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Inferncias Lingusticas nas Interfaces
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Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
Chanceler:
Dom Dadeus Grings
Reitor: Joaquim Clotet
Vice-Reitor:
Evilzio Teixeira
Conselho Editorial: Antnio Carlos Hohlfeldt
Elaine Turk Faria Gilberto Keller de Andrade
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Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente)
Jos Antnio Poli de Figueiredo Jussara Maria Rosa Mendes
Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira
Maria Lcia Tiellet Nunes Marlia Costa Morosini
Ney Laert Vilar Calazans Ren Ernaini Gertz
Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chitt Gauer
EDIPUCRS: Jernimo Carlos Santos Braga Diretor Jorge Campos da Costa Editor-chefe
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Jorge Campos Organizador
Inferncias Lingusticas nas Interfaces
PORTO ALEGRE 2009
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EDIPUCRS, 2009
Capa: Vincius de Almeida Xavier
Preparao de originais: Grasielly Hanke Angeli
Diagramao: Gabriela Viale Pereira
Colaborador: Aline Aver Vanin
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
I43 Inferncias lingusticas nas interfaces [recurso eletrnico] / Jorge Campos (Org.). Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009. CD-ROM
ISBN: 978-85-7430-846-3
1. Lingustica. 2. Semntica. 3. Pragmtica. 4. Inferncia.
5. Aquisio da Segunda Lngua. I. Costa, Jorge Campos da. CDD 410
Ficha Catalogrfica elaborada pelo
Setor de Tratamento da Informao da BC-PUCRS
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SUMRIO
APRESENTAO: INFERNCIAS LINGUSTICAS NAS INTERFACES ................ 7
Jorge Campos
PREDIO LEITORA E INFERNCIA ...................................................................... 10
Vera Wannmacher Pereira
O PAPEL DAS INFERNCIAS NA CONSTRUO DE CONCEITOS DE EMOO
........................................................................................................................................ 23
Aline Aver Vanin
COMO FUNCIONA A INFERNCIA MORFOSSEMNTICA? ................................ 40
Adriana Quinelo da Silva
AQUISIO DE IMPLICATURAS ESCALARES...................................................... 52
Gracielle Tamiosso Nazari
INFERNCIAS SEMNTICO-PRAGMTICAS E SEGUNDA LNGUA ................ 67
Cristiane Ruzicki Corsetti
INFERNCIAS, ENVELHECIMENTO E DOENA DE ALZHEIMER .................... 82
Alcivia Palombini
DAISYSPOT: A INFERNCIA NA INTERFACE IMAGEM E LINGUAGEM........ 105
Marion Costa Cruz
INFERNCIAS NA INTERFACE SEMNTICO-PRAGMTICA: UM ESTUDO DA
LINGUAGEM DE HOMENS E MULHERES PELA TEORIA DAS IMPLICATURAS
GRICEANAS ................................................................................................................119
Carla de Aquino
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A INTERPRETAO DE METFORAS PELA TEORIA DA RELEVNCIA E
EFEITO DE SENTIDO ................................................................................................ 136
Karina Saraiva Schrder
TEORIA DA RELEVNCIA E DISCURSO FUTEBOLSTICO............................... 148
Jsura Lopes Chaves
INFERNCIAS E MANCHETES DE JORNAL: A ELEIO DE OBAMA NOS
ESTADOS UNIDOS .................................................................................................... 157
Susan Catherine Brown
INFERNCIAS E REALITY SHOW: UMA ANLISE LGICO-LINGUSTICA..... 172
Ana Carolina Motta Davi
EFEITOS CONTEXTUAIS E AMBIENTE COGNITIVO: ASPECTOS INTER-
RELACIONADOS E DETERMINANTES DA RELEVNCIA PARA O LEITOR .. 182
Maria de Lourdes Spohr
INFERNCIA E IMAGEM: CHARGE E CARTOON ................................................. 204
Ronei Guaresi
A INFORMAO POR TRS DA CENA: INTERFACE CINEMA E
INFERNCIAS ............................................................................................................ 220
Edivania da Costa Ramos
EVERYBODY LIES ....................................................................................................... 230
Ana Mrcia Martins da Silva
TEXTOS ADICIONAIS............................................................................................... 250
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APRESENTAO
INFERNCIAS LINGUSTICAS NAS INTERFACES
Jorge Campos1
A linguagem, dada a sua complexidade, pode ser investigada sob mltiplas
perspectivas. possvel projet-la pelo menos em trs grandes dimenses humanas que
caracterizam trs direes cientficas fundamentais: conhecer, pensar e comunicar,
possveis roteiros das cincias naturais, formais e sociais, respectivamente.
A inferncia, dentro desse contexto, pode ser modelada como uma propriedade a
ser identificada em qualquer uma das direes acima. Inferir, nesse sentido, teria um
papel garantido no processo do conhecimento, do raciocnio e da comunicao. De um
ponto de vista histrico, a inferncia o centro da atividade clssica de argumentar,
tornando-se o objeto de investigao consagrado pela silogstica aristotlica nos
fundamentos da Lgica. Na perspectiva moderna, pode-se modelar a inferncia em
interfaces entre vrias reas, embora, por razes evidentes, a natureza lgica do
processo continue a ser um ponto de partida geralmente assumido. Sob tal tica, a
inferncia caracteriza-se como uma espcie de objeto inter/intradisciplinar por
definio. Entre disciplinas porque, por exemplo, seria construda na interface lgico-
lingustica, ou lgico-cognitiva, ou, ainda, lgico-comunicativa. Intradisciplinarmente,
porque, no interior da Lgica Clssica, a inferncia dedutiva seria construda como
objeto do Clculo Proposicional e de Predicados, ou da Lgica de Predicados e da
Lgica Modal, etc. No interior da Lingustica, a Semntica e a Pragmtica disputariam a
questo da inferncia em suas descries do significado em linguagem natural.
Passemos a ilustrar o papel inter/intradisciplinar da inferncia, assumindo sua
propriedade dedutiva. Quando examinamos uma sentena S complexa como Joo
ficar rico e viajar pelo mundo, poderemos simboliz-la como P & Q, sendo que a
1 E-mail: [email protected]
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Apresentao: Inferncias lingusticas nas interfaces
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verdade de tal conjuno composicionalmente dependente da verdade das proposies
atmicas P e Q individualmente. O fato de que hoje no se tem possibilidade de decidir
o valor de verdade de sentenas no futuro no relevante para o caso. Basta entender-
se, apenas, que as condies de verdade da sentena molecular dependem das condies
de verdade das partes atmicas. Isso envolve a Lgica Proposicional ilustrada por uma
sentena da linguagem natural. Suponhamos, nesse momento, que desejemos deslocar o
processo inferencial para a investigao interdisciplinar entre Lgica e Lingustica, ou,
mais especificamente, entre o Clculo Proposicional e a Semntica. Poderemos, nesse
caso, caracterizar tal investigao ao nvel de uma disciplina mais complexa como a
Lgica Informal, por exemplo, que investiga a natureza dos argumentos em linguagem
natural sob uma perspectiva lgica. Tal deslocamento, portanto, leva-nos a questionar o
princpio da comutatividade do & do clculo proposicional, dado que S, P&Q, equivale,
logicamente, a S1, Q&P, o que problemtico para argumentos da linguagem cotidiana.
Em S, h uma inferncia de que, ficando rico, Joo poder viajar pelo mundo; em S1, h
uma inferncia de que, viajando pelo mundo, ele conseguir ficar rico. Tais inferncias
so plausveis, mas no so necessrias, evidentemente. Poderamos cancel-las em S,
por exemplo, dizendo que Joo ficar rico e viajar pelo mundo com sua mulher que
milionria e pagar sua viagem. Ou em S1, dizendo que Joo viajar pelo mundo e
ficar rico porque, na volta, receber uma herana, cujo processo jurdico j ter
terminado. Seria til distinguir-se tais inferncias como pragmticas em oposio a
acarretamentos semnticos do tipo sempre que S for verdadeiro, S1 dever s-lo. Isso
quer dizer que j estamos proporcionando descries em nvel intradisciplinar, ou na
interface semntico-pragmtica cujo valor explanatrio dever ser encontrado nas
relaes interdisciplinares, ou na interface lgico-lingustica.
Os textos que se seguem so ilustraes de variadas formas de explorar
inter/intradisciplinarmente a noo complexa e interessante de inferncia. Eles resultam
de trabalhos individuais para a avaliao final da disciplina Tpicos de Semntica,
ministrada por mim no segundo semestre de 2008, com perspectivas mais exploratrias
do que propriamente tcnicas, em que insights e elocubraes predominam sobre
resultados rigorosos e precisos. Para melhor explicitar as questes sobre a interface
lgico-lingustica, acrescenta-se uma breve apresentao com os fundamentos bsicos
aqui.
apresentacao.pdf -
Jorge Campos
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O contedo de cada texto de responsabilidade dos seus autores, e a organizao
estrutural foi feita pela doutoranda Aline Aver Vanin. Alm disso, ao final deste e-book,
so relacionadas algumas sugestes de links e textos, divididos em temas que perpassam
a obra, os quais visam acrescentar ao leitor informaes acerca do que foi lido.
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PREDIO LEITORA E INFERNCIA
Vera Wannmacher Pereira2
O artigo aqui apresentado tem como tema o processamento da leitura e est
construdo no espao de interao de estudos da Psicolingustica, no que se refere
estratgia de predio, e de estudos da Pragmtica, no que diz respeito aos percursos
inferenciais.
Tendo como objetivo demonstrar a importncia dessa interao, o artigo est
organizado em duas partes. Na primeira, so apresentados os fundamentos tericos
sobre predio leitora e inferncia e, na segunda, ocorre a demonstrao integrada
desses pontos tericos, em textos selecionados para esse fim. No fechamento, so
realizadas consideraes finais, envolvendo retomadas e perspectivas.
1 FUNDAMENTOS
So apresentadas a seguir, sucessivamente, concepes sobre predio leitora e
inferncia, antecedidas de informaes sobre processamento e estratgias de leitura,
contexto terico dos dois tpicos centrais.
1.1 CONTEXTO TERICO
Processamento cognitivo e estratgia de leitura constituem-se em pano de fundo
terico das concepes de predio e inferncia que tm ateno especial no presente
artigo, o que explica o desenvolvimento a seguir. 2 E-mail: [email protected]
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Vera Wannmacher Pereira
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So vrios os conceitos de leitura, cada um deles vinculado a uma perspectiva
terica. O de leitura como processo cognitivo, aqui assumido, indica-a
fundamentalmente como a realizao de dois movimentos bottom-up e top-down.
O movimento bottom-up caracteriza-se como ascendente, fazendo o movimento
das partes para o todo. Constitui-se numa leitura linear, minuciosa, vagarosa, em que
todas as pistas visuais so utilizadas. um processo de composio, uma vez que as
partes gradativamente vo formando o todo.
O movimento top-down consiste num movimento no-linear da macroestrutura
para a microestrutura, da funo para a forma, baseando-se na concepo antecipatria
da leitura, segundo a qual so utilizadas simultaneamente as informaes grafo-fnicas,
morfossintticas, semnticas e pragmticas.
Esses movimentos ou processamentos sofrem a influncia de variveis como o
objetivo da leitura, os conhecimentos prvios do leitor, o tipo de texto e os caminhos
cognitivos j desenvolvidos por ele. Isso significa que, provavelmente, quanto mais
informaes o leitor j possui sobre o assunto do texto que tem diante dos seus olhos,
ele tem mais possibilidades de realizar um processamento top-down. Por outro lado, se
o objetivo da leitura a preparao para realizao de uma prova, provavelmente a
tendncia do leitor para um processamento botton-up, de modo a garantir o envio de
informaes detalhadas e precisas para os arquivos de memria. Da mesma forma,
diante de um outdoor, o leitor dificilmente mobiliza caminhos minuciosos de leitura,
preferindo certamente os do tipo top-down.
Como pode ser deduzido, esses dois tipos de processamento guardam diferenas
e so igualmente importantes, cabendo ao leitor a escolha do mais produtivo para a
situao e, se possvel, com o menor esforo cognitivo, o que abre uma rea de contato
importante com a teoria da relevncia de Sperber & Wilson.
Ocorrem por meio de estratgias cognitivas de leitura, que so explicitadas com
particularidades por diferentes linguistas. Das explicitaes decorrem categorizaes
diversas, sendo indicadas com frequncia o scanning, o skimming, a seleo, o
automonitoramento, a autoavaliao, a autocorreo, a predio e a inferncia. Dentre
todas as mencionadas, so mais recorrentes as duas ltimas, possivelmente por
constiturem o alicerce do raciocnio de compreenso da leitura.
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Predio leitora e inferncia
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1.2 PREDIO LEITORA
Como exposto anteriormente, estudos e pesquisas sobre estratgias de leitura
repousam seu olhar, de um modo ou de outro, na predio, que permite prever letras,
morfemas, palavras, frases, enfim at o tema do texto e a situao de produo do texto.
O termo predio muitas vezes substitudo por previso, anteviso,
antecipao, adivinhao. Entre eles, o ltimo tem restries por parte de alguns
pesquisadores, no havendo, alm disso, unanimidade na aceitao da adivinhao
como estratgia fundamental para a leitura competente, pois, em alguns estudos, so
precisamente os leitores menos produtivos os que fazem mais adivinhaes. Por outro
lado, Smith est entre os que argumentam a favor da predio, associando previso
(formulao de perguntas antes e durante a leitura) e compreenso (obteno de
respostas a essas perguntas). Do mesmo modo, Goodman se situa entre os que afirmam
que uma leitura eficiente depende da realizao de predies corretas, que, por sua vez,
depende da seleo de elementos importantes do texto.
Como se v, a predio consiste numa estratgia leitora que prope um
confronto entre o leitor, atravs de seus conhecimentos prvios, e o texto, atravs das
pistas lingusticas deixadas pelo escritor em todos os planos do texto. Essa condio a
configura como um jogo psicolingustico de antecipao do que est por vir e de
verificao da correo do movimento realizado, isto , de formulao e testagem de
hipteses de leitura.
Trata-se, na verdade, de um jogo de risco automonitorado, cabendo ao leitor,
durante a leitura, selecionar as pistas formais (que se realizam atravs das regras de
funcionamento lingustico do texto) e, com base nelas, lanar suas hipteses e, a partir
delas, continuar, ento, seu trabalho de navegao no texto. Caso suas hipteses se
confirmem, ele, consciente de que est sobre base firme, prossegue navegando. Caso, no
entanto, no se confirmem, reconhecendo que est em base movedia, interrompe sua
viagem, para e retorna ao ponto anterior, redefinindo as pistas que o conduziram ao
equvoco.
Tais pistas lingusticas so objeto de manipulao do leitor para a realizao de
suas predies. Desse modo, o processo de antecipao, de formulao e verificao de
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Vera Wannmacher Pereira
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hipteses de leitura pode estar apoiado em traos grafo-fnicos (relao fonema/letra,
rima, aliterao), morfossintticos (limite e estrutura de palavra, estrutura de frase,
coeso gramatical), semnticos (significado, coeso lexical, coerncia) e pragmticos
(relao texto/situao de uso).
Cabe salientar que a seleo das pistas pelo leitor est vinculada importncia
das mesmas no texto que o leitor tem diante de seus olhos e importncia para o
processo de predio. Assim, mais provvel que pistas grafo-fnicas sejam mais
manipuladas preditivamente em poesias do que em textos cientficos, assim como pistas
pragmticas sejam mais objeto de manipulao em textos fortemente circunstanciados
(propagandas, anncios, avisos, cartas, bilhetes) do que em textos menos marcados pela
situao de produo (cientficos). No poema Velocidade, de Ronaldo de Azevedo,
exposto abaixo, as predies do leitor provavelmente esto vinculadas aos traos grafo-
fnicos e pragmticos, uma vez que a compreenso do sentido de velocidade est
vinculada seleo e disposio das letras, ao valor sonoro dos fonemas e a
conhecimentos de mundo sobre velocidade e situaes em que ocorre.
No entanto, h que considerar tambm que alguns textos podem fugir a essas
tendncias. o caso, por exemplo, do poema Os Estatutos do Homem (excerto a
seguir), de Thiago de Mello, em que as pistas lingusticas so nitidamente marcantes
para garantir a intencionalidade do autor. A seleo lexical (estatutos, artigo,
decretado), assim como a estrutura morfossinttica (fica decretado que) apontam para
um texto normativo, de natureza legal. Do mesmo modo, a expresso Ato Institucional
VELOCIDADE (de Ronaldo Azevedo)
V V V V V V V V V V V V V V V V V V V E V V V V V V V V E L V V V V V V V E L O V V V V V V E L O C V V V V V E L O C I V V V V E L O C I D V V V E L O C I D A V V E L O C I D A D V E L O C I D A D E
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Predio leitora e inferncia
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Permanente estabelece vnculos semntico-pragmticos com o momento histrico de
produo do poema, gerando sentidos vinculados s intenes do autor.
1.3 INFERNCIA
O termo inferncia encontrado tanto na Psicolingustica como na Pragmtica.
Na Psicolingustica, a inferncia consiste numa estratgia de leitura, assim como a
predio leitora, exigindo processamentos cognitivos que manipulam pistas textuais
deixadas pelo leitor, com o objetivo de chegar compreenso do texto. Na Pragmtica,
constitui-se num percurso cognitivo que ocorre entre uma afirmao inicial e uma
afirmao final (concluso), sendo a base para clculos de relevncia.
Neste artigo, o percurso cognitivo inferencial faz a ncora, o suporte para a
realizao da predio, estratgia fundamental para a compreenso. Nesse sentido, a
inferncia est sendo assumida como caminho com esforo cognitivo para a predio,
com vistas ao benefcio da compreenso leitora, o que faz uma aproximao com a
teoria da relevncia.
A literatura existente sobre inferncia traz diferentes categorizaes. Aqui, a
opo pela definio de dois grupos de categorias a inferncia lingustica episdica,
Estatutos do Homem: Ato Institucional Permanente
Thiago de Mello Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade, agora vale a vida, e de mos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as teras-feiras mais cinzentas,
tm direito a converter-se em manhs de domingo. Etc
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Vera Wannmacher Pereira
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que, para o percurso cognitivo, toma os fatos, as informaes, o contedo do texto,
como pistas decisoras, uma vez que so elas a chave para a soluo; a inferncia
metalingustica, que, para fazer o percurso cognitivo, toma a prpria linguagem como
pista de deciso, uma vez que o leitor encontra nela o fundamento para a concluso.3
A inferncia lingustica episdica busca apoio nos planos constitutivos da lngua
grafo-fnico, morfolgico, sinttico, semntico, pragmtico, podendo ocorrer
associados.
Baseada em traos grafo-fnicos da lngua est apoiada nas relaes
fonema/letra, que possibilitam combinaes geradoras de morfemas, que, por sua vez,
tambm permitem combinaes mais amplas e mais complexas. O uso dessas relaes
pode, atravs de repeties, gerar aliteraes, rimas, e consequentemente formas e
sentidos. Os trava-lnguas, as cantigas infantis, as parlendas, as poesias infantis
permitem usualmente concluses inferenciais baseadas em elementos grafo-fnicos, de
modo que compreender esses textos, assim como exercitar seu uso, exigem continuadas
inferncias desse tipo. No dilogo a seguir, a substituio do fonema /m/ por /b/ d
suporte para realizao de inferncias sobre comportamentos de Andr em relao ao
uso de ofertas prprias de um bar.
A inferncia lingustica episdica pode estar apoiada em pistas morfossintticas -
a estrutura das palavras e das frases e a disposio dos elementos nas frases. A
compreenso de palndromos, por exemplo, baseia-se em percursos cognitivos
orientados pela segmentao, em suas palavras, de uma sequncia lingustica
continuada. Em situaes de ironia ou de humor, a compreenso frequentemente exige a
realizao de inferncias apoiadas em jogo morfossinttico. No dilogo a seguir, os
empregos morfossintticos do verbo chegar permitem raciocnios inferenciais sobre o
comportamento de Antnio como estudante.
3 A categorizao aqui utilizada foi construda em dilogos com Jorge Campos.
Andr prope a Ana: -Vou dar uma chegada no mar. Ana responde: - Ou no bar?
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Predio leitora e inferncia
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As inferncias lingusticas episdicas tambm utilizam pistas semntico-
pragmticas para realizao do percurso inferencial. No caso, esse percurso est
ancorado nos significados da linguagem e nas relaes contextuais. Na tira a seguir,
Mafalda conjuga, para os colegas, sob o olhar da professora, o verbo confiar. Ao
terminar, dirigindo-se a ela, diz: Que bando de ingnuos! No contexto da tira, Mafalda
faz uma inferncia com possivelmente o seguinte percurso: a) eu, tu, ele, ns, vs, eles
confiam; b) os que confiam so ingnuos; c) eu, tu, ele, ns, vs, eles so ingnuos.
Nessa ingenuidade podem estar ou as pessoas em geral, ou os alunos que conjugam
verbos, ou seus professores, ou todos juntos. O percurso inferencial de Mafalda est
apoiado em dados semntico-pragmticos sobre padres escolares e sobre
comportamentos e crenas da sociedade.
2 DEMONSTRAO
Nesta parte do artigo, so demonstrados os fundamentos anteriormente
desenvolvidos, sendo para isso utilizados quatro textos sucessivamente.
No texto Os seis gangsters de Chicago, o primeiro deles, h palavras
encobertas cujo desvelamento exige do leitor movimentos preditivos e inferenciais, que
so explicitados na sequncia, sendo que os primeiros impulsionam as adivinhaes,
Antnio diz me: - Cheguei ao final das aulas. E a me: - E as aulas chegaram?
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Vera Wannmacher Pereira
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que constroem a compreenso do texto, e as ltimas explicitam o percurso do
raciocnio, que ancora o processo compreensivo.
As demonstraes aqui realizadas, relativas a esse texto, integrando predio e
inferncia, decorrem de respostas apresentadas por crianas de 5. Srie do Ensino
Fundamental, monitoradas individualmente em oficinas de leitura ocorridas no Centro
de Referncia para o Desenvolvimento da Linguagem CELIN da Faculdade de Letras
da PUCRS.
A predio da primeira palavra encoberta (gangster) exige a releitura das duas
primeiras frases e uma primeira leitura das frases seguintes. H tambm a necessidade
de um skimming, buscando pistas gerais e de um scanning buscando pistas especficas.
Esses movimentos de leitura contam com a ncora de um percurso de inferncias
apoiadas em itens lexicais baseadas nos fatos e na estrutura interna do texto
(especificamente na repetio vocabular e em elementos semntico-pragmticos
referentes ao criminosa de gangsters). Usando essas pistas, o leitor percebe a
posio nas frases ocupada por uma mesma palavra: se gangster ocorre ao lado de
primeiro, quarto, quinto e sexto, ento deve tambm ocorrer ao lado de segundo,
donde a predio correta.
Na segunda palavra encoberta (segundo), a predio precisa de releituras
OS SEIS GANGSTERS DE CHICAGO
(de Leon Eliachar)
O primeiro gangster chegou na janela, apontou a metralhadora para a rua: BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG!
O segundo gangstr escondeu-se atrs do prdio da esquina e reagiu imediatamente: BENG - BENG - BENG - BENG -BENG - BENG - BENG - BENG - BENG - BENG!
O terce iro gangster subiu no prdio em frente e comeou a atirar: BING - BING - BING - BING - BING - BING - BING - BING - BING - BING!
Foi quando se ouviu l no terrao o quarto gangster em ao: BONG - BONG - BONG - BONG - BONG -BONG- BONG - BONG - BONG - BONG!
O quinto gangster saiu d o banco empunhando a sua metralhadora de mo e atirou nos policiais que cercavam o prdio : BUNG - BUNG - BUNG - BUNG -BUNG - BUNG - BUNG - BUNG - BUNG - BUNG!
O sexto gangster ficou completamente impassvel porque no havia mais Vo gai s.
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Predio leitora e inferncia
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sucessivas da segunda frase e, posteriormente, da anterior e das seguintes. Nesse
momento, possvel que o leitor prefira apenas o scanning, uma vez que j fez leituras
gerais. Para fazer a adivinhao, o leitor, apoiado em aspectos episdicos, busca suporte
na coeso gramatical do texto, especialmente nos numerais em sequncia. Com base
nessas pistas, o leitor faz inferncias apoiadas na morfossintaxe, considerando que, se
primeiro, quarto, quinto e sexto antecedem gangster, ento provvel que o mesmo
ocorra na segunda frase do texto, donde correta a predio de terceiro.
A predio da terceira palavra encoberta (do) depende apenas de releitura da
prpria frase, uma vez que est situada na sintaxe das relaes internas da sentena.
Para fazer a adivinhao, o leitor se apoia nos conhecimentos lingusticos que possui.
Observa, ento, o antecedente e o consequente e faz inferncias apoiadas em itens
morfossintticos possveis do ou pelo. Prossegue na leitura da frase e percebe que a
segunda orao informa que o gangster atirou nos policiais que cercavam o prdio. Faz
ento uma inferncia (base semntico-pragmtica) se atirou em quem estava do lado
de fora, ento ele estava tambm do lado de fora. Volta para a palavra encoberta e faz a
inferncia final, de base morfossinttica saiu do banco e a escolha final do.
Para predizer a quarta palavra encoberta (vogais), o leitor tem mais dificuldades,
- ele pode se encaminhar para mais de uma possibilidade de resposta, considerando os
caminhos inferenciais que se abrem. O percurso mais evidente est nos fatos do texto
associados a conhecimentos de mundo. Esse percurso semntico-pragmtico conduz,
pela proximidade da expresso metralhadora e pela imediata relao entre esse objeto
e a munio como condio para seu funcionamento, com menos esforo cognitivo, a
balas. J um processo inferencial da mesma natureza, mas menos imediato encaminha o
leitor para policiais, pois estes eram o alvo dos gangsters durante toda a narrativa. Com
mais esforo cognitivo, pois ainda menos imediato, o leitor faz um percurso inferencial
semntico-pragmtico, predizendo gangsters, uma vez que a sucesso destes pode
significar tambm sua eliminao. Como afirmado anteriormente, essas trs
possibilidades de predio esto aliceradas no plano da histria, dos fatos, dos eventos
(inferncias lingusticas episdicas). Nenhum desses processos inferenciais, no entanto,
conduzem a uma predio correta do ponto de vista do texto original esforo cognitivo
crescente e nenhum benefcio, embora percorridos pela quase totalidade das crianas
monitoradas. Cabe registrar tambm que o mesmo acontece com quase todos os adultos
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Vera Wannmacher Pereira
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submetidos mesma situao.
A predio da palavra original (balas) exige que o leitor, a partir de novo
skimming, de um scanning sobre o que ocorreu com cada uma dos gangsters bem
sucedidos, dirija sua ateno para os elementos lexicais representando os tiros, do
primeiro ao quinto gangster (bang, beng, bing, bong, bung). A partir desse momento, o
leitor ultrapassa o plano episdico e dirige seu raciocnio para a organizao lingustica
da sequncia a, e, i, o, u, realizando, ento, para obteno de sucesso, um percurso
inferencial metalingustico, com esforo cognitivo alto, no que se refere quantidade de
processamentos de leitura, diversidade de estratgias de leitura de apoio, quantidade
de tentativas de predio, ao trnsito entre plano episdico e plano metalingustico, e ao
tempo despendido.
Para uma demonstrao mais clara de predio com base em inferncia
metalingustica, esto apresentados mais alguns exemplos.
No texto Eternidade Amor, de Artur da Tvola, um processo similar ocorre,
cabendo salientar a particularidade de estruturao de todo o texto a segmentao
morfossinttica a partir do ttulo. Esse trao de certa forma direciona o percurso
inferencial do leitor, exigindo do leitor (provavelmente adulto devido ao contedo)
menor tempo, menor nmero de processamentos e menor nmero de tentativas de
predio para chegada palavra original idade.
O texto A Pista, de Ziraldo, tambm exige, para a predio da palavra careca,
uma inferncia metalingustica, mas com um percurso peculiar. O leitor primeiramente
se situa no episdio do texto um dilogo entre o detetive e um auxiliar, numa
investigao criminal. conduzido, a seguir, alternadamente por um e outro
ETERNIDADE AMOR (Artur da Tvola)
terna ida de amor ter na idade, amor Eterna ida de amor ter na idade: amor ter na ida de Amor Eterna ida de A-mr
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Predio leitora e inferncia
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personagem, portando-se como cada um deles. segunda pergunta do detetive, tanto o
auxiliar como o leitor raciocinam conotativamente, isto , nada mesmo. Para chegar,
finalmente, a careca, ambos tm que voltar ao plano lingustico do texto e proceder a
um raciocnio denotativo se no tem nenhum fio de cabelo, ento careca. Esses
movimentos podem ser facilitados pela conscincia do leitor sobre a natureza do texto.
Alguns textos do folclore utilizam-se de recursos metalingusticos, exigindo do
leitor raciocnios inferenciais dessa mesma natureza. o caso de algumas adivinhas,
como a apresentada a seguir. A resposta pergunta inicial encaminha o leitor para um
raciocnio voltado para cada uma das afirmaes tem comeo da rua (esquina?); vive
na ponta do ar (bailarino? trapezista? nuvem?); dobra no meio da terra (raiz? minhoca?
defunto?); mora onde acaba o mar (pescador? montanhs? rede? areia?). No tendo
sucesso na predio, o leitor dirige seu raciocnio para a linguagem do texto e passa a
observ-la detidamente. Aps muitos skimmings e scannings, pe sua ateno nas
palavras comeo, na ponta, meio, acaba, buscando associaes possveis. A seguir, faz o
mesmo com rua, ar, terra, mar. Posteriormente, estabelece vnculos entre os dois grupos.
Atravs dessa sequncia de inferncias metalingusticas, com alto esforo cognitivo, o
leitor chega predio correta a letra r.
O que , o que ?
Tem comeo da rua. Vive na ponta do ar. Dobra no meio da terra. Mora onde acaba o mar.
Resposta .................
A PISTA (Ziraldo)
O detetive pergunta - Alguma pista ?
- Nada . - Nem um fio de cabelo ? - Nem um. - timo ! Vo l e prendam o careca !
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Vera Wannmacher Pereira
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CONSIDERAES FINAIS
Este artigo decorre do reconhecimento da necessidade de estabelecimento de
interfaces na Lingustica, como condio para o alargamento e o aprofundamento de
explicaes prprias de cada modelo. Nesse entendimento, so focalizadas as relaes
entre predio leitora (Psicolingustica) e inferncia (Pragmtica).
Predio definida, no artigo, como antecipao para a compreenso, que ocorre
nos diversos planos lingusticos. Inferncia definida como o percurso cognitivo para a
predio e apresentada em duas categorias a inferncia lingustica episdica, com a
deduo e a soluo nos fatos, nos episdios; a inferncia metalingustica, com a
deduo e a soluo na prpria linguagem do texto.
As demonstraes realizadas por meio de alguns textos indicam um esforo
cognitivo possivelmente maior no processo inferencial metalingustico do que no
processo inferencial lingustico.
Como perspectiva, cabe apontar o fato de que a construo da interface predio
leitora/inferncia abre caminho para o seu aprofundamento e para a busca de outras
possibilidades, usando a Psicolingustica e a Pragmtica.
REFERNCIAS
COSTA, Jorge Campos da. Comunicao e inferncia em linguagem natural. In: /www.jcamposc.com.br/ GOODMAN, Kenneth S. Unidade na leitura um modelo psicolingstico transacional. Letras de Hoje, n. 86, p. 9-43. Porto Alegre: EDIPUCRS, dez. 1991. ______. A linguagem integral: um caminho fcil para o desenvolvimento da linguagem. In: Letras de Hoje. Porto Alegre: PUCRS, n. 90, 1992.
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Predio leitora e inferncia
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PEREIRA, Vera W. Arrisque-se... Faa o seu jogo. In: Letras de Hoje, n.128. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. SMITH, Frank. Compreendendo a leitura. Porto Alegre: Artes Mdicas, 2003.
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O PAPEL DAS INFERNCIAS NA CONSTRUO DE CONCEITOS DE EMOO
Aline Aver Vanin4
Traduzir em palavras o que se sente uma tarefa bastante rdua quando se
pretende explicar ao outro o que determinado conjunto de sintomas emocionais
significa e como dele possvel extrair, em uma s palavra, a emoo, ou o sentimento,
de dado momento. Mesmo com uma variedade bastante ampla de possibilidades de
definio, surpreendentemente os indivduos conseguem compreender, de forma
intuitiva, o que esto sentindo, aceitando um mesmo item lexical para definir tal
emoo. O fato de haver uma conformidade a respeito de uma definio to abstrata
leva a perguntar: por que as pessoas concordam estar sentindo o que sentem? E, mais
ainda: de que forma a interpretao de um sentimento X construda de maneira a ser
compartilhada pelos indivduos numa situao comunicativa?
A partir desses questionamentos, percebe-se a necessidade de definir,
primeiramente, de que forma os conceitos so estabelecidos como tais na mente
individual, baseada na convivncia com os outros e, em segundo lugar, como as
emoes5 so definidas de maneira a haver um acordo comum entre os interactantes de
uma mesma cultura acerca da emoo X ser realmente X, e no Y. Antecipa-se que o
papel das inferncias crucial para esse construto, porquanto serem elas a chave para o
processamento da informao.
A construo do significado sustentada a partir da hiptese de que a cognio
humana possui um carter social; nesse sentido, processos inerentes a ela levam em
conta um princpio de partilhamento, ou seja, necessria a participao dos
interactantes da comunicao para que eles ocorram. por esse motivo que se acredita
que o sentido no inerente linguagem, mas trata-se de uma atividade dos falantes
4 Doutoranda em Lingustica Aplicada PUCRS. E-mail: [email protected] 5 Para Wierzbicka (1999), emoo e sentimento no so conceitos sinnimos, visto o primeiro no ser universal, enquanto o segundo sim; para a autora, o verbo sentir em diferentes culturas, capaz de definir emoes. Contudo, por questes metodolgicas, no sero feitas distines, neste texto, entre essas duas palavras.
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O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo
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assinalada atravs de cooperao. , ento, uma construo pela interao e, por esse
motivo, a mesma informao pode ser processada de maneiras diversas pelos
participantes de um ato comunicativo.
O foco da atividade de interpretao o carter social da cognio e, por isso, o
sujeito essencialmente interativo. Nesse processo, consideram-se tambm os aspectos
culturais trazidos como seu conhecimento enciclopdico. Assim, trata-se de levar em
conta no s os aspectos mentais da linguagem, mas a sua interface com o social, o
cultural e o contextual6. O paradigma cognitivo envolve uma variedade de outros
paradigmas, os quais tm em comum a nfase nos fenmenos mentais como agentes do
comportamento, abrindo espao para as dimenses intersubjetivas, pragmticas e
culturais (MARTINS, 2005).
De acordo com Tomasello (1999), os humanos se distinguem de outros primatas
pela dimenso social da cognio, e articula nela argumentos filognicos, ontognicos e
sociognicos. O autor parte da hiptese de que os seres humanos desenvolveram uma
forma singular de cognio social, na qual h uma construo da identidade em termos
da projeo entre contrapartes. Assim, os indivduos possuem a habilidade de se
projetarem e se reconhecerem e aos seus semelhantes em correspondncia homolgica
em duas configuraes: como agentes intencionais e como agentes mentais. Isso tornou
possvel um processo de evoluo cultural cumulativa, transformando as habilidades
cognitivas em modelos culturais, ou seja, em sistemas de dimenses coletivas. Nesse
sentido, o homem, na sua evoluo, passou a ver o outro tambm como um agente
intencional, gerando entendimento do outro e o incio da simbolizao como forma de
comunicao. Tomasello (1999) afirma ainda que os seres humanos desenvolveram as
atividades cognitivas pela adaptao de habilidades j existentes, tais como as de lidar
com o espao, objetos, quantidades, categorias, relaes sociais e aprendizagem social.
Essas decorrem da capacidade de partilhar intenes e, assim, aes conjuntas,
partilhadas pela linguagem.
Segundo Miranda (2001), a partir da infncia que os seres humanos se
percebem como agentes essencialmente sociais, os quais so movidos por objetivos;
isso ocorre antes mesmo da percepo de si prprio, de que cada indivduo pode ter
crenas que diferem das dos outros. Mas atravs do outro que se aprende e se 6 Para Langacker (1997, p. 240) (...) apesar de seu foco ser mental, a lingstica cognitiva pode, sim, ser descrita como social, cultural e contextual (grifo do autor).
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Aline Aver Vanin
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compartilha linguagem; h uma representao cognitiva marcada pela subjetividade,
unida propriedade dos smbolos lingusticos de serem socialmente partilhados, de
modo a guiarem as inferncias sobre as intenes comunicativas do interlocutor. De
acordo com Fauconnier (1985), a linguagem no porta o sentido, mas o guia, posto que
a forma lingustica uma instruo, uma pista que suscita as suas tarefas semntico-
cognitivo-sociais. A linguagem ainda permite abrir perspectivas sobre o mesmo
fenmeno em diferentes ngulos, dependendo dos objetivos comunicativos e de outros
fatores do contexto.
por causa do propsito de comunicao que a linguagem deixa pistas sobre a
forma como os indivduos categorizam e constroem o mundo, adotando mltiplas
perspectivas, o que permite significar e simbolizar o mundo de diferentes formas. Para
Marcuschi (2005), as coisas no esto no mundo do modo como dizemos aos outros: a
maneira como se diz algo a algum decorrncia de uma atuao intersubjetiva sobre o
mundo, alm da insero sociocognitiva no mundo em que se vive. O mundo
comunicado sempre fruto de um agir intersubjetivo diante da realidade externa e no
de uma identificao de realidades discretas.
Assumindo-se uma posio sociocognitiva para a linguagem, a construo de
significados e de interpretao decorre do uso que os indivduos fazem dela. atravs
dela que os indivduos se projetam e se identificam uns com os outros. E nessa
interao, acredita-se, que se identificam as emoes como tais a partir de
determinado conjunto de suposies construdas ao longo de experincias vivenciadas
pelos indivduos intersubjetivamente.
Sabini & Silver (2005) acreditam que a ligao entre a experincia emocional e
certa palavra de emoo determinada pelo contexto social de comunicao. Para eles,
palavras de emoo no necessariamente se projetam em experincias emocionais
especficas, mas podem revelar uma srie de representaes mentais que denotam
diversas experincias, visto que essas so descries produzidas por um observador, o
qual infere certas caractersticas psicolgicas de uma pessoa em dado contexto. Por isso,
palavras de emoo so, frequentemente, o resultado de uma interpretao subjetiva. Os
autores propem que os vocbulos utilizados transmitem implicitamente o
conhecimento que falante e ouvinte trazem para a interao comunicativa, atravs do
carter intersubjetivo da linguagem.
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O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo
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No modelo proposto por Sabini & Silver (2005), o modo como as experincias
se projetam em termos lexicais controlado pelo contexto e pelo uso que se faz deles.
Por ter uma base cognitiva, pensa-se que esse modelo liga-se arquitetura conceitual
proposta pela Teoria da Relevncia, de Sperber & Wilson (1995), na qual falante e
ouvinte compartilham determinada realidade, em que a maioria das informaes no so
explicitadas, mas inferidas. A partir das percepes acerca do mundo, do input recebido
atravs da interao comunicativa, os interlocutores podem acrescentar ao seu ambiente
cognitivo7 novos conceitos, modific-los completamente, e at mesmo recri-los de
acordo com as experincias e a cultura na qual est inserido. Para essa teoria, o falante
lana um estmulo ostensivo, no qual o dito d pistas para a real mensagem que se quer
transmitir, ao ouvinte, cuja tarefa interpretar o que dito fazendo esforos de
processamentos para obter efeitos cognitivos acrscimo, fortalecimento,
enfraquecimento ou contradio de suposies. a partir de tais efeitos que os
indivduos so capazes de construir um contexto comunicativo, pois haver a unio do
input perceptivo, vindo do falante, com as informaes j presentes no ambiente
cognitivo do ouvinte. A formao desse contexto contribuir para a construo de
hipteses interpretativas sobre a troca comunicativa, bem como levar concepo de
novos conceitos.
A questo da construo de conceitos de emoo, afirmada por Sabini & Silver
(2005), consistente com a noo de inteno comunicativa para a Teoria da
Relevncia, isto , de tornar mutuamente manifesto para falante e para ouvinte certo
conjunto de suposies, posto que os interactantes compartilham suposies manifestas,
verdadeiras ou provavelmente verdadeiras, sobre o mundo em que vivem. Quando um
falante desenvolve um conhecimento adicional que considera ser relevante, o comunica
para a audincia da maneira mais eficiente possvel. Um s vocbulo pode conter todas
as suposies subjacentes e manifestas de uma relao entre os interlocutores, j que
uma nica palavra tem o poder de resumir sucintamente uma condio complexa. Ao
comunic-la, o falante pode levar o seu interlocutor relevncia tima, atingida quando
h um mnimo de esforo de processamento mental para obter-se um efeito cognitivo
positivo, objetivo da comunicao, como previsto na teoria de Sperber & Wilson
(1995). Assim, ao dizer: estou com raiva, o indivduo transmite uma condio que 7 Para Silveira & Feltes (2002), o ambiente cognitivo de um indivduo o conjunto de suposies manifestas em diferentes graus (para cada indivduo).
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Aline Aver Vanin
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abrange uma srie de fatos, compartilhados por ele e por seu interlocutor, que
desencadearam essa emoo. Esse enunciado um estmulo ostensivo para que o
ouvinte compreenda e infira tambm o que tal conceito de emoo significa para o
falante, e que outros tipos de emoes estariam a ele associados.
Portanto, acredita-se que conceitos, em geral, sejam construdos atravs de
experincias, por causa dos aspectos sociais e culturais, e a partir daquilo que cada
indivduo possui em seu ambiente cognitivo. Parte-se do pressuposto de que isso ocorre
porque os indivduos so guiados pela relevncia, o que quer dizer que eles s prestam
ateno ao que relevante8. Nesse sentido, os conceitos so formulados dependendo do
ponto de vista adotado (considerando-se os aspectos envolvidos na comunicao) e do
quanto pertinente o input para algum.
O conjunto de suposies que constituiro o contexto responsvel pela
elaborao de inferncias interpretativas. A inferncia uma construo da cognio em
meio s relaes sociais, construdas com o objetivo de dar significado aos objetos no
mundo. O pensamento , portanto, um processo de raciocnio, do qual faz parte a
construo inferencial daquilo que dito. Nesse sentido, a partir do que algum diz
constroem-se hipteses a respeito do que se quer dizer. Tal constatao parte dos
trabalhos de Grice (1975), para o qual h uma lacuna entre o dito e o que as palavras do
falante significam: ao falar, os indivduos fornecem algum tipo de pista para o real
contedo de sua mensagem.
Esse processamento de informaes envolve um esforo mental gerado pelas
pistas lingusticas fornecidas pelos indivduos e pelo raciocnio lgico que organiza os
argumentos-premissa para gerarem hipteses-concluso. Acredita-se que o pensamento
inferencial um processo tridico, que envolve, ao mesmo tempo, os raciocnios
dedutivo, indutivo e abdutivo. No primeiro, de premissas geradas na troca comunicativa
decorre uma concluso interpretativa; no segundo, h a sustentao por expectativas
probabilsticas, muitas vezes por meio de generalizaes; e, no terceiro, formam-se
hipteses explanatrias para determinado fenmeno a abduo parece ser, na maioria
das vezes, a inferncia desencadeadora das demais, j que a partir dela que so
geradas hipteses para a melhor interpretao possvel.
Sperber & Wilson (1995) acreditam que o raciocnio interpretativo do tipo 8 Para se obter relevncia, h a seguinte condio: quanto maiores forem os efeitos cognitivos obtidos, menores devem ser os esforos de processamento.
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O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo
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dedutivo, no qual de premissas recuperadas da memria enciclopdica e daquelas
advindas de informaes do input se forma o clculo dedutivo, do qual se extraem
possveis hipteses interpretativas, ou concluses. De acordo com Escandell-Vidal
(1996), a inferncia um processo que cria uma suposio a partir de outras suposies,
e por isso de natureza dedutiva. Como apenas similar s regras da lgica padro,
esse mecanismo capaz de derivar infinitas concluses a partir de determinado conjunto
de premissas. Alm disso, como as premissas no so pr-fixadas, essas so construdas
no decorrer do processamento mental. Por isso, o clculo dedutivo gerado para
argumentar porque algum sente medo poderia ser representado desta forma:
(1) Se algo ruim pode acontecer comigo, eu sinto medo.
Acredito que algo ruim possa me acontecer.
Logo, sinto medo.
Nesse caso, sentir medo j faz parte do conjunto de suposies a respeito
desse sentimento e, na perspectiva de algo ruim acontecer, provavelmente por algum
evento presenciado ou imaginado, o indivduo une tal conjunto a um dado input (que
pode ser, por exemplo, o medo de algum roub-lo, de perder algum, ou de que algum
invada a sua casa, entre outros). Assim, se algum que est s em sua casa ouve um
barulho em uma das janelas da casa, poder unir as suposies estocadas em seu
ambiente cognitivo representadas em (1) e uni-las a esse fato:
(2) H um barulho em uma janela.
Se h um barulho na janela, pode haver algum tentando entrar.
Provavelmente h algum tentando entrar
Esse fato ser complementado por (1), em que
(3) Algo ruim pode acontecer se algum entrar na casa.
Se algo ruim pode acontecer, tenho medo [premissa advinda de (1)]
Sinto medo.
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Aline Aver Vanin
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Nesse sentido, novas premissas podem ser geradas a partir das suposies j
formuladas, dependendo da sua necessidade para a completude do clculo mental.
Contudo, ao se tratar de construo de conceitos de emoes, adota-se a
perspectiva do raciocnio indutivo (ou raciocnio cotidiano), no qual uma hiptese
gerada e s pode ser justificada atravs de experimentao ou de investigao. A
induo pode ser definida como qualquer processo de pensamento que contribui com
uma concluso que incrementa a informao semntica contida em suas observaes ou
premissas iniciais (JOHNSON-LAIRD, 1993). Trata-se de um processo de
generalizao da informao semntica e, por isso, pode-se referir esse processo
tambm como inferncia pragmtica.
Esse um tipo de raciocnio que se liga diretamente maneira como a cognio
humana trabalha: por associao. Esse processo mental ocorre a partir de contedos
informais de carter semntico que supostamente esto na mente. Nesse sentido, quando
se l a palavra felicidade, h possibilidades mltiplas de associao a ela, mas no
variadas. Isso quer dizer que esse conceito estar restringido a um repertrio semntico
que envolve uma categoria especial: emoo positiva. Atravs dele, pode-se pensar em
alegria, surpresa, excitao, gratido, entre outras, podendo-se at associar a momentos
em que tal sentimento ocorreu na vida do indivduo. Qualquer pessoa, inserida numa
cultura como a brasileira, por exemplo, associa o contedo semntico de felicidade a
algo positivo, ou seja, dentro dessa categoria de emoo positiva. Constri-se uma rede
semntica que se desdobra na mente de maneira particular atravs da sua experincia no
mundo. Assim, a essa emoo poderiam estar associadas outras como: surpresa, alegria,
euforia, satisfao, esperana, excitao, entre outras.
Nota-se que os processos perceptivos funcionam praticamente da mesma forma,
provavelmente por estarem associados a processos mnemnicos. Nesse sentido, J. A.
Russell criou um grfico associando 28 tipos de emoes, o qual preciso salientar
baseado em palavras relacionadas s existentes em sua prpria lngua (os quais
coincidentemente possuem correspondentes diretos em lngua portuguesa), visto que os
conceitos de emoo, como j mencionado, so construdos social e culturalmente:
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O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo
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Figura 1 Grfico sobre algumas emoes e os tipos de associaes feitas (Revista Superinteressante, maro/2008, p. 34).
Por operarem de maneira associativa, o pensamento e os raciocnios subjacentes
esto intrinsecamente relacionados ao contedo provido pela memria. Dessa maneira,
quando se discute sobre emoes relacionadas ao dia de finados e morte, por exemplo,
o indivduo faz uma espcie de escaneamento a respeito de tudo aquilo que conhece
sobre o assunto e, de acordo com esse levantamento, tem condies de formar uma rede
semntica a respeito do assunto, fazendo emergir, tambm, todas as emoes que
poderiam estar associadas a tal assunto, de acordo com o momento em que vive. Isso
ocorre porque, de acordo com a Teoria da Relevncia, os indivduos constroem
hipteses interpretativas sobre o ato comunicativo em que esto envolvidos atravs das
informaes existentes em seu ambiente cognitivo sobre o assunto, mais o input
perceptivo que recebe. A essa noo, chamada de construo do contexto, se pode
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Aline Aver Vanin
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aplicar a formao de dado conceito de emoo, o qual, sendo ele predefinido de
determinada forma para cada indivduo, se molda situao de comunicao, sendo a
ele associados outros tipos de emoo. Dessa forma, conforme a experincia ou o
conhecimento externo relacionada ao tema da interao, o indivduo ser capaz de
construir uma teia de relaes semnticas sobre o assunto. Por exemplo, em grande
parte dos pases de cultura ocidental as emoes relacionadas morte e ao dia de
finados so do tipo negativo, o que leva a traar a provvel teia de sentido:
Figura 2: rede semntica de emoes relacionadas morte
Contudo, em algumas culturas, como a mexicana, o dia de finados visto de
forma um tanto diferente: a morte vista como uma divindade, a Santa Morte, para a
qual promovida uma festa a cada dois de novembro. Segundo Arajo (2004), a morte
encarada de maneira peculiar pela cultura mexicana. Nela, h uma espcie de desafio e
deboche em relao prpria morte, fato que revela elementos remanescentes da cultura
popular: oposio ao carter srio e religioso dado aos acontecimentos da vida em todos
os aspectos, dentre os quais, a prpria morte (ARAJO, 2004, p. 11). A autora ainda
afirma que, nas festividades do Da de los Muertos, os vivos comem caveiras de
acar (com semblante engraado e feliz) com seus nomes gravados nelas, riem da
morte e recitam versos de humor em sua homenagem.
No caso da cultura mexicana, a rede conceitual acerca de emoes relacionadas
morte e ao dia designado para celebr-la pode ser como a demonstrada na figura 2,
pois para esse povo a morte tambm representa uma perda. Mas, ao mesmo tempo, por
sua cultura ter resqucios de influncia de civilizaes antigas, para as quais a morte
MORTE
depresso
melancolia
tristeza abatimento
pesar
saudade
tenso
[outras possibilidades]
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O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo
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tinha outro valor, estaria ligada a ela uma nova e provvel rede de conceitos-chave de
alegria, o que sustenta a hiptese de que os conceitos so construdos tambm por
associao s experincias culturais vivenciadas.
Pode-se pensar que os conceitos relacionados a emoes so estabelecidos desde
a infncia, atravs de inferncias indutivas, as quais passam a ser cruciais para
quaisquer processos de construo de conceitos. No caso de emoes, contudo, a
construo de uma rede semntica um tanto instvel, visto ser dependente de fatores
subjetivos, intersubjetivos, sociais, culturais, e tambm por um conceito de emoo
muitas vezes confundir-se com outros. As emoes, relacionadas s experincias vividas
pelos indivduos em determinada cultura, so associadas a conceitos j formulados e
estocados no ambiente cognitivo dos indivduos, juntamente com as vivncias
cotidianas. Delas, os indivduos associam as suas percepes em dado momento para
ento reconhecer, a partir de outros, que tal conjunto de sentimentos denominado
como certa emoo. Esse processo s possvel devido caracterstica geral de
combinao, ou associao, prpria da induo.
De acordo com Oatley & Johnson-Laird (1987), para cada tipo particular de
emoo h uma famlia de experincias emocionais relacionadas. Em outros termos,
reafirma-se que a linguagem de emoes emerge a partir de interaes complexas da
atividade cognitiva construda contextualmente, ou seja, durante os atos comunicativos
e, no caso dos conceitos de emoo, ao longo das vivncias dos indivduos. Esses
ocorrem por estarem ligados pelo contexto social e pelas intenes comunicativas que
so inferidas numa situao interativa. Lakoff e Johnson (1980) enfatizam tambm o
papel do contexto cultural, pois quando tratam as similaridades como experienciadas,
referem-se no s s experincias fsicas, mas a um contexto maior, sociocultural,
relativo a uma comunidade especfica.
Tal processo de formao de uma rede semntica produzida por induo decorre
de trs estgios bsicos9:
1. Entender a observao ou a informao dada;
2. Formar uma hiptese que pretende descrever a informao mencionada em
relao ao conhecimento geral. Nesse caso, a concluso resultante vai alm
da informao inicial pela incorporao do conhecimento geral no resultado;
9 Conforme http://penta.ufrgs.br/edu/telelab/3/inductiv.htm. Acesso em: 23/11/2008.
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Aline Aver Vanin
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3. Avaliar a validade da concluso que foi alcanada.
Esse tipo de inferncia produz concluses que aumentam as informaes
semnticas relacionadas quelas encontradas nas premissas iniciais do processo
inferencial. No entanto, no se pode ter certeza de que a concluso um resultado
lgico das premissas, mas possvel atribuir uma probabilidade a cada concluso. A
induo um processo de raciocnio em que se acredita nas premissas de um argumento
para dar suporte concluso, mas elas no a acarretam. Essa forma de raciocnio faz
generalizaes baseadas em casos individuais. Nesse sentido, parte-se de observaes
para formular uma concluso geral. Por isso, tomando-se a descrio do sentimento de
medo, de Wierzbicka (1999), pode-se dizer que este seria o provvel raciocnio
indutivo feito por algum que sente tal emoo, visto que passa de um fato
experienciado anteriormente para uma concluso generalizada:
Eu senti medo =
Eu senti algo porque eu pensei algo que
s vezes uma pessoa pensa
algo ruim pode me acontecer agora
eu no quero que isso acontea
por causa disso eu quero fazer algo
eu no sei o que eu posso fazer.
Por essa pessoa pensar assim, essa pessoa sente algo ruim.
Eu senti (algo) como isso porque pensei algo como isso.
(WIERZBICKA, 1999, p. 14)
Ao se estruturar uma rede semntica tal como a representada acima sobre os
provveis sentimentos relacionados morte, tais conceitos no parecem ter uma
organizao prpria, estando todos em um mesmo nvel de organizao e, portanto, de
relevncia. Contudo, conforme Lakoff (1987), ao realizar qualquer ato, mesmo no
sendo ele to pertinente, os seres humanos tendem a categoriz-lo10. E, dentro dessa
categorizao, preciso seguir alguma ordem para demonstrar a variao de diferentes
tpicos de forma ordenada e linear, os quais compartilhariam um mesmo tpico central. 10 Certamente a noo de categorizao muito mais profunda do que o exposto neste texto. No entanto, no se tratar deste tpico por ele requerer uma discusso muito mais ampla do que o espao permite.
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O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo
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Para tanto, utilizada a noo de implicaturas escalares, uma contribuio de Levinson
e Horn pragmtica.
Segundo Rossa (2002), implicaturas so proposies que fazem parte de um
enunciado de uma sentena em um determinado contexto, ainda que tal proposio no
seja parte daquilo que realmente dito (p. 320). Assim, a noo de implicatura um
recurso para um tratamento complementar da semntica, sendo chamada de inferncia
pragmtica. Com base nessa constatao, tambm se percebe o carter associativo da
construo de tais implicaturas. Como argumenta Rossa (2002), certas expresses em
linguagem natural podem possuir um carter estvel, mas h tambm uma parte no-
estvel, uma camada que se sobrepe, um conjunto de implicaturas (ROSSA, 2002, p.
328), as quais so chamadas implicaturas escalares. dentro desse conjunto que o
estudo de palavras relacionadas emoo pode ser inserido, visto o seu carter instvel.
atravs de uma organizao em escala, hierarquizada, que possvel os nveis
de especificidade dela, de acordo com o tpico envolvido. Para Levinson (1983), uma
escala lingustica consiste em um conjunto de expresses contrastivas da mesma
categoria gramatical, as quais podem ser organizadas em uma ordem linear por grau de
informatividade ou por fora semntica. Assim, dada uma escala de valores, elas
produzem inferncias que esto relacionadas a um valor nessa escala. Esse autor sugere
que essa escala tem uma forma geral:
Dada qualquer escala da forma , se um falante afirma A (e2), ento ele implica ~ A (e1), se ele implica A (e3), ento ele implica ~A (e2) e ~A (e1), e de uma forma geral se ele diz A (en), ento ele implica (A(en-1)), ~(A(en-2)) e assim por diante, at ~A ((e1)). (LEVINSON, 1983, p. 133)
Para que a implicatura escalar realmente seja inferida, a expresso que leva a ela
deve ser acarretada por qualquer enunciado complexo do qual ela faa parte. Assim,
essa frmula mostra que, se uma parte de uma escala {4>3>2>1} escolhida (3, por
exemplo), todos os antecedentes dessa escala sero implicados negativamente:
(3) Pedro tem 3 filhos.
Pode-se implicar, desse exemplo, que Pedro no tem 4 filhos, mas 1, 2 e 3.
Ainda ilustrando essa regra, observe-se o seguinte enunciado:
(4) Alguns alunos estiveram na aula.
A escala construda, nesse caso para alguns, seria mais ou menos essa: {todos
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Aline Aver Vanin
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> a maioria > muitos > alguns > poucos}. Assim, pode-se dizer que se implica que a
quantidade de alunos de no-todos, no-a maioria e no-muitos, e se pode acarretar
que poucos alunos estiveram na aula.
Nesse sentido, pensa-se que possvel utilizar a mesma regra para a noo de
palavras de emoo, visto que se pode categoriz-las de acordo com o seu tipo:
(5) Joo {ama > adora > gosta > quer bem > simpatiza} com Maria.
Aqui, pode-se dizer que, se escolher dizer que Joo gosta de Maria, ele no a
ama nem a adora, mas os outros elementos da escala (quer bem e simpatiza) so
verdadeiros para o que Joo sente por Maria. No entanto, no possvel incluir, na
mesma escala, uma noo supostamente contrria a amar; odiar parece ter uma
trajetria paralela de amar, e, segundo Galli (2008), dio e amor se cruzam sem se
tocar (p. 24). A escala para tal sentimento , provavelmente, a seguinte: {odiar >
detestar > desprezar > no-gostar > antipatizar}, o que quer dizer que se X odeia Y, ele
tambm detesta, despreza, no gosta e antipatiza com Y, mas dizer que se X no gosta
de Y no implica dizer que o odeia, por exemplo, mas acarretaria todos os valores
direita de no gosta (nesse caso, inseriu-se somente antipatizar, porque neste texto s se
construiu a escala inferencialmente dessa forma no momento da escrita, a partir das
prprias experincias da autora; uma outra pessoa provavelmente incluiria mais algum
outro valor nessa escala). Como exemplo das afirmaes acima, a figura 1 parece levar
em conta uma categorizao das emoes estudadas, visto estarem inseridas em
diferentes pontos do grfico, bem como julga, mesmo que intuitivamente, o valor
daquelas emoes segundo algum grau, j que, quanto mais afastadas do centro do
grfico, mais fortes elas so.
Essas regras semnticas so formuladas para dar conta das relaes lgicas dos
enunciados e da questo da referncia; ao mesmo tempo, considera-se a questo
pragmtica do contexto, visto ser a partir dele que se desvenda o que est por trs das
palavras do falante. Ao tentar explicar o que tal palavra de emoo significa, dentro de
um contexto conversacional, a noo de implicaturas escalares encaixa-se bem nas
teorias semntica e pragmtica, posto que a ltima auxilia a dar mais exatido s
palavras que ficariam ambguas numa anlise semntica.
Retomando a questo das redes semnticas relacionadas a palavras de emoo,
acredita-se ser necessrio organiz-las em concordncia com uma escala de valores, os
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O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo
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quais so intuitivamente construdos pelo ouvinte de acordo com a construo
contextual sobre o tpico. Alm disso, necessrio refletir sobre as suas experincias
vividas, a cultura em que se insere, bem como a organizao concebida pelo indivduo
para um conjunto de sentimentos relacionados a uma mesma emoo. Acredita-se que a
escala ser construda de acordo com a relevncia dada aos conceitos, os quais, numa
mesma cultura, parecem ser transmitidos intersubjetivamente, porquanto os indivduos
costumam concordar a respeito do tipo de emoo estarem sentindo em determinado
momento, mesmo que as reaes no sejam as mesmas.
Por fim, ao se elaborar uma rede semntica para o sentimento de medo, por
exemplo, a relevncia levaria construo de implicaturas escalares como no exemplo
que se segue, com poucas variaes de posio entre os sentimentos: {MEDO: terror >
pnico > fobia > pavor > medo > angstia > susto > inquietao > apreenso >
preocupao}. Um indivduo, vendo a reao de outro diante de uma situao que
provocaria esse sentimento, possivelmente construiria um conjunto de inferncias o qual
levaria em conta uma escala semelhante, bastante intuitiva por ser uma construo
ontognica, mesmo que alguns dos conceitos colocados nela possam variar para mais ou
para menos, conforme indivduo.
Por fim, este texto teve como objetivo trazer a hiptese de que os conceitos
relacionados a emoes referem-se a uma cadeia inferencial formada a partir de noes
de relevncia; a partir das experincias sociais e culturais, inseridas na memria
enciclopdica, que, em dada situao, os indivduos formaro um contexto
(comunicativo) para ento definir o tipo de sentimento possvel naquele momento, visto
ele ser formado por um conjunto de outros que emergem conjuntamente. Como tais
vivncias acabam sendo intersubjetivas para cada cultura, os indivduos acabam
partilhando as noes de que medo, por exemplo, pode reunir sentimentos de
apreenso, angstia ou inquietao, por exemplo, mas no se pode referir a ele como
pavor, j que esse, intuitivamente, classificado inferencialmente como estando em um
grau maior na escala das implicaturas.
Importante ressaltar que o processo inferencial ocorre com os trs tipos de
raciocnios mencionados, a saber, dedutivo, indutivo e abdutivo, mas se privilegiou o
indutivo por se perceber nele uma abertura para a insero de novas suposies, algo
que no possvel na deduo. Alm disso, a noo de induo heterognea, a qual
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Aline Aver Vanin
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no compreende uma, mas duas espcies de movimento: primeiro, a experincia
sensorial, pela mente abduo e segundo, atravs de uma hiptese que se confirma
ou no com referncia a essa experincia induo. A abduo processo-base para a
formulao de uma provvel explicao, sem nenhuma segurana de que certa
inferncia esteja correta. Portanto, o processamento inferencial de novos conceitos,
como o de emoes, totalmente dependente desses raciocnios, os quais agem em
concomitncia na interpretao deles. Lana-se, aqui, apenas uma primeira hiptese
para o estudo da construo de conceitos relacionados a emoes em uma lngua, sendo
necessrio um aprofundamento sobre questes de semntica, pragmtica e,
principalmente, sobre todo o processo inferencial envolvido.
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Aline Aver Vanin
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COMO FUNCIONA A INFERNCIA MORFOSSEMNTICA?
Adriana Quinelo da Silva11
INTRODUO
Na morfologia, um morfema a menor unidade contendo significado. Um
morfema pode se apresentar de vrias formas: raiz/radical/base, prefixo, sufixo, infixo.
Cada uma delas indivisvel, ou seja, no se constitui de uma forma decomponvel com
relao ao significado que denotam. O termo morfossemntica est relacionado
justamente a uma composio mrfica que contem significado, o qual pode ser inferido
ou depreendido. Inferncia, portanto, a busca pela compreenso do significado integral
de frases, trechos ou palavras que o receptor faz utilizando o seu conhecimento de
mundo de forma a alcanar a interpretao a que lhe foi pretendida, segundo Rossa
(2002). Grice (1967/75) usou o termo implicatura para descrever a inferncia
pragmtica conectando o significado da palavra (aqui entendida como morfossemntica)
ao significado da sentena (inferncia de dicto/dito sinttica) proferida pelo falante.
Tenta-se neste artigo identificar e discutir as relaes das interpretaes (via
inferncias) morfossemnticas e sintticas (de dicto) com o objetivo de apontar e
demonstrar a no equivalncia necessria de uma com a outra. Para este fim, as
implicaturas escalares de Levinson (1983) no contexto terico Griceano daro o suporte
terico da anlise.
1 SOBRE A TEORIA DAS IMPLICATURAS
Grice (1975) em Logic and Conversation explica os significados implcitos
11 Doutoranda em Lingustica Aplicada PUCRS. E-mail: [email protected]
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Adriana Quinelo da Silva
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como sendo aqueles onde o teor da fala no expresso literalmente nas palavras, frases
ou sentenas do falante. um significado que o ouvinte pode captar via inferncia
pragmtica, dado que depende do contexto em que as palavras, frases ou sentenas so
enunciadas.
Entende-se neste contexto terico, o dito como o significado literal e expresso de
modo explcito pela cadeia de palavras pronunciadas pelo falante (a sentena) e,
portanto, o no-dito (implicado) o significado que se pode depreender dessa fala. Assim,
as implicaturas Griceanas so aquilo que no-dito em um grau imediatamente abaixo
do dito depreendidas pelos contextos dos dilogos. O dito P conversacional no
depende da compreenso do ouvinte (uma vez que explcito) e pode ser calculado a
partir dos enunciados verdadeiramente explcitos ao longo da conversa. Mas o contexto
do dilogo que vai definir o entendimento pelo ouvinte de P + Q, conhecido como a
suposio contextualmente inferida, ou inferncia pragmtica no-convencional.
O dito, ou a sentena, est sujeito s condies de verdade semnticas, podendo
ser verdadeiro ou falso. J a inferncia pragmtica s pode ser julgada vlida ou
invlida, ficando tudo o que implcito sujeito cancelabilidade, ou seja, podem ser
canceladas, negadas e, assim, anuladas. Na teoria de Grice, as implicaturas explicam a
compreenso intuitiva e automtica do ouvinte (P + Q) com relao inteno do
falante (P). Por sua vez, a inteno do falante, o dito, o enunciado explicitamente literal,
no interpretado. A esse respeito, Gazdar (1979) props que a pragmtica o
significado menos as condies de verdade e que o implcito em linguagem natural
flexvel e varivel exatamente porque se molda em funo de cada contexto.
Grice entende que a inteno das pessoas a de se comunicarem: de se
entenderem e de se fazerem entender. Para isso acontecer com sucesso, elas cooperam
entre si, ou seja, seguem regras naturais de linguagem calcadas na competncia
comunicativa dos interlocutores. Tais regras ou mximas conversacionais (Quantidade,
Qualidade, Relao e Modo) so observadas pelos falantes e ouvintes a fim de no
violarem o Princpio da Cooperao, ou seja, a fim de no gerarem uma implicatura.
No entanto, se ao produzir um enunciado o emissor quebra qualquer que seja a mxima
conversacional ele quer que seus implcitos sejam capturados pela intuio do ouvinte.
Assim, cabe ao ouvinte usar da sua competncia para calcular, via intuio, a
implicatura atrelada ao dito.
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Como funciona a inferncia morfosemntica?
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Segundo Costa (1984: 120), no modelo de Grice Ampliado, a implicatura surge
para harmonizar relaes entre funes diversas do jogo comunicativo e conclui que a
implicatura a relevncia pragmtica do dito.
2 SOBRE A TEORIA SEMNTICA
Sabe-se que a teoria semntica no consegue dar conta do fenmeno lingustico
implicatura visto que no consegue explicar como possvel que algo seja comunicado
sem que tenha sido dito. Segundo Ibaos (1994), a semntica das condies de verdade
no autnoma por no poder se restringir semntica lingustica. Tem-se que a
semntica e a pragmtica so distintas, porm, complementares e inter-relacionadas no
tratamento objetivo da subjetividade do sentido pragmtico conversacional.
Para reconstituir a capacidade sistemtica do falante de interpretar um enunciado
isoladamente, a qual permite a ele compreender sentenas que ele nunca ouviu antes,
alm de produzir sentenas novas, as quais demais falantes compreendem do mesmo
modo que ele; uma teoria semntica vai empregar alguns mecanismos. Um dos
componentes de uma teoria semntica de uma lngua natural o dicionrio daquela
lngua. O fundamento lgico para a presena deste componente, o dicionrio, na teoria
semntica o fato de haver duas limitaes bsicas de uma descrio gramatical,
segundo Lobato (1977). A primeira que uma gramtica no capaz de dar conta do
fato de que vrias sentenas so interpretadas como diferentes em significado apenas
quanto aos morfemas que contm, tipo: O macaco me mordeu e O cachorro me
mordeu. Ou as sentenas contm morfemas diferentes, mas so interpretadas como
idnticas em significado, tipo: The oculist examined me e The eye doctor examined
me. A segunda que a gramtica no d conta do fato de que so sinnimas muitas
sentenas de estrutura sintticas totalmente diferentes, como: Two kids are in the
room e There are at least two people in the room and each is a kid. Outras sentenas
so tambm diferentes sintaticamente e no so sinnimas. Assim, a interpretao das
sentenas determinada, parcialmente, pelos significados dos morfemas e pelas
relaes semnticas existentes entre eles. O dicionrio fornece uma representao da
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Adriana Quinelo da Silva
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caracterizao semntica dos morfemas, a qual capaz de dar conta dos fatos relativos
sentena e suas inter-relaes, fatores no contemplados pela gramtica.
Um falante fluente da lngua capaz de determinar o nmero e o contedo de
leituras de uma sentena, de dizer se a sentena ou no semanticamente anmala e de
decidir que sentenas de uma lista so parfrases uma da outra. O que os falantes tm a
sua disposio so regras para aplicao das informaes do dicionrio, as quais levam
em conta as relaes semnticas entre os morfemas e a interao do sentido e estrutura
sinttica na determinao da interpretao semntica correta de qualquer sentena
produzida dentre as infinitamente possveis na gramtica.
3 SOBRE A MORFOLOGIA
Os falantes de uma lngua tambm tm a sua disposio um nmero grande de
palavras, prximo a sessenta mil. As palavras so uma parte importante do
conhecimento lingustico e constituem o componente da nossa gramtica mental. Sem
elas, no conseguimos fazer sentido atravs da linguagem. Tal importncia nos leva a
considerar as partes que compem a palavra nesta anlise, um feito at ento muito
pouco explorado, o da inferncia morfolgica. Quando sabemos uma palavra, sabemos
os sons que a compem e o significado relativo quele som. Um morfema a menor
unidade de som com significado (a sound-meaning unit), portanto conhecida como a
menor unidade de significado lingstico, segundo Fromkin, Rodman and Hyams
(2003). Um s morfema (do tipo base, raiz ou radical) pode ser equivalente a uma
palavra ou uma palavra pode ser constituda de dois ou mais morfemas
(base/raiz/radical + sufixos, e/ou prefixos e/ou infixos). Para decompor uma palavra,
deve-se saber onde as partes (os morfemas) podem ser separadas umas das outras,
identificando-se a base/raiz/radical e os afixos (pr-, su-, in- fixos). Os afixos tm
significado especfico, mas ocorrem sempre presos a outros morfemas do tipo
base/raiz/radical, chamados livres. Observe os pares nas colunas A e B abaixo: Os
prefixos IN- e DES- significam NO, mas no ocorrem por si s. (Fromkin, Rodman
and Hyams, 2003):
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Como funciona a inferncia morfosemntica?
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A B
Desejvel Indesejvel
Discreto Indiscreto
Feliz Infeliz
Sucesso Insucesso
Gosto Desgosto
Gostoso Desgostoso
Casado Descasado
Todas as palavras na coluna B consistem de pelo menos duas unidades de
significado distintas. As palavras, portanto, tm uma estrutura interna, formada por
morfemas (livres e/ou presos), regida por regras de formao de palavras. O estudo da
estrutura interna das palavras e das regras pelas quais as palavras so formadas
chamado de Morfologia. Saber uma lngua tambm compreende saber a sua morfologia.
Como a maioria do conhecimento lingustico, este tambm inconsciente. Mas os
falantes certamente usam desta competncia para formar palavras. Assim, o
conhecimento dessas unidades discretas (decomponveis), os morfemas, e as regras que
os combinam para formar palavras do conta de explicar a criatividade da linguagem
humana, ou seja, a habilidade de produzir (criar) e entender uma gama infinita de
palavras sem nunca antes t-las ouvido. Sabendo decompor uma palavra e sabendo o
significado dessas partes/morfemas, sabemos o significado da palavra como um todo.
Ou no?? Ser que somos passveis de nos enganar? Seria correto, por exemplo, inferir
(morfossemanticamente) que o significado de Infeliz o oposto de feliz, conforme a
relao abaixo?
In-feliz = no feliz = Ele no feliz. Ou, No verdade que ele feliz. Nvel Nvel frsico Nvel sentencial Nvel sentencial
mrfico/palavra (sintagma) (de dicto) (de r)
Descasado = no casado = solteiro? Ou,
Descasado = no casado = separado?
Desgastado = no gasto? Ou, gasto?
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Adriana Quinelo da Silva
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Segundo Levinson (1983), os significados das palavras de uma forma geral so
vagos e mudam com frequncia, o que gera problemas para a interpretao semntica. O
que dizer de palavras antnimas como good e bad, as quais possuem o mesmo
significado em um dado contexto? Observe o exemplo de Carlos Rossa (2002) no
contexto em que uma pessoa que dirige perde o controle do carro rodopiando na pista e
quase causa um grave acidente:
It was a good scare. / It was a bad scare.
Good = Bad
Apesar de serem totalmente distintas, good e bad no so simples oposies de
ideias como em: It was a good movie (IMPLICA) o falante gostou do filme/It was a
bad movie o falante no gostou do filme. Neste caso de verdadeiros opostos, posso
estabelecer esta equivalncia.
Bad = not good = It was not (a) good (movie).
Good = not bad = It was not (a) bad (movie).
Do que estaria dependendo esta equivalncia funcionar ou no? Como saber
quando so sinnimos, quando so antnimos ou quando no so nem um nem outro? A
resposta teria de explicar como inferimos os significados corretamente dentre os mais
variados sentidos das palavras. As implicaturas oferecem um tratamento para a parte
no-estvel da linguagem natural, aquela camada que se sobrepe, um conjunto de
implicaturas. Dentro deste conjunto de implicaturas esto as Escalares.
4 SOBRE AS IMPLICATURAS ESCALARES DE LEVINSON
As implicaturas escalares so aquelas extradas de um conjunto de expresses
Lingusticas contrastantes da mesma categoria gramatical. Este conjunto normalmente
se apresenta organizado linearmente conforme a informao ou fora semntica. Essas
implicaturas esto relacionadas com a primeira submxima de Grice (1967), a da
quantidade. Dada uma escala de valores, elas produzem inferncias relacionadas a um
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Como funciona a inferncia morfosemntica?
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valor dessa escala.
A regra de Levinson (1983:133) para as implicaturas escalares:
Implicaturas escalares: dada qualquer escala da forma , se um falante diz A(e2), ento ele implica ~ A(e1), se ele diz A (e3), ento ele implica ~A (e2) e ~ A (e1), e de uma forma geral, se ele diz A (en), ento ele implica ~ (A(en-1)), ~ (A(en-2)), assim por diante at chegar em (A(e1)).
Segundo a frmula acima de Levinson, quando uma parte da escala (a>b>c>d>e)
escolhida, por exemplo c, todos os antecedentes so negativamente implicados, tipo:
no b, no a ; e os abaixo de c so acarretados, tipo: se c, ento d e e.
Observar exemplos na escala abaixo:
Gordasso> gordo> gordo> gordinho = (obeso) > (muito gordo) > gordo> (pouco gordo)
Se dissermos que algum est gordo, ento, de acordo com esta escala, acarreta
que este algum est gordinho, portanto implica que no gordo e no o gordasso.
Levinson (1983) observa que para que as implicaturas escalares sejam
efetivamente inferidas, a expresso que as dispara deve ser acarretada por qualquer
sentena complexa da qual ela faa parte, tipo um enunciado, como:
Os nossos gatos esto magros.
Escala: gordinho> saudvel> magro> subnutrido
Dada a relao escalar acima, ao optar pela palavra magro, o falante
(presumidamente cooperando com o seu interlocutor) quer que entendamos que os gatos
no esto saudveis. Atravs das mximas de quantidade e qualidade, isto indica que o
sujeito que proferiu a sentena no tem justificativa para usar nenhuma das palavras
acima (mais fortes) da escala, acreditando que essas so falsas ou no adequadas para
descrever o real estado dos gatos. Assim, se magro, implica-se no saudvel, no
gordinho. E, por acarretamento, se magro, ento subnutrido seria adequado. Contudo, a
fora ilocucionria de subnutrido pode conotar algo extremamente mais
intenso/dramtico pragmaticamente. Um falante da lngua portuguesa no iria inferir
necessariamente que magro acarreta subnutrido, indo de encontro com a lei do autor. O
acarretamento cancelvel neste caso. Ainda assim, a palavra magro pode ter sido
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Adriana Quinelo da Silva
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usada para no se comprometer com subnutrido em uma escala mais fraca, no
cancelando o acarretamento.
Como possvel notar, pragmaticamente interpretamos de uma forma distinta. A
inteno comunicativa sempre maior, ou seja, a de no se comprometer com as
palavras de escalas mais fortes. A semntica daria conta da interpretao do dito
explicitamente, dando conta das relaes de significado lgico, apenas.
Para abordarmos o problema exposto na seo 3, sobre a morfologia, na
tentativa de explicar como as inferncias morfolgicas (morfossemnticas) estariam
sendo geradas e interpretadas, consideraremos o mbito terico apresentado acima.
Dissemos anteriormente que ao saber decompor uma palavra, segundo os
morfemas contidos nela, pode-se depreender o significado (a semntica) dela, dado que
a sua formao dependeu do significado dos morfemas e das regras de formao de
palavras. Agora, dada a definio de implicatura escalar, observemos se possvel
implicar (inferir) o significado intencional de um vocbulo.
Segundo a teoria de Levinson, temos que construir uma escala para a relao da
fora semntica entre as palavras da mesma classe gramatical. Assim, teramos a
seguinte escala para a relao Feliz/Infeliz:
Totalmente feliz>muito feliz>Feliz>pouco feliz>nada / no feliz = infeliz
100% ______________________________________________ 0%
No poderamos