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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – João Pessoa - PB – 15 a 17/05/2014 1 Recôncavo da Bahia: A festa da Boa Morte através de registros fotográficos 1 Murilo de Jesus Santana 2 Juciara Maria Nogueira Barbosa 3 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, BA Resumo O objetivo deste artigo é apresentar alguns aspectos históricos sobre a Irmandade da Boa Morte e averiguar, em fotografias sobre a festa da Boa Morte produzidas por Pierre Verger, Adenor Gondim e Pedro Archanjo, as contribuições desses fotógrafos para a afirmação de aspectos da tradição através de registros fotográficos bem como investigar as semelhanças e diferenças na produção de imagens da festa. Palavras-chave: Irmandade da Boa Morte. Fotografia. Recôncavo da Bahia. Durante o mês de agosto a cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, a 110 km da capital (Salvador), é cenário para a festa da Boa Morte 4 . O evento apresenta aspectos do culto a Nossa Senhora aliados a influências africanas, trazidas para o Brasil no período colonial. De forte tradição portuguesa, as festividades de Nossa Senhora da Boa Morte vêm sendo organizadas em Cachoeira pela Irmandade da Boa Morte, que é uma confraria religiosa fundada no século XIX e formada por mulheres negras, com idade superior a 50 anos, pertencentes ao candomblé e devotas de Nossa Senhora. A Irmandade reúne-se regularmente em sua sede, na Rua 13 de maio, no centro histórico de Cachoeira. Por sua importância histórica e cultural, a Irmandade da Boa Morte já foi tema de importantes estudos, que têm contribuído para elucidar sua trajetória e registrar variados aspectos de suas contribuições para a cultura baiana. No entanto, ainda que seja possível encontrar diversas pesquisas sobre a Boa Morte realizadas por prestigiados autores, a exemplo de Pierre Verger (2002), Renato da Silveira (2006) e João José Reis (1991), é importante ressaltar que por sua dinâmica e riqueza, a festa desperta o interesse para outros olhares, que tratem de novos ângulos dessa importante tradição que tem sido registrada em imagens por muitos fotógrafos. Por esse viés, cumpre observar que as imagens são, indubitavelmente, materiais de suma importância para evidenciar feições da festa e a comparação de imagens de diferentes 1 Trabalho apresentado no DT 4 Comunicação Audiovisual do XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste realizado de 15 a 17 de maio de 2014. 2 Estudante de Graduação 4º. semestre do Curso de Jornalismo da UFRB. Bolsista PROPAAE, e-mail: [email protected] 3 Orientadora do trabalho. Professora do Curso de Jornalismo da UFRB, e-mail: [email protected] 4 A festa de Nossa Senhora da Boa Morte passou a ser patrimônio imaterial da Bahia a partir do Decreto de número 12.277, de 01 de julho de 2010.

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – João Pessoa - PB – 15 a

17/05/2014

1

Recôncavo da Bahia: A festa da Boa Morte através de registros fotográficos1

Murilo de Jesus Santana2

Juciara Maria Nogueira Barbosa3

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, BA

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar alguns aspectos históricos sobre a Irmandade da Boa

Morte e averiguar, em fotografias sobre a festa da Boa Morte produzidas por Pierre

Verger, Adenor Gondim e Pedro Archanjo, as contribuições desses fotógrafos para a

afirmação de aspectos da tradição através de registros fotográficos bem como investigar

as semelhanças e diferenças na produção de imagens da festa.

Palavras-chave: Irmandade da Boa Morte. Fotografia. Recôncavo da Bahia.

Durante o mês de agosto a cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, a 110

km da capital (Salvador), é cenário para a festa da Boa Morte4. O evento apresenta

aspectos do culto a Nossa Senhora aliados a influências africanas, trazidas para o Brasil

no período colonial. De forte tradição portuguesa, as festividades de Nossa Senhora da

Boa Morte vêm sendo organizadas em Cachoeira pela Irmandade da Boa Morte, que é

uma confraria religiosa fundada no século XIX e formada por mulheres negras, com idade

superior a 50 anos, pertencentes ao candomblé e devotas de Nossa Senhora. A Irmandade

reúne-se regularmente em sua sede, na Rua 13 de maio, no centro histórico de Cachoeira.

Por sua importância histórica e cultural, a Irmandade da Boa Morte já foi tema de

importantes estudos, que têm contribuído para elucidar sua trajetória e registrar variados

aspectos de suas contribuições para a cultura baiana.

No entanto, ainda que seja possível encontrar diversas pesquisas sobre a Boa

Morte realizadas por prestigiados autores, a exemplo de Pierre Verger (2002), Renato da

Silveira (2006) e João José Reis (1991), é importante ressaltar que por sua dinâmica e

riqueza, a festa desperta o interesse para outros olhares, que tratem de novos ângulos

dessa importante tradição que tem sido registrada em imagens por muitos fotógrafos. Por

esse viés, cumpre observar que as imagens são, indubitavelmente, materiais de suma

importância para evidenciar feições da festa e a comparação de imagens de diferentes

1 Trabalho apresentado no DT 4 – Comunicação Audiovisual do XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região

Nordeste realizado de 15 a 17 de maio de 2014. 2 Estudante de Graduação 4º. semestre do Curso de Jornalismo da UFRB. Bolsista PROPAAE, e-mail:

[email protected] 3 Orientadora do trabalho. Professora do Curso de Jornalismo da UFRB, e-mail: [email protected] 4 A festa de Nossa Senhora da Boa Morte passou a ser patrimônio imaterial da Bahia a partir do Decreto

de número 12.277, de 01 de julho de 2010.

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períodos poderá trazer algumas contribuições sobre como se dá a afirmação desta

tradição, também, a partir de fotografias. Assim, o presente artigo tem como propósito

apresentar alguns aspectos históricos sobre a Irmandade da Boa Morte e averiguar, em

fotografias sobre a festa produzidas por Pierre Verger, Adenor Gondim e Pedro Archanjo,

as contribuições desses fotógrafos para a afirmação da tradição da referida festa, bem

como investigar as semelhanças e diferenças entre as imagens selecionadas5. O presente

estudo foi desenvolvido entre 2012 e 2013 como parte do projeto de pesquisa Recôncavo

da Bahia: tradição e contemporaneidade, do grupo de estudos ARCCO – Arte, Cultura

e Comunicação, vinculado à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

1. ASPECTOS HISTÓRICOS

No início da era cristã o culto a imagens não era apropriado, mas, a partir da Idade

Média, a utilização destas passou a ser importante para auxiliar na propagação da religião

católica. Conforme assinala Silveira (2006), este foi um recurso usado pelo Papa Gregório

I, a partir do século VII, com o intuito de evangelizar o rebanho (fiéis). Neste sentido,

estabelecia-se um programa de comunicação social no qual a imagem tinha a função de

desempenhar um papel crucial na educação das populações iletradas. Diante da

conjuntura religiosa daquele período, o Papa Gregório se apropriou de elementos do culto

pagão, dentre eles a utilização das imagens, e incorporou-os ao culto católico. Ainda

assim, as imagens não deveriam ser adoradas como os pagãos o faziam, mas serviriam

para adorar aquilo que evocavam, significando um meio de estreitar a relação com Deus,

pois o escrito oferece aos leitores aquilo que a pintura oferece aos simples que a

olham: nela os ignorantes vêem aquilo que eles devem imitar, nela lêem os

analfabetos; por este motivo, para os bárbaros, sobretudo, a pintura toma lugar da

leitura [...] Não sem razão o costume admitiu que sejam pintados nos lugares

sagrados narrativas das histórias dos santos (SILVEIRA, 2006, p. 132).

Em vista disso, Silveira (2006) relata que as imagens exercem função eficaz no

processo de educação e evangelização, desempenhando, também, um papel psicológico

relevante no dispositivo colonizador – ao contribuir para a formação da mentalidade

submissa, e sociológico – representando o ponto de atração para a reunião do “rebanho

disperso” na confraria:

5 Agradeço à Fundação Pierre Verger por ter disponibilizado para pesquisa e reprodução o exemplar da

revista O Cruzeiro que se encontra em sua biblioteca. Agradeço aos fotógrafos Adenor Gondim e Pedro

Archanjo por terem concedido entrevistas e cedido algumas imagens que ilustram este artigo.

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[...] a imagem é a única possibilidade de reunir e de instruir em um meio rústico:

quando auxiliada ao verbo, pelo aroma inebriante do incenso e outros recursos

cenográficos, a Igreja passa a dispor de um poderoso recurso multimidiático que

propicia o controle do imaginário, da ideologia e dos afetos (SILVEIRA, 2006, p.

134).

Neste sentido, o culto aos santos se tornou carro-chefe do projeto de evangelização

do Papa Gregório I, e a imagem passou a fazer parte da vida cotidiana das pessoas, que

estabeleciam com o ícone sagrado um vínculo perene de devoção através do qual era

impossível dissolver os ideais de fé consolidados com a doutrina religiosa. Ainda

conforme assinala Renato da Silveira (2006, p. 127-454), as mais antigas irmandades

cristãs de leigos foram fundadas desde o início da era cristã, no Império Romano e a

primeira irmandade negra foi constituída em Portugal, no ano de 1229, formada por

ferreiros e profissionais afins, com o intuito de prestar o culto, promover assistência social

e funerária.

No século XVI, após a Reforma Protestante, as irmandades surgiram como uma

estratégia, tendo em vista que “para defender seus dogmas, a Igreja Católica reforçou o

papel do clero e o poder dos intercessores, representados pela Virgem e pelos santos

venerados em suas imagens e relíquias. Tais entidades se tornaram as protetoras de

inúmeras irmandades no Velho Mundo” (ISHAQ, 2006, p. 67). Essas entidades passaram

a desenvolver diversas atividades junto à sociedade. Um exemplo destacado por Vivien

Ishaq (2006, p. 67) é a Irmandade da Misericórdia de Portugal, fundada pela rainha d.

Leonor em 1498: a ela cabia o privilégio de enterrar os mortos e tinha tão destacado papel

que a partir de 1593 passou a estender o monopólio de funerais que detinha para vilas e

cidades coloniais, espalhando-se a partir de então por vários territórios sob o domínio de

Portugal, a exemplo de Luanda, Macau, Salvador, Rio de Janeiro, Nagasaki e Goa.

Constata-se portanto que, no Brasil, as duas mais importantes cidades do período colonial

já abrigavam essa devoção.

1.1 UM POUCO DA HISTÓRIA DAS IRMANDADES NO BRASIL E NA BAHIA

No Brasil, a organização católica se impôs pela ação das ordens (a exemplo da

dos franciscanos e da dos jesuítas), pela construção, organização e administração de

igrejas e conventos e, ainda, pelas ações desenvolvidas sistematicamente em conjunto

com entidades associativas leigas, tais como as das ordens terceiras6, confrarias e

6 As ordens terceiras são ordens religiosas destinadas a leigos, agregadas a uma grande ordem monástica.

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irmandades. Conforme observou Vivien Ishaq (2006, p. 66-70), assim como ocorria em

Portugal, nas colônias as irmandades eram administradas por pessoas leigas e as

autoridades eclesiásticas eram orientadas para permitir e estimular o surgimento e

organização dessas associações. “Toda irmandade era regida por um ‘Compromisso’,

como era denominado o estatuto interno. Este tinha que ser submetido à aprovação da

Igreja e da administração colonial, para que a associação obtivesse licença para

funcionar” (ISHAQ, 2006, p. 68).

Enquanto as grandes ordens religiosas se impuseram no litoral brasileiro desde o

século XVI, por interesse econômico, no século XVIII em Minas Gerais houve um

acentuado incentivo para a instalação das irmandades. Em estudos realizados sobre

aspectos da vida político-religiosa de irmandades mineiras, Maria do Rosário Gregolim e

Fábio César Montanheiro (2001, p. 200-208), apresentaram interessantes aspectos

históricos acerca das relações entre política e religião no referido período. De acordo com

os citados autores, pelo Padroado Régio7 na qualidade de grão-mestre da Ordem de Cristo,

ao rei português caberia a responsabilidade de construir e ornamentar as igrejas, bem

como manter o culto e o clero. Desse modo, bispos e párocos faziam parte da folha de

pagamento da Coroa e a religião tinha um aspecto “estatal”, servindo tanto como modo

de controle quanto para a demarcação de território, através, por exemplo, da instalação

de sedes episcopais. Neste período, o dinheiro arrecadado com a cobrança de dízimos ia

para os cofres régios, mas depois não era adequadamente destinado aos objetivos

religiosos. Procurando meios para não arcar com os onerosos encargos exigidos para a

manutenção da esfera religiosa, em Minas Gerais não se estimulou a instalação das

grandes ordens religiosas, tais como as dos jesuítas, franciscanos, carmelitas e

beneditinos. Ao invés disso a Coroa incentivou a instalação das irmandades, que deveriam

construir suas próprias igrejas e arcar com os custos de seus eventos: “os complexos e

caros cerimoniais do culto religioso eram, desta forma, transferidos à população. Em

virtude disso, tanto à coroa quanto ao clero interessava muito o desenvolvimento das

ordens terceiras e confrarias” (SALLES, 1963, p. 27 apud GREGORIM;

MONTANHEIRO, 2001, p. 203).

Organizadas por diferentes grupos sociais, as irmandades em muito contribuíram

para construir e consolidar a hierarquização da sociedade colonial e, bem distante da

homogeneidade que o termo ‘irmandade’ pudesse sugerir, essas entidades eram

7 Padroado seria o direito adquirido por quem fundou ou adotou uma igreja.

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sistematicamente ordenadas por diferentes grupos, embora deva-se observar que tais

organizações procuravam contemplar desde os mais ricos proprietários de terra até os

escravos ou egressos da escravidão. Conforme observou Afonso Ávila (1999-2000, p. 95-

104), no século XVIII, em Minas Gerais, eram várias as agremiações religiosas existentes.

Organizadas desde o início do povoamento, as primeiras a se constituírem foram a do

Santíssimo Sacramento e a do Rosário. Da primeira, faziam parte os irmãos brancos; da

segunda, os pretos. Mais tarde, no período entre 1720-1740, em razão da mestiçagem

entre os elementos branco e negro, surgem irmandades de pardos, que passam a agregar

esse novo tipo, fruto da miscigenação racial que em Minas ocorreu em larga escala.

A organização por posição social e distinção de cor era uma realidade. Em

Salvador, as irmandades do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição da

Praia reuniam os homens mais ricos da cidade e os naturais de Portugal (SANTOS, 2002,

p. 83-96). Em meados do século XVIII eles reergueram, em dimensões colossais, a Igreja

de Nossa Senhora da Conceição no mesmo local onde Tomé de Souza fez construir uma

capela sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição, ainda em 1549, quando chegou

à Bahia com o objetivo de fundar a cidade de Salvador. Embora criada e dirigida pela

elite da época, como era de praxe, a Igreja abrigava outras confrarias de leigos, tais como

a Irmandade de São Benedito e a do Rosário dos Pretos (SANTOS, 2002, p. 89). Cabe

lembrar que cada entidade tinha seus estatutos e os compromissos assumidos deixavam

claros os deveres e direitos dos associados, mas para manter o culto ao santo de sua

devoção era preciso ter, ao menos, uma capela ou altar lateral em uma igreja cuja

irmandade fundadora ou responsável, aceitasse abrigar em sua estrutura altares de outras

irmandades, visando colaborar para a plena aceitação da religião católica.

É relevante registrar também que, segundo Caio Boschi (2005, p. 62-66), fazer

parte de uma ou mais irmandades era necessário tanto para a vida como para a morte,

visto que não aderindo a elas, as pessoas se viam desamparadas. Essas associações se

organizavam com objetivos diversos, não apenas para atender aos seus ante às

dificuldades, mas quanto a um sepultamento digno e a celebração de missas pela salvação

das almas. Era confortável ter essa confiança em ser amparado tanto na vida como na

morte, por isso a participação nas irmandades – principalmente para os negros – tinha

especial importância e congregava tanto homens livres quanto escravos, sendo este um

importante espaço de convívio que possibilitava o encontro, diálogo e fortalecimento de

laços para além do limitado ambiente de domínio em que viviam.

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As irmandades tinham certa autonomia mas estavam atreladas às diretrizes da

Igreja e, por mais que houvesse o desejo de se tornarem independentes elas recorriam

constantemente, em suas deliberações, às instâncias superiores. Sobre este aspecto, Pierre

Verger citou como exemplo um episódio ocorrido com uma das mais antigas confrarias,8

a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo, que foi

“[...] uma associação religiosa de católicos dos dois sexos, de cor preta, de vida exemplar,

tendo meios honestos de subsistência e praticando como bons cristãos os mandamentos

de Deus e da Igreja” (VERGER, 2002, p. 555). Em 1786 esta confraria, notadamente

frequentada por negros angolanos, recorreu à rainha de Portugal para que ela lhe

concedesse a permissão para realizar suas festas:

Dizem os negros, devotos da Gloriosa Senhora do Rosário, da cidade da Bahia, que

antigamente lhes era permitido, para o maior e geral contentamento e felicidade da

festa da mesma Senhora, usarem máscaras e dançarem cantando em idioma

angolano, com acompanhamento dos instrumentos para as cantigas e louvações;

porque estão privados e que em outros países da cristandade isto se pratica, eles

solicitam à Vossa Majestade pela sua alta piedade e real grandeza, para serviço de

Deus e da mesma Senhora, que se digne conceder a permissão aos suplicantes de

realizarem suas festividades, pois parece agradar muito à sempre gloriosa Mãe de

Deus (VERGER, 2002, p. 555).

A norma era de obediência e submissão às diretrizes da Coroa e da Igreja, que

vigiavam de perto seus súditos e fiéis.

2. O SURGIMENTO DA IRMANDADE DA BOA MORTE

Convém destacar a presença do negro no âmago das confrarias entre os séculos

XVIII e XIX, levando-se em consideração que isto denotava prestígio, possibilitava a

preservação, difusão de valores étnicos e de resistência cultural, e permitia relativa

autonomia em uma colônia marada pelo regime escravocrata. Nesse cenário surgiu na

velha cidade da Bahia, na Igreja Barroquinha, por volta de 1820, a Devoção de Nossa

Senhora da Boa Morte – que mais tarde se tornou Irmandade de Nossa Senhora da Boa

Morte, formada por mulheres de idade avançada, negras libertas, devotas de Nossa

Senhora e que realizavam práticas religiosas de matriz africana. Segundo Cecília Soares

(1996, p. 57-71), essas mulheres desempenharam papel econômico fundamental, pois

vendendo produtos alimentícios tais como quitutes, acarajés e doces, passaram a obter

fundos para o sustento delas e se organizaram economicamente para comprar a própria

8 Esta confraria foi fundada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho.

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liberdade e a de alguns escravos, fato que se configurava como uma intervenção social e

política em uma sociedade onde essas mulheres - especialmente as já livres da escravidão

– passaram a usufruir de prestígio e a ter posição destacada em virtude da condição

econômica e da autonomia que conquistaram, sustentando a si e a seus filhos.

Com a liberdade, além de exercerem importante papel socioeconômico naquele

período, as mulheres contribuíram notadamente para a difusão de costumes religiosos

africanos. Embora tivessem a necessidade de expressar suas crenças, a sociedade da

época, sob as diretrizes religiosas da Igreja Católica, repelia a religiosidade africana.

Fosse por ignorância, preconceito ou por outros interesses, os que não seguiam o

catolicismo podiam ser vítimas de discriminação e perseguição. Desta forma, a maneira

encontrada pelas mulheres negras integrantes da Devoção a Nossa Senhora da Boa Morte

para manifestar o culto africano, foi incorporá-lo ao catolicismo. Sobre este aspecto

histórico, Pierre Verger (2002) registrou:

As mulheres nagô-iorubás da nação Queto reuniam-se na Igreja da Barroquinha e

haviam formado a confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, que saía em procissão

sempre a 15 de agosto. Foi à sombra desta igreja que se reuniram os primeiros

participantes nos cultos dos deuses africanos desta nação Queto (VERGER, 2002, p.

555).

Tratando da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte e suas relações com a

religiosidade trazida da África, Renato da Silveira observou que

[...] a devoção nos seus primórdios era uma fachada para mascarar o culto dos orixás

ligados à fertilidade, à terra e às águas, jamais possuiu um compromisso, nem se

vinculou a nenhuma igreja, tendo sido, desde sua origem, uma entidade

exclusivamente feminina [...] (SILVEIRA, 2006, p. 447-448).

Na festa da Boa Morte, as devotas se apresentavam com pompa, vigor e

animação. O culto à Santa e aos Orixás se unificava, revelando uma expressão sincrética

que retratava veneração, respeito e entrega das irmãs. Todavia, apesar de demonstrarem,

de forma evidente, real dedicação ao catolicismo, Silveira (2006) averiguou que o culto

africano das devotas da Boa Morte e dos irmãos dos Martírios9, não foi tolerado. Por ter

sido realizado em um candomblé situado na Barroquinha,10 representando incômodo aos

habitantes das imediações e às autoridades que se opunham a tal prática religiosa, em

9 A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios funcionou na Igreja da Barroquinha, desde 1764, e

contribuiu para a formação do candomblé da Barroquinha, também composto, posteriormente, por

devotas da Boa Morte. 10 O terreiro na Barroquinha estava próximo a residências senhoriais, igrejas, palácios e mosteiros.

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1850 ocorreu “[...] a expulsão do Candomblé da Barroquinha daquela área urbana, uma

iniciativa do grupo chefiado por outro déspota baiano, Francisco Gonçalves Martins, o

Visconde de São Lourenço, um dos líderes locais do Partido Conservador, presidente da

província entre 1848 e 1852 [...]” (SILVEIRA, 2006, p. 269). Ainda por volta de 1850

as mulheres da Devoção de Nossa Senhora da Boa Morte, transferiram-se para

Cachoeira11 – que foi a vila mais rica e populosa da Bahia durante o século XVIII e a

primeira metade do século XIX devido à larga produção do açúcar e ao fato de o porto de

Cachoeira ser importante via para o escoamento de produtos da região:

Além do porto, a movimentação na cidade rumo às estradas era constante durante o

século XVIII, visto que a economia do açúcar estava no auge do seu preço e a

abundância de ouro nas Minas do Rio de Contas se fazia presente. Açúcar, fumo,

ouro e diamantes, descobertos em Mucugê e em Lençóis, no início do século XIX,

eram escoados no porto de Cachoeira (BARBOSA, 2010, p. 18).

O fato das mulheres terem escolhido Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, e não

outro lugar, consiste, segundo Barbosa (2010),

[...] nas tensões sociais desenroladas com o fim do tráfico de escravos e o

consequente tráfico ilegal, iniciado em 1850, somado às inúmeras rebeliões escravas,

forte indício para uma desestruturação social que motivou trânsitos entre a capital e

seu Recôncavo. Além disso, as relações dialógicas entre estes dois territórios eram

constantes. Estavam em curso intercâmbios comerciais, econômicos, políticos,

culturais e religiosos (BARBOSA, 2010, p. 46-47).

A Devoção instalou-se no Recôncavo de forma diferenciada: “[...] no passado, ao

chegar em Cachoeira, não procurou se instalar em dependências de nenhuma igreja, assim

como ter seus estatutos aprovados pelas autoridades religiosas, atitude esta que conota

considerável ousadia e coragem” (CASTRO, 2005, p. 46). A primeira sede da Devoção,

em Cachoeira, foi a casa nº 41, chamada Casa Estrela,12 situada na Rua da Matriz, atual

Rua Ana Nery. Foi através de Júlia Gomes, moradora da Casa Estrela e provavelmente a

primeira juíza perpétua da Irmandade, que a devoção teve início em Cachoeira: “Júlia

Gomes fora precursora do culto, juntamente com suas filhas, Julieta Nascimento

(Santinha), que também foi Irmã Perpétua [...]” (BARBOSA, 2010, p. 48).

11 A vila se tornou cidade por meio do decreto imperial de 13 de março de 1837. Sendo tombada pelo

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, passou a ser considerada Cidade Heroica e

Monumento Nacional através do Decreto nº 68.045, de 18/01/1971. Também é a segunda capital do

estado, de acordo como a Lei Estadual 10.695/07. Todos os anos, no dia 25 de junho, o governo estadual

é transferido para Cachoeira, em reconhecimento pelos feitos da cidade em prol do País. 12 A casa recebe este nome por ter, na calçada em frente a sua fachada, uma estrela de granito de cinco

pontas.

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A partir daí a Devoção passou a se firmar na imponente cidade do Recôncavo,

assumindo a forma de uma Irmandade independente, sem precisar se submeter à

fiscalização das autoridades coloniais. Apesar dessa notável e peculiar independência, a

irmandade manteve cargos semelhantes às demais, com mesa administrativa formada por

provedora, procuradora-geral, escrivã e tesoureira, eleitas segundo o sistema vigente nas

irmandades, com a participação de todos os membros, escrutínio com favas brancas e

pretas, e mandato de um ano. Perdurou comandada por mulheres negras autônomas que

trabalhavam para seu sustento, de sua família e da entidade, exercendo funções como a

de vendedoras de quitutes ou atuando na indústria fumageira – onde a mão-de-obra

utilizada no fabrico do charuto era exclusivamente feminina.

Mantendo os laços com a tradição, ainda hoje a Irmandade reúne-se regularmente

em sua sede atual, na Rua 13 de maio, no centro histórico de Cachoeira, e celebra, de 13

a 15 de agosto, a festa da sua padroeira, Nossa Senhora da Boa Morte, além de prestar

culto aos orixás. O primeiro dia da festa é dedicado à procissão com a imagem de Nossa

Senhora da Boa Morte percorrendo as principais ruas. Em seguida ocorre a missa pelas

almas das irmãs falecidas. Depois, as devotas se reúnem com familiares e convidados

para a Ceia Branca, que consiste em um cardápio à base de frutos do mar e sem azeite de

dendê. No segundo dia é celebrada na Igreja Matriz a missa simbólica para o corpo

presente de Nossa Senhora, seguida pela procissão do enterro. No último dia ocorre a

festa de Nossa Senhora da Glória, as irmãs comemoram a assunção de Maria e saem em

cortejo até a Matriz, onde há missa seguida de procissão. Depois, as irmãs dançam valsa

e é servido almoço para todos os presentes. Nos dois dias subsequentes aos da festa, elas

realizam um samba de roda e distribuem cozido, caruru, mugunzá e pipoca. Assim, a festa

da Boa Morte é uma manifestação que alia à devoção os ideais de resistência sustentados

pelas irmãs que têm sido capazes de, através da preservação do culto sincrético, atrair

muitas pessoas para a festa de sua patrona.

Por sua importância cultural, por sua tradição, beleza e exuberância, a festa da

Boa Morte também se distingue pela singular capacidade de abarcar grande variedade de

referências visuais de forma complexa, rica e sincrética. Talvez por estes motivos tenha

sido, ao longo do tempo, uma manifestação regularmente registrada por diversos

fotógrafos que, através de suas imagens publicadas em jornais, revistas, livros, catálogos,

exposições e, mais recentemente, também na internet, vêm contribuindo para divulgar,

através de imagens, esta singular manifestação cultural. Levando-se em conta a

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importância das imagens como registro, pretende-se destacar as contribuições de Pierre

Verger, Adenor Gondim e Pedro Archanjo para a afirmação de aspectos da tradição

através da fotografia, tratando ainda das semelhanças e diferenças na produção de

imagens da festa.

3. PIERRE VERGER E OS REGISTROS DA BOA MORTE PARA O

CRUZEIRO

Pierre Edouard Léopold Verger (1902-1996) foi um fotógrafo, etnólogo,

antropólogo e pesquisador francês que viveu parte de sua vida em Salvador (Bahia). Ao

longo da vida viajou pelos cinco continentes e realizou um trabalho fotográfico de grande

relevância, registrando aspectos do cotidiano de pessoas diversas. Pierre Verger também

realizou pesquisas de referência sobre a cultura afro-baiana e sobre a diáspora, voltando

seu olhar de pesquisador para aspectos religiosos do candomblé, que tornou-se seu

principal foco de interesse. No Brasil, Verger passou a trabalhar como fotógrafo em

Salvador, contratado pela empresa Diários Associados. Entre 1946 e 1951 realizou

fotografias para a revista O Cruzeiro, veículo de comunicação impressa de maior

circulação nacional naquele período. Em um desses trabalhos, realizado em parceria com

o representante dos Diários Associados na Bahia, Odorico Tavares, teve publicadas 16

fotografias em preto e branco na reportagem N. S. da Boa-Morte das Mulheres Negras de

Cachoeira, publicada na revista O Cruzeiro em 13 de janeiro de 1951.

Figura 1 - Vigília ocorrida no primeiro dia da festa, 13 de agosto. Foto: Pierre Verger (1950).

A fotografia que abre a forreportagem na página 50 (Figura 1) apresenta em

primeiro plano uma imagem de Nossa Senhora deitada no esquife, com o rosto coberto

por um véu e envolta em roupas claras. No canto esquerdo superior destaca-se um ramo

de flores de aparência artificial. No segundo plano, duas mulheres negras usando as vestes

do primeiro dia da festa aparecem de pefil, contemplando a imagem da santa em gesto de

veneração. O registro retrata a dualidade vida e morte, e a escultura da santa representada

como se estivesse morta e admirada pelas devotas, reforça a reflexão sobre o tema.

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Embora o plano fechado limite a visão dos adornos utilizados pelas irmãs, é possível

perceber as argolas e colares que as enfeitam.

Figura 2 – No terceiro dia da festa celebra-se a assunção de Nossa Senhora. Foto: Pierre Verger (1950).

No final da página 52, nos três retratos produzidos por Verger (Figura 2), as irmãs

estão vestidas com traje de gala composto por beca, lenço e pano da costa (originalmente

na cor vermelha) e muitas adereços especialmente ostentados para festejar a ascensão de

Maria ao céu. A luz natural realçou as expressões faciais, e o brilho das volumosas joias

conferiu um forte contraste entre os tecidos escuros e os de cor branca. Especialmente

nesses retratos, Verger destacou os detalhes presentes em cada cena e as fotos valorizam

os ornamentos, vestimentas e símbolos. Além de expressar a religiosidade das irmãs nas

fotografias da Boa Morte, nesses três retratos Verger destacou, através do ângulo contre-

plongée (de baixo para cima), o queixo erguido das mulheres, demonstrando orgulho,

confiança, destemor, força e resistência.

De modo geral, nota-se que nas fotografias que Verger fez da Irmandade para a

revista O Cruzeiro, predominou a naturalidade nas expressões das irmãs: é como se elas

não se dessem conta de que estavam sendo fotografadas. Pesquisando sobre as fotografias

que Pierre Verger realizou em Salvador no período em que trabalhou para os Diários

Associados, Juciara Nogueira Barbosa (2005, p. 69) destacou a importância do uso da

câmera Rolleiflex para conseguir tal espontaneidade, já que esta câmera não é de visor

direto13. No entanto, observou que o equipamento utilizado, de modo algum diminui ou

desmerece seu talento e profissionalismo, já que “Verger lançou um olhar pessoal,

intimista, cúmplice sobre os que fotografou. Algumas vezes assumiu uma posição de

reverência e respeito, especialmente ao fotografar pessoas ligadas ao candomblé e seus

rituais” (BARBOSA, 2005, p. 69). Certamente nas fotos da Boa Morte que realizou,

13 Mesmo chamando a atenção por ser estrangeiro, Verger não precisava levar a câmera para perto dos

olhos e apontá-la para alguém quando desejava fotografar, mas poderia manusear o equipamento, focar e

disparar de modo discreto, até mesmo sem que a pessoa percebesse que estava sendo retratada

(BARBOSA, 2005).

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sobretudo nos retratos aqui brevemente comentados, pode-se notar reverência e respeito,

tanto nos enquadramentos que privilegiou quanto no próprio tema desta fotorreportagem

que ainda carece de um estudo mais apurado.

4. ADENOR GONDIM E OS RETRATOS DAS IRMÃS DA BOA MORTE

Adenor Queiroz Gondim nasceu em 1950, em Rui Barbosa (Bahia), onde

começou a trabalhar como fotógrafo com o pai, tirando retratos 3x4. Viveu algum tempo

em Itabuna e a partir de 1972 mudou-se em Salvador, onde se formou em Biologia. Desde

a década de 1980 fotografa aspectos do catolicismo popular, candomblé e práticas

sincréticas, festas populares e aspectos do cotidiano. Entre esses trabalhos destaca-se a

festa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, que registra desde a década de 1980.

Curiosamente, seu vínculo com a Irmandade teve início em 1990, ao ser convidado para

fotografar as irmãs e participar da confecção do panfleto Eu vi Boa Morte chorar, que

deveria servir como meio de protesto contra a intolerância religiosa do então Arcebispo

de Salvador, Dom Lucas Moreira Neves. Após essa aproximação, Gondim foi convidado

pelas irmãs para criar um cartaz que contasse a história da Irmandade e, a partir daí, já

são mais de 25 anos fotografando a Boa Morte. Nesse período, ele publicou fotos, textos

e disponibilizou seu acervo como forma de divulgar a Boa Morte por todo o mundo.

Figura 3 - No primeiro dia da festa da Boa Morte ocorre a celebração da dormição de Maria e são lembradas as irmãs

falecidas. Foto: Adenor Gondim (1995).

Nesta imagem são plenamente valorizados os aspectos sincréticos da Irmandade.

Gondim privilegiou um ângulo plongée (de cima para baixo), possibilitando uma visão

do interior da Igreja onde é realizada a celebração da dormição de Maria, no primeiro dia

da festa. A imagem da santa no centro da foto – com suas vestes em azul e branca – é

venerada pelas irmãs que circundam o esquife, caracterizadas com os trajes do primeiro

dia, que segundo Gondim são roupas oriundas das tradições africanas. É perceptível a

ausência de joias, porém, parte delas trazem no pescoço colares do candomblé. Nota-se

ainda que cada mulher segura um cajado com uma vela acesa, simbolizando a luz da vida.

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Figura 4 - Estelita Souza Santana. Anália da Paz dos Santos Leite. Fotos: Adenor Gondim.

Entre os muitos retratos que Gondim realizou da Boa Morte, os das irmãs Estelita

e Anália (Figura 4) foram aqui destacados. Para produzi-los o fotógrafo posicionou as

mulheres contra fundos escuros, contrastando com as cores das vestes e adereços. No

retrato de Estelita ficou também registrada a simplicidade das vestes do primeiro dia da

festa. Já Anália posou para o fotógrafo com as vestes do terceiro dia, 15 de agosto, dia

em que Maria teria subido aos céus de corpo e alma, em uma espécie de triunfo e milagre.

A força e alegria que o dia representa foram realçados também por seu porte forte e altivo,

adornado pela opulência dos adereços. Gondim optou por compor retratos de modo –

sempre que possível – pensado e organizado para alcançar determinado objetivo. Sobre

esta prática, Norbert Schneider (1997, p. 20) observou “[...] os retratos são sempre o

produto de uma composição. São o resultado de um pacto entre o artista e o modelo [...]”.

5 PEDRO ARCHANJO: RETRATOS DE FÉ

Pedro Archanjo da Silva é natural de Maragogipe (Bahia). É sociólogo, fotógrafo

premiado e Mestre em Artes Visuais pela UFBA. Já realizou exposições no Brasil e

exterior e é diretor do Centro Cultural Dannemann onde coordena a Bienal do Recôncavo.

Desenvolve pesquisas sobre arte contemporânea e realiza ensaios fotográficos nos

terreiros de candomblé da Bahia. Archanjo fotografa a Boa Morte desde 1987, com o

objetivo de retratar a importância histórica da expressão estética que a Irmandade traduz,

contribuindo também para a difusão do aspecto mais reflexivo e introspectivo peculiar às

mulheres em determinados momentos da festa da Boa Morte. Tais características podem

ser observadas nas fotografias de sua autoria aqui apresentadas (Figura 5).

Figura 5 - Dagmar Bonfim Barbosa dos Santos. Almerinda Pereira dos Santos. Dalva Damiana de Freitas. Fotos:

Pedro Archanjo (Década de 1990).

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Nota-se que nos registros das irmãs Dagmar Bonfim Barbosa dos Santos, Almerinda

Pereira dos Santos e Dalva Damiana de Freitas, Archanjo conferiu uma imponência aos

retratos ao colocá-los em molduras ovais de acabamento dourado. Além destes aspectos,

os retratos valorizam os trajes e o abundante uso de adereços. Para que fosse possível

fotografar as irmãs em momento de concentração e reflexão, ressaltando a entrega aos

princípios religiosos, Archanjo informou que precisou de tempo e paciência, já que no

momento em que fotografava teve de esperar para registar as expressões que buscava.

Além disso, havia muitos fotógrafos ao redor e muita gente acompanhando os festejos,

mas apesar das dificuldades o objetivo foi alcançado. Com esse tipo de registro ele

privilegiou aspectos que contribuem para a afirmação da religiosidade e valorização da

dimensão estética que a Irmandade resguarda.

Cabe observar que através das vestes e adornos, a irmandade evoca a esfera do

sagrado e estabelece a importância do aspecto estético da festa. Sobre esta perspectiva,

Renata Pitombo Cidreira (2013, p. 8) ressaltou que “a roupa, compreendida na sua

dimensão simbólica, é um elemento importante na constituição cultural; reforça mitos e

signos, reestrutura valores e tradições”. Investigando as semelhanças e diferenças nas

imagens da festa da Boa Morte produzidas por Pierre Verger, Adenor Gondim e Pedro

Archanjo, pode-se notar que em todas as vestimentas e adornos têm papel de destaque,

podendo-se, inclusive, identificar o dia em que as fotos foram tiradas pelo tipo de roupa

que as irmãs trajam e pelo modo como se adornam14. Nesse aspecto, constata-se que esse

ar de semelhança contribui para a conservação de valores religiosos, sociais, culturais,

sendo assim de suma importância para a memória e história.

Por outro lado, investigando as diferenças entre as fotografias apresentadas, pode-

se deduzir que elas se dão a partir dos modos próprios de fotografar. As fotos de Verger

têm como traço principal a espontaneidade: parece que as pessoas retratadas nem se

aperceberam que os registros foram feitos. Adenor Gondim, por opção, prefere compor

seus retratos de modo planejado, destacando os aspectos que considera mais importantes

na construção de suas imagens. Já Pedro Archanjo procurou captar momentos de profunda

entrega religiosa, de fé, reflexão e concentração, esperando pacientemente para capturar

seus retratos.

Referências:

14 Apesar de, na atualidade, as joias de ouro não serem mais evidentes em meio aos adereços que as

mulheres usam, as bijuterias realçam a imagem e conferem destaque ao luxo das irmãs.

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