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  • Inferncias Lingusticas nas Interfaces

  • Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    Chanceler:

    Dom Dadeus Grings

    Reitor: Joaquim Clotet

    Vice-Reitor:

    Evilzio Teixeira

    Conselho Editorial: Antnio Carlos Hohlfeldt

    Elaine Turk Faria Gilberto Keller de Andrade

    Helenita Rosa Franco Jaderson Costa da Costa

    Jane Rita Caetano da Silveira Jernimo Carlos Santos Braga

    Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy (Presidente)

    Jos Antnio Poli de Figueiredo Jussara Maria Rosa Mendes

    Lauro Kopper Filho Maria Eunice Moreira

    Maria Lcia Tiellet Nunes Marlia Costa Morosini

    Ney Laert Vilar Calazans Ren Ernaini Gertz

    Ricardo Timm de Souza Ruth Maria Chitt Gauer

    EDIPUCRS: Jernimo Carlos Santos Braga Diretor Jorge Campos da Costa Editor-chefe

  • Jorge Campos Organizador

    Inferncias Lingusticas nas Interfaces

    PORTO ALEGRE 2009

  • EDIPUCRS, 2009

    Capa: Vincius de Almeida Xavier

    Preparao de originais: Grasielly Hanke Angeli

    Diagramao: Gabriela Viale Pereira

    Colaborador: Aline Aver Vanin

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    I43 Inferncias lingusticas nas interfaces [recurso eletrnico] / Jorge Campos (Org.). Porto Alegre : EDIPUCRS, 2009. CD-ROM

    ISBN: 978-85-7430-846-3

    1. Lingustica. 2. Semntica. 3. Pragmtica. 4. Inferncia.

    5. Aquisio da Segunda Lngua. I. Costa, Jorge Campos da. CDD 410

    Ficha Catalogrfica elaborada pelo

    Setor de Tratamento da Informao da BC-PUCRS

    Av. Ipiranga, 6681 - Prdio 33 Caixa Postal 1429

    90619-900 Porto Alegre, RS - BRASIL Fone/Fax: (51) 3320-3711 E-mail: [email protected]

    http://www.pucrs.br/edipucrs

    mailto:[email protected]://www.pucrs.br/edipucrs
  • SUMRIO

    APRESENTAO: INFERNCIAS LINGUSTICAS NAS INTERFACES ................ 7

    Jorge Campos

    PREDIO LEITORA E INFERNCIA ...................................................................... 10

    Vera Wannmacher Pereira

    O PAPEL DAS INFERNCIAS NA CONSTRUO DE CONCEITOS DE EMOO

    ........................................................................................................................................ 23

    Aline Aver Vanin

    COMO FUNCIONA A INFERNCIA MORFOSSEMNTICA? ................................ 40

    Adriana Quinelo da Silva

    AQUISIO DE IMPLICATURAS ESCALARES...................................................... 52

    Gracielle Tamiosso Nazari

    INFERNCIAS SEMNTICO-PRAGMTICAS E SEGUNDA LNGUA ................ 67

    Cristiane Ruzicki Corsetti

    INFERNCIAS, ENVELHECIMENTO E DOENA DE ALZHEIMER .................... 82

    Alcivia Palombini

    DAISYSPOT: A INFERNCIA NA INTERFACE IMAGEM E LINGUAGEM........ 105

    Marion Costa Cruz

    INFERNCIAS NA INTERFACE SEMNTICO-PRAGMTICA: UM ESTUDO DA

    LINGUAGEM DE HOMENS E MULHERES PELA TEORIA DAS IMPLICATURAS

    GRICEANAS ................................................................................................................119

    Carla de Aquino

  • A INTERPRETAO DE METFORAS PELA TEORIA DA RELEVNCIA E

    EFEITO DE SENTIDO ................................................................................................ 136

    Karina Saraiva Schrder

    TEORIA DA RELEVNCIA E DISCURSO FUTEBOLSTICO............................... 148

    Jsura Lopes Chaves

    INFERNCIAS E MANCHETES DE JORNAL: A ELEIO DE OBAMA NOS

    ESTADOS UNIDOS .................................................................................................... 157

    Susan Catherine Brown

    INFERNCIAS E REALITY SHOW: UMA ANLISE LGICO-LINGUSTICA..... 172

    Ana Carolina Motta Davi

    EFEITOS CONTEXTUAIS E AMBIENTE COGNITIVO: ASPECTOS INTER-

    RELACIONADOS E DETERMINANTES DA RELEVNCIA PARA O LEITOR .. 182

    Maria de Lourdes Spohr

    INFERNCIA E IMAGEM: CHARGE E CARTOON ................................................. 204

    Ronei Guaresi

    A INFORMAO POR TRS DA CENA: INTERFACE CINEMA E

    INFERNCIAS ............................................................................................................ 220

    Edivania da Costa Ramos

    EVERYBODY LIES ....................................................................................................... 230

    Ana Mrcia Martins da Silva

    TEXTOS ADICIONAIS............................................................................................... 250

  • APRESENTAO

    INFERNCIAS LINGUSTICAS NAS INTERFACES

    Jorge Campos1

    A linguagem, dada a sua complexidade, pode ser investigada sob mltiplas

    perspectivas. possvel projet-la pelo menos em trs grandes dimenses humanas que

    caracterizam trs direes cientficas fundamentais: conhecer, pensar e comunicar,

    possveis roteiros das cincias naturais, formais e sociais, respectivamente.

    A inferncia, dentro desse contexto, pode ser modelada como uma propriedade a

    ser identificada em qualquer uma das direes acima. Inferir, nesse sentido, teria um

    papel garantido no processo do conhecimento, do raciocnio e da comunicao. De um

    ponto de vista histrico, a inferncia o centro da atividade clssica de argumentar,

    tornando-se o objeto de investigao consagrado pela silogstica aristotlica nos

    fundamentos da Lgica. Na perspectiva moderna, pode-se modelar a inferncia em

    interfaces entre vrias reas, embora, por razes evidentes, a natureza lgica do

    processo continue a ser um ponto de partida geralmente assumido. Sob tal tica, a

    inferncia caracteriza-se como uma espcie de objeto inter/intradisciplinar por

    definio. Entre disciplinas porque, por exemplo, seria construda na interface lgico-

    lingustica, ou lgico-cognitiva, ou, ainda, lgico-comunicativa. Intradisciplinarmente,

    porque, no interior da Lgica Clssica, a inferncia dedutiva seria construda como

    objeto do Clculo Proposicional e de Predicados, ou da Lgica de Predicados e da

    Lgica Modal, etc. No interior da Lingustica, a Semntica e a Pragmtica disputariam a

    questo da inferncia em suas descries do significado em linguagem natural.

    Passemos a ilustrar o papel inter/intradisciplinar da inferncia, assumindo sua

    propriedade dedutiva. Quando examinamos uma sentena S complexa como Joo

    ficar rico e viajar pelo mundo, poderemos simboliz-la como P & Q, sendo que a

    1 E-mail: [email protected]

  • Apresentao: Inferncias lingusticas nas interfaces

    8

    verdade de tal conjuno composicionalmente dependente da verdade das proposies

    atmicas P e Q individualmente. O fato de que hoje no se tem possibilidade de decidir

    o valor de verdade de sentenas no futuro no relevante para o caso. Basta entender-

    se, apenas, que as condies de verdade da sentena molecular dependem das condies

    de verdade das partes atmicas. Isso envolve a Lgica Proposicional ilustrada por uma

    sentena da linguagem natural. Suponhamos, nesse momento, que desejemos deslocar o

    processo inferencial para a investigao interdisciplinar entre Lgica e Lingustica, ou,

    mais especificamente, entre o Clculo Proposicional e a Semntica. Poderemos, nesse

    caso, caracterizar tal investigao ao nvel de uma disciplina mais complexa como a

    Lgica Informal, por exemplo, que investiga a natureza dos argumentos em linguagem

    natural sob uma perspectiva lgica. Tal deslocamento, portanto, leva-nos a questionar o

    princpio da comutatividade do & do clculo proposicional, dado que S, P&Q, equivale,

    logicamente, a S1, Q&P, o que problemtico para argumentos da linguagem cotidiana.

    Em S, h uma inferncia de que, ficando rico, Joo poder viajar pelo mundo; em S1, h

    uma inferncia de que, viajando pelo mundo, ele conseguir ficar rico. Tais inferncias

    so plausveis, mas no so necessrias, evidentemente. Poderamos cancel-las em S,

    por exemplo, dizendo que Joo ficar rico e viajar pelo mundo com sua mulher que

    milionria e pagar sua viagem. Ou em S1, dizendo que Joo viajar pelo mundo e

    ficar rico porque, na volta, receber uma herana, cujo processo jurdico j ter

    terminado. Seria til distinguir-se tais inferncias como pragmticas em oposio a

    acarretamentos semnticos do tipo sempre que S for verdadeiro, S1 dever s-lo. Isso

    quer dizer que j estamos proporcionando descries em nvel intradisciplinar, ou na

    interface semntico-pragmtica cujo valor explanatrio dever ser encontrado nas

    relaes interdisciplinares, ou na interface lgico-lingustica.

    Os textos que se seguem so ilustraes de variadas formas de explorar

    inter/intradisciplinarmente a noo complexa e interessante de inferncia. Eles resultam

    de trabalhos individuais para a avaliao final da disciplina Tpicos de Semntica,

    ministrada por mim no segundo semestre de 2008, com perspectivas mais exploratrias

    do que propriamente tcnicas, em que insights e elocubraes predominam sobre

    resultados rigorosos e precisos. Para melhor explicitar as questes sobre a interface

    lgico-lingustica, acrescenta-se uma breve apresentao com os fundamentos bsicos

    aqui.

    apresentacao.pdf
  • Jorge Campos

    9

    O contedo de cada texto de responsabilidade dos seus autores, e a organizao

    estrutural foi feita pela doutoranda Aline Aver Vanin. Alm disso, ao final deste e-book,

    so relacionadas algumas sugestes de links e textos, divididos em temas que perpassam

    a obra, os quais visam acrescentar ao leitor informaes acerca do que foi lido.

  • PREDIO LEITORA E INFERNCIA

    Vera Wannmacher Pereira2

    O artigo aqui apresentado tem como tema o processamento da leitura e est

    construdo no espao de interao de estudos da Psicolingustica, no que se refere

    estratgia de predio, e de estudos da Pragmtica, no que diz respeito aos percursos

    inferenciais.

    Tendo como objetivo demonstrar a importncia dessa interao, o artigo est

    organizado em duas partes. Na primeira, so apresentados os fundamentos tericos

    sobre predio leitora e inferncia e, na segunda, ocorre a demonstrao integrada

    desses pontos tericos, em textos selecionados para esse fim. No fechamento, so

    realizadas consideraes finais, envolvendo retomadas e perspectivas.

    1 FUNDAMENTOS

    So apresentadas a seguir, sucessivamente, concepes sobre predio leitora e

    inferncia, antecedidas de informaes sobre processamento e estratgias de leitura,

    contexto terico dos dois tpicos centrais.

    1.1 CONTEXTO TERICO

    Processamento cognitivo e estratgia de leitura constituem-se em pano de fundo

    terico das concepes de predio e inferncia que tm ateno especial no presente

    artigo, o que explica o desenvolvimento a seguir. 2 E-mail: [email protected]

  • Vera Wannmacher Pereira

    11

    So vrios os conceitos de leitura, cada um deles vinculado a uma perspectiva

    terica. O de leitura como processo cognitivo, aqui assumido, indica-a

    fundamentalmente como a realizao de dois movimentos bottom-up e top-down.

    O movimento bottom-up caracteriza-se como ascendente, fazendo o movimento

    das partes para o todo. Constitui-se numa leitura linear, minuciosa, vagarosa, em que

    todas as pistas visuais so utilizadas. um processo de composio, uma vez que as

    partes gradativamente vo formando o todo.

    O movimento top-down consiste num movimento no-linear da macroestrutura

    para a microestrutura, da funo para a forma, baseando-se na concepo antecipatria

    da leitura, segundo a qual so utilizadas simultaneamente as informaes grafo-fnicas,

    morfossintticas, semnticas e pragmticas.

    Esses movimentos ou processamentos sofrem a influncia de variveis como o

    objetivo da leitura, os conhecimentos prvios do leitor, o tipo de texto e os caminhos

    cognitivos j desenvolvidos por ele. Isso significa que, provavelmente, quanto mais

    informaes o leitor j possui sobre o assunto do texto que tem diante dos seus olhos,

    ele tem mais possibilidades de realizar um processamento top-down. Por outro lado, se

    o objetivo da leitura a preparao para realizao de uma prova, provavelmente a

    tendncia do leitor para um processamento botton-up, de modo a garantir o envio de

    informaes detalhadas e precisas para os arquivos de memria. Da mesma forma,

    diante de um outdoor, o leitor dificilmente mobiliza caminhos minuciosos de leitura,

    preferindo certamente os do tipo top-down.

    Como pode ser deduzido, esses dois tipos de processamento guardam diferenas

    e so igualmente importantes, cabendo ao leitor a escolha do mais produtivo para a

    situao e, se possvel, com o menor esforo cognitivo, o que abre uma rea de contato

    importante com a teoria da relevncia de Sperber & Wilson.

    Ocorrem por meio de estratgias cognitivas de leitura, que so explicitadas com

    particularidades por diferentes linguistas. Das explicitaes decorrem categorizaes

    diversas, sendo indicadas com frequncia o scanning, o skimming, a seleo, o

    automonitoramento, a autoavaliao, a autocorreo, a predio e a inferncia. Dentre

    todas as mencionadas, so mais recorrentes as duas ltimas, possivelmente por

    constiturem o alicerce do raciocnio de compreenso da leitura.

  • Predio leitora e inferncia

    12

    1.2 PREDIO LEITORA

    Como exposto anteriormente, estudos e pesquisas sobre estratgias de leitura

    repousam seu olhar, de um modo ou de outro, na predio, que permite prever letras,

    morfemas, palavras, frases, enfim at o tema do texto e a situao de produo do texto.

    O termo predio muitas vezes substitudo por previso, anteviso,

    antecipao, adivinhao. Entre eles, o ltimo tem restries por parte de alguns

    pesquisadores, no havendo, alm disso, unanimidade na aceitao da adivinhao

    como estratgia fundamental para a leitura competente, pois, em alguns estudos, so

    precisamente os leitores menos produtivos os que fazem mais adivinhaes. Por outro

    lado, Smith est entre os que argumentam a favor da predio, associando previso

    (formulao de perguntas antes e durante a leitura) e compreenso (obteno de

    respostas a essas perguntas). Do mesmo modo, Goodman se situa entre os que afirmam

    que uma leitura eficiente depende da realizao de predies corretas, que, por sua vez,

    depende da seleo de elementos importantes do texto.

    Como se v, a predio consiste numa estratgia leitora que prope um

    confronto entre o leitor, atravs de seus conhecimentos prvios, e o texto, atravs das

    pistas lingusticas deixadas pelo escritor em todos os planos do texto. Essa condio a

    configura como um jogo psicolingustico de antecipao do que est por vir e de

    verificao da correo do movimento realizado, isto , de formulao e testagem de

    hipteses de leitura.

    Trata-se, na verdade, de um jogo de risco automonitorado, cabendo ao leitor,

    durante a leitura, selecionar as pistas formais (que se realizam atravs das regras de

    funcionamento lingustico do texto) e, com base nelas, lanar suas hipteses e, a partir

    delas, continuar, ento, seu trabalho de navegao no texto. Caso suas hipteses se

    confirmem, ele, consciente de que est sobre base firme, prossegue navegando. Caso, no

    entanto, no se confirmem, reconhecendo que est em base movedia, interrompe sua

    viagem, para e retorna ao ponto anterior, redefinindo as pistas que o conduziram ao

    equvoco.

    Tais pistas lingusticas so objeto de manipulao do leitor para a realizao de

    suas predies. Desse modo, o processo de antecipao, de formulao e verificao de

  • Vera Wannmacher Pereira

    13

    hipteses de leitura pode estar apoiado em traos grafo-fnicos (relao fonema/letra,

    rima, aliterao), morfossintticos (limite e estrutura de palavra, estrutura de frase,

    coeso gramatical), semnticos (significado, coeso lexical, coerncia) e pragmticos

    (relao texto/situao de uso).

    Cabe salientar que a seleo das pistas pelo leitor est vinculada importncia

    das mesmas no texto que o leitor tem diante de seus olhos e importncia para o

    processo de predio. Assim, mais provvel que pistas grafo-fnicas sejam mais

    manipuladas preditivamente em poesias do que em textos cientficos, assim como pistas

    pragmticas sejam mais objeto de manipulao em textos fortemente circunstanciados

    (propagandas, anncios, avisos, cartas, bilhetes) do que em textos menos marcados pela

    situao de produo (cientficos). No poema Velocidade, de Ronaldo de Azevedo,

    exposto abaixo, as predies do leitor provavelmente esto vinculadas aos traos grafo-

    fnicos e pragmticos, uma vez que a compreenso do sentido de velocidade est

    vinculada seleo e disposio das letras, ao valor sonoro dos fonemas e a

    conhecimentos de mundo sobre velocidade e situaes em que ocorre.

    No entanto, h que considerar tambm que alguns textos podem fugir a essas

    tendncias. o caso, por exemplo, do poema Os Estatutos do Homem (excerto a

    seguir), de Thiago de Mello, em que as pistas lingusticas so nitidamente marcantes

    para garantir a intencionalidade do autor. A seleo lexical (estatutos, artigo,

    decretado), assim como a estrutura morfossinttica (fica decretado que) apontam para

    um texto normativo, de natureza legal. Do mesmo modo, a expresso Ato Institucional

    VELOCIDADE (de Ronaldo Azevedo)

    V V V V V V V V V V V V V V V V V V V E V V V V V V V V E L V V V V V V V E L O V V V V V V E L O C V V V V V E L O C I V V V V E L O C I D V V V E L O C I D A V V E L O C I D A D V E L O C I D A D E

  • Predio leitora e inferncia

    14

    Permanente estabelece vnculos semntico-pragmticos com o momento histrico de

    produo do poema, gerando sentidos vinculados s intenes do autor.

    1.3 INFERNCIA

    O termo inferncia encontrado tanto na Psicolingustica como na Pragmtica.

    Na Psicolingustica, a inferncia consiste numa estratgia de leitura, assim como a

    predio leitora, exigindo processamentos cognitivos que manipulam pistas textuais

    deixadas pelo leitor, com o objetivo de chegar compreenso do texto. Na Pragmtica,

    constitui-se num percurso cognitivo que ocorre entre uma afirmao inicial e uma

    afirmao final (concluso), sendo a base para clculos de relevncia.

    Neste artigo, o percurso cognitivo inferencial faz a ncora, o suporte para a

    realizao da predio, estratgia fundamental para a compreenso. Nesse sentido, a

    inferncia est sendo assumida como caminho com esforo cognitivo para a predio,

    com vistas ao benefcio da compreenso leitora, o que faz uma aproximao com a

    teoria da relevncia.

    A literatura existente sobre inferncia traz diferentes categorizaes. Aqui, a

    opo pela definio de dois grupos de categorias a inferncia lingustica episdica,

    Estatutos do Homem: Ato Institucional Permanente

    Thiago de Mello Artigo I

    Fica decretado que agora vale a verdade, agora vale a vida, e de mos dadas,

    marcharemos todos pela vida verdadeira.

    Artigo II

    Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as teras-feiras mais cinzentas,

    tm direito a converter-se em manhs de domingo. Etc

  • Vera Wannmacher Pereira

    15

    que, para o percurso cognitivo, toma os fatos, as informaes, o contedo do texto,

    como pistas decisoras, uma vez que so elas a chave para a soluo; a inferncia

    metalingustica, que, para fazer o percurso cognitivo, toma a prpria linguagem como

    pista de deciso, uma vez que o leitor encontra nela o fundamento para a concluso.3

    A inferncia lingustica episdica busca apoio nos planos constitutivos da lngua

    grafo-fnico, morfolgico, sinttico, semntico, pragmtico, podendo ocorrer

    associados.

    Baseada em traos grafo-fnicos da lngua est apoiada nas relaes

    fonema/letra, que possibilitam combinaes geradoras de morfemas, que, por sua vez,

    tambm permitem combinaes mais amplas e mais complexas. O uso dessas relaes

    pode, atravs de repeties, gerar aliteraes, rimas, e consequentemente formas e

    sentidos. Os trava-lnguas, as cantigas infantis, as parlendas, as poesias infantis

    permitem usualmente concluses inferenciais baseadas em elementos grafo-fnicos, de

    modo que compreender esses textos, assim como exercitar seu uso, exigem continuadas

    inferncias desse tipo. No dilogo a seguir, a substituio do fonema /m/ por /b/ d

    suporte para realizao de inferncias sobre comportamentos de Andr em relao ao

    uso de ofertas prprias de um bar.

    A inferncia lingustica episdica pode estar apoiada em pistas morfossintticas -

    a estrutura das palavras e das frases e a disposio dos elementos nas frases. A

    compreenso de palndromos, por exemplo, baseia-se em percursos cognitivos

    orientados pela segmentao, em suas palavras, de uma sequncia lingustica

    continuada. Em situaes de ironia ou de humor, a compreenso frequentemente exige a

    realizao de inferncias apoiadas em jogo morfossinttico. No dilogo a seguir, os

    empregos morfossintticos do verbo chegar permitem raciocnios inferenciais sobre o

    comportamento de Antnio como estudante.

    3 A categorizao aqui utilizada foi construda em dilogos com Jorge Campos.

    Andr prope a Ana: -Vou dar uma chegada no mar. Ana responde: - Ou no bar?

  • Predio leitora e inferncia

    16

    As inferncias lingusticas episdicas tambm utilizam pistas semntico-

    pragmticas para realizao do percurso inferencial. No caso, esse percurso est

    ancorado nos significados da linguagem e nas relaes contextuais. Na tira a seguir,

    Mafalda conjuga, para os colegas, sob o olhar da professora, o verbo confiar. Ao

    terminar, dirigindo-se a ela, diz: Que bando de ingnuos! No contexto da tira, Mafalda

    faz uma inferncia com possivelmente o seguinte percurso: a) eu, tu, ele, ns, vs, eles

    confiam; b) os que confiam so ingnuos; c) eu, tu, ele, ns, vs, eles so ingnuos.

    Nessa ingenuidade podem estar ou as pessoas em geral, ou os alunos que conjugam

    verbos, ou seus professores, ou todos juntos. O percurso inferencial de Mafalda est

    apoiado em dados semntico-pragmticos sobre padres escolares e sobre

    comportamentos e crenas da sociedade.

    2 DEMONSTRAO

    Nesta parte do artigo, so demonstrados os fundamentos anteriormente

    desenvolvidos, sendo para isso utilizados quatro textos sucessivamente.

    No texto Os seis gangsters de Chicago, o primeiro deles, h palavras

    encobertas cujo desvelamento exige do leitor movimentos preditivos e inferenciais, que

    so explicitados na sequncia, sendo que os primeiros impulsionam as adivinhaes,

    Antnio diz me: - Cheguei ao final das aulas. E a me: - E as aulas chegaram?

  • Vera Wannmacher Pereira

    17

    que constroem a compreenso do texto, e as ltimas explicitam o percurso do

    raciocnio, que ancora o processo compreensivo.

    As demonstraes aqui realizadas, relativas a esse texto, integrando predio e

    inferncia, decorrem de respostas apresentadas por crianas de 5. Srie do Ensino

    Fundamental, monitoradas individualmente em oficinas de leitura ocorridas no Centro

    de Referncia para o Desenvolvimento da Linguagem CELIN da Faculdade de Letras

    da PUCRS.

    A predio da primeira palavra encoberta (gangster) exige a releitura das duas

    primeiras frases e uma primeira leitura das frases seguintes. H tambm a necessidade

    de um skimming, buscando pistas gerais e de um scanning buscando pistas especficas.

    Esses movimentos de leitura contam com a ncora de um percurso de inferncias

    apoiadas em itens lexicais baseadas nos fatos e na estrutura interna do texto

    (especificamente na repetio vocabular e em elementos semntico-pragmticos

    referentes ao criminosa de gangsters). Usando essas pistas, o leitor percebe a

    posio nas frases ocupada por uma mesma palavra: se gangster ocorre ao lado de

    primeiro, quarto, quinto e sexto, ento deve tambm ocorrer ao lado de segundo,

    donde a predio correta.

    Na segunda palavra encoberta (segundo), a predio precisa de releituras

    OS SEIS GANGSTERS DE CHICAGO

    (de Leon Eliachar)

    O primeiro gangster chegou na janela, apontou a metralhadora para a rua: BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG - BANG!

    O segundo gangstr escondeu-se atrs do prdio da esquina e reagiu imediatamente: BENG - BENG - BENG - BENG -BENG - BENG - BENG - BENG - BENG - BENG!

    O terce iro gangster subiu no prdio em frente e comeou a atirar: BING - BING - BING - BING - BING - BING - BING - BING - BING - BING!

    Foi quando se ouviu l no terrao o quarto gangster em ao: BONG - BONG - BONG - BONG - BONG -BONG- BONG - BONG - BONG - BONG!

    O quinto gangster saiu d o banco empunhando a sua metralhadora de mo e atirou nos policiais que cercavam o prdio : BUNG - BUNG - BUNG - BUNG -BUNG - BUNG - BUNG - BUNG - BUNG - BUNG!

    O sexto gangster ficou completamente impassvel porque no havia mais Vo gai s.

  • Predio leitora e inferncia

    18

    sucessivas da segunda frase e, posteriormente, da anterior e das seguintes. Nesse

    momento, possvel que o leitor prefira apenas o scanning, uma vez que j fez leituras

    gerais. Para fazer a adivinhao, o leitor, apoiado em aspectos episdicos, busca suporte

    na coeso gramatical do texto, especialmente nos numerais em sequncia. Com base

    nessas pistas, o leitor faz inferncias apoiadas na morfossintaxe, considerando que, se

    primeiro, quarto, quinto e sexto antecedem gangster, ento provvel que o mesmo

    ocorra na segunda frase do texto, donde correta a predio de terceiro.

    A predio da terceira palavra encoberta (do) depende apenas de releitura da

    prpria frase, uma vez que est situada na sintaxe das relaes internas da sentena.

    Para fazer a adivinhao, o leitor se apoia nos conhecimentos lingusticos que possui.

    Observa, ento, o antecedente e o consequente e faz inferncias apoiadas em itens

    morfossintticos possveis do ou pelo. Prossegue na leitura da frase e percebe que a

    segunda orao informa que o gangster atirou nos policiais que cercavam o prdio. Faz

    ento uma inferncia (base semntico-pragmtica) se atirou em quem estava do lado

    de fora, ento ele estava tambm do lado de fora. Volta para a palavra encoberta e faz a

    inferncia final, de base morfossinttica saiu do banco e a escolha final do.

    Para predizer a quarta palavra encoberta (vogais), o leitor tem mais dificuldades,

    - ele pode se encaminhar para mais de uma possibilidade de resposta, considerando os

    caminhos inferenciais que se abrem. O percurso mais evidente est nos fatos do texto

    associados a conhecimentos de mundo. Esse percurso semntico-pragmtico conduz,

    pela proximidade da expresso metralhadora e pela imediata relao entre esse objeto

    e a munio como condio para seu funcionamento, com menos esforo cognitivo, a

    balas. J um processo inferencial da mesma natureza, mas menos imediato encaminha o

    leitor para policiais, pois estes eram o alvo dos gangsters durante toda a narrativa. Com

    mais esforo cognitivo, pois ainda menos imediato, o leitor faz um percurso inferencial

    semntico-pragmtico, predizendo gangsters, uma vez que a sucesso destes pode

    significar tambm sua eliminao. Como afirmado anteriormente, essas trs

    possibilidades de predio esto aliceradas no plano da histria, dos fatos, dos eventos

    (inferncias lingusticas episdicas). Nenhum desses processos inferenciais, no entanto,

    conduzem a uma predio correta do ponto de vista do texto original esforo cognitivo

    crescente e nenhum benefcio, embora percorridos pela quase totalidade das crianas

    monitoradas. Cabe registrar tambm que o mesmo acontece com quase todos os adultos

  • Vera Wannmacher Pereira

    19

    submetidos mesma situao.

    A predio da palavra original (balas) exige que o leitor, a partir de novo

    skimming, de um scanning sobre o que ocorreu com cada uma dos gangsters bem

    sucedidos, dirija sua ateno para os elementos lexicais representando os tiros, do

    primeiro ao quinto gangster (bang, beng, bing, bong, bung). A partir desse momento, o

    leitor ultrapassa o plano episdico e dirige seu raciocnio para a organizao lingustica

    da sequncia a, e, i, o, u, realizando, ento, para obteno de sucesso, um percurso

    inferencial metalingustico, com esforo cognitivo alto, no que se refere quantidade de

    processamentos de leitura, diversidade de estratgias de leitura de apoio, quantidade

    de tentativas de predio, ao trnsito entre plano episdico e plano metalingustico, e ao

    tempo despendido.

    Para uma demonstrao mais clara de predio com base em inferncia

    metalingustica, esto apresentados mais alguns exemplos.

    No texto Eternidade Amor, de Artur da Tvola, um processo similar ocorre,

    cabendo salientar a particularidade de estruturao de todo o texto a segmentao

    morfossinttica a partir do ttulo. Esse trao de certa forma direciona o percurso

    inferencial do leitor, exigindo do leitor (provavelmente adulto devido ao contedo)

    menor tempo, menor nmero de processamentos e menor nmero de tentativas de

    predio para chegada palavra original idade.

    O texto A Pista, de Ziraldo, tambm exige, para a predio da palavra careca,

    uma inferncia metalingustica, mas com um percurso peculiar. O leitor primeiramente

    se situa no episdio do texto um dilogo entre o detetive e um auxiliar, numa

    investigao criminal. conduzido, a seguir, alternadamente por um e outro

    ETERNIDADE AMOR (Artur da Tvola)

    terna ida de amor ter na idade, amor Eterna ida de amor ter na idade: amor ter na ida de Amor Eterna ida de A-mr

  • Predio leitora e inferncia

    20

    personagem, portando-se como cada um deles. segunda pergunta do detetive, tanto o

    auxiliar como o leitor raciocinam conotativamente, isto , nada mesmo. Para chegar,

    finalmente, a careca, ambos tm que voltar ao plano lingustico do texto e proceder a

    um raciocnio denotativo se no tem nenhum fio de cabelo, ento careca. Esses

    movimentos podem ser facilitados pela conscincia do leitor sobre a natureza do texto.

    Alguns textos do folclore utilizam-se de recursos metalingusticos, exigindo do

    leitor raciocnios inferenciais dessa mesma natureza. o caso de algumas adivinhas,

    como a apresentada a seguir. A resposta pergunta inicial encaminha o leitor para um

    raciocnio voltado para cada uma das afirmaes tem comeo da rua (esquina?); vive

    na ponta do ar (bailarino? trapezista? nuvem?); dobra no meio da terra (raiz? minhoca?

    defunto?); mora onde acaba o mar (pescador? montanhs? rede? areia?). No tendo

    sucesso na predio, o leitor dirige seu raciocnio para a linguagem do texto e passa a

    observ-la detidamente. Aps muitos skimmings e scannings, pe sua ateno nas

    palavras comeo, na ponta, meio, acaba, buscando associaes possveis. A seguir, faz o

    mesmo com rua, ar, terra, mar. Posteriormente, estabelece vnculos entre os dois grupos.

    Atravs dessa sequncia de inferncias metalingusticas, com alto esforo cognitivo, o

    leitor chega predio correta a letra r.

    O que , o que ?

    Tem comeo da rua. Vive na ponta do ar. Dobra no meio da terra. Mora onde acaba o mar.

    Resposta .................

    A PISTA (Ziraldo)

    O detetive pergunta - Alguma pista ?

    - Nada . - Nem um fio de cabelo ? - Nem um. - timo ! Vo l e prendam o careca !

  • Vera Wannmacher Pereira

    21

    CONSIDERAES FINAIS

    Este artigo decorre do reconhecimento da necessidade de estabelecimento de

    interfaces na Lingustica, como condio para o alargamento e o aprofundamento de

    explicaes prprias de cada modelo. Nesse entendimento, so focalizadas as relaes

    entre predio leitora (Psicolingustica) e inferncia (Pragmtica).

    Predio definida, no artigo, como antecipao para a compreenso, que ocorre

    nos diversos planos lingusticos. Inferncia definida como o percurso cognitivo para a

    predio e apresentada em duas categorias a inferncia lingustica episdica, com a

    deduo e a soluo nos fatos, nos episdios; a inferncia metalingustica, com a

    deduo e a soluo na prpria linguagem do texto.

    As demonstraes realizadas por meio de alguns textos indicam um esforo

    cognitivo possivelmente maior no processo inferencial metalingustico do que no

    processo inferencial lingustico.

    Como perspectiva, cabe apontar o fato de que a construo da interface predio

    leitora/inferncia abre caminho para o seu aprofundamento e para a busca de outras

    possibilidades, usando a Psicolingustica e a Pragmtica.

    REFERNCIAS

    COSTA, Jorge Campos da. Comunicao e inferncia em linguagem natural. In: /www.jcamposc.com.br/ GOODMAN, Kenneth S. Unidade na leitura um modelo psicolingstico transacional. Letras de Hoje, n. 86, p. 9-43. Porto Alegre: EDIPUCRS, dez. 1991. ______. A linguagem integral: um caminho fcil para o desenvolvimento da linguagem. In: Letras de Hoje. Porto Alegre: PUCRS, n. 90, 1992.

  • Predio leitora e inferncia

    22

    PEREIRA, Vera W. Arrisque-se... Faa o seu jogo. In: Letras de Hoje, n.128. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. SMITH, Frank. Compreendendo a leitura. Porto Alegre: Artes Mdicas, 2003.

  • O PAPEL DAS INFERNCIAS NA CONSTRUO DE CONCEITOS DE EMOO

    Aline Aver Vanin4

    Traduzir em palavras o que se sente uma tarefa bastante rdua quando se

    pretende explicar ao outro o que determinado conjunto de sintomas emocionais

    significa e como dele possvel extrair, em uma s palavra, a emoo, ou o sentimento,

    de dado momento. Mesmo com uma variedade bastante ampla de possibilidades de

    definio, surpreendentemente os indivduos conseguem compreender, de forma

    intuitiva, o que esto sentindo, aceitando um mesmo item lexical para definir tal

    emoo. O fato de haver uma conformidade a respeito de uma definio to abstrata

    leva a perguntar: por que as pessoas concordam estar sentindo o que sentem? E, mais

    ainda: de que forma a interpretao de um sentimento X construda de maneira a ser

    compartilhada pelos indivduos numa situao comunicativa?

    A partir desses questionamentos, percebe-se a necessidade de definir,

    primeiramente, de que forma os conceitos so estabelecidos como tais na mente

    individual, baseada na convivncia com os outros e, em segundo lugar, como as

    emoes5 so definidas de maneira a haver um acordo comum entre os interactantes de

    uma mesma cultura acerca da emoo X ser realmente X, e no Y. Antecipa-se que o

    papel das inferncias crucial para esse construto, porquanto serem elas a chave para o

    processamento da informao.

    A construo do significado sustentada a partir da hiptese de que a cognio

    humana possui um carter social; nesse sentido, processos inerentes a ela levam em

    conta um princpio de partilhamento, ou seja, necessria a participao dos

    interactantes da comunicao para que eles ocorram. por esse motivo que se acredita

    que o sentido no inerente linguagem, mas trata-se de uma atividade dos falantes

    4 Doutoranda em Lingustica Aplicada PUCRS. E-mail: [email protected] 5 Para Wierzbicka (1999), emoo e sentimento no so conceitos sinnimos, visto o primeiro no ser universal, enquanto o segundo sim; para a autora, o verbo sentir em diferentes culturas, capaz de definir emoes. Contudo, por questes metodolgicas, no sero feitas distines, neste texto, entre essas duas palavras.

  • O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo

    24

    assinalada atravs de cooperao. , ento, uma construo pela interao e, por esse

    motivo, a mesma informao pode ser processada de maneiras diversas pelos

    participantes de um ato comunicativo.

    O foco da atividade de interpretao o carter social da cognio e, por isso, o

    sujeito essencialmente interativo. Nesse processo, consideram-se tambm os aspectos

    culturais trazidos como seu conhecimento enciclopdico. Assim, trata-se de levar em

    conta no s os aspectos mentais da linguagem, mas a sua interface com o social, o

    cultural e o contextual6. O paradigma cognitivo envolve uma variedade de outros

    paradigmas, os quais tm em comum a nfase nos fenmenos mentais como agentes do

    comportamento, abrindo espao para as dimenses intersubjetivas, pragmticas e

    culturais (MARTINS, 2005).

    De acordo com Tomasello (1999), os humanos se distinguem de outros primatas

    pela dimenso social da cognio, e articula nela argumentos filognicos, ontognicos e

    sociognicos. O autor parte da hiptese de que os seres humanos desenvolveram uma

    forma singular de cognio social, na qual h uma construo da identidade em termos

    da projeo entre contrapartes. Assim, os indivduos possuem a habilidade de se

    projetarem e se reconhecerem e aos seus semelhantes em correspondncia homolgica

    em duas configuraes: como agentes intencionais e como agentes mentais. Isso tornou

    possvel um processo de evoluo cultural cumulativa, transformando as habilidades

    cognitivas em modelos culturais, ou seja, em sistemas de dimenses coletivas. Nesse

    sentido, o homem, na sua evoluo, passou a ver o outro tambm como um agente

    intencional, gerando entendimento do outro e o incio da simbolizao como forma de

    comunicao. Tomasello (1999) afirma ainda que os seres humanos desenvolveram as

    atividades cognitivas pela adaptao de habilidades j existentes, tais como as de lidar

    com o espao, objetos, quantidades, categorias, relaes sociais e aprendizagem social.

    Essas decorrem da capacidade de partilhar intenes e, assim, aes conjuntas,

    partilhadas pela linguagem.

    Segundo Miranda (2001), a partir da infncia que os seres humanos se

    percebem como agentes essencialmente sociais, os quais so movidos por objetivos;

    isso ocorre antes mesmo da percepo de si prprio, de que cada indivduo pode ter

    crenas que diferem das dos outros. Mas atravs do outro que se aprende e se 6 Para Langacker (1997, p. 240) (...) apesar de seu foco ser mental, a lingstica cognitiva pode, sim, ser descrita como social, cultural e contextual (grifo do autor).

  • Aline Aver Vanin

    25

    compartilha linguagem; h uma representao cognitiva marcada pela subjetividade,

    unida propriedade dos smbolos lingusticos de serem socialmente partilhados, de

    modo a guiarem as inferncias sobre as intenes comunicativas do interlocutor. De

    acordo com Fauconnier (1985), a linguagem no porta o sentido, mas o guia, posto que

    a forma lingustica uma instruo, uma pista que suscita as suas tarefas semntico-

    cognitivo-sociais. A linguagem ainda permite abrir perspectivas sobre o mesmo

    fenmeno em diferentes ngulos, dependendo dos objetivos comunicativos e de outros

    fatores do contexto.

    por causa do propsito de comunicao que a linguagem deixa pistas sobre a

    forma como os indivduos categorizam e constroem o mundo, adotando mltiplas

    perspectivas, o que permite significar e simbolizar o mundo de diferentes formas. Para

    Marcuschi (2005), as coisas no esto no mundo do modo como dizemos aos outros: a

    maneira como se diz algo a algum decorrncia de uma atuao intersubjetiva sobre o

    mundo, alm da insero sociocognitiva no mundo em que se vive. O mundo

    comunicado sempre fruto de um agir intersubjetivo diante da realidade externa e no

    de uma identificao de realidades discretas.

    Assumindo-se uma posio sociocognitiva para a linguagem, a construo de

    significados e de interpretao decorre do uso que os indivduos fazem dela. atravs

    dela que os indivduos se projetam e se identificam uns com os outros. E nessa

    interao, acredita-se, que se identificam as emoes como tais a partir de

    determinado conjunto de suposies construdas ao longo de experincias vivenciadas

    pelos indivduos intersubjetivamente.

    Sabini & Silver (2005) acreditam que a ligao entre a experincia emocional e

    certa palavra de emoo determinada pelo contexto social de comunicao. Para eles,

    palavras de emoo no necessariamente se projetam em experincias emocionais

    especficas, mas podem revelar uma srie de representaes mentais que denotam

    diversas experincias, visto que essas so descries produzidas por um observador, o

    qual infere certas caractersticas psicolgicas de uma pessoa em dado contexto. Por isso,

    palavras de emoo so, frequentemente, o resultado de uma interpretao subjetiva. Os

    autores propem que os vocbulos utilizados transmitem implicitamente o

    conhecimento que falante e ouvinte trazem para a interao comunicativa, atravs do

    carter intersubjetivo da linguagem.

  • O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo

    26

    No modelo proposto por Sabini & Silver (2005), o modo como as experincias

    se projetam em termos lexicais controlado pelo contexto e pelo uso que se faz deles.

    Por ter uma base cognitiva, pensa-se que esse modelo liga-se arquitetura conceitual

    proposta pela Teoria da Relevncia, de Sperber & Wilson (1995), na qual falante e

    ouvinte compartilham determinada realidade, em que a maioria das informaes no so

    explicitadas, mas inferidas. A partir das percepes acerca do mundo, do input recebido

    atravs da interao comunicativa, os interlocutores podem acrescentar ao seu ambiente

    cognitivo7 novos conceitos, modific-los completamente, e at mesmo recri-los de

    acordo com as experincias e a cultura na qual est inserido. Para essa teoria, o falante

    lana um estmulo ostensivo, no qual o dito d pistas para a real mensagem que se quer

    transmitir, ao ouvinte, cuja tarefa interpretar o que dito fazendo esforos de

    processamentos para obter efeitos cognitivos acrscimo, fortalecimento,

    enfraquecimento ou contradio de suposies. a partir de tais efeitos que os

    indivduos so capazes de construir um contexto comunicativo, pois haver a unio do

    input perceptivo, vindo do falante, com as informaes j presentes no ambiente

    cognitivo do ouvinte. A formao desse contexto contribuir para a construo de

    hipteses interpretativas sobre a troca comunicativa, bem como levar concepo de

    novos conceitos.

    A questo da construo de conceitos de emoo, afirmada por Sabini & Silver

    (2005), consistente com a noo de inteno comunicativa para a Teoria da

    Relevncia, isto , de tornar mutuamente manifesto para falante e para ouvinte certo

    conjunto de suposies, posto que os interactantes compartilham suposies manifestas,

    verdadeiras ou provavelmente verdadeiras, sobre o mundo em que vivem. Quando um

    falante desenvolve um conhecimento adicional que considera ser relevante, o comunica

    para a audincia da maneira mais eficiente possvel. Um s vocbulo pode conter todas

    as suposies subjacentes e manifestas de uma relao entre os interlocutores, j que

    uma nica palavra tem o poder de resumir sucintamente uma condio complexa. Ao

    comunic-la, o falante pode levar o seu interlocutor relevncia tima, atingida quando

    h um mnimo de esforo de processamento mental para obter-se um efeito cognitivo

    positivo, objetivo da comunicao, como previsto na teoria de Sperber & Wilson

    (1995). Assim, ao dizer: estou com raiva, o indivduo transmite uma condio que 7 Para Silveira & Feltes (2002), o ambiente cognitivo de um indivduo o conjunto de suposies manifestas em diferentes graus (para cada indivduo).

  • Aline Aver Vanin

    27

    abrange uma srie de fatos, compartilhados por ele e por seu interlocutor, que

    desencadearam essa emoo. Esse enunciado um estmulo ostensivo para que o

    ouvinte compreenda e infira tambm o que tal conceito de emoo significa para o

    falante, e que outros tipos de emoes estariam a ele associados.

    Portanto, acredita-se que conceitos, em geral, sejam construdos atravs de

    experincias, por causa dos aspectos sociais e culturais, e a partir daquilo que cada

    indivduo possui em seu ambiente cognitivo. Parte-se do pressuposto de que isso ocorre

    porque os indivduos so guiados pela relevncia, o que quer dizer que eles s prestam

    ateno ao que relevante8. Nesse sentido, os conceitos so formulados dependendo do

    ponto de vista adotado (considerando-se os aspectos envolvidos na comunicao) e do

    quanto pertinente o input para algum.

    O conjunto de suposies que constituiro o contexto responsvel pela

    elaborao de inferncias interpretativas. A inferncia uma construo da cognio em

    meio s relaes sociais, construdas com o objetivo de dar significado aos objetos no

    mundo. O pensamento , portanto, um processo de raciocnio, do qual faz parte a

    construo inferencial daquilo que dito. Nesse sentido, a partir do que algum diz

    constroem-se hipteses a respeito do que se quer dizer. Tal constatao parte dos

    trabalhos de Grice (1975), para o qual h uma lacuna entre o dito e o que as palavras do

    falante significam: ao falar, os indivduos fornecem algum tipo de pista para o real

    contedo de sua mensagem.

    Esse processamento de informaes envolve um esforo mental gerado pelas

    pistas lingusticas fornecidas pelos indivduos e pelo raciocnio lgico que organiza os

    argumentos-premissa para gerarem hipteses-concluso. Acredita-se que o pensamento

    inferencial um processo tridico, que envolve, ao mesmo tempo, os raciocnios

    dedutivo, indutivo e abdutivo. No primeiro, de premissas geradas na troca comunicativa

    decorre uma concluso interpretativa; no segundo, h a sustentao por expectativas

    probabilsticas, muitas vezes por meio de generalizaes; e, no terceiro, formam-se

    hipteses explanatrias para determinado fenmeno a abduo parece ser, na maioria

    das vezes, a inferncia desencadeadora das demais, j que a partir dela que so

    geradas hipteses para a melhor interpretao possvel.

    Sperber & Wilson (1995) acreditam que o raciocnio interpretativo do tipo 8 Para se obter relevncia, h a seguinte condio: quanto maiores forem os efeitos cognitivos obtidos, menores devem ser os esforos de processamento.

  • O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo

    28

    dedutivo, no qual de premissas recuperadas da memria enciclopdica e daquelas

    advindas de informaes do input se forma o clculo dedutivo, do qual se extraem

    possveis hipteses interpretativas, ou concluses. De acordo com Escandell-Vidal

    (1996), a inferncia um processo que cria uma suposio a partir de outras suposies,

    e por isso de natureza dedutiva. Como apenas similar s regras da lgica padro,

    esse mecanismo capaz de derivar infinitas concluses a partir de determinado conjunto

    de premissas. Alm disso, como as premissas no so pr-fixadas, essas so construdas

    no decorrer do processamento mental. Por isso, o clculo dedutivo gerado para

    argumentar porque algum sente medo poderia ser representado desta forma:

    (1) Se algo ruim pode acontecer comigo, eu sinto medo.

    Acredito que algo ruim possa me acontecer.

    Logo, sinto medo.

    Nesse caso, sentir medo j faz parte do conjunto de suposies a respeito

    desse sentimento e, na perspectiva de algo ruim acontecer, provavelmente por algum

    evento presenciado ou imaginado, o indivduo une tal conjunto a um dado input (que

    pode ser, por exemplo, o medo de algum roub-lo, de perder algum, ou de que algum

    invada a sua casa, entre outros). Assim, se algum que est s em sua casa ouve um

    barulho em uma das janelas da casa, poder unir as suposies estocadas em seu

    ambiente cognitivo representadas em (1) e uni-las a esse fato:

    (2) H um barulho em uma janela.

    Se h um barulho na janela, pode haver algum tentando entrar.

    Provavelmente h algum tentando entrar

    Esse fato ser complementado por (1), em que

    (3) Algo ruim pode acontecer se algum entrar na casa.

    Se algo ruim pode acontecer, tenho medo [premissa advinda de (1)]

    Sinto medo.

  • Aline Aver Vanin

    29

    Nesse sentido, novas premissas podem ser geradas a partir das suposies j

    formuladas, dependendo da sua necessidade para a completude do clculo mental.

    Contudo, ao se tratar de construo de conceitos de emoes, adota-se a

    perspectiva do raciocnio indutivo (ou raciocnio cotidiano), no qual uma hiptese

    gerada e s pode ser justificada atravs de experimentao ou de investigao. A

    induo pode ser definida como qualquer processo de pensamento que contribui com

    uma concluso que incrementa a informao semntica contida em suas observaes ou

    premissas iniciais (JOHNSON-LAIRD, 1993). Trata-se de um processo de

    generalizao da informao semntica e, por isso, pode-se referir esse processo

    tambm como inferncia pragmtica.

    Esse um tipo de raciocnio que se liga diretamente maneira como a cognio

    humana trabalha: por associao. Esse processo mental ocorre a partir de contedos

    informais de carter semntico que supostamente esto na mente. Nesse sentido, quando

    se l a palavra felicidade, h possibilidades mltiplas de associao a ela, mas no

    variadas. Isso quer dizer que esse conceito estar restringido a um repertrio semntico

    que envolve uma categoria especial: emoo positiva. Atravs dele, pode-se pensar em

    alegria, surpresa, excitao, gratido, entre outras, podendo-se at associar a momentos

    em que tal sentimento ocorreu na vida do indivduo. Qualquer pessoa, inserida numa

    cultura como a brasileira, por exemplo, associa o contedo semntico de felicidade a

    algo positivo, ou seja, dentro dessa categoria de emoo positiva. Constri-se uma rede

    semntica que se desdobra na mente de maneira particular atravs da sua experincia no

    mundo. Assim, a essa emoo poderiam estar associadas outras como: surpresa, alegria,

    euforia, satisfao, esperana, excitao, entre outras.

    Nota-se que os processos perceptivos funcionam praticamente da mesma forma,

    provavelmente por estarem associados a processos mnemnicos. Nesse sentido, J. A.

    Russell criou um grfico associando 28 tipos de emoes, o qual preciso salientar

    baseado em palavras relacionadas s existentes em sua prpria lngua (os quais

    coincidentemente possuem correspondentes diretos em lngua portuguesa), visto que os

    conceitos de emoo, como j mencionado, so construdos social e culturalmente:

  • O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo

    30

    Figura 1 Grfico sobre algumas emoes e os tipos de associaes feitas (Revista Superinteressante, maro/2008, p. 34).

    Por operarem de maneira associativa, o pensamento e os raciocnios subjacentes

    esto intrinsecamente relacionados ao contedo provido pela memria. Dessa maneira,

    quando se discute sobre emoes relacionadas ao dia de finados e morte, por exemplo,

    o indivduo faz uma espcie de escaneamento a respeito de tudo aquilo que conhece

    sobre o assunto e, de acordo com esse levantamento, tem condies de formar uma rede

    semntica a respeito do assunto, fazendo emergir, tambm, todas as emoes que

    poderiam estar associadas a tal assunto, de acordo com o momento em que vive. Isso

    ocorre porque, de acordo com a Teoria da Relevncia, os indivduos constroem

    hipteses interpretativas sobre o ato comunicativo em que esto envolvidos atravs das

    informaes existentes em seu ambiente cognitivo sobre o assunto, mais o input

    perceptivo que recebe. A essa noo, chamada de construo do contexto, se pode

  • Aline Aver Vanin

    31

    aplicar a formao de dado conceito de emoo, o qual, sendo ele predefinido de

    determinada forma para cada indivduo, se molda situao de comunicao, sendo a

    ele associados outros tipos de emoo. Dessa forma, conforme a experincia ou o

    conhecimento externo relacionada ao tema da interao, o indivduo ser capaz de

    construir uma teia de relaes semnticas sobre o assunto. Por exemplo, em grande

    parte dos pases de cultura ocidental as emoes relacionadas morte e ao dia de

    finados so do tipo negativo, o que leva a traar a provvel teia de sentido:

    Figura 2: rede semntica de emoes relacionadas morte

    Contudo, em algumas culturas, como a mexicana, o dia de finados visto de

    forma um tanto diferente: a morte vista como uma divindade, a Santa Morte, para a

    qual promovida uma festa a cada dois de novembro. Segundo Arajo (2004), a morte

    encarada de maneira peculiar pela cultura mexicana. Nela, h uma espcie de desafio e

    deboche em relao prpria morte, fato que revela elementos remanescentes da cultura

    popular: oposio ao carter srio e religioso dado aos acontecimentos da vida em todos

    os aspectos, dentre os quais, a prpria morte (ARAJO, 2004, p. 11). A autora ainda

    afirma que, nas festividades do Da de los Muertos, os vivos comem caveiras de

    acar (com semblante engraado e feliz) com seus nomes gravados nelas, riem da

    morte e recitam versos de humor em sua homenagem.

    No caso da cultura mexicana, a rede conceitual acerca de emoes relacionadas

    morte e ao dia designado para celebr-la pode ser como a demonstrada na figura 2,

    pois para esse povo a morte tambm representa uma perda. Mas, ao mesmo tempo, por

    sua cultura ter resqucios de influncia de civilizaes antigas, para as quais a morte

    MORTE

    depresso

    melancolia

    tristeza abatimento

    pesar

    saudade

    tenso

    [outras possibilidades]

  • O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo

    32

    tinha outro valor, estaria ligada a ela uma nova e provvel rede de conceitos-chave de

    alegria, o que sustenta a hiptese de que os conceitos so construdos tambm por

    associao s experincias culturais vivenciadas.

    Pode-se pensar que os conceitos relacionados a emoes so estabelecidos desde

    a infncia, atravs de inferncias indutivas, as quais passam a ser cruciais para

    quaisquer processos de construo de conceitos. No caso de emoes, contudo, a

    construo de uma rede semntica um tanto instvel, visto ser dependente de fatores

    subjetivos, intersubjetivos, sociais, culturais, e tambm por um conceito de emoo

    muitas vezes confundir-se com outros. As emoes, relacionadas s experincias vividas

    pelos indivduos em determinada cultura, so associadas a conceitos j formulados e

    estocados no ambiente cognitivo dos indivduos, juntamente com as vivncias

    cotidianas. Delas, os indivduos associam as suas percepes em dado momento para

    ento reconhecer, a partir de outros, que tal conjunto de sentimentos denominado

    como certa emoo. Esse processo s possvel devido caracterstica geral de

    combinao, ou associao, prpria da induo.

    De acordo com Oatley & Johnson-Laird (1987), para cada tipo particular de

    emoo h uma famlia de experincias emocionais relacionadas. Em outros termos,

    reafirma-se que a linguagem de emoes emerge a partir de interaes complexas da

    atividade cognitiva construda contextualmente, ou seja, durante os atos comunicativos

    e, no caso dos conceitos de emoo, ao longo das vivncias dos indivduos. Esses

    ocorrem por estarem ligados pelo contexto social e pelas intenes comunicativas que

    so inferidas numa situao interativa. Lakoff e Johnson (1980) enfatizam tambm o

    papel do contexto cultural, pois quando tratam as similaridades como experienciadas,

    referem-se no s s experincias fsicas, mas a um contexto maior, sociocultural,

    relativo a uma comunidade especfica.

    Tal processo de formao de uma rede semntica produzida por induo decorre

    de trs estgios bsicos9:

    1. Entender a observao ou a informao dada;

    2. Formar uma hiptese que pretende descrever a informao mencionada em

    relao ao conhecimento geral. Nesse caso, a concluso resultante vai alm

    da informao inicial pela incorporao do conhecimento geral no resultado;

    9 Conforme http://penta.ufrgs.br/edu/telelab/3/inductiv.htm. Acesso em: 23/11/2008.

  • Aline Aver Vanin

    33

    3. Avaliar a validade da concluso que foi alcanada.

    Esse tipo de inferncia produz concluses que aumentam as informaes

    semnticas relacionadas quelas encontradas nas premissas iniciais do processo

    inferencial. No entanto, no se pode ter certeza de que a concluso um resultado

    lgico das premissas, mas possvel atribuir uma probabilidade a cada concluso. A

    induo um processo de raciocnio em que se acredita nas premissas de um argumento

    para dar suporte concluso, mas elas no a acarretam. Essa forma de raciocnio faz

    generalizaes baseadas em casos individuais. Nesse sentido, parte-se de observaes

    para formular uma concluso geral. Por isso, tomando-se a descrio do sentimento de

    medo, de Wierzbicka (1999), pode-se dizer que este seria o provvel raciocnio

    indutivo feito por algum que sente tal emoo, visto que passa de um fato

    experienciado anteriormente para uma concluso generalizada:

    Eu senti medo =

    Eu senti algo porque eu pensei algo que

    s vezes uma pessoa pensa

    algo ruim pode me acontecer agora

    eu no quero que isso acontea

    por causa disso eu quero fazer algo

    eu no sei o que eu posso fazer.

    Por essa pessoa pensar assim, essa pessoa sente algo ruim.

    Eu senti (algo) como isso porque pensei algo como isso.

    (WIERZBICKA, 1999, p. 14)

    Ao se estruturar uma rede semntica tal como a representada acima sobre os

    provveis sentimentos relacionados morte, tais conceitos no parecem ter uma

    organizao prpria, estando todos em um mesmo nvel de organizao e, portanto, de

    relevncia. Contudo, conforme Lakoff (1987), ao realizar qualquer ato, mesmo no

    sendo ele to pertinente, os seres humanos tendem a categoriz-lo10. E, dentro dessa

    categorizao, preciso seguir alguma ordem para demonstrar a variao de diferentes

    tpicos de forma ordenada e linear, os quais compartilhariam um mesmo tpico central. 10 Certamente a noo de categorizao muito mais profunda do que o exposto neste texto. No entanto, no se tratar deste tpico por ele requerer uma discusso muito mais ampla do que o espao permite.

  • O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo

    34

    Para tanto, utilizada a noo de implicaturas escalares, uma contribuio de Levinson

    e Horn pragmtica.

    Segundo Rossa (2002), implicaturas so proposies que fazem parte de um

    enunciado de uma sentena em um determinado contexto, ainda que tal proposio no

    seja parte daquilo que realmente dito (p. 320). Assim, a noo de implicatura um

    recurso para um tratamento complementar da semntica, sendo chamada de inferncia

    pragmtica. Com base nessa constatao, tambm se percebe o carter associativo da

    construo de tais implicaturas. Como argumenta Rossa (2002), certas expresses em

    linguagem natural podem possuir um carter estvel, mas h tambm uma parte no-

    estvel, uma camada que se sobrepe, um conjunto de implicaturas (ROSSA, 2002, p.

    328), as quais so chamadas implicaturas escalares. dentro desse conjunto que o

    estudo de palavras relacionadas emoo pode ser inserido, visto o seu carter instvel.

    atravs de uma organizao em escala, hierarquizada, que possvel os nveis

    de especificidade dela, de acordo com o tpico envolvido. Para Levinson (1983), uma

    escala lingustica consiste em um conjunto de expresses contrastivas da mesma

    categoria gramatical, as quais podem ser organizadas em uma ordem linear por grau de

    informatividade ou por fora semntica. Assim, dada uma escala de valores, elas

    produzem inferncias que esto relacionadas a um valor nessa escala. Esse autor sugere

    que essa escala tem uma forma geral:

    Dada qualquer escala da forma , se um falante afirma A (e2), ento ele implica ~ A (e1), se ele implica A (e3), ento ele implica ~A (e2) e ~A (e1), e de uma forma geral se ele diz A (en), ento ele implica (A(en-1)), ~(A(en-2)) e assim por diante, at ~A ((e1)). (LEVINSON, 1983, p. 133)

    Para que a implicatura escalar realmente seja inferida, a expresso que leva a ela

    deve ser acarretada por qualquer enunciado complexo do qual ela faa parte. Assim,

    essa frmula mostra que, se uma parte de uma escala {4>3>2>1} escolhida (3, por

    exemplo), todos os antecedentes dessa escala sero implicados negativamente:

    (3) Pedro tem 3 filhos.

    Pode-se implicar, desse exemplo, que Pedro no tem 4 filhos, mas 1, 2 e 3.

    Ainda ilustrando essa regra, observe-se o seguinte enunciado:

    (4) Alguns alunos estiveram na aula.

    A escala construda, nesse caso para alguns, seria mais ou menos essa: {todos

  • Aline Aver Vanin

    35

    > a maioria > muitos > alguns > poucos}. Assim, pode-se dizer que se implica que a

    quantidade de alunos de no-todos, no-a maioria e no-muitos, e se pode acarretar

    que poucos alunos estiveram na aula.

    Nesse sentido, pensa-se que possvel utilizar a mesma regra para a noo de

    palavras de emoo, visto que se pode categoriz-las de acordo com o seu tipo:

    (5) Joo {ama > adora > gosta > quer bem > simpatiza} com Maria.

    Aqui, pode-se dizer que, se escolher dizer que Joo gosta de Maria, ele no a

    ama nem a adora, mas os outros elementos da escala (quer bem e simpatiza) so

    verdadeiros para o que Joo sente por Maria. No entanto, no possvel incluir, na

    mesma escala, uma noo supostamente contrria a amar; odiar parece ter uma

    trajetria paralela de amar, e, segundo Galli (2008), dio e amor se cruzam sem se

    tocar (p. 24). A escala para tal sentimento , provavelmente, a seguinte: {odiar >

    detestar > desprezar > no-gostar > antipatizar}, o que quer dizer que se X odeia Y, ele

    tambm detesta, despreza, no gosta e antipatiza com Y, mas dizer que se X no gosta

    de Y no implica dizer que o odeia, por exemplo, mas acarretaria todos os valores

    direita de no gosta (nesse caso, inseriu-se somente antipatizar, porque neste texto s se

    construiu a escala inferencialmente dessa forma no momento da escrita, a partir das

    prprias experincias da autora; uma outra pessoa provavelmente incluiria mais algum

    outro valor nessa escala). Como exemplo das afirmaes acima, a figura 1 parece levar

    em conta uma categorizao das emoes estudadas, visto estarem inseridas em

    diferentes pontos do grfico, bem como julga, mesmo que intuitivamente, o valor

    daquelas emoes segundo algum grau, j que, quanto mais afastadas do centro do

    grfico, mais fortes elas so.

    Essas regras semnticas so formuladas para dar conta das relaes lgicas dos

    enunciados e da questo da referncia; ao mesmo tempo, considera-se a questo

    pragmtica do contexto, visto ser a partir dele que se desvenda o que est por trs das

    palavras do falante. Ao tentar explicar o que tal palavra de emoo significa, dentro de

    um contexto conversacional, a noo de implicaturas escalares encaixa-se bem nas

    teorias semntica e pragmtica, posto que a ltima auxilia a dar mais exatido s

    palavras que ficariam ambguas numa anlise semntica.

    Retomando a questo das redes semnticas relacionadas a palavras de emoo,

    acredita-se ser necessrio organiz-las em concordncia com uma escala de valores, os

  • O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo

    36

    quais so intuitivamente construdos pelo ouvinte de acordo com a construo

    contextual sobre o tpico. Alm disso, necessrio refletir sobre as suas experincias

    vividas, a cultura em que se insere, bem como a organizao concebida pelo indivduo

    para um conjunto de sentimentos relacionados a uma mesma emoo. Acredita-se que a

    escala ser construda de acordo com a relevncia dada aos conceitos, os quais, numa

    mesma cultura, parecem ser transmitidos intersubjetivamente, porquanto os indivduos

    costumam concordar a respeito do tipo de emoo estarem sentindo em determinado

    momento, mesmo que as reaes no sejam as mesmas.

    Por fim, ao se elaborar uma rede semntica para o sentimento de medo, por

    exemplo, a relevncia levaria construo de implicaturas escalares como no exemplo

    que se segue, com poucas variaes de posio entre os sentimentos: {MEDO: terror >

    pnico > fobia > pavor > medo > angstia > susto > inquietao > apreenso >

    preocupao}. Um indivduo, vendo a reao de outro diante de uma situao que

    provocaria esse sentimento, possivelmente construiria um conjunto de inferncias o qual

    levaria em conta uma escala semelhante, bastante intuitiva por ser uma construo

    ontognica, mesmo que alguns dos conceitos colocados nela possam variar para mais ou

    para menos, conforme indivduo.

    Por fim, este texto teve como objetivo trazer a hiptese de que os conceitos

    relacionados a emoes referem-se a uma cadeia inferencial formada a partir de noes

    de relevncia; a partir das experincias sociais e culturais, inseridas na memria

    enciclopdica, que, em dada situao, os indivduos formaro um contexto

    (comunicativo) para ento definir o tipo de sentimento possvel naquele momento, visto

    ele ser formado por um conjunto de outros que emergem conjuntamente. Como tais

    vivncias acabam sendo intersubjetivas para cada cultura, os indivduos acabam

    partilhando as noes de que medo, por exemplo, pode reunir sentimentos de

    apreenso, angstia ou inquietao, por exemplo, mas no se pode referir a ele como

    pavor, j que esse, intuitivamente, classificado inferencialmente como estando em um

    grau maior na escala das implicaturas.

    Importante ressaltar que o processo inferencial ocorre com os trs tipos de

    raciocnios mencionados, a saber, dedutivo, indutivo e abdutivo, mas se privilegiou o

    indutivo por se perceber nele uma abertura para a insero de novas suposies, algo

    que no possvel na deduo. Alm disso, a noo de induo heterognea, a qual

  • Aline Aver Vanin

    37

    no compreende uma, mas duas espcies de movimento: primeiro, a experincia

    sensorial, pela mente abduo e segundo, atravs de uma hiptese que se confirma

    ou no com referncia a essa experincia induo. A abduo processo-base para a

    formulao de uma provvel explicao, sem nenhuma segurana de que certa

    inferncia esteja correta. Portanto, o processamento inferencial de novos conceitos,

    como o de emoes, totalmente dependente desses raciocnios, os quais agem em

    concomitncia na interpretao deles. Lana-se, aqui, apenas uma primeira hiptese

    para o estudo da construo de conceitos relacionados a emoes em uma lngua, sendo

    necessrio um aprofundamento sobre questes de semntica, pragmtica e,

    principalmente, sobre todo o processo inferencial envolvido.

    REFERNCIAS

    ARAJO, R. M. S.. Metamorfose e transcendncia. In: Letras & Letras, Uberlndia, 20 (1), 115-129, jan./jun. 2004. ESCANDELL-VIDALL, M. V.. Introduccin a la pragmtica. Barcelona: Ariel, 1996. GALLI, Marcelo. Odeio, logo existo. In: Filosofia: cincia & vida. Ano III, n 27. So Paulo: Ecala, 2008. GRICE, H. P. Logic and conversation. In: COLE, Peter and MORGAN, Jerry. Syntax and semantics. V.3, Academic Press, 1975, p. 41-58. Inductive (pragmatic) inference. Disponvel: http://penta.ufrgs.br/edu/telelab/3/inductiv.htm. Acesso em: 23/11/2008. FAUCONNIER, Gilles. Mental spaces: aspects of meaning construction in natural language. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. JOHNSON-LAIRD, Philip N.. Human and machine thinking. Hillsdale (NJ): Lawrence Erlbaum, 1993.

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  • O papel das inferncias na construo de conceitos de emoo

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  • Aline Aver Vanin

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  • COMO FUNCIONA A INFERNCIA MORFOSSEMNTICA?

    Adriana Quinelo da Silva11

    INTRODUO

    Na morfologia, um morfema a menor unidade contendo significado. Um

    morfema pode se apresentar de vrias formas: raiz/radical/base, prefixo, sufixo, infixo.

    Cada uma delas indivisvel, ou seja, no se constitui de uma forma decomponvel com

    relao ao significado que denotam. O termo morfossemntica est relacionado

    justamente a uma composio mrfica que contem significado, o qual pode ser inferido

    ou depreendido. Inferncia, portanto, a busca pela compreenso do significado integral

    de frases, trechos ou palavras que o receptor faz utilizando o seu conhecimento de

    mundo de forma a alcanar a interpretao a que lhe foi pretendida, segundo Rossa

    (2002). Grice (1967/75) usou o termo implicatura para descrever a inferncia

    pragmtica conectando o significado da palavra (aqui entendida como morfossemntica)

    ao significado da sentena (inferncia de dicto/dito sinttica) proferida pelo falante.

    Tenta-se neste artigo identificar e discutir as relaes das interpretaes (via

    inferncias) morfossemnticas e sintticas (de dicto) com o objetivo de apontar e

    demonstrar a no equivalncia necessria de uma com a outra. Para este fim, as

    implicaturas escalares de Levinson (1983) no contexto terico Griceano daro o suporte

    terico da anlise.

    1 SOBRE A TEORIA DAS IMPLICATURAS

    Grice (1975) em Logic and Conversation explica os significados implcitos

    11 Doutoranda em Lingustica Aplicada PUCRS. E-mail: [email protected]

  • Adriana Quinelo da Silva

    41

    como sendo aqueles onde o teor da fala no expresso literalmente nas palavras, frases

    ou sentenas do falante. um significado que o ouvinte pode captar via inferncia

    pragmtica, dado que depende do contexto em que as palavras, frases ou sentenas so

    enunciadas.

    Entende-se neste contexto terico, o dito como o significado literal e expresso de

    modo explcito pela cadeia de palavras pronunciadas pelo falante (a sentena) e,

    portanto, o no-dito (implicado) o significado que se pode depreender dessa fala. Assim,

    as implicaturas Griceanas so aquilo que no-dito em um grau imediatamente abaixo

    do dito depreendidas pelos contextos dos dilogos. O dito P conversacional no

    depende da compreenso do ouvinte (uma vez que explcito) e pode ser calculado a

    partir dos enunciados verdadeiramente explcitos ao longo da conversa. Mas o contexto

    do dilogo que vai definir o entendimento pelo ouvinte de P + Q, conhecido como a

    suposio contextualmente inferida, ou inferncia pragmtica no-convencional.

    O dito, ou a sentena, est sujeito s condies de verdade semnticas, podendo

    ser verdadeiro ou falso. J a inferncia pragmtica s pode ser julgada vlida ou

    invlida, ficando tudo o que implcito sujeito cancelabilidade, ou seja, podem ser

    canceladas, negadas e, assim, anuladas. Na teoria de Grice, as implicaturas explicam a

    compreenso intuitiva e automtica do ouvinte (P + Q) com relao inteno do

    falante (P). Por sua vez, a inteno do falante, o dito, o enunciado explicitamente literal,

    no interpretado. A esse respeito, Gazdar (1979) props que a pragmtica o

    significado menos as condies de verdade e que o implcito em linguagem natural

    flexvel e varivel exatamente porque se molda em funo de cada contexto.

    Grice entende que a inteno das pessoas a de se comunicarem: de se

    entenderem e de se fazerem entender. Para isso acontecer com sucesso, elas cooperam

    entre si, ou seja, seguem regras naturais de linguagem calcadas na competncia

    comunicativa dos interlocutores. Tais regras ou mximas conversacionais (Quantidade,

    Qualidade, Relao e Modo) so observadas pelos falantes e ouvintes a fim de no

    violarem o Princpio da Cooperao, ou seja, a fim de no gerarem uma implicatura.

    No entanto, se ao produzir um enunciado o emissor quebra qualquer que seja a mxima

    conversacional ele quer que seus implcitos sejam capturados pela intuio do ouvinte.

    Assim, cabe ao ouvinte usar da sua competncia para calcular, via intuio, a

    implicatura atrelada ao dito.

  • Como funciona a inferncia morfosemntica?

    42

    Segundo Costa (1984: 120), no modelo de Grice Ampliado, a implicatura surge

    para harmonizar relaes entre funes diversas do jogo comunicativo e conclui que a

    implicatura a relevncia pragmtica do dito.

    2 SOBRE A TEORIA SEMNTICA

    Sabe-se que a teoria semntica no consegue dar conta do fenmeno lingustico

    implicatura visto que no consegue explicar como possvel que algo seja comunicado

    sem que tenha sido dito. Segundo Ibaos (1994), a semntica das condies de verdade

    no autnoma por no poder se restringir semntica lingustica. Tem-se que a

    semntica e a pragmtica so distintas, porm, complementares e inter-relacionadas no

    tratamento objetivo da subjetividade do sentido pragmtico conversacional.

    Para reconstituir a capacidade sistemtica do falante de interpretar um enunciado

    isoladamente, a qual permite a ele compreender sentenas que ele nunca ouviu antes,

    alm de produzir sentenas novas, as quais demais falantes compreendem do mesmo

    modo que ele; uma teoria semntica vai empregar alguns mecanismos. Um dos

    componentes de uma teoria semntica de uma lngua natural o dicionrio daquela

    lngua. O fundamento lgico para a presena deste componente, o dicionrio, na teoria

    semntica o fato de haver duas limitaes bsicas de uma descrio gramatical,

    segundo Lobato (1977). A primeira que uma gramtica no capaz de dar conta do

    fato de que vrias sentenas so interpretadas como diferentes em significado apenas

    quanto aos morfemas que contm, tipo: O macaco me mordeu e O cachorro me

    mordeu. Ou as sentenas contm morfemas diferentes, mas so interpretadas como

    idnticas em significado, tipo: The oculist examined me e The eye doctor examined

    me. A segunda que a gramtica no d conta do fato de que so sinnimas muitas

    sentenas de estrutura sintticas totalmente diferentes, como: Two kids are in the

    room e There are at least two people in the room and each is a kid. Outras sentenas

    so tambm diferentes sintaticamente e no so sinnimas. Assim, a interpretao das

    sentenas determinada, parcialmente, pelos significados dos morfemas e pelas

    relaes semnticas existentes entre eles. O dicionrio fornece uma representao da

  • Adriana Quinelo da Silva

    43

    caracterizao semntica dos morfemas, a qual capaz de dar conta dos fatos relativos

    sentena e suas inter-relaes, fatores no contemplados pela gramtica.

    Um falante fluente da lngua capaz de determinar o nmero e o contedo de

    leituras de uma sentena, de dizer se a sentena ou no semanticamente anmala e de

    decidir que sentenas de uma lista so parfrases uma da outra. O que os falantes tm a

    sua disposio so regras para aplicao das informaes do dicionrio, as quais levam

    em conta as relaes semnticas entre os morfemas e a interao do sentido e estrutura

    sinttica na determinao da interpretao semntica correta de qualquer sentena

    produzida dentre as infinitamente possveis na gramtica.

    3 SOBRE A MORFOLOGIA

    Os falantes de uma lngua tambm tm a sua disposio um nmero grande de

    palavras, prximo a sessenta mil. As palavras so uma parte importante do

    conhecimento lingustico e constituem o componente da nossa gramtica mental. Sem

    elas, no conseguimos fazer sentido atravs da linguagem. Tal importncia nos leva a

    considerar as partes que compem a palavra nesta anlise, um feito at ento muito

    pouco explorado, o da inferncia morfolgica. Quando sabemos uma palavra, sabemos

    os sons que a compem e o significado relativo quele som. Um morfema a menor

    unidade de som com significado (a sound-meaning unit), portanto conhecida como a

    menor unidade de significado lingstico, segundo Fromkin, Rodman and Hyams

    (2003). Um s morfema (do tipo base, raiz ou radical) pode ser equivalente a uma

    palavra ou uma palavra pode ser constituda de dois ou mais morfemas

    (base/raiz/radical + sufixos, e/ou prefixos e/ou infixos). Para decompor uma palavra,

    deve-se saber onde as partes (os morfemas) podem ser separadas umas das outras,

    identificando-se a base/raiz/radical e os afixos (pr-, su-, in- fixos). Os afixos tm

    significado especfico, mas ocorrem sempre presos a outros morfemas do tipo

    base/raiz/radical, chamados livres. Observe os pares nas colunas A e B abaixo: Os

    prefixos IN- e DES- significam NO, mas no ocorrem por si s. (Fromkin, Rodman

    and Hyams, 2003):

  • Como funciona a inferncia morfosemntica?

    44

    A B

    Desejvel Indesejvel

    Discreto Indiscreto

    Feliz Infeliz

    Sucesso Insucesso

    Gosto Desgosto

    Gostoso Desgostoso

    Casado Descasado

    Todas as palavras na coluna B consistem de pelo menos duas unidades de

    significado distintas. As palavras, portanto, tm uma estrutura interna, formada por

    morfemas (livres e/ou presos), regida por regras de formao de palavras. O estudo da

    estrutura interna das palavras e das regras pelas quais as palavras so formadas

    chamado de Morfologia. Saber uma lngua tambm compreende saber a sua morfologia.

    Como a maioria do conhecimento lingustico, este tambm inconsciente. Mas os

    falantes certamente usam desta competncia para formar palavras. Assim, o

    conhecimento dessas unidades discretas (decomponveis), os morfemas, e as regras que

    os combinam para formar palavras do conta de explicar a criatividade da linguagem

    humana, ou seja, a habilidade de produzir (criar) e entender uma gama infinita de

    palavras sem nunca antes t-las ouvido. Sabendo decompor uma palavra e sabendo o

    significado dessas partes/morfemas, sabemos o significado da palavra como um todo.

    Ou no?? Ser que somos passveis de nos enganar? Seria correto, por exemplo, inferir

    (morfossemanticamente) que o significado de Infeliz o oposto de feliz, conforme a

    relao abaixo?

    In-feliz = no feliz = Ele no feliz. Ou, No verdade que ele feliz. Nvel Nvel frsico Nvel sentencial Nvel sentencial

    mrfico/palavra (sintagma) (de dicto) (de r)

    Descasado = no casado = solteiro? Ou,

    Descasado = no casado = separado?

    Desgastado = no gasto? Ou, gasto?

  • Adriana Quinelo da Silva

    45

    Segundo Levinson (1983), os significados das palavras de uma forma geral so

    vagos e mudam com frequncia, o que gera problemas para a interpretao semntica. O

    que dizer de palavras antnimas como good e bad, as quais possuem o mesmo

    significado em um dado contexto? Observe o exemplo de Carlos Rossa (2002) no

    contexto em que uma pessoa que dirige perde o controle do carro rodopiando na pista e

    quase causa um grave acidente:

    It was a good scare. / It was a bad scare.

    Good = Bad

    Apesar de serem totalmente distintas, good e bad no so simples oposies de

    ideias como em: It was a good movie (IMPLICA) o falante gostou do filme/It was a

    bad movie o falante no gostou do filme. Neste caso de verdadeiros opostos, posso

    estabelecer esta equivalncia.

    Bad = not good = It was not (a) good (movie).

    Good = not bad = It was not (a) bad (movie).

    Do que estaria dependendo esta equivalncia funcionar ou no? Como saber

    quando so sinnimos, quando so antnimos ou quando no so nem um nem outro? A

    resposta teria de explicar como inferimos os significados corretamente dentre os mais

    variados sentidos das palavras. As implicaturas oferecem um tratamento para a parte

    no-estvel da linguagem natural, aquela camada que se sobrepe, um conjunto de

    implicaturas. Dentro deste conjunto de implicaturas esto as Escalares.

    4 SOBRE AS IMPLICATURAS ESCALARES DE LEVINSON

    As implicaturas escalares so aquelas extradas de um conjunto de expresses

    Lingusticas contrastantes da mesma categoria gramatical. Este conjunto normalmente

    se apresenta organizado linearmente conforme a informao ou fora semntica. Essas

    implicaturas esto relacionadas com a primeira submxima de Grice (1967), a da

    quantidade. Dada uma escala de valores, elas produzem inferncias relacionadas a um

  • Como funciona a inferncia morfosemntica?

    46

    valor dessa escala.

    A regra de Levinson (1983:133) para as implicaturas escalares:

    Implicaturas escalares: dada qualquer escala da forma , se um falante diz A(e2), ento ele implica ~ A(e1), se ele diz A (e3), ento ele implica ~A (e2) e ~ A (e1), e de uma forma geral, se ele diz A (en), ento ele implica ~ (A(en-1)), ~ (A(en-2)), assim por diante at chegar em (A(e1)).

    Segundo a frmula acima de Levinson, quando uma parte da escala (a>b>c>d>e)

    escolhida, por exemplo c, todos os antecedentes so negativamente implicados, tipo:

    no b, no a ; e os abaixo de c so acarretados, tipo: se c, ento d e e.

    Observar exemplos na escala abaixo:

    Gordasso> gordo> gordo> gordinho = (obeso) > (muito gordo) > gordo> (pouco gordo)

    Se dissermos que algum est gordo, ento, de acordo com esta escala, acarreta

    que este algum est gordinho, portanto implica que no gordo e no o gordasso.

    Levinson (1983) observa que para que as implicaturas escalares sejam

    efetivamente inferidas, a expresso que as dispara deve ser acarretada por qualquer

    sentena complexa da qual ela faa parte, tipo um enunciado, como:

    Os nossos gatos esto magros.

    Escala: gordinho> saudvel> magro> subnutrido

    Dada a relao escalar acima, ao optar pela palavra magro, o falante

    (presumidamente cooperando com o seu interlocutor) quer que entendamos que os gatos

    no esto saudveis. Atravs das mximas de quantidade e qualidade, isto indica que o

    sujeito que proferiu a sentena no tem justificativa para usar nenhuma das palavras

    acima (mais fortes) da escala, acreditando que essas so falsas ou no adequadas para

    descrever o real estado dos gatos. Assim, se magro, implica-se no saudvel, no

    gordinho. E, por acarretamento, se magro, ento subnutrido seria adequado. Contudo, a

    fora ilocucionria de subnutrido pode conotar algo extremamente mais

    intenso/dramtico pragmaticamente. Um falante da lngua portuguesa no iria inferir

    necessariamente que magro acarreta subnutrido, indo de encontro com a lei do autor. O

    acarretamento cancelvel neste caso. Ainda assim, a palavra magro pode ter sido

  • Adriana Quinelo da Silva

    47

    usada para no se comprometer com subnutrido em uma escala mais fraca, no

    cancelando o acarretamento.

    Como possvel notar, pragmaticamente interpretamos de uma forma distinta. A

    inteno comunicativa sempre maior, ou seja, a de no se comprometer com as

    palavras de escalas mais fortes. A semntica daria conta da interpretao do dito

    explicitamente, dando conta das relaes de significado lgico, apenas.

    Para abordarmos o problema exposto na seo 3, sobre a morfologia, na

    tentativa de explicar como as inferncias morfolgicas (morfossemnticas) estariam

    sendo geradas e interpretadas, consideraremos o mbito terico apresentado acima.

    Dissemos anteriormente que ao saber decompor uma palavra, segundo os

    morfemas contidos nela, pode-se depreender o significado (a semntica) dela, dado que

    a sua formao dependeu do significado dos morfemas e das regras de formao de

    palavras. Agora, dada a definio de implicatura escalar, observemos se possvel

    implicar (inferir) o significado intencional de um vocbulo.

    Segundo a teoria de Levinson, temos que construir uma escala para a relao da

    fora semntica entre as palavras da mesma classe gramatical. Assim, teramos a

    seguinte escala para a relao Feliz/Infeliz:

    Totalmente feliz>muito feliz>Feliz>pouco feliz>nada / no feliz = infeliz

    100% ______________________________________________ 0%

    No poderamos