham a obra desse autor já há algumas décadas. Em

sua conhecida tese de doutorado acerca do golpe de 1964138

, Sessenta e quatro: anatomia da

crise, Wanderley Guilherme já polemizava com a literatura da Ciência Política a respeito

dessas temáticas.

Um primeiro ponto de interesse nessa obra é a contestação de alguns axiomas da obra

de Giovanni Sartori, Partidos e sistemas partidários (1982). Fundamentalmente, a crítica de

Santos consiste em asseverar que o número de partidos não tem qualquer relevância para a

solução de conflitos políticos, ao contrário do que supõe Sartori. O que é determinante mesmo

é a presença ou não de um processo de radicalização que impeça os partidos de cooperarem

uns com os outros; era exatamente isso o que teria acontecido no Brasil pré-1964. Como se

vê, o autor continua defendendo essa posição atualmente, agora diretamente relacionado à

138

A tese, defendida na Universidade de Stanford, em 1979, foi publicada no Brasil em 1986. Posteriormente

republicada na obra O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira (2003).

Page 256: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

265

discussão sobre a reforma do sistema partidário brasileiro.

No entanto, a importância de Sessenta e quatro não se restringe a à defesa do

multipartidarismo. Como constatamos em pesquisa anterior (MOREIRA, 2008), essa obra é

bastante representativa do pensamento do autor por duas razões que ainda estão presente no

debate travado por ele em torno da reforma política: o destaque dado às instituições como

variáveis decisivas na dinâmica política e a incorporação crítica das metodologias e conceitos

produzidos da moderna Ciência Política, sobretudo, a partir da sua matriz estadunidense.

Distante da maneira anterior de proceder a analise dos fenômenos políticos, nos quais esses

eram compreendidos como resultado das forças econômico-sociais vigentes no país,

Wanderley Guilherme procura “fundar” no país uma nova maneira de compreensão da

política.

Santos afirma que, até o fim dos anos 1970, o golpe de 64 não recebeu a devida

atenção dos estudiosos brasileiros e isso teria ocorrido exatamente porque os intelectuais que

procuraram entender esse evento baseavam-se no “paradigma clássico de análise social e

política brasileira”. Segundo esse paradigma, os processos políticos são interpretados como

“dependentes de tendências macrossociais ou macroeconômicos” (SANTOS, 1986, p. 21).

Exatamente por partirem de explicações macro-históricas, as explicações existentes sobre o

golpe de 64 (como as de Celso Furtado, critica ele), não foram capazes de captar as

especificidades políticas do período.

Embora eficaz em sua descrição de variáveis macroeconômicas e

macrossociais, o modelo é, no entanto, controverso em suas suposições

básicas e inferências políticas (idem, ibidem, p. 20, grifos nossos).

Para Wanderley Guilherme, o golpe de 64 só poderia ser devidamente compreendido

se fossem “introduzidas variáveis políticas específicas”. São exatamente essas variáveis que

constituem o roteiro do supracitado livro: fragmentação e radicalização partidária,

rotatividade e instabilidade intra-elites, etc.

De importância crucial no paradigma é o status dependente de variáveis e

processos políticos que são quase sempre interpretados como subprodutos de

tendências macrossociais e macroeconômicas. Sem negar a relevância de

categorias tão amplas, inclino-me para uma estratégia que entenda os

processos políticos como variáveis independentes e que atraia a atenção para

o exame de tendências empíricas que não seriam identificadas de outra

forma (idem, ibidem, p. 9).

Assim, pode-se dizer que o autor procura nesse livro demonstrar como as instituições

política afetam as variáveis econômicas e sociais, na medida em que definem a forma pela

qual a competição econômica se traduz em alternativas políticas e, também, na medida em

Page 257: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

266

que causam um impacto no desenvolvimento posterior da estrutura social. Moral da história:

dependendo das instituições políticas vigorantes, processos sociais e econômicos podem ter

resultados diversos.

Segundo o modelo formal-dedutivo de cálculo do conflito político formulado por

Santos, a situação que antecedeu ao golpe é caracterizada pela dispersão de recursos políticos

entre atores fragmentados e radicalizados, um “sistema partidário do tipo pluralista

polarizado”, na qual nem o governo consegue formar uma maioria (a despeito de sua

estratégia contraproducente de aumentar a rotatividade entre as elites nos cargos da burocracia

estatal), nem a oposição consegue mais do que formar coalizões ad hoc, com o objetivo de

vetar as políticas propostas pelo Executivo, gerando, consequentemente, uma “crise de

paralisia decisória”. Esta crise é tomada pelo autor como condição suficiente para a violência

política, isto é, para a ruptura das regras do jogo de competição política.

Contra as explicações correntes de que o golpe de 1964 decorria do impasse entre o

Executivo, de base eleitoral urbana e de caráter progressista, e o Legislativo, de base rural e

conservador (como a de Furtado), Wanderley Guilherme defende que 1964 foi uma crise

decorrente do conflito político entre atores com recursos similares (“equilíbrio político”) e

ideologicamente polarizados.

Em resumo, em Sessenta e quatro, o autor procura demonstrar que países com elevado

índice de fragmentação parlamentar (grande dispersão das cadeiras do Parlamento entre os

partidos) não são, diferentemente do que se supõe, sinônimo de ingovernabilidade. A

fragmentação parlamentar (que não se confunde com o número de partidos) só gera

instabilidade quando associada ao processo de radicalização ideológica. Sistemas

fragmentados, mas não radicalizados, criam uma situação na qual o acordo e a negociação

com os diversos partidos efetivos tornam-se parte do dia-a-dia do governo. Nos casos de

radicalização aliada à fragmentação, como no cenário político brasileiro pré-64, cria-se, aí

sim, uma conjuntura em que nem o Executivo consegue aprovar as medidas necessárias para

governar, nem o Legislativo consegue formar maioria para aprovar outra agenda política,

apenas formando coalizões ad hoc para vetar as ações do poder Executivo.

Uma terceira proposta de reforma política avaliada e criticada por Wanderley

Guilherme consiste na adoção do voto em lista fechada, medida supostamente capaz de

fortalecer os partidos políticos. O autor novamente polemiza, posicionando-se contra a

proposta. Recuperando a contribuição de Robert Michels (1982) e da “lei de ferro das

oligarquias” para a compreensão dos partidos políticos modernos, o autor assevera que tal

Page 258: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

267

proposta produzirá uma oligarquização dos processos de indicação dos candidatos aos cargos

eletivos.

É transparente, nesse caso, a michelliana oligarquização da política por via

partidária, particularmente quando, por conta do requisito da filiação,

transfere-se à máquina burocrático-partidária o poder de ordenar, em sistema

de listas fechadas, os candidatos preferenciais do partido (SANTOS, 2007b,

p. 42).

Não caberia mais ao eleitor escolher quem efetiva e particularmente merece o seu

voto, mas às cúpulas partidárias, não eleitas, tendencialmente burocráticas e centralizadoras.

O voto é um direito constitucionalmente garantido no país, que será retirado

com o voto elitista, por legenda, porque não se votará mais num candidato.

Quem definirá os escolhidos será a oligarquia partidária. Com o voto por

legenda haverá espaço para os candidatos dos movimentos negros, dos

movimentos feministas, dos movimentos dos homossexuais, dos

movimentos dos marginalizados da vida? Como eles seriam escolhidos?

Como eles fariam parte da lista dos partidos e estariam entre os primeiros

lugares dessas listas? (SANTOS, 2011, p. 4).

Pelo mesmo princípio de não reduzir em nenhum nível a competição pelo poder,

Wanderley Guilherme recusa mais uma das propostas de inovação institucional, endossada,

por exemplo, por Lamounier e Sousa.

A última proposta de reforma a ser avaliada aqui é a adoção de novos mecanismos de

participação direta ou a maior utilização dos já existentes na Constituição de 1988, como o

plebiscito, por exemplo. Essa seria a reivindicação dos “neo-republicanos”, tal como

denominados por Santos; não os mesmos que propõe as iniciativas antes analisadas (os “neo-

oligarcas”), mas de qualquer modo, compartilhariam com os primeiros um diagnóstico

negativo da democracia brasileira, ainda que por razões distintas. As seguintes afirmações de

Wanderley G. dos Santos esclarecem seu argumento:

Conservadores e a maioria dos progressistas coincidem no diagnóstico. São

irrisórias as diferenças entre a agenda de reformas propostas por uns e os

pontos programáticos reclamados por outros (2007b, p. 65).

A democracia brasileira vai mal, declaram [os “neo-republicanos], do que se

oferece como evidencia o catálogo de desigualdades nas condições de vida,

o ínfimo grau de participação reivindicatória existente, sem dúvida inferior

ao que aquele catálogo exigiria, e quase certamente em consequência dos

obstáculos institucionais a tal participação (2007a, p. 30).

A “retórica neo-republicana”, alicerçada, segundo o autor, nos modelos de política da

Antiguidade (Grécia e Roma), identifica a permanência das desigualdades sociais no Brasil

moderno e uma apatia cívica e a descrença nas instituições políticas como sintomas de nossa

Page 259: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

268

mal formada democracia, fenômeno esse também verificado nos países de primeiro mundo.

Pesquisas de opinião feitas aqui e em outros países revelariam contra isso, seria necessário

recorrer mais sistematicamente à participação direta, a fim de vencer esse distanciamento

entre o cidadão comum e a vida pública.

O diagnóstico do neo-republicanismo brasileiro apoia-se na avaliação que a

opinião pública costuma fazer sobre as instituições do país, particularmente

as instituições políticas. Segundo a crítica, a avaliação das instituições

evidenciaria uma deficiência real antes que conjuntural viés negativo em

relação acontecimentos. Não compartilho da avaliação que os neo-

republicanos propõem sobre as instituições políticas, mas, para efeito de

argumentação, concedo a possibilidade de que exista um déficit democrático

no país. Ainda assim, sustento que a terapia proposta – a democracia

direta –, ademais de imprecisamente formulada, evita questões essenciais na

instituição de uma cidade democrática. Superar a obsolescência do status

quo dispensa o autocratismo iluminista-rousseaniano (idem, ibidem, p.

40, ênfases do autor, grifos nossos).

Santos, além disso, acusa que esse discurso de se constituir uma “importação de um

produto deteriorado na travessia” (idem, ibidem, p. 26), isto é, a incorporação de um conjunto

de temáticas formuladas nos países de democracia mais antiga e que, se já são duvidosas

naqueles países, não fazem sentido no caso brasileiro, haja vista o processo, antes

mencionado, de expansão cívica. Santos critica o modo como são considerados os resultados

de pesquisas de opinião, como, por exemplo, as de satisfação dos cidadãos com o regime

democrático, bem como certos conceitos próprios dessa literatura, como o de capital social.

O mal-estar das análises contemporâneas se escora no comportamento

recente do eleitorado nos países de Primeiro Mundo, na crescente descrença

na legitimidade e eficácia das instituições, sobretudo políticas – partidos e

parlamentos – e na rarefação dos laços sociais. (....) Estariam em declínio a

identificação com os partidos, a capacidade destes em mobilizar o eleitorado,

a coerência do voto ao longo do tempo, a taxa de comparecimento às

eleições, o interesse da sociedade pela política, manifestada pela redução

sistemática do número de candidatos aos postos eletivos, além de algumas

outras tendências de menor relevância – participação na vida partidária, em

campanhas eleitorais e, não sem alguma relevância, grau de informação

política (SANTOS, 2007a., p. 35).

Em relação à ideia de que a democracia brasileira vai mal, haja vista a permanência

das desigualdades sociais ao longo dos anos, mesmo após a incrível e rápida transformação do

país de uma oligarquia em uma poliarquia, o autor, no entanto, reconhece: “o paradoxal é a

estabilidade da miséria em um contexto de acelerada mudança” (idem, ibidem, p. 26). Por

outro lado, ele também declara explicitamente que a finalidade da democracia não é,

necessariamente, diminuir as desigualdades sociais entre os cidadãos:

Ao extraordinário princípio organizacional de igualdade jurídica e política,

Page 260: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

269

garantido pela democracia, não corresponde similar capacidade de promover

a igualdade material reclamada por muitos sem violar os valores em que se

funda (idem, ibidem, p. 145).

Assim, mesmo reconhecendo que o problema distributivo carece de urgente solução, o

autor contesta que a sua permanência ao longo do tempo seja de “responsabilidade” das

instituições políticas.

Quanto à suposta “terapêutica” neorrepublicana (baseada na ideia de que “a qualidade

do governo depende da permanente mobilização” [idem, ibidem, p. 29], conseguida pelos

mecanismos de participação direta), Santos critica os plebiscitos. Ele assevera que esses

instrumentos são notoriamente conhecidos por não permitirem o confronto argumentativo,

como ocorre nos tradicionais parlamentos de tamanho médio, e, ademais, por não permitirem

revisão: não se pode, diz o autor, recorrer de decisões plebiscitárias. Por conta dessas razões,

esses são mecanismos que devem ser utilizados de modo moderado, nunca a substituir o

funcionamento normal dos parlamentos. O autor declara, então, em conformidade com o

modelo poliárquico, que a democracia pode conviver com doses moderadas de apatia e

egoísmo político:

Pessoalmente, creio ser demonstrável conciliar o egoísmo epidérmico dos

membros de uma comunidade e a produção de estados de mundo

satisfatórios para todos mesmo na ausência de cooperação universal

(recusar-se à cooperação equivale subtrair-se à unanimidade) (SANTOS,

idem, p. 77-78).

Cumpre destacar, como transparece em passagem citada acima, Wanderley Guilherme

dos Santos associa o republicanismo ou sua retomada na contemporaneidade ao

“autocratismo”, a um desejo indisfarçado de querem impor a todos as mesmas preferências,

colocando em risco, ao cabo, a liberdade até agora conquistada pela democracia:

Os profetas da participação integral, hoje, são os potenciais, sequestradores

da liberdade de amanhã. Às vezes em nome de um ontem, tal o ontem grego,

que, em verdade, é obscuro e polêmico (idem, ibidem, p. 48)139

.

Como discutimos no segundo capítulo deste trabalho, o argumento que associa o

ideário republicano à restrição da individualidade tem uma longa história. Passemos, agora, à

análise de tais argumentos, tendo em vista formular uma visão sintética sobre sua linguagem

política e sua contribuição ao entendimento das perspectivas e limites da democracia

139

Na sua interpretação da obra de Rousseau, identificado por ele como um “iluminista dogmático” (SANTOS,

2007a, p. 118), o autor associa a tradição republicana à autocracia: “(...) não terá passado despercebido ao

leitor que a proximidade da vontade geral contrai dívidas explícitas com procedimento autocrático” (idem,

ibidem, p. 77).

Page 261: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

270

brasileira.

5.4 – Reforma política e democracia no Brasil

Identificando-se como um “cético moderado”, Wanderley Guilherme dos Santos, além

de contestar veementemente a “ofensiva neo-oligárquica” e a crítica neorrepublicana à

democracia brasileira (na sua opinião, vaga, mal fundamentada e potencialmente autoritária),

recomenda, enfim, cautela diante de qualquer inovação institucional: seus resultados, em

geral, destoam das expectativas de seus proponentes e podem significar retrocessos políticos.

Na origem das democracias encontra-se a inteligente estratégia de

experimentar inovações institucionais e ao mesmo tempo administrar, com

cautela, sequência e velocidade de adoção. Aprenderam os europeus e os

norte-americanos que o efeito produzido por instituições recém-introduzidas

raramente correspondem à intenção dos legisladores. Daí o temor instintivo

dos conservadores em alterar o que lhes parece relativo equilíbrio do status

quo. Mas não são apenas os conservadores os temerosos. Mesmo dispondo

de variados graus de audácia, os grandes engenheiros institucionais sempre

respeitaram a regra do comedimento, e refiro-me particularmente à elite

inglesa dos séculos XVIII e XIX e aos federalistas norte-americanos

(SANTOS, 1998b, p. 144).

Sendo a política o espaço da incerteza, raramente o efeito produzido pelas instituições

implantadas corresponde à intenção dos reformadores, visto que tudo isso depende da

interação entre os agentes, mediada pelas diferentes subjetividades. A ideia central do autor é

que a ordem social é imprevisível e, por conseguinte, não é possível desenvolver um sistema

fechado de explicações sobre ela. Soma-se à sua postura epistemológica cética, a precocidade

da experiência democrática e do parco saber produzido sobre ela, fato reiteradamente

salientado por ele.

Apesar do uso generoso do termo “democracia”, a prática da competição

política eleitoral, a intervalos regulares, com sufrágio universal e resultados

acatados pelos competidores, esta é na verdade recentíssima na vida das

nações. Só a partir da década de 1950 é que as democracias, no sentido

estrito acima estipulado, começaram a se instaurar e se difundir, sem

prejuízo de recaídas autoritárias aqui e ali (SANTOS, 2007b, p. 87).

A democracia institucionalizada é uma forma recentíssima de conciliar a

autonomia dos irrendentos, e dos indivíduos, em geral, com a

imprevisibilidade de um modo de produção industrial cuja temporalidade é

distinta da temporalidade do modo agrário de produção, durante o qual as

eleições locais coincidem com as festas de semeadura e colheita (SANTOS,

2007a, p. 156).

Percebe-se que o autor quer destacar que, levando em consideração a história da

Page 262: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

271

humanidade (ou da civilização Ocidental), a democracia é uma novidade e, sendo assim, as

condições necessárias para o seu bom funcionamento só são ainda parcialmente conhecidas.

Além de essa perspectiva salientar a proximidade histórica e institucional das poliarquias com

as oligarquias, e o satisfatório avanço da poliarquia brasileira, como vimos, ela sugere

moderação no ímpeto reformista que, segundo Wanderley Guilherme, prevalece na opinião

pública brasileira; cautela, sobretudo, quando se trata da estabilidade política, associada de

má-fé ou por pura ingenuidade a certas instituições sugeridas na “agenda mínima” da reforma

política.

A preocupação com estabilidade democrática, ou governabilidade, é

recentíssima. Primeiro, porque a própria democracia, estritamente

considerada instalou-se há muito pouco tempo no mundo. (...) Segundo,

porque se desconhece que a evolução dos países estáveis não foi

caracterizada por uma ampliação da “democracia”, mas pela ultrapassagem

das oligarquias hegemônicas de reduzida participação por hegemonias

inclusivas e estas, enfim, por poliarquias. Também passou despercebido que

democracia de massa é fenômeno histórico original e, por isso, nenhum

conhecimento acumulado sobre tecnologia governamental está

automaticamente destinado ao sucesso. A duras penas, o aprendizado

democrático tem revelado que a estrutura e a dinâmica das democracias de

massa são, a rigor, um enigma (SANTOS, 2007b, p. 67, ênfases do autor).

Embora declare não ser um advogado do “imobilismo” ou da “mumificação

institucional” (SANTOS, 1994, p. 21), de fato, são poucas as passagens na obra desse autor

em que ele admita a plausibilidade de algum tipo de reforma política para o atual sistema

político brasileiro.140

Em relação aos que desejam reduzir a competitividade da democracia brasileira,

Wanderley Guilherme dos Santos reafirma seu compromisso com a poliarquia: “os neo-

oligarcas optaram pelos atentados institucionais. Por mim, voto pela boa competição política.

Esta é a minha apologia democrática” (1998b, p. 192). Contra aqueles que, na sua visão,

idealizam uma democracia melhor, marcada pela intensa participação política do cidadão

comum (os “neo-republicanos”), afirma: “tenho uma preferência clara: sou, em primeiro

lugar, favorável à democracia; subsidiariamente, aceito discutir os méritos efetivos de

quaisquer novos instrumentos de participação política” (2007a, p. 10).

Sobre o suposto descontentamento difuso em relação às democracias (enfatizado pelos

140

Em entrevista a Juarez Guimarães, o autor reconhece que há problemas no modelo brasileiro de

financiamento de campanhas eleitorais no Brasil, particularmente sobre a doação a candidatos feitas pelo

setor financeiro (e sugere que bancos sejam proibidos de doar dinheiro para políticos), mas não crê na

solução desses problemas por meio da adoção do sistema exclusivamente público, tal como defendido pelo

PT (SANTOS, 2006c, p. 117). Noutro depoimento, a Maysa Provedello, Santos reconhece que a infidelidade

partidária é um problema no Brasil, mas apenas afirma vagamente que “isso pode ser resolvido com

mudanças na legislação eleitoral” (SANTOS, 2011, p. 4).

Page 263: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

272

“neo-republicanos”), Santos afirma que o regime democrático implica em certa “anomalia”,

na medida em que considera como, a princípio, justas e legítimas quaisquer reivindicações,

mesmo aquelas que se colocam em risco a sua própria sobrevivência. Nesse sentido, diz o

autor, o fenômeno dos “irredentos” é inerente à vida democrática: “é nos irredentos que se

origina a agonia criadora da dramaticidade democrática, a de legitimamente reclamar por

realizações que a democracia não pode atender” (2007a, p. 157). Ao contrário de outros tipos

de regimes políticos que tendem a suprimir ou calar as vozes descontentes, na poliarquia elas

encontram guarida pela própria natureza de suas instituições.

Levando em consideração os argumentos do autor até agora vistos, cumpre, doravante,

avaliá-los mais criticamente a fim de pensar a contribuição desse autor no entendimento da

formação da democracia brasileira e na constituição de uma linguagem política própria a

permear a política nacional.

Em primeiro lugar, cumpre destacar o papel fundamental desempenhado por ele, junto

a outros cientistas políticos brasileiros, na institucionalização e autonomização Ciência

Política acadêmica no país, no quadro geral das ciências na segunda metade do século XX141

.

Mas não apenas isso. Parece-nos correto tomar esse autor como um expoente de uma tradição

que se firma no país a essa época e que ainda é frequentemente consultada (por exemplo,

quando se discute a reforma política hoje), que consiste na ênfase analítica no funcionamento

das instituições políticas (como os partidos políticos e o poder Legislativo, particularmente).

Nesse sentido, consideramos a obra de Santos, como um todo, como expressão desse

paradigma em que – apoiado nos sofisticados métodos de estudo empírico – as instituições

políticas são avaliadas em seu potencial autônomo, explicativo, portanto, da própria vida

social. Ainda sob esse prisma, destaca-se também a contribuição desse autor na formulação de

novos indicadores da política institucional, tendo eles sido incorporados pelo mainstream dos

estudos eleitorais142

.

No entanto, se é verdade que a análise sobre a política sofisticou-se bastante a partir da

incorporação dessas metodologias e do foco nas instituições políticas, é verdade também que

parece haver um excesso na medida em que essas instituições necessitam ser avaliadas

também em sua relação com a estrutura socioeconômica. A respeito da obra Sessenta e

quatro: anatomia da crise, representativa desse momento de fundação da Ciência Política

141

Esse argumento foi mais extensamente desenvolvido em: MOREIRA, 2008. 142

O índice de competitividade (número médio de candidatos por vagas em disputa em eleições), inventado por

Santos acabou sendo adotado pelas estatísticas do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Além desse, dois outros

indicadores criados por ele (renovação parlamentar e estabilidade governamental) consagraram-se

importantes nos estudos da política (SANTOS, 2011, p. 5).

Page 264: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

273

brasileira, o cientista político Fábio Wanderley Reis identifica, a propósito, um exagero em

tratar as instituições como variáveis explicativas, como se o golpe de 64 tivesse sido causado

pelo impasse exclusivamente institucional (a paralisia decisória). Ao contrário de uma

concepção da Ciência Política como disciplina autônoma, Reis reclamava pela constituição de

uma “sociologia política”143

:

Temos a respeito a contraposição usual, nas discussões da ciência política,

entre duas perspectivas ou “modelos”, contraposição esta que se liga com o

problema da “autonomia” da ciência política como disciplina. De um lado,

há a perspectiva que destaca a esfera do Estado e pretende que aí estariam os

fenômenos políticos. A ciência política seria autônoma na medida em que os

fenômenos que interessam a ela pudessem se explicar referência a essa

esfera, dispensando o recurso ao plano “social”. Em contraste temos o

modelo “sociológico” de abordagem, segundo o qual a gente só explicaria o

que ocorre no plano do Estado por referência ao que está “lá em baixo”, por

assim dizer, no plano geral da sociedade (REIS, 2005, p. 26).

Talvez não seja preciso, contudo, caracterizar a obra de Wanderley Guilherme como

do primeiro tipo, definida por Reis, como se Santos considerasse a Ciência Política como

ciência que tem por objeto exclusivo o aparato estatal. Todavia, há certamente em sua obra

uma ênfase, às vezes, demasiada, na dimensão institucional. Esse é, por exemplo, o caso de

sua definição de democracia.

Como vimos, na tradição republicana, a igualdade não pode limitar-se à igualdade

jurídica e formal, necessitando que os indivíduos se encontrem em situação de igualdade de

oportunidades, situação essa que o Estado mesmo deve criar. Para Santos, ao contrário, a

democracia não está comprometida com a erradicação das desigualdades sociais, mas somente

as desigualdades de natureza política. Wanderley Guilherme esclarece que essa proposição

está em perfeita conformidade com a abordagem adotada por ele de democracia, meramente

institucional (“minimalista”). Segundo ele, uma vez que mesmo regimes democráticos podem

originar decisões antidemocráticas, não se deve definir democracia em função de seus

resultados, mas sim baseado nos procedimentos adotados para a consecução dos resultados.

É curioso notar, em primeiro lugar, que Santos ao mesmo tempo em que incorpora a

noção de poliarquia, utiliza também a distinção entre democracia minimalista (assumida por

ele) e democracia substantiva, distinção essa recusada por Robert Dahl. O cientista político

estadunidense esclarece seu ponto de vista: se todo procedimento (ou instituição) é imbuído

de certos valores, ele pressupõe, portanto, certos resultados, do mesmo modo que todo

143

Percebe-se, portanto, uma afinidade entre a proposta de Reis e a visão furtadiana sobre o golpe de 64. Cf.

COLEN, 2001.

Page 265: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

274

resultado exige um procedimento específico para ser obtido (Dahl, 1993). Concordamos com

Dahl nesse ponto (e não com Santos), pois uma concepção de democracia implica

inevitavelmente no assentimento com certos princípios de ordem moral (como a igualdade

entre todos os indivíduos, ou a liberdade, etc.) e ainda que não pressuponha a determinação de

todos os resultados, exige o comprometimento com alguns deles, sem os quais, a própria

democracia deixa de existir.

Fábio Wanderley Reis retoma esse debate de modo assaz esclarecedor. Ele afirma que

quando se fala em democracia é comum se deparar com a polêmica entre aqueles que

defendem uma concepção meramente política de democracia (concepção minimalista) e

aqueles que acreditam em uma democracia social ou substantiva (concepção maximalista). A

concepção minimalista defende que por democracia se deve entender somente a vigência de

um Estado de direito, que garanta a todos os cidadãos os direitos civis básicos. A democracia

social, por sua vez, supõe a erradicação de qualquer forma de desigualdade que comprometa o

exercício da liberdade política. Sobre isso, ele afirma:

É difícil pretender que a democracia “política”, em que se garantam plenamente os

direitos civis e políticos de todos, possa se afirmar e consolidar em condições de

grande desigualdade social, nas quais os diversos recursos de poder estarão, por

definição, distribuídos de maneira desigual (REIS, 2004, p. 393).

Para ele, é inaceitável separar a dimensão institucional (Estado) da dimensão social, o

que significa dizer que a democracia tem tanto um aspecto político, quanto social. Assim, em

relação à sociedade brasileira, por exemplo, Reis é enfático ao afirmar que a superação das

aberrantes desigualdades sociais (que fazem com que ela se assemelhe a uma estrutura de

castas) é condição necessária para o estabelecimento da democracia no país. Ora, se essas

desigualdades persistem, impedindo a criação de um amplo mercado político, é preciso,

conclui o autor, que o Estado atue no sentido de atenuá-las ou eliminá-las definitivamente.

Nesse sentido, Reis defende abertamente a ideia de que, em alguns contextos, é preciso certo

grau de “paternalismo” do Estado a fim de eliminar as desigualdades politicamente relevantes.

Nesse sentido, ainda que Wanderley Guilherme dos Santos tenha certa razão em

afirmar que não se pode condenar a democracia brasileira pelo fato de que as desigualdades

sociais entre os cidadãos do país são enormes (sobretudo, quando se tem em mente, como

bem esclarece Santos, o seu extraordinário e recente avanço institucional) é verdade também,

por outro lado, que a manutenção delas compromete o desenvolvimento da própria

democracia, na medida em que o exercício da liberdade, nos termos amplos propostos pelo

neorrepublicanismo, não estão dissociados das suas condições materiais. Enfim, entendemos

Page 266: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

275

que a definição de Santos de democracia como estritamente “minimalista”, é resultado do

próprio campo liberal em que o autor se formou que, diferentemente do republicanismo, não

associa a igualdade (a não ser perante a lei) à liberdade individual, tratando as primeiras como

diferenças naturais entre os indivíduos, despolitizando-as e remetendo ao mercado, em

alguma medida, a sua solução.

Uma segunda crítica de Santos ao neorrepublicanismo consiste em associar essa

tradição às experiências políticas da Antiguidade. Essa objeção incorre em alguns equívocos

de interpretação: em primeiro lugar, porque a república não se limita ao mundo Antigo, tendo

sido recuperada no alvorecer da Modernidade (as repúblicas italianas) e posteriormente na

Inglaterra, na França e nos Estados Unidos no século XVIII. Um segundo erro é associar

republicanismo à defesa da participação direta. Se é verdade que essa tradição prima pela

cultura da participação e das virtudes cívicas, isso não autoriza a limitar o diversificado

estoque teórico e político do republicanismo a plebiscitos, como comprovam os exemplos

históricos acima mencionados.

Uma terceira crítica desse autor ao neorrepublicanismo é identificar nele um oculto

desejo de impor a unanimidade, suprimindo a liberdade humana. Assim como a segunda

crítica, essa também consiste numa atualização de uma tópica argumentativa bastante

explorada pela tradição liberal. Conforme vimos, a ideia de república está associada à

realização da liberdade humana em diversos sentidos, sendo antagônico a ela o pressuposto de

que a individualidade pode simplesmente ser negada em prol da comunidade. Mais incorreto

ainda nessa crítica (embora bastante comum) é fundamentá-la baseando-se na obra de

Rousseau. Se é verdade que muitos já o interpretaram assim, isso não significa que imputar a

ele uma vocação autocrática seja razoável. Se o conceito de liberdade em Rousseau, em seu

sentido democrático (autogoverno), implica, sim, na conciliação do interesse particular com a

vontade geral, ele também significa liberdade civil, isto é, a oportunidade dos cidadãos de

fazerem suas escolhas privadamente, sem a coerção do Estado ou de particulares.

Acreditamos que é por partir de uma concepção restrita de liberdade e de democracia,

que Wanderley Guilherme dos Santos, ainda que tenha sido capaz de construir uma coerente

narrativa acerca da formação da democracia brasileira, revele certa dificuldade em abordar a

dimensão “não-institucional” da democracia, priorizada por este trabalho. Como vimos

anteriormente, a tese de Santos acerca do “híbrido institucional brasileiro” aponta para um

impasse no sentido de que as instituições poliárquicas são incapazes de regular efetivamente a

vida social dos brasileiros, ainda imersos numa “cultura predatória”. Em passagem já

Page 267: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

276

mencionada aqui, o autor afirma: “não se trata de pessimismo, mas neste momento, não há

cultura cívica no país, apenas natureza” (SANTOS, 1993a, p. 135). Para ele, carecemos de um

“contrato social básico”: um Estado excessivamente regulador, com uma estrutura deficiente

para atender a magnitude das demandas, corporativo, e não assentado sobre um contrato

social, mas sim convivendo com uma sociedade que se comporta como no estado de natureza

hobbesiano. Se é verdade que a interpretação de Santos tem o mérito de identificar esse

“híbrido”, ela parece, todavia, ainda aquém de poder explicar porque, passados décadas, tal

“cultura cívica” não se formou. Mais do que isso, como realizar a afirmação desse contrato

básico a conferir maior efetividade à poliarquia brasileira?

A linguagem política de Wanderley Guilherme dos Santos, bastante profícua para se

pensar a gênese não-linear e não-encarcerável da poliarquia brasileira revela, entretanto, aqui

os seus limites. Sem uma cultura cívica a ser fomentada pelo Estado – Estado esse refundado

segundo não apenas a igualdade formal e alicerçado em procedimentos democráticos, mas,

sim, numa concepção de democracia que tem como meta a erradicação de todas as formas de

dominação que impedem o exercício pleno e efetivo da liberdade dos brasileiros – pouco se

poderá avançar na superação do impasse identificado por esse autor.

Page 268: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

277

6 – Fernando Henrique Cardoso: a linguagem liberal-democrática do Estado e do

mercado

A obra de Fernando Henrique Cardoso certamente é, dentre a dos autores aqui

estudados, a que expressa de modo mais explícito a hipótese nuclear deste trabalho, a saber:

que as grandes interpretações da formação da democracia no Brasil atuam como linguagens

políticas, orientando grupos e atores em sua prática cotidiana.

Todavia, surpreendentemente, a maior evidência da relação entre teoria e prática

política não produziu muitas interpretações que destaquem o impacto de sua linguagem

teórica na prática política brasileira144

. Ao contrário, a maior parte de estudos publicados

sobre “FHC”, avalia apenas o seu governo na presidência da República (de janeiro de 1995 a

janeiro de 2003), sem associar de modo sistemático e profundo a sua práxis política à sua obra

teórica.

Assim, se a relação entre teoria e prática foi menos e apenas parcialmente avaliada,

isso se deve ao fato de que sua obra teórica foi, em alguma medida, preterida em relação a sua

atuação prática. Segundo um certo viés interpretativo, o ator político teria, por assim dizer,

prescindido de sua reflexão científica, supostamente desnecessária, tendo em vista o

“pragmatismo” reinante na prática política e a necessidade de conciliar interesses e “costurar”

alianças. Na política, as ideias importariam pouco, pois seria mais determinante agir de modo

eficiente do que coerentemente. A interpretação de Bernardo Sorj aproxima-se muito desse

tipo de argumento:

Militante, no início dos anos 50, na luta pela nacionalização dos recursos

naturais e exploração do petróleo, simpatizante do Partido Comunista,

renovador da sociologia marxista, socialista declarado ainda na década de

80, Fernando Henrique Cardoso na presidência da República governou

apoiado por uma coalizão de partidos à direita do espectro político (...).

Da perspectiva de um observador menos sensível à biografia do presidente,

as opções políticas de Fernando Henrique Cardoso não causariam espanto,

pois eleito graças ao apoio popular sustentado no êxito do plano real e a uma

aliança partidária apoiada pelos grupos sociais dominantes, a nível nacional

e internacional, a margem de manobra de seu governo era limitada. Se

fosse para ser julgado ou avaliado, esse julgamento deveria ter como

parâmetro suas realizações dentro das possibilidades demarcadas pelo

jogo de forças políticas e das bases de sustentação parlamentar dentro

da qual exerceu a presidência (2001, p. 115, grifos nossos).

144

Como exceções a essa tendência, destacamos as teses de doutorado de Milton Lahuerta (1999) e de Marcelo

Dulci (2010) e a dissertação de mestrado de Célia Colen (2001). Além desses trabalhos, outros fazem o

mesmo exercício, mas de modo menos sistemático ou com menor centralidade, tais como o de Pedro Otoni

(2011), além do livro de Bernardo Sorj (2001).

Page 269: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

278

Vê-se que é difundido aqui um certo lugar-comum, de que a política “pensada” é uma,

e a “praticada” é outra, por se organizarem por critérios distintos: enquanto o intelectual tem

como “único compromisso a busca da verdade”, o presidente “orientaria sua ação pelo

horizonte do possível” (SORJ, op.cit., p. 116).

Alguns intérpretes, todavia, foram mais longe e acusaram FHC de negar em seu

governo, supostamente, “neoliberal”, os seus escritos “de esquerda”, redigidos em período

anterior. Não haveria identidade entre a linha política de seu governo e sua obra intelectual,

porque FHC – mais do que simplesmente garantir a “governabilidade” aventada pela primeira

interpretação – teria efetivamente “traído” os seus escritos em seu governo, agindo

contrariamente ao seu ideário “socialista” de outrora145

.

O mais importante dessa discussão é notar que há um ponto em comum reafirmado

pelas duas interpretações. Tanto no caso dos que adotam a tese do “puro pragmatismo” quanto

daqueles que asseveram uma “traição ideológica”, se assente com a ideia do “divórcio” entre

as proposições do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e a atuação do presidente “FHC” –

entre “teoria” e “prática”. Isso significa que, em qualquer uma das suas duas versões, o

entendimento que dissocia a sua teoria e prática políticas acabou por preponderar no meio

acadêmico e midiático brasileiro.

Defensores das duas interpretações as justificam recorrendo a declarações do próprio

autor, quando empossado no cargo da presidência. Após tomar algumas medidas impopulares,

supostamente contrárias ao que havia defendido em suas obras, FHC teria dito: “Esqueçam

tudo o que eu escrevi” (CRUZ, 1999, p. 226). Cardoso, com frequência, negou a autoria da

frase, argumentando, ao contrário, que haveria uma linha de continuidade entre sua obra

teórica e seu governo como presidente146

.

Longe de querer demonstrar a validade da tese contrária (a de que sua atuação política

consiste tão somente na aplicação direta e imediata das ideias defendidas por eles em seus

textos), cumpre aqui apenas destacar que, independentemente de qual posição se tome no

debate, fato é que a trajetória de Fernando Henrique Cardoso é um campo particularmente

fértil, pelas próprias polêmicas que o constituem, para se pensar a relação entre teoria e

prática políticas, objeto central deste trabalho. Não poderíamos por todas as razões acima

aludidas, desconsiderá-lo na escolha de autores a serem avaliados por esta pesquisa.

Mas, além da intrigante polêmica associada à obra de Cardoso, há uma razão ainda

145

Vários autores podem ser identificados com essa posição, tais como José Luís Fiori, Francisco de Oliveira,

Maria da Conceição Tavares (Cf. DULCI, 2010, p. 82). 146

Ver, por exemplo: CARDOSO, 2006, p. 78-79.

Page 270: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

279

maior e anterior para que ela seja objeto de nossa análise. Como procuraremos demonstrar, o

pensamento de Cardoso é formativo de uma linguagem política específica da democracia e

fundamental até hoje nos grandes embates da política brasileira. Esse autor não é importante

na política brasileira apenas por ter governado o país durante quase uma década, ou por ser o

principal líder político do PSDB (um dos partidos mais importantes de nossa recente história

democrática), mas também porque criou um modo próprio de falar da democracia no país,

com grande influência sobre diversos atores políticos, associando-a a necessidade de

modernização do Estado brasileiro e ao fortalecimento da sociedade civil.

Pode-se dizer que esse autor ocupou na política brasileira no final dos anos 1960 e nos

anos 70-80, o protagonismo exercido por Celso Furtado nos anos 50-60 como liderança

intelectual, o que não é aleatório, já que é contra a tradição da qual Furtado é um expoente (o

nacional desenvolvimentismo) que Cardoso constrói sua obra. É só a partir de meados da

década de 1980 que o esforço teórico de compreender a política vai sendo substituído

gradualmente pelo esforço de atuar mais incisamente na política, não apenas como intelectual

público, mas principalmente como liderança político-partidária, inicialmente como

“consultor” do MDB, e depois como político do PMDB e, a partir de 1988, do PSDB.

José Carlos Reis localiza a “inflexão” do “intelectual” para o “político” no ano de

1978, ano em que Cardoso se elege suplente do senador Franco Montoro pelo MDB: “Até

1978, F.H. Cardoso foi um ‘excepcional cientista social’, um intelectual brasileiro

reconhecido e admirado nacional e internacionalmente”. Em seguida, Reis acrescenta, “após

1978, ele se tornará um ‘político excepcional’”; e ainda: (...) “deixou em segundo plano a sua

identidade de cientista social e passou à ação” (2007, p. 236 et seq).

De qualquer modo, quer através da publicação de ensaios polêmicos e impactantes no

cenário brasileiro – envolvendo também a criação e direção “intelectual” de um dos principais

centros de pesquisas sobre política no país nos anos 70-80, o CEBRAP (chamado por Daniel

Pécaut de “partido da inteligência”, dado a influência desse grupo no processo de

redemocratização do país)147

– quer como dirigente político e líder do PSDB, Cardoso

permanece como uma personagem crucial na política nacional há aproximadamente meio

século.

A figura que maior espaço ocupava no Cebrap era indubitavelmente

Fernando Henrique Cardoso. A qualidade e a diversidade de sua obra, aliada

ao carisma pessoal e à ampla e variada gama de relacionamentos no Brasil e

no exterior, fizeram dele o pivô da instituição. Era sem dúvida o integrante

147

Caracterização semelhante aparece em Reis: “O Cebrap (...), do qual ele foi um dos fundadores, em 1969,

tornou-se o centro crítico do Brasil sob a ditadura” (2001, p. 238).

Page 271: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

280

de maior renome nacional e internacional, mantendo uma clara liderança

entre os mais jovens e relações variadas e ricas com os membros de sua

geração (SORJ, 2001, p. 39-40).

Marcelo Dulci caracteriza apropriadamente Cardoso como uma espécie de polo

intelectual e político, que protagoniza e organiza boa parte da intelectualidade e da política

brasileira no pós-64 até o presente:

Na longa transição democrática – iniciada nos anos setenta –, os intelectuais

paulistas – ao contrário das décadas anteriores – vão pautando o debate e, de

certa forma, nesse processo, reescrevendo a história passada, reinterpretando

autores e visões e, como resultado geral não exatamente planejado, criando

um ambiente intelectual e político para profundas mudanças futuras que, por

contingências históricas da nação, ironicamente, serão lideradas, nos anos

90, pelo próprio Fernando Henrique Cardoso, bem como por intelectuais e

políticos ligados ao partido que ajudou a criar nos fins dos anos 80 (o PSDB)

(2010, p. 118).

Milton Lahuerta o denomina como “intelectual líder de um centro de intelectuais” que

centraliza a oposição na Academia à ditadura:

Nesse cenário, avulta a figura de Fernando Henrique Cardoso: a tal ponto,

que o autor torna-se maior que a própria obra. A projeção obtida pelo

Cebrap, a condição de “exilado”, a “aposentadoria” precoce, permitiram que

se criasse uma aura mítica não só em torno do intelectual Fernando

Henrique, mas também da figura do intelectual em geral. De tal modo que as

atitudes tomadas para defender as condições básicas necessárias ao trabalho

intelectual foram interpretadas pela juventude universitária e pela oposição

como expressivas da resistência de esquerda contra o obscurantismo cultural

da ditadura. Essa condição possibilita ao Cebrap exercer um papel diretivo

na elaboração intelectual que terá fortes reflexos na cultura política do

período e que garantirá a Fernando Henrique Cardoso uma condição de

intelectual que lidera intelectuais, sem precedentes na história do país. Tal

condição afortunada, com o auto-exílio de Florestan Fernandes durante os

anos 70, torna-se absolutamente incontestável no cenário acadêmico (2001,

p. 64-65, ênfases do autor)148

.

David Lehmann (1986) diverge em parte desse grupo de intérpretes ao considerar que

a influência de F.H. Cardoso é “mais política do que teórica”149

, sendo ele um “político

travestido de sociólogo” (REIS, 2001, p. 247).

148

Lahuerta nota que há um compartilhamento de certas ideias por parte dos intelectuais do Cebrap, muitas

delas forjadas por Cardoso: “a recusa a qualquer compromisso com o varguismo, a tentativa de explicar o

Brasil através de uma teoria do ‘populismo’,a preocupação com os bloqueios ao desenvolvimento da ordem

competitiva, a crítica à razão dualista; o reconhecimento de que, ainda que associado e dependente, havia

desenvolvimento econômico no país; e, por fim, a perspectiva de que havia uma situação estrutural que

contrapunha autoritarismo X democratização” (LAHUERTA, 1999, p. 168). 149

“No Brasil, a influência de Cardoso foi mais política que teórica, desde que se tornou, com seus ensaios sobre

autoritarismo e democracia (publicados em 1975) um dos primeiros cientistas sociais a levantar questões

dessa natureza durante o regime militar” (LEHMANN, 1986, p. 33-34).

Page 272: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

281

Ao contrário do que sugere Lehmann, ao se observar a biografia de Fernando

Henrique Cardoso, constata-se que “o intelectual” e “o político” são, a rigor, inseparáveis.

Cardoso parece ter sido, weberianamente, capaz de realizar grandes feitos na ciência e na

política sem, todavia, submeter à primeira aos ditames da segunda, diferentemente do modo

como interpreta Lehman.

Fernando Henrique, sua maior liderança acadêmica e política [do Cebrap],

conseguiu “fugir” dos dois extremos geracionais algo erráticos – nem foi

“conselheiro de príncipe” exatamente (embora tenha se aventurado nessa

seara quando de suas experiências no MDB e no PMDB) e nem um

acadêmico acrítico “dominado” por visões de mundo produzidas nos países

centrais (DULCI, 2010, p. 126).

A notoriedade internacional de Cardoso (tendo ele lecionado em diversas

universidades importantes do mundo, presidido a Associação Internacional de Sociologia,

além de ter publicado textos em periódicos estrangeiros e livros com repercussão

internacional, como é o caso de Dependência e desenvolvimento na América Latina), enfim,

todo o seu cosmopolitismo, serviu como “trampolim” e fonte de legitimação para a sua

atuação como um dos líderes da oposição à ditadura militar e, depois, como líder do PSDB.

Partido esse, que, como bem observa Marcelo Dulci, é um “filho temporão” do processo de

redemocratização do país:

Aquele partido mediano, eleitoralmente sem perspectivas e já desanimado

com a própria existência, qual uma fênix, renasce das cinzas e torna-se,

talvez não a maior numericamente, mas a mais importante força política da

nação, por estar ocupando a partir daquela eleição a presidência da república

e, também, sete governos estaduais, inclusive os três principais do país. Mais

do que isso, as eleições de 1994, com a polarização PSDB versus PT, parece

ter criado um “eixo” para a política partidária brasileira, um realinhamento

em torno de dois partidos com “vocação nacional” – no sentido de

priorizarem as disputas presidenciais e projetos para o país, mais do que

questões regionais ou disputas “fisiológicas” por espaço político (2010, p.

227-228).

Como sustenta Dulci, afirmamos que não é possível compreender a ascensão desse

grupo político (assim como o cenário político brasileiro desde a década de 1970) sem levar

em consideração a trajetória pessoal, intelectual e política, de seu maior expoente – Fernando

Henrique Cardoso. Além disso, é preciso considerar que a sua obra continua a pautar as

grandes polêmicas sobre a democracia brasileira. Não se trata de uma interpretação sobre o

Brasil ultrapassada ou datada historicamente.

Para demonstrar a influência da linguagem política de Cardoso na cena pública do

país, iniciaremos o capítulo como uma breve digressão a respeito da “reforma do Estado”,

Page 273: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

282

defendida por certos setores da política brasileira, no sentido de modernizá-lo, abrindo-o à

economia capitalista internacional. Mais do que uma mera “reforma do Estado”,

argumentamos, baseando na interpretação de Colen (2001) e Dulci (2010), que a obra de

Cardoso constituiu uma linguagem atuante de defesa da refundação liberal do Estado

brasileiro, adequando-a aos ditames da lógica da economia globalizada e rompendo com uma

suposta tradição populista e patrimonialista. Não se trata meramente de modernizar a

administração do Estado brasileiro, mas de substituir os fundamentos sociais, políticos e

culturais sob os quais ele foi construído.

Em seguida, tentaremos mostrar que há na obra desse pensador um certo

desenvolvimento coerente das ideias, de tal modo que se é verdade que determinadas

preocupações estavam ausentes no início de sua trajetória intelectual (e, portanto, novas

temáticas vão ganhando destaque ao longo do tempo, como, principalmente, a do Estado), ao

mesmo tempo em que outras vão se esvaecendo (como a da escravidão), julgamos equivocado

assumir que houve uma ruptura teórica e normativa substantiva desse autor com seus escritos

anteriores, sobretudo, com o marxismo, aproximando-se, posteriormente, do cânone liberal.

Concordando com Colen (2001), Dulci (2010) e Otoni (2011) (e discordando, por exemplo,

das interpretações propostas por Lahuerta [1999] e Reis [2001]), defendemos que ainda que as

diversas correntes marxistas tenham sido fundamentais analiticamente nas obras de Cardoso,

elas não compõem decisivamente o seu campo normativo. Por isso, julgamos que Cardoso

nunca foi, mesmo em seus escritos de “juventude”, um pensador socialista, visto que o

recurso a essa tradição foi sempre “instrumental”150

. Seu horizonte político é

fundamentalmente liberal-democrático e, nesse sentido, é possível – sem descuidar das

transformações de ênfase e dos deslocamentos de problemáticas – asseverar uma unidade e

coerência teórico-normativas ao longo de sua trajetória intelectual151

.

Para realizar esses intentos, concentraremos na análise dos textos de Cardoso redigidos

e/ou publicados no fim da década de 1960 e nos anos 70. É nesse intervalo que aparecem os

textos mais fundamentais para compreensão da sua obra e que, ainda que dispostos de modo

150

Em entrevista concedida em 2009, o então presidente da República, FHC, assevera: “Bem, eu continuo a ser

de esquerda. O problema é o que você entende por ‘ser de esquerda’, e nesse sentido houve uma mudança

muito grande no mundo” (CARDOSO, 2009, p. 42, grifos nossos). Cardoso se identifica, como se vê por essa

passagem (e por outras similares), como um pensador “de esquerda”, não como um socialista, significando

com o primeiro termo ser alguém “progressista” e atento à Modernidade, o que, para ele, inviabiliza a

realização do socialismo. 151

Como não avaliaremos as políticas implementadas na “era FHC”, não temos a pretensão de demonstrar uma

coerência entre as obras teóricas de Cardoso e sua prática como presidente da República, embora esta

pesquisa sugira a plausibilidade dessa hipótese, acatando tese defendida por Célia Colen (2001) e Marcelo

Dulci (2010).

Page 274: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

283

irregular, criam uma nova interpretação da formação da democracia brasileira. Avaliaremos

basicamente três livros de sua lavra, além de alguns ensaios152

, publicados no período

mencionado: Dependência e desenvolvimento na América Latina (escrito em coautoria com o

sociólogo chileno Enzo Faletto, de 1970), O modelo político brasileiro (1972) e Autoritarismo

e democratização (1975). No caso, tantos as obras sobre a escravidão no sul do Brasil, quanto

sobre o empresariado brasileiro, formuladas em período anterior ao analisado, não serão

tratadas diretamente, dado o seu menor impacto na formação de sua linguagem e de sua

interpretação de formação da democracia brasileira153

.

Compreendemos que esses textos compõem o núcleo do pensamento de Cardoso e são

constituídos de três grandes lances argumentativos. Em cada um desses “lances”, procuramos

identificar contra quem seu discurso se dirige e, o que se percebe, é que há uma certa

recorrência de interlocutores com os quais Cardoso polemiza: setores ligados às tradições

socialista e à nacional-desenvolvimentista do país. É a partir da contraposição a essas

tradições que a sua linguagem liberal-democrática é criada e sua interpretação do Brasil é

forjada. A diferenciação analítica entre três “lances”, além de realçar a intenção do discurso

proferido, pretende designar momentos relativamente diferenciados da trajetória intelectual de

Cardoso, em que a exposição original de sua “teoria da dependência” se desdobra em novas

polêmicas e temáticas antes ausentes, mas relacionadas à sua preocupação primeira154

. Como

a obra de Cardoso é quase completamente ensaística, quer dizer, composta de artigos e

trabalhos redigidos em períodos distintos e reunidos em livros, esses “momentos” não

representam marcos precisos da trajetória intelectual desse autor.155

Primeiramente isso se dá mediante a exposição da sua “teoria da dependência”, na

qual Cardoso critica fortemente as principais correntes intelectuais de seu tempo: o nacional-

152

Os ensaios avaliados são “As desventuras da dialética da dependência”, escrito em 1978 com José Serra e “Os

impasses do regime autoritário brasileiro”, de 1979. 153

Consultaram-se pontualmente obras publicadas posteriormente a esse período (além de alguns estudos de

comentadores da obra de Cardoso) apenas para indicar que Cardoso continuava basicamente a pensar

segundo as ideias desenvolvidas por ele até os anos 70. 154

A rigor o primeiro e o segundo “lance” discursivo desse autor ocorrem quase que concomitantemente, na

medida em que estão profundamente associados à formulação da sua versão da “teoria da dependência”. 155

Célia Colen também propõe uma periodização da obra de Cardoso em “três fases”, mas compreendendo um

período parcialmente diferente do aqui analisado e, portanto, com outros significados. A sua periodização

inicia-se após a publicação do livro de Cardoso com Faletto e termina com textos publicados no final da

década de 80. A primeira fase seria composta de textos de análise do regime militar e do desenvolvimento

dependente-associado; a segunda, identificada com o fim do milagre econômico, no qual Cardoso assume

uma postura mais crítica em relação ao modelo de desenvolvimento e de discussão da abertura democrática; a

terceira fase estaria relacionada com a perspectiva do autor de elaboração de um projeto socialdemocrata e

de defesa da adequação do país à globalização (Cf. COLEN, 2001, p. 82).

Page 275: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

284

desenvolvimentismo – a CEPAL, o PCB156

e o ISEB. Cardoso, membro integrante a essa

época da primeira instituição, escreve Dependência e desenvolvimento na América Latina

para precisamente criticar não só a CEPAL, como todas as outras correntes da política

brasileira que são julgadas por ele como anacrônicas e incapazes de avaliar as novas

condições de desenvolvimento do capitalismo na América Latina, na medida em que ainda se

baseiam no conceito de nação. A “dependência” nasce a partir, mas também contra a ideia de

“subdesenvolvimento” que animava parte da intelectualidade latino-americana até então. A

dependência será afirmada como um conceito mais realista e menos economicista do que a

ideia antes mencionada. Contribuiu para a consolidação desse novo conceito o fato que após

o golpe de 1964, Celso Furtado, maior teórico do subdesenvolvimento brasileiro, tenha

apostado erroneamente no retrocesso econômico do país sob o comando dos militares. Ao

contrário dessa ideia, Cardoso defende a viabilidade do desenvolvimento do país sob uma

situação de dependência do capital estrangeiro, ao que ele chamaria em textos ulteriores a

1970 de “desenvolvimento dependente-associado”.

O segundo “movimento” fundamental da trajetória intelectual de Fernando Henrique

Cardoso consiste na polêmica desse autor com outras “versões” da teoria da dependência,

como as formuladas por André Gunder Franck, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos –

essas sim, linguagens políticas rigorosamente socialistas – mas que são obscurecidas pela

força retórica da linguagem de Cardoso, o que ocorre, em certa medida, por conta do contexto

brasileiro do chamado “milagre econômico”, no qual o capitalismo nacional parecia realmente

se desenvolver nas circunstâncias previstas pelo autor, isto é, de associação com o capital

estrangeiro e sob a tutela do Estado “burocrático-autoritário”. Em relação ao seu passado, é

notório que a atenção de Cardoso caminha cada vez mais da análise das relações

socioeconômicas (sobretudo quando se compara aos seus estudos sobre a escravidão e sobre o

empresariado brasileiro, anteriores a 1970), para a análise do Estado, enquanto aparato

importante para viabilizar a integração do país no capitalismo internacional. Nesse sentido,

entendemos que a dimensão político-institucional vai adquirindo uma centralidade antes

inexistente na obra de Cardoso, importante para a formulação, a posteriori, de seu projeto

democrático de refundação do Estado brasileiro.

Na polêmica supracitada com os dependentistas marxistas, Cardoso afirma que o

156

Lahuerta relembra que a polêmica de Cardoso com o PCB é anterior a 1970. Nos anos ainda do “Seminário

Marx” (que daria origem depois ao CEBRAP), Cardoso realiza uma pesquisa, em parceria com Florestan

Fernandes, sobre a escravidão no Rio Grande do Sul (1962), e polemiza com o PCB, para quem o escravismo

era uma variante do modo de produção feudal. Cardoso, ao contrário, assevera que “o escravismo fora um

componente decisivo do processo mundial de acumulação do capital” (LAHUERTA, 1999, p. 70).

Page 276: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

285

Estado brasileiro pós-1964 não pode ser caracterizado, a rigor, como fascista, visto que não se

baseia na mobilização de massas e num partido único e é, economicamente, modernizador. A

ditadura militar, ao fazer o país crescer em associação com a burguesia internacional, teve o

mérito, na opinião de F. H. Cardoso, de “enterrar” o ideário nacional-desenvolvimentista,

viabilizando, posteriormente, a emergência de um novo paradigma político para o país.

Mesmo negando as teses “fatalistas” (fascismo e estagnação) dos dependentistas marxistas e

reconhecendo aspectos positivos do governo autoritário brasileiro (a modernização

econômica), esse autor critica a ditadura pelo seu caráter politicamente repressivo e

socialmente injusto, uma vez que o crescimento econômico é acompanhado de uma

concentração na renda média dos brasileiros.

Se no primeiro “movimento” argumentativo de Cardoso o que importa é desconstruir o

nacional-desenvolvimentismo como projeto político e econômico para o país, nesse segundo

lance importa combater a ideia de que o país necessitava de uma revolução socialista para

superar os entraves ao desenvolvimento do país, podendo, na sua opinião, progredir via

democratização do Estado autoritário e manutenção das diretrizes do modelo econômico,

desde que acompanhada, no último caso, de medidas de redistribuição de renda.

A discussão acerca do regime autoritário brasileiro encaminha Cardoso para o seu

terceiro “lance argumentativo”: a formulação de seu projeto de democratização do Brasil, o

que ocorreria através do fortalecimento da sociedade civil. Restabelecimento das liberdades

individuais básicas, da liberdade de imprensa, do pluralismo partidário, etc. – essa é,

sinteticamente, a pauta política formulada por esse autor e que vai ter significativa influência

nos meios intelectuais e políticos. Além disso, e em conformidade com o que ele já defendia

desde a primeira “fase”, Cardoso assevera a necessidade de “modernizar” o país, abrindo sua

economia para o mercado internacional e racionalizando o aparato estatal (contra uma suposta

tradição patrimonialista), em resumo, refundando-o sobre bases liberais.

Por meio desses três “lances argumentativos”, pode-se constatar a criação de uma

linguagem própria a respeito da formação da democracia no Brasil, em franca polêmica com

algumas das mais importantes e influentes correntes do pensamento político brasileiro.

Concordamos com Lahuerta quando afirma que havia, não só Cardoso, mas a intelectualidade

paulista como um todo (sobretudo, organizada no CEBRAP), tinha o intento de formular uma

“nova interpretação do Brasil”, rompendo com:

O viés terceiro-mundista, a ideia do Estado paternalista, o revolucionarismo

(bravo, mas ineficiente), assumindo a participação nas instituições da

sociedade civil como caminho para se democratizar e substituir a forma do

Estado autoritária (LAHUERTA, 2001, p. 69).

Page 277: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

286

Pode-se dizer que em todos os três momentos de sua trajetória, Cardoso consegue se

destacar na cena intelectual brasileira, influenciando boa parte do debate político e acadêmico

do país, tal como avalia, novamente de modo apropriado, Milton Lahuerta:

Fernando Henrique Cardoso, mais uma vez, teria papel de destaque no

questionamento de teses consagradas: primeiramente com a formulação da

teoria da dependência; depois com a aceitação do caráter modernizador do

ponto de vista econômico do regime militar (ainda que tomando todas as

precauções retóricas para não ser mal compreendido, ele chega a qualificá-lo

como “revolucionário em termos econômicos”); por fim, com a formulação

da teoria do autoritarismo, que impunha o primado conceitual e

protagonismo político da sociedade civil (2001, p. 73).

Há, como se disse, ao longo dessa trajetória, algumas variações temáticas (transitando

da análise da burguesia brasileira à do caráter do autoritarismo brasileiro, e desse para o tema

da democratização) e também de ênfase: nas primeiras obras, um referencial eclético

(marxista do ponto de vista analítico e liberal, normativamente), ao passo, que nas últimas

obras do período aqui estudo um referencial preponderantemente liberal (tanto analítica

quanto normativamente). Apesar dessas oscilações há também uma unidade normativa ao

longo de sua obra: a necessidade de se criar uma sociedade liberal e burguesa no país,

reformar o Estado segundo essa diretriz, democratizando-o, nos termos limitados pelo

processo de globalização (ou, como chamará no final da década de 70, de

“internacionalização do mercado interno”).

Na obra de Cardoso, em suas três fases, a categoria de nação é sistematicamente

“exorcizada”. Trata-se, na realidade, de uma obra que representa uma certa tradição uspiana,

compartilhada por muitos intelectuais de sua geração. Como observa Lahuerta, nos anos de

1970 tem-se uma inflexão no pensamento brasileiro: se rompe fortemente com a cultura

política dos anos 50-60 (qualificada como “populista”, “autoritária” e “ultrapassada”),

consolidando-se, sobretudo, na obra de Cardoso uma “nova interpretação do Brasil”, em que

se focam as “novas modalidades de estruturação da ‘sociedade civil’, mais autônomas em

relação ao Estado” (2001, p. 66). Cardoso é, destarte, um intelectual expressivo do momento

de transição do pensamento brasileiro do século XX, em que a crítica à categoria conceitual

de nação favoreceu a emergência da temática da democracia157

.

157

Sobre isso, Fernando Goto observa: “o ‘eixo orientador do pensamento crítico até 1964, recorda Fernando

Henrique, foi o nacionalismo desenvolvimentista sustentado tanto pelo ISEB (Instituto Superior de Estudos

Brasileiros) como pelo Partido Comunista – apesar de seus ‘ziguezagues e inconsistências’. A posição

contrária esteve ligada à ‘tendência acadêmica predominante nas seções de ciências humanas e filosofia da

Universidade de S. Paulo e especialmente o ‘círculo do seminário de Marx’ então em funcionamento” (1998,

Page 278: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

287

Defendemos a ideia de que a obra de Fernando Henrique Cardoso foi capaz de

reatualizar o liberalismo político brasileiro após a ditadura militar – liberalismo esse

associado a uma política conservadora e autoritária, frequentemente vinculadas a UDN

(União Democrática Nacional) e, posteriormente, a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) –

configurando-a enquanto uma linguagem política cosmopolita e democrática. Mas se a

contribuição de Cardoso nesse sentido é inegável e digna de destaque, parece-nos também que

essa mesma linguagem mostra-se próxima às vertentes contemporâneas do liberalismo

conservador, como o neoliberalismo, ainda que não possa ser totalmente identificada com

elas. Progressista no campo dos costumes e dos direitos civis (sendo Cardoso, por exemplo,

um defensor da legalização das drogas e da união homoafetiva), o autor, entretanto, formula

uma linguagem crítica e alternativa ao republicanismo, na medida em que se dissocia a

liberdade da soberania nacional e retira do Estado democrático a função precípua de

promover a liberdade e a igualdade, relegando aos indivíduos e ao mercado globalizado a

realização de tais resultados. Nesse sentido, a análise da obra de Cardoso nos fará refletir mais

uma vez acerca do embate entre as tradições republicana e liberal e de seus desdobramentos

para a democracia brasileira contemporânea.

Obviamente que não se tem a pretensão de se contrastar o pensamento político de

Cardoso com o seu governo como presidente do país. Em poucas palavras, não avaliaremos as

políticas adotadas na “era FHC”. No entanto, espera-se que essa análise – um pouco mais

atenta para a presença política de sua obra, enquanto linguagem influente na ação de diversos

setores da política brasileira – possa contribuir para aqueles que queiram compreender os

rumos da política nacional sem descurar das linguagens que a formam.

Após esse pequeno introito (necessário, dada a peculiaridade que constitui a obra de

Cardoso), passemos agora à análise ao debate em que sua linguagem política exerce

inequívoca influência, isto é, sobre a “reforma” do Estado brasileiro. Esse debate pode ser

abordado de diversos modos: antes mesmo já discutimos a associação entre corrupção e

reforma estatal (no capítulo dedicado à obra de Faoro), assim como as supostas deficiências

de nossa democracia e a reforma política (quando tratamos da obra de Wanderley G. dos

Santos). Em grande medida essas duas dimensões podem ser reportadas a uma proposta mais

ampla de refundação do Estado brasileiro. Sobre essa interpretação específica apoiamos-nos

no rico trabalho de Célia Colen:

p. 45).

Page 279: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

288

A utilização do termo refundação liberal justifica-se pela amplitude e

profundidade das mudanças ocorridas nos fundamentos que deram as bases

históricas do estado no Brasil. O conjunto de reformas iniciadas no governo

Collor e consolidadas no governo Fernando Henrique Cardoso modifica o

papel do Estado e redefine suas dimensões fundamentais: as relações do

Estado com o sistema capitalista mundial são alteradas pela abertura

comercial e pela desregulamentação dos fluxos financeiros; a relação entre o

Estado e o mercado é alterada pela reforma patrimonial, marcadamente a

privatização, bem como pela redefinição do que é estatal e privado, retirando

do Estado setores-chave da produção e da prestação de serviços básicos; o

controle democrático entre os poderes e entre as unidades federativas é

enfraquecido pela excessiva atividade legislativa do Executivo e pela

recentralização de recursos no âmbito federal; por fim, a definição dos

direitos e deveres dos cidadãos sofre profunda alteração no sentido da

diminuição dos direitos sociais e trabalhistas, consagrados pela CLT e pela

Constituição (2001, p. 7).

Como se vê, não se trata de uma reformulação pontual do papel do Estado no Brasil,

mas sim de um conjunto de reformas que redefinem totalmente suas áreas de atuação, suas

finalidades, etc. Colen adjetiva esse processo de liberal na medida em que ele se baseia no

pressuposto de uma maior adequação da vida social quando organizada segundo os princípios

da racionalidade competitiva, da eficiência, supostamente, próprias ao mercado. Segundo essa

concepção, o Estado deve ter sua intervenção e seus gastos drasticamente limitados e

redirecionados.

O próprio processo de democratização do país ensejou, a partir dos anos 90, que se

desse uma maior atenção à dimensão institucional da política, reivindicando, por exemplo,

que as políticas públicas prezassem pela “descentralização, participação e transparência”

(idem, ibidem, p. 8). O tema da “reforma do Estado” tornou-se, por assim dizer, um dos

pontos centrais do debate público brasileiro no final do século XX e início do XXI.

Colen lembra também (como já afirmamos aqui) que a concomitância entre o processo

de redemocratização brasileira e a consolidação do neoliberalismo como linguagem política

hegemônica no mundo nos anos 80, fez com que boa parte desse debate fosse influenciada no

sentido de se garantir o “insulamento burocrático do Estado com o objetivo de preservar o

princípio da racionalidade econômica nas demandas sociais” (idem, ibidem, p. 8). Isso não

significa, é importante dizer, que se defendia a não intervenção do Estado: contra uma

vulgarização corrente do neoliberalismo, o que essa linguagem política advoga, com efeito, é

uma intervenção seletiva e orientada do Estado, isto é, que subordina a esfera estatal e o

interesse público à lógica da economia capitalista e que dá suporte a ela.

Outro aspecto desse debate lembrado pela autora é que o imperativo corrente de se

“reformar” o Estado (ainda que não houvesse tanta clareza acerca de qual seria o novo modelo

Page 280: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

289

de Estado), veio acompanhado da defesa de que os entraves ao desenvolvimento econômico,

político e social do país estavam associados ao legado do Estado desenvolvimentista.

Nesse contexto, uma reforma institucional do Estado deveria buscar: maior

participação do capital privado nos serviços público; maior envolvimento da

sociedade na elaboração e controle das políticas públicas; terceirização,

descentralização e privatização de certas atividades (COLEN, op.cit., p. 9).

A fim de se superar a “crise do Estado”, Luiz Carlos Bresser Pereira, ministro da

Administração Federal e da Reforma do Estado do primeiro governo de Fernando Henrique

Cardoso, explica:

Reformar o Estado significa superar de vez a crise fiscal, de forma que o país

volte a apresentar uma poupança pública que lhe permita estabilizar

solidamente os preços e financiar os investimentos. Significa completar a

mudança na intervenção do Estado no plano econômico e social, através de

reformas voltadas para o mercado e para a justiça social. Reformar o Estado

significa, finalmente, rever a estrutura do aparelho estatal e do seu pessoal, a

partir de uma crítica não apenas das velhas práticas patrimonialistas ou

clientelistas, mas também do modelo burocrático clássico, com o objetivo de

tornar seus serviços mais baratos e de melhor qualidade (BRESSER

PEREIRA, 1995, p. 1).

Como se vê, Bresser associa os problemas fiscais e inflacionários à “crise do Estado”,

isto é, argumentando, enquanto ministro, em consonância com boa parte do debate travado

nos anos 90 na Ciência Política. A convergência de opiniões (sobre a necessidade imperiosa

de se reformar o Estado brasileiro) não é aleatória, demonstrando como as linguagens liberais

conseguiram se enraizar no debate público nacional com relativo respaldo do discurso

científico. O ponto principal de defesa da reforma do Estado é o de erradicar o clientelismo e

o patrimonialismo que, segundo essa visão, grassam no Brasil.

Bresser divide essa crise em quatro dimensões: a primeira é de ordem fiscal,

decorrente da diminuição do crédito e da poupança públicas. Ele reporta essa crise ao

“esgotamento do modelo protecionista de substituição de importações, que foi bem sucedido

nos anos de 1930, 1940, 1950, mas que deixou de sê-lo há muito tempo” (idem, ibidem, p. 2).

A segunda crise “se expressa também no fracasso em criar um Estado de bem-estar social no

Brasil” (idem, ibidem, p. 2). Percebe-se, a partir dessas duas dimensões, como o discurso de

Bresser se contrapõe às tradições do liberalismo cívico e do republicanismo. A terceira crise

diz respeito ao “aparelho estatal”, marcado por baixo profissionalismo e pelo clientelismo,

gerando baixa qualidade dos serviços prestados pelo Estado. Para ele, burocracia brasileira,

formada na Era Vargas, ainda padece de rigidez e centralização; contra isso, ele propõe uma

burocracia mais moderna, flexível nos moldes como foi empregado no governo de Bill

Clinton nos Estados Unidos (idem, ibidem, p.3). A conspícua declaração de Cardoso de que o

Page 281: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

290

seu governo pretendia “acabar com a Era Vargas” converge, obviamente, com esse

diagnóstico. A quarta crise, de natureza mais política, está associada ao fim do “pacto

burocrático-capitalista” instituído pelo golpe de 1964 e que começa a entrar em decadência na

década de 1970. As “Diretas Já” representariam precisamente a derrocada desse pacto político

e o início de uma nova era, de maior protagonismo da sociedade civil. Somente essa quarta

crise do Estado teria sido solucionada adequadamente, restando, então, complementar a

“reforma do Estado” em seus outros sentidos, o que não teria sido feito por se continuar ainda

pensando segundo moldes dos anos 1930-50, vivendo, lamenta-se Bresser, uma “euforia

populista” (idem, ibidem, p. 2).

À ideia de uma “crise do Estado brasileiro”, produzida pelo esgotamento e a

inviabilidade dos projetos de soberania nacional através da atuação sistemática e planejada do

Estado na promoção do desenvolvimento, Bresser Pereira propõe a realização de uma

“reforma gerencial da administração pública brasileira” (BRESSER PEREIRA, 2000, p. 55).

Tanto o diagnóstico, quanto o prognóstico daquele que foi, supostamente, responsável

por realizar a “reforma gerencial”, não podem ser devidamente compreendidos sem referência

à obra teórica e política de Fernando Henrique Cardoso. É desse autor a linguagem política

matricial que forma boa parte a discussão acerca da “reforma do Estado”, da qual se apropria

Bresser Pereira e, que, a rigor, envolve mais mudanças do que transparece o seu discurso,

como se consistisse apenas numa modernização e racionalização da máquina pública

brasileira. Mas que linguagem é essa formulada por Cardoso do ponto de vista da Teoria

Política? Quais são as suas consequências no que tange à liberdade do cidadão na

modernidade e, particularmente, no caso brasileiro? Para se responder a essas indagações, faz-

se necessário a análise da obra de Fernando Henrique Cardoso, segundo a divisão antes

proposta.

6.1 – Dependência versus nacional-desenvolvimentismo: a polêmica original

Nesta seção nos ocuparemos em avaliar como e porque surgiu a “teoria da

dependência” no contexto dos anos 60, contrastando, posteriormente, a versão de F. H.

Cardoso dessa “teoria” com as tradições nacional-desenvolvimentistas do país,

particularmente a de origem cepalina, que possuíam grande influência nos meios intelectual e

político brasileiros.

Como observa Pedro Otoni, “a teorização sobre a dependência encontrava-se difusa

Page 282: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

291

entre os estudiosos do imperialismo” e foi mais sistematicamente trabalhada por intelectuais

ao longo do século XX, que tinham como preocupação central não mais simplesmente a

análise do colonialismo, mas “as relações entre centro e periferia” sob a ótica da “hegemonia

geopolítica” (2011, p. 17). Não nos interessa aqui identificar com precisão a origem do

conceito de dependência. Fato é que antes de André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini,

Theotônio dos Santos e Cardoso – os dependentistas mais conhecidos – vários autores já

haviam recorrido, mesmo genericamente, à noção de “dependência” a fim de avaliar a

inserção do continente americano no mercado mundial, e todos eles, apesar das divergências,

estão “imersos” no campo teórico do marxismo (ainda que, em alguns casos, viessem a

discordar ou polemizar com esse próprio campo, como é o caso de Cardoso).158

Como

lembram adequadamente Pécaut (1990) e Lahuerta (1999), um certo “marxismo difuso”

funcionou como “linguagem corrente” nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo,

universitários, isto é, como “clima” intelectual e político dos anos 60-70.

Otoni diferencia três grandes gerações de estudo da questão do imperialismo,

percorrendo todo o século XX, que se desdobraria, na terceira geração, na “Escola da

Dependência”. A primeira geração (John Hobson, Rosa Luxemburgo, Lênin, Mariátegui,

Haya de la Torre, etc.) tinha como desiderato investigar as consequências políticas do

capitalismo monopolista. A segunda (Paul Baran, Paul Sweezy, Caio Prado Jr., etc.), “se

orientou pela análise das implicações do imperialismo (capitalismo monopólico) para o

desenvolvimento, o que levou à formulação do conceito de subdesenvolvimento” (OTONI,

2011, p. 83). A terceira geração (Frank, Marini, Cardoso, Santos), formada no contexto do

capitalismo periférico e latino-americano nas décadas de 1960 e 70, é organizada em torno à

crítica ao nacional-desenvolvimentismo e é ela que, a rigor, sistematiza o conceito de

dependência.

Otoni destaca que a “Escola da Dependência” surge relacionada à discussão acerca do

desenvolvimento da América Latina, dominante nos anos 1950. Do mesmo modo, Kátia

Baptista assinala que o conceito de dependência vai gradualmente adquirindo status científico

a partir dos anos de 1960, isto é, no contexto da crise da tradição nacional-

desenvolvimentista. O fim da experiência democrática em muitos países latino-americanos a

essa época, como o Brasil em 1964, além do “esgotamento do modelo econômico de

substituição de importações” (tal como foi identificado por alguns autores), sobretudo, no que

158

Sobre a relação entre os estudos sobre o imperialismo e a gestação da “teoria da dependência”, a melhor

indicação bibliográfica é Otoni (2011), que junto à obra de Baptista (2004) nos serviu como principais

referências para discussão desta seção.

Page 283: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

292

se refere à possibilidade de se promover desconcentração de renda via industrialização do

país, sugeria “a inviabilidade do modelo desenvolvimentista independente e nacionalista da

CEPAL e a impossibilidade de realização de uma revolução democrático-burguesa, como

pretendia a esquerda” (BAPTISTA, 2004, p. 72).

Além da CEPAL, Baptista destaca a polêmica de alguns dependentistas com o PCB

(Partido Comunista Brasileiro), que alterou seu tradicional posicionamento político de

confronto direto e revolucionário com a Declaração de Março de 1958159

, e vai, doravante,

adotar uma postura de defesa de uma aliança entre, de um lado, o operariado e os camponeses

e, de outro, a burguesia nacional, a fim de promover uma revolução de caráter democrático-

burguesa no país, etapa primeira da revolução socialista a ser realizada a posteriori160

. Assim,

no fim dos anos 1950 o principal partido de esquerda brasileiro adotava uma posição muito

próxima aos nacional-desenvolvimentistas, incorporando a ideia de construção nacional e da

democracia burguesa como metas de curto prazo a serem buscadas politicamente.

Além da CEPAL e do PCB é preciso destacar a presença do ISEB como influente

centro de pensamento político dessa época e difusor do nacional-desenvolvimentismo. Essa

instituição, na opinião de Pécaut, é um verdadeiro símbolo da síntese nacional-

desenvolvimentista dos anos 1950 e 60, e tinha como meta “formular o ‘sentimento das

massas’” e, através da análise crítica da realidade nacional, “inventar a ideologia que iria

presidir a revolução brasileira” (1990, p. 104).

Como nota Otoni, ainda que houvesse certas diferenças, havia também uma forte

convergência teórica e política entre essas três instituições161

: todas elas partiam da concepção

de que era preciso superar o pré-capitalismo e o subdesenvolvimento brasileiro, decorrente de

nossa formação colonial e da resistência dos setores mais “atrasados” do sistema econômico

nacional (os latifundiários, em particular), e de que essa superação exigia uma aliança

estratégica com a burguesia nacional. A respeito da intelectualidade paulista (da qual faz parte

o autor aqui estudado), Lahuerta resume bem esse ponto:

159

Em 1956 ocorreu na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas o XX Congresso do PCURSS, conhecido

pela leitura do relatório de Nikita Kruschev, no qual se fazia sérias acusações contra o regime comunista e o

seu ex-dirigente, então recentemente falecido, Joseph Stalin. 160

Essa posição do PCB ficaria conhecida como “gradualista reformista”, na medida em que se concebe o

capitalismo e o Estado burguês como “‘antesala’ (sic) do socialismo” (BAPTISTA, 2004, p. 26). 161

Destaca-se, no caso, mais a posição ideológica majoritária dessas instituições, o que não significa que não

houvesse posições críticas em relação a ela. Em capítulo anterior, por exemplo, já avaliamos como a obra de

Furtado se diferenciava, por diversos aspectos, da tradição nacional-desenvolvimentista do período e da

Cepal, instituição da qual fez parte. O mesmo deveria ser dito a respeito do PCB e de intelectuais como Caio

Prado Jr., que era profundamente crítico à posição hegemônica desse partido. Sobre o ISEB, é notória a

divergência interna nessa instituição, como o caso conhecido da relação entre Guerreiro Ramos e Hélio

Jaguaribe a respeito do projeto nacional.

Page 284: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

293

Portanto, esses intelectuais tiveram que se defrontar com a ideia-força que

organizava o debate intelectual no início dos anos 60 e que estava permeada

pela ideia de que o processo de industrialização do país era subordinado e

bloqueado pelos interesses dos países industrializados e que só seria possível

através de uma aliança de classes comandada pela burguesia e sob a égide do

Estado desenvolver um projeto nacional autônomo. Nas várias versões,

tratava-se de uma contradição entre a Nação e o imperialismo (PCB), entre

nação e a anti-nação (ISEB), entre centro e periferia (CEPAL) (1999, p. 73).

É nesse contexto discursivo (parole) que Cardoso dá o seu primeiro “lance”

argumentativo, com o livro Desenvolvimento e dependência na América Latina, escrito em

coautoria com o chileno Enzo Faletto. É ela que apresenta a visão mais acabada do autor a

respeito desse tema, além de artigos redigidos, posteriormente, como esclarecimento ou como

resposta a críticas à sua versão da “teoria da dependência”.

Em primeiro lugar, cumpre anotar que Cardoso, com frequência, salientou que não

pretendia formular, a rigor, uma “teoria”, isto é, uma generalização sobre todas as situações de

dependência. Em texto redigido em 1970, mas publicado somente dois anos mais tarde162

,

Cardoso atesta: “não se postula (...) o conceito de dependência como ‘totalizante’”, e adiante

acrescenta: “evidentemente, não há qualquer proveito, a partir daí, em substituir simplesmente

‘o Imperialismo’ por outra enteléquia, ‘a Dependência’” (1972, p. 125-126). A dependência

não constituiria, assim, propriamente uma teoria, “não sendo mais do que a expressão política,

na periferia, do modo de produção capitalista quando este é levado à expansão internacional”

(idem, ibidem, p. 128).

A intenção dos autores é que o conceito de dependência deve estar associado a análises

da realidade particular e concreta de cada país. Ele afirma: “(...) se houve algum progresso na

análise da dependência foi a de haver particularizado situações de dependência, constituídas

sempre pensando a relação interno-externo” (idem, ibidem, p. 130, ênfases do autor). Não

sendo uma “teoria”, Cardoso adverte, então, que o livro tinha um escopo mais limitado:

O objetivo do livro, bem mais modesto, é esclarecer alguns pontos

controvertidos sobre (sic) as condições, possibilidades e formas do

desenvolvimento econômico em países que mantêm relações de dependência

com os pólos (sic) hegemônicos do sistema capitalista, mas ao mesmo

tempo, constituíram-se como Nações e organizaram Estados Nacionais que,

como todo Estado, aspiram à soberania. Por outro lado, procurou-se mostrar,

implicitamente, que falar da América Latina sem especificar dentro dela as

diferenças de estrutura e de história constitui um equívoco teórico de

consequências práticas e perigosas (CARDOSO & FALETTO, 1970, p. 7).

162

O texto é “‘Teoria da dependência’ ou análises concretas de situações de dependência?”, redigido em resposta

a um escrito de Francisco Weffort de crítica à “teoria da dependência” de Cardoso. Ele saiu publicado na

Revista Estudos CEBRAP, e também na obra aqui consultada, O Modelo político brasileiro (1972).

Page 285: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

294

Assim, contra visões excessivamente genéricas, Cardoso e Faletto asseveram a

necessidade de se avaliar as condições específicas e concretas de desenvolvimento do

capitalismo em cada país. É por isso que ao longo da obra os autores discriminam dois tipos

de situação de dependência na América Latina, como as “economias de enclave” e as

situações nas quais há um “controle nacional do sistema exportador”, além de diversos tipos

de arranjos políticos a caracterizar as “situações de dependência”. Retrospectivamente, o autor

pondera:

Como já se disse, se alguma vantagem teórico-metodológica existe na

análise que fizemos das situações de dependência, essa parece-me ter sido a

de caminhar no sentido de maior concreticidade. Não falamos da

dependência em geral, mas de situações de dependência. Dependência na

fase de constituição do Estado nacional e de formação de uma burguesia

exportadora, dependência na situação de enclave e dependência na etapa de

internacionalização do mercado na fase de formação de economias

periféricas. Subdividimos ainda mais estas “fases”, mostrando que não

constituem etapas, mas formações sociais específicas que supõem, às vezes,

arranjos particulares que contêm a existência das três situações, embora

sempre estruturadas de forma sobredeterminada (CARDOSO, 1972, p. 136,

ênfases do autor).

O livro Desenvolvimento e dependência na América Latina parte da análise das

condições de possibilidade do modelo de desenvolvimento autossustentado, implementado em

algumas nações da América Latina (como Argentina, México, Chile e Brasil) após a crise de

1929, e que será conhecido como de “substituição de importações”. Esse modelo, tal como se

achava consolidado nos anos 50, tinha propiciado uma base industrial razoável, um mercado

interno para consumo dos produtos industriais, “uma abundante fonte de divisas constituída

pela exploração agropecuária e mineira”, “fortes estímulos para o crescimento econômico” e a

“existência de uma taxa satisfatória de formação interna de capitais”, reconhecem os autores

(CARDOSO & FALETTO, 1970, p. 10-11).

Além disso, aliado a esse processo, ocorreu a consolidação de instrumentos do poder

estatal como meio de proteção das economias nacionais, compreendidos como requisito

necessário para a consecução do desenvolvimento. Trata-se, como frisam os autores, de “um

tipo de desenvolvimento eminentemente nacional” (idem, ibidem, p. 12), fomentado por um

Estado forte, e que propiciava um clima de otimismo, como se finalmente fosse possível

romper com a condição de subdesenvolvimento desses países.

No entanto, o sonho nacional-desenvolvimentista durou pouco, afirmam eles: “essa

perspectiva otimista vem-se desvanecendo desde fins da década de 1950” (idem, ibidem, p.

12). Os autores identificam na redução gradual da taxa de crescimento desses países, na

Page 286: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

295

incapacidade de desenvolver certos setores da economia (mesmo em condições de elevado

crescimento, mas ainda marcados pelo uso de tecnologias ultrapassadas), na imobilidade da

desigualdade da distribuição de renda, na crescente entrada de capitais estrangeiros nesses

países elementos, e, principalmente, no próprio golpe de 64, elementos que contestavam as

hipóteses da tradição nacional-desenvolvimentista. Os autores, então se perguntam:

Não terão sido os fatôres (sic) inscritos na estrutura social brasileira, o jôgo

(sic) das forças políticas e sociais que atuaram na década

‘desenvolvimentista’, os responsáveis tanto do resultado favorável como da

perda do impulso posterior do processo brasileiro de desenvolvimento?

(idem, ibidem, p. 14).

José Carlos Reis apresenta um bom panorama do que representou a “teoria da

dependência” de Cardoso, em comparação com as linguagens concorrentes do nacional-

desenvolvimentismo, assumindo, no caso, que ela significou um avanço intelectual e político

em relação a elas.

A interpretação da nova dependência reconhece que houve um pacto

populista e nacionalista e admite que houve uma industrialização

substituidora de importações produzida por uma burguesia autônoma em

tensão com as oligarquias. Essa era a realidade brasileira nos anos 1930-50,

que sustentou a interpretação nacional-burguesa e o seu projeto democrático-

burguês. Se a teoria se equivocou, não se pode afirmar que ela não tinha base

histórica, que delirava e se iludia completamente. Ela tinha elementos

concretos com os quais pensava. Só era otimista demais em relação à

autonomia da burguesia brasileira e ao caráter nacionalista do seu projeto

social. Otimismo que lhe custou a derrota e a frustração (REIS, 2001, p. 242-

243).

O sentido fundamental da argumentação de Cardoso e Faletto é que a visão

desenvolvimentista estava equivocada principalmente por se tratar de uma visão estritamente

“econômica” do desenvolvimento. Contra o economicismo reinante – tanto nas concepções da

CEPAL quanto de parte da esquerda brasileira (como em alguns dependentistas a serem

avaliados a seguir) – é que os autores reivindicam uma “análise integrada” para pensar os

limites do projeto desenvolvimentista. Eles entendiam que era necessário superar essa forma

de entendimento dominante também pela necessidade de se compreender politicamente o

processo de desenvolvimento. Importa saber, em suma, como:

(...) uma classe ou grupo econômico tenta estabelecer um sistema de relações

sociais que lhe permita impor ao conjunto da sociedade um modo de

produção próprio, ou pelo menos tenta estabelecer alianças ou subordinar os

demais grupos ou classes com o fim de desenvolver uma forma econômica

compatível com seus interêsses (sic) e objetivos (CARDOSO & FALETTO,

1970, p. 23).

Page 287: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

296

Trata-se, como se vê, de reivindicar (contra o suposto economicismo corrente na

tradição nacional-desenvolvimentista, em suas diversas vertentes) uma “interpretação global”

que, por um lado, leve em consideração os diferentes tipos singulares de situação de

dependência e, de outro lado, considere as conexões entre as estruturas econômica, social e

política. Nesse sentido, os autores fazem questão de demarcar a diferença essencial entre os

conceitos de “dependência” e de “subdesenvolvimento”: enquanto o primeiro alude “às

condições de existência e funcionamento do sistema econômico e do sistema político”, o

segundo apenas “caracteriza um estado ou grau de diferenciação do sistema produtivo” (idem,

ibidem, p. 27).

Os autores criticam os esquemas conceituais utilizados na análise do desenvolvimento

do capitalismo na América Latina e que se baseiam na diferenciação estanque entre

“sociedades tradicionais” e “sociedades modernas”. Parte-se de um “dualismo estrutural”,

uma simplificação como se subdesenvolvimento significasse a permanência de traços das

sociedades tradicionais, e desenvolvimento, a substituição dos primeiros por traços das

sociedades modernas. Como eles advertem, não há uma relação necessária entre

desenvolvimento e modernização: assim uma sociedade pode se modernizar (por exemplo, no

seu padrão de consumo), sem que o país deixe de ser dependente no sistema capitalista

internacional. Não se deve pensar o futuro das nações subdesenvolvidas como uma repetição

do passado das nações desenvolvidas163

.

Eles afirmam que a tradicional noção de subdesenvolvimento está, em geral, atrelada à

ideia de que as economias centrais do capitalismo acabam por determinar plenamente a

dinâmica de desenvolvimentos dos países periféricos. Contra essa forma de determinismo (na

qual fatores externos impõem mecanicamente uma dinâmica interna às nações dependentes),

os autores afirmam que o conceito de dependência, ao contrário:

Significa que não se deve considerá-la como uma “variável externa”, mas

que é possível analisá-la a partir da configuração do sistema de relações

entre as diferentes classes sociais no âmbito mesmo das nações dependentes

(idem, ibidem, p. 31).

Como comenta Lahuerta, trata-se da “dialética do interno e do externo” revindicada

por eles, isto é, a “recusa em separar, mesmo analiticamente, o ‘externo’ e o ‘interno’”, e que

permite a Cardoso e Faletto considerarem a luta política interna como variável decisiva no

modo particular que o desenvolvimento assume em cada país, é uma grande contribuição

163

Ao contrário do que sugerem Cardoso e Faletto, vimos, no capítulo referente a Furtado, que não é correto

afirmar que esse autor, principal expoente brasileiro da tradição nacional-desenvolvimentista, compreenda o

futuro do Brasil como uma repetição da história dos países desenvolvidos.

Page 288: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

297

desse livro. Propõem, portanto, a substituição da ideia de “determinação” pela dialética da

“sobredeterminação”: “os arranjos políticos no interior das nações periféricas seriam modos

particulares com os quais cada formação social, historicamente, processou internamente a

relação com o capital externo” (OTONI, 2011, p. 124). Eles asseveram, a partir de uma

análise da “dinâmica interna”, por exemplo, que a burguesia não tinha interesse em liderar um

projeto de soberania do país (proposto pelos intelectuais desenvolvimentistas) não sendo ela

nacionalista164

, ao contrário do que acreditavam os desenvolvimentistas165

.

Exatamente porque as condições internas devem ser consideradas, é que a política

(como um sistema de dominação de classes) não pode ser obscurecida pela análise das

variáveis econômicas. Faz sentido, no caso da obra de Cardoso e Faletto, asseverar que os

autores reivindicam uma “autonomia” parcial da dimensão política que deveria ser mais bem

analisada. Sobre isso, Lahuerta considera que, tendo como pano de fundo o cenário intelectual

dos anos 60 de forte difusão do marxismo, “é interessante observar que sua [de Cardoso]

‘descoberta’ da política coincide com a valorização da ciência política, além de consolidar o

progressivo afastamento dos temas duros do marxismo” (1999, p. 183). Em depoimento dado

décadas depois, o autor destaca esse ponto como uma grande contribuição da obra:

O livro [Dependência e desenvolvimento na América Latina] se beneficiou

da autocrítica cepalina do economicismo para, então ficar realmente

interessante?

Claro, isso aí. Nós estávamos contra a visão economicista e isso ficou claro

para mim desde o seminário de avaliação da Cepal a que já me referi. O

livro diz que o poder é importante. A política é construção, é opção, é o

novo. Nada pode resumir-se ao mercado, à economia (CARDOSO, 2006,

p.82, grifos nossos).

Com esse intuito, o método de Cardoso e Faletto consiste em considerar as condições

histórico-estruturais (“condicionantes” do desenvolvimento) e também as “alianças de classes

e setores” (“condicionadas”), identificando as “estruturas de dominação” (OTONI, op.cit.,

p. 92, grifos nossos). Concordamos, nesse passo, com o destaque de Otoni: “o emprego do

conceito de ‘dominação’ social é caro à construção teórica dos autores que, a nosso ver,

164

É importante destacar que Cardoso já havia chegado à mesma constatação em uma obra de período anterior,

Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil (1964). 165

É interessante notar que Cardoso, em obra recentemente publicada sobre “pensadores brasileiros”, identifique

na obra de Caio Pardo Jr. um avanço em relação às interpretações até então existentes na medida em que

identifica que “na Colônia havia os mecanismo internos de exploração, articulados aos interesses externos.

Mais ainda, na dinâmica entre dependência externa e exploração interna” (2013, p. 146, grifos nossos).

Entretanto, esse reconhecimento não foi feito pelo nos anos 70, não sendo Prado Jr. mencionado em

Dependência e desenvolvimento. Isso significa que Cardoso considera que a dinâmica da “dependência” já

havia sido explorada por Prado Jr, evidenciando a correta interpretação de Otoni que inclui esse autor na

segunda geração de estudos sobre o imperialismo, que antecedeu a formulação das versões da “teoria da

dependência”.

Page 289: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

298

remete à tradição weberiana de conceituação do Estado” (idem, ibidem, p. 124, grifos do

autor).

Contra o marxismo ortodoxo, marcado pelo mecanicismo e pela pouca atenção dada à

dimensão político-institucional, julgamos que Cardoso aproxima-se do marco teórico

weberiano a fim de pensar de outro modo a relação entre economia e política. Dessa forma,

parece apropriada a vinculação de seu uso “eclético” de Marx e Weber na formulação de seu

conceito de dependência ao ecletismo cultivado pelo próprio de Florestan Fernandes (que

exerceu importante papel na formação intelectual de Cardoso) que, vinculado normativamente

à tradição socialista, incorpora analiticamente autores diversos. O mesmo pode-se dizer sobre

o Cardoso, com a ressalva de que, ao contrário de seu “mestre”, sua orientação normativa é

liberal, não socialista166

.

A partir desse método que permite levar em consideração a dimensão política e o

Estado como lócus privilegiado da dominação política (necessária para manutenção do

modelo econômico), Cardoso e Faletto argumentam contra a tradição desenvolvimentista

(particularmente cepalina) que preconiza o planejamento estatal da economia, que a

centralização estatal dá margem para o autoritarismo e o populismo. O Estado é pensado

nessa tradição, argumentam os autores, como um mediador no conflito entre as classes,

dispensando os mecanismos da economia de mercado. No entanto, tal concepção é, afirmam

eles, em primeiro lugar, ilusória, pois ignora as divisões entre as classes sociais e, em segundo

lugar, perigosa politicamente, uma vez que fortalece o poder estatal em detrimento da

sociedade, e se legitima a dominação de políticos populistas que, pretensamente, governam

em função do interesse nacional.

Esse texto clássico de Cardoso foi importante no sentido de delimitar com precisão e

com repercussão no mundo intelectual da América Latina suas divergências teóricas e

normativas com a tradição nacional-desenvolvimentista e abrir um leque de temas e

polêmicas a serem exploradas, doravante, pelo autor. Nele ficam afirmados cinco pontos

fundamentais: 1) é forçoso considerar a questão do desenvolvimento econômico sob a

166

Marcelo Dulci observa acertadamente como a Sociologia francesa (decisiva na constituição das Ciências

Sociais uspiana) e a Ciência Política norte-americana compõem o método eclético de Cardoso e suas

principais preocupações: “Numa operação metodológica criativa, vemos uma reposição da centralidade da

política e suas contingências – visão contra os determinismos marxistas mais ortodoxos e derrotados no pré-

64, que tentavam se repor de alguma forma. Tem ainda alguma influência da ciência política norte-

americana, mas amalgamada com a sociologia européia (sic)– principalmente francesa, sempre considerada

por Cardoso como mais sofisticada e mais profunda. Resultou também numa localização do Estado –

diferente da ciência política norte-americana mais ortodoxa – como espaço de articulação da nação com o

mercado mundial. E produziu toda uma reflexão profunda e de certa forma seminal sobre democracia e

cidadania no Brasil (2010, p. 75-76).

Page 290: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

299

perspectiva que o compreende como um processo de natureza política; 2) contra o conceito

genérico de subdesenvolvimento, é necessário, avaliar as relações específicas e concretas

entre as nações centrais e as periféricas; 3) sobre as relações entre o centro e a periferia do

capitalismo, cumpre evitar as abordagens que as concebem mecanicamente como uma

determinação de fatores exógenos sobre a dinâmica interna; 4) as análises até então

produzidas sobre o desenvolvimento se revelam insatisfatórias, tanto por padecerem do

economicismo, quanto por ainda não terem sido capazes de identificar as mudanças em curso,

isto é, o fim do ciclo desenvolvimentista; 5) nesse processo de mudança social haveria um

controle crescente das economias nacionais pelas grandes empresas monopolísticas

internacionais, o que inviabilizaria o projeto nacional-desenvolvimentista, mas permitiria

ainda pensar numa “autonomia relativa” de desenvolvimento para as nações dependentes.

Um aspecto interessante associado à possibilidade de autonomia nacional é que a

noção formulada por Cardoso, bem como seu diagnóstico sobre a realidade brasileira, do

desenvolvimento dependente-associado, contestava abertamente a discussão de Furtado em

Formação econômica do Brasil a respeito da “internalização dos centros de decisão” que

estaria em curso desde os anos 30. Havia ocorrido crescimento, sim, reconhecia o intelectual

paulista; mas não autonomia, como propunha o pensador paraibano.

É preciso ter em mente que ao afirmar que o Brasil, nos anos 70, estava crescendo,

Cardoso chocou boa parte da esquerda brasileira. Por mais que representasse um movimento

politicamente reacionário, era preciso reconhecer, argumentava ele, que 1964 havia resultado

em diversos avanços do ponto de vista econômico:

O golpe de 64 deslocou o setor nacional-burguês e o grupo estatista-

desenvolvimentista da posição hegemônica que mantinham, em proveito do

setor mais internacionalizado da burguesia, mais dinâmico do capitalismo

internacional. A política econômica e tanto quanto ela, a reforma da

administração e do aparelho do Estado potenciaram as forças produtivas do

“capitalismo contemporâneo”. A economia integrou-se mais profundamente

ao sistema capitalista internacional de produção, ou seja, a relação entre os

centros hegemônicos e a economia dependente passou a dar-se dentro do

contexto atual da economia capitalista que não exclui a possibilidade de

desenvolvimento industrial e financeiro nas economias periféricas

(CARDOSO, 1972, p. 69).

Para Cardoso, somente após o golpe ter-se-ia conseguido realizar uma “revolução

econômica burguesa”, colocando o país “em compasso com o desenvolvimento do

capitalismo nacional e subordinando a economia nacional a formas mais modernas de

dominação econômica” (idem, ibidem, p. 71, grifos nossos). Mas, cumpre se perguntar,

semelhante submissão não comprometeria o desenvolvimento nacional?

Page 291: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

300

Não haveria uma ameaça à soberania, pois os agentes econômicos

necessitam apenas que o Estado garanta um controle social e um

ordenamento jurídico que proteja a estabilidade das relações comerciais,

incentivos fiscais e investimentos públicos, os Estados se relacionando de

maneira amistosa, estariam garantindo um bom ambiente de negócios

(OTONI, 2011, p. 125).

Modernização capitalista, mas sem autonomia da nação, que, para ele, se trata de uma

noção completamente ultrapassada: “que sentido tem, diante desse quadro, reviver o ideal

da Nação baseado no pressuposto econômico de um setor empresarial local ativo e de um

Estado a ele ligado, que faça uma ponte com a massa popular?” (CARDOSO, 1972, p. 70,

grifos nossos). Como diz corretamente Otoni a respeito da obra desse autor: “a questão

nacional não é uma questão a ser resolvida, é uma problemática superada pelo curso do

desenvolvimento capitalista mundial” (2011, p. 133).

Cardoso, rememorando esse período de sua vida, afirma que “estava equivocada,

portanto, a ideia do Partido Comunista de que no Brasil não podia haver crescimento

econômico porque o imperialismo não queria isso, queria a agricultura com base no

latifúndio” (CARDOSO, 2009, p. 31). Mas Cardoso atribui essa visão errônea não somente

ao PCB, mas a CEPAL e ao ISEB, ou seja, a todo o espectro da tradição nacional-

desenvolvimentista; todos eles expressando um discurso fatalista e incapaz de identificar o

novo cenário econômico e político em que se desenvolvia o capitalismo. É curioso lembrar

que a referida obra foi escrita quando Cardoso estava vinculado à CEPAL (assim como

Furtado), instituição essa que ele e Faletto duramente criticaram167

. É por isso que é correto

assumir que o conceito de dependência, proposto por Cardoso, ambicionava substituir o

conceito de subdesenvolvimento, incorporado centralmente por essas correntes. Dando razão

a esse autor, José Carlos Reis comenta:

O conceito de subdesenvolvimento (realidade histórica onde predomina o

setor agrário, forte concentração da renda, pouca diferenciação do setor

produtivo, predomínio do mercado externo, mercado interno inelástico) é

insuficiente se não for considerado também como situação histórica. É

preciso analisar a maneira pela qual as economias subdesenvolvidas se

vinculam ao mercado mundial, bem como a constituição dos grupos internos

nessa vinculação. O conceito de “dependência” seria mais adequado do

que o de “subdesenvolvimento”, pois vincula os sistemas econômicos e

político no plano interno e externo, ressaltando o modo de integração das

economias nacionais ao mercado internacional, o qual supõe formas distintas

de inter-relação dos grupos internos com os externos. Não se deve, portanto,

procurar o passado do centro na periferia, mas a relação centro-periferia

(2001, p. 258, grifos nossos).

167

O livro só foi publicado, em espanhol, em 1969 pela editora Siglo XXI, quando Cardoso já havia saído da

CEPAL.

Page 292: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

301

Entretanto, cabe dizer que o conceito de subdesenvolvimento, pelo menos tal como

adotado por Furtado, não desconsidera a “situação histórica” ou o modo pelo qual economia e

política se relacionam. Como vimos, o economista paraibano estava justamente lutando contra

as visões economicistas da política e tentando integrar essas duas dimensões num conceito

amplo de subdesenvolvimento. De qualquer modo, parece que a história brasileira contribuiu

para deslegitimar a preocupação àquela época com o subdesenvolvimento. Cardoso se

diferenciou dos prognósticos pessimistas quanto ao futuro do país, “contestados” pelo

“milagre econômico”, de modo que esse autor, aparentemente, “venceu” o debate.

No exílio, Furtado havia avaliado a conjuntura econômica e política brasileira e

afirmado que – após décadas de industrialização e crescimento econômico promovidos pelo

Estado – os governantes militares optariam por uma política interrupção dos investimentos na

indústria – a fim de conter as pressões sociais nas cidades – e que, portanto, o país regressaria

a uma condição “pastoril”, de estagnação econômica, na qual uma massa urbana de

desempregados se dirigiria para o campo. Haveria uma reversão da industrialização brasileira

iniciada na década de 30. O “anacronismo” de Furtado, na opinião de Cardoso, era uma

consequência lógica das premissas nacional-desenvolvimentistas das quais ele partia. Contra a

ideia de crise, estagnação, ele alertava:

O padrão de desenvolvimento dependente-associado não é desprovido de

dinamismo, não está baseado na ruralização com prejuízo da

industrialização, nem leva à intensificação de uma simples relação entre

países exportadores de matérias-primas e importadores de produtos

manufaturados (CARDOSO, 1972, p. 64).

Em resumo, a avaliação de Cardoso se diferenciava de boa parte dos diagnósticos

acerca da economia brasileira: ele apostava em crescimento econômico e mobilidade social,

na zona urbana, ainda que fosse acompanhado também de elevação das desigualdades sociais,

mantida por uma política trabalhista repressiva de contenção de salários.

E a sua conclusão [de Cardoso] é a de que é possível industrialização

moderna em países como o Brasil, baseada num mercado urbano restringido

e excludente, mas dinâmico o suficiente para viabilizar a acumulação de

capitais e garantir o crescimento econômico (LAHUERTA, 1999, p. 119).

Nesse contexto de polêmicas, o autor não deixava, destarte, de salientar o caráter

reacionário do movimento político de 64, como o cerceamento de liberdades civis básicas e a

injustiça social produzida pelo modelo econômico vigente. Não concordava também com

aqueles que afirmavam que o caráter repressivo do regime era condição sine qua non para

promover o crescimento econômico. Cardoso acreditava que a própria transformação

Page 293: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

302

econômica do país poderia engendrar mudanças no sistema político brasileiro168

.

Dado o diagnóstico de desenvolvimento dependente-associado e a avaliação de que ele

poderia ocorrer mesmo se o regime político se liberalizasse, F. H. Cardoso passa, doravante, à

análise e às polêmicas sobre a natureza do autoritarismo brasileiro, exploradas pelo autor a

fim de diferenciar a sua obra de outras “versões” da “teoria da dependência”, tema a ser

tratado na próxima seção.

6.2 – As polêmicas com o marxismo: versões da dependência e o autoritarismo

Deixando de lado a polêmica original de Cardoso com o nacional-

desenvolvimentismo, cumpre agora avaliar o que se convencionou chamar de “Escola da

Dependência”. Se é verdade que nos textos antes avaliados, Cardoso já criticara a figura do

“marxismo ortodoxo” (sobretudo aquele encarnado pelo PCB), o autor continua, nas obras

posteriormente publicadas, a ser diferenciar de alguns pensadores desse campo, no esforço de

constituição de sua própria linguagem da política.

A “Escola da Dependência” consiste em um conjunto heterogêneo de autores do

contexto latino-americano, dos anos 60 em diante, que partindo do conceito geral de

“dependência”, disputarão entre si o significado hegemônico do termo. Esse contexto

intelectual deve ser compreendido como um desdobramento e, outrossim, como uma resposta

crítica ao ideal difuso da revolução burguesa brasileira liderada pelo Estado nacional-

desenvolvimentista:

(...) a chamada ‘Escola da Dependência’ se constitui, principalmente,

como um campo em polêmica com o pensamento nacional-

desenvolvimentista, nas suas diferentes perspectivas (cepalina, isebiana e

comunista) e, não necessariamente, como uma ‘teoria’ no sentido próprio do

termo. Será mais a polêmica com o nacional-desenvolvimentismo e, menos,

a ‘originalidade’ das formulações, o fator constitutivo do ‘dependentismo’

(OTONI, op. cit. p. 11-12, ênfases do autor, grifos nossos).

Todos os dependentistas, destarte, são críticos, à sua maneira, da tradição de

pensamento que orientou seus projetos políticos em torno ao conceito de nação. Há um

esforço comum também em substituir o debate sobre a questão da soberania nacional pela

“análise de classes”, na qual primeira questão é abandonada em função da construção do

socialismo revolucionário ou, no caso de Cardoso, da consolidação da democracia.

168

Nesse texto de 1972 (redigido em 1970), o autor ainda não vê a “abertura democrática” como via possível

àquela época (CARDOSO, 1972, p. 81, nota de rodapé 22), sendo esse tema tratado em textos imediatamente

subsequentes.

Page 294: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

303

Outro ponto importante e comum de crítica entre os dependentistas (e mesmo entre

outros autores que não pertenciam precisamente a essa escola169

) é o populismo. Associada à

objeção ao modelo econômico de substituição de importações, como incapaz de atender as

demandas distributivas das camadas populares, intensificadas no princípio da década de 1960:

(...) a crítica ao populismo é um traço importante desta geração que em

linhas gerais o descrevem como: um arranjo de dominação que se estabelece

no processo de industrialização latino-americana (sob indução estatal) em

um período de transição conflituosa da hegemonia oligárquica agrária para

a industrial urbana (OTONI, 2011, p. 88, ênfases do autor).

Quer dizer, o modelo econômico nacional-desenvolvimentista estaria assentado em um

regime político na qual as massas urbanas viveriam mobilizadas politicamente, mas iludidas e

manipuladas por um discurso de integração da nação que não representaria, efetivamente, os

seus interesses. Assim, fala-se frequentemente de cooptação das massas, não de

representação.

Mas essa escola tornou-se mais conhecida não exatamente pelos seus pontos de

convergência, mas precisamente pelas polêmicas internas que a constituíram, particularmente

através de textos redigidos sob a forma de respostas e críticas mútuas entre Fernando

Henrique Cardoso, de um lado, e os outros dependentistas (André Gunder Frank, Ruy Mauro

Marini e Theotônio dos Santos), de outro.

Como comenta Otoni é possível distinguir basicamente duas “versões” dessa

teoria. A primeira é a versão marxista na qual a meta política fundamental é apresentada como

superação da situação de dependência e do capitalismo por meio de uma revolução socialista.

Essa versão caracteriza-se por uma visão mais pessimista, na qual a consolidação do

capitalismo nas situações de dependência é inviável e a decorrência política imediata é a

instauração de regimes fascistas nesses países, além do cenário no porvir de estagnação e

crise, do ponto de vista da economia. A segunda versão, de teor liberal ou weberiano, defende

a viabilidade do desenvolvimento do capitalismo latino-americano, ainda que sob a forma

dependente e associada ao capital estrangeiro, e da construção da democracia, não estando

esses países reféns, portanto, da disjuntiva entre fascismo ou socialismo, como proposta pela

primeira versão. Dessa segunda vertente, a obra de Fernando Henrique Cardoso seria a

expressão mais bem acabada teoricamente e com maior repercussão nos círculos intelectuais e

políticos.

169

O texto paradigmático sobre o tema é O Populismo na política brasileira, de Francisco Weffort (1978).

Fugiria muito do escopo deste trabalho analisá-lo, mas seria igualmente interessante a fim de notar as ideias

comuns desse autor (outro intelectual paulista, membro do CEBRAP) com as de Cardoso.

Page 295: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

304

A primeira versão da “teoria da dependência” foi exposta inicialmente por André

Gunder Frank, sociólogo alemão radicado nos Estados Unidos e que chegou a lecionar no

Brasil imediatamente antes do golpe de 1964. Esse autor formula uma concepção crítica à

posição adotada pelo PCB a respeito da formação da história brasileira. Como Caio Prado Jr.,

Frank critica a ideia de que no Brasil tenha havido feudalismo, argumentando que, sendo o

processo de colonização da América um desdobramento do capitalismo europeu, o que se

estabeleceu aqui foram relações sociais capitalistas, e não feudais. Nunca tivemos um sistema

produtivo “fechado”, voltado para a subsistência, como é próprio do feudalismo, diria o autor,

tendo a economia brasileira nascida “aberta” ao mercado externo (BAPTISTA, 2004, p. 36-

37). Se não houve feudalismo, não faz sentido, argumenta ele, procurar superá-lo através de

uma revolução burguesa, como proposto pelo marxismo “ortodoxo” brasileiro.

Seguindo a linha de investigação de Paul Baran, a respeito da dependência como teoria

do subdesenvolvimento, Frank endossará a tese que entende como necessariamente

contraditório com as necessidades do imperialismo, o desenvolvimento econômico das nações

periféricas. Privados originalmente de tecnologia, limitados em sua produção e em seu

mercado interno, os países latino-americanos estariam condenados ao atraso social e ao

fascismo. Partindo dessas premissas, as conclusões teóricas e políticas de Frank serão muito

influentes na “Escola da Dependência”:

Em síntese, as críticas de Frank à orientação política adotada pelo PCB se

referia em primeiro lugar à crença de tal partido na existência de uma

burguesia que, naturalmente, pela sua vontade e capacidade teria como

missão a concretização da revolução; em segundo, ao apoio incondicional

oferecido pelo partido a esta burguesia para a libertação: da economia

nacional dos restos feudais na agricultura e dos setores internacionais do

imperialismo; e em terceiro lugar, ao julgamento que faziam sobre todos

aqueles que não aderissem a sua ideologia, sendo então considerados

aventuristas, revisionistas ou reacionários (BAPTISTA, 2004, p. 38).

Como um marxista crítico das posições marxistas majoritárias no Brasil, esse

dependentista alemão é fundamental no sentido de justificar teoricamente todo um campo de

polêmica com a esquerda brasileira. Também o é pela consequência lógica do diagnóstico

formulado por ele: a superação da condição dependente requer forçosamente uma revolução

socialista. Sem tal mudança radical no sistema econômico, restaria a países como o Brasil o

“desenvolvimento no subdesenvolvimento”, uma condição de dependência cada vez maior.

As reflexões de Frank foram decisivas para que a versão marxista da “teoria da

dependência” pudesse se desenvolver através de dois pensadores brasileiros, Ruy Mauro

Marini e Theotônio dos Santos, antigos professores da Universidade de Brasília (UNB),

Page 296: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

305

afastados pelo golpe, e que posteriormente ajudam a fundar a POLOP (Organização

Revolucionária Marxista – Política Operária), um grupo importante no contexto de luta

armada contra o regime militar.

Em sua obra mais conhecida, A dialética da dependência, Marini define dependência

como uma relação de subordinação entre nações formalmente autônomas, nas quais as

relações de produção garantem a reprodução das condições de dependência. Como nota

Otoni, é importante destacar que, ao contrário de Cardoso, por exemplo, Marini, ao utilizar-se

da noção de subordinação está assentindo com a ideia de que “uma nação subordinada está

destituída de possibilidade de ação soberana”, sendo “os espaços de decisão internos”

“irrelevantes para análise” (OTONI, 2011, p. 126-127).

Segundo ele, a condição de dependência é caracterizada por três fatores fundamentais:

a integração da América Latina ao mercado internacional, a troca desigual170

entre as nações

e a superexploração da força de trabalho. Nascidas como colônias de exportação de matérias-

primas (de baixo valor agregado) para os países centrais, as nações do continente não podem

alterar o seu lugar no capitalismo global. Mesmo o processo desenvolvimentista de

substituição de importações não foi capaz de romper com essa situação de trocas desiguais

entre as nações centras e as periféricas. Nessa condição originalmente desvantajosa, os

capitalistas dos países latino-americanos têm que, inevitavelmente, superexplorar os

trabalhadores (com intensificação do trabalho e/ou com a ampliação da jornada de trabalho).

Assim, conclui Marini, enquanto nos países capitalistas centrais o predomínio da exploração

da força de trabalho se dá pela extração da mais-valia relativa, nas nações periféricas ocorre

precisamente o contrário, isto é, pela extração da mais-valia absoluta.

Ora, precisamente porque os capitalistas da periferia logram seus lucros mediante a

exploração da mais-valia absoluta, é que não se deve apostar na aliança com a burguesia para

romper a condição dependente. Contra os nacional-desenvolvimentistas, Marini avalia que a

industrialização dos países latino-americanos não seria capaz de alterar a estrutura

socioeconômica desses países; gerados para atender a demanda dos países centrais, nações

como o Brasil estariam condenados à estagnação econômica, dado o reduzido vigor de seu

mercado interno (subconsumo). O único modo possível para a superação desse impasse seria

a ruptura total com o capitalismo em direção ao socialismo.

Como nota Otoni, Marini assume uma concepção negativa da “democracia burguesa”.

Diferentemente da “democracia socialista”, capaz de incorporar as reivindicações populares, a

170

Cumpre apenas lembrar que a noção de “trocas desiguais” é formulada originalmente por Raul Prebisch

(“deterioração dos termos de troca”), no âmbito da CEPAL, precisamente um dos alvos da crítica de Marini.

Page 297: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

306

primeira seria, na opinião desse marxista, apenas “um instrumento sofisticado de dominação

ideológica”. Esse é um ponto crucial que revela a pouca importância dada, em geral, pela

versão marxista da “Escola da Dependência” à democracia representativa (a contrastar com a

versão liberal) e de sérias consequências político-ideológicas:

A visão negativa de Marini, em relação à democracia liberal desarmou a

análise objetiva do processo de democratização brasileiro, em favor de um

ideal normativo socialista, que da forma como foi concebido pelo autor, não

possuía comunicação com o processo em curso. O resultado foi o

afastamento da perspectiva marxista das “Teorias da Dependência” do

debate intelectual pós anos 70 (2011, p. 134).

Theotônio dos Santos, o terceiro dependentista conhecido dessa versão, comunga de

boa parte dos pressupostos e conclusões de Frank e Marini. Também descrê no potencial

“revolucionário” da burguesia brasileira; afirma que, no contexto dos anos 50, já era possível

identificar que aqui os capitalistas não estariam interessados num projeto de soberania

nacional, voltado para a distribuição de renda, reforma agrária ou para a luta anti-imperialista.

Como Marini, avalia que o processo de industrialização do país até os anos 50 criou tensões

sociais que o modelo político e econômico vigente não poderia solucionar. Nesse sentido, o

autor alerta que o operariado brasileiro não deveria se iludir com a burguesia nacional,

desvencilhando-se das suas ideologias.

Em Quais são os inimigos do povo? (1963)171

, Theotônio dos Santos, partindo do

diagnóstico do caráter retrógado de nossa burguesia, de nossa situação dependente, da

superexploração dos trabalhadores e da tendência à estagnação e à marginalização social,

asseverava a inevitabilidade de um golpe e da instauração de um regime de força no país,

como uma forma de “contra revolução preventiva” (idem, ibidem, p. 58). O golpe de 64 teria

instalado aqui um regime fascista, favorável aos capitalistas locais e contra o povo, “um

regime de Terror do Grande Capital” (BAPTISTA, 2004, p. 59), revelando ser uma

“intervenção disfarçada dos Estados Unidos” (idem, ibidem, p. 58). Todavia, o autor

identificava também um descontentamento e uma crescente conscientização popular no

período posterior ao golpe, o que levaria o país, num futuro próximo, como avalia Santos, a

171

O livro consiste em um fascículo da coleção Cadernos do Povo Brasileiro, lançado nos anos 60 pelo Centro

Popular de Cultura (CPC) e pela Livraria Civilização Brasileira, dirigida por Ênio Silveira, coleção esta que se

destinava a apresentar ao grande público, numa linguagem simples, as questões políticas, econômicas e sociais

mais importantes do momento. Além do fascículo escrito por Santos foram também publicados, entre outros

Quem dará o golpe no Brasil?, de Wanderley Guilherme dos Santos (analisado em: MOREIRA, 2008), Por que

os ricos não fazem greves?, de Álvaro Vieira Pinto, Quem é o povo no Brasil?, de Nelson Werneck Sodré, Quem

faz as leis no Brasil?, de Osny Duarte Pereira.

Page 298: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

307

uma revolução popular e socialista.

Como nota Baptista, Theotônio dos Santos utiliza o termo “dependência” para

designar genericamente uma situação socioeconômica de “condicionamento”:

Situação condicionante, isto é, um país dependente está condicionado ao

desenvolvimento e à expansão dos países centrais do capitalismo, que por

usa vez, conseguem expandir-se e autoimpulsionar-se pelo fato de

concentrarem forças produtivas da economia mundial. Ao passo que os

países dependentes, apesar de serem parte integrante desta economia, só

conseguem expandir-se e impulsionar-se como um reflexo daqueles, tendo

suas possibilidades de desenvolvimento determinadas pela economia

mundial (BAPTISTA, 2004, p.76).

O caráter condicionante que faz dos países dependentes “reflexos” dos países centrais,

não significa mera imposição externa, esclarece ele, envolvendo igualmente “compromisso

entre interesses dominantes dos centros hegemônicos e os interesses dominantes nos países

centrais” (idem, ibidem, p.76). A obra de Theotônio dos Santos mostra, portanto, que na

versão marxista há também a preocupação em compreender a dinâmica interna dos países

dependentes, embora tal dimensão seja bem menos destacada do que na abordagem de

Cardoso.

Mais do que esmiuçar a análise dos textos desses três dependentistas, importa aqui

salientar os aspectos mais importantes da versão marxista da “teoria da dependência”, a fim

de comparar e compreender melhor a versão de Cardoso dessa mesma “teoria”.

Em primeiro lugar, é evidente que a versão marxista se volta contra a tradição

nacional-desenvolvimentista, que por meio do discurso de formulação de um projeto nacional

camuflariam as contradições de classe e ignorariam a inviabilidade de tal projeto. No modelo

de integração subordinada ao imperialismo ocorreria a superexploração da classe

trabalhadora, isto é, a realização do capitalismo dependente implicaria necessariamente em

baixos salários e elevado índice de desemprego. Economicamente, portanto, a previsão para o

Brasil era de estagnação econômica (produzida pelo subconsumo).

Um segundo ponto importante e em comum entre os autores da versão marxista é a

qualificação do regime político brasileiro no pós-64 como fascista, implantado com o objetivo

de conter a expansão das forças progressistas e populares anteriores ao golpe e de integrar o

país no capitalismo mundial sob a hegemonia dos Estados Unidos.

Em terceiro lugar, é importante destacar que a confrontação dessa versão com a

própria tradição marxista brasileira é central nesse contexto. Para eles, a posição “ortodoxa”

do “Partidão”, de defesa estratégica de uma revolução burguesa baseia-se numa concepção

completamente equivocada da realidade brasileira e das estratégias de desenvolvimento do

Page 299: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

308

país. Num cenário em que o “sucesso” da Revolução Cubana (1959) ecoava na América

Latina, esses autores chegam a sugerir a inevitabilidade histórica de uma revolução popular

no Brasil, dado o descontentamento público e a situação de crise político-econômica do Brasil

nas décadas de 1960-70.

Um quarto ponto decisivo é de que, dado o diagnóstico da realidade dos países latino-

americanos nesse período, as opções políticas determinadas são claras: ou a submissão ao

fascismo brasileiro já instaurado, baseado num modelo capitalista dependente, ou o “exercício

de uma política operária, de luta pelo socialismo” (BAPTISTA, 2004, p. 61, ênfases da

autora). Nesse sentido, a esquerda brasileira deveria procurar mobilizar os trabalhadores

brasileiros e combater aberta e mesmo violentamente o regime militar para assegurar o fim do

capitalismo nacional, tal como propunha a própria POLOP, da qual participaram Marini e

Santos. Contudo, esses autores têm ciência da dificuldade da saída popular-revolucionária no

país e defendem essa solução apenas abstratamente. O pessimismo compartilhado pelos

dependentistas marxistas tem como contraponto o relativo otimismo da versão liberal da

“teoria da dependência” de Fernando Henrique Cardoso, a ser agora avaliado.

Como a versão marxista, essa é também construída em polêmica com as diversas

vertentes da tradição nacional-desenvolvimentista brasileira, mas não apenas: Cardoso se

esforçou em diferenciar sua análise dependentista das concepções, consideradas por ele, como

anacrônicas, excessivamente normativas e deterministas de Frank, Marini e Santos172

. Um dos

textos em que esse esforço é notório é “As desventuras da Dialética da Dependência”, artigo

escrito em coautoria com José Serra, em 1978, que como revela o título, consiste numa crítica

à obra de Marini antes mencionada. As críticas feitas a esse autor pelos primeiros poderiam

ser, na opinião deles, estendidas aos demais dependentistas:

Neste artigo nos preocuparemos com a análise de um autor, Rui Mauro

Marini. Embora não seja ele o único que se aventurou pela dialética da

dependência, foi sem dúvida quem apresentou o quadro explicativo mais

geral para dar coerência às análises e para prescrever a partir delas a ação

política (CARDOSO & SERRA, 1978, p. 36).

172

Em depoimento posterior, o autor esclarece o porquê de sua preocupação em não ser identificado com esses

autores: “Eu escrevi o livro com o Enzo (...). Teve uma grande influência ainda mimeografado. Nesse meio

tempo estava lá na França o Gunter Frank, que fez uma tragédia: transformou a Teoria da Dependência num

Frankenstein. A versão dele circulou o mundo. Houve brasileiros que colaboraram com essa versão, como o

Rui Mauro, por exemplo. (...) eu estava querendo abrir o espírito contra a visão comunista populista e contra

a visão cepalina. E eles transformaram esse negócio numa nova ortodoxia. Eu fui responsabilizado, em parte,

por essa nova ortodoxia. Fui aos Estados Unidos e fiz uma conferência chamada: ‘O Consumo da Teoria da

Dependência’. Os americanos pegaram isso e transformaram numa coisa pior: pegaram a ortodoxia marxista-

leninista dependentista e juntaram com números. Era a soma do computador com a dogmática. Houve uma

época que ninguém foi mais citado em bibliografia de ciências sociais dos Estados Unidos do que eu.

Infelizmente, mal citado” (CARDOSO, 1992, apud DULCI, 2010, p. 99).

Page 300: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

309

Os autores avaliam que no contexto das sociedades dependentes, os intelectuais de

esquerda (como eles próprios se definem) são constantemente tentados a sucumbir à

“aventura política”, ao devaneio utópico sem qualquer lastro com a realidade. Assim, muitos

desses intelectuais (como Marini) se deixariam levar pela vontade de transformar a realidade

desses países, descuidando do rigor metodológico173

. Na opinião dos autores, esse erro

comum nos países dependentes contribui para que os intelectuais de esquerda sejam incapazes

de identificar as mudanças em curso, “fixando-se em leis imaginárias” (idem, ibidem, 1978, p.

35). Para eles, Marini utiliza-se mal da teoria marxista, deduzindo práticas políticas

equivocadas: “o que parece instigar Marini é sua construção de uma teoria pouco ou sem

nenhum pressuposto político, embebido de um marxismo dogmático, como salientam Cardoso

e Serra” (BAPTISTA, 2004, p.111). Percebe-se como Cardoso parte da concepção de que o

“marxismo como teoria e a Revolução Socialista como prática” (idem, ibidem, p. 112) não

servem mais à compreensão e à ação no contexto brasileiro dos anos 70. Os autores sugerem

inclusive que o equívoco de se recorrer a esse marco teórico sem o zelo de pensar as novas

condições, faz com que se defenda erroneamente a luta armada como adequada, como o fez

Marini:

Se no plano da análise econômica os equívocos podem ser sanados pela

crítica, as políticas inspiradas por estas mesmas análises podem levar a

desastres cuja “correção” passa muitas vezes pelo sacrifício, até físico, de

setores importantes de toda uma geração (CARDOSO & SERRA, 1978,

p. 36, grifos nossos).

Embora reconheçam a contribuição desse autor para as primeiras formulações da

teoria da dependência, Cardoso e Serra criticam-no por diversos motivos174

. Não nos

173

Em texto mais recente, Cardoso, repete o argumento contra a intelectualidade de esquerda, destacando desse

grupo, contudo, a obra de Florestan Fernandes que, para o primeiro, teria sido capaz, em função do rigor que

caracteriza a sua obra, de combinar realismo com a crítica ao capital: “é de salientar que a erudição e o

espírito científico de Florestan Fernandes nunca o deixaram incorrer em equívocos habituais nos

‘intelectuais de esquerda’, tipicamente ideológicos” (CARDOSO, 2013, p. 187, grifos nossos). Adiante o

autor acrescenta que Florestan não se deixou levar pelo “marxismo vulgar” ou pela “distorção analítica dos

processos históricos que são ‘engolidos’ pela lógica abstrata da acumulação do capital”. O autor, num

processo de autoidentificação e de diferenciação, dos dependentistas marxistas, compara a análise do seu

“mestre” uspiano ao seu próprio esforço em Dependência e desenvolvimento na América Latina, por

valorizar “as peculiaridade do desenvolvimento capitalista na periferia do sistema mundial” (idem, ibidem, p.

190). 174

Em outro artigo escrito contra a obra de Marini, “As tradições do desenvolvimento-associado” (1974), aqui

não analisado, Cardoso identifica cinco “teses equivocadas” na obra de Marini, quais sejam: 1) “o

desenvolvimento capitalista na periferia é inviável”; 2) “o capitalismo dependente está baseado na exploração

extensiva da mão-de-obra e preso à necessidade de sub-remunerar o trabalho”; 3) “as burguesias locais

deixariam de existir como força social ativa”; 4) “a penetração das empresas multinacionais leva os Estados

locais a uma política expansionista”; 5) “o caminho político da América Latina está frente a uma

encruzilhada – ‘socialismo ou fascismo’” (GOTO, 1998, 68).

Page 301: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

310

interessa aqui explorar cada uma dessas críticas específicas, mas apenas tomá-las como

exemplos de objeções teóricas mais consistentes entre esses autores. Nesse sentido, poder-se-

ia diferenciar quatro apreciações negativas feitas por Cardoso e Serra a Marini e que poderiam

ser dirigidas, igualmente, aos outros dependentistas marxistas.

Em primeiro lugar, a crítica ao economicismo. A dimensão política, valorizada por

Cardoso, é crucial, na medida em que permite pensar a possibilidade mudança a partir da

dinâmica interna dos países. Na versão marxista da dependência, como vimos, o regime

político brasileiro pós-64 é caracterizado como fascista. Em primeiro lugar, argumenta ele,

trata-se de um regime, ainda que repressivo politicamente, modernizador. Isso faz com que a

própria estrutura social seja transformada encetando, por sua vez, novas mudanças. Como

comenta Baptista “há uma base social que pode reagir ao Estado autoritário”. 1964 teria

criado no país um “modelo de dominação burocrático-militar que se assentava em bases

economicamente dinâmicas” (2004, p. 91), não um regime fascista ou totalitário, já que não

se trata de uma situação de partido único (o regime, ainda que com limitações, adota uma

ideologia democrática e pluralista) e não é um regime de mobilização do povo.

Cardoso considera que enquanto o ciclo desenvolvimentista dos anos de 1930 a 60 foi

permeado pelo populismo, isto é, a mobilização e manipulação ideológica das massas no

Brasil, isso já não ocorreria mais nos anos 70. No primeiro período teria ocorrido uma

“política de acordos”, iniciada por Vargas, restabelecida por Juscelino Kubitschek e João

Goulart, e selada entre diversos grupos sociais urbanos, integrando as massas como “objeto de

dominação” ou “base de sustentação” (GOTO, 1998, p. 117). Nesse caso, as pressões

distributivas e populares, em geral, podiam ser atendidas pelos governantes, na medida em

que eram menos intensas e coincidiam com os interesses dominantes. Esse “esquema

populista” teria entrado em colapso no governo de Goulart, quando não é mais possível

atender às pressões do povo sem romper a aliança nacional-desenvolvimentista e

comprometer a acumulação do capital. Os anos 70 representariam, portanto, uma nova

configuração de forças, inviabilizando o arranjo de poder populista, mas permitindo outros,

não identificados pelos dependentistas marxistas, precisamente em decorrência do viés

economicista das suas análises, argumenta Cardoso.

Os regimes atualmente predominantes nos países mais desenvolvidos da

América Latina, nem se sustentam por intermédio de políticas de

redistribuição de renda (mesmo que simbólicas), nem necessitam mobilizar

as massas para manter-se no Poder. Ao contrário, são regimes

desmobilizadores (CARDOSO, 1972, p.14).

Page 302: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

311

À adequada caracterização do regime político brasileiro, se seguiria uma ação política

mais eficiente e não puramente utópica. Se o regime político não é fascista, mas “burocrático-

autocrático” e com pendor modernizador e pluralista, a solução para a superação da condição

dependente do país não exige, consequentemente, a revolução socialista. Mais do que isso: se

a previsão correta para o Brasil é de crescimento econômico, não faz sentido postular uma

tendência de crescente insatisfação popular seguida de revolução.

Como nota apropriadamente Otoni, a divergência maior de Cardoso com o regime

brasileiro nos anos 70 é de ordem política, não econômica, dado que ele havia reconhecido

uma dimensão “progressista” nesse campo:

A contradição principal identificada por Cardoso era o regime ‘burocrático-

militar’ e não o modelo que impulsionava a integração dependente. Ao que

tudo indica, sua crítica era no sentido de promover a democracia; porém em

termos de condução política de desenvolvimento nacional, tinha acordo com

a associação com os capitais internacionais (OTONI, 2011, p. 132).

Lahuerta atenta para um outro aspecto interessante da teoria do autoritarismo de

Fernando Henrique. Segundo a sua interpretação, a caracterização do regime militar como

“burocrático-autoritário”, por Cardoso, visava muito menos criticar o próprio regime (na

medida em que ela negava a qualificação de fascista), “desdobrando-se numa ruptura com o

organicismo e a centralidade do Estado presentes na tradição nacional-

desenvolvimentista e/ou nacional-populista” (1999, p. 168, grifos nossos). Assim, embora

esse autor diferencie o autoritarismo pós-64 de outras formas autocráticas do passado

brasileiro, ele, ao mesmo tempo, constrói uma narrativa de interpretação do Brasil na qual a

proeminência do Estado é compreendida como um entrave histórico para o desenvolvimento

do país.

Uma segunda objeção feita por Cardoso é de que as análises dos dependentistas

marxistas são mecanicistas ou deterministas, isto é, deduzem muito rapidamente

consequências e cenários a partir das suas análises, como se houvessem “leis históricas”

imutáveis a guiar o futuro das nações. A situação de dependência é descrita como se forças

externas imperialistas determinassem inevitavelmente a dinâmica interna dos países

dependentes.

Uma terceira crítica feita por Cardoso e Serra, decorrente de suas análises

“economicistas” e “deterministas”, é o anacronismo dessas análises. Por anacronismo,

queremos dizer que, para esses autores, o modo como os dependentistas incorporam o

referencial teórico marxista impede-os de perceber os “novos tempos” do capitalismo global,

Page 303: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

312

pujante e fortemente internacionalizado. Não percebem ou avaliam mal as novas bases do

capitalismo internacional, a nova forma do capitalismo na periferia (dependente-associado) e

os novos arranjos políticos que os sustentam (não mais o populismo, e tampouco o fascismo,

mas sim o “burocrático-autocrático”).

Chega-se, destarte, a uma quarta crítica fundamental de Cardoso e Serra aos outros

dependentistas aqui estudados: o fato de suas análises serem excessivamente normativas,

quando não fantasiosas, como acusam Marini a respeito da suposta tendência da Revolução.

Os dependentistas marxistas teriam confundido a inviabilidade do modelo nacional-

desenvolvimentista com o esgotamento do sistema capitalista como um todo; “a crítica

socialista ao capitalismo com a sua inviabilidade” (BAPTISTA, 2004, p. 123). Muitas vezes,

esse “normativismo” excessivo vem acompanhado, segundo Cardoso e Serra, de certo

voluntarismo: seria por isso que esses autores prescrevem a luta armada, sem ao menos

avaliar a viabilidade de tal ação política.

O resultado desses erros seria, por fim, um fatalismo (quinta e última crítica de

Cardoso e Serra) por parte da versão marxista da dependência, deixando de considerar a

contingência própria à realidade política: “entre apologetas e catastrofistas ainda sobra algum

espaço para o esforço de análise científica” (CARDOSO, 1975, p. 14). Como vimos, o

diagnóstico era: socialismo ou fascismo. Cardoso e Serra qualificam a obra de Marini como

um “estilo catastrofista de análise de uma visão apologética” (1978, p. 77). Sobre esse ponto,

Goto comenta que o propósito do artigo de Cardoso e Serra era mesmo o de combater esse

catastrofismo presente nessa versão da “teoria da dependência”, procurando “evidenciar o

dinamismo do desenvolvimento capitalista em situações de dependência, mostrando-o como

um processo viável e efetivo, ou não-ilusório” (1998, p. 61). Novamente a análise de José

Carlos Reis é profícua para destacar as diferenças entre as linguagens políticas dessa época no

que tange ao otimismo ou pessimismo presentes nelas:

Em relação à interpretação do Brasil pré-1964 [nacional-

desenvolvimentismo], portanto, a interpretação da nova dependência, do

final dos anos 1960-70, é mais lúcida e serena, separando bem das surpresas

da história os erros da teoria. Em relação às interpretações da esquerda pós-

1964, quanto à interpretação da superexploração imperialista [Marini e

Santos], ela recusa a radicalização da luta armada e não vê que a América

Latina esteja condenada à alternativa fascismo ou socialismo. Quanto à

interpretação funcional-capitalista, não crê que o futuro da América Latina

seja o desenvolvimento do subdesenvolvimento, nem prevê a estagnação,

prevista pelos cepalinos. A interpretação da nova dependência é otimista em

relação ao capitalismo dependente, é uma interpretação que reabre s

horizontes do desenvolvimento latino-americano, dentro e apesar da

dependência (2001, p.243, ênfases do autor).

Page 304: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

313

No entanto, poder-se-ia objetar que se é verdade que a abordagem de Cardoso escapa

da visão que limita artificialmente as possibilidades políticas, é preciso observar que na

versão de Cardoso também há uma inevitabilidade: ao subestimar a dimensão utópica da

reflexão política, ele está assentindo com a ideia de que não há outra saída para os países

dependentes do a não ser a integração subordinada (associada) ao capital estrangeiro175

. Como

comenta Otoni: “a leitura fatalista de Cardoso” não encontra, dessarte, “saída para o

desenvolvimento senão pela integração dependente e associada ao processo de

internacionalização do capital” (2011, p. 150). Assim, é necessário assumir uma postura

crítica quando Cardoso e Serra qualificam sua própria abordagem de “realista”. Isso serve, em

primeiro lugar, para deslegitimar as abordagens concorrentes (marxistas) e, em segundo lugar,

para se resignar, em alguma medida, ao capitalismo dependente-associado. O “realismo”

autopropalado de Cardoso e Serra parece impedi-los de se opor a situação de dependência.

Embora as perspectivas de Frank, Marini e Santos possam ter se equivocado, como acusa

Cardoso (pelo economicismo, o determinismo e o voluntarismo que lhe caracterizam), tinham

a vantagem de manter em debate a discussão sobre a necessidade de se romper com a injusta

realidade brasileira.

De qualquer modo, a verdade é que a versão liberal da dependência formulada por ele

acabou se sobrepondo à versão marxista, muito em função do contexto acima mencionado de

crescimento econômico que o Brasil viveu nos anos 70. Sobre isso, Otoni avalia que Cardoso

“conquistou acento no mainstream da sociologia” (2011, p. 138), assim como Baptista que

nota que Cardoso parece ter colocado:

Na penumbra, não apenas um intelectual, mas toda a geração do pré-64, que

ao lado de Marini e Theotônio dos Santos formavam as fileiras da luta contra

o capitalismo que se desenvolvia nos países subdesenvolvidos da América

Latina (2004, p. 101).

Mas é preciso destacar também a contribuição da versão da “teoria da dependência”

formulada por Cardoso: uma maior atenção dada à dimensão da política na análise da

realidade dos países latino-americanos. Esse critério em não considerar a dinâmica política

como epifenômeno da estrutura econômica é, segundo nossa interpretação, uma das vantagens

da emergência da Ciência Política, “criada” no país a essa época e na qual contribuiu muito o

próprio Cardoso (como também Wanderley Guilherme dos Santos, antes avaliado). Assim, as

críticas ao “economicismo”, “mecanicismo” e “fatalismo”, presentes, é bem verdade, em

175

Sobre isso, Reis resume a respeito dos países latino-americanos nos anos 60: “só lhe restou uma opção para

continuar acumulando e promovendo a industrialização: a ‘internacionalização do mercado interno’, a sua

associação com a burguesia internacional” (2001, p. 263).

Page 305: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

314

algumas correntes do marxismo ortodoxo, são evitadas quando se considera a influência que

as variáveis políticas podem exercer sobre a vida da sociedade e a indeterminação própria à

realidade política.

Na próxima seção, demonstraremos como Cardoso, partindo da crítica à tradição

nacional-desenvolvimentista (primeiro “lance” argumentativo) e à versão marxista da “teoria

da dependência” (segundo “lance”), formulou uma linguagem própria sobre a formação da

democracia brasileira e sobre o papel do Estado no contexto da globalização. Entendemos que

os traços liberal-democráticos, antes mencionados, ficam ainda mais evidentes nesse terceiro

“movimento” de seu discurso político.

6.3 – Democratização e mercado

Como nota Lahuerta a respeito da obra de Cardoso, “ao longo dos anos setenta, a

ênfase da reflexão social passaria paulatinamente da dependência para o autoritarismo” (1999,

p. 121), e do autoritarismo para a democracia. Deve-se ter clareza que a adequada

caracterização do regime político brasileiro pós-64 não era uma tarefa fácil. Quer dizer, um

regime que adotava um discurso pluralista (mesmo que muito limitado), que mantinha, em

certas situações e níveis, a institucionalidade democrática (como as eleições), que promovia o

crescimento do país, mas que, ao mesmo tempo, reprimia duramente a oposição política,

perseguia e torturava cidadãos, comuns, etc. As ambiguidades e contradições do próprio

regime político brasileiro se dificultavam a sua compreensão, tornavam também mais

complexo o entendimento das formas e estratégias mais adequadas de redemocratização do

país.

A polêmica de Cardoso com os dependentistas marxistas sobre o caráter da política

brasileira pós-64 se desdobra em novas polêmicas e discussões antes ausentes. Em

Autoritarismo e democratização (1975), Cardoso aborda o tema do autoritarismo brasileiro,

dialogando com a Ciência Política internacional e inovando em sua compreensão176

. Ele

considera que se o Brasil nos anos 70 vivia uma dominação tecnocrática, tal como ele

esclarece nessa ilustrativa passagem:

Mais ainda, a dinâmica desse estilo de desenvolvimento acomoda-se a uma

estrutura política que nunca foi democrática e que se formou no solo

Ibérico e dele foi transplantada para a América sem jamais ter sido realmente

176

O termo “burocrático-autocrático”, por exemplo, proposto pelo autor, acabou sendo incorporado pela

literatura especializada, sobretudo através da obra de Guillermo O’Donnel como “Estado BA” (LEHMANN,

1986, p. 33).

Page 306: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

315

européia (sic), no sentido de que o desenvolvimento capitalista e a revolução

burguesa não a modificaram plenamente. Não obstante, também a forma

deste autoritarismo variou, desde o paternalismo autocrático do império,

passando pela forma oligárquica republicana da “democracia de elites” e

pelo populismo autoritário (às vezes beirando o fascismo) até ao atual

autoritarismo tecnocrático, que não está imune também de apelos fascistas

(CARDOSO, 1975, p. 13, grifos nossos).

O autor discorda, assim, de historiadores, como Thomas Skidmore, que à época

comparavam o regime pós-64 ao Estado Novo, sugerindo, então, uma “repetição” na história

brasileira: embora subsistam traços comuns (centralização política e burocracia como ator

político central), “o eixo hegemônico, os sistemas de poder e a base dinâmica do sistema

produtivo modificaram-se” (CARDOSO, 1975, p. 54). No novo cenário autoritário, destacam-

se a crescente influência dos capitais estrangeiros, dos setores das Forças Armadas e da

tecnocracia (agora antipopulistas), e o prestígio declinante dos setores agrários arcaicos, da

classe média burocrática tradicional, dos líderes sindicais e dos representantes políticos.

Fernando Henrique Cardoso diferencia três tipos básicos de regimes políticos

“tendenciais” no capitalismo dos anos 70 na América Latina: as ditaduras caudilhistas

tradicionais (militares ou civis), como vigente no Paraguai, regimes, em suma, repressivos e

pouco dinâmicos; as “democracias representativas” nas quais opera um sistema

pluripartidário, como o Uruguai; e, por fim, os regimes de “autocracia-burocrática”, civis ou

militares, como o Brasil, nos quais a “política repressiva e liberticida” convive com “esforços

ingentes para garantir o atendimento de metas econômicas de crescimento” (CARDOSO,

1972, p. 24). O que é distintivo no terceiro caso é que “as questões políticas fundamentais (...)

dependem de um mecanismo burocrático e autocrático”. Trata-se da conhecida definição do

autor dos “anéis burocráticos” do Estado brasileiro:

As classes economicamente dominantes quando opinam fazem-no quase

corporativamente por seu entrosamento direto com o aparelho do Estado e

este é controlado por um sistema burocrático (...) baseado em conhecimentos

técnicos, movido por objetivos desenvolvimentistas, organizado

hierarquicamente e controlado autocraticamente não por um líder, mas por

setores funcionais da sociedade (CARDOSO, 1972, p. 25).

Os “anéis” não são lobbies, “forma organizativa que supõe tanto o um Estado quanto

uma sociedade civil mais estruturados e racionalizados” (CARDOSO, 1975, p. 208), esclarece

o autor, mas “círculos de informação e pressão” que “entrosam” setores do Estado e as classes

sociais.

O que os distingue de um lobby é que são mais abrangentes (ou seja, não se

resumem ao interesse econômico) e mais heterogêneos em sua composição

Page 307: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

316

(incluem funcionários, empresários, militares, etc.) e, especialmente, que

para ter vigência no contexto político-institucional brasileiro necessitam

estar centralizados ao redor de um detentor de algum cargo. Ou seja,

repetindo, não se trata de um instrumento de pressão da sociedade sobre o

Estado, mas da forma de articulação que sob a égide da “sociedade política”,

assegura ao mesmo tempo um mecanismo de cooptação para integrar as

cúpulas decisórias membros das classes acima referidas que se tornaram

participantes da arena política, mas a ela se integram qua personae e não

como “representantes” de suas corporações de classe (idem, ibidem, p. 208,

ênfases do autor).

Célia Colen observa que é através dos “anéis” que “os setores privados beneficiários

do regime (industrial-exportador, contratistas de obras, extrativos-exportadores e o grande

capital multinacional e financeiro) asseguram sua participação nas decisões” (2001, p. 86). O

autor fala, então, de uma “burguesia de Estado”, na medida em que o Estado “controla” as

empresas, que a “orientação da acumulação nelas faz-se por critérios de mercado” e que “não

conhece a distinção entre o público e privado” (CARDOSO, 1972, p.25). Fica claro pelas

passagens supracitadas que o autor está recorrendo à noção weberiana de patrimonialismo,

um regime marcado pelo que ele chamará de “política de cúpulas”, em que elites (nacionais

ou não), por meio do aparato estatal, estabelecem um acordo de dominação que viabiliza a

expansão capitalista dependente-associada no país. Cardoso quer destacar que ao invés de se

ter representação, temos, com efeito, cooptação; no lugar de uma burocracia racional, grupos

“enfeudados” que se aproveitam de seus cargos no Estado e se favorecem com os contatos

com as classes sociais dominantes.

O autor vai aos poucos revelando o seu “projeto” político para o Brasil. Nele, o

conceito de democracia (antes pouco explorado por Cardoso) passa a ser central e é definido

de um modo muito particular. Vejamos.

Como se afirmou, o Estado patrimonialista brasileiro, vivenciado sob a forma

autocrática e burocrática nos anos 70, mantém espaços que não representam rigorosamente os

interesses da sociedade civil, mas cooptam alguns grupos sociais para manter esse modelo de

dominação. A linguagem política de Cardoso opera, portanto, através do binômio conceitual,

de longuíssima tradição na Filosofia Política, Estado e sociedade civil. Mas como esse autor

compreende esses conceitos? Sobre o Estado, o autor esclarece:

(...) encaro o Estado como lócus privilegiado no qual se dá a articulação

política entre as classes sociais e se estrutura primariamente a ideologia. Ao

dizer isto estou afirmando que o Estado é ao mesmo tempo um feixe objetivo

de conexões de interesse e um cadinho de ilusões. Ele ao mesmo tempo que

consolida interesses e molda políticas específicas que delineam o perfil dos

vencedores, elabora também o retrato transfigurado dos vencidos (...).

Penso-o, pois, como objetivamente contraditório, na medida em que ele

Page 308: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

317

sintetiza o interesse particular e a aspiração geral e que nele se degladiam

interesses não (sic) sempre homogêneos (CARDOSO, 1975, p. 196).

O Estado, para esse autor, figura, portanto, a partir da ideia do conflito (sendo os

diversos setores da burocracia, eles próprios, dotados de interesses particualres) e como

espaço de dominação. Ele só é distinto da sociedade civil analiticamente, também ela

atravessada por conflitos de toda sorte. Cardoso argumenta que o conceito de “anéis

burocráticos” expressa, pela própria definição, que não se pode pensar em uma polarização

total entre Estado e sociedade civil: o Estado transformou-se, no Brasil dos anos 70, em

empresa, e as empresas, para garantir a acumulação capitalista, necessitam de acessar os

“anéis” do Estado.

“a relação Estado e Sociedade passa pela mediação das organizações

burocráticas (públicas e privadas)” (...), “o sistema no qual se dá o

entrelaçamento entre ambas as ordens institucionais supõe ‘anéis’ cruzados,

pelos quais os interesses da sociedade civil (inclusive os econômicos)

passam a existir dentro do Estado” (idem, ibidem, p. 183-184, ênfases do

autor).

A sociedade civil, portanto, que deveria se organizar por classes sociais e exigir fazer-

se representar pelas instituições políticas, é cooptada através dos “anéis burocráticos”.

Comparado ao “corporativismo”, no qual “embora sob controle estatal, as classes se

organizam e se fazem representar”, no modelo político brasileiro, ao contrário, “por

intermédio destes anéis, as classes (mesmo as dominantes) não se organizam enquanto forma

social” (idem, ibidem, p. 209), dependendo, portanto, da anuência do Estado que, qualquer

momento, pode desarticular, por meio de seus anéis, todas as pressões que vinham se

institucionalizando. É nesse sentido que Cardoso assevera a capacidade muito limitada de

representação da sociedade civil e sua “debilidade como força política autônoma” (idem,

ibidem, p. 209).

Em resumo, temos, na visão de Cardoso, um Estado patrimonialista que, nos anos 70,

vigora sob a forma de uma autocracia burocrática, que por meio dos “anéis burocráticos” não

representa os interesses das classes, mas os submete a uma lógica de cooptação, de um lado, e

uma sociedade civil débil, limitada, “estrangulada” pelo Estado brasileiro, de outro.

Seguindo essa linha de raciocínio, o autor identifica no país da época uma parte

integrada e submetida ao Estado e aos seus órgãos, e, de outro lado, uma parte que não é, mas

clama por uma representação política autêntica. O autor fala, portanto, de uma situação dual,

de “dois Brasis”, para recorrer à expressão de longa tradição no pensamento político e social

do país: “expressivamente, poder-se-ia dizer que Brasília é a capital de um Estado hegeliano”

Page 309: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

318

e, “por outra parte, São Paulo expressaria a capital da ‘sociedade civil’ de aspiração lockeana,

cuja vigência encontra fundamento nos esforços da persistência (ou da criação) da cidadania”

(idem, ibidem, p. 210). Nota-se que sua linguagem política contraria a sua própria advertência

do autor sobre a necessidade de não se separar “Estado” de “sociedade civil”. Os atributos

utilizados para caracteriza um polo (o Estado) são precisamente os que são negados ao outro

polo (a sociedade civil).

Para Cardoso, a sociedade civil, representada pela imprensa, sindicatos, igrejas,

associações profissionais, grêmios estudantis, etc., necessitaria, urgentemente, ser “reativada”,

garantindo a esses setores a livre e legítima expressão pública de seus problemas,

reivindicações, etc., sem ter que se submeter à dominação elitista do Estado brasileiro. Ele

resume: “em poucas palavras, é preciso ir tecendo os fios da sociedade civil de tal forma que

ela possa expressar-se na ordem política e possa contrabalançar o Estado, tornando-se parte da

realidade política da Nação” (idem, ibidem, p. 239).

Lahuerta observa que, na segunda metade da década de 70, o conceito de sociedade

civil se consolida no pensamento brasileiro, significando, no contexto de luta contra o arbítrio

dos governantes militares, “tudo aquilo que se contrapunha ao Estado ditatorial, o que foi

facilitado pelo fato de ‘civil’ significar também, no Brasil, o contrário de ‘militar’” (2001, p.

73). Ele acrescenta que a “sociedade civil” nesse contexto, ao contrário de certa significação

corrente na Filosofia Política, não é curiosamente:

Identificada com o predomínio dos interesses privados estritos do mundo do

mercado, mas com os movimentos sociais que, ao afirmar a autonomia

diante do Estado, traziam implícita uma nova forma de se articular com

política (idem, ibidem, p. 89).

Assim, Cardoso está falando de sociedade civil numa conotação quase exclusivamente

positiva, desconsiderando, portanto, a significação filosófica do termo que é também negativa,

isto é, como “reino dos interesses particulares”. Sociedade civil, no caso, é associada à

economia de mercado, vista positivamente por esse autor. Ele, então, defini o processo de

redemocratização do país como o “fortalecimento” da sociedade civil. Como diz Colen, “essa

ideia de submeter o Estado ao controle da sociedade é o que vai orientar a discussão sobre

democracia” (2001, p. 89).

É, portanto, nessa fase de sua trajetória intelectual (é bem verdade, que esteve sempre

comprometida com valores democráticos) que o conceito de democracia torna-se o operador

precípuo de sua linguagem política, assumindo um lugar antes apenas secundário. Uma

linguagem de valorização da democracia, como objeto de estudo e meta política. Como

Page 310: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

319

observa acuradamente Otoni, partindo da polarização entre sociedade civil e Estado e do

diagnóstico weberiano de uma inevitável burocratização do mundo moderno, “a democracia

para Cardoso será alcançada com a criação de contrapesos às tendências burocráticas” (2011,

p. 131. Para ele as tendências opressivas presentes na burocratização e na opressão,

verificáveis em qualquer regime, “socialista, capitalista, democrático ou autoritário” devem

ser contrabalançadas pelo controle do Estado por uma sociedade civil atuante e participativa.

Nessa linguagem política opõe-se claramente Estado à sociedade civil, tal como é

próprio do campo teórico-político do liberalismo. Assim, ainda que se apropriando do

conceito de patrimonialismo para caracterizar o Estado brasileiro – mesmo conceito utilizado

centralmente por Raymundo Faoro – o resultado na obra de Cardoso é um outro projeto de

Estado: se para Faoro o que importa é refundar, “democratizando”, o Estado a fim de garantir

a liberdade do cidadão, para Fernando Henrique essa liberdade é pensada como antagônica à

força do Estado e como, diretamente proporcional ao vigor da sociedade civil.

Cardoso critica, na sua tarefa de atualizar o liberalismo brasileiro, essa tradição por

sua concepção de “Estado protetor”, não adotando centralmente as ideias de sociedade civil e

democracia, agora por ele associadas: “liberalismo castrado, porque temeroso quase sempre

da liberdade, da organização efetiva da sociedade civil e da participação” (CARDOSO, 1975,

p. 177). È precisamente por isso que o próprio Cardoso, ao comentar a obra de Faoro o

censura:

Se no final da obra Raymundo Faoro dá um peso maior do que eu daria à

força do estamento burocrático, civil e militar, e parece crer mais em sua

persistência do que na dinâmica transformadora das classes, talvez hoje,

reconhecendo que o patrimonialismo, ainda pesa em nossa cultura e em

nossas práticas políticas, pudesse dar ênfase a que a sociedade civil e as

forças do mercado têm tido influência crescente (2013, p. 261).

Dificilmente Faoro poderia “dar o final” desejado por Cardoso, isto é, valorizando a

“dinâmica transformadora das classes” ou enfatizando “as forças do mercado”, uma vez que,

como demonstramos, seu campo normativo é liberal-cívico ou republicano, distinto do de

Cardoso. Para o jurista de Vacaria a “abertura ao mercado” só faria aprofundar o fosso que

separa o Estado da nação, o patronato político do povo.

Pela mesma razão, a linguagem liberal-democrática de Cardoso se opõe à linguagem

republicana e democrática de Celso Furtado. O primeiro afirma, sob esse ponto, que na

tradição cepalina, da qual Furtado é um expoente, “o estado é recorrentemente pensado como

mediador, como Poder Moderador, situado entre as classes”, dispensando o mercado “como

seu fundamento” (CARDOSO, 1975, p. 175). O que Cardoso propõe, ao contrário, é um

Page 311: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

320

Estado nacional submetido à econômica competitiva e à ordem burguesa. Desse modo,

compreende-se melhor a analogia feita pelo autor com a aspiração “lockeana” de São Paulo,

na medida em que, para esse filósofo inglês, é na sociedade civil – com a sua diversidade de

interesses privados – que se funda a liberdade humana, não no Estado.

Democratizar o Brasil – imperativo político do autor à época – consiste, em suma, em

reativar a sociedade civil a fim de conter o poder do Estado. Mas como fazê-lo? O autor

compreende que a gradual restauração das liberdades civis básicas (da liberdade de imprensa

e do habeas corpus, por exemplo), do pluripartidarismo, da responsabilização de funcionários

do Estado pelos seus atos, da criação de um clima maior tolerância à divergência de opinião,

etc., compunham a pauta política necessária e viável para superar gradualmente o quadro

patrimonial-autoritário brasileiro, que contraria radicalmente os defensores da via

revolucionária. Trata-se, na opinião do autor, de medidas viáveis no contexto de abertura que

o país vivia, não de medidas “irresponsáveis”, “fantasiosas” e “não comprometidas com o

ideal democrático”. O autor via em alguns movimentos sociais e nas fraturas internas dos

próprios grupos que compunham o Estado e “que não estão cooptados nem se sentem

representados no Pacto de Dominação” a possibilidade concreta de realizar a transição do

autoritarismo para a democracia.

O argumento que estou sustentando aqui é de que as contradições existentes

no próprio sistema de poder acabarão por fazer ruir este tipo de

racionalização do imobilismo burocrático-repressivo, se a eles se juntar a

pressão dos grupos e classes que estão fora do Bloco de Poder e que, se bem

seja certo que insistem na participação política, não a confundem com a

adesão, mas, ao contrário, estão dispostos a manter a integridade de suas

visões de oposição (CARDOSO, 1975, p. 237-238).

É preciso lembrar que Juan Linz, notório cientista político espanhol, havia feito a essa

época uma extensa comparação em entre diversos tipos de regime não democráticos, e

afirmava que o Brasil vivia, na realidade, uma “situação autoritária”, isto é, um regime mais

propenso à mudança dos que os regimes propriamente autoritários e totalitários.

Compartilhando parcialmente do diagnóstico otimista de Linz, Cardoso assevera que o regime

brasileiro poderia, assim, ser “democratizado” em função de pressões externas e internas,

particularmente dos movimentos organizados pela sociedade civil, dispensando, desta feita

um processo revolucionário violento. Como um “‘intelectual orgânico’ da Oposição” (idem,

ibidem, p. 221), esse autor se colocava na posição de delinear os passos necessários de

transformação do país. Sob esse ponto é preciso destacar a vinculação entre suas reflexões

teóricas e sua própria prática política, nessa época, articulando-se, como líder do CEBRAP,

Page 312: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

321

com o MDB:

(...) havia chegado o momento em que a esquerda tinha que começar a

pensar em usar os canais institucionais e assumir que o MDB era um canal.

A intelectualidade de esquerda queria ou a luta armada, ou o voto nulo,

porque achava que o MDB era oposição consentida (CARDOSO, 2009, p.

35).

Quer dizer, há uma convergência, que não é fortuita, entre as suas reflexões sobre a

estratégia adequada de redemocratização do Brasil e a sua crescente atuação político-

partidária: ambas assentavam-se na ideia de que a democracia viria com o restabelecimento

das liberdades individuais e do livre mercado e que, para tal, era fundamental fortalecer a

sociedade civil. Ora, na opinião de Cardoso, é precisamente o MDB (no qual ele se insere

inicialmente na vida partidária) uma das principais instituições que congregava um canal

institucional viável de reativação da sociedade civil.

Democratização no plano político e consolidação de uma economia de mercado, sim,

mas sem as “ilusões” do período nacional desenvolvimentistas, argumenta ele, já que as

condições internacionais de expansão do capital não permitem mais esse tipo de modelo

político. Há, todavia, um limite tênue entre “ser realista” e defender o status quo. Cardoso não

apenas identifica o processo de internacionalização dos mercados internos, mas também o

defende. Como observa Reis, são vários os “elogios” tecidos por ele em relação a esse

processo:

O capital estrangeiro veio dinamizar a produção, diversificando-a, e

estimular o mercado interno. O capital estrangeiro traz tecnologia,

financiamentos, empregos e abastece o mercado interno. O mercado interno

só poderia ser dinamizado pela sua internacionalização, que tornaria os

industriais brasileiros mais competitivos, aprofundaria neles uma

mentalidade capitalista burguesa consequente, eficaz, racional, competitiva

(2001, p. 254-255).

A integração do Brasil no mercado internacional é não apenas descrita como um

processo “sem volta”, mas também enaltecida, na medida em que colocaria o país no ritmo

em que “corre a história”, sincronizado com a fase mais avançada do capitalismo. Em textos

posteriores ao período aqui avaliado, F. H. Cardoso retoma o tema, sob a denominação agora

de “globalização”, mas com um sentido muito parecido aos dos escritos dos anos 70.

Sobre esse período posterior, Sebastião Cruz chama atenção para o fato de que

Cardoso fala em globalização em termos quase exclusivamente econômicos, tratando pouco

de outros aspectos desse processo, tais como a difusão de valores e estilos de vida, ou a

constituição de “estruturas de governo supranacionais”, por exemplo (CRUZ, 1999, p. 230).

Page 313: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

322

Além de certo economicismo no tratamento desse tema, Cardoso assume uma posição

ambígua em relação à globalização: ora produtora de “anomalias perversas”, ora enaltecida

por tornar os países mais ricos, a economia mais dinâmica, aproximando-se dos “apologetas

da economia global” (idem, ibidem, p. 237). Cruz acrescenta ainda que, apesar de certa

ambiguidade, o sentido predominante na obra desse autor é que “a internacionalização

produtiva é o traço marcante e parece constituir o fundamento da econômica global em

gestação”, inviabilizando “projetos de desenvolvimento nacional de caráter autárquico” (idem,

ibidem, p 231).

Não se deve passar despercebido que a defesa da “internacionalização do mercado

interno” ou a globalização caminha pari passu com a própria natureza do pensamento de

Cardoso, isto é, antinacionalista e cosmopolita. Milton Lahuerta considera com propriedade

que esse traço da obra desse autor deve ser compreendido como característica de uma geração

que, formada originalmente na USP e consolidada a partir de 1969 no CEBRAP, concebe o

trabalho intelectual a partir do imperativo de internacionalização, isto é, aferido por critérios

científicos válidos mundialmente.

Nesse sentido, é curiosa a admiração nutrida por Fernando Henrique Cardoso em

relação a pensadores como Joaquim Nabuco, notório pela sua forte “circulação” no meio

internacional. Não é a soberania nacional, mas a integração ao mundo que dá sentido tanto a

obra de Cardoso, quanto à obra de Nabuco, segundo a interpretação do primeiro177

. Além do

cosmopolitismo comum aos dois pensadores brasileiro, é curioso refletir acerca de outras

semelhanças possíveis: a preocupação com o legado escravagista, a natureza autodeclarada de

não ser propriamente um político tradicional (encarando a política como um “exercício

intelectual” [CARDOSO, 2013, p. 43]), a identificação da principal virtude de um estadista

que é conciliar “meios e fins”, ou o “realismo” (idem, ibidem, p. 45), a adesão às ideias

liberais e democráticas, a crença de que uma “nova era” (idem, ibidem, p. 61), um mundo

global que estaria por vir e que, sob essas condições, uma aliança com as grandes potências

mundiais, ainda que em condições limitadas, deveria ser feita, etc. Assim, percebe-se que as

próprias afinidade intelectuais de Cardoso, revelam alguns traços de seu discurso político178

.

177

De acordo com Cardoso, Mário de Andrade costumava “contrapor seu nacionalismo ao cosmopolitismo de

Nabuco”, empenhado o primeiro em “abrasileirar o Brasil”. Sobre a “polêmica” entre os dois pensadores

brasileiros, Cardoso afirma sua identificação com a posição de Nabuco: “parece-me que os novos tempos

favorecem mais a Joaquim Nabuco do que a Mário de Andrade” (2013, p. 22-23). Cardoso argumenta que o

“diálogo entre as culturas”, proposto por Nabuco, teria revelado que a cultura brasileira pertence tanto à

América quanto à Europa. 178

O melhor trabalho de proposição metodológica de identificação dessas filiações continua a ser o de Gildo

Marçal Brandão (2008).

Page 314: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

323

Um contraponto interessante à visão elogiosa da globalização foi dado por Furtado,

como vimos anteriormente. Em O longo amanhecer, esse pensador criticava a abertura

comercial (não propriamente a abertura às empresas transnacionais, mas ao capital financeiro,

numa situação de ausência de regulação dos fluxos monetários), realizada nos anos 90, isto é,

exatamente sob o comando de Cardoso na presidência da República. Tal abertura era

entendida por Furtado como uma ameaça à soberania nacional e, portanto, à liberdade dos

indivíduos e ao projeto de construção de um Welfare State brasileiro.

Outro intelectual que se opõe a esse discurso de Cardoso caracterizando-o como uma

“ideologia do moderno” é Fábio Wanderley Reis. A inserção subalterna do Brasil no contexto

da globalização, diz ele, faria com que se acentuassem traços tradicionais do país, como as

desigualdades sociais, que, ao contrário, deveriam ser duramente combatida por meio da ação

estatal. Assim, o apelo à “modernidade” e à “novidade”, tendo que o país se subordinar à

lógica e aos critérios da economia global, representaria, na realidade, um retrocesso do ponto

de vista da cidadania (COLEN, 2001, p. 110).

Voltando à obra de Cardoso, no contexto dos anos 70-80, a solução defendida por

parte da esquerda, a via do socialismo (revolucionário ou não) é caracterizada por ele como

uma quimera. É preciso reter, portanto, que a crítica de Cardoso à tradição socialista não se

constitui apenas de uma fase de seu pensamento. Tanto essa tradição quanto a do nacional-

desenvolvimentista continuam a configurar o contexto intelectual e político com o qual

Cardoso se confronta. Em entrevista recente, ele afirma:

Na verdade, a maioria da esquerda brasileira está aferrada a duas ideias que

envelheceram: a do velho nacionalismo e a do estatismo. O Muro de Berlim

caiu e a economia se globalizou, de modo que a esquerda não deve mais se

pautar pela defesa do Estado como se ele fosse a expressão imediata do

interesse nacional e popular (CARDOSO, 2009, p. 43).

Seria necessário, na opinião de Cardoso, que a esquerda revisse os modos tradicionais

de pensamento e ação praticados, a fim de se inserir mais adequadamente naquilo que já

constituía a realidade. Como nota Otoni a respeito da obra de Cardoso, “qualquer iniciativa de

modificar o padrão dependente deve se dar em termos de ‘governança’ mundial” (2011, p.

147), não havendo mais uma solução via Estado nacional “forte”. Novamente, o comentário

de Lahuerta é preciso:

A “feição estruturante da globalização” teria imposto aos países questões de

longo prazo, forçando-os a fazer opções de política econômica nas quais ou

se atua com visões de futuro ou se põe em risco as possibilidades do

progresso. Por isso, não apenas o universo intelectual tem que fazer um

aggiornamento de suas concepções tradicionais, mas a “sensibilidade para o

Page 315: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

324

internacional passa a ser um requisito indispensável do político moderno”.

Tal visão internacionalista minimiza a questão nacional e a concebe de um

modo que pretende romper com as concepções nacional-desenvolvimentistas

que permanecem atuantes até os anos oitenta (1999, p. 244).

Concordamos com a apreciação de Otoni para quem a “teoria da dependência”, como

um todo, contribuiu para consolidar um “divórcio” entre o projeto de soberania nacional e de

consolidação de uma democracia no Brasil, na medida em que esse campo teórico, em toda a

sua diversidade, se constituiu historicamente em contraposição ao nacional-

desenvolvimentismo. Partindo do marco teórico republicano, julgamos, contudo, que não é

possível dissociar o ideal de liberdade da questão de uma inserção soberana do país no cenário

internacional.

6.4 – As linguagens do liberalismo e a refundação do Estado brasileiro

Para concluir o presente capítulo, retomaremos a discussão sobre uma suposta

contradição na trajetória intelectual de Fernando Henrique Cardoso, seguido de uma avaliação

sobre o debate sobre a “reforma do Estado” brasileiro, segundo nossa interpretação,

fortemente influenciado e permeado pela linguagem política de F. H. Cardoso. Por último,

faremos algumas apreciações críticas sobre essa linguagem à luz da Teoria Política.

Célia Colen sugere que pode haver uma “contradição” na trajetória de Cardoso,

quando se confronta os escritos dos anos 90 com os textos anteriores: “esse otimismo em

relação à capacidade equalizadora da globalização e a argumentação contra a centralidade do

Estado para o modelo de desenvolvimento não encontram base teórica na produção do autor”

(2001, p. 94). Assim, nos escritos da década de 70, como Dependência e desenvolvimento, há

uma ambiguidade no tratamento à “internacionalização do mercado interno”, ora

caracterizando como uma possibilidade de modernização do país, ora como uma ameaça a ele.

Essa ambiguidade, curiosamente, vai se desvanecendo duas décadas depois pela

predominância dos significados positivos da globalização. Do mesmo modo, o caráter anti-

estatista do discurso de Cardoso estaria mais evidente nos textos mais recentes do que nos

escritos posteriores.

Pode-se imaginar que a própria situação em que o país vivia no fim do século XX,

pós-redemocratização, e mesmo o contexto internacional, de crise do “socialismo real”,

fizeram com que Cardoso enfatizasse mais os aspectos positivos (quer por estar mais otimista,

quer porque as opções ideológicas tivessem sido drasticamente limitadas). No entanto, se é

Page 316: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

325

verdade que a crítica ao Estado e a defesa da “globalização” não tivessem sido feitas

anteriormente com a mesma ênfase, parece-nos falso assumir que essas ideias já não tivessem

sido parcialmente defendidas por Cardoso desde a década de 70. Considerando a obra de

Cardoso como um todo, e avaliando esses deslocamentos de temáticas e de enfoque, não nos

parece razoável supor uma “contradição” fundamental ou uma ruptura teórica substantiva ao

longo de sua trajetória intelectual. O que há, como nota muito adequadamente Colen, são

“adaptações” (idem, ibidem, p. 92, grifos nossos). Considerando, então, as “adaptações” e as

mudanças de temáticas e de ênfase, convergimos com a sua interpretação quando afirma:

“haveria uma linha de continuidade entre a produção teórica dos anos 60 e a dos anos 90”

(idem, ibidem, p. 92, grifos nossos).

Outra questão é se há uma linha de continuidade entre a obra teórica e a prática de

Cardoso como presidente da república, questão essa que nós – por não avaliarmos a “prática”

propriamente dita de Cardoso – não estamos em condição de avaliar de modo conclusivo.

Certamente que podem haver pontos de contato, como sugerem alguns intérpretes, mas não se

deve deduzir mecanicamente suas práticas políticas como decorrência direta de suas ideias.

Assim, com alguma razão, Cruz assevera que:

O que não me convence, não me parece plausível, é a ideia de que nos

primeiros escritos sobre a dependência já estivesse contida, como que em

germe, a política que Fernando Henrique Cardoso realiza agora, 30 anos

depois, como presidente. Esta política que não é materialização de ideias

previamente concebidas: é o resultado de uma história longa, que se bifurcou

em vários pontos, e as escolhas que o seu protagonista fez em cada um deles

foram ditadas por circunstâncias e motivações que muito pouco tinham a ver

com a teoria da dependência, ou qualquer outra teoria (1999, p. 243).

Esse autor tem razão ao questionar a premissa de que a prática política se resume à

“materialização de ideias previamente concebidas”. Também parece estar certo quando

ressalta o hiato temporal entre escritos dos anos 60-70 e uma atuação política nos anos 90, em

um contexto sociopolítico bastante diferente do anterior, com traços que dificilmente

poderiam ser imaginados àquela época. No entanto, inferir disso a assertiva de que as escolhas

políticas “muito pouco tinham a ver” com “qualquer teoria” nos parece excessivo e incapaz de

compreender como os atores políticos podem agir sem levar em consideração ideias, valores,

etc. organizados em teorias e interpretações da realidade.

Foram muitos aqueles que asseveraram uma “traição” do presidente em relação ao

sociólogo. Nesse sentido, parece parcialmente pertinente a ponderação de Bernardo Sorj que,

tendo em vista as mudanças no mundo de 1970 para cá, não haveria como Cardoso

permanecer totalmente “coerente com seu passado, na medida em que deve enfrentar a

Page 317: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

326

responsabilidade de governar em tempos novos” (2001, p. 121). Procurando ser justo, Sorj

argumenta, contra os críticos do “presidente”, que temas como globalização, novas

tecnologias, fim do “comunismo real”, etc., não poderiam ser pensados naquele período

simplesmente porque ainda não existiam, reiterando o argumento de Cruz. Mas mais uma vez,

não se trata de “incoerência”, mas de adaptações às novas condições, sem, contudo, romper

com o seu campo teórico-normativo.

Goto, por sua vez, assevera uma “linha de continuidade”, considerando a ação de

Cardoso como presidente da República: “se, aprofundando a pesquisa, examinarmos as

relações entre a obra do sociólogo e a prática do político social-democrata que se elegeu

presidente, não é difícil perceber que entre uma e outra há mais continuidade que ruptura”

(1998, p. 156, grifos nossos). Nesse sentido, Colen, Sorj e Goto convergem no argumento de

continuidade entre a obra teórica de Cardoso e sua práxis política, ao contrário de Cruz. Como

reconhecemos não temos condições de avaliar metodicamente a correção desse argumento,

mas o que nos parece mais importante frisar é que, independente se adotamos ou não a tese de

descontinuidade entre teoria e prática, a compreensão da obra teórica é fundamental para a

compreensão da práxis política de Cardoso.

Quanto a essa querela, não custa dizer que o próprio F. H. Cardoso, em diversas

ocasiões, defendeu a ideia de que nunca havia “traído” seus escritos “de esquerda”, de que sua

ação política era coerente em relação a eles. Todavia, discordamos da visão que Cardoso tem

de seu próprio pensamento, pois o identificamos como um intelectual liberal179

. Obviamente

que o termo “esquerda” é semanticamente indeterminado, podendo assumir diversos

significados, não necessariamente vinculado ao ideário socialista. Se a linguagem política de

um autor deve ser definida não apenas pela utilização dos conceitos, mas também pelos seus

valores, não é correto, em nossa opinião, assumir que Cardoso tenha sido ou seja hoje um

intelectual socialista. Concordamos nesse passo com a interpretação proposta por Otoni:

A análise da situação de dependência realizada por Fernando Henrique

Cardoso ganhou espaço político e acadêmico porque apresentava uma

descrição realista do cenário, liberal na concepção, e indulgente em relação a

uma suposta fatalidade do desenvolvimento dependente e associado. Sua

análise eclética produzia interlocuções diferenciadas, transitava no circuito

das esquerdas, mobilizando em seus artigos os “avatares” do marxismo

(2011, p. 137).

Assim, “é na tradição marxista que ele encontrou os seus interlocutores teóricos”, mas

179

Duas passagens, de uma entrevista concedida por Cardoso, ilustram esses pontos: “Bem, eu continuo

achando que sou de esquerda” e “Não tenho uma visão liberal, privatista e antiestatal que você pensa que eu

tenho” (CARDOSO, 2009, p. 42-43).

Page 318: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

327

não porque ele tenha sido um “marxista eclético”, como sugere José Carlos Reis (2007, p.

246), mas porque seu campo intelectual é liberal e se constituiu polemicamente por oposição

ao marxismo, se apropriando de seus “avatares”.

Nesse sentido, discordamos parcialmente também de Lahuerta, para quem em meados

dos anos 70 Cardoso teria dado uma “guinada” em sua obra, antes fiel teórica e

metodologicamente “à abordagem classista e ao princípio classista” e, doravante, transitando

“para um realismo cada vez mais pragmático, combinando-o com uma operação onde

acentuava Weber em sua formação e a maior atualidade deste autor do que Marx para pensar a

complexidade do mundo moderno” (1999, p. 130-131). É precisa a identificação por Lahuerta

de uma maior influência do campo teórico weberiano na obra desse autor. Mas esse mesmo

campo, representante de uma certa vertente do liberalismo contemporâneo, já compunha seu

marco analítico e normativo desde o início dos anos 70. Senão, como compreender, nos anos

70, a utilização do conceito de patrimonialismo, a centralidade analítica da dominação estatal,

sua defesa da “internacionalização dos mercados”, a crítica à revolução socialista como

utópica e anacrônica, o elogio da sociedade civil por oposição ao Estado? O que ocorre é que

a partir de certo momento na trajetória de Fernando Henrique, identificado por Lahuerta, a

tradição marxista deixará, quase por completo, de ser utilizado, mesmo como mero

instrumental de análise. Nesse sentido, os traços liberais de sua obra vão se tornando cada vez

mais proeminentes e sem ter de “conviver” com um discurso “marxizante:

Partindo de um método marxista “particular” e de uma certa visão “liberal” –

já intuída nas suas principais obras acadêmicas dos anos 60 sobre

escravidão, empresários e dependência, assuntos sempre relacionados ao

capitalismo em geral e suas particulares manifestações no continente e no

Brasil, que estamos analisando nessa seção –, Cardoso foi construindo uma

visão de mundo cada vez mais liberal e optando por posições políticas

objetivas claramente desse campo – embora sempre dizendo que continua

sendo representante da verdadeira esquerda progressista do país (DULCI,

2010, p. 142).

É importante também destacar, como faz Lahuerta, que a ênfase na questão

nacional, particularmente quando angulada pela “negação de um inimigo externo que estava

fora do país”, levou a que se tratasse, durante um tempo no pensamento brasileiro, a

democracia com certa negligência, “confundida mecanicamente com uma problemática

burguesa” (1999, p. 18).180

O curioso e, certamente, problemático, é que a emergência da

democracia levou, por seu turno, a uma desvalorização da questão nacional. Cardoso seria a

180

A única ressalva a ser feita em relação ao comentário de Lahuerta é nem todos nacional-desenvolvimentistas

eram “antidemocráticos”, como demonstrou a análise da obra de Furtado.

Page 319: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

328

“referência maior da formulação política que deslocou a questão nacional para o

autoritarismo, colocando a contraposição entre sociedade civil e Estado no cerne da

explicação do Brasil contemporâneo” (idem, ibidem, p. 216).

Esse intérprete fala também da emergência de discursos de “valorização da

democracia” nos anos 70, em substituição aos discursos preponderantemente econômicos e

que davam pouca atenção ou mesmo desprezavam como “burguesas” as instituições da

democracia moderna:

É evidente que ainda durante um bom tempo as representações sobre a

democracia se dariam de modo bastante fragmentado, muito mais como

manifestação da resistência à ditadura que se procurava articular em

condições institucionais limitadas e muitas vezes clandestinas. Do meio

sindical, dos pequenos grupos que atuavam nas periferias das grandes

cidades, de setores do próprio MDB, de núcleos intelectuais e estudantis, de

setores da Igreja, emergem reivindicações específicas, unificadas porém pela

preocupação comum com a participação, com a liberdade de expressão e

organização, com a garantia de direitos políticos, com o fim da censura à

atividade cultural e jornalística. Diferentemente do que imaginavam os

grupos que haviam se lançado na luta armada, vai se definindo o espaço para

uma oposição que valoriza a participação política e que começa a dar

atenção para a questão democrática e para a questão institucional, abrindo

para o MDB (LAHUERTA, 1999, p. 153).

É verdade que o debate sobre a democracia ficou, em geral, até então “subordinado à

discussão econômica, depois se concentrou na contraposição ao autoritarismo e, por fim,

tornou-se sinônimo de uma hipervalorização dos movimentos sociais e da sociedade civil”

(LAHUERTA, op.cit., p. 188). Trata-se da emergência de uma nova linguagem da

democracia, como temos insistido:

No lugar da crítica da alienação e conscientização passa-se a discutir a

participação política e a cidadania; ao invés de se esperar a solução para os

problemas, denuncia-se seu caráter autoritário-burocrático e se valoriza o

fortalecimento da sociedade civil; contra a visao nacional-

desenvolvimentista e estagnacionista que não aceitava que pudesse haver

desenvolvimento sem emancipação nacional, mostra-se que – ainda que

dependente e associado – ele não deixaria de ocorrer (LAHUERTA, 1999, p.

229).

Interpretamos a obra de Cardoso, nesse diapasão interpretativo, como uma importante

linguagem de valorização da democracia181

. Cardoso é, assim, um pensador liberal que, no

181

O próprio Cardoso afirma: “A grande causa da minha geração não foi a da estabilização da economia

[alcançada depois em seu governo]. Nem tampouco a do desenvolvimento econômico [grande desafio

colocado nos anos 50 pela geração anterior]. Foi a da democracia. Elas não são excludentes (...) e as

mudanças havidas no Brasil tiveram como base a redemocratização. (...). Por isso, para mim, a história

contemporânea da política brasileira começa nos anos 70, com as lutas pela volta à democracia, sonhada por

muitos como se fosse a inauguração de uma sociedade – dando nome às coisas – socialista” (CARDOSO

Page 320: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

329

Brasil, associa a realização do liberalismo à realização da democracia, entendida, como

vimos, como o fortalecimento da sociedade civil e do mercado por oposição ao Estado.

O liberalismo de Cardoso, no entanto, se formou numa convergência histórica com a

ascensão das correntes conservadoras do liberalismo, como o neoliberalismo, o que não

implica que há uma identificação total entre eles. Em diversas ocasiões, ele negou sua

identificação com o neoliberalismo, o que, segundo nossa interpretação, não deixa de ser

parcialmente verdadeiro. Em vez de “neoliberal”, o autor reivindica um “liberalismo político”

de outra natureza:

É preciso resgatar uma concepção que estava no liberalismo do século XIX.

Pois, se é verdade que há um liberalismo econômico que leva a uma

competição selvagem – e quem fala em neoliberalismo é a isso que se está se

referindo –, também é verdade que há um liberalismo da garantia dos

direitos, da cidadania, da participação da sociedade civil, que não está

conectado com a visão liberal pautada pelo mercado (CARDOSO, 2009, p.

43-44).

Mas porque falamos apenas em uma concordância parcial a respeito das declarações

de Cardoso. Num texto da década de 90, em que Cardoso expõe sua visão política,

denominada por ele de “socialdemocrata”, fica patente que sua linguagem política não é, a

rigor, neoliberal. O próprio Cardoso critica o dogmatismo do “endeusamento do mercado”

pelos neoliberais que afirmam a supremacia do mercado livre e que quanto menos Estado,

melhor. Critica, por outro lado, o pensamento “estatista”, segundo ele, profundamente

arraigado nos atores “progressistas” do país, desde o período nacional-populista.

Mas, ao mesmo tempo, fica patente pela leitura do referido texto a aproximação maior

de Cardoso com o “liberalismo econômico” (ou neoliberalismo), do que com o “populismo-

corporativista”, assumindo o compromisso de “não descuidar da produção (da eficiência, da

produtividade, da necessária ligação entre distribuição e produção)”, “aumentar a

competividade”, a necessidade de se realizar privatizações, etc. Aproximação, novamente, que

não deve ser compreendida como simples identidade, pois caracterizada também por

ressalvas: Cardoso critica a tese do “Estado Mínimo”, defendendo o “Estado socialmente

necessário”, a “manutenção de empresas nas mãos do Estado”, e de setores estratégicos da

economia, impedir o “aviltamento do valor da mão-de-obra” (CARDOSO, 1990, p. 39 et

seq.). Como socialdemocrata – nem neoliberal, nem nacional-populista – diz ele, importa

afirmar o valor da democracia e criar uma engenharia político-institucional que permita o

fortalecimento e a participação da sociedade civil.

apud DULCI, 2010, p. 66, grifos e comentários do autor).

Page 321: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

330

Do mesmo modo, Colen avalia as ideias “socialdemocratas” de Fernando Henrique,

destacando o impacto que elas tiveram no programa político do PSDB e no debate sobre a

“reforma do Estado”. Entre essas ideias, a autora destaca: 1) a ação estatal deve se orientar

pela “racionalidade econômica” e pela “competitividade”, valorizando a iniciativa privada,

antídoto contra o patrimonialismo brasileiro; 2) a economia do país não deve se pautar por

uma política autárquica, mas se abrir para o mercado externo; 3) é inviável se construir um

Estado de Bem-estar social, resultado de uma “falência dos modelos ideológicos”, devendo se

esforçar em aperfeiçoar “os investimentos” o “progresso tecnológico” e a “competitividade”;

4) a globalização é um imperativo histórico; 5) “os direitos sociais devem ser consolidados

por políticas restritas aos segmentos mais pobres da população”, e pelo próprio dinamismo do

mercado, no caso dos outros segmentos (COLEN, 2001, p. 126 et seq.). A autora lembra que a

candidatura de Cardoso à presidência da república havia sido defendida como uma “resposta

contemporânea ao neoliberalismo de Washington”. No entanto, pelas ideias acima

mencionadas, observa-se que a socialdemocracia então defendida já havia “assimilado os

princípios neoliberais preponderantes na literatura internacional desde a década de 70” (idem,

ibidem, p. 27). Cardoso não pode, a rigor, ser caracterizado como um socialdemocrata típico,

uma vez que não está associado nem à tradição trabalhista (que, no caso brasileiro, ele critica

duramente na figura da Era Vargas), nem tampouco à tradição do Welfare State.

Deve-se lembrar que essa corrente do liberalismo contemporâneo é uma corrente

conservadora politicamente, destituída, por exemplo, de qualquer conteúdo distributivista, o

que, como vimos, não se aplica ao pensamento de Cardoso. Assim, a agenda defendida de

“reforma do Estado”, como a redução dos gastos públicos (o que justificou a reforma da

previdência realizada no governo FHC, a fim de se superar a crise fiscal), o elogio da

competitividade na dinâmica social, o “enxugamento” da máquina estatal com vistas a

erradicar o nepotismo, empreguismo, a corrupção e outros males do Estado brasileiro, feita

através das privatizações – pauta claramente neoliberal – convive com propostas que não

seguem a ortodoxia dessa corrente do liberalismo, como a defesa de combate estatal da

miséria. Isso não significava que seria necessário aumentar os gastos sociais do Estado, mas

apenas realizar uma “definição mais precisa das prioridades” e uma “melhoria na eficiência da

aplicação de recursos” (idem, ibidem, p. 15). Não se trata, propriamente, de um “Estado

mínimo”, tal como proposto por neoliberais ortodoxos como Hayek ou Friedman, mas de uma

redução das funções do Estado, agora atuando sobremaneira como “regulador” do mercado e

da sociedade civil, e não mais como seu “planejador”, “protetor”, “produtor”, “financiador”

Page 322: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

331

ou “garantia” da soberania nacional. Se não é um neoliberal, Cardoso é um intelectual

fortemente influenciado por esse tipo de liberalismo. Um projeto político, resume Dulci,

fortemente “antinacionalista e anti-Estado” ( 2010, p. 32), mas ao mesmo tempo democrático,

entendendo por democracia a autonomia dos interesses privados organizados na sociedade

civil e no mercado.

É também, como explica Cardoso literalmente, “dentro da ordem vigente” –

nunca contra as instituições da democracia-liberal, que parece ser se “telos

maior”. Não são, porém, como dizem muitos críticos, “neoliberais”.

Filosoficamente, não. Hora nenhuma reconhecem ou defendem um estado

minimalista, o endeusamento do mercado, etc. A confusão vem, talvez, do

fato de que pregam reformas sempre em sentido de “diminuir o Estado” e

“reforçar o mercado”, mas porque muitos desses intelectuais têm uma visão

já de décadas crítica ao estatismo, ao nacionalismo, etc., que relacionam com

autoritarismo e desenvolvimentismo corporativista em nosso continente

(DULCI, 2010., p. 242).

Para Dulci fica patente a vinculação PSDB com a linguagem política e a interpretação

da formação da democracia brasileira criadas por Cardoso. Ele conclui que Cardoso foi não

apenas o “principal ideólogo, mas também a principal liderança política do partido” e avalia o

caráter excepcional de tal condição: em geral, “tais papéis existem separados na prática

partidária, seja brasileira ou de outro país qualquer”. É claro que não se deve superestimar o

papel de Cardoso, já que tanto no plano intelectual, quanto no partidário, trata-se de mudanças

na cultura política do povo brasileiro, mas esse autor “polariza as atenções, por assim dizer,

como nenhum outro ‘pensador’ em partidos brasileiros” (DULCI, 2010, p. 123).

Um pensador que teve a importante função na cultura nacional de reorganizar e

sistematizar uma linguagem liberal-democrática de feições “modernas” (como ele mesmo

usualmente gosta de caracterizar a sua obra), mas que na medida em que dissocia a liberdade

humana da soberania nacional e da promoção da igualdade através do Estado (ou que limita

essa última à igualação de oportunidades por meio da educação), fala da democracia segundo

um viés alternativo e crítico às linguagens republicanas.

Page 323: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

332

Conclusão

Esta seção tem como objetivo principal retomar e organizar as conclusões de cada um

dos capítulos que a precede. Mais do que avançar na análise de cada dos autores ou temas

discutidos nos capítulos precedentes, o que se pretende é produzir uma síntese, ainda que

provisória, de nossas principais conclusões.

Pode-se dizer que o propósito geral que nos instigou a escrever este trabalho foi o de

demonstrar que, em certos casos, as tradições intelectuais do país formam, como linguagens

políticas, através de complexas mediações, a prática política de um povo. Segundo nosso

recorte, tratamos de intelectuais brasileiros que constituíram linguagens que influenciam hoje

o debate nacional, quando certas questões são tratadas, como a corrupção, o desenvolvimento

do país, a reforma política ou a reforma do Estado. Por se estabelecerem enquanto linguagens,

mobilizadas pelos atores políticos em seus discursos e ações, e por elas se fundamentarem em

interpretações macro-históricas do Brasil, isto é, por se constituírem enquanto perspectivas de

sentidos, essas obras podem ser encaradas como as “raízes intelectuais” da democracia

brasileira. “Raízes” que, enquanto fatores constitutivos da própria política brasileira hodierna,

devem ser levados em conta na compreensão da dinâmica política. Retomaremos, doravante,

as principais ideias-força de cada capítulo.

No primeiro capítulo, chegamos a três conclusões importantes no que se refere à

Teoria Política e ao Pensamento Brasileiro, subáreas da moderna Ciência Política no país. Em

primeiro lugar, se afirmou a validade do princípio hermenêutico que concede certa autonomia

no exame das ideias de um autor (evitando alguns reducionismos de interpretação, como o

sociológico), associado a um segundo princípio analítico que consiste em interpretá-las à luz

de seu contexto histórico (contra, portanto, as mitologias próprias à História das Ideias). Além

disso, concluímos pela vantagem de se considerar essas obras como formuladoras de

linguagens políticas, isto é, discursos proferidos com uma intenção de agir politicamente na

cena pública, discordando ou convergindo com os outros interlocutores relevantes do debate.

O terceiro e último ponto a que chegamos consiste em afirmar o potencial analítico de se

combinar os estudos de “curta duração”, comumente formulados pela moderna Ciência

Política, com as “grandes” narrativas de interpretação do Brasil, de longa duração, como

procuramos fazer ao longo desta pesquisa.

No segundo capítulo afirmamos duas ideias centrais. A primeira referente à

consideração de que o dissenso atual sobre o que é a democracia (e sobre o que ela deve ser)

Page 324: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

333

está fortemente associado à disputa sobre o significado da liberdade humana. Esse conceito é

organizador de diversas correntes da Teoria Democrática contemporânea. A segunda

conclusão a qual chegamos foi que é necessário rever criticamente as contribuições e os

limites das linguagens liberais que, em algumas das suas vertentes, tem passado por um

processo de dogmatização e naturalização de seus pressupostos. Contra isso, identificamos na

tradição republicana – com a diversidade teórica e histórica que lhe é intrínseca – uma

ferramenta fundamental, ainda que em processo de formação, para alargar a concepção usual

sobre a liberdade e sobre a democracia. Não se trata de considerar acriticamente o

republicanismo como linguagem conclusiva da democracia, mas de problematizar a

unilateralidade da visada que compreende o liberalismo como linguagem suficiente na análise

das democracias contemporâneas. No caso brasileiro, a tradição republicana é ainda mais

importante, na medida em que tantas formas de negação ou privação da liberdade continuam a

subsistir, a despeito dos avanços parciais realizados na construção de uma sociedade

democrática.

O terceiro capítulo tratou do primeiro pensador brasileiro analisado por este estudo,

Raymundo Faoro. Vimos que a obra de Faoro é associada ao senso comum brasileiro a

respeito da corrupção, tomando esse fenômeno, supostamente como: 1) algo “natural”,

correspondente à nossa brasilidade; 2) um problema de ordem moral, decorrente da falta de

caráter dos indivíduos que se corrompem na busca de satisfação de seus interesses privados;

3) um mal localizado no Estado brasileiro e nos seus aparatos. Se concordamos com o parecer

critico que julga esse senso comum sobre a corrupção como insuficiente para a compreensão

desse fenômeno, discordamos da interpretação que vê na obra de Faoro uma corroboração

dessas ideias. A interpretação do Brasil criada por Faoro em Os donos do poder, apresenta, ao

contrário, uma outra visão a respeito da corrupção. Essa é compreendida segundo quatro

significados básicos: 1) desvio de recursos públicos; 2) ineficiência na alocação dos recursos

públicos; 3) cultura do particularismo, por oposição a uma cultura cidadã de direitos

universais; 4) usurpação do poder pelo patronato político (ou estamento), organizando a

sociedade para a promoção e perpetuação dos privilégios e das assimetrias sociais, e não para

a promoção do bem comum. Nesse sentido, a linguagem política de Faoro aproxima-se da

matriz de pensamento republicana, segundo a qual corrupção significa, num sentido mais

rigoroso, uma forma de governo desviante e ilegítima. Não é correto, segundo nossa

interpretação, ler a obra de Faoro como uma defesa neoliberal do Estado Mínimo; ainda que

tal leitura tenha sido feita e endossada por diversos estudiosos, consideramos que ela é

Page 325: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

334

insuficiente para compreender de modo adequado a obra desse autor, permeada por um dever-

ser rousseauniano. Defendemos que a democracia aparece como um outro da sociedade

patrimonial-estamental em Os donos do poder, e mais explicitamente em suas obras

posteriores, na medida em que ela é associada à plena realização da liberdade, conceito que

organiza a obra desse autor e que é historicamente negado por nossa história patrimonial-

estamental. A solução faoriana para o problema a corrupção – é bem verdade, discutida de

modo não sistemático pelo autor e com uma ênfase por vezes excessiva no Estado e na

onipotência do patronato político, gerando, com frequência, uma sensação de pessimismo e de

imobilismo histórico em seus leitores – é afim com certa vertente da Ciência Política

brasileira, segundo a qual a democratização do Estado é uma medida fulcral para combater a

corrupção.

O quarto capítulo se voltou para a obra de Celso Furtado, recuperado nas últimas

décadas como referência intelectual do novo ciclo de desenvolvimentismo no país. Entretanto,

argumentamos que a associação da obra furtadiana com as políticas “neodesenvolvimentistas”

do último decênio deve ser avaliada criticamente. A linguagem democrática de Furtado é

composta, de acordo com nossa interpretação, de cinco ideias fundamentais. Em primeiro

lugar, a afirmação de que superação do subdesenvolvimento brasileiro requer a plena e

concomitante realização da democracia no país. Nesse sentido, a obra de Furtado inova

discursivamente em relação às outras correntes do pensamento político da época, na medida

em que, desde início dos anos 60, ele assume a democracia como um valor fundamental. Um

segundo ponto é a vinculação entre desenvolvimento e a promoção da justiça social no país.

Furtado concebe a democracia, portanto, segundo uma chave “substantiva”, em que a

eliminação das desigualdades sociais é condição para a sua efetivação. Um terceiro ponto é a

relação entre desenvolvimento, democracia e as desigualdades regionais (particularmente

aquelas que contrapõem o desenvolvimento do Sul-Sudeste com o atraso do Norte-Nordeste

do país), requisitando a formulação de um formato federativo mais justo para o país. Um

quarto ponto consiste no primado da soberania nacional, princípio central na obra furtadiana,

defendido contra a inserção subalterna do país no capitalismo internacional. A última ideia-

força dessa linguagem é a denúncia, sob uma perspectiva civilizatória, do caráter predatório

normalmente associado aos projetos de modernização, adotados pelos países centrais e

também pelos países periféricos do globo. Por essas razões, argumentamos que a linguagem

furtadiana identifica-se com princípios fundamentais da tradição republicana, como o da

defesa da igualdade (não meramente jurídica e formal), da liberdade (em sentido amplo, de

Page 326: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

335

realização do indivíduo nas esferas privada e pública), da soberania nacional e do bem comum

(expressos nos seus projetos de desenvolvimento para o Brasil). É certo também que, apesar

de sua inegável contribuição no entendimento do país, essa linguagem política carece de uma

reflexão mais detalhada e sistemática acerca das instituições típicas das democracias

modernas.

O quinto capítulo se voltou para outro tipo de discurso político (em alguma medida,

em tensão com a linguagem furtadiana) que é o da autonomia das instituições políticas e do

elogio da competição entre os diversos grupos sociais pelos cargos de poder. A obra de

Wanderley Guilherme dos Santos é a expressão mais bem acabada desse tipo de linguagem,

consistindo também num tipo de argumentação importante e influente (ainda que não

hegemônico) no debate sobre a reforma política. Além disso, interpretamos a obra desse autor

como formativa de diversas gerações de cientistas políticos brasileiros, nos quais o exame do

funcionamento das instituições políticas da democracia brasileira tornou-se um objeto central

de pesquisa, através dos métodos próprios à moderna Ciência Política. Atento às

idiossincrasias de nossa formação política, Santos problematiza o senso comum negativo a

respeito do funcionamento de nossas instituições democráticas, asseverando a necessidade de

se universalizar os direitos constitucionais básicos, a fim de se conquistar a confiança e a

cultura cívica dos cidadãos brasileiros, ainda imersos numa sociabilidade hobbesiana. Nesse

sentido, são particularmente interessantes as suas críticas quanto às diversas medidas

propostas de reforma política, alicerçadas numa perspectiva segundo a qual o Brasil moderno

vive um processo de “expansão cívica”. Fica evidente, todavia, algumas limitações da obra

desse autor, como a dificuldade em dar um tratamento equivalente à cultura política ao dado à

dimensão institucional da democracia. Além disso, sua “apologia democrática”, feita no

contexto de proposição de diversas reformas de nossas instituições políticas, e fundamental

numa situação de incipiente institucionalização democrática, como é a brasileira, revela-se

problemática sob a perspectiva do republicanismo contemporâneo, na medida em a

democracia é pensada principalmente como conjunto “procedimentos” para a competição pelo

poder.

O último capítulo tratou da obra daquele que, dentre os intelectuais aqui estudados, foi

certamente o que recebeu maior atenção, no que tange à relação entre teoria e prática política,

ainda que nem sempre de modo adequado. Fernando Henrique Cardoso foi claramente exitoso

em formular uma nova linguagem liberal no Brasil, articulando as ideias de democracia,

sociedade civil, mercado, modernidade e globalização. Nesse liberalismo, forjado em

Page 327: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

336

antagonismo às tradições do nacional-desenvolvimentismo e do socialismo brasileiro, fica

evidente a valorização da democracia como ativação da sociedade civil e constituição do

mercado, por oposição a um suposto papel excessivo do Estado na vida social do país. Essa

linguagem, criada por Cardoso a partir de três “lances” argumentativos, foi determinante na

conformação de um discurso de valorização da sociedade civil no contexto da

redemocratização do país. Polemizando com intérpretes que asseveram uma ruptura na

trajetória desse autor, interpretamos que é possível identificar, ao lado de alguns

deslocamentos de temas e de ênfase, uma linha de continuidade que se constitui por ideias

caras ao liberalismo contemporâneo, como o mercado e a sociedade civil e a democracia. No

entanto, recusamos, por outro lado, a mera identificação da obra desse intelectual com o

neoliberalismo (como fazem alguns de seus críticos), afirmando que se há muitos pontos

comum, há também elementos que o dissociam desse corrente de pensamento político. Por

conta desses elementos comuns, concluímos pelo caráter crítico ao republicanismo da

linguagem política de Cardoso. Ainda que não tenhamos demonstrado a vinculação entre

teoria do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e a prática do presidente FHC, assentimos

com a ideia de que sem a primeira não é possível compreender adequadamente a segunda.

Para encerrar, cumpre perguntar: a partir da comparação entre esses quatro autores –

Faoro, Furtado, Santos e Cardoso – todos eles inseridos num mesmo contexto histórico-

discursivo – que vai de meados de nosso primeiro período democrático (1945-64) até a Nova

República (1985 em diante), passando pela experiência crucial de uma ditadura militar – que

conclusões podemos tirar?

Em primeiro lugar, é possível afirmar que todos eles têm em sua trajetória intelectual

uma preocupação significativa com o tema da democracia brasileira. São, portanto,

pensadores da democracia. Isso não implica, como vimos, que essa preocupação se expresse

do mesmo modo, ou com a mesma intensidade, ao longo dos diversos momentos das

trajetórias de cada um deles. Exceto na obra de Furtado (na qual, a rigor, a democracia não é o

objeto central de estudo, mas o subdesenvolvimento), o que se verifica, em alguma medida, é

a comprovação parcial da tese compartilhada por Pécaut e Lahuerta a respeito da

intelectualidade brasileira, quer dizer: o tema da democracia (embora não estivesse sempre

ausente, ou fosse necessariamente objeto de desprezo [como caracteriza errônea e

excessivamente Pécaut]) vai ganhando um destaque na inteligência nacional, sobretudo, nas

obras publicadas por esses autores a partir da década de 1970. Assim, o Faoro de Assembleia

Constituinte debate e assevera com maior destaque a necessidade de se democratizar o Brasil

Page 328: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

337

do que o Faoro de Os donos do poder; do mesmo modo, se Wanderley Guilherme dos Santos

já defendia a democracia contra os golpistas à direita e à esquerda nos seus primeiros escritos

(MOREIRA, 2008), ela se torna posteriormente não apenas o seu valor político fundamental,

como ocupa o papel de objeto precípuo de análise desse autor, a partir do instrumental teórico

e metodológico próprio à Ciência Política acadêmica. Por fim, Fernando Henrique Cardoso:

se sua crítica dependentista ao “nacional-populismo” e ao socialismo brasileiro, formulada no

fim da década de 60, já evidenciava o caráter antiautoritário de seu pensamento, é, sobretudo,

a partir de meados dos anos 70 que esse autor formula uma nova compreensão da democracia,

particularmente influente desde então, a coincidir com a valorização da sociedade civil (por

oposição ao Estado).

Assim, o “pertencimento” a um mesmo contexto não elimina as diferenças teóricas

entre esses autores. Ficou evidente que se todos esses quatro grandes intérpretes do Brasil

estão formulando uma nova visão sobre a formação da democracia no país e sugerindo,

portanto, propostas e práticas políticas a fim de superar nosso passado autoritário, o fazem de

modo bastante diferenciado. Cada uma dessas linguagens apresenta, destarte, uma narrativa

própria de formação da democracia no país, que ligando o passado ao presente do país,

confere, de algum modo, sentido ao nosso futuro.

Ao tomá-las metaforicamente como “raízes” da democracia brasileira, não estamos

equiparando todas essas obras. Em primeiro lugar, porque o significado atribuído por cada um

desses autores à “democracia” é diferente. Se em Faoro ela significa, rousseuanianamente, a

reposição do princípio da soberania popular (por exemplo, pela adoção de uma Assembleia

Constituinte exclusiva nos anos 80), em Furtado ela está associada à superação do

subdesenvolvimento nacional (implicando na promoção da justiça social, num novo pacto

federativo, na autarquia da nação e numa civilização protetora do meio ambiente e das

culturas tradicionais). Já em Wanderley G. dos Santos ela organiza uma linguagem política

não oligárquica e não elitista, defendendo o aumento da competição poliárquica e a

universalização dos direitos individuais mínimos (como é típico de uma “ordem burguesa”);

ao passo que em Cardoso, a democracia representa, por sua vez, o fortalecimento da

sociedade civil, requerendo, por conseguinte, a refundação liberal do Estado brasileiro,

abrindo-o à economia capitalista global.

Vê-se, portanto, a significativa variação semântica do termo “democracia”, decorrente

tanto das tradições de pensamento político de que se apropria cada um desses autores, quanto

da intenção diferenciada deles de agir no cenário nacional. É verdade que os diferentes

Page 329: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

338

significados atribuídos à democracia por cada um desses pensadores estão relacionados ao

campo teórico-acadêmico em que eles se formaram: Faoro no campo do Direito, Furtado no

da Economia, Santos no da Ciência Política e Cardoso no da Ciência Política, mas também no

da Sociologia. Se essa diferenciação na formação intelectual de cada um deles é relevante

para a compreensão de suas obras (para entender quais são os principais autores com que eles

dialogam, polemizam, etc.), ela, todavia, é insuficiente, necessitando ser conciliada com uma

análise sistemática de suas obras; análise essa atenta ao seu contexto político-discursivo e, ao

mesmo tempo, que reconheça uma autonomia parcial ao discurso de cada autor, evitando

tomá-lo como mera expressão de uma época ou de reduzi-la como um modo típico de uma

área do conhecimento científico.

Uma segunda razão que deve ser levada em conta é que por mais que cada um desses

autores contribua para a conformação do debate nacional sobre a democracia, não é verdade

que eles o façam do mesmo modo ou com a mesma intensidade. Certamente que alguns

desses intelectuais tornaram-se mais “orgânicos” do que outros, isto é, com maior capacidade

de orientar atores, grupos e projetos políticos. Talvez, Fernando Henrique Cardoso (ao lado de

Celso Furtado) seja, dentre os autores aqui estudados, aquele que logrou realizar mais

intensamente essa vinculação entre “teoria” e “prática” política; tudo isso, é bem verdade, a

partir de uma obra mais fragmentada, produzida num menor período de tempo do que os

demais. Nesse sentido, é curioso observar como a versão “liberista” do patrimonialismo

brasileiro, formulada por ele, acabou influenciando a própria recepção da versão de Faoro,

aproximando essa última versão da sua (a despeito das incoerências decorrentes dessa

iniciativa, e das negativas do próprio Faoro quanto a essa aproximação).

Um último motivo que nos fez diferenciar as linguagens políticas desses autores foi a

sua maior ou menor identificação com certos princípios do republicanismo contemporâneo,

marco teórico escolhido por essa pesquisa para se pensar a democracia e que, na nossa

opinião, permite superar certas insuficiências próprias à tradição liberal. Longe de assumir a

tradição republicana como uma teorização sistemática e conclusiva sobre a democracia, essa

escolha está associada com a interpretação de que uma das vantagens dessa tradição é que ela

está centrada num entendimento amplo de liberdade (não numa concepção privatista e

atomista, como é comum no liberalismo), denunciando, por consequência, todas as suas

formas de negação (a dependência estrangeira, a dominação patrimonial, o

subdesenvolvimento, a ausência de direitos constitucionais universais, etc.), que cumpre à

democracia – compreendida segundo o marco do republicanismo – erradicar.

Page 330: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

339

A escolha em interpretar esses autores brasileiros à luz dessas duas tradições da Teoria

Política (do liberalismo e do republicanismo) não visa propriamente classificá-los. Como foi

dito, as “tradições” são apenas o ponto de partida da análise, não podendo um “rótulo” abarcar

de modo satisfatório a obra de qualquer autor, sobretudo desses intelectuais brasileiros, que

não se formaram de modo sistemático em relação com a Filosofia Política. No entanto, não é

razoável, por outro lado, interpretar uma obra teórica e política sem a referência inicial a essas

tradições. É somente com essa ressalva metodológica que se indicou a proximidade da obra de

Celso Furtado em relação às linguagens do republicanismo democrático, como, em alguma

medida, também no caso de Faoro (além do chamado “liberalismo cívico”). Da mesma

maneira, associamos a obra de Wanderley G. dos Santos às linguagens do liberalismo

democrático, mas já influenciadas, em alguma medida, pelas abordagens não participativas ou

não republicanas, veiculadas pelo mainstream da moderna Ciência Política, que formam o

campo intelectual desse autor. Por fim, obedecemos ao mesmo procedimento analítico no

capítulo referente à obra de Cardoso, recusando sua identificação com o socialismo e mesmo

relativizando sua autoidentificação com a socialdemocracia, mas também, por outro lado,

diferenciando-o parcialmente do neoliberalismo.

Um ponto específico, mas muito importante desta pesquisa, consistiu em identificar

que, tendo esses autores (com exceção de Celso Furtado e, em menor medida, de Raymundo

Faoro) formulados suas linguagens políticas num contexto de crise das tradições políticas

precedentes, suas obras evidenciam o período de transição pelo qual passou o pensamento

brasileiro do século XX, no qual o tema da democracia emerge, substitui e ofusca a discussão

sobre a nação, antes organizador da inteligência nacional. As linguagens democráticas do país

nasceram, por assim dizer, “órfãs” de uma reflexão mais bem compreendida desse tema,

fugindo da crítica excessiva que interditou o debate sobre a soberania nacional. Certamente

que o republicanismo, nesse sentido, pode auxiliar na formulação de uma linguagem em que

democracia e nação não estejam apartadas, como ocorre com mais frequência na tradição

liberal.

Para encerrar, cumpre destacar que além das contribuições pontuais que possa vir a ter

nossa interpretação desses autores e do pensamento brasileiro do século XX, acreditamos que

o principal valor dessa tese consiste na proposição crítica sobre a moderna Ciência Política do

país, particularmente sobre o “lugar” usual do Pensamento Político Brasileiro e da Teoria

Política nesse campo epistêmico. Procuramos demonstrar a insuficiência de abordagens do

fenômeno político em que subsista uma separação rígida do trabalho científico, diferenciando

Page 331: Introdução - Repositório UFMG: Home · 2019-11-14 · 10 Introdução O objeto de estudo desta pesquisa é a democracia brasileira tal como pensada e debatida pelos intelectuais

340

e dificultando o debate entre os estudos de “teoria” e os “estudos empíricos”. Contra tal

tendência, argumentamos em favor de uma perspectiva que avalie a prática e a cultura política

brasileira à luz de suas tradições intelectuais que, de modo mediado, se constituem não apenas

em indicadores das transformações políticas, mas também em seus fatores constitutivos.