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1 IMPLEMENTAÇÃO DE PROJETOS INTERSETORIAIS: O CASO DA POLÍTICA MUNICIPAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA DA CIDADE DE SÃO PAULO CANATO, Pamella 1 Eixo Temático: 03 - POLÍTICAS PÚBLICAS PARA INFÂNCIA E JUVENTUDE RESUMO O presente trabalho analisa os determinantes da implementação da intersetorialidade na Política Municipal de Primeira Infância da Cidade de São Paulo, iniciada em 2013, com a adesão ao programa federal Brasil Carinhoso. Essa abordagem justifica-se pelo fato de que a intersetorialidade, entendida aqui como interação entre distintos setores do governo, é defendida normativamente para responder a problemas complexos, sobretudo em políticas sociais. Contudo, análises sobre fatores que condicionam ou restringem sua implementação ainda são incipientes. Sendo assim, por meio de uma revisão bibliográfica e documental, exame de dados orçamentários e entrevistas com gestores envolvidos, o presente trabalho apresenta uma análise desses determinantes, cujos resultados foram organizados em três eixos: i) arranjo institucional formal, ou seja, aquilo que está preconizado em normas e regulamentações; ii) recursos envolvidos nos projetos (recursos orçamentários, humanos etc.); iii) e a dimensão relacional, destacando o papel das relações entre os atores envolvidos nessa política. Palavras-Chave: análise de políticas públicas, implementação, intersetorialidade, primeira infância. 1 Mestranda em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo - Escola de Artes, Ciência e Humanidades; bolsista FAPESP. E-mail: [email protected].

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IMPLEMENTAÇÃO DE PROJETOS INTERSETORIAIS: O CASO DA POLÍTICA

MUNICIPAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA DA CIDADE DE SÃO PAULO

CANATO, Pamella1

Eixo Temático: 03 - POLÍTICAS PÚBLICAS PARA INFÂNCIA E JUVENTUDE

RESUMO

O presente trabalho analisa os determinantes da implementação da intersetorialidade na

Política Municipal de Primeira Infância da Cidade de São Paulo, iniciada em 2013, com a

adesão ao programa federal Brasil Carinhoso. Essa abordagem justifica-se pelo fato de que a

intersetorialidade, entendida aqui como interação entre distintos setores do governo, é

defendida normativamente para responder a problemas complexos, sobretudo em políticas

sociais. Contudo, análises sobre fatores que condicionam ou restringem sua implementação

ainda são incipientes. Sendo assim, por meio de uma revisão bibliográfica e documental,

exame de dados orçamentários e entrevistas com gestores envolvidos, o presente trabalho

apresenta uma análise desses determinantes, cujos resultados foram organizados em três

eixos: i) arranjo institucional formal, ou seja, aquilo que está preconizado em normas e

regulamentações; ii) recursos envolvidos nos projetos (recursos orçamentários, humanos etc.);

iii) e a dimensão relacional, destacando o papel das relações entre os atores envolvidos nessa

política.

Palavras-Chave: análise de políticas públicas, implementação, intersetorialidade, primeira

infância.

1 Mestranda em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo - Escola de Artes, Ciência e Humanidades; bolsista FAPESP. E-mail: [email protected].

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1. INTRODUÇÃO

A definição de uma política pública pode ter relação com a forma que determinado

problema foi concebido. Embora a literatura já tenha enfatizado a relativa interdependência

dos fluxos de problemas e soluções (Kingdon, 2003), é comum a afirmação de que a

abordagem intersetorial surge na medida em que são identificadas questões complexas na

sociedade e que se faz necessária uma abordagem integral (Costa e Bronzo, 2012). Esse é o

caso das experiências e políticas para a primeira infância e especificamente da São Paulo

Carinhosa, que busca a articulação de diversos setores de política para garantir um

atendimento às crianças em sua totalidade.

A Política Municipal da Primeira Infância da Cidade de São Paulo, cujo nome fantasia

é São Paulo Carinhosa, surge a partir de inspiração na política nacional Brasil Carinhoso.

Segundo Campello (2016), quando o Brasil Sem Miséria foi lançado em 2011, um em cada

quatro brasileiros extremamente pobres era criança ou adolescente (até 14 anos), e apesar dos

avanços em indicadores sociais, as crianças de zero a seis anos constituíam, nessa época, a

faixa etária mais exposta à pobreza e com mais baixos níveis de acesso à educação e alto risco

de desnutrição2.

Sendo assim, em maio de 2012, foi lançada a ação Brasil Carinhoso, idealizada em

uma perspectiva de atenção integral para o desenvolvimento infantil, articulando renda,

educação e saúde. O foco são todas as crianças das famílias atendidas pelo Programa Bolsa

Família, logo, a ênfase recai principalmente nas pessoas em situação de vulnerabilidade

econômica (Didonet, 2016). O arranjo dessa ação envolveu principalmente os Ministérios do

Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), da Saúde (MS), o Ministério da

Educação (MEC) e sua implementação teria como atores centrais os estados e municípios

(Campello, 2016). Como coloca Didonet (2016), o programa utiliza as estruturas que já

existiam das áreas setoriais: creches e pré-escolas, postos de saúde e equipamentos da

assistência social.

Costa e Bronzo (2012), ao estudarem modelos intersetoriais de políticas de combate à

pobreza, afirmam que para se compreender adequadamente esse fenômeno, é necessário

pensar em “múltiplas conexões de vetores diversos de vulnerabilidade” que se dariam pela

faixa etária, território, condições de saúde, status social, incorporação adversa no mercado de

2 Entre 2004 e 2014 a taxa de extrema pobreza para crianças e 0 a 5 anos caiu de 13.9 para 5 pontos, e pobreza caiu de 36,5 para 13,4 pontos, contudo, ainda permanecem maiores em relação as outras faixas etárias que também tiveram reduções significativas nesse período (Campello, 2016).

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trabalho, etc. Sendo assim, na tentativa de superar essas condições, “políticas devem

responder ao conjunto de fatores que estão em sua base, atuando sobre elementos estruturais

que a perpetuam e a reproduzem” (Costa e Bronzo, 2012, p. 56).

Além disso, existem uma série de estudos e evidências científicas que informam a

importância da atenção integral à primeira infância3, fase em que ocorre o desenvolvimento

de estrutura e circuitos cerebrais e também a aquisição de capacidades fundamentais que serão

aprimoradas ao decorrer do crescimento do indivíduo, contribuindo para seu bem-estar social,

emocional e cognitivo (Marino, 2016).

Nesse contexto, foi institucionalizado em agosto de 2013, a São Paulo Carinhosa

(Decreto nº 54.278), coordenada por Ana Estela Haddad, primeira-dama da cidade de São

Paulo, com o objetivo de promover o desenvolvimento físico, motor, cognitivo, psicológico e

social das crianças com idade entre zero e seis anos. Essa política vem efetivando-se por meio

da articulação de principalmente educação, saúde e assistência social, e outras secretarias

municipais que compõem um Comitê Gestor, além de parcerias com o Conselho Municipal

dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), e organizações da sociedade civil

(OSCs) - constituindo assim um complexo arranjo para implementação de ações.

Como demonstrado nessa introdução, a perspectiva da intersetorialidade se justifica

normativamente por uma séria de aspectos; contudo, análises sobre fatores que condicionam

ou restringem sua implementação ainda são incipientes. Sendo assim, por meio de uma

revisão bibliográfica e documental, e entrevistas com gestores envolvidos, o presente trabalho

desenvolve uma análise organizada em três eixos: i) arranjo institucional formal, ou seja,

aquilo que está preconizado em normas e regulamentações; ii) recursos envolvidos nos

projetos (recursos orçamentários, humanos etc.); iii) e a dimensão relacional, destacando o

papel dos atores envolvidos nessa política.

2. DESENVOLVIMENTO

A intersetorialidade entrou na agenda pública e nos debates acadêmicos, sobretudo no

campo de políticas sociais, como possibilidade para enfrentar problemas complexos e

multidimensionais. Entretanto, para além de dizer como a intersetorialidade deveria ser, como

bem notado por Cunill-Grau (2005, 2014), é preciso problematizar sua dinâmica no âmbito da

3 Em 2016 foi lançado um documentário chamado o Começo da Vida, com direção de Estela Renner, que reúne depoimentos de especialistas sobre o tema. O filme foi realizado por meio de uma parceria entre organizações como Unicef e Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, o que enfatiza a agenda sobre primeira infância.

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gestão pública. Desse modo, a partir de um estudo empírico de um programa que se

autodenomina intersetorial, o presente trabalho pretende contribuir para essa problematização.

Vale ressaltar, que o objetivo desse artigo não é avaliar os resultados da política pública, e

sim, analisar seu processo, problematizando desafios.

Cunill-Grau (2014) pensa a ação intersetorial segundo a intensidade de interação entre

os setores envolvidos durante as fases de uma política pública. Na alta integração, todas as

etapas de uma política pública seriam compartilhadas, desde a formulação, tomada de decisão,

até a elaboração da proposta orçamentária e sua execução. Nesse caso, são produzidas

alterações nas estruturas setoriais ou, pelo menos, a criação de instâncias suprasetoriais para a

governança comum. Na baixa integração, a articulação só abarca uma fase do ciclo de

políticas, como um plano de ação ou ações de planejamento em conjunto. A elaboração do

orçamento e avaliação seguem separados e não ocorre alteração na estrutura setorial, salvo a

criação de alguma instância técnica multisetorial (Cunill-Grau, 2014).

Cabe aqui uma distinção conceitual entre intersetorialidade e transversalidade. Para

alguns autores, como Costa e Bronzo (2012), esses termos são tratados como sinônimos,

contudo, pontuaremos uma diferenciação, embora isso não signifique que não tenham

sentidos sobrepostos. No âmbito desse trabalho, seguindo definições mais próximas de Serra

(2005), transversalidade se refere a um tema que perpassa diversas áreas (Bichir, Oliveira e

Canato, 2015), seja a primeira infância, ou outros temas como igualdade de gênero e racial,

etc. Já intersetorialidade envolve a interação entre esses setores distintos, a qual pode ser

motivada por um tema transversal, ou não.

Em decorrência do próprio modo com o São Paulo Carinhosa teve início, o programa

se consolidou mais como um guarda-chuva de ações da Prefeitura para a primeira infância, do

que como um articulador de setores, no sentido de que não muitas ações são realizadas de

forma conjunta entre as áreas. Então, o São Paulo Carinhosa se torna uma marca que une o

que os setores seguem executando de forma apartada. Abaixo serão apontadas algumas

iniciativas que estão no escopo desse programa.

A primeira etapa de concretização do projeto, segundo Ana Estala Haddad (2016), foi

levantar em cada secretaria as ações já existentes para a faixa etária em questão, fazendo com

que cada setor se debruçasse sobre o tema, pensasse suas ações específicas e trouxessem

contribuições gerais. Além disso, foram analisados alguns dados sobre a primeira infância em

São Paulo: aproximadamente 900 mil crianças de zero a cinco anos vivem em São Paulo,

sendo cerca de 300 mil de 0 a 3 anos e 600 mil entre 4 e 5 anos (IBGE, 2010).

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Dado o tamanho e complexidade do município em questão, com base do Mapa

Territorial da Exclusão e Inclusão Social dos territórios da Cidade de São Paulo (MEIS)

(Sposati, 2002) foram selecionados alguns distritos que seriam prioritários para a

implementação do programa: Cidade Tiradentes; Guaianases, Itaim Paulista e Iguatemi

(Região Leste); Brasilândia (Região Norte); Grajaú (Região Sul); Sé (Região Centro); e Brás

(Região Sudeste).

Um dos marcos iniciais do São Paulo Carinhosa, concretizado a partir da Secretaria

Municipal de Saúde (SMS), foram as visitas domiciliares, que segundo a coordenação do

programa, baseavam-se na importância de monitorar o desenvolvimento infantil e apoiar as

famílias na ampliação dos cuidados por meio da formação de vínculos. Para tal, foram

capacitados Agentes Comunitários de Saúde (ACS), enfermeiros da equipe da Estratégia

Saúde da Família e profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Alguns

critérios foram estabelecidos para a seleção de famílias que receberiam as visitas (famílias em

situação de extrema pobreza cadastradas no Bolsa Família, recém-nascidos prematuros ou de

baixo peso; crianças com deficiência; asfixia perinatal grave; depressão maternal; famílias

com situações de violência; entre outros) totalizando um público alvo de 200 mil crianças,

envolvendo 88 Unidades Básicas de Saúde – UBSs e 384 Equipes de Saúde da Família

(HADDAD, 2016).

No caso da educação, um diagnóstico inicial apontava um grande déficit de vagas em

Centros de Educação Infantil (CEI) - equivalente a creche - e Escolas Municipais de

Educação Infantil (EMEIs). Segundo a Prefeitura entre o início da gestão até meados de 2016,

foram expandidas em mais de 94 mil matriculas na Educação Infantil (EOL – São Paulo,

2016). Do total de matrículas garantidas na Educação Infantil, 77.4864 são destinadas ao

atendimento em creche e 16.555 ao atendimento em pré-escola (Programa de Metas da

Cidade de São Paulo, 2013-2016).

Outras intervenções da São Paulo Carinhosa resultaram em normativos como a

Portaria SME/SMADS que institui nova regra priorizando na fila de creches as crianças em

situação de maior vulnerabilidade, tendo como referência do Programa Bolsa-Família. Essa já

era uma diretriz federal desde 2012, porém ainda não tinha sido implementada no município.

Outro normativo relevante, dada a difícil situação orçamentária da Prefeitura, foi o Edital

2014 do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (FUMCAD), que

permitiu a utilização de recursos do fundo para a construção de CEIs.

4 74.932 vagas são da rede conveniada e 2.554 da rede direta (Programa de Metas da Cidade de São Paulo, 2013-2016)

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Além disso, em uma parceria entre saúde e educação, o Programa Saúde na Escola

(PSE), foi ampliado para a educação infantil. O PSE se constitui em uma articulação entre

escolas e rede básica de saúde, desenvolvendo ações como avaliação antropométrica, de saúde

bucal, oftalmológica e verificação de situação vacinal. Também foram criados e

implementados indicadores de qualidade da educação Infantil.

Essas são algumas das principais ações incluídas no escopo do São Paulo Carinhosa, e

existem outras intervenções mais pontuais, como por exemplo a “Viradinha”, uma

programação cultural para crianças, que envolveu a Secretaria Municipal de Cultura e OSCs,

e outras ações ligadas ao território como no caso de um projeto de intervenções em cortiços

no Glicério5. Inclusive, uma evidência de que esse programa é uma marca que perpassa

muitas ações, no Programa de Meta 2013-2016 existe o “selo” São Paulo Carinhosa que está

em 20 das 223 metas do programa, nem todas diretamente relacionadas à primeira infância.

2.1. Arranjo Institucional Formal

Segundo Pires e Gomide (2014) a partir de cada política se arranjam organizações

(com seus respectivos recursos e capacidades), mecanismos de coordenação, processos e

espaços de negociação e decisão entre atores. Para se compreender uma política é importante

analisar seu arranjo institucional, que na definição dos autores é “entendido como o conjunto

de regras, mecanismos e processos que definem a forma particular como se coordenam atores

e interesses na implementação de uma política pública específica” (Pires e Gomide, 2014, p.

13).

O programa em questão conta com uma equipe de coordenação e um Comitê Gestor,

integrado por 14 secretarias municipais6, instituído pelo decreto nº 54.278 de 2013. A

importância da criação de instâncias suprasetoriais para coordenação é ressaltada pela

literatura (Cunill-Grau, 2014). Contudo, Bichir (2015) enfatiza, a partir de pesquisas

empíricas, que em alguns casos arranjos informais de coordenação podem ser mais efetivos

do que espaços institucionalizados. A efetividade de instâncias de coordenação depende, entre

outros fatores, do empoderamento dos atores que participam das reuniões. 5 Bairro da região central de São Paulo, situado na Subprefeitura da Sé, distrito Liberdade. 6 I - Secretaria do Governo Municipal; II - Secretaria Municipal de Educação; III - Secretaria Municipal da Saúde; IV - Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social; V - Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania; VI - Secretaria Municipal de Cultura; VII - Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação; VIII - Secretaria Municipal de Segurança Urbana; IX - Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres; X - Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial; XI - Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida; XII – Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente; XIII – Secretaria Municipal de Serviços; XIV – Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras.

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Nesse caso, o Comitê Gestor tem sido mais um espaço de compartilhamento de

informações do que para tomar decisões, as quais são tomadas no dia a dia da implementação

do programa.

Para além do Comitê, não se pode afirmar que o programa em questão conta com um

arranjo próprio de implementação, pois as ações são implementadas pelas secretarias, ou seja,

deveriam fazer parte do arranjo e da rotina das burocracias setoriais. Contudo, seria necessário

um exame mais aprofundado para verificar se de fato isso tem ocorrido e com qual

intensidade.

2.2. Recursos humanos e orçamentários

A enxuta equipe de coordenação da São Paulo Carinhosa (cinco membros em 2016),

fica ligada ao Gabinete do Prefeito e à Secretaria do Governo Municipal (SGM), e possui

apenas uma dotação de projeto específica que aparece na Lei de Orçamentária Anual (LOA)

como Projetos Especiais de Articulação da Primeira Infância. Esses recursos são utilizados

somente para necessidades pontuais, sendo que na LOA - 2016, foram executados apenas 200

mil reais nesse projeto. A coordenação afirmou que utiliza esse orçamento principalmente

para a confecção de materiais de divulgação e realização eventos.

Todo o restante do orçamento que está ligado de alguma forma às ações da São Paulo

Carinhosa é executado setorialmente. Isso significa que os recursos para a primeira infância

concorrem com todas as outras ações das secretarias, exigindo um constante processo de

negociação e articulação entre a coordenação do programa e os gestores de cada setor. Em

relação aos recursos humanos, para além da equipe de coordenação, não é possível afirmar

quantas pessoas estão envolvidas, justamente por se tratar de um projeto que perpassa muitas

áreas e equipes.

2.3. Atores envolvidos nos processos

Processos de coordenação entre setores de governo apresentam uma clara dimensão

relacional. Discutir a interação entre setores passa por pensar nas relações entre os atores que

representam essas instituições e qual sua influência para a efetivação da intersetorialidade.

Pode-se afirmar que o São Paulo Carinhosa, envolve uma ampla rede de atores, que

vai desde o alto escalão até os burocratas implementadores. O sentido de rede empregado

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aqui, é metafórico7 (Marques, 2000), pois não foi feito um mapeamento sistemático dessas

relações, contudo, alguns apontamentos, podem inclusive incentivar futuras pesquisas que

utilizem Análise de Redes Sociais (ARS) enquanto método.

Em 2013, com a mudança na gestão da cidade de São Paulo, o governo municipal

passou a estar politicamente alinhado com o governo federal. Sendo assim, a partir desse ano

o munícipio aderiu a uma série de políticas nacionais, como o caso da própria São Paulo

Carinhosa, entre outras8. Ademais, atores importantes que estavam no governo federal vieram

para o munícipio de São Paulo. O prefeito que tomou posse, Fernando Haddad, foi ministro

da educação até janeiro de 2012, durante o início da formulação do Brasil Carinhoso. Além

disso, Alexandre Padilha, ministro da saúde até janeiro de 2014, que também participou dessa

formulação, se tornou secretário municipal em 2015. Seria interessante analisar como a

circulação desses e outros atores entre o governo federal e o município influenciou

diretamente na implementação dessa política ou pelo menos no plano da difusão de ideias.

Outra questão no âmbito das relações apontada pela coordenação do programa, foi que

ao longo da implementação ocorreu a troca de alguns secretários e gestores, o que acarretou

em dificuldades para a continuidade do programa. Muitas vezes as informações estavam

centradas em grupos que ocupavam cargos comissionados e com a mudança dessas equipes

que já tinha relações com o programa, foi necessário reiniciar processos de negociação e

convencimento.

Além disso, outro desafio entre os atores também apontado foi a disputa de autoria das

ações do programa. O envolvimento de diversos atores, principalmente os de alto escalão, fez

com que houvesse uma certa competição para reivindicar a autoria e responsabilidade de

algumas ações. Esse é um desafio constante em políticas intersetoriais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como todo processo de implementação, o do São Paulo Carinhosa não foi isento de

disputas e decisões. Segundo a própria coordenação do programa, decisões foram tomadas a

todo momento, e o desenho inicial do programa não estava clara, corroborando com o que a

7 Marques (2000) aponta que existem três possiblidades distintas de utilizar o conceito de redes no campo das ciências sociais. O primeiro seria o uso do termo como metáfora, o qual é mais antigo e disseminado e apresenta uma noção difusa da existência de uma conexão entre os indivíduos. A segunda forma de utilização apresenta uma perspectiva normativa, ou seja, propõe que as redes são um modo adequado de configurar entidades e organizações como forma de alcançar determinados objetivos (MARQUES, 2000). 8 Outros exemplos são a adesão ao Programa Federal Crack é Possível Vencer, à Política Nacional de Participação, etc.

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literatura já demonstrou, que as fases de formulação e implementação de uma política são

sobrepostas, e que é durante a implementação que muitas escolhas são tomadas (Hill, 2009).

A figura da primeira dama foi central para que essa política entrasse na agenda,

desempenhando um papel de empreendedora9 nesse caso (Kingdon, 2003). Contudo, isso faz

com que a ação seja mais suscetível a descontinuidades com uma possível troca de gestão,

ainda mais porque as práticas intersetoriais estão pouco institucionalizadas.

A ação se desenvolveu muito mais de forma transversal do que intersetorial, ou seja, o

papel da Ana Estela Haddad foi despertar a atenção dos gestores, em suas respectivas áreas,

para o tema da infância. A articulação intersetorial ocorreu apenas em momentos pontuais e

em ações que envolviam mais de uma secretaria, como no caso do Programa Saúde na Escola,

que articulou SMS e SME. Para além da criação do Comitê Gestor e de uma coordenadoria

específica, não houve nenhuma alteração institucional para efetivar a intersetorialidade, nem

mesmo no orçamento municipal.

Por fim, ficou evidente uma dificuldade em comunicar a experiência. Por se tratar de

muitas ações, articuladas de formas diversas, é difícil definir um discurso do que é a São

Paulo Carinhosa, qual sua influência nas ações das secretarias setoriais e como isso afeta o

tratamento às crianças nos diferentes serviços públicos.

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9 Segundo Kingdon (2003), empreendedores de políticas públicas são indivíduos, dentro ou fora do governo, que investem recursos em certas ideias e exercem atuação relevante na convergência dos fluxos de problemas, soluções e da política, em momentos críticos, gerando mudanças na agenda.

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