interpretação da religião dos tupinambás

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Acta Sci. Human Soc. Sci. Maringá, v. 28, n. 1, p. 99-109, 2006 As abordagens funcionalista e histórico-materialista na interpretação da religião dos Tupinambá Nilson Nobuaki Yamauti Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790, 87020 -900, Maringá, Paraná, Brasil. e-mail: [email protected] RESUMO. Este artigo apresenta a aplicação de duas metodologias diferentes na interpretação da religião dos Tupinambá. Uma delas, o funcionalismo, leva à conclusão de que a religião era a esfera que estabelecia a dominância sobre as dema is esferas da sociedade. A outra, o materialismo histórico, conduz a um resultado diverso: era a economia que determinava, em última instância, as demais esferas, inclusive a religião. As duas operam com uma visão de totalidade da realidade social. A diferença é que a segunda leva em consideração a categoria tempo histórico . Palavras-chave: Marxismo, materialismo histórico, funcionalismo, metodologia marxista, religião. ABSTRACT. The interpretation of tupinambá religion by materialism and functionalism methodology. This article presents the application of two methodologies in the interpretation of Tupinambá religion. The functionalism leads to the conclusion that religion determined the other levels of society. On theother hand, the materialism approach concludes that it is the economy which determined the other levels, including the sphere of religion. Both approaches operate with a totality perspective of society. The difference is that the materialism takes into consideration the historical time category. Key words: Marxism, historical materialism, functionalism, Marxist methodology, religion. Introdução Os Tupinambá constituíam nos séculos XVI e XVII, uma das mais importantes tribos do Brasil. Ocupavam grande parte da costa brasileira e, no contato com os colonizadores, foram totalmente exterminados (Métraux, 1979: XXXIII). Apresentaremos neste artigo duas abordagens diferentes da religião na sociedade Tupinambá: uma realizada de acordo com a metodologia funcionalista e a outra baseada no materialismo históric o. Verificaremos que os dois enfoques chegam a conclusões diversas a respeito do papel da religião na organização de uma sociedade que transitava do comunismo primitivo para a fratura em classes sociais. A fim de subsidiar a discussão, faremos, preliminarmente, o relato de alguns aspectos dessa sociedade extinta com base nas observações deixadas por viajantes europeus. Economia e sociedade Os Tupinambá estavam transitando de uma economia extrativista para uma economia agrícola. O caráter incipiente das técnicas de plantio não lhes permitia, ainda, depender exclusivamente dos produtos da lavoura. Como implementos agrícolas, dispunham, apenas, da estaca de cavar e do machado de pedra. Além disso, o cultivo do milho, da mandioca, do algodão e de outros produto s estava baseado no uso destrutivo do solo. A exaustão de um nicho 1 era compensada pela busca de outro. A migração era determinada, também, pela necessidade de complementar a dieta com a extração de alimentos da natureza. Quando começavam a rarear animais, frutos, raízes, ovos e outros itens de alimentação, os Tupinambá eram obrigados a se dirigirem para outros pontos do território mantido sob seu domínio. As técnicas de conservação de alimentos eram rudimentares e não permitia m o seu armazenamento por per íodos muito longos. Conheciam, apenas, as técnicas de moquear carne e transformar raízes em farinha. Cada grupo local constituía uma unidade econômica auto-suficiente. Não existindo, praticamente, comércio intertribal, produziam o estritamente necessário para o consumo imediato (Fernandes, 1963, p. 91-99). O caráter singelo da economia e a dependência da natureza estabeleciam uma condição decisiva na 1 Em Ecologia, nicho refere-se a uma porção restrita de um habitat onde vigem condições necessárias para a existência de um organismo ou espécie (Houaiss, 2002). A Antropologia emprega este termo para designar uma porção do habitat de grupos humanos.

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Artigo científico sobre etnoarqueologia.

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Acta Sci. Human Soc. Sci. Maringá, v. 28, n. 1, p. 99-109, 2006

As abordagens funcionalista e histórico-materialista nainterpretação da religião dos Tupinambá

Nilson Nobuaki Yamauti

Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790, 87020 -900, Maringá, Paraná,Brasil. e-mail: [email protected]

RESUMO. Este artigo apresenta a aplicação de duas metodologias diferentes nainterpretação da religião dos Tupinambá. Uma delas, o funcionalismo, leva à conclusão deque a religião era a esfera que estabelecia a dominância sobre as dema is esferas da sociedade.A outra, o materialismo histórico, conduz a um resultado diverso: era a economia quedeterminava, em última instância, as demais esferas, inclusive a religião . As duas operamcom uma visão de totalidade da realidade social. A diferença é que a segunda leva emconsideração a categoria tempo histórico.Palavras-chave: Marxismo, materialismo histórico, funcionalismo, metodologia marxista, religião.

ABSTRACT. The interpretation of tupinambá religion by materialism andfunctionalism methodology. This article presents the application of two methodologiesin the interpretation of Tupinambá religion. The functionalism leads to the conclusion thatreligion determined the other levels of society. On theother hand, the materialism approachconcludes that it is the economy which determined the other levels, inclu ding the sphere ofreligion. Both approaches operate with a totality perspective of society. The difference isthat the materialism takes into consideration the historical time category.Key words: Marxism, historical materialism, functionalism, Marxist methodology, religion.

Introdução

Os Tupinambá constituíam nos séculos XVI eXVII, uma das mais importantes tribos do Brasil.Ocupavam grande parte da costa brasileira e, nocontato com os colonizadores, foram totalmenteexterminados (Métraux, 1979: XXXIII).Apresentaremos neste artigo duas abordagensdiferentes da religião na sociedade Tupinambá: umarealizada de acordo com a metodologia funcionalistae a outra baseada no materialismo históric o.Verificaremos que os dois enfoques chegam aconclusões diversas a respeito do papel da religião naorganização de uma sociedade que transitava docomunismo primitivo para a fratura em classessociais. A fim de subsidiar a discussão, faremos,preliminarmente, o relato de alguns aspectos dessasociedade extinta com base nas observações deixadaspor viajantes europeus.

Economia e sociedade

Os Tupinambá estavam transitando de umaeconomia extrativista para uma economia agrícola. Ocaráter incipiente das técnicas de plantio não lhespermitia, ainda, depender exclusivamente dosprodutos da lavoura. Como implementos agrícolas,dispunham, apenas, da estaca de cavar e do machado

de pedra. Além disso, o cultivo do milho, damandioca, do algodão e de outros produto s estavabaseado no uso destrutivo do solo. A exaustão de umnicho1 era compensada pela busca de outro.

A migração era determinada, também, pelanecessidade de complementar a dieta com a extraçãode alimentos da natureza. Quando começavam ararear animais, frutos, raízes, ovos e outros itens dealimentação, os Tupinambá eram obrigados a sedirigirem para outros pontos do território mantidosob seu domínio. As técnicas de conservação dealimentos eram rudimentares e não permitia m o seuarmazenamento por per íodos muito longos.Conheciam, apenas, as técnicas de moquear carne etransformar raízes em farinha.

Cada grupo local constituía uma unidadeeconômica auto-suficiente. Não existindo,praticamente, comércio intertribal, produziam oestritamente necessário para o consumo imediato(Fernandes, 1963, p. 91-99).

O caráter singelo da economia e a dependênciada natureza estabeleciam uma condição decisiva na

1Em Ecologia, nicho refere-se a uma porção restrita de um habitat onde vigemcondições necessárias para a existência de um organismo ou espécie (Houaiss,2002). A Antropologia emprega este termo para designar uma porção do habitatde grupos humanos.

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vida dos Tupinambá: — a organização socialprecisava ser rígida para permitir um bomdesempenho do grupo na luta pela sobrevivência ,sobretudo na tarefa de preservação de um territóriosuficientemente amplo para possibilitar a extração dealimentos para todos os membros do grupo .

Para se ter uma idéia da rigidez das relaçõessociais, vejamos como estavam insti tuídas a divisãodo trabalho e as regras de parentesco na sociedadeTupinambá. A função de procriação, bem como aconstituição física que a natureza reservou à mulher ,foram, certamente, os fundamentos básicos dadivisão do trabalho na sociedade Tupinambá. Aosindivíduos do sexo masculino ficav am reservadas astarefas que exigem força física e acarretam riscos àvida como a derrubada, queimada e primeira limpada terra para lavoura; a caça e a pesca; a perseguição emorte da onça; a construção da maloca; o corte dalenha e a defesa da aldeia. As mulheres ficav amencarregadas dos serviços domésticos: preparar acomida; garantir o abastecimento de água;providenciar a lavagem de redes; cuidar dotransporte de filhos e equipamentos; efetuar adepilação e tatuagem dos homens; fabricar farinhas eazeite de coco; realizar a fiação de algodão; executar atecelagem das redes; produzir cerâmicas eresponsabilizar-se por todos os trabalhos dahorticultura. Quando o grupo viajava, o homemdevia caminhar sempre na frente a fim de proteger amulher contra os ataques de animais ferozes e degrupos inimigos (Fernandes, 1963, p. 129).

O sistema de parentesco estabelecia os papéis,funções e obrigações que cada elemento do grupoprecisava desempenhar na luta pela sobrevivência. Acoleta dos recursos naturais obedecia a princípioscooperativos. A distribuição e o consumo eram feitosdentro de cada grupo familiar. A disciplina impostapelos laços de parentesco era extremamente rígida.Os filhos de pais desconhecidos, por exem plo, eramenterrados vivos porque se considerava que estesrepresentavam perigo para a comunidade. Na lutapela sobrevivência, a fragilidade dos indivíduosisolados era compensada, dessa maneira, pela rigidezdas regras que estabeleciam as relações e,conseqüentemente, a solidariedade social(Fernandes, 1963, p. 148).

A religião

Na sociedade Tupinambá, a religião definia osideais supremos de vida humana. Todos procuravamrealizar estes ideais, pois disso dependia o destino decada um tanto em vida como depois da morte. Asrelações com os ancestrais impunham aos vivos umasérie de obrigações; os mortos governavam os vivos

em um sentido dramático. O reatamento dasrelações diretas com os ancestrais, um dos ideais quemais estimulavam a conduta dos homens, só eraacessível para aqueles que obedecessem aos padrõestribais de moralidade e heroísmo. O sistemareligioso estipulava, também, os critérios deavaliação das capacidades, do valor, do prestígio e

dos poderes carismáticos dos indivíduos adultos2. O

fracasso determinava tanto sanções seculares, quantoa condenação eterna. Os malogrados jamais seriamaceitos na sociedade sobrenatural dos antepassados(Fernandes, 1963, p. 199).

Acreditava-se que a alma das pessoas mortascaminhava para além das montanhas partindo comoum emissário que iria encontrar-se com osantepassados (Fernandes, 1970, p. 187). Todavia,essa partida era impedida se a morte tivesse sidocausada, de forma ofensiva, por um membro de umatribo inimiga. O grupo não poderia, nesse caso,redefinir suas relações com o morto, atribuindo -lhea posição compatível com o seu novo status. A ofensasofrida impedia a execução normal das cerimôniasfunerárias que tinham a finalidade de conceder aomorto a nova posição. A permanência de sua alma naterra representava perigo sério para os parentes ; asolução do problema exigia a vingança (Fernandes,1963, p. 120). A incapacidade de retaliar a ofensa, pormeio da guerra, poderia conduzir uma tribo à perdada vitalidade demográfica ou acarretar o abandonocompulsório de uma determinada região(Fernandes, 1970, p. 357).

O estado de guerra permanente era mantido,assim, devido à necessidade inescusável de vingar osparentes e amigos que tivessem sido mortos pelosinimigos (Fernandes, 1963, p. 199). O guerreiro queexecutasse algum prisioneiro conforme o ritualestabelecido era considerado um cavaleiro sagrado,recebia os qualificativos de Abaeté, que significavahomem verdadeiro, e tinha o seu prestígio bastanteaumentado dentro da comunidade (Métraux, 1979,p. 145). Um dos principais critérios para a promoçãosocial era o número de inimigos sacrificados edevorados ritualmente. Dependendo desse número,os homens conquistavam o status de homem casado,chefe de maloca, chefe de grupo local, chefe debando guerreiro, líder guerreiro e pajé (Fernandes,1970, p. 173-175; 200; 216-232). Só poderiamtornar-se Morubixaba, chefe de tribo, aqueles quepossuíssem em seu ativo, vários massacres rituais(Métraux, 1979, p. 145). A alma do morto quehouvesse, em vida, feito mui tos prisioneiros na

2Em comunidades primitivas, não seria adequado, na verdade, utilizar o termoindivíduo se quiséssemos designar um membro do grupo com personalidade,interesse, visão de mundo e ideologia própria, diferente dos de outros membros.

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guerra contra os inimigos, viveria eternamente emGuajupiá, paraíso dos antepassados, saltando,cantando e divertindo-se sem cessar (Fernandes,1970, p. 187).

Os malogros nas guerras intertribais significavamuma espécie de sacrilégio c ometido contra amemória dos antepassados (Fernandes, 1970, p.234). Aqueles que não tivessem demonstradobravura nas guerras, aprisionando numerososinimigos para o sacrifício ritual, seriam consideradosManem, ou seja, covardes e afeminados. Depois demortos, estes covardes seriam atormentadoseternamente por Jurupari ou Anhangá (Fernandes,1963, p. 196). Em vida, o Manem era recusado pelasjovens solteiras e não podia sequer se casar, pois seacreditava que os filhos gerados por um homem quejamais tivesse feito pelo menos um prisioneiro naguerra não poderiam tornar-se bons frutos; seriamtais rebentos Mébeck, ou seja, fracos, preguiçosos ecovardes (Métraux, 1979, p. 145).

A formação de guerreiros

Para serem bem sucedidos na guerra, osindivíduos do sexo masculino, desde que chegavamao mundo, recebiam uma formação especial para setornarem fortes e corajosos e para desenvolveremódios tribais. Ao recém-nascido eram ofertadasunhas de onça e garras de águia a fim de lhecomunicar certos poderes mágicos. O meninorecebia do pai um pequeno arco com flechas que eraatado em um dos punhos da rede onde dormia. Estegesto simbolizava a guerra e a vingança contra osinimigos. No outro punho eram amarrados molhosde ervas. Estes representavam os inimigos que ofilho deveria matar e devorar ritualmente no futuro.O pai dizia à criança, em tom solene: Meu filho,quando cresceres serás hábil no uso de armas, forte, valente ebelicoso para te vingares de teus inimigos (Fernandes,1963, p. 151 e 186).

Ao atingirem a idade de quatro a seis anos, osmeninos eram submetidos ao ritual de perfuração dolábio inferior. Após três dias de danças e de muitoconsumo de cauim, os adultos chamavam o meninopara o centro da aldeia e cientificavam-no de que oseu lábio seria perfurado para que se tornasse umguerreiro valente e adquirisse, assim, muito prestígiodentro da comunidade. Um índio adulto pegava,então, o lábio do menino e o atravessava com umosso pontiagudo produzindo nele um grandeorifício. Se o menino gritasse ou chora sse, o queraramente acontecia, diziam-lhe que não prestariapara nada. Ele se tornaria um homem medroso eseria sempre um covarde. Se demonstrasse coragem,o menino seria, mais tarde, um bravo e valente

guerreiro (Fernandes, 1970, p. 166).Nos rituais antropofágicos, os meninos eram

obrigados a encharcar as mãos no sangue do cadávere tinham os seus corpos lambuzados com estemesmo sangue. Os adultos incitavam os órfãos avingarem os parentes mortos em guerra dizendo-lhes: Estamos vingados. Vinga-te também, meu filho. Eisaqui um dos que te deixaram órfão de pai (Fernandes,1970, p. 166-167; Métraux, 1979, p. 136). Norepasto antropofágico, as crianças recebiam o miolodo crânio e a língua do inimigo sacrificado(Fernandes, 1970, p. 168).

A vingança dos parentes mortos era o motivo queimpulsionava os Tupinambá à guerra, à captura e aomassacre ritual de inimigos (Fernandes, 1970, p.211). A crença na necessidade da vingançatransformava a participação nas atividades guerreirasem obrigação moral (Fernandes, 1970, p. 352). Acaptura de inimigos para o sacrifício ritual constituíauma dívida dos vivos em relação aos espíritos deparentes e de ancestrais míticos (Fernandes, 1970, p.322; 339 e 355). A consumação da vingançapermitiria normalizar as relações dos vivos com osespíritos de seus parentes mortos (Fernandes, 1970,p. 352).

O condicionamento produzido pelas crenças erituais religiosos era tão forte que os Tupinambáaplicavam a lei do talião em tudo demonstrandofúria contra os ofensores, quer fossem este s animais,quer fossem objetos inanimados, mordendo -oscomo fazem os cães (Métraux, 1979, p. 137). Issorevela a força da religião na determinação docomportamento dos membros da comunidade.

O ritual antropofágico

Nas incursões guerreiras, os inimigos capt uradoseram levados à aldeia como prisioneiros. Estespassavam a morar na oca dos guerreiros responsáveispela sua captura. Os prisioneiros jovens podiamviver integrados na comunidade de quinze a vinteanos, antes de serem sacrificados. Não sofriamnenhuma vigilância e nem tinham sua liberdadetolhida. Se fugissem e retornassem à sua tribo,seriam mortos pelos próprios membros de suacomunidade por serem considerados covardes emedrosos, não confiando na capacidade de sua gentepara vingá-los (Métraux, 1979, p. 118-122).

Quando se aproximava o dia do sacrifício, a svítimas eram segregadas da comunidade epermaneciam numa cabana junto com uma jovempara com ela dormir. Uma série de rituais erarealizada a fim de reconstitui r o clima emocionalexistente no momento da captura. Os cativosprecisavam reassumir o caráter de inimigo s odiados

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(Fernandes, 1970, p. 276).Seguiam-se, então, os ritos de inculpação para

qualificar os prisioneiros como membros de umgrupo inimigo. Eram evocadas as ações sacrílegas dosinimigos praticadas contra as pessoas dos ancestraisou parentes mortos. As vítimas deveriam ter ciênciade que o sacrifício constituiria uma punição àquelasações sacrílegas (Fernandes, 1970, p. 277).

Os rituais prosseguiam durante dois ou três dias,com danças e cantorias realizadas em estado deembriaguez e exaltação (Fernandes, 1970, p. 277). Ascerimônias eram riquíssimas em detalhes e emsimbologia. Cada gesto, canto, ornamentação,pintura corporal, dança, discurso, tratamento oumovimentação coreográfica tinha um significado

especial e era realizado de forma muito minuciosa3.

Para que as vítimas se sentissem dignificadas, asregras de imolação cerimonial deveriam serobservadas fielmente, sem nenhuma falha. Se estasregras não fossem seguidas com esmero e precisão,as vítimas poderiam sentir a sua dignidade ultrajada edirigir a sua cólera, após a morte, contra os seusalgozes (Fernandes, 1970, p. 288).

Quando chegava o momento da execução, o sprisioneiros eram autorizados a dirigir ao guerreiroque os trazia capturados o seguinte discurso:

Partimos, como fazem os bravos, para prender edevorar-vos, a vós, nossos inimigos. Fostes, porém,mais felizes e caímos prisioneiros. Não nos queixamosda morte. Os valentes de verdade morrem na terra dosinimigos (Métraux, 1979, p. 116).

O carrasco dirigia-se a cada um dos prisioneiroscom as seguintes palavras:

Não pertences à nação X, nossa inimiga? Não matastee devoraste, tu mesmo, os nossos parentes e amigos?Altivo, o prisioneiro respondia: Sim, sou muitovalente e realmente matei e devorei muitos. Oexecutor, então, replicava: Agora estás em nossopoder; será logo morto por mim e moqueado edevorado por todos. O prisioneiro tornava aresponder: Pois bem, meus parentes irão, certamente,vingar a minha morte (Métraux, 1979, p. 133).

Terminado o diálogo, o encarregado do massacrelevantava a borduna com ambas as mãos e desferiaum golpe na testa ou na nuca de cada prisioneirocom uma destreza tal que a s vítimas caíam mortassem moverem braços ou pernas e sem perderemsangue (Fernandes, 1970, p. 288-289).

Os crânios dos mortos eram, então, quebradosporque se considerava que nele s estariam localizadas

3Não há espaço aqui para reproduzir a descrição das cerimônias feitas peloscronistas. Certamente, nenhuma das religiões q ue conhecemos apresenta umconjunto tão rico de rituais em uma mesma cerimônia.

as almas dos inimigos a serem devorados.Despedaçar o crânio era uma condição essencial paraa consumação da vingança. O sucesso de uma açãoguerreira seria definido por este ato e nãosimplesmente pela sua morte (Fernandes, 1970,p. 314-315; 323; 354).

A seguir, as mulheres agarravam o s cadáveres elançavam-nos ao fogo a fim de queimar todos osseus pêlos. Depois, lavavam-nos com água quente eabriam-lhes o ventre para retirar as suas entranhas.Em seguida, cortavam-nos em pedaços que seriamassados numa grelha de madeira. Algumas partes,consideradas nobres, eram oferecidas aos hóspedesmais honrados (Fernandes, 1970, p. 291-292). Todosos membros da comunidade, inclusive as mulheres eas crianças, participavam do repasto (Fernandes,1970, p. 296).

A interpretação de Florestan Fernandes

Na sociedade tupinambá, a extrema dependênciaem relação ao meio natural circun dante e a reduzidaeficiência do sistema adaptativo tribal traduziam -sena intensificação dos laços de interdependência, deassistência mútua e de solidariedade social(Fernandes, 1970, p. 350-351). Entretanto, os liamessociais produzidos pelas condições de adaptação aomeio natural não possuíam consistência suficientepara manter em união permanente as diversasparentelas, associadas pela organização dos gruposlocais. Os compromissos e ligações entre os gruposlocais circunvizinhos descansavam, primariam ente,nas relações de parentesco consangüíneo e porafinidade. A estrutura social não proporcionavaliames mais consistentes do que estes, pelo contrário(Fernandes, 1970, p. 340). E, além disso, os laçosnascidos do parentesco por afinidade podiam serrompidos com relativa facilidade. Em resumo, ascondições e fatores estruturais da vida social eraminsuficientes, por si mesmos, para determinar opadrão de constituição interna e o ritmo defuncionamento da sociedade tupinambá. Assituações sociais regularmente proporcionadas pelaestrutura social implicavam determinadosajustamentos às condições materiais, morais ereligiosas de existência social. Mas elas nãocontinham as forças psicossociais que criavam anecessidade de viver juntos e de querer em comum(Fernandes, 1970, p. 369).

Cabia aos xamãs resolver os problemas de coesãosocial por meio do auxílio do sobrenatural(Fernandes, 1970, p. 369-370). Uma das crençasreligiosas por eles criadas estipulava que os pais eamigos devorados no passado pelos inim igosprecisavam ser vingados (Fernandes, 1970, p. 50-53).

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As pessoas que tivessem parentes mortos na guerraficariam expostas à ação mágica dos inimigos, bemcomo às represálias do espírito do morto(Fernandes, 1970, p. 331). Por isso, os Tupinambáprecisavam restabelecer, por meio do massacre deinimigos, a integridade de seus parentes , além desatisfazer o desejo canibalístico das divindades ouancestrais míticos (Fernandes, 1970, p. 320 e 331).Assim, a vingança de sangue impelia os Tupinambáàs guerras tribais (Fernandes, 1970, p. 68 e 351).

A guerra tinha por finalidade a captura deinimigos para a sua utilização em rituais de vingança(Fernandes, 1970, p. 352). Por meio da antropofagiaera consumada essa vingança (Fernandes, 1970, p.322). Os espíritos dos parentes mortos de formasangrenta, vingados, poderiam, então, seremrecebidos na sociedade sobrenatural dosantepassados (Fernandes, 1970, p. 318). Com aconsumação da vingança, ao mesmo tempo em queo espírito beneficiário do sacrifício entrava na p osseda integridade do seu ser, a coletividade se viarestaurada na posse de sua unidade mítico-religiosabem como de sua autonomia mágica. E, deste modo,afastavam-se certos fatores de interferência nasrelações com o sagrado, prevenindo , assim, malesque poderiam advir da insatisfação ou da cólera dosespíritos (Fernandes, 1970, p. 356).

Quais eram os efeitos sociais da guerra e do ritualantropofágico? A cerimônia antropofágica era umaatividade que reunia a coletividade. Todos osparticipantes assumiam a vingança como uma formade punição das profanações feitas ao caráter sagradodo Nós coletivo. A destruição do inimigo reproduziasocialmente as obrigações morais estipuladas pelareligião e criava um intenso estado de comunhão . Oreatamento dos laços de confiança recíprocacontribuía para restaurar o moral coletivo e asegurança psíquica dos indivíduos promovendo,conseqüentemente, o equilíbrio social (Fernandes,1963, p. 122-123; 274; 341).

Ao estabelecer a projeção das hostilidades contra osinimigos, ao expor os membros do grupo a um perigoexterno comum, ao fortalecer, enfim, a identidadecoletiva, a guerra constituía-se como uma fonte deestabilidade da ordem social por preservar o equilíbriodo sistema tribal de relações sociais e o padrão desolidariedade correspondente (Fernandes, 1970, p. 339;341; 364). Elevando a guerra à esfera de obrigaçõesmorais com fundamentos sagrados, a sociedadetupinambá se defendia contra os perigos dedesintegração das relações sociais (Fernandes, 1970, p.360). A guerra se inscrevia, enfim, entre os mecanismosbásicos de preservação e perpetuação da estrutura dasociedade Tupinambá (Fernandes, 1970, p. 237).

Em resumo, os xamãs formularam a crença de queos parentes mortos precisavam ser vingados parapoderem entrar no reino dos antepassados e deixarem,dessa forma, de constituir ameaça aos quepermaneciam vivos. A vingança tornou-se, então, amotivação que impulsionava os Tupinambá à guerra. Aconsumação da vingança por meio da captura e dosacrifício ritual de inimigos reforçava o sistema tribal desolidariedade e eliminava os problemas relacionados àintegração social (Fernandes, 1970, p. 211).

As conclusões de Florestan Fernandes

Um grupo humano cuja subsistência é baseadana extração de produtos oferecidos espont aneamentepela natureza depende estreitamente do domíniosobre um vasto território na medida em quenecessita migrar de uma região para outra após oesgotamento dos recursos naturais existentes emcada uma delas. O meio externo era crucial para osTupinambá por representar o provimento de água,lenha, peixes, caça e produtos cultivados no solo. Asmigrações periódicas constituíam a causa objetivadas guerras intertribais. Em outra s palavras, asincursões guerreiras tinham por finalidade assegurara exclusividade do território sob o domínio de umgrupo local. E estar preparado para a guerra era umaforma de não ser desalojado de um território, alémde possibilitar a conquista de novos nichos. Quandoprivações muito sérias se impunham de modopermanente, os grupos precisavam invadir territóriospertencentes a outras tribos. Após a invasão e aocupação, as guerras se tornavam necessárias parapreservar os novos nichos até que o domínio fosseconsumado com a derrota do inimigo. Sem estedomínio, a exploração dos nichos ocupados poderiaser perturbada por ataques freqüentes do grupodesalojado. A partir dessa constatação, pode -seafirmar que a guerra determinava o equilíbrioeconômico da sociedade Tupinambá ao garantir apreservação e a substituição de posições na biosfera,ao subtrair as fontes de subsistência de perturbaçõesoriundas da invasão de outros grupos. A guerraapresentava, assim, uma função econômica. Deconformidade com essa perspectiva, seria plausívelconcluir que o sistema econômico tribaldeterminava a guerra Tupinambá. Entretanto, —Fernandes ressalva —, não de forma direta eimediata (Fernandes, 1970, p. 56; 58; 62-63; 112;128; 368-369; 378).

O autor explicita a sua posição metodológica daseguinte forma: “Não pretendo de maneira algumainsinuar a priori que os fatores materiaisdesempenhavam um papel dominante nadeterminação da guerra na sociedade tupinambá. Ao

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contrário, o método interpretativo adotadoconduziu-me à pesquisa da forma tópica de atuaçãodos fatores de causação social da guerra na sociedadeTupinambá, sem nenhuma preocupação definida de‘atomização’ explicativa da realidade social. Osmecanismos de causação social da guerra foramencarados, pois, como uma totalidade” (Fernandes,1970, p. 377).

Em suma, analisando a sociedade tupinambáenquanto totalidade, Fernandes concluiu que não era aeconomia que determinava diretamente as demaisesferas da realidade. Suas conclusões corroboram ateoria de que “não é o meio físico que determina demodo imediato a estrutura dos agrupamentos s ociais,mas, ao contrário, é o nível de civilização e aorganização social das sociedades humanas quedeterminam as condições de ocupação do meio físico eo tipo correspondente de ‘domesticação’ do mesmo”(Fernandes, 1970, p. 65-66).

O autor enfatiza que a competição no nívelecológico, ou seja, por fontes de subsistência,operava como condição indireta da guerra 4. A triboque não conseguisse manter a sua autonomia mágicacorria o risco de perder o controle sobre osterritórios ocupados pelos grupos locais que aconstituíssem (Fernandes, 1970, p. 355). Ou seja, apreservação das fontes de subsistência dependia darealização de tarefas instituídas pela religião e nãodiretamente da força das motivações de ordemeconômica. O autor explicita a sua conclusão deoutra forma: um dos efeitos sociais indiretos da guerraTupinambá era que as suas conseqüências no planomágico-religioso “se refletiam nas condições deocupação e exploração econômica do meio físico: aincapacidade de inverter, através da guerra, o estadode heteronomia mágica podia conduzir uma tribo adois extremos — a perda da vitalidade demográficaou o abandono compulsório de determinada região”(Fernandes, 1970, p. 357). Ou seja, um fator deordem religiosa intervinha no desencadeamento e naregulamentação social das atividades guerreiras nasáreas ocupadas e sujeitas ao domínio dosTupinambá. A “defesa indireta do conjunto decontroles sociais desenvolvidos pela coletividade naocupação do meio físico ambiente e das relaçõesadaptativas tribais e intertribais correspondentes”seriam efeitos sociais ou funções derivadas da guerra(Fernandes, 1970, p. 339).

Em suma, o sistema religioso estabelecia aorganização social ao definir um modelo moral deconduta para todos os membros da comunidade

4Existe no texto de Fernandes uma aparente ambigüidade. O autor reconhece aimportância das determinantes econômicas, mas constata que o comportamentodos Tupinambá era definido por princípios estipulados pela religião. Mais à frenteexplicitaremos as razões dessa “ambigüidade”.

(Fernandes, 1963, p. 199). A religião e a magia seevidenciavam como sendo os fatores dominantes noconjunto total de fatores sociais da sociedadeTupinambá (Fernandes, 1970, p. 370).

Uma interpretação materialista

As análises sociais de Karl Marx parte m doprincípio de que o modo de produção da vidamaterial determina, em última instância, o processoda vida social e intelectual (Apud Godelier, 1978, p.50). Aplicando este princípio no estudo dassociedades primitivas, seria possível concluir que aanálise de sua base econômica possibilita umacompreensão mais profunda de toda a estruturasocial bem como de suas instâncias ideológicas . Emoutras palavras, sob a perspectiva marxista, a estruturasocial depende estreitamente das relações econômicasespecíficas que nascem do controle dos recursosmateriais de subsistência (Firth, 1964, p. 14).

Se apoiarmos a nossa interpretação no princípiomarxista de que a base econômica determina , emúltima instância, as demais esferas da sociedade,chegaríamos à seguinte conclusão: o modo deprodução da vida material, baseado no extrativismo,exigia dos povos primitivos a preservação de umterritório amplo o suficiente para as sucessivasmigrações. A preservação do território implicava aprática da guerra. A guerra estabelecia comocondicionante a formação de guerreiros fortes ecorajosos, com uma disposição psíquica vigorosapara destroçar os inimigos. E esta exigência, por suavez, determinava as crenças, os rituais e as regras dareligião Tupinambá.

As crenças, as regras e os rit uais estabelecidospela religião condicionavam o homem, d esdecriança, a ser guerreiro. Ou seja, d evido às condiçõesdeterminadas pela economia, a sociedade dependia,para a sua sobrevivência, de homens que não fossemcovardes, tímidos e medrosos. À religi ão cabia,portanto, produzir guerreiros com as qualidadesnecessárias para a defesa do território pelo fomentodo desejo de vingança, da exigência de execução deprisioneiros e da prática da antropofagia. O ritualantropofágico tinha por função fomentar a energiapsíquica dos guerreiros pela consumação davingança. A guerra constituía objetivamente umaexigência imposta pelo modo de produção da vidamaterial, pelo grau de desenvolvimento das forçasprodutivas dessa sociedade. A religião eradeterminada, enfim, por exigências que nasciam daesfera econômica da sociedade.

Essa conclusão, embora diversa daquelaproduzida pela abordagem funcionalista, foi extraídade uma visão de totalidade da sociedade que não leva

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em consideração o fator histórico 5. Dessa forma, essatotalidade mecânica apresenta o mesmo problemaque iremos apontar nas interpretações de tipofuncionalista.

O papel da religião de acordo com a perspectivamaterialista

A convivência em sociedade exigiu do animalsapiens a repressão dos instintos, isto é, a supressãogradativa dos equipamentos biológicosdesenvolvidos pela natureza para impulsionar osanimais a ações que lhes garantissem aautopreservação e a perpetuação da espécie. Se umanimal irracional é capaz de arriscar ou entregar avida ao realizar ações ditadas pela força dos instintos,o mesmo deixou de ocorrer entre os seres humanos,em razão da inibição e atrofia dos instintos. Nossosancestrais precisaram desenvolver, então,dispositivos alternativos para a produção de energiapsíquica que fosse suficiente para promover tanto asações exigidas na luta pela sobrevivência , quanto acontenção da agressividade natural dos membros dogrupo a fim de possibilitar a convivência social e,dessa forma, a luta coletiva pela sobrevivência.

Para o ser humano, o instinto de autopreservaçãose exprime psiquicamente como medo. A fim detornar possível a sobrevivência coletiva, foinecessário criar mecanismos de controle do medopara permitir as ações solidárias do grupo na caça ena defesa contra os predadores bem como na luta ena defesa contra os grupos inimigos.

Os processos institucionais desenvolvidos pelascrenças, regras e rituais da religião desempenharam afunção de gerar a energia psíquica necessária paradomesticar o instinto de autopreservação.Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que s edominava o medo relacionado a esse instinto, erainstituído o medo de entidades sobrenaturais a fimde impulsionar as ações dos membros do grupo naluta coletiva pela sobrevivência , sobretudo nasincursões guerreiras realizadas para garantir odomínio do território6.

Na sociedade Tupinambá, o sentimento devingança promovido pelas crenças e reforçado nosrituais religiosos exprimia a energia psíquica capazde redobrar a força, a coragem e a astúcia necessáriasna guerra. O ritual da antropofagia reproduzia e

5As comunidades tribais revelam um ritmo muito lento de evolução. Por isso,foram consideradas por alguns pesquisadores como sociedades sem história oupré-históricas. Estamos, aqui, partindo de um pressuposto diverso. Com odesenvolvimento da prática agrícola, algumas sociedades primitivas passam porum processo de caráter histórico que denominamos civilizatório.6Sahlins assinala que a religião aquieta medos pessoais, instiga confiança eencoraja. Essa força espiritual permitiria que as tarefas da sociedade fossemrealizadas satisfatoriamente. Ao mesmo tempo, as crenças e rituais religiosospodem incutir medo para forçar os membros da comunidade a reali zar as tarefassociais cruciais (Sahlins, 1974, p. 151 -152).

fortalecia o sentimento de vingança pro movendomais energia psíquica. Por essa razão, os Tupinambáacreditavam que a ingestão de determinadas partesdo corpo do inimigo assegurava aos participantes dorepasto antropofágico um incremento de energiasindividuais (Fernandes, 1970, p. 356). Os velhos nasociedade Tupinambá, com o corpo debilitado enecessitando de uma carga de energia nova, eram osmais particularmente ávidos de carne humana(Métraux, 1979, p. 137-138). A consumação davingança por meio do ritual antropofágico tinha,também, a função de causar temor de ordemsobrenatural nos inimigos a fim de afugentá-los doterritório sob o domínio da tribo (Léry, 1941, apudBaldus, 1954, p. 388).

Em suma, as crenças espirituais e os rituaistinham a função de produzir energia psíquica paradesencadear as ações que garantiam o domínio dafonte de suprimento de bens econômicos , essenciaispara a subsistência do grupo. Pode -se sugerir que,dessa forma, a religião era determinada pelaestrutura econômica da sociedade.

A interpretação baseada em um materialismo de caráterhistórico

Distinguindo infra-estrutura e superestrutura,Marx supôs que a lógica profunda das sociedades ede sua história depende, em última análise , dastransformações da infra-estrutura (Godelier, 1978, p.82). Quando ocorre um desenvolvimentorevolucionário das forças prod utivas, ocorre umabalo nas relações de produção estabelecidas e,conseqüentemente, em todas as demais relaçõessociais e em todo o universo de ordem simbólica.

Se adotarmos a perspectiva histórica nainterpretação da sociedade Tupinambá, passaremos acompreender as questões estruturais sob uma óticadiversa da funcionalista . Os Tupinambá estavampassando por um longo período de t ransição de umaeconomia extrativista para uma economia baseada nocultivo da terra7. Métraux observou que osTupinambá eram gente essencialmente agrícola, istoé, tiravam da terra a maior parte da sua subsistência(Métraux, 1979, p. 148). Todavia, não constituíam,ainda, uma sociedade de classes porque a agriculturaque praticavam era rudimentar. O solo precisavaficar em repouso durante alguns anos antes de sernovamente aproveitado para cultivo. Dessa forma, aagricultura Tupinambá exigia a associação mista coma prática extrativista e, conseqüentemente, odomínio coletivo de uma determinada extensão de

7Morgan constatou que o desenvolvimento da agricultura estava conduzindo ospovos primitivos da América à vida em aldeias e, conseqüentemente, asedentarização, substituindo aos poucos a caça e a pesca (Morgan, 1973, p. 6)

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terras suficiente para propiciar migrações periódicas.Os grupos humanos que dependem

exclusivamente da caça e da coleta necessitampreservar um amplo território para a extração dealimentos oferecidos pela natureza. A propriedadeprivada, nesse caso, é impossível. Logo, a coesão dosmembros da coletividade brota espontaneamente daprópria estrutura econômica. Sem coesão social, nãoseria possível caçar, coletar, defender o território pelaguerra. Sahlins é um dos autores que defende essatese observando que a dependência direta do meioambiente traduz-se socialmente em maiorinterdependência humana. As sociedades tribaisenfrentariam o perigo da falta de a limentos pelaintensificação da solidariedade comunal e dacooperação econômica (Sahlins, 1974, p. 30).

O desenvolvimento da agricultura possibilita ocrescimento demográfico e enfraquece, por isso, ograu de coesão e de integração social. O aumento dograu de autonomia do grupo em relação aoscaprichos da natureza, o fato de a luta pelasubsistência não ter mais o mesmo caráter crucial edramático que apresentava quando a coletividadeobtinha seus alimentos pelas práticas extrativistas,são estes os outros fatores que afrouxariam a coesãosocial, antes necessária e fundamental. Na sociedadeTupinambá, o desenvolvimento da agriculturapermitia a segmentação de certas atividades porgrupos familiares, mas não possibilitava, ainda, apropriedade privada da ter ra. Entretanto, ofortalecimento de grupos familiares com interessesparticulares, que lutavam por maior autonomia,enfraquecia a coesão comunitária.

Vejamos outras perturbações que a prática daagricultura estava fomentando na organização dasociedade Tupinambá. A produção de alimentos pormeio do cultivo do solo possibilitava a diminuição dafreqüência de migrações dentro do território. Dessaforma, reduzia a extensão de território necessári apara a alimentação do grupo. É óbvio que a produçãode alimentos por meio do cultivo da terra requeruma extensão de território muito menor do queaquela que requer o extrativismo mesmo quando aterra é exaurida por falta de adubação adequada eexige a migração. Em decorrência, a produçãoagrícola diminuía a importânc ia da guerra comoatividade essencial para a subsistência desde que osgrupos vizinhos estivessem, também, abandonando aprática extrativista. A relativização da importância daguerra afetava, igualmente, a solidariedade social.

Vejamos um outro efeito pro vocado pelodesenvolvimento da agricultura. O canibalismo deveter surgido em razão do caráter instável e precáriodas fontes de recursos naturais. Seria expressão

direta de um modo de produção primitivo, compouco desenvolvimento das forças produtivas,voltado unicamente à caça e pesca. A sua funçãoespecífica poderia ter sido atemorizar possíveisinvasores de território. O desenvolvimento daagricultura atenua a importância dessa função(Engels, 1981, p. 23). Entre os Tupinambá, aantropofagia era uma prática que não constituía maiselemento diretamente relacionado à produção davida material. Assume um caráter mais religioso queeconômico, com uma função diversa daquela quepossuía anteriormente. Morgan nota, inclusive, atendência de as tribos que evoluíam para umaeconomia agrícola abandonarem a prática docanibalismo (Morgan, 1973, p. 6).

Se, em futuro próximo, os Tupinambá nãodependessem mais da caça e da guerra, nãoprecisariam formar guerreiros com volúpia psíquicapara consumar a vingança e defender o território .No estágio evolutivo em que se encontrava asociedade Tupinambá, o ódio aos inimigos, mais queum estado emocional real, estava se tornando umamanifestação formal, de caráter religioso. Osprisioneiros eram tratados com carinho como sefossem filhos adotivos. Não eram degradados morale socialmente, nem explorados economicamente.Aos prisioneiros do sexo masculino era concedidauma companheira. As prisioneiras podiam serrecebidas como esposas pelos homens Tupinambá eos filhos gerados eram integrados à c omunidade(Fernandes, 1970, p. 248; 256; 267; Métraux, 1979 ,p. 118-122). Supõe-se que o desenvolvimentocontínuo das forças produtivas tornaria plausível osurgimento de um xamã estabelecendo asubstituição do princípio do olho por olho peloprincípio da oferta da outra face. Os cronistasconstataram, enfim, que a intimidação dos inimigosnão era a função mais importante da antropofagia(Pinto, 1979, p. 147).

Em suma, o desenvolvimento da agriculturaestava afetando a solidariedade social na medida emque propiciava o crescimento demográfico, umamaior autonomia dos grupos familiares , uma menordramaticidade da luta pela sobrevivência e d a defesado território. Conseqüentemente, odesenvolvimento da agricultura afetava asolidariedade social na medida em que redundava nadiminuição da importância funcional da guerra e daantropofagia. Deste modo, a guerra e a antropofagiaeram práticas que sobreviviam com um caráterdiferente daquele que possuía m quando se viviaapenas da caça e da coleta.

No contexto de transformações histórico-estruturais, cabia aos xamãs exercer o prestígio de

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que desfrutavam na sociedade tupinambá paraestabelecer crenças e práticas religiosas a fim desolucionar o problema de desagregação da ordemsocial que estava sendo produzido pelodesenvolvimento da agricultura 8. Este processo seexplica da seguinte forma: a través dos espíritos, oshomens representam as forças seculares sob as quaisvivem, e nos rituais do culto religioso, onde o poderda sociedade é materializado na coletividade d oscrentes, eles afirmam a sua dependência em relação aesse poder, ou seja, afirmam a autoridade dasociedade constituída (Sahlins, 1974, p. 150). Nosrituais comunais, todos se subordinam aos poderessobrenaturais e essa comunhão espiritual infunde -lhes um sentimento de coletividade (Sahlins, 1974,p. 26). Malinowski e Durkheim acreditam que areligião é a guardiã da sociedade . O quociente desobrenatural seria proporcional às dificuldadesenfrentadas por um grupo humano para subsistir(Sahlins, 1974, p. 152).

Em resumo, o desenvolvimento da agriculturaamenizava os problemas relacionados à luta pelasubsistência e isso tornava anacrônicas as crenças epráticas religiosas estabelecidas pelos xamãs paragarantir o êxito na solução do problema desobrevivência. Havia risco, portanto, de desagregaçãoda coesão social. Deste modo, a transformaçãoqualitativa nas forças produtivas da sociedadeTupinambá estava tornando o problema daintegração social mais crucial e premente até que oproblema econômico da luta p ela sobrevivência. Areligião passava, então, a apresentar uma funçãodiversa, vinculada à preservação da solidariedadesocial. Desvanecia-se a função da religião de formarguerreiros destemidos e com força psíquicasuficiente para preservar o território d e onde seextraía os produtos oferecidos espontaneamente pelanatureza.

Conclusão

Florestan Fernandes adotou o método deinterpretação funcionalista no estudo do papel daguerra na sociedade Tupinambá. Fez essa opção porconsiderar que este método favorec e a compreensãodos fenômenos singulares em suas conexões com osdemais fenômenos do contexto social (Fernandes,1970, p. 14-15). Godelier (1978), explica que ofuncionalismo supõe que as diversas relações sociais

8As crenças e rituais sobrenaturais surgem em momentos de crise social parasolucioná-la. O sobrenatural é invocado para fortalecer a autoridade e diminuir ascontradições e conflitos de interesse que ameaçam desagregar a ordem social(Sahlins: 150-151). Fernandes assinala que o xamanismo apresentava comouma de suas funções criar formas de controle das situações sociais novas queadquiriam para os Tupinambá o caráter de problemas sociais (Fernandes, 1970,p. 370).

visíveis em uma sociedade formam um sistema. Ouseja, supõe que existe entre as diversas esferas dasociedade uma interdependência funcional que lhespermite existir como um todo integrado que tende ase reproduzir como tal, isto é, como uma sociedade.E é porque certas partes desse todo têm por funçãointegrar as outras partes em um único todo que ossubsistemas particulares, — parentesco, religião,economia —, desempenham um papel de instituiçãogeral, dominante (Godelier, 1978, p. 48).

As análises de tipo funcionalista tendem a partirdo princípio de que as atividades de su bsistência sãorealidades simples, indiferenciadas, que se repetemda mesma e cansativa maneira em todas ascomunidades primitivas (Godelier, 1978, p. 46). Essedesdém pela economia seria justificado pelos fatos,pois as numerosas sociedades primitivas est udadasparecem revelar que as relações de parentesco ou asrelações político-religiosas seriam as dominantescontrolando, inclusive, o seu modo de produçãoeconômica. Foram muitos os que viram nessasdominâncias a prova de que a economia não exerceunenhum papel determinante no funcionamento e naevolução das sociedades pré -capitalistas nãoocidentais (Godelier, 1978, p. 46).

Fazendo a opção pelo método funcionalista,Fernandes concluiu que a estrutura da sociedadeTupinambá não era determinada por fatoreseconômicos mas, sim, por fatores de ordemreligiosa. A religião e a magia se evidenciari am comosendo os fatores dominantes no conjunto total defatores da sociedade Tupinambá, tendo comofunção, em última instância, preservar o equilíbriosocial e, não propriamente, preservar o território(Fernandes, 1970, p. 370).

Apesar de ter optado pelo funcionalismo,Fernandes não negligenciou o estudo da esferaeconômica da sociedade Tupinambá. Ele notou quea guerra tinha vínculos com a ordem econômica,sentiu que a guerra estava relacionada, de certaforma, com a defesa do território. Mas nãoreferendou essa interpretação por haver,provavelmente, percebido que, na quela sociedade oproblema do equilíbrio social era mais premente quea questão econômica da subsistên cia.

É verdade que as necessidades de ordemsimbólica do ser humano, derivadas das necessidadesde caráter econômico, podem tornar -se maisrelevantes do que as necessidades de caráter material— das quais originaram — na orientação docomportamento de indivíduos9. Para ilustrar este

9Malinowski ressalta que as necessidades econômicas básicas não produzemapenas elementos culturais, mas estes originam novos tipos de comportamento,que se tornam necessidades derivadas (Candido, 1979, p. 25).

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princípio, podemos citar o seguinte caso. Umindígena muito doente havia prometido, em caso decura, converter-se ao cristianismo, mas tomandoconhecimento de que precisaria abandonar o hábitode vingança, teria exclamado que qu ando o próprioTupã lhe ordenasse tal coisa, ele não o poderia fazer,merecendo de preferência a morte se viesse a admitirtal sacrilégio (Métraux, 1979, 1979, p. 137). Este fatoparece revelar que a religião, e não os fatores deordem material, econômicos , é que determinava ocomportamento dos Tupinambá. Para o indígenaassediado pelos missionários , uma determinaçãoestipulada pela religião de sua tribo era maisimportante que a própria autopreservação.

Sabemos que a transformação das necessidadesnaturais, como a alimentação, em necessidades decaráter simbólico, distancia o homem do reinoanimal ao qual ele também pertence. O homemsublima as exigências de ordem biofisiológica etransforma-as em exigências simbólicas, inclusive decaráter sobrenatural. Nesse sentido, as análisespresas ao nível empírico poderiam levar à conclusãoque os guerreiros Tupinambá não lutavam contra osinimigos para garantir o domínio do território deonde era extraída a subsistência do grupo. Ele slutavam, sim, para satisfazer as exigências ditadaspela religião da tribo.

O aparente domínio do plano sobrenatural nadeterminação do comportamento de indivíduos nãodeve levar o analista a concluir que as determinaçõesimpostas pelo plano natural, de ordem econômica,teriam importância secundária na constituição darealidade social.

Além de não considerar a infra -estruturaeconômica como a esfera dominante da sociedade, ofuncionalismo sofre da limitação de não levar emconta o fator histórico, por estar mais preocupadocom a reprodução das relações sociais.

Fernandes considera o método funcionalistaaplicável tanto a problemas sincrônicos, quanto aproblemas diacrônicos. Em virtude da natureza dadocumentação utilizada, ele limitou -se à análise detipo sincrônico fazendo, assim, abstração dacategoria tempo histórico (Fernandes, 1970, p. 14). E,em razão da opção pelo enfoque sincrônico, acabounão refletindo sobre as fontes históricas deperturbação do equilíbrio social na comunidadeTupinambá. Na verdade, mesmo que tivesseadotado a análise de tipo diacrônico, Fernandesenfrentaria uma dificuldade intrínseca ao método:para o enfoque funcionalista, todo sistema socialtende ao equilíbrio. Logo, o objeto de interesse destametodologia não pode ser a transformação radicaldas bases estruturais da sociedade. Essa perspectiva

impede a percepção das contradições existe ntes narealidade concreta10. Enfim, a visão de totalidade darealidade social atingida pelo funcionalismo nãoseria dialética e sua interpretação redundaria em umesquematismo mecânico. O mesmo poderíamosdizer da totalidade — baseada em princípiossupostamente marxistas — constituída com aabstração da história.

Em suma, devido às opções em termosmetodológicos feitas em um momento inicial de suariquíssima e importante vida intelectual, Fernandesnão pôde levar em consideração o fato de que asociedade Tupinambá estava passando por uma fasede profundas transformações, transitando de umaeconomia extrativista para uma economia agrícola.Essa desconsideração pelo aspecto histórico da baseeconômica da sociedade impediu que ele percebesseque a prática da agricultura estava provocando umabalo nas relações sociais, transformando o caráter daguerra e da antropofagia e, conseqüentemente, dareligião dos Tupinambá. Por não levar emconsideração as contradições dialéticas existentes nomundo real, Fernandes precisou travar uma durabatalha no plano lógico para tentar equacionar asincongruências que despontaram ao realizar aarticulação dos dados empíricos.

Aplicando princípios do materialismo histórico,concluímos que o desenvolvimento da práticaagrícola estava abalando a superestrutura que haviasido montada sobre uma base econômica extrativista.Observando essa superestrutura, Fernandespercebeu que os liames na sociedade Tupin ambáeram frágeis

11. Sugerimos que o antigo sistema social,

vinculado à economia extrativista, estava em crisedevido ao desenvolvimento da agricultura , ou seja,devido à transformação qualitativa das forçasprodutivas da sociedade. É por esse motivo que osliames sociais se apresentavam frágeis naquele contextohistórico.

Interpretamos este contexto sugerindo que odesenvolvimento da agricultura amenizava osproblemas relacionados à luta pela subsistência. Talfato tornava anacrônicas as crenças e as práticasreligiosas estabelecidas pelos xamãs para garantir oêxito na solução do problema de sobrevivência. Ouseja, a transformação qualitativa nas forçasprodutivas da sociedade tupinambá estava tornandoo problema da integração social mais importante ,naquele momento, que o problema econômico daluta pela sobrevivência que vinha, aliás, sendo

10O enfoque funcionalista leva o analista a procurar fora do s sistemas as causasde sua evolução e de seu desaparecimento. A evolução não se dá a partir defatores internos ao sistema, mas a partir de fatores contingentes, acidentais,externos (Godelier, 1978, p. 50-51)11Por exemplo, consultar Fernandes (1970, p. 340).

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amenizado pelo cultivo da terra . Os xamãsreformularam, então, as crenças e os rituaisreligiosos a fim de tentar sanar a crise do sistemasocial. Dessa forma, a guerra e a antropofagiatransformaram-se em um instrumento de reforçodos laços sociais e estavam deixando de constituirpráticas determinadas por questões econômicasvinculadas à defesa do território.

A religião passava, enfim, a apresentar umafunção diversa da anterior, desempenhando a tarefade preservação da solidariedade social. Desvanecia -sea função anterior de formar guerreiros destemidos ecom força psíquica suficiente para preservar oterritório de onde se extraía produtos da natureza.

Sob uma perspectiva funcionalista, não dialética,essa realidade foi percebida como uma questão debusca de equilíbrio social; a guerra e a antropofagiaforam compreendidas como práticas destinadas,essencialmente, a produzirem a coesão social.

Mediante a aplicação de princípios domaterialismo histórico, sugerimos uma explicaçãodas razões que estavam levando a religião a se tornar,conjunturalmente, o fator dominante naestruturação da sociedade tupinambá. A situação realexistente era complexa porque os Tupinambáestavam passando por um período de transição coma transformação de sua base econômica. Não tinhamdesenvolvido, ainda, uma produção econômica capazde lhes proporcionar autonomia integral em relaçãoaos produtos advindos da caça e da coleta. Logo, asuperestrutura desenvolvida a partir das condiçõesmateriais impostas pelo extrativismo estava emprocesso de dissolução sendo superada dialeticamentepela superestrutura desenvolvida pela situação decrise social. A superestrutura nascente assumia,provisoriamente, o caráter de fator dominante doconjunto das relações sociais . Existiam condições,portanto, para as interpretações de tipo funcionalistaproduzirem a conclusão de que a religião é quedetermina as demais esferas da sociedade. Os dadosempíricos pareciam dar respaldo a essa conclusãoque poderia, assim, ser tomada como um princípio

de validade geral nas Ciências Sociais, ou seja, comouma lei de natureza científica.

Referências

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Received on September 22, 2005.Accepted on March 14, 2006.