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COLETÂNEA 03

CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES,

DESAFIOS E CONQUISTAS

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2013 Curitiba

Coordenadores

ViViane Coelho de SélloS-Knoerr

eloete Camilli de oliVeira

Organizadores

Sandro manSur Gibran

JoSé mario tafuri

COLETÂNEA 03

CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES,

DESAFIOS E CONQUISTAS

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Editora Responsável: Verônica GottgtroyProdução Editorial: Editora Clássica Capa: Editora Clássica

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-KnoerrVladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Conselho Editorial

C744Séllos Knoerr, Viviane Coelho – Coordenadora.Oliveira, Eloete Camilli – Coordenadora. Concretização constitucional : reflexões, desaviose conquistas : coletânea 3.Título independente.Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.

ISBN 978-85-99651-72-8

1. Direito.I. Título.

CDD 342

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

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Apresentação

“Feliz aquele que transfere o que sabe, e aprende o que ensina”Cora Coralina

O Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, tem uma história e tra-dição de ensino superior em nossa cidade e estado, que já conta com 63 anos, mantendo o compromisso de oferecer excelência e qualidade, com a mesma dedicação e profissionalismo que sempre lhe caracterizaram, e que fez com que esta Instituição se tornasse uma referência na área da educação.

A sua visão de ensino vai além das salas de aulas, por isto que se orgu-lha da missão sobejamente conhecida através desse tempo, que é: “Educar, para formar pessoas capacitadas e comprometidas com o desenvolvimento social”.

Desenvolver, crescer, progredir, evoluir, são expressões e formas de como podemos responder as expectativas da sociedade. É por isto que criamos o UNICURITIBA PESQUISANDO DIREITO, que são coletâneas resultantes de um dos projetos de integração entre a Coordenação do Curso de Graduação em Direito, a Supervisão do Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Univer-sitário Curitiba-UNICURITIBA e o nosso Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, com o objetivo de incentivar e divulgar as pesquisas desenvolvidas pelos alunos, sob a orientação dos professores, para o fomento da pesquisa e o comprometimento com a ciência do Direito.

Danilo ViannaReitor

Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

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Prefaciar os cinco livros da coleção “UNICURITIBA Pensando Direito” é algo que muito me orgulha. Obras que versam sobre justiça e cidadania, sustentabilidade social, econômica e ambiental em favor dos direitos humanos, concretização constitucional, a dignidade humana e organização social, e os novos direitos nas atividades empresariais no Estado solidário.

Primeiro porque o Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA faz parte de nossa história acadêmica, sendo que hoje atuo como professora visitante em seu Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania.

Segundo, porque se trata de uma das mais renomadas escolas jurídicas do Brasil, o que se comprova pela qualidade docente, discente e pelos profissionais que forma.

A tradição que se moderniza com o incentivo à pesquisa e à publicação acadêmica na forma eletrônica demonstra o interesse da Instituição para com o desenvolvimento social, educacional e sustentável.

O acesso do material que ora se publica é amplo, pois beneficia os estudantes não apenas brasileiros, mas de todos os países de língua portuguesa, como o caso dos hoje meus conterrâneos do continente europeu, mais especificamente em Terras Lusitanas.

A interação entre graduandos, mestrandos e professores faz com que estes trabalhos representem extratos reais da realidade jurídica brasileira. As inquietudes dos jovens ligadas à experiência e ao conhecimento dos professores resultam nesta coleção, que vem a enriquecer ainda mais o cenário acadêmico brasileiro.

Os assuntos apresentados nos trabalhos possuem profundidade temática e evidenciam a responsabilidade social que fundamenta a educação jurídica do Centro Universitário Curitiba.

Com muita honra, desejo a todos excelente leitura.

ElizabEth acciolyDoutora em Direito pela USP. Graduada em Direito pela Faculdade

de Direito de Curitiba, Diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Atualmente é Professora da

Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa, Professora colaboradora do curso de Estudos Europeus da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,

Professora visitante da Universidade Católica Portuguesa.

prefácio

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Sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 05

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09

O AVISO-PRÉVIO NO DIREITO DO TRABALHO E SUAS ALTERAÇÕESAna Carolina P. C. Montanha Teixeira e Erika Paula de Campos ... 12

A CRISE DA MORADIA NO BRASIL À LUZ DO SISTEMA CAPITALISTAAndré Chmyz e José Leandro Farias Benitez ........................................... 32

ANÁLISE DAS INELEGIBILIDADES NO TEXTO CONSTITUCIONALBrunna Helouise Marin e Luiz Gustavo de Andrade ........................... 53

DIREITO À SAÚDE E OBESIDADE INFANTIL NO BRASILEmerson Hideki Handa e Maria da Glória Colucci ............................. 75

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANAGabriel Batista dos Santos e Regina Maria Bueno Bacellar ........... 100

O REGISTRO CIVIL NA BIPARENTALIDADE HOMOAFETIVAGiana de Marco V. da Silva e Camila Gil M. Bresolin Bressanelli . 118

AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS NO BRASIL E A CRIAÇÃO DAS EMPRESAS INDIVIDUAIS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA(EIRELI)Lais Lima Ramalho Casagrande e Eloete Camilli Oliveira .............. 139

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O TERCEIRO SETOR NO BRASIL: O MODELOS DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OS) E DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO (OScips)Luciana Borges Mânica e Ana Luiza Chalusnhak ................................ 161

A INELEGIBILIDADE DECORRENTE DE DECISÃO PROFERIDA POR ÓRGÃO COLEGIADO E AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LC 135/2010Maria Augusta Francisco Kuba e Luiz Gustavo de Andrade ............. 181

RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONA-LIDADE JURÍDICA: UMA RELEITURA DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE E ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRAAriosto Teixeira Neto e Emanuel Fernando Castelli Ribas ............ 201

ACESSO E CRISE DA JUSTIÇA: DEMORA JUDICIAL E ANÁLISE DOS PROCE-DIMENTOS ADMINISTRATIVOS EXTRAJUDICIAIS EM CARTÓRIOS COMO MEIO ALTERNATIVO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOPasqualino Lamorte e Fernando Gustavo Knoerr ................................ 226

CONTRATAÇÃO DE ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR X CONTRATAÇÃO DE EMPRESAS ECOSSOCIOAMBIENTALMENTE RESPONSÁVEIS: POSSIBI-LIDADES, PARÂMETROS E LIMITES PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DA LEI Nº 12.349/2010Daniel Ferreira ................................................................................................. 240

INSTITUTO DA RENÚNCIA NO DIREITO TRIBUTÁRIOmarCella GomeS de oliVeira e demetriuS niChele maCei .......................... 269

A REPRODUÇÃO ASSISTIDA COMO DIREITO FUNDAMENTAL E SUA PRESTAÇÃO PELO ESTADOCyntia brandalize fendriCh e ViViane Coêlho de SélloS Knoerr ........... 295

TÓPICOS CONCLUSIVOS ...................................................................................... 312

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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS

INTRODUÇÃO

A presente coletânea analisa o processo da concretização consti-tucional, seus desafios e conquistas. Este substrato temático, de evidente relevância social, é objeto de estudo dos autores que se propõem a deba-ter e refletir acerca da atual conjuntura social e jurídica brasileira, a partir da interpretação dos objetivos previstos na Constituição.

Reúnem-se nesta obra professores e alunos, os quais em orien-tação começam a apresentar os resultados de suas investigações. O tra-balho conjunto busca, por meio dos preceitos constitucionais, estudar as temáticas propostas.

O primeiro artigo, de autoria de Ana Carolina Pinto Cordeiro Montanha Teixeira e Erika Paula de Campos trata do aviso prévio propor-cional, as divergências trazidas pela lei instituidora e as soluções apontadas para os respectivos problemas levantados trazendo uma valiosa colabora-ção para a interpretação das lacunas deixadas pela Lei nº 12.506/2011.

A crise da moradia no Brasil à luz do sistema capitalista é objeto de estudo de André Chmyz e José Leandro Farias Benitez, a partir do caso ocorrido em São José dos Campos, conhecido como Pinheirinho, no qual os autores analisam a crise da moradia na realidade brasileira. Com apoio nos postulados de Marx e Engels, buscam esclarecer a origem da crise da moradia, realizando um breve apanhado histórico.

Os autores Luis Gustavo de Andrade e Brunna Helouise Marin analisam as inelegibilidades no texto constitucional, considerando que pelo voto o cidadão escolhe aquele que, em nome de muitos atuará no processo legislativo e na escolha de politicas públicas, a Constituição estabelece hipóteses de restrição, que impedem determinados cidadãos a postularem mandato eletivo. Os autores, neste artigo se dedicaram ao exame das inelegibilidades relativas, em razão da função, do parentes-co e da condição militar.

O graduando Emerson Hideki Handa e a professora Maria da Glória Co-lucci estudam o direito à saúde e obesidade infantil no Brasil, constata a ne-cessidade de politicas públicas na área de saúde, baseadas na educação para a eficácia das medidas tomadas para minimizar a obesidade infantil, proporcio-nando-lhes acesso à informação em relação à alimentação, nutrição e prática de exercícios físicos.

No artigo “A função social da propriedade urbana”, Gabriel Batista dos Santos e a professora Regina Maria Bueno Bacellar demonstram a evolução do princípio da função social da propriedade, até atingir o estágio de princípio constitucional, assumindo contornos de aplicabilidade imediata, servindo de parâmetro para a elaboração das demais normas.

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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS

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Giana de Marco Vianna da Silva e a professora Camila Gil Marquez Breso-lin Bressanelli analisam o registro civil na biparentalidade homoafetiva, e para tanto tratam da possibilidade de registro de um recém-nascido com o nome de dois pais ou de duas mães, sem a obrigatoriedade de fazer constar a parte me-ramente doadora de material genético ou provedora da barriga de aluguel como pai ou mãe biológicos, desde que conhecidos.

As Sociedades Unipessoais no Brasil e a criação das Empresas In-dividuais de Responsabilidade Limitada (EIRELI) são estudadas neste artigo, escrito por Laís Lima Ramalho Casagrande, orientada pela Profa. Dra.Eloete Camilli Oliveira, que aborda a solução dada pelo direito brasileiro, para limitar a responsabilidade das pessoas que pretendiam exercer a atividade empresá-ria em seu próprio nome, sem utilizar do subterfúgio da sociedade limitada, com o chamado “sócio de palha”. O artigo contempla uma análise da Lei nº 12.441/2011 e breves referências as Instruções Normativas do Departamento Nacional de Registro de Comércio sobre a matéria.

O artigo “O Terceiro Setor no Brasil: o modelo das Organizações So-ciais (Os) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OS-CIPS)”, de Luciana Borges Mânica, em coautoria com a professora Ana Luiza Chalusnhak, analisa a redefinição da dicotomia clássica público-privado, anali-sando as relações entre o Estado e a sociedade civil a partir da criação do setor público não estatal, decorrente do princípio da subsidiariedade.

A inelegibilidade decorrente de decisão proferida por órgão colegiado e as inconstitucionalidades da LC 135/2010 são analisadas pela graduanda Ma-ria Augusta Francisco Kuba e pelo professor Luiz Gustavo de Andrade, através de uma análise comparativa da LC 135/2010 com a anterior – LC 64/1990, discutindo com embasamento em julgados e posicionamentos doutrinários, a irretroatividade ou aplicação imediata da nova lei das inelegibilidades.

Em seu artigo, Ariosto Teixeira Neto e Emanuel Fernando Castelli Ribas analisam a responsabilidade dos sócios e desconsideração da personalidade jurídica, através uma releitura diante da pós-modernidade e análise da legislação brasileira.

Versando sobre o acesso à justiça, bem como a ideia de jurisdição e a crise do poder judiciário como uma forma de repensar uma busca alternativa de solução de conflitos, Pasqualino Lamorte e Fernando Gustavo Knoerr, estudam a questão do acesso e crise à justiça nos últimos anos, por meio de uma análise acerca dos instrumentos extrajudiciais de solução de conflitos nas relações jurí-dicas, em especial os procedimentos administrativos em cartórios.

Abordando a responsabilidade dos sócios e desconsideração da per-sonalidade jurídica, Ariosto Teixeira Neto e Emanuel Fernando Castelli Ribas demonstram esse assunto por uma releitura diante da pós-modernidade e da análise da legislação brasileira.

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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS

Daniel Ferreira demonstra em seu trabalho a necessidade de rever alguns “dogmas”, especialmente para refletir acerca do (des)acerto de certas posições e conclusões tomadas ao longo do tempo em relação aos pactos fir-mados entre as entidades do Terceiro Setor e a Administração Pública, com ou sem prévia licitação.

Em “Instituto da renúncia no tributário”, Marcella Gomes de Oliveira e Demetrius Nichele Macei demonstram a importância da discussão dos efeitos práticos do parcelamento no âmbito tributário, pois tal figura tem como prerro-gativa a confissão da dívida, de forma que causa a renúncia de sua rediscussão, causando para o sujeito passivo prejuízos se demonstrado que a dívida não era devida ou inexistente na sua origem inconstitucional.

No último artigo desta coletânea, Cyntia Brandalize Fendrich e Vivia-ne Coêlho de Séllos Knoerr analisam a reprodução assistida como um direito fundamental e sua via de prestação pelo Estado através da implementação do serviço público de reprodução assistida.

A presente obra é resultado das pesquisas desenvolvidas pelos grupos de pesquisa, alunos e professores do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, na busca da formação de novos pensadores do direito e de sua função social.

Desejamos a todos uma boa leitura e reflexão acerca dos temas abor-dados neste trabalho, vista a profundidade dos textos que aqui apresentamos.

ViVianE coêlho DE SélloS-KnoErr

Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Pro-cessual Civil pela PUCCAMP. Atualmente é coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Líder do grupo de pesquisa

“Cidadania Empresarial”, registrado no CNPq.

EloEtE camilli oliVEira

Doutora pela UFPR. Mestre pela PUC/PR. Professora adjunta nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE

- UNICURITIBA, Supervisora do setor de registro dos Trabalhos de Conclusão de Curso- UNICURITIBA e professor titular - UNICURITIBA.

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O AVISO-PRÉVIO NO DIREITO DO TRABALHO E SUAS ALTERAÇÕES

THE PRIOR NOTICE IN LABOR LAW AND ITS AMENDMENTS

ana carolina Pinto corDEiro montanha tEixEira

Acadêmica de Direito no Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA

EriKa Paula DE camPoS

Formada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba em 1990. Possui mestrado (2000) e doutorado (2005), em Direito, na área de relações sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora e orientadora na graduação e pós-graduação de Direito do Trabalho no Centro Universitário Curitiba e na pós-gra-duação na Pontifícia Universidade Católica de Curitiba/PR. Professora convidada de várias instituições de ensino. Advogada sócia do escri-tório Campos e Advogados Associados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho e Civil.

SUMÁRIO: Resumo. Abstract. 1 Introdução. 2 Aviso-prévio. 3 Lei 12.506/2011. 4 Con-siderações finais. Referências.

RESUMO

O presente artigo objetiva demonstrar as mudanças ocorridas no insti-tuto do aviso-prévio proporcional, que foi regulamentado pela Lei 12.506/2011, publicada em 13 de outubro de 2011. Pretende-se demonstrar o surgimento de tal instituto, bem como a sua aplicação antes da mencionada Lei, e agora, de-pois de um ano de sua publicação.

Suscitam-se as divergências trazidas pela nova legislação, bem como se apresentam soluções para os problemas aqui levantados.

Gize-se que a Lei em tela é de extrema simplicidade, tratando-se de um artigo que conta com um parágrafo único. No entanto, trata-se de um estudo complexo, tendo em vista que as dúvidas trazidas com ela são inúmeras já que a legislação que rege o tema aqui tratado é recente, e que o aviso-prévio está pre-sente em todas as relações de emprego regidas por um contrato de trabalho por tempo indeterminado, e as lacunas deixadas por esta Lei devem ser preenchidas para que inexistam dúvidas na hora da rescisão contratual.

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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS

Palavras-chave: aviso-prévio proporcional, Lei 12.506/2011, divergências.

ABSTRACT

This study intends to demonstrate the changes that occured on the proportional prior notice, with the incoming of the Law 12.506/2011, publi-shed on the 13th october 2011. It intends to demonstrate the emergence of this institute, as its aplication before the mentioned Law, and now, a year after its publicashion.

The contrarieties that came with the new legislation are pointed out, as well as presenting solutions to problems here presented.

The Law 12.506/2011 is very simple, as it has only an article. Howe-ver, it is a very complex study, considering that the doubts that the Law brought are numerous and the legislation is recent, apparently insuficient, and the prior notice is present in every labour contract for undetermined time.

Keywords: proportional prior notice, Law 12.506/2011, contrariety.

1 INTRODUÇÃO

O aviso-prévio é um instituto de extrema importância nas relações de trabalho pautadas em um contrato de trabalho por tempo indeterminado, tendo em vista que,

a partir desse aviso, a outra parte terá condições de readequar o seu contingente e contratar outro funcionário, no caso do empregador, ou então procurar um novo emprego, no caso do empregado.

O aviso-prévio apareceu pela primeira vez no Direito do Trabalho com a Lei 62/1935. De acordo com o art. 6º do diploma citado, a aviso-prévio era devido somente pelo obreiro, estipulando o prazo mínimo de aviso de 30 (trinta) dias, sob pena de ter descontado um mês de seu salário. Ainda, o em-pregador deveria fornecer uma declaração por escrito ao empregado de que está ciente do prazo de aviso-prévio. Assim, percebemos que, inicialmente, o aviso--prévio era um ato unilateral do obreiro.

Com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, o dever de pré-avisar a outra parte do término do contrato de trabalho passou a ser recípro-co, ou seja, passou a ser obrigação tanto do empregado quanto do empregador.

Na Constituição da República, o aviso-prévio tem a sua previsão no art. 7º, XXI, estando no rol dos direitos básicos dos trabalhadores. No entanto, o inciso mencionado necessitava de lei complementar que dispusesse sobre o aviso-prévio proporcional, já que ele não é auto-aplicável.

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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS

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Dessa forma, foi para regulamentar a Constituição Federal e para dar efetividade a ela que houve a publicação, em 13 de outubro de 2011, da Lei 12.506/2011, que dispõe sobre o aviso-prévio proporcional, tema deste artigo. Frise-se que o aviso-prévio proporcional não pôde ser aplicado por 23 (vinte e três) anos em virtude da falta de lei que regulamentasse o tema em voga.

A Lei 12.506/2011, muito aguardada por diversas classes de trabalha-dores, que inclusive tratavam do aviso-prévio proporcional em sede de norma coletiva, é bastante concisa, contando apenas com 2 (dois) artigos, sendo que o art. 2º apenas declara que a lei entra em vigor na data de sua publicação.

No entanto, a concisão da lei não pode ser confundida com a sua sim-plicidade, já que ela deixou de tratar de vários pontos polêmicos e de extrema importância para a sua aplicação, que deverão ser pacificados pela doutrina e pela jurisprudência.

Dentre os pontos polêmicos que a Lei 12.506/2011 deixou de tratar temos: a quem se aplicam as novas regras, somente ao empregado ou ao em-pregador também? Os efeitos da lei podem retroagir atingindo os contratos que tiveram seu termo antes de sua publicação? Os dias que devem ser acrescidos devem o ser a partir do primeiro ano de labor ou somente a partir do segundo ano? O prazo para a procura de um novo emprego, disposto no art. 488 da CLT, deve ser mantido ou também deve obedecer a uma proporcionalidade? Enfim, são questões que surgiram com o advento da nova Lei que regulamenta o aviso--prévio proporcional.

Gize-se que o Ministério do Trabalho e Emprego precisou editar um memorando circular para esclarecer os principais pontos polêmicos da Lei. Tal memorando circular foi substituído 7 (sete) meses depois por uma nota técnica que trazia novos entendimentos sobre as questões suscitadas no documento anterior.

2 AVISO-PRÉVIO

O aviso-prévio teve origem nas Corporações de Ofício, em que houve a criação do Direito Comercial por meio dos costumes, sendo assim direito consuetudinário.

No âmbito do Direito do Trabalho, o aviso-prévio surge com a lei 62 de 1935, em seu art. 6º.

Inicialmente, o aviso-prévio era devido somente pelo empregado que desejava afastar-se do emprego, sendo assim um ato unilateral do obrei-ro. A mesma lei supramencionada, em seu art. 7º, ainda impedia o desli-gamento do emprego caso houvesse termo estipulado para o término do contrato de trabalho.

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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS

Com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, o dever de conceder o aviso-prévio passou a ser recíproco. Dessa forma, tanto empregado quanto empregador devem comunicar a sua vontade de rescindir o contrato de trabalho por tempo indeterminado.

A Lei 12.506 de 2011, legislação mais recente acerca do tema em voga, veio para regulamentar o aviso-prévio, como prevê a Constituição Fede-ral de 1988 em seu art. 7º, XXI.

Segundo Barros (2009, p. 956), “O aviso prévio pode ser conceituado como a comunicação que uma parte faz a outra, avisando-lhe que pretende pro-ceder à dissolução do contrato de trabalho por prazo indeterminado.”

Como dito anteriormente, o aviso-prévio tem caráter bilateral, poden-do ser comunicado tanto pelo empregado quanto pelo empregador, dependen-do, assim, de quem tomou a iniciativa de romper o contrato de trabalho.

O aviso-prévio tem o intuito de preparar as partes no caso de rescisão do contrato por tempo indeterminado.

No caso do empregador, os 30 (trinta) dias, no mínimo, de aviso-prévio do empregado servirão para que o posto não fique vago enquanto não surge outro tra-balhador, ou ainda, caso haja outro obreiro na função, é mister que o empregado que pediu demissão passe os conhecimentos adquiridos ao longo dos anos para aquele que ficará em seu lugar. Dessa forma, não haverá decréscimo na produção do empregador.

Já no caso do empregado, o período do aviso-prévio é de relevante im-portância para que ele procure um novo emprego enquanto cumpre o aviso-prévio no antigo empregador, já que o seu trabalho, em tese, é o seu único meio de subsis-tência. Para esse fim, é assegurada ao trabalhador uma dispensa de seu emprego.

O artigo 488, Consolidação das Leis do Trabalho, garante a dispensa do empregado urbano para a procura de um novo emprego, podendo ser por 7 (sete) dias corridos ou pode ter redução diária de tempo de serviço por 2 (duas) horas de redução diária de tempo de serviço, podendo o empregado escolher uma dessas opções.

O aviso-prévio ainda é passível de nulidade caso não seja dado ao empregado a opção da dispensa, sendo devida uma indenização, corresponden-te ao salário do obreiro, já que a finalidade primordial do aviso-prévio não foi atingida, qual seja a procura de um novo emprego.

Ainda, importante destacar que o ônus da prova quanto à fruição da dis-pensa é do empregador, nos moldes do artigo 333, II, Código de Processo Civil.

Portanto, é direito do empregado a dispensa para a procura de um novo emprego, podendo acarretar, além da nulidade do aviso-prévio, o paga-mento de uma indenização a ele.

Em se tratando de empregador rural, segundo o art. 15, Lei 5.889/1973, a ele é garantida a dispensa de 1 (um) dia por semana para a pro-cura de um novo emprego.

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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS

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Nesse caso, a dispensa se dá somente dessa única forma, tendo em vista que, geralmente, esse trabalhador labora em locais distantes, que neces-sitam de muito tempo para sua locomoção. Assim, não seria lógico que o tra-balhador desfrute de redução da sua jornada por 2 (duas) horas diárias se ele necessita desse tempo para chegar até um outro município ou até mesmo outra propriedade rural, dependendo do lugar ou da extensão de terra onde ele labora.

Assim, tanto nos casos de trabalhadores rurais e urbanos, é devida a redução de jornada para a procura de um novo emprego, sendo totalmente vedada a substituição da jornada de trabalho pelo pagamento das horas corres-pondentes, sob pena de nulidade do aviso-prévio. Nesse sentido a Súmula 230 do Tribunal Superior do Trabalho.

Importante salientar que as dispensas mencionadas somente são devi-das caso o empregador dispense o empregado, nunca quando o empregado pede demissão, pois parte-se do princípio que, se o empregado quer sair do emprego, é porque ele já tem outra proposta de emprego em vista.

O aviso-prévio é um instituto típico dos contratos de trabalho por tempo indeterminado, não sendo devido em caso de contrato por tempo deter-minado, nem nos contratos de experiência, visto que, em ambos os casos, seu término está previamente previsto.

No entanto, nos contratos a termo com cláusula assecuratória do di-reito recíproco de antecipação do término contratual tal instituto é devido, visto que as partes libertam-se da ideia de vínculo temporário, e consequentemente libertam-se das indenizações previstas nos artigos 479 e 480, da Consolidação das Leis do Trabalho.

Nesse sentido, ensina Delgado (2011, p. 1.021) “se acionada esta cláusula especial e expressa, a terminação contratual passará a reger-se pelas regras próprias aos contratos por tempo indeterminado, com dação de aviso--prévio e suas consequências jurídicas (art. 481, CLT).”

Vale ressaltar o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, em sua Súmula nº 163, que afirma que é devido o aviso-prévio quando há a termi-nação prematura do contrato de experiência que contiver cláusula assecuratória do direito recíproco de rescisão.

Nos casos de rescisão indireta, que é a ruptura por ato culposo do empregador tipificado no art. 483, Consolidação das Leis do Trabalho, é devido ao empregado o aviso-prévio na forma indenizada, devendo o em-pregador pagar todas as verbas devidas ao empregado como se fosse uma dispensa sem justa causa.

Nos casos de dispensa do trabalhador por justa causa, cujo rol taxa-tivo encontra-se no art. 482, Consolidação das Leis do Trabalho, não é devido o aviso-prévio.

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Quando ocorre culpa recíproca, ou seja, quando tanto o empregado quanto o empregador deram causa à rescisão contratual, é devido 50% do aviso--prévio ao obreiro. Tal entendimento deu-se com a nova redação da Súmula nº 14 do Tribunal Superior do Trabalho.

Nos casos de encerramento voluntário das atividades da empresa, como na falência, na dissolução irregular, entre outros, é devido o pagamento do aviso-prévio normalmente, seguindo o disposto na Súmula 44 do Tribunal Superior do Trabalho.

Quando não foi o empregador que provocou a paralisação total ou temporária da empresa, mas sim o Estado por meio de seus entes federativos, seja a União, Estados ou Municípios, o empregador não tem responsabilidade sobre o pagamento das verbas.

Dessa forma, o pagamento do aviso-prévio, bem como das demais verbas devidas, deve ser feito pelo governo responsável pela paralisação, em conformidade com o artigo 486 da Consolidação das Leis do Trabalho.

De acordo com Delgado (2011, p. 1.119), o aviso-prévio tem natureza jurídica multidimensional, tendo em vista que há a declaração de vontade uni-lateral por uma das partes do contrato no sentido de romper, sem justa causa, o vínculo empregatício, fixa o prazo para o término do respectivo contrato de trabalho e enseja o pagamento correspondente do período.

Assim, notamos que o aviso-prévio tem três funções: a de comunicar a outra parte da vontade de rescindir o contrato por tempo indeterminado; o iní-cio da contagem do prazo do aviso-prévio; e o pagamento das verbas devidas.

Na forma trabalhada, o empregado ou o empregador comunica a outra parte do seu interesse de rescindir o contrato e cumpre o aviso prévio trabalhan-do. Nessa modalidade, a natureza jurídica do aviso prévio será salarial, visto que “o período de seu cumprimento é retribuído por meio de salário” (DELGA-DO, 2011, p. 1.120).

Na forma indenizada, o empregado ou o empregador comunica a outra par-te do seu interesse de rescindir o contrato e o empregador dispensa o empregado do cumprimento do aviso-prévio. Nessa modalidade, o aviso-prévio terá natureza jurídi-ca indenizatória, visto que não haverá labor para ser remunerado por meio de salário.

Em sendo de natureza jurídica indenizatória, o aviso-prévio indeni-zado não integra a base de cálculo para o recolhimento de contribuição previ-denciária.

Saliente-se ainda que, por seu caráter indenizatório, não incidem tri-butações sobre o aviso-prévio indenizado.

Havia ainda a possibilidade de mais um tipo de aviso-prévio de natu-reza jurídica convencional, que era aquele decorrente de convenções coletivas que preenchiam a lacuna existente com a ausência de lei que regulamentasse o

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aviso-prévio proporcional, nos termos da Constituição Federal de 1988. Com o advento da Lei 12.506 de 2011, a possibilidade de aviso-prévio proporcional estabelecido em convenção coletiva deixa de ser necessário, visto que a lacuna existente foi devidamente preenchida.

O aviso-prévio gera efeitos a partir da data do seu recebimento pela outra parte, visto que a “resilição é declaração receptícia de vontade, com efei-tos constitutivos” (DELGADO, 2011, p. 1.124 - grifo do autor).

O aviso-prévio tem seu período projetado no tempo de serviço do tra-balhador, mesmo que concedido na forma indenizada, com a anotação da data da saída do empregado na Carteira de Trabalho e Previdência Social no dia do término do aviso-prévio.

Nesse sentido, a Orientação Jurisprudencial nº 82 do Tribunal Supe-rior do Trabalho.

Dessa forma, a extinção do vínculo empregatício só se verificará após o transcurso do período equivalente ao aviso-prévio.

Durante o aviso-prévio as obrigações entre as partes permanecem, ou seja, pelo empregador é devido o pagamento de salário, e o empregado deve laborar de forma satisfatória.

Assim, se o empregado comete uma falta grave que dê causa à sua dispensa, ou seja, se ele praticar uma das hipóteses previstas no art. 482, Con-solidação das Leis do Trabalho, excluindo-se o abandono de emprego, visto que há a presunção de que o empregado tenha ocupado uma vaga com outro empre-gador, há a conversão da dispensa imotivada em dispensa por justa causa. Por-tanto, conforme preceitua o artigo 491 da Consolidação das Leis do Trabalho, o obreiro perde o direito das verbas de natureza indenizatória do aviso-prévio que correspondem ao restante do período. Nesse sentido a Súmula nº 73 do Tribunal Superior do Trabalho.

Nos casos em que quem motiva a conversão da rescisão contratual é o empregador, transformando o pedido de demissão, por exemplo, em rescisão indireta, diz o artigo 490 da Consolidação das Leis do Trabalho que o empre-gado não precisará cumprir o restante do aviso-prévio, sem prejuízo de sua remuneração bem como da indenização devida, “podendo exigir desde logo do empregador as verbas rescisórias e a remuneração correspondente ao aludido tempo restante” (ADAMOVICH, 2010, p. 266).

Outro efeito da projeção do aviso-prévio está previsto no art. 487, § 6º, Consolidação das Leis do Trabalho, que diz que caso ocorra reajuste salarial para a categoria durante o aviso-prévio do obreiro, este também fará jus a tal benefício, mesmo que seu aviso-prévio tenha sido na modalidade indenizada.

Ainda, é devido o recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço mesmo no período do aviso-prévio, seja ele trabalhado ou

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indenizado, em conformidade com a Súmula nº 305 do Tribunal Superior do Trabalho.

Integram o aviso-prévio todas as parcelas auferidas de forma habitual, como é o caso de horas extras e seu adicional, adicional de insalubridade, periculosidade, entre outros adicionais.

Segundo Delgado (2011, p. 1.124):

O valor do aviso equivale ao salário mensal do obreiro, acrescido de todas as parcelas que eram habitualmente pagas ao empregado ao lon-go do contrato, ou, se for o caso, durante os últimos meses contratuais.

Ainda, de acordo com a Súmula 354 do Tribunal Superior do Tra-balho, não integram o aviso-prévio os valores percebidos a título de gorjetas, mesmo que habituais.

A duração mínima do aviso-prévio está estipulada na Constituição Federal de 1988, em seu art. 7º, XXI, e é de 30 (trinta) dias.

A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu capítulo VI, art. 487, regulamenta a duração do aviso-prévio, e afirma que para aqueles que tiverem mais de 12 (doze) meses de serviço na mesma empresa, o tempo mínimo de aviso prévio é de 30 (trinta) dias.

A Lei 12.506 de 2011 veio com o intuito de complementar a Carta Magna, art. 7º, XXI, tratando do aviso-prévio proporcional.

Frise-se que o inciso I do art. 487, Consolidação das Leis do Traba-lho, restou prejudicado, vez que a Constituição Federal de 1988 instituiu como prazo mínimo de concessão do aviso-prévio o período de 30 (trinta) dias, não sendo mais possível o prazo de 08 (oito) dias, mesmo que o pagamento seja realizado semanalmente ou em prazo inferior.

Segundo o artigo 489, Consolidação das Leis do Trabalho, o aviso--prévio pode ser reconsiderado de forma tácita ou expressa.

Na forma expressa, prevista no caput do artigo mencionado, é necessá-ria a manifestação de vontade das partes, no sentido de querer permanecer no em-prego ou de querer que o empregado permaneça exercendo suas funções. Nesse caso a outra parte deve aceitar o pedido de reconsideração do pedido de dispensa.

Já na forma tácita, prevista no parágrafo único do art. 489, CLT, não há manifestação de vontade. O que ocorre é que as partes simplesmente seguem com o contrato de trabalho mesmo depois de findo o prazo do aviso prévio. Em não havendo manifestação de nenhum dos contratantes, há a prorrogação do contrato como se não houvesse o pré-aviso.

No segundo caso, importante salientar que deve haver um lapso de 20 (vinte) dias para que haja a configuração da reconsideração tácita.

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Nesse sentido, ensina Adamovich (2010, p. 265):

Se antes de consumar-se o lapso do pré-aviso a parte que o deu mani-festar a vontade de reconsiderá-lo, a outra parte poderá aceitar a pro-posta ou não. Se assentir, o contrato seguirá sendo executado, como se não tivesse havido aviso prévio.Se, não obstante o aviso, as partes seguem executando normalmente o contrato após o fim do seu lapso de 20 dias, há a reconsideração tácita do pré-aviso, prosseguindo inalterado o vínculo entre as partes.

Assim, é perfeitamente possível a prorrogação do contrato de trabalho mesmo após decorrido o prazo do aviso-prévio.

A contagem do aviso-prévio se faz de maneira simples, excluindo o dia do começo e contando o dia término, assim como nas contagens de prazos instituídas no Código de Processo Civil.

Importante salientar a discussão acerca do término da contagem para o pagamento das verbas rescisórias no sábado, tendo em vista que o sábado é considerado como dia útil, mas não como dia útil bancário.

O art. 477, §6º, Consolidação das Leis do Trabalho, trata do prazo para o pagamento das verbas rescisórias, entre elas o aviso-prévio, seja indeni-zado ou trabalhado.

A alínea “a” do art. 477, §6º, CLT, diz respeito ao pagamento quando o aviso-prévio é trabalhado. Dessa forma, o prazo é até o primeiro dia útil ime-diato ao término do contrato.

Já a alínea “b” do art. 477, §6º, CLT, diz respeito ao pagamento das verbas rescisórias quando o aviso-prévio é indenizado ou até mesmo dispen-sado. Assim, o prazo é até o décimo dia, contado da data da notificação da demissão.

No entanto, temos uma divergência quando o prazo para o pagamento das verbas descritas no art. 477, CLT, finda no sábado.

Temos que sábado é um dia útil, portanto o pagamento das verbas res-cisórias deveria ser feito nesta data. Ocorre que, apesar de ser um dia útil, não é um dia útil bancário. É nesse ponto que residem as divergências.

Alguns Tribunais aplicam a multa do art. 477, §8º, CLT, quando a em-presa não efetua o pagamento das verbas rescisórias no sábado, considerando que o pagamento foi realizado extemporaneamente.

Já outros Tribunais não aplicam a referida multa e entendem que o pagamento das verbas rescisórias deve ser prorrogado para o próximo dia útil bancário.

Importante salientar que a discussão permite os dois posicionamen-

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tos, não havendo um entendimento majoritário. De qualquer forma, é melhor para o empregador recolher os valores devidos a título de verbas rescisórias an-tecipadamente. Assim, não há risco de incorrer em uma eventual mora, passível da multa prevista no art. 477, §8º, CLT.

LEI 12.506/2011O aviso-prévio proporcional, previsto na Constituição da República,

dependia de Lei Complementar para o seu efetivo cumprimento, conforme o art. 7º, XXI, da Carta Magna.

Em 13 de outubro de 2011 houve a publicação da Lei 12.506, que re-gulamenta o aviso-prévio proporcional, e, apesar de ser uma lei pouco extensa, com apenas dois artigos, ela suscita vários temas para discussão.

Inicialmente, entendem alguns autores que a delimitação temporal de noventa dias, no máximo, de aviso-prévio proporcional, seria incons-titucional, pois a Constituição da República não estipula um limite para a concessão deste instituto:

No caso da Lei n. 12.506, ao delimitar prazo máximo de noventa dias, o legislador infraconstitucional produziu uma contenção indevida do direito fundamental (de eficácia meramente limitada), já que sem a correspondente autorização constitucional. Diante de tais fundamen-tos, por violação do inciso XXI do art. 7º da Constituição, parece-nos inequívoca a inconstitucionalidade da expressão ‘até o máximo de 60 (sessenta) dias” disposta no art. 1º, caput, da referida Lei. Em conse-quência, não deve ser reconhecido nenhum limite temporal máximo para a plena eficácia do direito fundamental à proporcionalidade do aviso prévio. (LUDWIG, 2012, 65-71)No entanto, explica Martins (2012, p. 57-64):

[...] a determinação em estabelecer o limite de 60 dias não é in-constitucional, pois a norma constitucional precisava ser regula-mentada pela previsão da lei ordinária. O inciso XXI do art. 7º da Constituição é claro no sentido de que ‘o aviso prévio propor-cional ao tempo de serviço’ é estabelecido ‘nos termos da lei’. A proporcionalidade será estabelecida na forma prevista em lei ordinária, que é a Lei n. 12.506. Logo, a lei pode limitar o má-ximo do aviso prévio proporcional, pois há expressa permissão constitucional para isso.Assim, não há que se falar em inconstitucionalidade da limitação máxi-

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ma do período de aviso-prévio, tendo em vista que foi expressamente autorizado pela Carta Magna a regulamentação desse instituto por lei infraconstitucional.

A Lei 12.506/2011 estipula, em seu art. 1º, que será concedido ao trabalhador que estiver na mesma empresa por até um ano, 30 (trinta) dias de aviso-prévio. Já o parágrafo único nos diz que serão acrescidos 3 (três) dias por ano de serviço prestado na mesma empresa, até o máximo de 60 (sessenta) dias, totalizando até 90 (noventa) dias.

No entanto, o legislador não especifica se os 3 (três) dias devem ser acrescidos já a partir do primeiro ano completo ou se devem ser acrescidos a partir do segundo ano completo.

Fazendo uma interpretação literária do texto da lei, o empregado só tem direito ao acréscimo de 3 (três) dias a partir do segundo ano de labor na mesma empresa. Era esse o entendimento do Ministério do Trabalho e Empre-go, veiculado por meio do Memorando Circular nº 10/2011 (2011, p. 01-02), bem como da Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP (2011, p. 02-03), nos seguintes termos, respectivamente:

5. O aviso prévio proporcional terá uma variação de 30 a 90 dias, de-pendente do tempo de serviço na empresa. Dessa forma, todos terão no mínimo 30 dias durante o primeiro ano de trabalho, somando a cada ano mais três dias, devendo ser considerada a projeção do aviso prévio para todos os efeitos. Assim, o acréscimo de que trata o pará-grafo único da lei, somente será computado a partir do momento em que se configure uma relação contratual de dois anos ao mesmo empregador.(grifo do autor)[...] quando se completa o segundo ano de serviço prestado, passa-se a ter direito a 33 dias (30 e o adicional de 3 dias). Como a lei trata ano completo e não prevê fração, até se completar 2 anos, deve-se pagar 30 dias. A mesma fórmula de cálculo é válida para os anos subsequen-tes.

No entanto, o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da nota técnica nº 184/2012 (2011, 02-03), que visa esclarecer possíveis dúvidas acerca da aplicação do novo aviso-prévio, modificou o seu entendimento. Vejamos:

O aviso prévio proporcional terá uma variação de 30 a 90 dias,conforme tempo de serviço na mesma empresa. Dessa forma, todos os emprega-dos terão no mínimo 30 dias durante o primeiro ano trabalhado, soman-do a cada ano mais três dias, devendo ser considerada a projeção do

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aviso prévio para todos os efeitos. Assim, o acréscimo de que trata o parágrafo único da lei, somente será computado a partir do momento em que se configure uma relação contratual que supere um ano na mesma empresa.Neste ponto específico, após diversas conversações, esta Secretaria mo-dificou o entendimento anterior oferecido por ocasião da confecção do Memorando Circular nº 10 de 2011 (itens 5 e 6). (grifo do autor)

Dessa forma, o empregado fará jus aos 90 (noventa) dias de aviso--prévio quando somar 20 (vinte) anos de labor na mesma empresa, não mais 21 (vinte e um), como dito anteriormente.

Gize-se que a nota técnica acima referida servirá de principal base para as reflexões aqui demonstradas, tendo em vista a escassez de material dou-trinário e jurisprudencial que trata do aviso-prévio proporcional.

Cumpre salientar a impossibilidade de conceder os 3 (três) dias adi-cionais caso o ano trabalhado não esteja completo, ou seja, para que o obreiro faça jus aos dias adicionais, ele deve completar mais 12 (doze) meses de labor.

Também em nota técnica, a Federação das Indústrias e São Paulo – FIESP (2011, p. 04) manifestou-se acerca do cabimento do aviso-prévio pro-porcional para os empregados e também para os empregadores, contrariando Ministério do Trabalho e Emprego (2011, p. 01-02), que diz que o aviso-prévio proporcional é devido somente ao empregado.

Nesse sentido, ensina Martins (2012, p. 57-64):

A regra estabelecida pela Lei n. 12.506/11 diz respeito ao aviso prévio concedido pelo empregador ao empregado, isto é, quando o emprega-do é dispensado. Não trata a norma do aviso prévio concedido pelo empregado ao empregador, como no caso do pedido de demissão. O art. 1º da Lei n 12.506 mostra “o aviso prévio, ...concedido na propor-ção de 30 dias aos empregados” e não o aviso prévio concedido pelo empregado ao empregador.

Na mesma linha de raciocínio, lecionam Nascimento e Massoni (2012, p. 7-16):

A nova lei dispõe que a obrigação é do empregador ao declarar que a proporção será concedida ao empregado, silenciando sobre a con-cessão do empregado ao empregador, apesar do distanciamento do princípio da isonomia.Entendemos, assim, que em nosso atual modelo jurídico há uma “dis-

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paridade de tratamento”, ou assimetria de regimes, uma vez que a observância do aviso prévio proporcional é dever legal apenas do em-pregador. Ao empregado aplica-se a regra da duração fixa de 30 dias, já prevista na CLT.

Já Silva (2012, p. 23-33) manifesta-se em sentido contrário:

O caput do art. 487 diz: “a parte que, sem justo motivo, quiser rescin-dir o contrato, deverá avisar a outra de seu resolução...” Portanto, a obrigação é de ambos os lados, sem qualquer restrição. Pelo contrário, nos incisos I e II, fixam-se os prazos, na versão original da redação, sem qualquer restrição ou diferenciação entre empregado e emprega-dor.Portanto a lei prevê a obrigação para ambas as partes e, se não cum-prem, há indenização prevista no art. 487, §§1º e 2º. [...]

Ainda, o autor mencionado defende que, como o aviso-prévio é um instituto que tem como principal função a notificação de uma parte para a outra no sentido de que deseja romper o pacto laboral, não teria sentido a propor-cionalidade valer somente para o empregado, vez que o empregador também sofreria com a falta do obreiro em sua empresa.

[...] não há razão para se proteger somente o empregado, quando o AP é um instituto básico que regula o término do contrato de trabalho e tem influência e repercussão tanto na vida do empregado quanto do empregador. (SILVA, 2012, p. 23-33)

No caso do aviso-prévio proporcional indenizado também há a proje-ção ficta na CTPS do trabalhador, por força do art. 487, §1º, CLT, bem como da Orientação Jurisprudencial nº 82 do Tribunal Superior do Trabalho.

No entanto, tal projeção pode causar transtornos ao trabalhador, já que ele pode encontrar um novo emprego durante os dias do aviso-prévio e o novo empregador pode não querer assinar a sua CTPS já que há uma pendência com o antigo empregador.

Nesse sentido, Martins (2012, 57-64):

A anotação da CTPS do empregado será feita com a projeção do aviso prévio. Isso vai caracterizar um problema, pois a Carteira de Trabalho do empregado ficará aberta por um período maior do que 30 dias, sem

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que tenha havido trabalho no período. O empregado poderá querer co-meçar a trabalhar em outra empresa no referido período. Entretanto, não existe impedimento legal de o trabalhador ter mais de um empre-go, pois não existe exclusividade como requisito para caracterizar o contrato de trabalho.

Ainda, caso o trabalhador esteja na mesma empresa há 11 (onze) me-ses, devido à projeção ficta do aviso-prévio ele fará jus aos 3 (três) dias a mais previstos na Lei 12.506/2011.

A maior discussão sobre a aplicação do aviso-prévio proporcional reside na sua capacidade de retroagir aos contratos findos ou até mesmo aos contratos que tiveram início antes da publicação da Lei 12.506/2011.

O TST se pronunciou sobre o assunto com a edição de uma nova Sú-mula, em sessão realizada em 14 de setembro de 2012, afirmando que o aviso--prévio proporcional é devido somente nas rescisões de contrato de trabalho ocorridas a partir de 13 de outubro de 2011, ou seja, a partir da publicação da Lei 12.506/2011.

Apesar da edição da nova Súmula, iremos apresentar as 3 (três) cor-rentes que tratam desse assunto.

A primeira corrente defende que o aviso-prévio proporcional não pode re-troagir aos contratos concluídos nem mesmo aos contratos que tiveram início antes da publicação da Lei 12.506/2012, tendo em vista a segurança jurídica e o ato jurídico perfeito e acabado, previstos na Constituição da República, em seu art. 5º, XXXVI.

Segundo Nascimento e Massoni (2012, 7-16):

[...] a lei posterior não cria consequências ou efeitos novos para obrigações pretéritas, nem suprime antigas, pouco importa que se-jam diretos, indiretos, eventuais, duração, finalidade, termo, causas ou não de resolução, rescisão ou revogação e condições e casos de aviso prévio. Os efeitos de contrato em curso no dia da mudança legislativa regulam-se conforme a lei da época, da constituição do mesmo; a norma ulterior não os altera, diminui ou acresce.[...] os aumentos de duração do aviso prévio, quer para cumpri-mento em tempo, quer para indenização, tomarão por base a mesma data acima indicada, que é a da publicação da nova lei. Somente a partir dela é que se iniciará a contagem do tempo de serviço. E se não for assim, haverá inconstitucionalidade.”(grifo nosso)

Assim, para os autores que defendem essa tese, o aviso-prévio pro-

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porcional é válido somente para os contratos que tiveram início depois de 13 de outubro de 2011, ou seja, após a publicação da Lei 12.506/2011, tendo em vista que antes de sua publicação o aviso-prévio proporcional sequer existia, não ten-do que se falar em direito adquirido. Dessa forma, o aviso-prévio proporcional não se aplica aos contratos findos nem mesmo aos contratos que tiveram início antes da publicação da Lei que regulamentou o aviso-prévio proporcional.

Para a segunda corrente, o aviso-prévio proporcional não deve ser aplicado para os contratos que tiveram seu término antes da publicação da Lei 12.506/2011, ou seja, antes de 13 de outubro de 2011. No entanto, pode haver a aplicação para aqueles contratos que tiveram início antes da publicação da lei, já que por ser um trato contínuo e por tempo indeterminado, só haverá o exer-cício do direito de requerer o aviso-prévio o empregado que pedir demissão ou que for despedido. Assim, se o ato jurídico da dispensa/demissão for praticado após o advento da lei, não há que se falar em irretroatividade.

Vejamos:

Em relação aos contratos de trabalho já extintos, na vigência da lei ve-lha, houve ato jurídico perfeito, de se aplicar a lei vigente no momen-to da dispensa. Não podem ser modificados pela lei nova. A lei nova não pode retroagir até dois anos, quando foi extinto o contrato de trabalho. A lei vale para frente, a partir da publicação no Diário Oficial da União. Apanha os contratos de trabalho rescindidos a partir da sua publicação.[...]Em 1943, quando foi editada a CLT, ficou claro no art. 912 que “os dispositivos terão aplicação imediata às relações iniciadas, mas não consumadas, antes da vigência desta Consolidação.”(MARTINS, 2012, P. 57-64 ,grifo nosso)

Manifestam-se nesse sentido o Tribunal Superior do Trabalho, com a nova Súmula aprovada em 14 de setembro de 2012, bem como as nota técnicas da FIESP (2011, p. 02) e do Ministério do Trabalho e Emprego (2011, p. 04-05):

Temos no ordenamento jurídico o princípio do ato jurídico perfeito, insculpido no inciso XXXVI, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, que consagra: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Portanto, constitui ato jurídico perfeito o aviso prévio concedido na forma da lei aplicável à época de sua comunicação.Também é princípio constitucional no Direito Brasileiro, o da lega-

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lidade, segundo qual, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, garantido no inciso II, do artigo 5º da Constituição Federal, motivo pelo qual ao conceder o aviso prévio sob a vigência da lei anterior o empregador não estava compelido a regramentos futuros ainda não vigentes.Temos ainda no ordenamento jurídico pátrio, o Princípio tempus regit actum. Segundo este postulado, entende-se que a lei do tempo do ato jurídico é a que deve reger a relação estabelecida. Demais disso, é cediço que a lei não pode modificar uma situação já consolidada por lei anterior, salvo no caso de autorização expressa, o que na ocorre no presente caso.

[...] a lei não retroage e repeita o ato jurídico perfeito. As rescisões ocorridas e/ou comunicadas antes da nova lei se enquadram nessa si-tuação. A lei nova somente se aplica a situações jurídicas presentes e futuras. No caso desta lei, sua vigência se iniciou no momento de sua publicação, ou seja, em 13 de outubro de 2011.

Assim, o aviso-prévio proporcional só poderá ser aplicado aos contra-tos de trabalho que tiverem o seu término após a publicação da Lei 12.506/2011.

Já os autores que defendem a terceira corrente dizem que já existia a previsão constitucional do aviso-prévio proporcional, sendo necessária somen-te a sua regulamentação por meio de uma lei infraconstitucional. Dessa forma, aqueles contratos que tiveram seu fim antes da publicação da Lei 12.506/2011 e que ainda podem ser postulados na Justiça do Trabalho, vez que não foram abarcados pela prescrição quinquenária, devem postular a indenização pelo aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço.

Nesse sentido leciona Silva (2012. p. 23-33):

Se se cria um direito, nasce a pretensão acionável. E toda ela está sujeita a um prazo de exercício. Nele se incluem todos aqueles que satisfazem as exigências da lei, ou seja, todo trabalhador que tem um direito trabalhista – art. 7º, XXI, da CF – e esteja dentro do prazo de seu exercício – art. 7º, XIX, da Constituição.

Ainda, o autor supracitado defende que não se deve falar em efeito retroativo da Lei 12.506/2011, vez que “o que houve foi uma mera regulação de um direito já existente anteriormente. A Lei n. 12.506 não o criou, apenas tornou possível o seu exercício.” (SILVA, 2012, p. 23-33)

Assim, “não há efeito retroativo da lei nova. O que há é uma pretensão acionável para se garantir o direito agora exercitável do art. 7º, XIX, da CF.” (SILVA, 2012, p.23-33)

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Caso o empregado esteja cumprindo o aviso-prévio quando a lei en-trou em vigor, segundo a FIESP (2011, p. 02) e Ministério do Trabalho e Em-prego (2011, p. 04-05), já houve o ato jurídico perfeito. Dessa forma, deve ser aplicado ao obreiro o aviso-prévio anterior à publicação da Lei 12.506/2011.

Outro tema que vem suscitando dúvidas nos juristas é a questão do tempo previsto para o empregado buscar um novo emprego durante o aviso--prévio trabalhado, na hipótese do obreiro ter sido demitido. Nesse caso exis-tem duas correntes divergentes.

A primeira corrente defende que o tempo concedido ao empregado para buscar um novo emprego continua sendo aquele previsto no art. 488, Con-solidação das Leis do Trabalho, quais sejam de redução da jornada de 2 (duas) horas diárias ou de dispensa do trabalho por 7 (sete) dias corridos.

Nesse sentido, vejamos:

[...] as regras do tempo de procura de emprego fixadas pelo art. 488 da CLT, criadas muito antes da previsão constitucional de proporcio-nalidade por tempo de serviço, não sofreram qualquer alteração com a nova lei, diante do que ficam mantidas as disposições, ainda que o tempo de aviso prévio possa ser ampliado conforme o tempo de ser-viço. A previsão de redução das horas diárias no aviso trabalhado será respeitada ao longo dos 30 (trinta) dias de que trata o art. 488 celetista. Isto porque ‘aviso prévio’ é diferente de ‘tempo de procura de empre-go’, e quanto a esse último aspecto a nova lei nada alterou ou inovou. (NASCIMENTO, 2012, p. 7-16)

Com a nova regra do aviso prévio proporcional, deve-se observar o art. 488 da CLT. Parece que a redução do horário de trabalho será de apenas duas horas diárias durante 30 dias, podendo o empregado faltar sete dias corridos, se quiser, A redução de duas horas diárias não será durante, por exemplo, os 90 dias do aviso prévio, justamente porque o trabalhador já terá 90 dias para procurar novo emprego, no caso de ter mais de 20 anos de empresa. A CLT não foi idealizada para permitir a redução do horário de trabalho no aviso prévio fosse feita por mais de 30 dias. Haveria necessidade da Lei n. 12.506 ter alterado a CLT. (MARTINS, 2012, p. 57-64)[...] a Lei n. 12.506/2011 novamente silenciou quanto à eventual mo-dificação da regra celetista supramencionada, em sentido da adequa-ção proporcional da ausência consentida por sete dias corridos. Para nós, não havendo adequação da redação da redação do parágrafo úni-

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co do art. 488 celetista pela nova lei, não cabe ao intérprete alterar a natureza de uma constante correspondente ao número de dias corridos de folga ao caráter proporcional do prazo do aviso prévio. (LUDWIG, 2012, p. 65-71)

Já a segunda corrente diz que deverá haver proporcionalidade entre o tempo de aviso-prévio e o tempo concedido no art. 488, da CLT.

O prazo de aviso era de 30 dias. Portanto, supondo estes trinta dias, foram fixados os sete dias em que é lícita a ausência do empregado. Se o AP aumentar, conforme o tempo de casa do reclamante, também na mesma proporção aumentar-se-ão os dias em que pode faltar. (SILVA, 2012, p. 23-33)

No entanto, as notas técnicas da FIESP (2011, p. 04) e do Ministério do Trabalho e Emprego (2011, p. 05-06), dizem que o prazo do art. 488, CLT deve ser mantido, tendo em vista que a Lei 12.506/2011 silenciou sobre o tema em questão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei 12.506/2001 veio com o intuito de regulamentar o aviso-prévio proporcional, previsto no art. 7º, XXI, da Constituição da República de 1988, mas que dependia de lei infraconstitucional para surtir seus efeitos.

Com a publicação da referida Lei, surgiram alguns questionamentos sobre a sua aplicação.

No que tange à discussão quanto ao tempo de aviso-prévio proporcional devido ao empregado, temos que o acréscimo de 3 (três) dias previstos em lei pode ser feito assim que o empregado complete 1 (hum) ano de labor, ou quando o em-pregado completar 2 (dois) anos de labor. O entendimento do Ministério do Traba-lho e Emprego filia-se à primeira corrente, sendo o empregado detentor do teto do aviso-prévio proporcional quando completar 20 (vinte) anos na mesma empresa. Frise-se que o ponto pacífico quanto ao acréscimo dos 3 (três) dias por ano trabalha-do na mesma empresa reside no fato de que o ano laborado deve ser completo, não havendo que se falar em “proporcionalidade do aviso-prévio proporcional”.

Muitos se questionam se o aviso-prévio proporcional é devido também quando o empregado pede demissão. A princípio, a corrente majoritária diz que esse é um direito conferido aos trabalhadores, vez que está inserido no art. 7º, CR, ou seja, no rol de direitos fundamentais dos obreiros. No entanto, existem autores que divergem desse posicionamento, vez que fere o princípio da isonomia.

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A projeção ficta do aviso-prévio proporcional na CTPS é um fator que, apesar de pacífico, gera polêmicas. É certo que o aviso-prévio proporcio-nal, mesmo que indenizado, tem o seu tempo projetado na CTPS do emprega-do. No entanto, caso o trabalhador arrume outro emprego durante o prazo do aviso-prévio proporcional, o empregador pode não querer registrá-lo, vez que considera-se como “pendente” o contrato de trabalho anterior, podendo gerar prejuízos ao empregado.

O ponto mais polêmico da Lei seria quanto à sua aplicação no tempo. Existem 3 (três) correntes que tratam do assunto. A primeira, liderada por Ser-gio Pinto Martins, defende que o aviso-prévio proporcional é válido somente para os contratos firmados após a publicação da Lei, ou seja, após 13 de outubro de 2011, vez que aplicar a Lei para os contratos findos ou até mesmo para os iniciados antes da publicação do diploma em voga feriria o ato jurídico perfeito. A segunda corrente defende que a Lei não pode retroagir aos contratos findos, também com o argumento de prejuízo ao ato jurídico perfeito, aplicando-se comente aos contratos em curso e aos contratos firmados após a publicação da Lei. Salientamos que o Tribunal Superior do Trabalhou manifestou-se, em 14 de setembro de 2012, com a criação de uma Súmula que determina que a Lei seja aplicada aos contratos que tiverem o seu término a partir de 13 de outubro de 2012. Já a terceira corrente defende que o aviso-prévio proporcional deve ser aplicado também aos contratos findos, desde que não abarcados pela prescrição quinquenária, vez que não há que se falar em ato jurídico perfeito, já que não havia lei regulamentando o aviso-prévio proporcional, o que impedia o empre-gado de exercer o seu direito previsto na Constituição da República.

Por fim, tratamos da discussão acerca do tempo de procura de um novo emprego quando o empregado é demitido. Alguns autores defendem que o tempo previsto no art. 488, CLT deve ser mantido, já que a Lei 12.506/2011 não se pronunciou estipulando um tempo maior. Já outros autores defendem que deveria ser aplicada uma proporcionalidade ao tempo de procura de um novo emprego, obedecendo uma regra de três, ou seja, para 30 (trinta) dias de aviso-prévio era devido o tempo de 40 (quarenta) horas para a procura de um novo emprego, então para 90 (noventa) dias de aviso-prévio, é devido o tempo de 120 (cento e vinte) horas para a procura de um novo emprego.

Dessa forma vimos que, apesar de concisa, deixando de tratar de al-guns pontos essenciais para a sua correta aplicação, a Lei 12.506/2011 é sufi-ciente para atender ao seu fim, ou seja, criou um parâmetro de proporcionalida-de para ser aplicado ao aviso-prévio, sendo esse critério baseado no tempo de serviço do empregado.

Assim, como toda Lei recém editada, cabe aos estudiosos do Direito sa-narem as dúvidas decorrentes de sua aplicação no que tange às suas insuficiências.

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REFERÊNCIAS

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BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2009.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011.

FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO – FIESP. Disponível em <http://www.fiesp.com.br/sindical/pdf/fiesp_aviso_previo.pdf>.

LUDWIG, Guilherme Guimarães. Abordagem constitucional do aviso prévio proporcional. Revista LTr: Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 76, n. 1, p. 65-71, jan. 2012.

MARTINS, Sergio Pinto. Aviso proporcional ao tempo de serviço. Revista LTr: Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 76, n. 1, p. 57-64, jan. 2012.

MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Nota técnica nº 184 de 2011. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D36A2800001375095B4C91529/Nota%20T%C3%A9cnica%20n%C2%BA%20184_2012_CGRT.pdf>.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro; MASSONI, Túlio de Oliveira. O aviso prévio proporcional. Revista LTr: Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 76, n. 1, p. 7-16, jan. 2012.

SILVA, Antônio Álvares da. A nova lei do aviso prévio. Revista LTr: Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 76, n. 1, p. 23-33, jan. 2012.

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A CRISE DA MORADIA NO BRASIL À LUZ DO SISTEMA CAPITALISTA

THE HOUSING CRISIS IN BRAZIL IN THE LIGHT OF CAPITALIST SYSTEM

anDré chmyz

Acadêmico do curso de Direito do 8º período do Centro Universitário – UNICIRITIBA

JoSé lEanDro FariaS bEnitEz

Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (1985) e mestrado em Direito pela Universida-de Federal de Santa Catarina (1990). Atualmente é professor do Centro Universitário Curitiba. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil.

RESUMO

A crise da moradia é assente na realidade brasileira, não obstante o aparato jurídico consubstanciado na Constituição Federal de 1988, engajada na efetivação dos direitos sociais. Nessa esteira, o presente artigo visa expor as raí-zes que integralizam o referido tema, mediante o apontamento do caso ocorrido em São José dos Campos/SP, intitulado como Pinheirinho. A par da respectiva premissa, bem como por meio de uma breve análise histórica, buscar-se-á, com o apoio dos postulados deixados por Marx e Engels, esclarecer a origem da crise habitacional no Brasil.

Palavras-chave: moradia; crise habitacional; capitalismo; materialismo histórico.

ABSTRACT

The housing crisis in the Brazilian economy is established, despite the legal apparatus unified in the Federal Constitution of 1988, engaged in the ful-fillment of social rights. On this track, this article aims to expose the roots that incorporate the said topic, by pointing the case in São José dos Campos / SP, titled as Pinheirinho. Acknowledging the respective proposition and through of a brief historical analysis, this article seeks, with the support of the documentation left by Marx and Engels, the origin of the housing crisis in Brazil.

Keywords: dwelling; housing crisis; capitalism; historical materialism.

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1 INTRODUÇÃO

Assentadas suas raízes no século XVIII, mais precisamente na Revo-lução Industrial, a crise habitacional vem ganhando vultos cada vez maiores no Brasil, sendo o tema, assim, de extrema relevância na atualidade. Não se pode olvidar que a questão da moradia é mazela já assente na realidade brasileira, o que se torna aparentemente paradoxal, eis que o ordenamento jurídico brasileiro passou a assegurar a efetivação dos direitos sociais, como espécie dos direitos fundamentais, e, ainda, atribuiu ao Estado a responsabilidade pela sua efetivação.

A figura do neoconstitucionalismo, como instrumento à concretização do Estado do Bem-Estar Social, bem como a previsão expressa na Constituição Federal, em seus artigos 6° e 23, IX, acerca da garantia do direito à moradia e da obrigação estatal em assegurá-la, em uma interpretação rápida, fazem presumir que a crise ora referida, em que pese ter adquirido contornos cada vez maiores nos últimos anos, estaria prestes a ser revertida, através de uma atuação presente do Estado, mediante o implemento de políticas públicas habitacionais.

Todavia, o caso ocorrido em São José dos Campos, no início do presente ano, intitulado como Pinheirinho, retirou o véu que vinha encobrindo a correlata ques-tão, mostrando suas verdadeiras dimensões, bem como deixou evidente que se trata de um problema ainda longe de ser solucionado pelas autoridades governamentais.

Nestes termos, como acadêmico de direito, angustiado com o desen-rolar das mazelas sociais, e a falta de soluções efetivas relativas às mesmas, especificamente no que corresponde à questão habitacional, preocupei-me em buscar a sua explicação nos próprios fatores a ela inerentes e que delinearam seus contornos ao largo dos anos, com o escopo final de identificar os verdadei-ros óbices que inviabilizam a efetivação do direito à moradia atualmente.

Para tanto, a metodologia deste trabalho pautar-se-á em uma pesquisa exploratória com caráter dissertativo, além de que se fará uso do método de abordagem indutivo, partindo-se de um acontecimento pontual para explicar o problema proposto. Ademais, a fonte será eminentemente bibliográfica, me-diante a utilização livros e teses pertinentes ao tema, textos periódicos e notícias publicadas, além de diplomas normativos correlacionados.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A compreensão da crise habitacional brasileira se faz à luz de diver-sos pressupostos que, conjuntamente, a integralizam. Dessa forma, buscando a melhor compreensão do tema, buscar-se-á esmiuçá-los, para então chegar-se no âmago da referida mazela social, qual seja, sua própria raiz.

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2.1 DIREITO À MORADIA: ORIGEM E SEU EMBASAMENTO NO ORDENA-MENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Atrelado, inicialmente, a função social da propriedade, o direito à mo-radia passou a ser reconhecido como garantia autônoma em 1948, com a Decla-ração Universal dos Direitos Humanos, a qual veio por ganhar força vinculante com o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil em 24/01/1992 (ROMANELLI, 2007, p. 41).

Seguindo a orientação internacional1, sobretudo em observância ao texto da Agenda Habitat II (ROMANELLI, 2007, p. 43), e em atenção à teoria funcionalista do direito a propriedade já reconhecida nacionalmente, o Brasil incluiu, através da Emenda Constitucional 26 de 14 de fevereiro de 2000, a mo-radia como um dos direitos sociais, consoante previsão do art. 6° da Carta Mag-na. O tratamento do tema vem abarcado ainda no art. 23, IX, da Constituição Federal, o qual dispôs sobre a competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

Ademais, faz-se também necessário destacar o Estatuto das Cida-des, o qual regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, os quais tratam da política de desenvolvimento urbano a ser executada pelos Poderes Públicos Nacional, Estadual e Municipal, através da gestão democrática (RO-MANELLI, 2007, p. 74).

Importante relembrar que prepondera, atualmente, a figura do Estado Democrático Social de Direito, imbuído na idéia do neoconstitucionalismo. Em outras palavras, o Estado Democrático de Direito apenas se alcançará partindo da perspectiva do neoconstitucionalismo. Dessa maneira, não há que se falar mais em um modelo constitucional descritivo, mas, sim, axiológico, de modo que a Constituição passou a ter um valor em si mesma, dotada de alta carga principiológica. Não vigora mais a idéia de Estado Legislativo de Direito, pas-sando a Constituição a ser o centro do sistema, não mais mera diretriz, mas detentora de força normativa e vinculativa.2

1 Salienta Romanelli que “a moradia é reconhecida também como um direito humano nas seguintes declarações e tratados internacionais: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965; a Declaração sobre Raça e Preconceito Racial de 1978; a Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, que também previa, em seu bojo, a proteção à habitação, que foi ratificada pelo Brasil em primeiro de fevereiro de 1964; a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; a Convenção dos Trabalhadores Migrantes de 1990; e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989, arts. 13 e 19”. (ROMANELLI, 2007, p.41)2 Nesse sentido, bem enunciou Konrad Hesse que “ainda que não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem significado próprio. Sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo

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Verifica-se que, diante desta nova visão, os direitos fundamentais ga-nham maior força no que se refere à busca pela sua eficácia, sendo incluído nesses, os direitos sociais, e, por via reflexa, inserido nestes, o direito a moradia. Certo é que os valores constitucionalizados poderão entrar em choque, seja de modo específico, atrelando-se a outros direitos, ou de modo geral, ao próprio “papel” da Constituição.3

Assentado o modelo constitucional preponderante no ordenamento jurídico brasileiro, bem como os corolários advindos diretamente da presente assertiva, destaca-se, em um segundo plano, que o direito a moradia cristali-zou-se e ganhou maior relevância, também, diante, da vinculação estatal ao cumprimento dos mandamentos constitucionais, como destinatário principal da Carta Magna, responsável por manter sua observância, bem como dar eficácia às normas nela estabelecidas.

Nessa esteira, tomando-se como parâmetro os direitos sociais, o dever de agir do Estado é indeclinável, porquanto figura no pólo passivo da relação que constitui os direitos sociais. Ainda, se a todo direito costuma corresponder um dever que assegure aquela pretensão, no caso dos direitos sociais a obriga-ção se volta contra o Estado e demais entidades que compõem a esfera pública (ROMANELLI, 2007, p. 73).

A presente obrigação também merece ser abarcada sob o prisma da eficácia das normas constitucionais. Passou-se a reconhecer que a eficácia pro-gramática das referidas normas não se contrapõem à eficácia propriamente obri-gatória, eis que qualquer norma materialmente constitucional deve ser cumpri-da pelo Estado, não sendo oponível qualquer poder estatal discricionário. Assim sendo, as normas definidoras de direitos fundamentais, independente de seu conteúdo, gozam de eficácia jurídica, circunscrevendo-se o debate apenas em relação à maneira como cada qual opera os efeitos que lhe são próprios.4

no campo de forças do qual resulta a realidade do Estado. A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”. (HESSE, 1991, p.15-16)3 Defende Pedro Lenza que, independente da posição que se filie, seja a uma visão substancialista (a constituição deveria impor “um conjunto de decisões valorativas que se consideram essenciais e consensuais”), ou mesmo designada de procedimentalismo (a constituição deve “garantir o funcionamento adequado do sistema de participação democrático, ficando a cargo da maioria, e cada momento histórico, a definição de seus valores e de suas próprias convicções materiais”), sempre deverão ser resguardados as condições de dignidade e dos direitos, ao menos, em um patamar mínimo. (LENZA, 2010, p. 55)4 Expõe Romanelli que “não merecem prosperar os argumentos que justificam um contingenciamento prima facie da eficácia normativa do direito à moradia e de outros direitos sociais prestacionais, sequer em razão do argumento da escassez de bens e recursos por parte do Poder Público. Para aqueles que defendem tal posição, os altos custo necessários à satisfação desses direitos seriam “limites fáticos” à exigibilidade deles. Este debate envolve, quando menos, reflexões acerca da conjuntura econômica do país, das preferências valorativas dos governantes

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Dessa forma, não se pode mais olvidar sobre a importância dos direitos fundamentais e sobre a sua eficácia obrigatória, sobretudo diante de um Estado que se diz Democrático de Direito. No entanto, em que pese o referido reconhe-cimento pelo ordenamento jurídico pátrio, bem como a vinculação estatal na sua garantia, percebe-se, de outra via, que a crise habitacional não está em vias de ser solucionada, o que coloca em xeque os referidos ganhos até então obtidos.

2.2 SURGIMENTO DO CAPITAL INDUSTRIAL E O PROBLEMA DO ACESSO À MORADIA

Para se entender a crise habitacional nos dias atuais, faz-se impres-cindível analisar o contexto em que a presente mazela surgiu, a fim de, em um segundo momento, extrair os seus corolários.

O século XIX é marcado pela cristalização do capital industrial e a decadência do complexo corporativo rural. Até então predominava ainda uma economia de subsistência, em que o trabalhador era o proprietário do instru-mento de trabalho e o salário era apenas um meio de complementar o consumo das famílias trabalhadoras. Ou seja, o trabalhador não vendia seu trabalho, mas o produto deste. Todavia, com o surgimento da mecanização industrial, signi-ficativas transformações ocorreram em quase todos os setores da vida humana. Destrói-se a corporação rural e o camponês passa a ser proletário.

Em suma, a economia transfere-se do campo para a cidade, o que afeta diretamente a vida de milhares de famílias, que necessitam buscar sua sobrevivência agora nos nascentes polos industriais, onde encontrarão amparo para manter apenas um mínimo existencial.5

É a partir desse aparato histórico que se parte ao estudo da questão da moradia. Como destacam Luiz C. de Queiroz Ribeiro e Robert M. Pechman, “o surgimento do grande capital industrial criará a necessidade de remodelação do espaço urbano, adaptando-o às novas exigências ditadas pela produção capita-lista de mercadorias” (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 18-20). Em outras pala-vras, o capitalismo emergente proporciona uma renovação urbanística, de modo que a demanda por moradias no centro das cidades torna-se cada vez maior. Isso porque, eram nestas localidades que se concentrava o mercado de trabalho,

em contraponto às do constituinte, a necessidade de distribuição e redistribuição dos recursos existentes, entre outras tantas intimamente ligadas à esfera da deliberação política tanto do governante quanto da valoração do julgador”. (ROMANELLI, 2007, p.65)5 Ensina Vicentino que se deu, assim, por efetivada a separação definitiva entre o capital representado pelos donos dos meios de produção, e o trabalho, representado pelos assalariados, eliminando-se a antiga organização corporativa da produção, utilizada pelos artesãos. “O trabalhador perdia a posse das ferramentas e máquinas, passando a viver da única coisa que lhe pertencia: sua força de trabalho, explorada ao máximo”. (VICENTINO, 2002, p. 292)

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sobretudo, a grande indústria com toda infraestrutura a ela inerente (transporte, comunicação, abastecimento de água e esgoto sanitário, etc.).

Entretanto, o número de imóveis existentes era insuficiente para aco-modar a nova realidade fática das grandes cidades européias. A pressão pelo lado da demanda e a baixa disponibilidade pelo lado da oferta de moradias oca-sionaria um desequilíbrio no setor habitacional (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 45). Diante de tal fato, não demorou a surgir uma massa de especuladores imobiliários que, aproveitando-se dos altos aluguéis cobrados pelos proprietá-rios dos imóveis existentes, passaram a oferecer, a baixo custo, moradas coleti-vas aos necessitados, quais sejam, cortiços e estalagens.

Há de se ressaltar, todavia, que as habitações coletivas eram desprovi-das de qualquer higienização e conforto, fato que começou a chamar atenção das autoridades públicas, pois, além desses locais denegrirem a imagem das cidades nascentes, chegou-se à conclusão, posteriormente, de que a nova indústria depen-dia de trabalhadores em boas condições de saúde, já que estes eram a força pro-pulsora do crescimento econômico da época. Desse modo, de “solução” para as dificuldades de moradia dos trabalhadores, as habitações coletivas se transforma-ram num problema para toda a sociedade (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 55).

Diante de tal análise, percebe-se, assim, que o desencontro entre de-manda e oferta na seara habitacional surgiu com a Revolução Industrial, bem como por muito tempo a questão da moradia foi tratada mais como uma mer-cadoria, sujeita ao mercado de produção, do que como uma garantia do ser humano. Infere-se, ainda, que, ao largo dos anos que se transcorreram após tal período, a referida mazela foi ganhando proporções cada vez maiores ao invés de ser contornada seja pela iniciativa privada, seja pelas autoridades públicas. Em síntese, nota-se que a crise habitacional é inerente ao sistema capitalista, assertiva esta que passa então a ser mais bem esmiuçada neste momento.

2.3 CRISTALIZAÇÃO DO CAPITALISMO E O AGRAVAMENTO DA CRISE HABITACIONAL

O sistema capitalista aperfeiçoou a idéia de lucro, elemento central no referido modo de produção, podendo ser encarado como a base sobre a qual se assenta todo o mercado de produção e circulação de mercadorias. Não obstante a moradia ser caracterizada como uma garantia constitucional, o que, aparentemen-te, poderia presumir pela inutilidade de fazer uma breve análise sobre a lógica que permeia o capitalismo e sua repercussão no mercado imobiliário, certo é que este apontamento traz influências notórias na condução da referida questão.

Marx e Engels, em que pese terem aprofundado seus estudos na re-lação entre os modos de produção e as instituições sociais, como adiante se

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explanará, atentavam também a importância de se compreender os sistemas econômicos em si, eis que dizem respeito às próprias condições de vida das pessoas, elemento central na compreensão de uma sociedade. Nessa esteira, como expõem Pechmann e Ribeiro, “o consumo habitacional será fortemente influenciado pelo modo de funcionamento do mercado terras e de moradias. É a dinâmica destes mercados que estabelecerá os padrões de consumo habitacio-nal” (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 17).

Ademais, como anteriormente explicado, percebeu-se que a crise da mo-radia surgiu inerente ao capitalismo e, por muito tempo, foi encarada mais como um objeto de produção, do que como um direito social, desatrelado do mercado. Diante de tais premissas, busca-se, neste ponto, entender como se estabeleceu o sistema capitalista, bem como o porquê da crise ter se agravado nele.

No modo de produção capitalista, enraizado na idéia do lucro, o capital investido na produção de qualquer mercadoria é inicialmente transformado em força de trabalho e meio de produção, elementos que, combinados, irão gerar um novo capital, superior ao originário. Deve-se lembrar que a diferença entre o valor inicial e o valor final ocorre em decorrência da mais-valia, pois o salário pago ao trabalhador é inferior ao crédito que ele adicionou, com sua atividade, ao capital final. É assim que, no sistema capitalista, capital passa a gerar capital.6

Em suma, o capital inicialmente investido (capital-dinheiro) deve ge-rar um capital-mercadoria, que, com sustento na mais-valia, irá gerar um novo capital, superior àquele inicialmente investido. Todavia, no que se refere ao setor imobiliário, o processo acima enunciado encontra, sobretudo, dois obs-táculos para o seu perfeito funcionamento, o que acaba por tornar o lucro um resultado incerto. “Um coloca-se ao nível da transformação do capital-dinheiro em capital-mercadoria: trata-se do problema fundiário. O outro aparece no mo-mento de realização do valor do capital-mercadoria: problema de demanda sol-vável (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 31).

Primeiramente, busca-se esclarecer o problema fundiário. O ramo imo-biliário tem seu crescimento vinculado ao número de terras que o investidor pos-sui, de modo que, a cada novo empreendimento, necessita buscar novos terrenos para dar continuidade aos seus negócios, tendo em vista que a moradia fixa-se no espaço, diferente de outras atividades que não tem a propriedade privada como óbice ao seu desenvolvimento. Há de se levar em conta que os recursos inves-

6 Explicam Pechmann e Ribeiro que “a mercadoria produzida deve circular (deve ser vendida) para que o valor seja transformado em capital-dinheiro novamente e, conseqüentemente, a mais-valia apropriada pelo proprietário do capital na forma de lucro. Neste momento, realiza-se o ciclo de rotação do capital devendo agora reproduzir-se de forma ampliada (acumulada), com a reintrodução de uma maior soma de capital-dinheiro novamente na produção de mercadoria (processo de acumulação)”. (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 30)

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tidos na obtenção de terrenos podem restar improdutivos, pois, até que venha a ser viabilizada a construção de uma obra, as terras compradas não darão lucro ao proprietário, o que pesará ainda mais na rentabilidade dos negócios.

Outro problema diz respeito às condições naturais em que se localiza-rá o investimento imobiliário. Em outras palavras, há de se levar em conta não só elementos econômicos, mas, também, fatores geológicos e morfológicos, por exemplo, além do sistema urbanístico sob o qual será viabilizada (ruas, praças, parques, shopping centers, rede de água e esgoto, etc.). Isso, conforme expõe Villaça, acaba por tornar o negócio do empreendedor ainda mais custoso, pois não lhe adiantará investir em terrenos desprovidos de infraestrutura, ou, mes-mo, afastado dos pólos comerciais (VILLAÇA, 1986, p. 17).

O problema fundiário, em síntese, denota a tendência de que a produ-ção de moradias reste-se cada vez mais dispersa no tempo e no espaço, dificul-tando assim a execução de políticas habitacionais, favorecendo a construção de obras isoladas, muitas vezes destinadas às classes sociais mais bem estruturadas financeiramente.

Ao lado do problema fundiário, coloca-se o segundo obstáculo que dá margem à expansão da crise da moradia nos dias de hoje, ou seja, a questão da “solvabilidade”. Em outras palavras, não há demanda que justifique investir na construção de moradias destinadas às classes sociais mais necessitadas, por duas grandes razões. Primeiramente, enquadra-se aqui o próprio valor da mer-cadoria, extremamente custoso, tendo em vista que uma casa não é adquirida e quitada com a mesma facilidade de outros bens de produção.

Por outro lado, o mercado destinatário de tais moradias é formado por uma classe proletária, que vive apenas do rendimento do seu trabalho mensal, sendo que seu salário normalmente é capaz de suprir apenas as despesas vitais da família. Ou seja, o salário contempla as necessidades imediatas de consumo: a moradia desta noite e não a de amanhã.

A conseqüência é que o valor da moradia somente pode ser realizado (ou seja, a transformação do capital-mercadoria em capital-dinheiro) na medida do seu consumo, isto é, a venda das unidades de moradia deve realizar-se ne-cessariamente ao longo de um largo período de tempo. Ou melhor, devido aos altos preços o valor total da moradia só poderá ser pago depois de muitos anos (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 38-39).

Em síntese, o capitalismo, por si só, não restou capaz de solucionar a questão da moradia. Como apontado, vários são os óbices impostos pelo siste-ma àqueles que se aventuram no mercado imobiliário, o que acaba por afastar os investimentos na presente seara, por se tratar de um negócio desinteressante.

Ademais, conjuntamente com essa premissa, impende ressaltar que o capitalismo cresceu atrelado à propriedade privada, sem a qual o lucro não se via-

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bilizaria, podendo ser considerado este, inclusive, o motivo maior na contenção das iniciativas que visem à efetivação do direito à moradia. Como adendo ainda a ser feito, Engels chamava a atenção ao fato de que sempre existirá interesse por parte da classe dominante em manter outra despossuída. Isso em razão de que esta acaba por ficar, dessa forma, enfraquecida, suscetível à submissão.

2.4 CAPITAL, ESTADO E CRISE HABITACIONAL

A presente relação estabelecida entre a cristalização do sistema ca-pitalista e a crise habitacional, até então se levando em conta a lógica imposta pelo capital, merece também ser abarcada sob um segundo aspecto, qual seja, a relação entre o modo de produção e as instituições sociais. Ou seja, ao lado da dinamização interna do sistema imposto, colocam-se agora as suas repercus-sões externas, isto é, a sua relação com as instituições sociais constituídas pelo homem, abarcando-se, assim, a compreensão integral da crise habitacional.

A impossibilidade do capitalismo em oferecer soluções efetivas à questão da moradia provém de sua própria estrutura lógica, enraizada na idéia de lucro. Desse modo, incumbiria então apenas ao Estado uma resposta à re-ferida questão, mediante a garantia e concentração de moradias por um longo período de tempo. Para tanto, como ressaltam Pechmann e Ribeiro, poderiam ser implementadas políticas habitacionais que oferecessem condições favorá-veis de financiamento, bem como uma política urbana que dificultasse a con-centração do crescimento urbano, com a reserva de áreas de expansão para a construção (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 28).

No entanto, em que pese tal assertiva, não obstante os avanços obtidos nos últimos anos a favor das classes mais carentes, percebe-se que o Estado também não conseguiu dar conta do problema que lhe fora atribuído, como bem corrobora a história das gestões públicas brasileiras. De todo modo, sequer precisaria adentrar-se nesta análise, eis que a realidade atual a que se submetem milhares de pessoas no Brasil, por si só, já explicita a presente assertiva, como bem evidenciado no ocorrido em São José dos Campos/SP, em 22 de janeiro de 2012, episódio este que ficou conhecido como o Caso Pinheirinho.

2.4.1 POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS

A partir de 1930, a habitação começa a ganhar maior atenção por parte das autoridades públicas, deixando de ser visto como um mero problema a ser solucionado como forma de manter a boa aparência nacional (visão esta que perdurou no início do Período Republicano). Até então, a questão da moradia era tratada como se fosse apenas um elemento que contribuía à formação da

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cultura nacional. A partir deste momento, o Estado passa a ter mais presença na busca por soluções a presente mazela que ganhava proporções cada vez maio-res. No entanto, em que pese ser considerado o pai dos pobres, percebeu-se que Vargas nada mais fez do que defender a estrutura econômica do país.

Dito em outras palavras, o Estado, imbuído nos ideais do capitalismo, passa a notar que a existência de habitações precárias, ou mesmo a sujeição de milhares de pessoas a viverem na rua, devido ao abalo das habitações coletivas, significava a crise do próprio sistema econômico. Isso, porque, a nascente in-dústria necessitava de trabalhadores em boas condições de saúde, o que não era possível com grande parte da população sujeita a situação de miserabilidade.

No Governo Dutra, por sua vez, em 1946, foi criada a Fundação da Casa Popular, regulamentada pelo Decreto 9.218, equivalendo ao primeiro órgão federal a tratar exclusivamente da questão da produção de residências no país. No entanto, como expõem Andrade e Azevedo, a FCP nada mais foi do que parte integrante de uma estratégia política de maior cunho, que objetivava ao mesmo tempo brecar com o avanço do Partido Comunista no país e ganhar a simpatia das camadas populares proporcionando-lhes mora-dias próprias. Assim, a moradia nada mais era do que um meio de angariar legitimidade e alcançar penetração junto aos trabalhadores. (ANDRADE; AZEVEDO, 1982, p. 135).

Passando agora à análise do BNH, implementado em 1967, suces-sor da FCP, constata-se que novamente interesses estranhos preponderam ao ideal social que tal política deveria carregar consigo. O referido programa mostrou-se incapaz de atender a população mais carente, em face do objetivo preponderante da política habitacional da época, qual seja, o de alavancar o crescimento econômico.

O financiamento às camadas de menor renda revelou-se inadequado para as populações mais empobrecidas (faixas de até 3 salários mínimos) e gerou uma inadimplência sistemática nas camadas de renda que conseguiram acesso aos recursos, comprimido pelo gargalo representado pela ausência de subsídios combinada ao arrocho salarial e à exigência de correção real dos dé-bitos, dado o alto custo da moradia em relação aos níveis de rendimento. A favelização e o crescimento das periferias são apontados como conseqüência do fracasso e da ineficácia da ação do BNH (CARDOSO, 2003, p. 6-17).

Na década de 90, a Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitá-ria (SEAC – substituiu o antigo Ministério da Habitação e do Bem-Estar Social) passou a desenvolver projetos que passaram a privilegiar a iniciativa dos estados e municípios, estratégia que começa a ganhar forças nos anos seguintes, pois, até então, as políticas habitacionais centralizavam-se na esfera federal. No entanto, regiões menos desenvolvidas e estados sem força política acabaram prejudicados.

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Dito em outras palavras, passa-se, a partir de então, dar foco às deman-das locais, porém, fica em evidência agora, não apenas interesses atrelados ao sistema econômico em que se fixa o Estado, mas, também, interesses políticos. Esse padrão veio a se aprofundar durante o Governo Collor, marcado por uma conjunção de interesses entre os governos municipais e a burocracia central.7

Tais critérios clientelistas tornam-se evidentes quando se fala, princi-palmente, no repasse de recursos dos estados aos municípios. Isso por que, em que pese existir o repasse de recursos da União aos estados, sob determinados critérios territoriais, dentro de tais entes federados, não havia critérios para a escolha de municípios a serem beneficiados, o que coloca põe a prova o des-cumprimento dos governos com a realidade fática que se colocava.

Chega-se, assim, aos governos de Lula e Dilma. Primeiramente, há de ser destacado que na gestão Lula manteve-se a essência da política econômica do governo FHC. Com a transição político-partidária entre PSDB e PT, valores são invertidos, o que reflete na postura do Estado. Todavia, há de se levar em conta que a base econômica continuou a mesma, o que repercutiu nessa mu-dança de paradigma, de modo que os interesses continuam os mesmos, apenas sendo conduzidos de forma diferente.8

Ao contrário do que possa transparecer, em se tratando de resultados específicos do Programa Minha Casa Minha Vida, não se obtiveram saldos sa-tisfatórios, eis que, como os programas anteriores, a classe média saiu como a principal beneficiada (DUTRA, 2010, p. 97). Esta classe econômica tem mais recursos que permitem financiar os imóveis com preços atrativos para as cons-trutoras e próximos aos grandes centros urbanos.

Logo, a oferta imobiliária acaba sendo voltada para tais interesses, de modo a desvincular-se do verdadeiro escopo originário de tais propostas gover-namentais. Ademais, não era outro resultado que se poderia esperar de projetos

7 Nesse sentido, aponta Adauto Lucio Cardoso que “a atuação do governo Collor na área da habitação, seguindo um padrão que se institucionaliza desde o governo Sarney, foi caracterizada por processos em que os mecanismos de alocação de recursos passaram a obedecer preferencialmente a critérios clientelistas ou ao favorecimento de aliados do governo central”. Complementa ainda o autor que a utilização predatória dos recursos do FGTS, que caracterizou os últimos 2 anos em que Collor esteve no poder, teve conseqüências graves sobre as possibilidades de expansão do financiamento habitacional, levando à suspensão por dois anos de qualquer financiamento, no período subseqüente. (CARDOSO, 2003, p. 6-17)8 Como bem salienta Luiz Gabriel B. Dutra, “o Estado abandona sua postura neoliberal, baseada em uma série de privatizações de empresas públicas e desregulamentação econômica, e passa a dar mais ênfase ao social, focando na aplicação de políticas públicas em prol da sociedade como um todo, principalmente da porção mais carente desta. Entretanto, não se trata da criação de um Estado de Bem-Estar Social por parte do atual governo, apenas a reutilização do planejamento econômico em algumas áreas como caminho para a retomada do crescimento e desenvolvimento”. (DUTRA, 2010, p. 96)

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que dependam mais da iniciativa privada, do que de recursos exclusivamente pú-blicos, o que acaba, sempre, desvinculando os planos inicialmente propostos para outros setores, que não aqueles atrelados às verdadeiras necessidades sociais.

Nessa esteira, pode-se afirmar que, ao largo dos anos, ao passo que o Es-tado passou a se responsabilizar pela questão da moradia, muitas propostas foram feitas desvinculadas da realidade em que inseridas. O Estado, assim, encarregou-se, na realidade, em alargar o buraco que distancia o planejamento urbano da gestão.

2.4.2 O CASO PINHEIRINHO

O caso Pinheirinho, ocorrido no estado de São Paulo, trouxe con-sigo não apenas uma realidade fática que a população brasileira já conhe-ce de anos, qual seja, a própria precariedade do quadro habitacional que atinge milhares de pessoas; o referido episódio possibilita, ainda, em um segundo plano, a compreensão da crise da moradia na sua própria totali-dade, como adiante se explanará.

Em apertada síntese, em 22 de janeiro de 2012, cerca de 1,5 mil famí-lias foram despejadas de um terreno de 1,3 milhões de metros quadrados, em razão de uma decisão judicial prolatada em uma ação contestada e condenada por representantes do poder público, da sociedade civil e de alguns órgãos da imprensa, alcançando repercussões a nível mundial.

Em suma, a ação girou em torno de interesses especulatórios imobi-liários. No centro das discussões encontrou-se Naji Nahas, megaespeculador, e sua empresa Selecta Comércio e Indústria S/A, proprietária do terreno que as famílias ocuparam em 2004. Fruto de suas operações, e, em razão da falência da empresa, o imóvel acabou servindo de garantia ao processo falimentar que correu perante a 18º Vara Cível de São Paulo, sob a responsabilidade do magis-trado Luiz Beethoven Giffoni Ferreira.

Personagem conhecido das páginas policiais brasileiras, Nahas, an-tigo proprietário da Selecta, ganhou fama quando quebrou a extinta Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. O especulador lançava mão de empréstimos bancá-rios para comprar ações apostando na valorização constante do mercado. Usava contas correntes diferentes, de diversas empresas que controlava, para comprar grandes lotes de papéis e induzir outros investidores a fazer o mesmo, o que inflava artificialmente os preços (ALMEIDA; MARTINS, 2012, p.24-28).

Como instrumento de suas “jogadas”, Nahas constituiu a empresa Se-lecta de Comércio e Indústria S.A, tendo por um dos seus ativos o terreno que veio a ser intitulado mais tarde de Pinheirinho. Desta feita, o único uso que Nahas deu ao referido terreno, até ele ser ocupado pelas famílias sem-teto em 2004, foi o de garantia para dois empréstimos bancários.

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Posteriormente, com a decretação da falência da Selecta, percebeu-se que o terreno do Pinheirinho veio a servir como meio eficaz para reduzir dras-ticamente os débitos da empresa. Em tese, o terreno constituiria uma garantia, caso os ativos da empresa não fossem capazes de cobrir as dívidas contraídas com os credores. Assim, o Pinheirinho iria a leilão a fim de que as obrigações pudessem ser adimplidas. É assim em todo processo de falência.

De toda forma, por artimanha de seus advogados, Nahas utilizando--se de preceitos legais que permitem negociar a dívida da empresa falida com terceiros, tornou-se credor de si próprio, reduzindo-se, assim, o valor da dívida, impedindo que fosse feita a venda pública do imóvel (ALMEIDA; MARTINS, 2012, p.24-28). Assim, a Selecta garantiu o cumprimento de suas obrigações com a maior parte dos credores.

Importante destacar que os créditos da massa foram comprados por duas empresas: Selecta Construções Imobiliárias e RS Administração e Cons-trução Ltda. A RS figura na Junta Comercial de São Paulo como de propriedade da Sociedad Immobiliária de Investimentos S.A, empresa com sede no Panamá, um dos famosos paraísos fiscais da América Central. Por coincidência, no Bra-sil, a Sociedad é sócia de Teófilo Guiral Rocha, advogado de Nahas (ALMEI-DA; MARTINS, 2012, p.24-28).

Ao todo, a RS comprou 48 milhões de reais em crédito. Parte desse dinheiro foi usada para quitar o débito de IPTU do Pinheirinho do exercício de 1997, bem como os honorários dos procuradores do município, restando, toda-via, os débitos anteriores à negociação (IPTU – 1991 a 1996).

De todo modo, importante ressaltar que, diante das estratégias utili-zadas por Nahas, a empresa falida permaneceu com quantia suficiente em caixa para pagar o restante dos credores, sem a necessidade de que o terreno fosse a leilão. Helu, advogado de Nahas, afirmou que não seria mais necessário leiloar bens da Selecta, pois todos os créditos já haviam sido quitados, restando apenas o da credora Titular S.A, cujo valor estaria depositado em juízo (ALMEIDA; MARTINS, 2012, p.24-28).

Paralelamente às estratégias jurídicas utilizadas por Nahas, o terreno ocupado vinha ganhando cada vez mais famílias, ao passo que, em 2006, o espaço já começava a se mostrar insuficiente para acomodar as várias famílias que não paravam de chegar.

Naquele mesmo ano ainda, uma comissão criada pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão ligado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos do governo federal, foi visitar os moradores da região, no intuito de intermediar um acordo entre a prefeitura e os moradores do Pinhei-rinho. A comissão buscou o apoio estatal em alterar o zoneamento da região, no sentido de convertê-la em área de interesse social. Porém, o governo mos-

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trou-se indisposto a negociações, além de que as propostas oferecidas para a regularização das terras não passaram do gabinete dos secretários municipais (CARVALHO, 2012).

Outro ponto curioso a se destacar no referido episódio consiste tam-bém na forma como foi conduzido o processo judicial. Em 2004, logo após a ocupação da área, a massa falida da Selecta entrou com pedido de reintegração de posse, o qual tramitou perante a 6º Vara Cível de São José dos Campos. De toda forma, com base no chamado juízo universal da falência, pelo qual todas as ações contra a massa falida, ou que nela tenham interesse, devem ser propostas no Juízo Falimentar, peticionou-se ao juiz Luiz Beethoven Giffoni Ferreira, responsável pelo processo falimentar, requerendo que fosse concedido ao autor da demanda liminar a fim de que fossem despejadas do terreno de maneira ime-diata todas as famílias.

Sendo assim, o juiz Ferreira defere o pedido e envia uma carta pre-catória ao juiz da 6º Vara Cível de São José dos Campos pedindo cooperação no cumprimento da ordem. Porém, o juiz Marcius Geraldo Porto, ao receber o processo, em prol do direito a moradia, o qual deveria anteceder qualquer ação de reintegração de posse, não cumpre tal ato. Assim, inicia-se uma discussão perante o STJ, no sentido de analisar qual o juízo competente para o julgamento da reintegração, sendo reconhecida a incompetência do juiz da 18º Vara Cível de São Paulo, remetendo-se, assim, o caso à 6º Vara Cível de São José dos Cam-pos, o qual indeferiu o pedido de liminar.

Nessa esteira, vários recursos ainda foram interpostos ao curso do feito o que veio a perdurá-lo ao longo de 2004 até 2011, quando então a juíza Márcia Loureiro, titular da 6º Vara, acaba por determinar, de ofício, a desocupa-ção do Pinheirinho e reintegração da área à massa falida, com base na decisão liminar deferida pelo juízo da 18º Vara de São Paulo, proferida em 2004.

Cabe aqui ressaltar que, primeiramente, a decisão do juiz Beethoven já estava anulada com o julgamento do STJ. Em segundo lugar, juridicamen-te Loureiro só poderia ter determinado a reintegração nesse momento se uma das partes envolvidas no litígio tivesse se manifestado. Mas, o que ocorreu foi justamente o contrário. Conforme petição protocolada pela massa falida em 11/04/2011, a mesma desistiu da liminar anteriormente pleiteada.

Em que pese as ilegalidades no trâmite judicial, em uma reunião reali-zada no dia 10/11/2011, entre a juíza Márcia Loureiro, o comandante da Polícia Militar, representantes da prefeitura de São José e da massa falida da Selecta, começou-se a delimitar como seria a operação de remoção. Em 12/01/2012, um oficial de justiça entregou para o comando da PM a decisão da Justiça Estadual, determinando a reintegração da posse (CARVALHO, 2012). Em 22/01/2012, às 6h da manhã, forças policiais entraram na área ocupada expulsando com toda

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violência a população que lá se encontrava. Milhares de pessoas apanharam de graça dos policiais, inclusive mulheres, além de que tiros de borracha fo-ram disparados mesmo contra moradores que apenas tentavam fugir.

Não apenas as casas construídas foram destruídas, mas, também, boa parte dos móveis que nelas se encontravam, os quais as famílias não con-seguiram retirar a tempo, eis que, como destacado reiteradamente, a operação policial deu-se em um momento que ninguém até então esperava, conside-rando as negociações que estavam sendo feitas, bem como o andamento da ação processual. Dessa maneira, exceto aqueles pertences que puderam ser encontrados no prazo de 15 minutos (tempo que a polícia disponibilizou para as famílias saírem), bem como passíveis de serem levados consigo, o restante ficou para trás, destruídos pela ação dos tratores que tomaram a área, logo após a desocupação.

Após o ocorrido, as diversas famílias ocupantes do referido terreno, em sua maioria, não tiveram para onde ir, passando a depender da atuação estatal. Há de se destacar, ainda, que muitos perderam seus empregos, eis que não conseguiam comparecer nos seus trabalhos, além de que muitos atin-gidos, senão todos, perderam parte significativa de seus bens e, até mesmo, documentos.

O acontecimento do dia 22/01/2012 não apenas retirou o véu que encobre a crise habitacional no Brasil, como também atraiu os olhares de fora para o país, repercutindo, por exemplo, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, bem como impulsionou as manifestações internas, re-presentadas estas, dentre diversos órgãos, pelo Conselho Nacional de Justiça (PASSOS, 2012). De todo modo, em que pese às manifestações expostas, nada foi divulgado pela mídia, como se nenhum ocorrido de graves implica-ções tivesse tomado conta do cenário brasileiro nos últimos meses.

O Procurador do Estado de São Paulo, Marcio Sotelo Felippe, bem destacou a presente situação, expondo não apenas o descaso frente ao caso em tela, mas destacando, especificamente, o papel da mídia a qual deveria, em tese, manter-se imparcial e não ceder ao poderio das autoridades paulistas que estão por detrás do ocorrido. (LEMES, 2012)

Por fim, no que concerne ao destino do Pinheirinho, impende re-gistrar que o terreno iria a leilão no final de setembro de 2012 por R$ 187 milhões, ou seja, o dobro do valor venal da área, estimado atualmente em R$ 92,7 milhões. De todo modo, o procedimento acabou suspenso por requeri-mento da massa falida, por tempo indeterminado. Em síntese, o terreno onde, até então, residiam cerca de 6 mil pessoas, teve por destino a hasta pública, desprestigiando o direito à moradia em prol de interesses especulatórios.

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2.4.3 MATERIALISMO HISTÓRICO DE KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS

O Pinheirinho, não apenas deixou seu marco na história, sendo um dos acontecimentos mais significantes da crise habitacional brasileira, como, também, retirou o véu que encobre a referida mazela, até então maquiada pelas políticas públicas habitacionais.

Do referido caso extraem-se alguns questionamentos até então não devidamente respondidos: qual a razão de ter-se privilegiado tanto o direito à propriedade privada, tendo em vista que o terreno em tela, até sua ocupação pelas famílias, nunca cumpriu função social alguma? Por que a Juíza Márcia Loureiro concedeu a reintegração de ofício, considerando que sequer a massa falida entrou com requerimento, bem como todos credores trabalhistas já ha-viam sido pagos? Qual a razão do Estado ter se omitido na busca de soluções ao referido episódio, durante todo o tempo que transcorreu a ação, mostrando-se ativo apenas quando o caso veio a ganhar repercussões internacionais?

O Poder Judiciário agiu com completo desapego à situação concreta amostrada, como se não fosse de sua incumbência também zelar pela efetivação das políticas públicas. Por sua vez, o Poder Executivo, o que não se destacou agindo, fez se omitindo. Por cerca de 8 anos (tempo de duração do processo, aproximadamente), não se ateve em propor nenhuma solução ao ocorrido, ape-nas se manifestando presente quando outras instituições sociais começaram a se mobilizar contra a iminente expulsão.

Como forma de amparo aos desabrigados, o governo Alckmin com-prometeu-se em construir 5 mil moradias populares ao longo dos próximos anos. No entanto, conforme dados da Secretaria Estadual da Habitação/CDHU, nos últimos 16 anos o governo paulista construiu menos de 3.800 moradias populares em São José dos Campos, fato este que coloca em xeque as reais intenções do Estado de São Paulo. Dito em outras palavras, se nem mesmo o estado mais rico do Brasil mobilizou-se em garantir o direito à moradia, vindo a dar-lhe maior enfoque apenas em face de um acontecimento que gerou reper-cussões nacionais e internacionais, não se resta esperar que outros estados dêem maior atenção às políticas públicas habitacionais.

Da análise do caso Pinheirinho, bem como das políticas públicas habitacionais, resta, assim, patente, que o Estado, para aquém de uma ins-tituição comprometida em solucionar as mazelas sociais, prestigia, em ver-dade, interesses estranhos aos fundamentos esculpidos no art.1° da Cons-tituição Federal Brasileira de 1988. Impende-se entender qual a razão para tanto, sobretudo em um contexto que prepondera o neoconstitucionalismo, como anteriormente enunciado.

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A justificativa é encontrada no século XIX, mais precisamente no materialismo histórico de Marx e Engels. Marx há séculos atrás, já havia compreendido, não só o surgimento e a própria dinâmica dos modos de pro-dução, como, também, a influência do sistema econômico constituído sobre as instituições sociais criadas pelo homem, raciocínio o qual se intitulou de materialismo histórico.

Como expõem Maria Lúcia de. A. Aranha e Maria Helena Pires, Marx inverte o processo do senso comum que explica a história pela ação dos “grandes vultos”, ou, às vezes, até pela intervenção divina. Para o marxismo no lugar das idéias, estão os fatos materiais: no lugar dos heróis, a luta de clas-ses. Em outras palavras, embora possamos tentar compreender e definir o ser humano pela consciência, pela linguagem, pela religião, o que fundamental-mente o caracteriza é a forma pela qual reproduz suas condições de existência (ARANHA; PIRES, 2003, p. 265).

Em suma, as relações de produção que os homens estabelecem entre si, constituindo, assim, o sistema econômico, formam a base de todas as suas relações. Para Marx, apenas a partir do materialismo histórico que se pode com-preender, sem distorções, a vida, não só econômica de uma determinada socie-dade, mas, também, social, política e intelectual. Em outras palavras, as relações econômicas travadas pela sociedade influenciam diretamente na sua produção de consciência, de modo que, a partir desta, se cristalizam as instituições sociais.

Dessa forma, o Estado é condicionado pela estrutura econômica que lhe perfaz, sendo uma forma na qual os indivíduos de uma classe domi-nante fazem valer seus interesses comuns. Marx e Engels ressaltavam que à concepção moderna de propriedade privada corresponde a figura do Estado, o qual, assentado nos interesses daqueles que conduzem a base econômica de uma sociedade, cai completamente sob o controle destes pelo sistema da dívida pública. Sua existência é completamente vinculada ao crédito co-mercial concedido pelos proprietários privados, os burgueses (MARX; EN-GELS, 1999, p. 97-98).

A burguesia, na Era Moderna, por ser já uma classe e não mais um estamento, obrigou-se a organizar-se nacionalmente, e não mais localmente, de modo a dar uma forma geral a seu interesse médio. Ou seja, a autonomia do Estado ocorre hoje em dia apenas naqueles países onde os estamentos ainda não se desenvolveram totalmente até se transformarem em classes (MARX; ENGELS, 1999, p. 97-98).

Assentadas tais premissas, compreende-se a conduta do Estado ao largo dos anos na história brasileira no que corresponde a efetivação do direito a moradia, o que, por via reflexa, em consonância com os próprios ditames da lógica interna capitalista, acabou apenas por perpetuar a crise habitacional.

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Neste sentido, a teoria enunciada por Marx e Engels ainda é atu-al, conforme restou comprovado pela própria história, e, no que se refere especificamente à questão habitacional brasileira, pelas políticas públicas esmiuçadas, bem como pelo Pinheirinho, ambos apontamentos expressões claras, não só da própria lógica interna do funcionamento do capital, mas, sobretudo, da vinculação das autoridades governamentais aos interesses do capital, o que é comungado por pensadores de também grande peso que lhe sucederam (HALL, 1992, p. 10).

Veja-se, não fosse assim, além dos próprios fundamentos até aqui ex-postos, a juíza que deferiu a liminar para a desocupação do Pinheirinho não teria simplesmente prezado pela efetivação do direito positivo posto, própria expressão do Estado, o que se coaduna, por via reflexa, com os interesses do capital. Não fosse assim, a maioria das políticas habitacionais propostas não teriam assumido mais o interesse do mercado, ao invés de se ocupar em propor soluções efetivas às mazelas sociais que circundam a sociedade brasileira, pelos quatro cantos do país. Mesmo nos governos mais recentes, visualiza-se que os programas ditos sociais atingiram classes que não aquelas que realmente neces-sitavam das iniciativas públicas.

Em intensidade maior ou menor, os planos governamentais sempre acabaram fazendo-se reféns do próprio sistema econômico em que inseridos. Logo, o interesse que sempre prevaleceu foi o do capital, inicialmente de ma-neira mais forte, o que, com o tempo, mais precisamente com o advento dos di-reitos fundamentais e sua efetivação, acabou por ceder um pouco de seu espaço às reivindicações sociais; no entanto, não se pode olvidar que sempre continua-rá sendo o elemento central que ditará as diretrizes das sociedades.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se no presente trabalho apontar as raízes sobre as quais se fixou a crise habitacional brasileira. Não obstante vários possam ser os motivos que a justificam, buscou-se, a par da utilização do método indutivo, esclarecer que o elemento central na compreensão do tema consiste no sistema capitalista, visto esse sob dois prismas: a partir de sua própria lógica interna, bem como mediante sua influência na constituição das instituições sociais.

A partir de um breve estudo histórico, constatou-se que a crise ha-bitacional surgiu vinculada ao amadurecimento do capitalismo, mais preci-samente no século XVIII, com a eclosão da Revolução Industrial. Diante de tal assertiva, necessário se fez esmiuçar o referido modo de produção, com o escopo de então melhor compreender a razão pela qual nele surgiu e se assen-tou a crise habitacional.

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Assentada sua base lógica, concluiu-se que o capitalismo inviabiliza, por si só, investimentos na seara imobiliária, em razão do referido ramo não proporcionar capital de giro facilmente como outros ramos de produção, difi-cultando, assim, a lucratividade. Ademais, saindo de seus contornos externos e aprofundando na sua essência, verificou-se, ainda, que as amarras do sistema se fortalecem ainda mais se levado em conta a idéia de propriedade privada, elemento este essencial ao correlato modo de produção, eis que sobre ele se assenta o lucro.

Ainda, como terceiro elemento inerente à lógica interna do sistema capitalista, que, conjuntamente com os anteriores, dificulta a efetivação do di-reito à moradia, apontou-se o próprio interesse que há em se manter uma classe despossuída, a fim de que esta se mantenha sempre submissa aos interesses da classe dominante.

Colocadas tais palavras, indagou-se sobre o papel do Estado, o qual, com fulcro nos ideais do Estado Democrático de Direito, deveria garantir o mí-nimo necessário aos seus cidadãos. Todavia, a partir de um breve apontamento acerca das políticas públicas habitacionais, sobretudo, mediante o estudo feito sobre o Caso Pinheirinho ocorrido em São José dos Campos/SP, no início do presente ano, conclui-se que o Estado eximiu-se de sua obrigação.

Valendo-se dos postulados de Marx e Engels, buscando uma justifica-tiva para tanto, concluiu-se que o Estado é fortemente marcado pelos interesses do capital, sendo por ele influenciado. De posse de tais fundamentos, chegou--se, assim, à síntese que se visava desde o início do presente trabalho: o capita-lismo é o fator que determinou a formação e cristalização da crise habitacional, sob o prisma de sua própria lógica interna, bem como sobre a influência que se estabeleceu sobre as instituições sociais, especialmente, a figura do Estado.

O Pinheirinho, dessa forma, para além de um mero acontecimento que deixará suas marcas na história brasileira, trouxe à tona também a idéia de que o capital é o elemento central de uma sociedade, influindo valores que sempre estarão na consciência da população a ele abarcada, protegendo, assim, os meros interesses de uma minoria em desfavor de toda uma coletividade.

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ANÁLISE DAS INELEGIBILIDADES NO TEXTO CONSTITUCIONAL

brunna hElouiSE marin

Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Univer-sitário Curitiba – UNICURITIBA. Integrante do Grupo de Estudos Hermenêutica Constitucional e a Concretização dos Direitos Funda-mentais na Pós-Modernidade.

luiz GuStaVo DE anDraDE

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), pós-graduação pela Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2008). Atualmente é professor da Faculdade de Direito de Curitiba do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e advoga-do militante no Paraná.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Inelegibilidades Absolutas; 3. Inelegibilidades Relativas; 3.1 Inelegibilidade relativa em razão da função; 3.2 Inelegibilidade em razão do parentes-co; 3.3 Inelegibilidade dos militares; 4. Considerações Finais; 5. Referências.

RESUMO

A democracia pressupõe o exercício do poder pelo povo. Para tan-to, o texto constitucional dispõe sobre instrumentos voltados a permitir que o cidadão participe do processo de tomada de decisões. Pelo voto, escolhe-se o representante popular; aquele que, em nome de muitos, atuará no processo de elaboração das leis e na escolha de políticas públicas. Para concorrer a man-datos eletivos, é necessário o preenchimento de requisitos constitucionais de elegibilidade. Além disso, a Constituição apresenta hipóteses de restrição que impedem determinados cidadãos de postularem mandato eletivo. O presente trabalho trata das inelegibilidades relativas, em razão da função, do parentesco e da condição militar.

Palavras-chave: eleitoral; inelegibilidades constitucionais

ABSTRACT

Democracy presupposes the exercise of power by the people. Thus, the Constitution provides for instruments designed to allow the citizen to par-ticipate in the decision making process. By voting, you choose the popular

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representative, who, on behalf of many, will serve in the drafting of laws and choice of public policies. To run for elective mandates, it is necessary to fill the constitutional requirements for eligibility. Moreover, the Constitution presents hypotheses restriction preventing certain citizens of positing an elec-tive office. This paper addresses the ineligibility for, by reason of function, kinship, and veteran status.

Keywords: electoral; constitutional ineligibility

1 INTRODUÇÃO

Os Direitos Políticos, por serem tema de fundamental importância, fo-ram normatizados através da inserção de um capítulo especial na Constituição Federal de 1988, sendo definidos por Thales Cerqueira como o “conjunto de nor-mas que disciplinam os meios necessários ao exercício da soberania popular9”.

Neste contexto, a Carta Magna adotou a forma da democracia repre-sentativa conjugada a mecanismos de participação popular, exercida por meio dos direitos políticos positivos, por meio do voto, do exercício de cargo públi-co, além de outros instrumentos, através dos quais se assegurará que o cidadão participe na formação e decisões do governo, como ponto basilar do Estado Democrático de Direito.

Na mesma linha e mais especificamente, no que tange aos direitos públicos políticos subjetivos passivos, ao poder de postular o voto dos demais cidadãos, conforme determina a Lei Maior, o candidato deve ter capacidade para submeter seu nome à avaliação do eleitorado, cujo propósito é resguardar a probidade da administração pública e, sobretudo, o interesse público, uma vez que os representantes do povo serão escolhidos através do sufrágio universal.

Assim, antes mesmo de colocar o seu nome na disputa eleitoral, o pretenso candidato deve preencher todas as condições de elegibilidade, para que possa validamente postular um mandato, e, ainda, não pode para tanto, estar incurso nas hipóteses de inelegibilidade.

Neste viés, é necessário que o postulante reúna as condições de elegi-bilidade elencadas no art.14, §3º da CF, quais sejam: nacionalidade brasileira, pleno exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicílio eleitoral na circunscrição, filiação partidária e idade mínima para postular o mandato relativo ao respectivo cargo que pretenda disputar.

Na ausência de qualquer um desses requisitos, o cidadão não po-derá concorrer a qualquer cargo eletivo, não se confundido, porém, como

9 CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 85.

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uma hipótese de inelegibilidade, conforme o Ministro Moreira Alves “para que alguém possa ser eleito, precisa preencher pressupostos de elegibilida-de (requisito positivo) e não incidir em impedimentos (requisito negativo). Quem não reunir estas duas espécies de requisitos - o positivo (preenchi-mento de pressupostos) e o negativo (não incidência em impedimentos) - não pode concorrer a cargo eletivo”10.

Sobre as causas de inelegibilidade, a Carta Magna prevê no art.14, §§ 4º a 7º, as hipóteses de restrição que impedem determinados cidadãos de postularem mandato eletivo.

Conforme entendimento do Tribunal Superior Eleitoral “a inelegibi-lidade importa no impedimento temporário da capacidade eleitoral passiva do cidadão, que consiste na restrição de ser votado (...)11”.

Importante salientar que as inelegibilidades constituem-se em um di-reito político negativo, uma vez que importam em uma forma de impedimento, restringindo a participação de determinados cidadãos no processo político de forma passiva. De acordo com Adriano Soares da Costa “a inelegibilidade é o estado jurídico de ausência ou perda de elegibilidade. Sendo a elegibilidade o direito subjetivo público de ser votado (direito de concorrer a mandato eletivo), a inelegibilidade é o estado jurídico negativo de quem não possui tal direito subjetivo - seja porque nunca o teve, seja porque o perdeu”12.

Podem ser classificadas de acordo com diversos critérios, quanto à origem, são divididas em constitucionais e infraconstitucionais, destacando-se no presente artigo, aquelas, que decorrem diretamente do texto constitucional, diferenciando-se destas quanto à força normativa e prazo de impugnação.

As inelegibilidades constitucionais têm aplicabilidade imediata e efi-cácia plena, independem de lei infraconstitucional para que produza seus efeitos, além de poderem ser arguidas a qualquer tempo, não estando sujeitas a preclusão.

2 INELEGIBILIDADES ABSOLUTAS

As inelegibilidades absolutas são aquelas que implicam na restrição a ocupação de qualquer cargo eletivo, não havendo prazo para cessação do im-pedimento, ou seja, incorrendo nessa hipótese, o cidadão não poderá pleitear eleição alguma, uma vez que não é titular de elegibilidade.

Por terem caráter excepcional, apenas são legitimas as hipóteses pre-vistas no texto constitucional, que prevê como inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos, conforme dispõe o §4º do art. 14.

10 Ibid. p. 627.11 Tribunal Superior Eleitoral. AAG 4598, Rel. Min. Fernando Neves da Silva; Julg. 03/06/2004; DJU 13.08.2004, p. 40112 COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 3. ed. São Paulo: Del Rey, 2010. p. 63.

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Em relação aos inalistáveis, observa-se primeiramente que os direitos da cidadania são adquiridos por meio do alistamento eleitoral, que, segundo Djalma Pinto, “é o processo através do qual o individuo é introduzido no corpo eleitoral, ou seja, quando seu nome é inscrito no rol dos eleitores. Trata-se, por assim dizer, do mecanismo de aquisição de cidadania. Por ele se obtém a aptidão para participar da condução dos negócios públicos”13. O alistamento é feito mediante qualificação e inscrição da pessoa junto à Justiça Eleitoral, atendidos certos requisitos legais.

Ressalta-se que o alistamento eleitoral é condição de elegibilidade, está intimamente ligado à aquisição de cidadania, outorgando ao cidadão capacidade eleitoral ativa, e sua ausência, por conseguinte, ensejará na ine-legibilidade do cidadão.

Em vista das outras espécies de inelegibilidades, essa hipótese é mais genérica, uma vez que existem vários casos em que o cidadão não possuirá aptidão para se alistar, porquanto é exigido que a pessoa tenha nacionalidade brasileira, idade mínima, e que sejam apresentados alguns documentos para comprovação da qualificação. Adverte Djalma Pinto que “o requerimento que não contenha os dados exigidos é tido por imprestável, devendo ser devolvido ao interessado que fica, em conseqüência, sem alistar-se”14.

Nessa linha, a própria Constituição descreve de forma expressa no §2º do art.14 quais indivíduos não podem se alistar: os estrangeiros e os conscri-tos. Neste caso, estão os recrutas, alistados nas Forças Armadas, no período de prestação do serviço militar obrigatório. Conforme o Ministro Nilson Naves “a proibição de o conscrito votar não é mais e nem menos que a suspensão tem-poral de direitos políticos”15, afirma, ademais, que o jovem que “vier a prestar o serviço militar, será, forçosamente, impedido de votar, por estar com seus direitos políticos suspensos durante o período da conscrição, embora esta causa de suspensão, não esteja elencada no artigo 15 da Carta Magna”16.

Os estrangeiros, também são inalistáveis, por não possuírem nacio-nalidade brasileira não preenchem os requisitos para o alistamento eleitoral, portanto, não possuem capacidade eleitoral ativa, sendo inelegíveis. Entretanto, depois de adquirida a nacionalidade brasileira, através do processo de natura-lização, obtêm todos os direitos políticos inerentes aos cidadãos brasileiros, inclusive a elegibilidade, salvo para postular os cargos previstos no art.12, §3º, da CF, que somente podem ser ocupados por brasileiros natos.

13 PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 150.14 Ibid. p. 151.15 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.165; Processo Administrativo n. 16.337; Rel. Nilson Naves; j. 07.04.1998; DJU 14.05.1998; p. 85.16 Ibid.

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Da mesma forma, não podem se alistar aqueles cidadãos que incor-ram nas hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos, com previsão no art.15 da CF, porquanto se encontram privados destes direitos.

No caso de perda de direitos políticos, segundo Marcos Ramayana, “o cidadão ficará afastado de suas capacidades ativas e passivas (direito de votar e ser votado) por absoluta impossibilidade de reversibilidade (reaquisição)”17, não havendo previsão de cessação do cerceamento das capacidades eleitorais. Poderá ocorrer com o cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado ou como conseqüência da recusa de cumprir obrigação a todos im-posta. Neste caso, consoante o art.5º, inciso VIII, da Constituição, é permitido que o indivíduo, uma vez que lhe é assegurado à liberdade de crença religiosa, convicção filosófica e política, deixe de cumprir uma obrigação legal a todos imposta, evocando escusa de consciência, com a condição de que cumpra uma prestação alternativa, sob pena de perda dos direitos políticos.

Na hipótese de cancelamento da naturalização, após o transito em jul-gado da decisão, como consequência o individuo retornará a situação de estran-geiro, uma vez que cometeu atividades nocivas ao interesse nacional, tornando--se novamente inalistável. Não obstante, lembra Thales Cerqueira a propósito da aquisição voluntária de outra nacionalidade pelo cidadão brasileiro que, des-se modo, “perderá a nacionalidade brasileira e, consequentemente, seus direitos de cidadania. Neste caso, deve-se fazer a interpretação sistemática da própria Constituição Federal de 1988, para incluir, no art.15, o art.12, §4º, II, não se cogitando a hipótese de inconstitucionalidade, pois ambas as normas retiram fundamento de validade da própria Constituição”18.

Por outro lado, no caso de suspensão dos direito políticos, o cidadão so-mente terá restringido os seus direitos políticos pelo prazo estabelecido pela lei ou com a reaquisição deles, podendo surgir como conseqüência da: condenação crimi-nal transitada em julgado enquanto perdurarem seus efeitos, improbidade adminis-trativa e incapacidade civil absoluta. Esta se refere aos menores de 16 anos, àqueles que, por moléstia ou deficiência mental, foram declarados incapazes por sentença judicial, porquanto não possuem discernimento para exercer os atos da vida civil, e também, aos que por momento transitório não consigam exprimir sua vontade.

Em relação à condenação criminal transitada em julgado, de acordo com o entendimento do TSE, ela “ocasiona a suspensão dos direitos políticos, enquanto durarem seus efeitos, independentemente da natureza do crime”19, e ainda, essa suspensão “prevista no art. 15, III, da Constituição Federal é efeito

17 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 64.18 CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 126.19 Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira, j. 15.10.2009, DJU 14.12.2009, p. 15.

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automático da condenação criminal transitada em julgado e não exige qualquer outro procedimento à sua aplicação”20. Portanto, nesta hipótese, tem-se que a suspensão é uma conseqüência automática e imediata da sentença condenatória e persiste até o cumprimento da pena ou extinção da punibilidade, consoante a Súmula nº 09 do TSE.

No mesmo sentido, prevê o art.37, §4º da CF, regulado pela Lei nº 8.429/92, que os atos de improbidade administrativa importam na suspensão dos direitos políticos, além de vislumbrar outras sanções aplicáveis ao agente público. Entretanto, a condenação por ato de improbidade administrativa, por si só, não gera inelegibilidade, conforme ponderação do TSE “a sanção de suspensão dos direitos políticos, por meio de ação de improbidade adminis-trativa, não possui natureza penal e depende de aplicação expressa e motiva-da por parte do juízo competente, estando condicionada a sua efetividade ao trânsito em julgado da sentença condenatória, consoante expressa previsão legal do art. 20 da Lei nº 8.429/92”21.

Contudo, note-se que o pretenso candidato condenado por ato doloso de improbidade administrativa, tipificado como lesivo ao patrimônio público e gerador de enriquecimento ilícito, ao contrário do que dispõe a Lei de Improbi-dade Administrativa, poderá ser declarado inelegível perante a Justiça Eleitoral bastando somente condenação por órgão colegiado, consoante preceitua o art. 1º, alínea “l” da Lei Complementar nº 64/1990, com redação dada pela LC 135/2010. Nesse sentido, afirma Marcos Ramayana que essa hipótese “trata-se de uma causa de inelegibilidade que é efeito secundário da sentença ou acórdão não eleitoral, mas que impedirá o registro de uma candidatura e até mesmo ser-virá como matéria de impugnação ao mandato eletivo”22.

A respeito da inelegibilidade absoluta do analfabeto, depreende--se que há uma exceção, visto que ele possui, facultativamente, capacidade eleitoral ativa, conforme dispõe o art. 14, §1º, inciso II, alínea “a”, da Cons-tituição, entretanto, é inelegível, por força do §4º do aludido artigo. Essa hipótese tem como escopo a premissa de que o cidadão necessita ter um mínimo de conhecimento da língua para que possa exercer seu mandato de forma autônoma e digna.

Consoante o entendimento do TSE, o simples fato de o cidadão saber escrever seu nome não afasta essa hipótese, podendo ser avaliado, ainda que singelamente, o domínio da escrita e da compreensão de tex-tos. Segundo o Ministro Néri da Silveira “não se pode considerar analfa-20 Ibid.21 Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 23347; Rel. Min. Carlos Eduardo Caputo Bastos; j. 22.09.2004.22 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 336.

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beto, para os efeitos da Constituição, candidato que ler e tiver condições mínimas de escrever um texto, ainda que não seja um texto suscetível de aplausos por parte de um critico de redação ou um critico literário”23. Destarte, a interpretação jurisprudencial acerca do respectivo dispositivo constitucional é feita de forma restritiva, uma vez que o seu reconheci-mento acarretará na restrição de um direito fundamental do cidadão.

Não obstante, tal interpretação, exigi-se que no momento do pe-dido do registro da candidatura seja apresentado comprovante de escola-ridade para aferição da condição de alfabetizado do candidato, gerando uma presunção relativa. Porém, “quando o comprovante de escolaridade não se mostrar suficiente para formar a convicção do juiz, deve-se exigir declaração de próprio punho do candidato. Se for intimado e não com-parecer em cartório para firmar essa declaração, perderá oportunidade de comprovar sua condição de alfabetização”24, conforme ponderação da Corte Superior Eleitoral.

No mais, esta Corte entende que “na falta do comprovante de escolaridade, é imprescindível que o candidato firme declaração de pró-prio punho em cartório, na presença do juiz ou de serventuário da Justiça Eleitoral, a fim de que o magistrado possa formar sua convicção acerca da condição de alfabetizado do candidato”25.

Contudo, havendo dúvida ou suspeita, o magistrado pode submeter o candidato a um teste, sendo legal e legítima essa avaliação, com a condição de que seja respeitada a dignidade do candidato, consoante juízo do TSE “a Constituição Federal não admite que o candidato a cargo eletivo seja exposto a teste que lhe agrida a dignidade. Submeter o suposto analfabeto a teste público e solene para apurar-lhe o trato com as letras é agredir a dignidade humana (CF, art. 1º, III). Em tendo dúvida sobre a alfabetização do candidato, o juiz poderá submetê-lo a teste reservado”26. Todavia, segundo o Ministro Gilmar Mendes, ainda que o teste de alfabetização seja reservado, se “traz constrangimento ao candidato, não pode ser considerado legítimo”27.

Ademais, a alegação de que o candidato já ocupou mandato eletivo e por isso é alfabetizado, sendo elegível, não encontra respaldo nas decisões do TSE, uma vez que esse entendimento já foi pacificado, sendo, inclusive sumulado, através da súmula nº 15 que expõe que “o exercício de cargo eletivo não é circunstância suficiente para, em recurso 23 Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 17132; Rel. Min. Walter Ramos da Costa Porto; j. 14.09.2000.24 Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 22.128, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23.09.2004.25 Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 31.937; Rel. Min. Ricardo Lewandowski; j. 05.05.2009.26 Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 21707, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; j. 17.08.2004.27 Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 24.343, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11.10.2004.

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especial, determinar-se a reforma de decisão mediante a qual o candidato foi considerado analfabeto”28.

3 INELEGIBILIDADES RELATIVAS

Relativas são aquelas inelegibilidades que impedem o cida-dão de postular determinados mandatos em dada eleição, devido a si-tuações específicas que recaem sobre ele. Assevera Marcos Ramayana que “a expressão “relativa” tem o significado específico de restrição ao direito de ser votado para uma determinada eleição em razão de rela-ções de parentesco, pela condição funcional do servidor público, seja o militar ou civil, e por motivos vedatórios do sistema de reeleição e desincompatibilização”29.

Consoante o referido autor, essa inelegibilidade pode caracterizar-se em razão da incompatibilidade pelo exercício de função pública, pelo vínculo de parentesco ou afinidade, ou ainda, na hipótese em que o candidato é militar, conforme dispõe os §§5º a 8º do art. 14 da Lei Maior, que, por sua vez, impe-dem o candidato em tal situação, de pleitear determinado mandato.

Todavia, há possibilidade de reversão, uma vez que havendo o des-vencilhamento do candidato com a situação que limita sua capacidade eleitoral passiva, é readquirida a elegibilidade em relação a determinados cargos eletivos.

Nesse contexto, a Constituição, além de prever as referidas hipóteses, delegou à lei complementar a implementação de outros casos, consoante o §9º do aludido artigo.

3.1 INELEGIBILIDADE RELATIVA EM RAZÃO DA FUNÇÃO

A inelegibilidade por motivo funcional decorre do exercício de fun-ção pública pelo candidato, e mais especificamente, no que tange aos casos previstos diretamente na Carta Magna, pela ocupação do cargo de chefe do Poder Executivo.

Consoante o § 5º do art.14 da CF, com redação dada pela Emenda Constitucional nº16, de 04 de junho de 1997, é permitida a recondução para o mesmo cargo por um único período subseqüente pelos chefes do executivo, surgindo a inelegibilidade apenas em relação ao exercício de um terceiro man-dato sucessivo.

Nesse sentido, a jurisprudência da Corte Superior Eleitoral é uníssona

28 RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 205.29 Idem. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 271.

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quanto à claridade da referida regra constitucional, no sentido de que uma mesma pessoa não pode ocupar mais do que duas vezes seguidas o mesmo cargo eletivo, independentemente das circunstâncias, ou duração, em que o mandato foi exercido.

Há que ressaltar, que esse dispositivo constitucional também abrange o candidato que substituiu ou sucedeu o titular, que somente poderá pleitear o cargo deste uma única vez, porquanto o que se veda é a eleição para mandato sucessivo de quem, no período anterior, o tenha exercido, não apenas o de quem tenha sido eleito para ele.

Cumpre ainda salientar que a atribuição do cargo de vice consiste em substituir o titular em suas faltas e impedimentos, e suceder-lhe no caso de vaga, consoante o art.79, caput, da CF. Desse modo, sua função principal é dar continuidade à administração na ausência do titular, segundo o Ministro Fer-nando Neves o vice “somente dá continuidade temporária aos atos, programas e diretrizes já determinados, até porque – e isto é importante – ele não tem a chave do cofre, ou seja, não tem o poder de destinar verbas a qualquer projeto. Não deixa sua marca pessoal na administração”30.

Noutro passo, é importante frisar a distinção entre substituição e su-cessão. Naquela situação, o exercício do cargo se dará em caráter temporário, em virtude de impedimento provisório do chefe do poder executivo, permane-cendo o substituto como titular do cargo de vice. Já na sucessão, há investidura definitiva do cargo de titular pelo vice, ora sucessor, de acordo com o STF “o exercício da titularidade do cargo dá-se mediante eleição ou por sucessão. So-mente quando sucedeu o titular é que passou a exercer o seu primeiro mandato como titular do cargo”31.

Destarte, o TSE entende que no caso de substituição o vice é elegível para o cargo de titular, inclusive para reeleição, desde que não ocorra nos 6 meses que antecedem o pleito, conforme o Ministro Fernando Neves “nessa circunstância, o vice que substituiu nos seis meses ficou equiparado ao que assumiu o cargo definitivamente, ou seja, sucedeu o titular”32.

Por outro lado, havendo sucessão, leva-se em consideração, sobre-tudo, a assunção definitiva do cargo, ainda que interina, porquanto o sucessor exercerá poderes inerentes ao mandato popular outorgados ao titular. Assim, o vice apenas poderá pleitear o cargo do titular uma única vez, partindo da pre-missa de que ele já esta pleiteando sua reeleição, e, consoante Thales Cerquei-ra, “isto ocorre porque o Vice exerceu o cargo do titular em sua plenitude, em

30 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689. Rel. Min. Fernando Neves, j. 09.10.2001.31 Supremo Tribunal Federal. RE n. 366.488, Rel. Carlos Velloso, j. 03.10.2005.32 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689, Rel. Min. Fernando Neves, j. 09.10.2001.

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caráter de definitividade; logo, pode apenas se reeleger, pois mais do que isso caracterizaria terceiro mandato”33.

Nesse viés, conforme o Ministro Cesar Peluso “o vice-prefeito re-eleito pode candidatar-se, uma única vez, ao cargo de prefeito na eleição subseqüente”34. Entretanto, na hipótese em que “o vice-prefeito que tenha suce-dido o titular, tornando-se prefeito, e, posteriormente, tenha concorrido e venci-do as eleições para o cargo de prefeito, não poderá disputar o mesmo cargo no pleito seguinte, sob pena de se configurar o exercício de três mandatos consecu-tivos no âmbito do Poder Executivo”35.

Todavia, o titular reeleito não pode candidatar-se à vice consecu-tivamente, já que poderia tornar-se titular pela terceira vez nas hipóteses de substituição e sucessão. De acordo com o Ministro Peçanha Martins “o che-fe do Executivo que se reelegeu para um segundo mandato consecutivo não pode se candidatar para o mesmo cargo nem para o cargo de vice, no pleito seguinte naquela circunscrição”36, afirma ainda que “o fato de o pleito ser renovado não gera a elegibilidade daquele que exerceu o mandato por dois períodos consecutivos”37.

Ademais, o §6º do art.14 da Carta Magna, prevê que para que o Pre-sidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos possam concorrer a outro cargo eletivo, devem se desincompatibilizar até seis meses antes da eleição que pretendam disputar.

Nesse contexto, a desincompatibilização consiste no afastamento do cargo para que o candidato possa disputar outra vaga na representação popular. Em relação ao referido parágrafo do texto constitucional, a desincompatibiliza-ção é definitiva, uma vez que é exigida a renúncia ao mandato eletivo para que o chefe do executivo possa disputar outro cargo.

Esse instituto tem como escopo afastar o postulante de sua função pú-blica, para que não faça uso desta em favor de sua candidatura. Nesse sentindo, afirma Marcos Ramayana que “tutela-se com a desincompatibilização a isono-mia entre os pré-candidatos ao pleito eleitoral específico, bem como a lisura das eleições contra influência do poder político e/ou econômico e a captação ilícita de sufrágio, porque incide uma presunção jure et de jure que o incompatível

33 CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 640.34 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 22.679, Consulta 1.471, Rel. Min. Antonio Cezar Peluso, j. 13.12.2007.35 Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 22.679, Consulta 1.471, Rel. Min. Antonio Cezar Peluso, j. 13.12.2007.36 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.993, Consulta 1.138, Rel. Francisco Peçanha Martins, j. 24.02.2005.37 Ibid.

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utilizará em seu benefício a máquina da Administração Pública”38.Ressalta-se que, em relação a outros cargos, para que a elegibilidade

seja readquirida é necessário que o pré-candidato desincompatibilize-se dentro do prazo legal, qual seja, seis meses antes do pleito, conforme determina a Lei Maior. Esse prazo é contado a partir do dia do primeiro turno das eleições, que ocorrem no primeiro domingo do mês de outubro do ano eleitoral, e, não sendo respeitado, o cidadão tornar-se-á inelegível para postular outros mandatos em relação àquela eleição.

Por outro lado, no caso em que o chefe do executivo deseja reeleger--se não é necessário que renuncie a seu mandato, por inteligência do §5º do art.14 da CF, porquanto não há previsão, estando em consonância com o pará-grafo seguinte. Conforme o Supremo Tribunal Federal “Somente a Constitui-ção poderia, de expresso, estabelecer o afastamento do cargo, no prazo por ela definido, como condição para concorrer à reeleição prevista no § 5º do art. 14, da Lei Magna, na redação atual. Diversa é a natureza da regra do § 6º do art. 14 da Constituição, que disciplina caso de inelegibilidade, prevendo-se, aí, prazo de desincompatibilização”39.

No que diz respeito ao vice que sucedeu o titular, é necessário que haja desincompatibilização, porquanto a Corte Superior Eleitoral entende que “caso o sucessor postule concorrer a cargo diverso deverá obedecer ao disposto no art.14, §6º, da Constituição da República”40, uma vez que o vice assumiu de-finitivamente o cargo do titular, equiparando-se a este, submetendo-se, a partir de então, as mesmas regras.

Não obstante, caso o vice queira candidatar-se ao cargo do titular, ou para outro cargo, não necessita desincompatibilizar-se, desde que não haja sucedido, ou substituído o titular nos seis meses anteriores ao pleito. Pois, de acordo com Marcos Ramayana, “a solução referente aos titulares dos mandatos do Executivo deve ser ampliado por princípio isonômico aos vices, consideran-do que os direitos públicos políticos subjetivos passivos não podem ser restrin-gidos quando não há expressa menção constitucional, além da vinculação das eleições realizadas em chapa uma e indivisível”41.

Entretanto, havendo sucessão, ou substituição nos seis meses que an-tecedem as eleições, impõem-se a desincompatibilização, visto que “já definiu o STF que a Emenda Constitucional no 16/97 não alterou a regra do § 6o do art.

38 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 272.39 Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 1805-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 26.03.1998.40 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689, Rel. Min. Fernando Neves, j. 09.10.2001.41 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 291.

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14 da Constituição Federal. Se o vice que se tornou titular desejar ser eleito para o cargo de vice, deverá renunciar ao mandato de titular que ocupa até seis meses antes do pleito, para afastar a inelegibilidade”42, consoante ponderação do TSE.

3.2 INELEGIBILIDADE RELATIVA EM RAZÃO DO PARENTESCO

Determinados cidadãos são inelegíveis para certas eleições em razão de condições inerentes aos seus laços consanguíneos ou socioafetivos, ou ainda, em virtude de seu vínculo matrimonial, com o chefe do poder executivo, con-forme prevê o §7º do art.14 da Constituição.

Consoante o referido dispositivo “São inelegíveis, no território de ju-risdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segun-do grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”43.

Assevera-se que, de acordo com o entendimento do TSE, essa norma constitucional busca evitar que tais candidatos sejam beneficiados pela influ-ência do ocupante do cargo de chefe do executivo, bem como visa impedir a consolidação do poder político em mãos de uma única família, coibindo-se a perpetuação de grupos familiares no poder.

Note-se que a inelegibilidade somente existirá quanto aos cargos em disputa dentro da circunscrição em que o chefe do executivo exerce suas fun-ções, caso ocorra pretensão de candidatura em local diverso não haverá incidên-cia deste impedimento, todavia, dispõe a súmula nº 12 da Corte Superior Elei-toral que “são inelegíveis, no Município desmembrado e ainda não instalado, o cônjuge e os parentes consaguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Prefeito do Município-mãe, ou de quem o tenha substituído, dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo”44.

Nesse sentido, consoante o Ministro Fernando Neves, “é possível a candidatura de cônjuge de prefeito reeleito para o mesmo cargo em outro muni-cípio do mesmo estado, sendo vedada apenas em localidade que resulte de des-membramento, incorporação ou fusão do município em que o referido prefeito exerce seu cargo”45.

42 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 22.129, Consulta nº 1.179, Rel. Min. Marco Aurélio; j. 15.12.2005.43 RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 4.44 Ibid. p. 20545 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 21.696, Consulta 1.015, Rel. Min. Fernando Neves, j.

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Ademais, ressalta-se que essa restrição também se insurge na hipótese em que o chefe do poder executivo do município-mãe pretende candidatar-se para o mesmo cargo no município desmembrado, segundo o TSE “Não há im-pedimento para que o prefeito reeleito possa candidatar-se para o mesmo cargo em outro município, salvo em se tratando de município desmembrado, incorpo-rado ou resultante de fusão, não cuidando tal hipótese de um terceiro mandato, vedado pelo art. 14, § 5º, da Constituição Federal”46.

Em relação à sucessão ou substituição do titular, somente subsistirá a inelegibilidade dos parentes do substituto se ela ocorrer nos seis meses ante-riores ao pleito. Por outro lado, na hipótese de sucessão, independentemente do momento, aqueles que têm vínculo parental com o sucessor ficarão impedidos de postular mandato dentro daquela circunscrição.

Nesse viés, frise-se que, de acordo com a parte final do citado §7º, se o parente ou cônjuge já é titular de um mandato eletivo e postula sua reeleição, não persistirá a inelegibilidade, visto que, segundo Thales Cerqueira, “esse di-reito lhe fora assegurado antes do nascimento da inelegibilidade decorrente do parentesco com o titular do Poder Executivo”47.

Não obstante, em 1997, com o advento da Emenda Constitucional nº16, que possibilitou a reeleição dos chefes do executivo, ainda que tenha alterado somente a redação do §5º do art.14 da Lei Maior, influenciou o entendimento da Corte Superior Eleitoral quanto à interpretação do §7º do referido artigo.

Anteriormente, a jurisprudência era uníssona no sentido de que se a renúncia pelo titular do mandato, nos seis meses anteriores à eleição, viabili-zava sua candidatura para outro cargo, então, era viável a candidatura de seus parentes e cônjuge para outros cargos, desde que não ao mandato do titular.

Todavia, para que chegasse a esta conclusão, o TSE conjugava os §§6º e 7º do art.14 da Constituição, visto que, de acordo com Thales Cerqueira “a leitura isolada do §7º do art.14 levava à inelegibilidade absoluta dos paren-tes e cônjuge do titular do Executivo (...)”48. Porém, este era o entendimento da Corte Superior Eleitoral, consoante a revogada Súmula nº6 deste tribunal, que considerava inelegível para o cargo de prefeito, os parentes e cônjuge do titular do mandato, independentemente da renúncia, mesmo que feita dentro do prazo legal.

Contudo, a partir da EC nº16/97, consoante o referido autor “o TSE deu nova interpretação à Súmula nº6, assentando que o cônjuge e os parentes do

30.03.2004.46 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.487, Consulta 936, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 04.09.2003.47 CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 631.48 Ibid. p. 663.

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chefe do Executivo são elegíveis para o mesmo cargo do titular, quando este for reelegível e tiver se afastado definitivamente até 6 meses do pleito”49.

Nesse sentido, afirma o Ministro Sepúlveda Pertence que “com essa tradição uniforme do constitucionalismo republicano, rompeu, entretanto, a EC 16/97, que, com a norma permissiva do § 5º do art. 14 CF, explicitou a via-bilidade de uma reeleição imediata para os Chefes do Executivo. Subsistiu, no entanto, a letra do § 7º, atinente a inelegibilidade dos cônjuges e parentes, consangüíneos ou afins, dos titulares tornados reelegíveis, que, interpretado no absolutismo da sua literalidade, conduz a disparidade ilógica de tratamento e gera perplexidades invencíveis”50.

Com efeito, não era razoável que os parentes e o cônjuge fossem ine-legíveis, enquanto o titular do mandato podia reeleger-se, porquanto se admitiu com o implemento da aludida emenda constitucional. Destarte, a jurisprudência optou por uma interpretação conjunta e sistemática de alguns parágrafos do art.14 da CF, tendo em vista a nova realidade constitucional, conforme a Minis-tra Ellen Gracie “a única solução razoável é a que conjuga os ditames dos §§5º e 7º e lhes dá leitura condizente com os princípios que informaram a redação das normas constitucionais”51.

A compatibilização da reeleição com a regra da inelegibilidade reflexa impõe que daquela, que se refere somente aos chefes do executivo, surtam efeitos em relação aos parentes e cônjuges. Logo, pode-se dizer que, se de um lado, o titular do mandato determina a inelegibilidade de seu cônjuge ou parente, é perti-nente que sua desincompatibilização, no prazo legal, restitua-lhes a elegibilidade.

Desse modo, conforme Marcos Ramayana “se o chefe do executivo estiver no seu primeiro mandato e se desincompatibilizar 6 (seis) antes da elei-ção libera seu parente para fins de sucessão ao mandato eletivo, caso contrário, não é possível a sucessão”52. Todavia, caso o chefe do executivo reeleito desin-compatibilize-se, dentro do prazo legal, seu parente e cônjuge apenas poderá pleitear mandatos diversos do cargo do titular.

No que concerne aos vices, adota-se a mesma regra aplicada ao ti-tular, consoante o Ministro Joaquim Gomes “o irmão do vice-prefeito poderá se candidatar ao mesmo cargo de seu parente, ou ao cargo de prefeito, desde que o titular seja reelegível e se desincompatibilize seis meses antes do pleito. Se o vice-prefeito assumir a prefeitura nos seis meses anteriores ao pleito, seu irmão será inelegível”53.

49 Ibid.50 Supremo Tribunal Federal, RE n. 344.882, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 06.04.2003.51 Tribunal Superior Eleitoral, REspe 19.442, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 21.08.2001.52 RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 296.53 Tribunal Superior Eleitoral. REsp 29.191; Decisão Monocrática ; Rel. Joaquim Benedito Barbosa

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Em relação aos cônjuges, o TSE entende que a referida norma cons-titucional não se refere somente àqueles que mantêm vínculo matrimonial com o chefe do executivo, mas também recai sobre concubinos, uma vez que a Constituição reconhece a união estável como entidade familiar. Além do mais, em relação às relações homoafetivas, consoante o Ministro Gilmar Mendes “É um dado da vida real a existência de relações homossexuais em que, assim como na união estável, no casamento ou no concubinato, presume--se que haja fortes laços afetivos. Assim, entendo que os sujeitos de uma rela-ção estável homossexual (denominação adotada pelo Código Civil alemão), à semelhança do que ocorre com os sujeitos de união estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art.14, §7º, da Constituição Federal”54.

No mais, consoante o entendimento da Corte Superior Eleitoral, o namoro não gera inelegibilidade, uma vez que esta relação não se caracteriza como união estável. De acordo com o Ministro Fernando Neves “a regra da inelegibilidade inserida no art. 14, § 7º, da Constituição Federal, não alcança aqueles que mantêm tão-somente um relacionamento de namoro, uma vez que esse não se enquadra no conceito de união estável”55.

No caso de dissolução do vínculo conjugal, é pacífico na jurispru-dência do TSE que caso ocorra durante o mandado do titular ainda subsistirá a inelegibilidade do cônjuge. Consoante a Súmula nº 18 do STF “a dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal, no curso do mandato, não afasta a inelegibi-lidade prevista no § 7º do artigo 14 da Constituição Federal”56.

Todavia, caso a separação de fato tenha ocorrido antes do mandato, sendo reconhecida através do Poder Judiciário durante o curso deste, o STF entende que não se caracterizará a inelegibilidade. Conforme a Ministra Ellen Gracie “havendo a sentença reconhecido a ocorrência da separação de fato em momento anterior ao início do mandato do ex-sogro do recorrente, não há falar em perenização no poder da mesma família (Consulta nº964/DF – Res./TSE nº 21.775, de minha relatoria)”57.

Ressalta-se que a dissolução de vínculo conjugal fraudulenta, com o intuito de garantir a permanência de um mesmo grupo familiar no poder, assim reconhecida em decisão judicial, gera inelegibilidade, conforme dispõe o art.1º, inciso I, alínea “n”, da Lei 64/1990, adicionado pela Lei 135/2010.

Gomes; Julg. 11/09/2008; PSESS54 Tribunal Superior Eleitoral, RESPE 24.564, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01.10.2004.55 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.655, PA nº 16.337, Rel. Min. Fernando Neves, j. 11.03.2004.56 RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 205.57 Supremo Tribunal Federal. RE n. 446.999-5n. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 28.06.2005.

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Não obstante, se o chefe do executivo vem a falecer durante seu primeiro mandato, antes dos seis meses anteriores ao pleito, seus parentes e cônjuge tornar-se-ão elegíveis, para disputar outros cargos na mesma circuns-crição. Porém, apenas o ex-cônjuge será elegível para sucessão do titular, e, sendo eleito, não poderá postular sua reeleição, pois, consoante o TSE, “trata--se de hipótese vedada pelo art.14, §5º, da Constituição Federal, por configu-rar o exercício de três mandatos seguidos por membro de uma mesma família no comando do poder público”58.

Por outro lado, se o titular reeleito falece, ou tem seu diploma cassa-do, nos seis meses anteriores ao pleito, persistirá a inelegibilidade do cônjuge e parentes. Todavia, caso a morte, ou cassação, tenha ocorrido mais de seis meses antes das eleições, os familiares do titular são elegíveis em relação a outros cargos naquela circunscrição. Frise-se que nessa hipótese, a cassação e a morte produzem o mesmo efeito da desincompatibilização.

3.3 INELEGIBILIDADE DOS MILITARES

Consoante a Carta Magna, os militares são servidores públicos que integram as Forças Armadas, quais sejam, Exército, Marinha e Aeronáutica. No que concerne à elegibilidade dos militares, dispõe o art.14, §8º, da CF, que o militar alistável é elegível, ou seja, não estando conscrito, possui capacidade eleitoral ativa e passiva, porém, existem certas peculiaridades que a própria Constituição conjecturou.

Dentro deste contexto, note-se que o sistema eleitoral brasileiro não admite candidatos avulsos, desvinculados de um partido político, de modo que a filiação partidária é uma das condições de elegibilidade, previs-ta no art.14, §3º, inciso V, da CF. Pois, conforme Djalma Pinto, “o partido detém o monopólio da indicação dos postulantes aos cargos eletivos, caben-do aos eleitores a escolha dos nomes, entre os apontados pelas agremiações, para investidura na representação popular”59.

Contudo, a própria Constituição prevê que o militar ativo, em ser-viço, não pode filiar-se a partido político, conforme dispõe o art.142, §3º, inciso V, que tem como intuito manter os militares desvinculados da mili-tância político-partidária.

Dessa maneira, em que pese essa aparente antinomia entre normas constitucionais, o TSE optou por uma interpretação construtiva da própria

58 Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 21.508, CTA nº 937, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 25.09.2003,59 PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 164

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Constituição, entende que “a filiação partidária contida no art. 14, § 3º, V, Cons-tituição Federal não é exigível ao militar da ativa que pretenda concorrer a cargo eletivo, bastando o pedido de registro de candidatura após prévia escolha em convenção partidária”60.

Destarte, em razão dessa situação excepcional, ao militar abre-se uma exceção, visto que para que ele seja candidato não necessita filiação partidária, apenas é necessário que o partido, pelo qual ele pretende concorrer, indique-o através da convenção partidária, com sua prévia aquiescência. Posteriormente, o militar deve pedir o registro de sua candidatura ao órgão competente da Jus-tiça Eleitoral, e informar sua organização, sendo assim, atendidas estas exigên-cias, supre-se a necessidade de filiação.

Todavia, a partir de então, para que adquira totalmente a elegibilidade, o militar deverá afastar-se do cargo, porém, somente após “(...) o deferimento do registro de candidatura é que se dará, conforme o caso, a transferência para inatividade ou a agregação”61.

Conforme dispõe a Lei Maior, o militar deverá afastar-se de suas ati-vidades, se contar menos de dez anos de serviço, sendo desligado da organiza-ção que pertence, consoante o TSE “o afastamento do militar, de sua atividade, previsto no art. 14, § 8°, I, da Constituição, deverá se processar mediante de-missão ou licenciamento ex-officio, na forma da legislação que trata do serviço militar e dos regulamentos específicos de cada Força Armada”62.

Por outro lado, de acordo com o art.14, §8º, inciso II, da CF, se tiver mais de dez anos de serviço, o militar será agregado pela autoridade superior, sendo afastado temporariamente do serviço ativo.

Note-se, todavia, que este afastamento somente persistirá até ao ato de diplomação do candidato militar. Caso seja eleito, ele passará para a reserva, caso contrário, regressará às Forças Armadas.

Ademais, ressalta-se que o militar deverá afastar-se do cargo, den-tro do prazo legal, estabelecido pela Lei Complementar nº64/90, observan-do o período máximo para que a Justiça Eleitoral defira seu registro de candidatura, e que tenha sido informado à sua Força. Porém, não havendo desvencilhamento dentro deste período, o militar tornar-se-á inelegível, por força de sua incompatibilidade, conforme entendimento da Corte Superior Eleitoral. E, durante esse período o militar “ficará afastado da zona que exerceu suas atividades funcionais, de modo que não poderá praticar qual-quer atividade militar em conjunto com seus comandados, influenciando ou

60 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.787, CTA n. 1.014, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 01.06.2004.61 Tribunal Superior Eleitoral, REsp n. 20.169, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.09.2002.62 Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 20.598, CTA n. 571, Rel. Min. Costa Porto, j. 13.04.2000.

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intimidando o eleitorado, pondo em desequilíbrio a isonomia do pleito”63, consoante Thales Cerqueira.

Contudo, frise-se que o militar inativo, que já estiver na reserva, deve filiar-se a partido político dentro do prazo legal, sendo-lhe exigível a condição de elegibilidade referente à filiação partidária, uma vez que os aludidos dispo-sitivos constitucionais apenas abrangem os militares na ativa.

Não obstante, caso o militar passe para inatividade a menos de um ano da escolha em convenção, ele deverá filiar-se a partido político no prazo de 48 horas, contado da entrada na inatividade, cumprindo, assim, a condição de elegibilidade relativa à filiação partidária, conforme entendimento do TSE.

Noutro passo, filiado a partido político que, posteriormente, torna-se militar “perde automaticamente a filiação, e, conseqüentemente, não pode ser eleito para cargo de direção partidária e praticar atos daí decorrentes”64, conso-ante precedente da Corte Superior Eleitoral.

No mesmo sentido, ressalta-se que se aplica também aos magistra-dos e membros do Ministério Público a vedação à atividade político-partidária, desse modo, no ato de investidura, caso o servidor seja filiado a partido polí-tico, extingue-se a filiação, conforme o TSE a “Filiação partidária não impede a investidura; esta é que impedirá, sob pena de perda do cargo, a permanência daquela”65. Aos magistrados, essa limitação decorre do art.95, parágrafo único, inciso III, da CF, devendo ser observado os prazos de desincompatibilização previstos por lei complementar. Porém, em relação aos membros do MP existe uma peculiaridade, visto que anteriormente a promulgação da EC nº45/2004, que modificou a redação do art.128, §5º, da CF, era possível a candidatura. Contudo, a partir da aludida emenda, restringiu-se o exercício de cargo eletivo sem o devido afastamento definitivo daqueles de suas funções, consoante en-tendimento da Corte Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a analise dos dispositivos constitucionais estudados e da legis-lação infraconstitucional, trazida a lume, em obediência ao comando contido no § 9º, do artigo 14 da Constituição Federal, constata-se que houve um apri-moramento das regras que versam sobre as inelegibilidades, sobretudo com a fixação de critérios legais, objetivando igualar os postulantes, impedindo a pratica de posturas que atentem contra os princípios da administração pública contidos na Lei Maior.

63 CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 103.64 Tribunal Superior Eleitoral, RESPE 9.732; Rel. Min. Torquato Jardim, j.. 19.09.1992.65 Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 10.137, Processo n. 4.964, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 08.10.1976.

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Nesse viés, conforme o exposto, depreende-se que as inelegibilida-des, além de limitadoras da capacidade eleitoral passiva, evidenciam a preocu-pação do legislador constituinte em estatuir um verdadeiro filtro legal, a fim de proteger o regime democrático, a probidade administrativa, e, acima de tudo, o interesse público, colocando a disposição do eleitor, postulantes com conduta isenta de vícios que maculam a legitimidade de sua candidatura.

Neste contexto sobressai com nitidez, a preocupação contida na Carta Magna de resguardar o processo eleitoral e criar barreiras legais, objetivando preservar a normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência e o abuso do poder político e econômico, na obtenção do mandato popular e no exercício da função pública.

Note-se, no que concerne às inelegibilidades previstas diretamente na Lei Maior, coibi-se com vigor, as condutas tendentes ao aproveitamento do exercício de cargo público, especialmente, da chefia do poder executivo, em proveito próprio, ou de familiares, interferindo no resultado de eleições.

A jurisprudência emanada do TSE tem interpretado de forma restri-tiva esses dispositivos constitucionais, uma vez que podem acarretar na obs-trução a um direito fundamental do cidadão, porém, tem se posicionado firme-mente, quanto à clareza destas normas, coibindo as condutas repudiadas pela Constituição, interpretando-a sistemática e construtivamente, sob a égide dos postulados constitucionais.

Os avanços trazidos pela legislação eleitoral, e pelo próprio legislador constituinte reformador, no que tange a inelegibilidades, vem alçando o objeti-vo de afastar da vida pública postulantes a cargos eletivos, descomprometidos com a ética, a moralidade e a probidade administrativa, impedindo assim previ-síveis danos ao erário público.

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REFERÊNCIAS

CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito eleitoral. 3. ed. São Paulo: Del Rey, 2010.

PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.

_________________. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p. 205.

Supremo Tribunal Federal. RE nº 366.488; Rel. Carlos Velloso; Julg. 03/10/2005; DJU 28/10/2005.

_____________________. RE nº 344.882; Rel. Sepúlveda Pertence; Julg. 06/04/2003; DJ 06/08/2004; Pág. 22.

_____________________. ADI-MC 1805; DF; Tribunal Pleno; Rel. Min. Néri da Silveira; Julg. 26/03/1998; DJU 14/11/2003; p. 00011.

_____________________. RE nº 344.882; Rel. Sepúlveda Pertence; Julg. 06/04/2003; DJ 06/08/2004.

Tribunal Superior Eleitoral. AAG 4598; 4598; Rel. Juiz Fernando Neves da Silva; Julg. 03/06/2004; DJU 13/08/2004.

_____________________. Resolução nº 20.165; PA nº 16.337; Rel. Nilson Naves; Julg. 07/04/1998; DJU 14/05/1998; Pág. 85.

_____________________. Resolução nº 20.165; PA nº 16.337; Rel. Nilson Naves; Julg. 07/04/1998; DJU 14/05/1998; Pág. 85.

____________________. AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira; Julg. 15/10/2009; DJU 14/12/2009; Pág. 15.

____________________. AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques

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Ribeiro de Oliveira; Julg. 15/10/2009; DJU 14/12/2009; Pág. 15.

____________________. RESPE 23347; 23347; Rel. Juiz Carlos Eduardo Caputo Bastos; Julg. 22/09/2004; PSESS 22/09/2004.

____________________. RESPE 17132; 17132; Rel. Juiz Walter Ramos da Costa Porto; Julg. 14/09/2000; PSESS 14/09/2000.

____________________. AgRg-REsp 22.128; Rel. Min. Gilmar Mendes; Julg. 23/09/2004; PSESS 23/09/2004.

____________________. AgRg-REsp 31.937; Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Julg. 05/05/2009; DJU 02/06/2009; Pág. 36.

____________________. RESPE 21707; 21707; Rel. Juiz Humberto Gomes de Barros; Julg. 17/08/2004; PSESS 17/08/2004.

____________________. AgRg-REsp 24.343; Rel. Min. Gilmar Mendes; Julg. 11/10/2004; PSESS 11/10/2004.

____________________. Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando Neves; Julg. 09/10/2001; DJU 14/12/2001;

____________________. Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando Neves; Julg. 09/10/2001; DJU 14/12/2001.

____________________. Resolução nº 22.679; Consulta 1.471; Rel. Min. Antonio Cezar Peluso; Julg. 13/12/2007; DJU 11/02/2008.

____________________. Resolução nº 22.679; Consulta 1.471; Rel. Min. Antonio Cezar Peluso; Julg. 13/12/2007; DJU 11/02/2008.

____________________. Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando Neves; Julg. 09/10/2001; DJU 14/12/2001.

____________________. Resolução nº 22.129; Consulta nº 1.179; Rel. Marco Aurélio; Julg. 15/12/2005; DJU 13/03/2006.

____________________. Resolução nº 21.696; Consulta 1.015; Rel. Fernando Neves; Julg. 30/03/2004; DJU 26/04/2004.

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____________________. Resolução nº 21.487; Consulta 936; Rel. Barros Monteiro; Julg. 04/09/2003; DJ 16/09/2003.

____________________. REspe 19.442; Rel. Min. Ellen Gracie; Julg. 21/08/2001; DJU 07/12/2001.

____________________. RESPE 9.732; 12.589; Rel. Torquato Jardim; Julg. 19/09/1992; PSESS 19/09/1992.

____________________.; Resolução nº 10.137; Processo nº 4.964; Rel. Néri da Silveira; Julg. 08/10/1976.

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DIREITO À SAÚDE E OBESIDADE INFANTIL NO BRASILRIGHT TO HEALTH AND CHILDHOOD OBESITY IN BRAZIL

EmErSon hiDEKi hanDa

Especialista em Fisiologia do Exercício pela Gama Filho. Graduado em Licenciatura plena em Educação Física pela PUCPR. Vice - pre-sidente do Diretório Acadêmico Clotário Portugal (gestão 2010, 2011 e 2012), Acadêmico de graduação na Faculdade de Direto de Curitiba (UNICURITIBA)

maria Da Glória colucci

Advogada. Possui graduação em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (1968). Especialização em Filo-sofia do Direito pela Puc-Pr (1984). Mestrado em Direito pela Uni-versidade Federal do Paraná (1990). Profª. adjunta 04, aposentada da Universidade Federal do Paraná. Profª. titular do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Membro da Sociedade Brasileira de Curi-tiba. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética, Brasília. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (1989). Membro do CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Profª. Emérita do UNICURITIBA, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Direito à saúde e obesidade infantil no Brasil 2.1 Direito à saúde 2.2 Pobreza e desigualdade no Brasil 2.3 Obesidade e saúde pública no Brasil 2.4 Obesidade infanto-juvenil 2.5 Legislação em relação a sociedade de consumo 3 Análise da promoção da saúde no âmbito da prevenção 3.1 Direito à saúde e alimentação 3.2 Questão socioeconômica e acesso à informação no Brasil 3.3 Prevenção 3.4 Exercícios físicos e qualidade de vida 3.5 Academias da saúde 4 Conclusão 5 Referências

RESUMO

O presente estudo vislumbra contextualizar a incidência da obesidade infantil em relação às políticas públicas atuais no Brasil, assim como verificar as medidas cabíveis para minimizar os aspectos negativos dessa ocorrência. A metodologia científica utilizada na presente pesquisa foi fundamentada em pesquisa bibliográfica, legislação pertinente e análises estatísticas, além de ju-risprudencial. Foi verificado que são necessárias políticas públicas na área de saúde baseadas na educação para que a prevenção seja de fato eficaz. Também deverão se fazer presentes o acesso à informação em relação à alimentação e

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nutrição, e a prática de exercícios físicos para um completo desenvolvimento da liberdade como cidadania.

Palavras-chave: Direito à saúde, obesidade infantil, políticas públicas no Brasil.

ABSTRACT

This study envisions contextualize the incidence of childhood obesity in relation to current public policies in Brazil, as well as checking the appropriate measures to minimize the negative aspects of this occurrence. The scientific me-thodology used in this research was based on literature research, statistical analy-sis and relevant legislation, and jurisprudence. It was found that public policies are needed in the health-based education that prevention is indeed effective. They should also be present access to information in relation to food and nutrition, and physical exercise for a full development of freedom and citizenship.

Keywords: Right to health, childhood obesity, public policy in Brazil.

1 INTRODUÇÃO

Pode se observar em âmbito mundial uma epidemia de obesidade in-fantil, que afeta milhões de crianças pelo mundo inteiro. O Brasil não é exce-ção, com a estabilidade econômica e política adquirida durante a década de 90, o quadro de consumo e alimentação foi alterado de forma significativa, mudando o foco da preocupação em relação à fome e a desnutrição infantil, para a obesidade infantil.

O presente estudo vislumbra contextualizar a incidência da obesidade infantil em relação às políticas públicas atuais no Brasil, assim como verificar as medidas cabíveis para minimizar os aspectos negativos dessa ocorrência.

Inicialmente se pretende demonstrar a obesidade como forma de epi-demia e por decorrência desse fato se questiona a importância do tratamento em um contexto visualizando como uma problemática da saúde pública, levando em consideração conceitos relacionados ao Direito à Saúde, as legislações atu-ais referentes ao tema e também as atuais políticas publicas.

Em um segundo momento, é observado em um contexto brasileiro, as relações de alimentação, nutrição infantil e a legislação quanto ao consumo de crianças e adolescentes.

Seguidamente, se busca uma análise da obesidade como um proble-ma social atual, e suas consequências físicas, fisiológicas, patológicas e dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, relacionadas aos ci-dadãos infantes e também os atuais programas estatais para a prevenção.

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2 DIREITO À SAÚDE E OBESIDADE INFANTIL NO BRASIL

A saúde no Brasil é garantida dentro de um Estado de Direito, que tem por pressupostos a forma republicana de governo, o regime democrático, a digni-dade da pessoa humana e a justiça social, conforme as opções feitas pela sociedade brasileira através de seus representantes no Congresso nacional, eleitos para desem-penhar a função constituinte, e na elaboração do vigente texto constitucional.

Com relação aos direitos garantidos de forma constitucional e o Es-tado brasileiro:

Levando-se em conta um ordenamento jurídico concreto e válido (leia--se: estabelecido pelas pessoas ou órgão estatais com legitimidade para tanto), extrai-se uma concepção positivista dos direitos fundamentais, no sentido de que somente adquirem o status de DIREITO quando são reconhecidos pela ordem constitucional, ainda que implicitamente, pois que antes disso, podem até ser vistos como aspirações naturais do ho-mem, tanto em sua dimensão individual como em sua dimensão social, mas não podem ser reputados de direito. (PAROSKI, 2008, p.105)

Schwartz (2001, p.23) verifica também a não efetivação de um prin-cípio constitucional, após anos da promulgação da Carta Magna, indicando a dificuldade da administração pública em seus aspectos gerais no cumprimento dos deveres gerais do Estado.

2.1 DIREITO À SAÚDE

A conceituação histórica de saúde, de acordo com Schwartz (2001, p.19), pode ser atribuída aos antigos gregos da cidade-estado de Esparta, com o brocardo “Mens Sana In Corpore Sano”, que seria um primeiro marco da defi-nição de saúde. Muitos autores dão créditos também ao poeta romano, retórico e satírico: Juvenal, quanto à origem do provérbio, que poderá ser interpretado de diversas maneiras, mas em sua maioria evidenciando o equilíbrio entre a dualidade do corpo e da mente como a plenitude da saúde.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) conceitua saúde no preâm-bulo da sua constituição, como: o “(…) estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”.

Conforme o conceito da OMS observa-se que a saúde não significa apenas a ausência de doenças. Ao se desvincular a saúde da doença têm-se grandes mudanças conceituais: a saúde não se limita apenas ao corpo, inclui, também, a mente, as emoções, as relações sociais, a coletividade, exigindo a ne-cessidade do envolvimento de outros setores sociais e da própria economia para

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que as pessoas possam de fato ter saúde. A saúde de todos, além de ter caráter individual, também envolve ações das estruturas sociais, incluindo necessaria-mente as políticas públicas.

O completo bem-estar, englobando vários fatores da vida dos indi-víduos é muito mais um ideal do que uma possibilidade real. Rodolfo Saracci (2011) critica o conceito da OMS de saúde, argumentando que não distingue de forma satisfatória do conceito de felicidade, e dá a sua sugestão quanto ao tema: “A saúde é uma condição de bem-estar livre de doença ou enfermidade e um di-reito básico e universal humano.” Dessa forma o autor acredita que fornece um conceito intermediário que liga o ideal da OMS para o mundo real de saúde e doença como mensuráveis por meio de indicadores apropriados de mortalidade, morbidade e qualidade de vida. Também, ao remover a ambiguidade entre saú-de e felicidade, enfatizando como um direito humano básico fornece um critério de referência para se medir o quanto os programas de saúde devem incorporar e atender aos requisitos de equidade em saúde.

A saúde é vista, também, como um dos direitos fundamentais, refe-rente e aplicado aos seres humanos, reconhecidos e positivados na esfera do Di-reito Constitucional Positivo determinado nesse aspecto no Brasil; além de ter características de direito fundamental, é também considerado um dos direitos humanos de terceira geração, dos chamados direitos à solidariedade, compatí-vel com a sadia qualidade de vida. Nesse sentido:

Trata-se de direitos baseados na solidariedade ou na fraternidade, con-forme a preferência de cada autor, tendo em vista o gênero humano, não considerado individualizadamente, mas sim, enquanto integrante de grupos sociais, caracterizando-se como coletivos e difusos, exigindo proteção compatível com sua natureza. (PAROSKI, 2008, p.119)

Há nas doutrinas inúmeras divergências amplas em relação ao direito à saúde, no sentido das gerações, Cíntia Lucena (2004, p.246) afirma que o direito à saúde é, a um só tempo, um direito subjetivo, individual, fundamental, social, transindividual, de quarta e quinta gerações, em constante transformação, posto que imbricado na hipercomplexidade social onde cresce e se desenvolve.

Na mesma linha de raciocínio, Schwartz (2001, p.54) indica que a saúde pode ser compreendida como direito de terceira geração. Nesta gera-ção de direitos encontram-se os chamados direitos transindividuais, também chamados de direitos coletivos e difusos. E também que não se pode negar que a saúde é direito difuso, já que inexiste determinação de seus titulares, e o bem jurídico (a saúde) é indivisível. Logo, é direito difuso, conforme as regras do art, 81, I, do Código de Defesa do Consumidor pátrio, e, portanto, patrimônio da humanidade.

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Mesmo havendo divergências doutrinárias em relação à classifica-ção constitucional quanto ao direito à saúde, fica evidente que está garantida de forma positivada, que a coletividade dos cidadãos exerce a legitimidade para requisitá-la e que também poderiam e ou podem exercer esse direito de maneira individual.

Desta forma, consoante o conceito transcrito, tem-se que na visão de Paulo Afonso Linhares (2002, p.72):

a) Os direitos fundamentais da primeira geração ou Direitos individu-ais – direitos da liberdade – têm como conteúdo, direitos e garantias oponíveis ao Estado, cuja interferência, de qualquer natureza ou mo-dalidade, lhe é vedada, no exercício de certas faculdades ou atributos pelo indivíduo.

Em suma, “(…) são por igual direitos que valorizam o homem singu-lar, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade meca-nicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual”.

Os direitos fundamentais de primeira geração são chamados de direi-tos civis e políticos, que englobam os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade formal, às liberdades de expressão coletiva, os direitos de participa-ção política e, ainda, algumas garantias processuais.

b) Os direitos fundamentais de segunda geração são os denomina-dos direitos sociais. Conforme Linhares (2002, p.72) a Déclaration francesa de 1798, posteriormente inserida no texto constitucional de 1793, consignou basicamente os direitos fundamentais da primeira geração, mormente aqueles direitos políticos e civis vinculados à li-berdade, tratando de maneira por demais genérica e incipiente de ou-tra classe de direitos – os direitos sociais – que estariam plasmados no segundo elemento que veio a compor o dístico da Revolução, que é a igualdade.Essa geração é constituída pelos direitos econômicos, sociais e cultu-rais com a finalidade de obrigar o Estado a satisfazer as necessidades da coletividade, compreendendo o direito ao trabalho, à habitação, à saúde, educação e inclusive o lazer.

c) Os direitos humanos de terceira geração são denominados de di-reitos de solidariedade ou de fraternidade e foram desenvolvidos no

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século XX, compondo os direitos que pertencem a todos os indiví-duos, constituindo um interesse difuso e comum, transcendendo a ti-tularidade coletiva ou difusa, ou seja, tendem a proteger os grupos humanos.

Contudo o mesmo autor afirma que se as duas gerações anteriores de direitos fundamentais, a primeira e a segunda, foram denominadas, respectiva-mente, de direitos da liberdade e da igualdade, os da terceira passaram a ser conhecidos como direitos fundamentais da fraternidade ou da solidariedade ou como diria o próprio autor: direitos fundamentais da qualidade de vida. No entanto, na base ontológica desses direitos remanesce um elemento comum, que é o desejo à qualidade de vida, aspiração que tem marcado esta era de pós--modernidade. Inspirada nesse ideal, que tem guiado a humanidade, a própria Organização das Nações Unidas passou a adotar novo padrão para mensurar, anualmente, a qualidade de vida das populações dos diversos países a ela afi-liados, a partir da aferição de uma gama de indicadores sócioeconômicos que compõem o chamado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Para Linhares (2002, p.88-89): o marco inicial dos direitos funda-mentais da terceira geração é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, na qual aos direitos fundamentais, sejam aqueles que cuidam das liberdades públicas sejam os de cunho econômico, social e cultural, se agre-ga uma nova categoria de direitos cuja característica marcante é a de que se vinculam à proteção de interesses que transcendem a esfera do indivíduo ou de categorias específicas de pessoas para, de modo difuso, abranger toda a comunidade humana. Também destaca que é importante lembrar, por outro lado, que a questão da qualidade de vida no Brasil ganhou reconhecimento constitucional. Sem embargo, quando a Constituição brasileira atual trata do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (reconhe-cido pelos estudiosos dos direitos fundamentais como sendo da terceira ge-ração), regula expressamente a qualidade de vida, no seu artigo 225, caput, cuja dicção é a seguinte: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologica-mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Os direitos fundamentais de quarta geração e quinta geração são os considerados direitos recentes na história da humanidade, que ainda carecem de positivação para a sua real eficácia, de acordo com Paulo Bonavides citado por MARANHÃO66 (2009), os direitos de quarta geração estão relacionados a

66 MARANHÃO, Ney Stany Morais. A afirmação histórica dos direitos fundamentais. A questão das dimensões ou gerações de direitos. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2225, 4 ago. 2009  .

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pesquisas biológicas, possuindo um vinculo com a Bioética e também ao Bio-direito; já os direitos de quinta geração, também na visão de Paulo Bonavi-des (2008), costumam ser denominados de direitos de solidariedade, conforme consta da Constituição no artigo 4º e incisos, que são também os considerados direitos de paz entre os povos.

2.2 POBREZA E DESIGUALDADE NO BRASIL

O Brasil é um país próspero em relação a riquezas, principalmente as riquezas naturais. A cada ano são descobertas novas fontes naturais de água, gás, petróleo, minerais, e fontes de energia em geral. Porém, a distribuição de renda no território nacional é nitidamente desproporcional a quantidade de re-cursos que o País desenvolve diariamente. Há de fato uma grande distância social e de recursos entre os cidadãos mais favorecidos economicamente e aos cidadãos mais simples.

Conforme Amartya Sen (2010, p.16-17), é necessária uma serie de fatores que libertem de fato o cidadão, para que este consiga o desenvolvimento de plena consciência. O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos.

De acordo com Lucena (2004, p.267), em relação a tripartição dos poderes:

É claro que haverá sempre a necessidade de realizar um juízo de ponderação para identificar as situações em que o direito à saúde deve preva-lecer sobre a distribuição de competências entre o Poder Judiciário e os de-mais Poderes. Entendo que, em situações nas quais a intervenção judicial é a única via para garantir o mínimo necessário para a vida digna, está justificado impor ao Estado o cumprimento de suas obrigações constitucionais referentes aos direitos a prestações.

A presente abordagem da autora demonstra uma crítica ao Estado e por consequência à Administração Pública (Poder Executivo), na qual o Estado com sua obrigação de proteger seus tutelados, os cidadãos de forma geral, estão sofrendo para que a saúde pública seja adequada a população e no caso negativo, caberá ao Judiciário a responsabilidade de garantir o mínimo necessário para a vida digna.

Bobbio (2004, p.231) faz uma reflexão, no qual versa que o tempo vivido não é o tempo real: algumas vezes pode ser mais rápido; algumas vezes, mais lento. As transformações do mundo que se vivencia nos últimos anos, por causa da precipitação da crise de um sistema de poder que parecia muito sólido

Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/13261>. Acesso em: 24 set. 2012.

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e ambicionava representar o futuro do planeta, seja por causa da rapidez dos progressos técnicos, suscitam o dúplice estado de espírito do encurtamento e da aceleração dos tempos. Uma visão demasiado pessimista em que realmente não se contempla a noção de sustentabilidade, pois em uma previsão lógica, os recursos já escassos, se esgotarão em longo prazo.

Já com uma visão contemporânea e lúcida sobre os gastos na saúde pública, sobretudo a norte americana, Dworkin (2005, p.435) comenta que isso é pior do que inútil, pois incentiva a idéia de que a justiça não tem nada a dizer sobre quanto a sociedade deve gastar com a saúde, em comparação com outros bens como a educação, o controle do crime, a prosperidade material ou as artes.

Ainda o mesmo autor, trata o direito à saúde como um parâmetro de igualdade de bem estar e igualdade de recursos, da mesma maneira de Amartya Sem, acreditando que existem parâmetros como o “mínimo existencial”, que podem garantir por exemplo a liberdade de escolhas dos cidadãos, não ficando apenas sob encargo do Estado e ou a Administração Pública a responsabilidade total sobre a saúde da população em geral, muito menos assim se obrigando aos recursos de políticas públicas puramente utilitaristas e ineficazes.

Amartya Sen (2010, p.16) critica os marcadores econômicos como o PIB e PNB:

O crescimento do PNB ou das rendas individuais obviamente pode ser muito importante como um meio de expandir as liberdades desfruta-das pelos membros da sociedade. Mas as liberdades dependem também de outros determinantes, como as disposições sociais e econômicas (por exemplo, os serviços de educação e saúde) e os direitos civis (por exemplo, a liberdade de participar de discussões e averiguações públi-cas). De forma análoga, a industrialização, o progresso tecnológico ou a modernização social podem contribuir substancialmente para expandir a liberdade humana, mas ela depende também de outras influências.Porém o autor salienta a importância de outras influências, tais

como a iniciativa privada e organizações sem fins lucrativos para o desen-volvimento pleno do cidadão, considerando que para se alcançar a liberda-de, os direitos civis e as necessidades básicas como a educação e a saúde devem estar supridas de maneira eficaz.

2.3 OBESIDADE E SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL

Nas palavras de Sawaya et AL (2003), a obesidade é um ganho de gordura corporal e peso em relação à estatura, além disso, cita que a obe-sidade ocorre devido a um balanço energético positivo, ou seja, aumento

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na energia estocada: ENERGIA ESTOCADA = ENERGIA INGERIDA – ENERGIA GASTA.

Nas últimas décadas passou-se a compreender a obesidade não mais como uma relação direta entre energia ingerida e energia es-tocada. Verificou-se que um outro fator, a energia gasta, interferia grandemente nesta relação; sendo considerada por muitos autores até mais importante do que a energia ingerida para a promoção da obesidade. Este fator é ainda pouco conhecido fora do âmbito científico. A energia gasta ou gasto energético tem ganhado im-portância na medida em que crescem o número de estudos mos-trando que a obesidade tem ocorrido em populações pobres que vivem em zona urbana, nos países em desenvolvimento; inclusive co-existindo com a desnutrição. Além disso, a relação entre ener-gia ingerida energia estocada torna-se mais complexa quando se considera que no componente energia ingerida são importantes não só a quantidade de energia ingerida mas o tipo (gorduras e/ou açúcares refinados). Muitos autores sugerem que o tipo de energia ingerida pode ser mais importante para que o corpo estoque gordu-ra do que a quantidade de energia em si. A energia gasta depende da atividade física e/ou da regulação dos mecanismos fisiológicos de conservação de energia e depósito de gordura.

Dessa forma se comprova o panorama atual brasileiro, em um paradigma contemporâneo da co-existência da obesidade e desnutrição em mesmos indivíduos e locais, possibilitando uma suposição empiricamente lógica da dificuldade nas escolhas por uma qualidade de vida saudável e no modo de vida totalmente sedentário, observado na relação do gasto ca-lórico ou de sua negativa.

2.4 OBESIDADE INFANTO-JUVENIL

Existe uma convergência na grande maioria da doutrina em relação à obesidade, que na infância e posteriormente na idade adulta associa-se a uma in-cidência maior de doença coronariana, diabetes tipo II e câncer, ressaltam Powers (2000, p.259), e também as entidades: WORLD HEALTH ORGANIZATION (2003) e o Guia Alimentar para a população brasileira (2005).

Reis (2011) ressalta ainda que o excesso de peso na infância predispõe a várias complicações de saúde, como: problemas respiratórios, diabetes melito, hi-pertensão arterial, dislipidemias, elevando o risco de mortalidade na vida adulta.

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A obesidade já é um problema da realidade atual em diversos meios urbanos ao redor do mundo, de acordo com o mesmo autor:

Os panoramas mundial e brasileiro da obesidade têm se revelado como um novo desafio para a saúde pública, uma vez que sua incidência e sua prevalência têm crescido de forma alarmante nos últimos 30 anos. A mudança do perfil nutricional que se desenha no Brasil revela a importância de um modelo de atenção à saúde que incorpore ações de promoção da saúde, prevenção e tratamento da obesidade e de doen-ças crônicas não transmissíveis.

Dessa forma as políticas públicas que visam o combate da obesidade no Brasil, necessitam de atenção quanto ao perfil nutricional e inseridas as ações de promoção da saúde, deverão conter medidas de prevenção e tratamentos.

Na visão de Valente (2002, p.53) o processo de urbanização acelerada:

(…) tem promovido hábitos alimentares e estilos de vida inadequados, que, por sua vez, vem induzindo a altas prevalências de sobrepeso e obe-sidade, com aumento correlato de doenças crônico-degenerativas asso-ciadas à alimentação inadequada (hipertensão arterial, doenças cardio-vasculares, Diabetes mellitus, cânceres, dislipidemias, osteoartroses etc.), que hoje já se constituem em um problema prioritário de saúde pública e de segurança alimentar, inclusive no grupo de crianças e adolescentes.

Marquezine (2007) afirma que a obesidade é um dos fatores de ris-co que geram a chamada Síndrome Metabólica, nesse sentido fica claro que a obesidade está fortemente associada a uma série de complicações médicas que diminuem a qualidade de vida, aumentam os custos de saúde pública, aumen-tam significativamente a morbidade geral destes pacientes e, finalmente, podem levar à morte prematura.

Os custos com a saúde pública poderiam ser amenizados caso houves-se políticas públicas eficazes no combate à obesidade no âmbito da prevenção, no sentido em que o investimento fosse proporcional. Para além dos cuidados adequados aos pacientes obesos, também há que se observar o óbito de forma prematura pela série de complicações clínicas provenientes desse fator de risco.

2.5 LEGISLAÇÃO EM RELAÇÃO À SOCIEDADE DE CONSUMO

A saúde e a alimentação estão relacionadas diretamente com a socie-dade e ao seu respectivo consumo. Em um contexto atual do Brasil, um país

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capitalista e em pleno desenvolvimento econômico, Sereda (2009), diferencia a Sociedade de Consumo das sociedades de subsistências tradicionais e ou anti-gas que produziam apenas para o consumo e sustentos próprios:

Sociedade de consumo é uma expressão utilizada para se referir à sociedade contemporânea. Consumir, seja para a satisfação de “ne-cessidades básicas” e/ou “supérfluas”, é uma atividade presente em toda e qualquer sociedade humana. Para alguns autores, a socieda-de de consumo é definida por um tipo específico de consumo. Para outros, englobaria características sociológicas, como a presença de moda, sentimento permanente de insaciabilidade.

Além disso, deve se observar que o público infantil é um alvo fácil das agencias de publicidade, impondo necessidades que não existem de fato e bombardeando de propagandas que geram uma busca material alienada. Na visão de Marx a partir das mesmas autoras:

(…) ideologia é um conjunto de ideias e conceitos que corresponde aos interesses de uma classe social. O consumo é uma ideologia im-posta sobre as sociedades capitalistas e que atinge profundamente as crianças. Ao serem expostas a comerciais de TV dirigidos especifica-damente a elas, é como se automaticamente despertasse nelas o desejo de consumir determinado produto ou serviço. Esse é o conceito de fetiche de Marx. Ele ainda afirmou que o fetiche é um produto de pro-priedade e domínio do capitalismo, em que as empresas capitalistas produzem imagens consideradas ideais para que o consumidor seja induzido a comprar estes determinados produtos.

Aquino e Philippi (2002), ainda analisam o consumo em relação à alimentação que as práticas de alimentação são importantes determinantes das condições de saúde na infância e estão fortemente condicionadas ao poder aqui-sitivo das famílias, do qual dependem a disponibilidade, quantidade e a qualida-de dos alimentos consumidos.

Esse fato citado reforça o contexto econômico do Brasil na atualida-de, principalmente focando nas crianças e adolescentes, na dualidade em que se propaga pelo tempo e desenvolvimento do poder aquisitivo no que tangem à desnutrição e à obesidade infantil. Para Valente (2002, p.37), é parte do direito à alimentação ter informações corretas sobre o conteúdo dos alimentos, práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que promovem a saúde e reduzem o nú-mero de doenças ocasionadas por uma alimentação inadequada.

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Na visão de Michel Foucault (2008, p.311), o homem do consumo é um produtor, a medida em que produz a sua própria satisfação. É uma crítica bastante irônica ao que ele mesmo trata como consumo de massa e sociedade de consumo, observando uma alienação ao desejo de se consumir algo que não há real ou relevante necessidade.

3 ANÁLISE DA PROMOÇAO DA SAÚDE NO ÂMBITO DA PREVENÇÃO

A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 196, expressa que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econô-micas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso uni-versal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

A previsão constitucional de redução do risco de doenças pode ser considerada em uma forma hermenêutica de interpretação jurídica, como de alguma maneira a abordagem preventiva aos riscos de alguma patologia.

Quanto à abordagem prática, há historicamente uma divisão doutriná-ria no qual se utilizam as nomenclaturas de direito à saúde: “curativo” e “pre-ventivo”. Já em relação à análise tratada na Monografia, se refere ao direito à saúde de maneira preventiva e não meramente curativa.

De acordo com Barcellos (2010, p.811), as ações de medicina preventiva são representativas de um conjunto especialmente amplo de ações de saúde, no qual pode ser incluída a prevenção epidemiológica. Afora a questão das epidemias, que envolvem formas específicas de prevenção, como a aplicação de vacinas, a pulve-rização de substâncias para o extermínio de transmissores de moléstias etc., a idéia de “ações de medicina preventiva” exigirá ainda um pouco mais de detalhamento.

O entendimento da questão preventiva na área da saúde se constitui com base no atual panorama caótico da saúde pública no Brasil. O grande foco está na cura imediata da situação precária, porém não há reflexão a longo prazo para problemas passados, atuais e futuros, não existem programas e políticas públicas eficazes no âmbito da prevenção, o que salienta ainda mais os proble-mas atuais e não possibilita uma segurança na qualidade de vida a longo prazo.

3.1 DIREITO À SAÚDE E À ALIMENTAÇÃO

De acordo com o Ministério da Saúde, a Política Nacional de Alimen-tação e Nutrição (PNAN), homologada em 1999, integra a Política Nacional de Saúde. Tem como principal objetivo contribuir com o conjunto de políticas de governo voltadas à concretização do direito humano universal à alimentação e nutrição adequadas e à garantia da Segurança Alimentar e Nutricional da popu-lação. Todas as ações de alimentação e nutrição, sob gestão e responsabilidade

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do Ministério da Saúde, derivam do princípio de que o acesso à alimentação adequada, suficiente e segura, é um direito humano inalienável. Esse princípio, norteador do desenvolvimento da própria PNAN e suas implicações em termos de regulação, planejamento e prática, é uma iniciativa pioneira do Brasil no cenário internacional.

Além disso, o Ministério da Saúde observa que um país como o Bra-sil, onde as desigualdades regionais são expressivas, é importante destacar que a promoção da alimentação saudável pressupõe a necessidade de definição de es-tratégias de saúde pública capazes de dar conta de um modelo de atenção à saúde e de cuidado nutricional, direcionados para a prevenção da desnutrição, assim como também o extremo oposto o sobrepeso e a obesidade e das demais doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), resultantes da inadequação alimentar.

Já a Organização Mundial da Saúde (OMS), propõem a Estratégia Global para a Promoção da Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde, sugerindo a formulação e implementação de linhas de ação efetivas para reduzir substancialmente as mortes e doenças em todo o mundo. Seus quatro objetivos principais são:

(1) reduzir os fatores de risco para DCNT por meio da ação em saúde pública e promoção da saúde e medidas preventivas;

(2) aumentar a atenção e de conhecimento sobre alimentação e ativi-dade física;

(3) encorajar o desenvolvimento, o fortalecimento e a implementação de políticas e planos de ação em nível global, regional, nacional e comunitário que sejam sustentáveis, incluindo a sociedade civil, o setor privado e a mídia;

(4) monitorar dados científicos e influências-chave na alimentação e atividade física e fortalecer os recursos humanos necessários para qualificar e manter a saúde nesse domínio.

Para a concretização da Estratégia Global, a OMS recomenda a ela-boração de planos e políticas nacionais e o apoio de legislações efetivas, infra--estrutura administrativa e fundo orçamentário e financeiro adequado e inves-timentos em vigilância, pesquisa e avaliação. Sugere, ainda, a construção de propostas locais e a provisão de informação adequada aos consumidores, por meio de iniciativas vinculadas à educação, à publicidade, à rotulagem, a legis-lações de saúde, e enfatiza a necessidade de garantia de articulação intersetorial e políticas nacionais de saúde, educação, agricultura e alimentação que incor-porem, em seus objetivos, a nutrição, a segurança da qualidade dos alimentos e a segurança alimentar sustentável, a promoção da alimentação saudável e da atividade física, além de políticas de preços e programas alimentares.

A alimentação é um dos fatores que alteram a saúde dos indivíduos, possibilitando ou não uma qualidade de vida adequada ou não, variando con-

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forme o consumo de nutrientes e calorias necessárias diariamente. Conforme afirma Valente (2002, p.32), são importantes a alimentação e a nutrição adequa-das durante toda a vida, para que crianças, jovens e adultos possam desenvolver plenamente suas capacidades físicas e intelectuais.

O mesmo autor ainda coloca a alimentação adequada como um fator necessário para a vida:

(…) é um direito humano básico, reconhecido no Pacto internacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais. Sem ele não podemos discutir os outros. Sem uma alimentação adequada, tanto do ponto de vista de quantidade como de qualidade, não há o direito à vida. Sem uma alimentação adequada não há o direito à humanidade, entendida aqui como direito de acesso à vida e à riqueza material, cultural, científica e espiritual produzida pela espécie humana.

Pode-se assegurar dessa forma que o cidadão que não possui uma alimentação adequada, por fatores e condições socioeconômicas, está sendo privado de sua dignidade humana, além das restrições no desenvolvimento das capacidades físicas e cognitivas.

Para além do Direito a uma alimentação adequada, relata Valente (2002, p.44), que o ato de alimentar-se para o ser humano está ligado a sua cul-tura, a sua família, a seus amigos e a festividades coletivas. Ao alimentar-se jun-to de amigos, de sua família, comendo pratos característicos, de sua infância, de sua cultura, o indivíduo se renova em outros níveis além do físico, fortalecendo também sua saúde mental e sua dignidade humana.

3.2 QUESTÃO SÓCIOECONÔMICA E ACESSO À INFORMAÇÃO NO BRASIL

A estabilização econômica no Brasil, proveniente do desenvolvimen-to gerado no início da década de 90 com o controle da inflação e a criação de uma moeda eficaz diante aos capitais externos, fez com que a população em geral aumentasse o seu potencial de compras. Esse desenvolvimento recente na economia do País favoreceu as classes sociais menos favorecidas, dando lhes a oportunidade de se beneficiar de condições anteriormente só proporcionada aos cidadãos economicamente mais capacitados. Com o aumento no poder de com-pra, mas sem a informação necessária, ocorreu um fato singular na alimentação dos brasileiros, primeiro foi a diminuição da fome e em seguida o desenvol-vimento da obesidade, devido ao fato de não haver políticas públicas eficazes quanto a uma alimentação balanceada e saudável.

Em relação à falta de informação e a perda de controle dos seres hu-manos sobre a produção, seleção, preparo e consumo dos alimentos, Valente

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(2002, p.44), adiciona as novas práticas agropecuárias, baseadas na forte utili-zação de insumos químicos, associadas à mudança de hábitos alimentares urba-nos, têm produzido agravos à saúde humana, consubstanciados no aumento da incidência de doenças crônico-degenerativas, obesidade, diabetes, doenças car-diovasculares, câncer, entre outras) associadas a uma alimentação inadequada, que se transformaram na década de 1990 nas principais causas de mortalidade.

3.3 PREVENÇÃO

O Ministério da Saúde recomenda como prática de hábitos alimen-tares saudáveis a ingestão aumentada de frutas, legumes e verduras, e aponta como fatores protetores no desenvolvimento da obesidade. Esse efeito se deve à menor densidade energética desses alimentos e à capacidade que esses ali-mentos têm de gerar sensação de saciedade. Também instrui que o aumento do consumo de nozes ou assemelhados deve ser feito com cautela, pelo seu alto conteúdo de gordura e tendência ao consumo com adição de sal.

Com respeito à atividade física a OMS dentro da Estratégia Global recomenda pelo menos 30 minutos de atividade física, regular ou intensa ou moderada, na maioria dos dias da semana, senão em todos, a fim de prevenir as enfermidades cardiovasculares e diabetes e melhorar o estado funcional nas diferentes fases do ciclo de vida e especialmente na fase adulta e idosa.

Conforme as medidas preventivas recomendadas, Reis (2011) afirma que:

Nesse contexto, políticas públicas e programas de promoção da saúde, vi-sando a hábitos alimentares saudáveis e práticas de atividades físicas re-gulares, são necessários para combater essa realidade. Medidas governa-mentais já foram tomadas a fim de controlar o aumento da prevalência da obesidade entre as crianças brasileiras. Nessa lógica, são importantes as po-líticas públicas que buscam atuar na prevenção e no controle da obesidade infantil. O objetivo do presente estudo foi analisar criticamente as políticas públicas de nutrição brasileiras para o controle da obesidade infantil.

Marquezine (2007) afirma que o sobrepeso e a obesidade reduzem de forma significativa a sobrevida e a qualidade de vida. Embora os mecanismos envolvidos na fisiopatologia sejam complexos, a modificação de estilo de vida é a intervenção preventiva mais efetiva em termos de Saúde Pública:

Podemos classificar o tratamento da obesidade em modificações no es-tilo de vida (dieta apropriada e atividade física), terapia comportamen-tal, medidas farmacológicas e procedimentos cirúrgicos. Estas modali-

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dades devem ser empregadas seguindo uma lógica que envolve o grau de obesidade e a presença e a gravidade de complicações.

A proporcionalidade do nível de obesidade e a sua análise clínico--patológica se faz necessária para a adequação ao tratamento mais eficaz para a obesidade, porém com as comodidades da atualidade se faz importante a pre-venção antecipada do sobrepeso e a obesidade.

3.4 EXERCÍCIOS FÍSICOS E QUALIDADE DE VIDA

Nos dias atuais é já um fato notório que a prática de exercícios físicos melhoram a qualidade de vida dos cidadãos. Os benefícios são diversos, físi-cos, fisiológicos e psicológicos, assim como desenvolve as questões de socia-bilidade e noções coletivas. Porém, diante da fragilidade das políticas públicas no âmbito da prevenção, há que se constatar uma necessidade do Estado em fomentar ações que como a prática de exercícios físicos, contribuam para a melhora da qualidade de vida dos brasileiros.

Na visão de Roberto Simão (2004, p.175-176) em relação à saúde e à qualidade de vida:

O corpo humano apresenta-se em estado de repouso e exercício, po-rém, na maior parte do tempo, a intensidade desse exercício é baixa ou similar ao repouso, podendo chegar a níveis bem elevados. Em todas essas situações, mecanismos fisiológicos são acionados para preservar a homeostase. Em muitas etapas, esses mecanismos não se encontram completamente caracterizados. No entanto, com o conhecimento atual, já é possível estabelecer algumas bases importantes para um melhor aproveitamento do exercício físico como instrumento de saúde.

O estado de exercício se caracteriza fisiologicamente, pelo simples mecanismo de preservação da homeostase na base fisiológica do indivíduo, tais como o aumento da frequência cardíaca, manutenção da temperatura corporal, aumento e diminuição da pressão arterial e taxa de glicemia, etc., visando as adaptações necessárias. Esse déficit de gasto calórico e ou energético durante a prática do exercício físico se transformará em benefícios gerais ao ser humano.

Para Paulo Afonso Linhares (2002, p.22), a qualidade de vida se con-ceitua como a faculdade que as pessoas possuem de fazer escolhas, das quais resultam um conjunto de capacidades que, nos planos individual e coletivo, são realizadas por cada uma dessas pessoas segundo aquilo que entendem ser a melhor forma do viver. Essas escolhas são atribuições das capacidades, de sorte que somente se pode ter como componentes da qualidade de vida, capacidades que, pelo julgamento da pessoa, são tidas como valiosas.

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Ainda conforme o mesmo autor, em relação a um contexto de mundo globalizado, a qualidade de vida constitui a base dos novos paradigmas para a vida dos povos e para as relações internacionais, a partir das quais são traçados os objetivos e as estratégias do desenvolvimento.

Quanto à qualidade de vida, a Constituição Federal de 1988 em seu ar-tigo 225, retrata a sadia qualidade de vida, como sendo o direito de todos, impon-do-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Porém, na visão de Amartya Sen (2010, p.41-42):

Cabe notar aqui, porém, que a perspectiva baseada na liberdade apre-senta uma semelhança genérica com a preocupação comum com a “qualidade de vida”, a qual também se concentra no modo como as pessoas vivem (talvez até mesmo nas escolhas que têm), e não apenas nos recursos ou na renda de que elas dispõem. Na mesma esteira, Paulo Afonso Linhares (2002, p.34) concorda que

apenas a previsão constitucional não basta para a efetivação, o cidadão deve possuir antes de tudo a opção de realização de escolhas:

Isto aponta para uma questão que se relaciona com a capacidade de re-alização de escolhas, pelos indivíduos, tanto pessoais quanto aquelas de natureza política. Estas escolhas se dão naquilo que Sen denomina como espaço de capacidades, devendo entender-se por capacidades aquelas “oportunidades reais, as possíveis efetividades valiosas ou as liberdades efetivas de realizar”(…)

Com esse pressuposto vale salientar que as condições de oportunidades iguais nas escolhas do cidadão, terão de ser subsediadas principalmente pelo po-der público, mas para tal fato ocorrer, serão necessárias mudanças significativas em todo o contexto básico e ou manutenção do chamado “mínimo existencial”.

3.5 ACADEMIA DA SAÚDE

De acordo com os dados literais do Ministério da Saúde em seu portal eletrônico, o Programa Academia da Saúde, criado pela Portaria nº 719, de 07 de abril de 2011, tem como principal objetivo contribuir para a promoção da saúde da população a partir da implantação de polos com infraestrutura, equipa-mentos e quadro de pessoal qualificado para a orientação de práticas corporais e atividade física e de lazer e modos de vida saudáveis.

Os polos do Programa Academia da Saúde são espaços públicos cons-truídos para o desenvolvimento de atividades como orientação para a prática de

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atividade física; promoção de atividades de segurança alimentar e nutricional e de educação alimentar; práticas artísticas (teatro, música, pintura e artesanato) e organização do planejamento das ações do Programa em conjunto com a equipe de APS e usuários.

As atividades serão desenvolvidas por profissionais de saúde da atenção primária em saúde, especialmente dos Núcleos de Saúde da Família (NASF), podendo ser agregados profissionais de outras áreas do setor público.

Dessa forma, há algumas críticas referentes aos objetivos do Projeto Academia da Saúde, que são:

I - ampliar o acesso da população às políticas públicas de promoção da saúde; Ao colocar como um dos objetivos do projeto a ampliação do acesso da

população, se verifica a problemática já existente quanto à dificuldade de parte da sociedade em usufruir do benefício de uma das políticas de promoção da saúde.

II - fortalecer a promoção da saúde como estratégia de produção de saúde;

O termo “produção da saúde” é utilizado em um sentido equivoca-do, considerando-se que a saúde é um fator intrínseco de um ser humano, se questiona: como poderia ser “produzido” a saúde? No entanto o objetivo de fortalecer a promoção da saúde deve estar sempre vinculado ao conhecimento, em campanhas educativas, informativas, com o intuito de democratizar a infor-mação no plano da saúde.

III - potencializar as ações nos âmbitos da Atenção Primária em Saú-de (APS), da Vigilância em Saúde (VS) e da Promoção da Saúde (PS);

A potencialização dessas ações dependerá também contar com a ade-quação profissional, afinal a capacitação e adequação devem possuir caráter de atualização constante.

IV - promover a integração multiprofissional na construção e execu-ção das ações;A integração multiprofissional é um objetivo necessário na área

da saúde, sendo que nem sempre é possível possuir um diagnóstico eficaz, sem a perícia profissional adequada. Portanto a construção e a execução das ações ficariam comprometidas e ineficazes, caso não seja efetivo a integra-ção multiprofissional.

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V - promover a convergência de projetos ou programas nos âmbitos da saúde, educação, cultura, assistência social, esporte e lazer;

Assim como a integração multiprofissional, a promoção da conver-gência de projetos e programas nos âmbitos citados, se faz de extrema impor-tância no êxito do programa, visto que de forma isolada e independente pode não efetivar seus objetivos.

VI - ampliar a autonomia dos indivíduos sobre as escolhas de modos de vida mais saudáveis;

A ampliação da autonomia dos indivíduos sobre as escolhas vai de encontro ao desenvolvimento da educação emancipatória.

VII- aumentar o nível de atividade física da população;

É interessante aumentar o nível de atividade física da população, con-tudo o que deve ser considerado é o aumento efetivo da quantidade horária da prática do exercício físico dos cidadãos, sendo que de acordo com Fábio Saba (2001, p.13), se diferenciam da seguinte maneira:

(…) a atividade direcionada à melhoria da aptidão física, que busca saúde, ganhos estéticos e, principalmente, bem-estar; a atividade físi-ca como um fim em si mesma, que, quando sistematizada, é denomi-nada exercício físico. De outro, a atividade física como meio de rea-lização das atividades humanas corriqueiras, a atividade física como meio de obtenção dos mais diversos objetivos.

Portanto, considerando que a prática da atividade na propositura do pro-grama é uma atividade física executada com um planejamento prévio, com a utili-zação sistemáticas e científicas, é pressuposto que a nomenclatura seja equivocada.

VIII - estimular hábitos alimentares saudáveis;

O estímulo de hábitos saudáveis de alimentação somente poderá ocor-rer se houver previamente o conhecimento do que é de fato “hábitos saudáveis de alimentação”. Para tal, é necessário a presença de profissionais com qualifi-cação em nutrição vinculados aos grupos multiprofissionais.

IX - promover mobilização comunitária com a constituição de redes sociais de apoio e ambientes de convivência e solidariedade;

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A mobilização comunitária, a constituição de redes sociais de apoio, juntamente com ambientes de convivência e solidariedade, possuem extrema importância no desenvolvimento dos objetivos, pois concentra os cidadãos de maneia ordenada e possibilita a facilitação e propagação de informações.

X - potencializar as manifestações culturais locais e o conhecimento popular na construção de alternativas individuais e coletivas que fa-voreçam a promoção da saúde; e

XI - contribuir para ampliação e valorização da utilização dos espaços públicos de lazer, como proposta de inclusão social, enfrentamento das violências e melhoria das condições de saúde e qualidade de vida da população.

Os dois últimos objetivos possuem características mais genéricas, criando obrigações conjuntas aos cidadãos individualmente e também como co-letividade, no favorecimento da promoção da saúde e também, valorizando as es-truturas públicas, visando combater a violência, e a melhora da qualidade de vida.

É notória a importância da implementação de políticas públicas na área da saúde, contudo existe um equívoco nas concepções de planejamento da administração pública, visíveis nitidamente na Portaria nº 719 de 07 de abril de 2011, na qual a promoção da saúde não é relacionada no âmbito da prevenção em simetria com a prática de exercícios físicos. Também há de se notar a utilização equivocada do termo “atividade física” e questionar o termo “produção da saúde”.

Contudo, se observa uma evolução na preocupação da saúde pública no âmbito da prevenção, já que mesmo com seus devidos equívocos, o projeto possui a intenção clara de beneficiar os cidadãos brasileiros na busca de uma sadia qualidade de vida e um meio ambiente ecologicamente equilibrado, além de demonstrar a garantia e a relevância publica sobre o direito à saúde, confor-me a Constituição Federal de 1988, artigos 225, 196 e 197, respectivamente.

4 CONCLUSÃO

O problema contemporâneo observado em relação a obesidade in-fantil não se restringe apenas ao Brasil, mas se visualiza idêntica dificuldade em diversos Estados Democráticos de Direito ao redor do globo terrestre, assim como em países que não enfatizam a democracia como a principal po-lítica representativa.

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O desenvolvimento e a evolução do ser humano ao passar dos tempos creditaram-lhe vários benefícios tecnológicos. A rotina de uma pessoa comum já não depende de muitos esforços físicos para garantir sua sobrevivência, o que significa, consideravelmente, o aumento do número de crianças sedentárias.

Esse fato é constatado historicamente nos séculos XVIII e XIX, na época das grandes revoluções, quando diversos focos foram alterados, como as políticas econômicas liberais, decadência das monarquias, desenvolvimento do capitalismo, mas, principalmente, em uma visão humanista, o ser humano passou a se utilizar de recursos tecnológicos que poderiam economizar força e tempo dos trabalhadores, porém o que aconteceu foi exatamente o contrário, ou seja, o aumento da quantidade de trabalho, por causa da mão de obra barata e a desvalorização do indivíduo, no caso das crianças e adolescentes o fato ainda é mais grave, mudando o foco lúdico da brincadeira nas horas de lazer em práti-cas de execução física para jogos eletrônicos e internet.

A partir desse contexto histórico, se observa a degradação da saúde em relação ao cidadão comum e por consequência nas crianças, por conta do sedentarismo, ocasionando por consequência, várias outras patologias decor-rentes da falta de exercícios físicos e má qualidade da alimentação, como a obesidade, resultando em uma pior qualidade de vida.

Contudo, há um mal uso dos recursos públicos na área da saúde, cujo o foco é o tratamento de doenças, que são gastos extremamente necessários, sendo que o bem da vida e o da saúde são bens valorativamente incalculáveis. Ainda dentro dessa mesma visão, a saúde não é aferível ou valorável, e é claro que os gastos dos recursos deverão ser ponderados e socialmente observados de um ponto de vista utilitarista, porém há que se observar suas raízes e não apenas na ótica imediatista.

Assim, deve o Poder Público melhorar a qualidade de vida da população como um todo, mas principalmente atendendo os indivíduos menos privilegiados, que no caso em específico são crianças desfavoreci-das economicamente e seus responsáveis, não sendo a saúde um privilégio apenas de uma pequena porção que possui recursos suficientes para a con-tratação de um plano de saúde particular que supra os defeitos do Sistema Único de Saúde (SUS).

Quanto ao Programa Academia da Saúde no Âmbito do Sistema Úni-co de Saúde, poderá proporcionar aos cidadãos brasileiros uma considerável melhoria na área da saúde, assim como a redução de gastos em medicamentos, médicos e hospitais, pela Administração Pública. Porém deverá atingir como diretriz central a conscientização dos cidadãos a prática de exercícios físicos e informar quanto a hábitos saudáveis de alimentação. Além disso, pode se dizer que o seu sucesso dependerá de uma série de fatores, nos quais pode-se citar: a

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formação de uma equipe multiprofissional na área da saúde, acessibilidade nos espaços públicos e também a promoção da saúde no aspecto socioeducativo, visando informar e formar o pensamento crítico do cidadão brasileiro a partir de sua base na infância.

Por fim, considerando o contexto brasileiro de cultura, ambiente so-cial, econômico e também educacional, a problemática da obesidade infantil irá para além da saúde pública, colocando os gastos do Estado em médicos, me-dicamentos, hospitais e tratamentos. É de fato uma falta de sensibilidade com o futuro da nação e seus cidadãos infantes necessitados, um descaso que pode gerar uma geração de cidadãos alienados e sem nenhum amparo na sua estru-tura psicossocial, crescendo estigmatizadas pela obesidade. Porém, há esperan-ça, considerando medidas educacionais preventivas, não apenas estatais, mas contando também com todo apoio de comunidades, sociedades e da iniciativa privada, além de atividades práticas de cidadãos proativos e comprometidos com as mudanças sociais em favor do desenvolvimento de todos.

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A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA

THE SOCIAL FUNCTION OF URBAN PROPERTY

GabriEl batiSta DoS SantoS

Bacharelando do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

rEGina maria buEno bacEllar

Possui graduação em direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1985), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e especialização em Ecologia e Direito Ambien-tal. Atualmente leciona em cursos de graduação e Pós Graduação no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de Pós Graduação na UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Tem experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo, Ambiental, Urbanístico e Direi-to de Energia/Regulatório.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Do direito à propriedade. 3. Histórico da Propriedade. 3.1. Propriedade em Roma. 3.2. Propriedade Medieval. 3.3. Período Pós-Revolução Francesa. 4. A Função Social da Propriedade – Princípio e Norma. 5. Instrumentos normativos para cumprimento da função social. 6. Função social da propriedade: posicionamentos atuais. 7. Considerações finais. Referências.

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo demonstrar como o princípio da função social da propriedade evoluiu historicamente, desde o seu surgimento, passando pelas primeiras civilizações, pela Idade Média e Idade Moderna, até que o princípio adquirisse sua definição atual. Pretende-se demonstrar como o direito à propriedade, um direito inerente ao homem e outrora considerado como absoluto, pode sofrer restrições impostas pelo Estado aos proprietários, ao constatar-se que a propriedade urbana não está observando a devida finalida-de social. Essa função social, como princípio constitucional, é previsto na Carta Magna, assumindo contornos de norma de aplicabilidade imediata, e servindo de parâmetro para a elaboração e aplicação de outras normas, sendo que para garantir a efetividade do referido princípio, o Estado pode utilizar-se de diver-sos instrumentos legais para assegurar que por meio do ordenamento jurídico vigente, a República Federativa do Brasil cumpra seus objetivos fundamentais, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

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Palavras-chave: Princípio da função social, propriedade, finalidade, Estado.

ABSTRACT

The present article aims to demonstrate how the principle of social function of property historically evolved, since its birth, passing through the ancient civilizations, Middle Ages and Modern Times, until it acquired the current definition. It also intends to demonstrate how the right to property, a innate human right, which was formerly considered as absolute, may suffer restrictions imposed by the State to the owners when verified that the urban property wasn’t observing its due social end. This social function, as a constitutional principle, is predicted in the Constitution, assuming the role of norm of immediate applicability, and, being used as a parameter to the elaboration and application of other norms. To guarantee the effectiveness of the referred principle, the State can utilize several legal instruments to assure that through the currently in force law ordainment, the Federal Republic of Brazil abide its fundamental objectives, such as the construction of a free, just and supportive society.

Keywords: Principle of social function, property, effectiveness, State.

1 INTRODUÇÃO

O direito de propriedade sempre acompanhou o homem, desde os tempos mais remotos da História. Ele assumia um caráter preponderante nas sociedades, pois permitia identificar os indivíduos, separá-los, bem como proporcionar ao homem seu sustento próprio e de sua família.

Por possuir essas características ligadas ao homem, o direito de propriedade era tido como um direito absoluto e inviolável, uma vez que pertencia à própria essência dos indivíduos, e, consequentemente, da sociedade, da coletividade.

Porém, com o passar dos anos, e com a mudança da cultura e das práticas sociais, principalmente em decorrência da Revolução Francesa de 1789, alteraram-se os paradigmas político-sociais no final do Séc. XVIII. Essa Revolução, fundamentada nos ideais iluministas e na Revolução Americana de 1776, buscou emancipar o homem e o cidadão, para garantir-lhe direitos fundamentais em detrimento do Estado arbitrário.

Os ideais consagrados pela Revolução Francesa atendiam os interesses da burguesia vencedora em relação à propriedade, entretanto, faltava ainda uma mudança no sentido de entender a propriedade como um instrumento capaz de garantir uma finalidade social.

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Nesse aspecto, a Igreja Católica foi de extrema importância para a disseminação da idéia de que a propriedade deve observar os interesses da coletividade, e não apenas do proprietário (tal doutrina é baseada na obra de São Tomaz de Aquino).

Surge então, nos Estados Modernos, a preocupação em se garantir a defesa dos interesses da coletividade, ao consagrar o princípio da função social da propriedade como princípio orientador nos ordenamentos jurídicos.

Sendo assim, este artigo busca demonstrar como essa mudança de paradigma ocorreu ao longo dos séculos, e como o direito absoluto à propriedade, e a finalidade social da propriedade, conceitos antagônicos, podem coexistir nos ordenamentos jurídicos.

2 DO DIREITO À PROPRIEDADE

O estudo da função social da propriedade e a relevância que tal princípio regulador do direito exerce no ordenamento jurídico vigente, não podem prescindir de um prévio estudo acerca do direito de propriedade, sua função social, e de sua evolução histórica e jurídica.

Conforme Júnior, a propriedade é o poder jurídico, geral e absoluto, de uma pessoa (persona) sobre uma “coisa” (res) corpórea, e pode ser definida e conceituada como sendo o direito que liga o homem a uma coisa, direito que possibilita a seu titular retirar da coisa toda utilidade que esta mesma lhe possa oferecer (JÚNIOR, 1967, p. 146). Assim, para que o homem sobreviva no tempo, precisa apropriar-se dos bens naturais, de consumo, bens fungíveis e, também, de produção. A propriedade pode ser definida como a expressão da pessoa humana. É o resultado do seu trabalho ou do de seus antepassados (LIMA, 2006, p. 1).

A propriedade é,

(...) uma representação do homem, que precisa de um espaço destinado à sua privacidade, rodeado pelos símbolos que identificam o seu eu. A propriedade estimula a produção do homem, sendo ele atraído espontaneamente por uma expectativa da recompensa pessoal de seus esforços. Por conseqüência, a propriedade é penhor de uma sociedade articulada ou organizada, ao contrário de uma sociedade meramente coletiva, que tem por premissa uma sociedade massificada, sem diversificação nem liberdade. O direito de propriedade defende os cidadãos contra a concentração de todos os poderes nas mãos do

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Estado, garantindo a liberdade dos indivíduos e sua independência em relação ao poder civil. (LIMA, 2006, p. 1).

Ainda hoje o conceito de propriedade não possui uma única definição, sendo que sofreu alterações com o passar do tempo. Sobre esse assunto, de acordo com Carmen Lúcia:

A verdade é que a propriedade individual vigente em nossos dias, exprimindo-se embora em termos clássicos e usando-se a mesma terminologia, não conserva todavia conteúdo idêntico ao de suas origens históricas. (...) . Mas é inegável também que essas faculdades suportam evidentes restrições legais, tão freqüentes e severas, que se vislumbra a criação de novas noções. São restrições e limitações tendentes a coibir abusos e tendo em vista impedir que o exercício do direito de propriedade se transforme em instrumento de dominação(...) . (ROCHA, 2004, p. 86).

Conforme se depreende da análise dos textos, a propriedade, em que pese haja sofrido alterações em sua definição, surge, no devido contexto histórico, com a prerrogativa de assegurar ao homem, como parte de uma sociedade, a defesa de seus direitos perante toda uma coletividade (CARVALHO, 2007, p. 34).

Feitas essas considerações, tem-se que

O domínio é o mais completo dos direitos subjetivos e constitui, como vimos, o próprio cerne do direito das coisas. Aliás, poder-se-ia mesmo dizer que, dentro do sistema de apropriação de riqueza em que vivemos, a propriedade representa a espinha dorsal do direiro privado, pois o conflito de interesses entre os homens, que o ordenamento jurídico procura disciplinar, manifesta-se, na quase generalidade dos casos, na disputa sobre bens. Trata-se, como é óbvio, de um direito real, ou seja, de um direito que recai diretamente sobre a coisa e que independe, para o seu exercício de prestação de quem quer que seja. (RODRIGUES, 2003, p. 73).

A propriedade é um direito que a princípio, assume características de um direito absoluto. Isto se dá por conta de sua construção histórica, e sua característica de estar sempre ligada ao homem. Previamente, pode-se dizer que o direito de propriedade não sofre restrições (diferentemente de outras espécies de direitos). Portanto, o titular desse direito tem o poder de decisão sobre a coisa, e esse poder recai sobre o bem, podendo o detentor dispor de tal coisa, bem como fazer outras coisas também (RODRIGUES, 2003, p. 81).

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O direito de propriedade é um direito considerado como sendo um direito complexo, o seu conteúdo comporta uma subdivisão, surgindo então à distinção entre o direito de propriedade e o direito de posse. O proprietário, por ser o titular da coisa, detém também o direito de posse sobre a coisa.

Neste sentido, a propriedade

(...) considera-se o mais amplo dos direitos reais, o chamado direito real por excelência, ou direito real fundamental. Em todos os campos da atividade humana e no curso da vida da pessoa, sempre acompanha a idéia do ‘meu’ e do ‘teu’, desde os primórdios das manifestações (...), o que leva a afirmar ser inerente à natureza do homem a tendência de ter, de adonar-se, de conquistar e de adquirir. (RIZZARDO, 2004, p. 169).

A propriedade é o que configura a característica determinante e distintiva relativa a alguém ou a alguma coisa. Segundo a classificação da doutrina, no direito à propriedade (nomeado como o cerne dos direitos reais) existe um liame que prende a coisa ao seu titular. O termo propriedade, proveniente do latim proprieta, quer dizer o domínio de uma pessoa ou objeto especificado, quer dizer, aquilo que delimita, identificando a pessoa ou o bem.

A Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, assegura a todos os cidadãos o direito de propriedade (art. 5º, XXII, CR), e preceitua, na sequência, que a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º, XXIII da CF).

Para entender como a propriedade sofreu as alterações que culminaram no conceito que predomina atualmente, mister se faz uma breve remissão histórica sobre a propriedade e sua função social.

3 HISTÓRICO DA PROPRIEDADE

3.1 PROPRIEDADE EM ROMA

O proprietário romano detinha um poder absoluto sobre a sua propriedade, podendo utilizar do seu direito da forma que bem o aprouvesse, sem que tal conduta viesse a acarretar alguma sanção por parte do Estado.

De fato, se o proprietário na Roma Antiga resolvesse não dar uso para seus bens, ou destinar a esses bens um uso inadequado, ele poderia fazê-lo, sem que isso possibilitasse à Administração Pública a intervenção na esfera de bens do proprietário.

E para esse período, (...) A propriedade no direito romano foi concebida como direito absoluto e perpétuo, tendo como atributos o direito de usar, gozar, dispor e

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reivindicar a coisa. Não havia em Roma a concepção jurídica de bem, mas somente a de coisa. Foi a evolução do direito que permitiu o surgimento da noção de bem ao lado da noção de coisa. (CARVALHO, 2007, p. 17).

A propriedade no direito romano foi concebida como direito absoluto e perpétuo, tendo como atributos o direito de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa. Não havia em Roma a concepção jurídica de bem, mas somente a de coisa (CARVALHO, 2007, p. 17). Porém, pode-se dizer que a noção de propriedade foi alcançando novos contornos, e novos conceitos jurídicos com o decorrer dos anos.

3.2. PROPRIEDADE MEDIEVAL

A Idade Média teve início em 475 d.C., e é um período da história caracterizado pelo feudalismo, que era o sistema socioeconômico da época, marcado pela organização da sociedade em feudos. Segundo Moreira Alves, o início da Idade Média foi marcado pela queda do Império Romano, situação consolidada quando os bárbaros invadiram Roma, que já vinha sofrendo anteriormente com diversas crises econômicas, sociais e políticas. Neste período, a propriedade era essencialmente feudal, a terra era propriedade do feudo, que era administrado pelo Senhor Feudal (CARVALHO, 2007, p. 25).

Durante o período que se denomina Idade Média, o homem era legitimado a adquirir bens, posses e propriedades pelo Direito Canônico (direito baseado nos dogmas da Igreja Católica), pois essa faculdade, esse direito do homem, está fundamentado pela liberdade individual que cada homem possui singularmente, ou seja, o homem, sendo um sujeito de direitos, possui liberdade para atuar nas mais variadas esferas que lhe aprouver, entre elas, a sua esfera econômica (CARVALHO, 2007, p. 30).

Importante ressaltar que o pensador que influenciou essa doutrina católica foi o filósofo São Tomás de Aquino. Para ele,

(...) devemos considerar que a propriedade é um direito natural assegurado a todos. Com efeito, forte nas lições desse teólogo, a propriedade exerce uma função social condizente com a idéia de que todos devem possuir a coisa comum, dela não se apropriando para seus próprios interesses. Para Santo Tomás de Aquino, a propriedade não tem um dono, senão Deus, sendo que o homem apenas a administra. Segundo este filósofo e religioso, as riquezas, justamente por pertencerem a Deus, devem ser colocadas à disposição das sociedades. Com base nesta concepção, podemos dizer que estamos diante de uma visão embrionária da função social da propriedade. A Doutrina Social

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da Igreja se fará sentir, neste trabalho, quando, mais adiante, exporemos, pormenorizadamente, os documentos eclesiásticos mais importantes sobre este tema. A doutrina de Santo Tomás de Aquino constituirá, no século XIX, a alavanca fundamental para a edição da Encíclica Rerum Novarum, poderoso instrumento de combate às desigualdades sociais e ferramenta útil a engendrar uma nova concepção do direito, à qual se referem os doutrinadores como sendo de direito natural e social. Esta Encíclica foi editada pelo santo Pontífice Papa Leão XIII. (CARVALHO, 2007, p. 32).

Com essa concepção em tela, percebe-se que, sendo detentor desse poder de atuar das mais variadas formas no âmbito econômico, o homem pode, por meio de negociações com outros homens, permutas (trocas), ou ainda por outras maneiras, ampliar seu patrimônio, potencializando assim sua renda e riqueza, incorporando a ele diversas espécies de bens, aumentando a extensão de sua propriedade privada e seu patrimônio.

Portanto,

Na esteira das lições de Santo Tomás de Aquino, devemos considerar que a propriedade é um direito natural assegurado a todos. Com efeito, forte nas lições desse teólogo, a propriedade exerce uma função social condizente com a idéia de que todos devem possuir a coisa comum, dela não se apropriando para seus próprios interesses. Para Santo Tomás de Aquino, a propriedade não tem um dono, senão Deus, sendo que o homem apenas a administra. Segundo este filósofo e religioso, as riquezas, justamente por pertencerem a Deus, devem ser colocadas à disposição das sociedades. (CARVALHO, 2007, p. 32).

3.3 PERÍODO PÓS-REVOLUÇÃO FRANCESA

A Revolução Francesa (1789), movimento baseado no fundamento iluminista liberal, declarou ser a propriedade um direito absoluto e inviolável, podendo, porém, ocorrer de o proprietário perder a sua propriedade, se comprovada alguma necessidade, urgência e relevância pública, e apenas mediante indenização do Estado.

Assim,

A Revolução Francesa pretendeu democratizar a propriedade, aboliu privilégios, cancelou direitos perpétuos. Desprezando a coisa móvel (vilis mobilium possessio), concentrou sua atenção na propriedade imobiliária, e o Código por ela gerado - Code Napoléon - que serviria

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de modelo a todo um movimento codificador no século XIX, tamanho prestígio deu ao instituto, que com razão recebeu o apelido de ‘código da propriedade’, fazendo ressaltar acima de tudo o prestígio do imóvel, fonte de riqueza e símbolo de estabilidade. (PEREIRA, 2005, p. 83).

Para o período da Revolução Francesa, que representava um período de transição), esse modelo de propriedade era o mais conveniente, pois era assegurada pelo Estado à sociedade o direito a propriedade, como uma garantia a todos; esse modelo atendeu os interesses da burguesia da época, assegurando a certeza de que a Administração Pública não iria intervir arbitrariamente na esfera privada, salvo nas exceções que estavam expressamente previstas (OLIVEIRA, 2005, p. 20).

Com o passar dos anos, surgiu a necessidade de conciliar o direito à propriedade com o interesse da coletividade, ou interesse social. Ambos os conceitos são, num primeiro momento, conflitantes entre si, pois enquanto o direito a propriedade assegura ao titular do direito a possibilidade de usar, dispor e fruir de sua propriedade como bem entenda, o interesse social proclama uma sociedade mais igualitária entre aqueles detentores de propriedade, e aqueles que não possuem nenhuma espécie de patrimônio.

Atualmente a propriedade possui uma função, uma finalidade, que é a de contribuir para o desenvolvimento econômico da sociedade, e, portanto o direito à propriedade não possui, nos dias de hoje, o mesmo caráter absoluto que detinha outrora, pois. Não pode a propriedade ser deixada inerte, sem nenhuma destinação, por motivos duvidosos, ou, por exemplo, especulação imobiliária (LENZA, 2009, p. 691). Atualmente, a propriedade é um direito e garantia individual reconhecido e protegido constitucionalmente, porém, essa proteção constitucional está atrelada a uma função social, que também está prevista na Constituição Federal de 1988.

Entretanto, por mais que essas garantias sejam efetivamente protegidas pela Constituição, sob elas existem limitações impostas pelo Estado, para que o exercício dessas garantias fundamentais não ofenda os direitos de terceiros. A Constituição Federal, ao discorrer sobre os direitos e garantias fundamentais, preceitua a possibilidade de impor limites legais que restrinjam essa lista de direitos e garantias asseguradas (CARVALHO, 2007, p. 125).

Sendo assim, a propriedade, o seu uso, e as conseqüências disso estão ligadas à função social da propriedade, e, portanto, esse direito (anteriormente) inviolável, está submetido aos interesses de toda coletividade, ao bem-estar subjetivo da maioria (DALLARI, 2005, p. 121).

Atualmente, o uso da propriedade apresenta uma característica de tal importância que, a partir do momento em que a propriedade deixa de observar sua função social, o Estado detém a legitimidade para adotar as medidas que

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forem necessárias para que a propriedade retorne ao seu status quo ante, ou seja, volte a ter uma finalidade. Para isso, o Estado pode, dando um exemplo, desapropriar a propriedade (mediante uma indenização justa ao proprietário), e em seguida, dar uma finalidade para aquela propriedade. Importante ressaltar que o Estado (Administração Pública) é o único legitimado para agir dessa forma (MEIRELLES, 1995).

No ordenamento jurídico brasileiro, a noção que determinou a que é conhecida hoje como “função social da propriedade” foi introduzida pela Constituição de 1934, que embora não mencionasse expressamente o termo “função social”, ditava que o uso de uma propriedade não poderia ser exercido em manifestação contrária à finalidade social. Na Constituição de 1946, foi introduzido o instituto da desapropriação fundamentada no interesse social, devendo a lei destinar uma destinação justa à propriedade, ou seja, a Constituição previa, em termos, que o proprietário que não destinasse um fim à sua propriedade, estaria sujeito à expropriação por parte do Estado, desde que este pagasse uma indenização adequada ao proprietário. Por último, importante ressaltar que a desapropriação prevista na Constituição de 1946 tinha como objetivo garantir uma situação mais igualitária para todos os cidadãos, ao assegurar a função social da propriedade (FALLER, 2011).

Foi a Constituição de 1988 que tratou de definir a função social da propriedade, sendo ela propriedade urbana, ou propriedade rural. Isto porque anteriormente, a propriedade urbana não era prevista na hipótese de desapropriação fundada no interesse coletivo, sendo abrangida apenas a propriedade rural (DALLARI, 2005, p. 120).

E atualmente, o princípio da função social da propriedade vem sendo amplamente utilizado nos julgamentos, como é o exemplo do Recurso Especial nº 2009/0199094-9, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 01/03/2011.

4 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE – PRINCÍPIO E NORMA As normas jurídicas que compõem um ordenamento jurídico podem

dividir-se entre princípios e regras. Os princípios podem ser considerados “normas”, que são criados a partir da interpretação das leis (complexo normativo), bem como em decorrência da atividade legislativa do poder competente, a partir da observação dos fatos sociais (FILHO, 1991, p. 73).

Esses princípios sempre desempenharam uma importante função nos ordenamentos jurídicos, pois possuem um caráter multifuncional, isto significa dizer que eles efetivam diversos papéis, ou seja, os princípios desempenham as mais diversas funções na ordem jurídica. O caráter multifuncional assumido pelos princípios identifica-se pela natureza dessa espécie de norma, ou seja,

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significa dizer que os princípios são considerados parâmetros, ou seja, servem para declarar (comparar) o grau de correspondência (validade, eficácia ou invalidade) das leis, sentenças e interpretações normativas, bem como da jurisprudência, e assim podem emprestar fundamentação jurídica às decisões judiciais nos processos, no controle de constitucionalidade, tanto no controle difuso, quanto no controle concreto.

Os princípios são aqueles que orientam as possíveis interpretações para as leis e atos normativos infraconstitucionais, bem como parâmetro de interpretação para normas, sendo elas constitucionais ou infraconstitucionais. Em suma, os princípios fornecem ao intérprete da lei, substrato material e formal para aplicação no caso concreto, para conciliar ao fato a interpretação jurídica mais coerente. Isso é evidente, por exemplo, nas fundamentações e dispositivos judiciais, presentes nas sentenças, votos e acórdãos (ESPÍNDOLA, 1999, p. 165).

Com efeito, os princípios, até por conta de sua natureza e conceito (doutrinário e jurisprudencial), constituem a base a partir da qual se desenvolve a validez de todo o conteúdo das normas jurídicas (ordenamento jurídico). Quando o legislador se propõe a regular a realidade social por meio de normas, o faz, sempre, partindo de algum princípio jurídico pré-estabelecido. Portanto, os princípios são as premissas básicas que servem de fundamento ao ordenamento jurídico positivado (LIMA, 2002).

Uma vez que é previsto na Constituição Federal, o princípio da função social da propriedade não pode ser considerado como um instituto de direito privado. Por mais que tal instituto esteja primeiramente previsto no rol dos direitos individuais, e esteja também previsto no Código Civil, o princípio da função social da propriedade tem por finalidade garantir a dignidade a todos, o quanto possível, e isto sob a égide da justiça social (FILHO, 2001, p. 4).

Diferentemente das Constituições anteriores, a Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã, deu um novo panorama ao princípio da função social da propriedade, pois, partindo do lacto sensu, delimitou esse instituto, imprimindo-lhe uma maior instrumentabilidade, e consequentemente, uma maior eficácia.

A legislação infraconstitucional que regulamentou a matéria referente à propriedade urbana, o Estatuto da Cidade, deu plena efetividade aos princípios constitucionais, e, entre eles, o princípio da função social da propriedade. O Estatuto da Cidade apregoa normas de caráter geral, isto é, essa lei tem por função estabelecer as diretrizes gerais, a nível nacional, para que, os municípios, utilizando-se dos parâmetros nela estabelecidos, empreguem as políticas públicas necessárias para o regular exercício dos direitos.

Portanto, é cediço o entendimento que o princípio da função social da propriedade é recepcionado na Constituição de 1988, possuindo, ficcionalmente, ampla efetividade.

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Resta aos operadores do direito intentar para que tal norma seja revestida efetivamente de eficácia, pois em se tratando do comando normativo que aferiu à propriedade uma função social, tem-se uma conquista em termos sociais e humanísticos, devendo ser mantida pelos tribunais pátrios nos julgamentos e controles de constitucionalidade difusos.

E sendo assim, uma vez que prevista no ordenamento jurídico, a função social da propriedade deve ser protegida e tutelada pelo Estado, mediante os instrumentos legais cabíveis, conforme se verá adiante.

Antes de introduzir tal questão, é importante ressaltar que o Estado (a Administração Pública) somente pode atuar com a devida observância de uma série de princípios constitucionais, que legitimam a sua atuação; como exemplos podem citar alguns deles: princípio da legalidade, princípio da finalidade, princípio da supremacia do interesse público sobre o privado (sendo esse um dos principais pilares que fornecem o substrato jurídico para a função social da propriedade), princípio da razoabilidade, princípio da publicidade, princípio da segurança jurídica, princípio da boa administração, princípio da moralidade jurídica, etc. De acordo com Celso Antonio,

(...) é possível conceituar ato administrativo como: declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público) no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitos a controle de legitimidade por órgão jurisdicional. Cumpre esclarecer, entretanto, que pode haver alguma hipótese excepcional na qual a Constituição regule de maneira inteiramente vinculada um dado comportamento administrativo obrigatório. Em casos desta ordem poderá, então, haver ato administrativo imediatamente infraconstitucional, pois a ausência da lei, da qual o ato seria providencia jurídica de caráter complementar, não lhe obstará à expedição. (MELLO, 2009, p. 380).

Já em relação ao princípio da função social da propriedade, percebe-se que

Como se vê, ao acolher o princípio da função social da propriedade, o Constituinte pretendeu imprimir-lhe uma certa significação pública, vale dizer, pretendeu trazer ao Direito Privado algo até então tido por exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma finalidade. Não se trata de extinguir a propriedade privada, mas de vinculá-la a interesses outros que não os exclusivos do proprietário. Assim como a imposição de deveres inderrogáveis ao empregador, no

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interesse do empregado, não faz dele um ente público, também a função social da propriedade não desnatura o proprietário nem a propriedade: apenas lhe impõe cerceamentos diferenciados.(DALLARI, 1996, p. 5).

Portanto, para que o Estado efetivamente proteja a função social da propriedade, são necessários que sejam observados todos os pressupostos e requisitos de validade e eficácia que são pertinentes, sob pena de que o ato da Administração Pública que pretenda proteger o princípio constitucional, seja eivado de vícios e não subsista perante uma análise de validade e eficácia.

Neste sentido,

Portanto, as limitações ao exercício da liberdade e da propriedade correspondem à configuração de sua área de manifestação legítima, isto é, da esfera jurídica da liberdade e da propriedade tuteladas pelo sistema. É precisamente esta a razão pela qual as chamadas limitações administrativas à propriedade não são indenizáveis. Posto que através de tais medidas de polícia não há interferência onerosa a um direito, mas tão-só definição que giza fronteiras, inexiste o gravame que abriria ensanchas a uma obrigação pública de reparar (MELLO, 2001, p. 684).

Estabelecidas essas premissas, mister se faz tecer ponderações à Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, bem como ao Plano Diretor Municipal, no que tange à garantia da eficácia do princípio da função social da propriedade.

5 INSTRUMENTOS NORMATIVOS PARA CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL

O Plano diretor, ao lado do Estatuto das Cidades, compõe os principais instrumentos que o nosso legislador criou para garantir a efetividade do princípio da função social da propriedade ao âmbito municipal.

Para entender a relação que ambos os institutos têm entre si, basta notar o fato de que o Plano Diretor é previsto e foi incluído no ordenamento jurídico vigente com fulcro no artigo 182 da Constituição Federal de 1988, e previu, para a plena eficácia do princípio da função social da propriedade, que a lei (infraconstitucional) deveria criar as diretrizes para ordenar o seu devido funcionamento.

É nesse contexto que surge o Estatuto da Cidade, a Lei 10.257 de 10/07/2001, assinada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que segundo seu “caput”, declara que, regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providencias.

Por isso é tamanha a importância que o Estatuto das Cidades representa para o nosso ordenamento jurídico nacional; ele surgiu como essa “legislação

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ordinária” a regulamentar a questão da finalidade social da propriedade.A relação entre o plano diretor e o estatuto das cidades é estabelecida

constitucionalmente, quando divididas as competências legislativas outorgadas pela Constituição da República, cabendo à União legislar sobre normas gerais, porém, incumbindo aos municípios a elaboração de atos normativos que regulem a matéria a nível local.

Em relação ao plano diretor municipal, como o Município é o ente federativo mais próximo à questão urbanística, à ele compete a elaboração de normas que regulamentem essa matéria (conforme procedimento legislativo da Câmara Municipal).

Um plano diretor, para ser elaborado, passa por todo o procedimento legislativo necessário perante a Câmara Municipal, órgão competente para elaborar leis a nível municipal.

Importante ressaltar que, dependendo da complexidade do ato normativo a ser elaborado pela Câmara Municipal, os procedimentos a serem adotados são diferentes. Da forma que se um ato possui uma natureza simples, o procedimento a ser adotado para a elaboração desse ato também deve ser um procedimento simples.

Já por outro lado, se o ato a ser produzido no mundo jurídico é um ato que possui uma natureza mais complexa, o procedimento a ser adotado nesse caso também deve ser mais longo, mais trabalhoso.

Após o procedimento legal necessário para a elaboração desse ato normativo, inclusive sujeito a emendas, o plano diretor passa então a depender da aprovação, que se dará por meio de lei municipal.

Com esse plano diretor aprovado (instrumento jurídico hábil para a situação urbanística), o panorama para a regularização dos espaços urbanos está concretizado, bem como a possibilidade de averiguação do cumprimento do princípio da função social da propriedade. Por fim, com o plano diretor em vigência, é evidente que o planejamento urbano concretiza-se, bem como assegura-se uma maior eficácia do princípio da função social da propriedade (DALLARI, 2007, p. 213).

6 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: POSICIONAMENTOS ATUAIS

De acordo com Silvio Venosa,

As leis envelhecem, perdem a atualidade e distanciam-se dos fatos sociais para as quais foram editadas. Cumpre à jurisprudência atualizar o entendimento da lei, dando-lhe uma interpretação atual que atenda às necessidades no momento do julgamento. Por isso, entendemos que a jurisprudência é dinâmica. O juiz deve ser um arguto pesquisador das

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necessidades sociais, julgando como um homem de seu tempo, não se prendendo a ditames do passado. Aí se coloca a grandeza do papel da jurisprudência. (VENOSA, 2005, p. 49).

Tendo esse entendimento em tela, o tema abordado deve ser tratado com a noção mais atual do entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da matéria. Conforme todo o exposto (conceito de propriedade, evolução histórica, princípio da função social da propriedade, instrumentos do Estado para garantir a efetividade do principio da função social, etc.), mister se faz ressaltar os institutos jurídicos que privam o proprietário do seu bem imóvel caso o direito do proprietário não seja exercido de acordo com suas finalidades econômicas e sociais (DALLARI, 2007, p. 131.).

Lição doutrinária atual vem no sentido de que

(...) no §1º, o novo Código Civil inovou ao mencionar expressamente que a propriedade deve atender as finalidades não só econômicas, mas principalmente as sociais, sem prejuízo da preservação da natureza e do patrimonio histórico e artístico. No §2º, há a proibição expressa de atos desprovidos de qualquer utilidade por parte do proprietário, que tenham por intenção prejudicar terceiros. O §3º menciona a perda definitiva da propriedade nos casos de desapropriação e a perda temporária no caso da requisição. Já os §§ 4º e 5º inovam no mundo jurídico ao prever a perda da coisa no caso de posse exercida por mais de cinco anos por um considerável número de pessoas, quando existentes obras e serviços de interesse social e econômico relevante. (DALLARI, 2007, p.132).

Portanto, como consta do Diploma Civil, a propriedade, caso não cumpra suas funções (econômicas e sociais), estará sujeita à desapropriação (conforme o § 3º do art. 1.228 do CC).

Sendo assim, de acordo com o art. 1.228 do CC,

o § 1º do art. 1.228 do novo Código Civil explicita a função ética da propriedade, uma vez que o direito de propriedade deve ser exercido com a função social e econômica que lhe é natural. Tal comando genérico implica necessariamente transformar o imóvel em bem útil social e economicamente ao homem. Para tanto, o proprietário não pode danificar, ofender, espoliar a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, o patrimônio histórico e artístico, devendo, ainda, evitar a poluição da água e do ar. (DALLARI, 2007, p. 133).

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Conforme a análise do texto citado, o proprietário deve proteger, no exercício do seu direito de propriedade, o patrimônio ambiental, não danificando a fauna e a flora, evitando a poluição da água e do ar, etc. (DALLARI, 2007, p. 133).

Porém, tal proteção que o proprietário deve observar em se tratando do patrimônio ambiental, não implica que somente este deve arcar com os deveres de proteção aos recursos naturais. Tal dever de proteção recai também sobre a coletividade, ou seja, a sociedade como um todo tem um interesse coletivo em relação à proteção ambiental e da propriedade.

Sendo assim, a observância do princípio da função social da propriedade (bem como sua função ética e ambiental), não impede que os interesses privados dos proprietários sejam atendidos, ou seja, ambos os institutos podem coexistir pacificamente, pois ambos os institutos são protegidos pela Constituição da República.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de tudo o que foi exposto no presente artigo. em relação ao princípio da função social da propriedade urbana, como sendo aquele utilizado como substrato material para interpretação e aplicação do ordenamento jurídico vigente, conclui-se que os conceitos de propriedade, e de finalidade social, não são, como pareciam num primeiro momento, conceitos conflitantes entre si.

Em que pese em um juízo realizado a priori tais institutos pareçam ser excludentes, ambos podem coexistir harmonicamente dentro de um ordenamento jurídico, conforme foi demonstrado no decorrer do trabalho.

A importância de tal tema é evidente ao constatar-se que o conceito de propriedade é um conceito estático, sendo que a função social pode ser caracterizada como dinâmica (ao ponto que pode sofrer alterações), ao que restou demonstrado no desenvolvimento do trabalho.

Conforme visto, a propriedade era tida como um direito absoluto para o homem desde as sociedades mais primitivas. Para as sociedades modernas, a propriedade também pode dizer-se um direito que assume um caráter inviolável, e assim percebe-se importância que esse direito real significa para o homem, tendo em vista que a noção de propriedade acompanha o homem desde os primórdios da História.

Já o princípio da função social da propriedade veio como um contrapeso ao direito absoluto à propriedade. Ao dispor que a propriedade deve observar uma finalidade social, conclui-se que o princípio quebra o paradigma de inviolabilidade que o direito à propriedade simbolizava.

O presente trabalho teve como objetivo demonstrar como ambos os institutos relacionam-se, quais são suas bases históricas e fundamentos legais, quais doutrinas explicam e utilizam a propriedade de diferentes maneiras, bem

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como a revolução no pensamento da humanidade que introduziu as idéias de função social.

Trazendo para o nosso contexto, o presente trabalho explanou o princípio da função social da propriedade, desde sua recepção no ordenamento jurídico brasileiro, bem como suas primeiras aplicações, nas diversas Constituições que o Brasil teve ao decorrer das décadas. Como fenômeno prático, esta monografia procurou demonstrar como o plano diretor municipal, previsto na Constituição Federal, é um instrumento hábil para garantir a eficácia do princípio da função social da propriedade urbana.

Por fim, como resposta à pergunta formulada no pré-projeto de pesquisa que orientou o presente trabalho (tema, problema, justificativa, etc.), conclui-se que o princípio constitucional da função social da propriedade não caracteriza uma limitação ao direito (também constitucional) da propriedade, sendo que, pelo contrario, ambos os princípios complementam-se, num sistema que irradia e substancia o ordenamento jurídico vigente.

O homem, como ser dinâmico, está sempre em constante movimento, sendo que a sociedade também o acompanha nessa caminhada, devendo o Direito, como instrumento social, adequar-se às necessidades decorrentes dessas mudanças.

Cabe a nós, como intérpretes da lei e operadores do Direito, aplicarmos, e no que for necessário, modificarmos o ordenamento jurídico, no sentido de proporcionar ao homem sempre a melhor solução possível, diante das dificuldades que o mundo nos oferece.

O princípio da função social busca garantir a todos os cidadãos uma efetiva finalidade social para a propriedade, onde se assegure a todos o respeito aos direitos e garantias constitucionais, para, assim, conforme os objetivos fundamentais da República, construir uma sociedade livre, justa e solidária.

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O REGISTRO CIVIL NA BIPARENTALIDADE HOMOAFETIVA

THE CIVIL REGISTRY ON HOMOAFFECTIVE BIPARENTING

Giana DE marco Vianna Da SilVa

Bacharelanda em Direito no Centro Universitário Curitiba

camila Gil marquEz brESolin brESSanElli

Atualmente é professor universitário e Chefe do Departamento de Direito Privado no Curso de Direito do Unicuritiba - Centro Univeristário de Curitiba. É Mestre em Direitos Humanos e Democracia, pela UFPR - Universidade Federal do Paraná, tendo como linha de pesquisa, Cidadania e Inclusão Social. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos e Direito Civil.

RESUMO

O presente trabalho abordará aspectos da união homoafetiva, tema de grande importância e relevância não só em cenário nacional, mas mundial, sendo objeto de discussão em diversos momentos e situações em todo o mundo. O foco da pesquisa é o registro de dupla paterentalidade em contextos em que os pais da criança são do mesmo sexo. No Brasil, hoje já é possível que um casal homoafetivo adote uma criança, mas ainda não há previsão, ou mesmo discussões em larga escala sobre a possibilidade de se registrar um recém-nascido com o nome de dois pais ou duas mães, sem a obrigatoriedade de se fazer constar a parte meramente doadora de material genético ou provedora de barriga de aluguel como pai ou mãe biológicos, desde que conhecidos. Não há referências bibliográficas específicas ao assunto ainda, mas há breves discussões acerca do tema motivadas por um caso concreto ocorrido no Brasil, no qual um juiz concedeu permissão a um casal de homens a registrar uma criança como filha de ambos, fruto de uma união duradoura e planejamento familiar.

Palavras-chave: família, homoafetividade, homoparentalidade, união homoafe-tiva, dupla homoparentalidade.

ABSTRACT

This paper will be dealing with aspects from homosexuality, subject of great importance and relevance not only in national scene, but global, as

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subject of debates in many moments and situations around the world. The research’s focus is double parenting records in contexts where the parents are of the same sex. Nowadays, in Brazil, it is possible for a homoaffective couple to adopt a child, but there isn’t legal prediction, or even large-scale debates about the possibility of registering a newborn with the name of his two fathers or two mothers, without the obligation to register the genetic material donor, or provider of surrogacy as biological parent, if they are known. There aren’t specific references in the subject yet, but there are brief discussions about it motivated by a case which occurred in Brazil, where a judge granted permission for two men to register a child as daughter of both, result of a lasting relationship and family planning.

Keywords: family, homoaffectivity, homoparenthood, homoaffectivity couple, double homoparenthood.

SUMÁRIO: 1 Introdução, 2 Aspectos gerais; 2.1 Conceito de registro biparental; 2.2 Breve análise histórica. 3 Planejamento familiar; 3.1 Quanto às formas de filiação 3.1.1 Reprodução assistida; 3.1.2 Paternidade socioafetiva; 3.1.3 Adoção homoafetiva; 3.2 Quanto à criança; 3.2.1 Questões psicológicas da criança; 3.2.2 O princípio do melhor interesse da criança. 4 As possibilidades no sistema legal brasileiro. 5 Considerações finais. 6 Referências.

1 INTRODUÇÃO

A parentalidade é relacionada a questões mais culturais do que naturais. O direito, da cultura e não da natureza, tem que se cuidar com as questões laboratoriais. Não é o laboratório que diz quem é pai ou mãe (LÔBO NETO, 2012). O que rege o parentesco é a afetividade e o princípio do melhor interesse da criança.

Dessa forma, não há que se analisar a configuração parental com fins de julgar se aquilo é ou não é uma família, e se esse núcleo familiar é digno que criar uma criança como filha. A forma de concepção não é o que conta.

Tendo isso em mente, ao longo deste artigo verificar-se-á a contextualização legal das uniões homoafetivas, procurando estabelecer relação entre as proteções constitucionais a essas uniões e o direito e dever de registrar em cartório o nascimento de uma criança com os nomes de seus pais afetivos, independentemente do vínculo biológico.

A motivação do presente estudo, mais do que simplesmente a relação homoafetiva, é seus efeitos, principalmente no que concerne à filiação. Dessa forma, o registro de dupla parentalidade nas relações homoafetivas será analisado a partir do estudo de um caso concreto ocorrido no Brasil no ano de

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2012, que consiste na autorização dada a dois homens em relação homoafetiva de fazer constar no registro de nascimento de uma menina os nomes dos dois figurando a posição de pais, sem a prévia necessidade da demanda de uma ação de adoção ou declaração de paternidade socioafetiva.

Será abordada também a temática envolvendo a criança que convive num ambiente familiar formado por pais ou mães em relação homoafetiva, buscando respostas no campo da psicologia infantil e no próprio direito, no que concernem os direitos da criança e do adolescente, principalmente à luz do princípio do melhor interesse da criança.

2 ASPECTOS GERAIS

Paulo Lôbo diz que há três espécies de família socioafetiva: a adoção, a filiação oriunda de inseminação artificial heteróloga e a posse de estado de filiação (LÔBO NETO, 2012). O foco do presente artigo é a posse de estado de filiação, na qual crianças e adultos adquirem o título de família pelo simples fato de viverem como tal.

2.1 CONCEITO DE REGISTRO BIPARENTAL

Quando uma criança nasce, os pais devem proceder com o registro de nascimento dessa criança, no qual constará, entre outras informações, o nome dos pais, conforme prevê a Lei de Registros Públicos, nº 6.015/75, em seu artigo 29 e artigo 5467.

É necessário manter em mente, antes de tudo, conforme Suzana Borges Viegas de Lima, que o direito à filiação é um direito da criança, e não dos pais, pois constitui elemento essencial para seu desenvolvimento e lhe garante direitos e obrigações (LIMA, 2012, p. 139).

No caso de um registro de dupla homoparentalidade, por analogia, entende-se, então, que é como o registro convencional, porém, com fins de fazer constar o nome dos dois pais, ou das duas mães, como os pais legalmente constituídos da criança, independente de algum ou nenhum dos dois ter sido

67 Art. 29. Serão registrados no registro civil de pessoas naturais:I – os nascimentos.(...)Art. 54. O assento do nascimento deverá conter:(...)7º) Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal.

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provedor de parte do material genético ou, no caso de duas mães, uma ter provido o material genético e outra ter sido a gestante.

O registro de nascimento é um ato administrativo, não depende de medidas judiciais. Porém, o registro de nascimento pode ser substituído por uma nova, caso haja alguma ordem judicial, como, por exemplo, no caso da adoção, onde inclusive o prenome da criança pode ser alterado.

Porém, o registro de dupla parentalidade na situação de pais homoafetivos consiste, hipoteticamente, em um ato administrativo, no qual os pais ou mães, por simples requerimento junto ao cartório de registros, possam registrar criança que comprovadamente tenha sido gerada com objetivos de integrar a família desse casal.

Dessa forma, é necessário ver, portanto, tudo aquilo que deve ser considerado previamente ao registro, como as formas de geração de uma criança, o princípio do livre planejamento familiar e os interesses da criança membro dessa família, bem como quais as permissões legais para a efetiva formação dessa entidade familiar.

2.2 BREVE ANÁLISE HISTÓRICA

A legislação vigente, apesar de toda a defesa pela doutrina e pela jurisprudência, não reconhece a família socioafetiva. A Lei nº 6.015/73, mais conhecida como Lei dos Registros Públicos, como bem se percebe, é de 1973, portanto quinze anos mais antiga que a Constituição Federal vigente, que data de 1988, que passou a reconhecer as famílias plurais.

A referida lei ainda é vinte e nove anos mais antiga que o Código Civil brasileiro de 2002, que, apesar de ainda ter um viés radicalmente matrimonialista, deixa brechas para o reconhecimento das famílias independente do casamento entre um homem e uma mulher. Em seu artigo 1.60368, o Código Civil declara que o registro de nascimento é a prova da filiação, o que, portanto, faz com que soe legítima a conclusão de que o DNA está em segundo plano quando o assunto é filiação.

Nesse sentido, expões Rolf Madaleno:

É o termo de nascimento externando uma filiação socioafetiva [...], e esta é também a gênese a ser extraída do artigo 1.603 do Código Civil, porque a filiação registral, verdadeira ou ideologicamente falsa, conquanto manifestada isenta de qualquer vício capaz de afetar, no

68 Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil.

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ato do registro da filiação, a livre-intenção da pessoa, não deixa de representar a posse de estado de filho, fundada em elementos espelhados no nomen, na tractacio e na forma (MADALENO, 2011, p. 474 e 475).

Já o Estatuto da Criança e do Adolescente é de 1990, anterior ao Código Civil de 2002, mas posterior à Constituição de 1988, com todas as garantidas e direitos fundamentais que a Carta Magna trouxe, e ainda foi recentemente alterado, em 2009, trazendo novas regras à cerca da adoção. Essa Lei nº 12.010/2009 trouxe ao Estatuto da Criança e do Adolescente o artigo 42, §2º69, no qual percebe-se a não especificidade quanto ao sexo ou orientação sexual dos adotantes, apenas restringindo a adoção conjunta a pares casados civilmente ou em união estável. Somando esse dispositivo à decisão do STF de 2011 reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo, parece não haver entraves para se reconhecer uma família socioafetiva composta por pais do mesmo sexo e um filho adotado ou concebido de outra forma qualquer.

3 PLANEJAMENTO FAMILIAR

O §2º do artigo 1.565 do Código Civil70 e o §7º do artigo 226 da Constituição Federal71 falam do livre planejamento familiar. Se for entendido que pessoas do mesmo sexo formam uma entidade familiar, também é conferido a esse casal homoafetivo o direito fundamental de planejar sua família. A intervenção estatal, nesse caso, está restrita ao provimento de recursos para possibilitar a formação da família, bem como de recursos educacionais e de saúde.

O referido artigo da Constituição Federal é regulado pela Lei nº 9.263 de 12 de janeiro de 1996, que diz, em seu artigo 2º72, que o conjunto de regras

69 Art. 42.  Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil.[...]§ 2o  Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família.70 Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.[...]§ 2o O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.71 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.[...]§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.72 Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de

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em relação à fecundidade garanta direitos iguais de planejamento da filiação a homens, mulheres e casais.

Entender o planejamento familiar como mero controle de natalidade é errado, mesmo porque esse controle é feito pelos próprios pais, que decidem ter um número menor de filhos que se tinha há décadas atrás pelo estilo de vida que as pessoas levam atualmente muito mais voltado para suas carreiras profissionais do que para a família em si.

Também é errado pensar no planejamento familiar como algo que só é decidido por duas pessoas quando discutem sobre ter ou não um filho. O planejamento familiar também está presente nas situações de família monoparental. Um criança pode ter apenas um dos pais por conta da morte ou afastamento do outro, mas também pode ser porque a mãe ou o pai decidiu ter um filho sozinho, utilizando-se da adoção ou métodos de reprodução assistida heteróloga.

Ou seja, tendo em mente as construções principiológicas e hermenêuticas feitas ao longo desse trabalho, a única interpretação possível e em consonância com o Texto Constitucional desse artigo é de que a abrangência do planejamento familiar é para qualquer pessoa que escolha ter filhos, seja pais heterossexuais, pais solteiros ou pais homossexuais.

Conforme Paulo Lôbo, nesse sentido:

(...) os pais são livres para planejar sua filiação, quando, como e na quantidade que desejarem, não podendo o Estado ou a sociedade estabelecer limites ou condições. Os filhos podem provir de origem genética conhecida ou desconhecida (...) de escolha afetiva, do casamento, de união estável, de entidade monoparental, ou de outra entidade familiar implicitamente constitucionalizada (LÔBO NETO, 2011, p. 218).

Portanto, sendo o livre planejamento familiar um direito a qualquer pessoa ou casal protegidos pela Carta Magna, não conferir ou colocar barreiras a esses protegidos os meios para o exercício desses direitos, nos termos da lei, é caso de inconstitucionalidade.

Bem como é direito de cada um planejar a família, é direito da criança de ser parte de uma família.

3.1 QUANTO ÀS FORMAS DE FILIAÇÃO

A principal forma de filiação, evidentemente, é a por reprodução sexuada, aquela havida entre um homem e uma mulher por meio do sexo, decidindo, ambos, por seguir adiante com a parentalidade.

regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.

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Outra forma de filiação, conforme já visto anteriormente, é a filiação socioafetiva, que pode ser dividida em reprodução assistida, adoção ou posse do estado de filiação.

Com isso em mente, tem-se que o maior problema enfrentado por um casal homoafetivo no momento em que decide que é hora de aumentar a família é a questão da geração de uma criança. Biologicamente, um casal homossexual não tem condições de gerar um filho sem o auxílio da medicina e participação de terceiros. Na maioria das vezes, o casal recorre à adoção. Mas há a possibilidade da reprodução assistida para aqueles que quiserem participar desde o momento da fecundação até o nascimento, e posterior criação da criança.

Conforme Márcia Arán e Marilena Corrêa, a liberdade de procriar não encontra limites legais ou morais quando se trata de casais heterossexuais em idade fértil, já que eles retratam o modelo biológico natural. Nesse caso, portanto, não se cogita um eventual prejuízo para a criança que vai nascer, e nem, normalmente, se questiona a aptidão dos pais, tendo em vista de que a competência procriativa teoricamente garante a competência parental (ARÁN; CORREA, 2004, p. 336-337).

Porém, em se tratando de casos em que é necessário recorrer a modos artificiais para possibilitar o nascimento de uma criança, a lei se faz presente. E aqui é necessário destacar que não é para todos os casos que a lei se faz presente a fim de regulamentar formas alternativas de se dar a vida a alguém (ARÁN; CORREA, 2004, p. 336-337).

Nesse caso, quando a legislação hierarquiza os candidatos à reprodução assistida e coloca os casais heterossexuais no patamar mais alto, está reafirmando a legitimidade exclusiva desses casais de gerarem vida, visto que é naturalmente impossível a um casal homoafetivo reproduzir sem a ajuda da tecnologia.

Vê-se, dessa forma, que a competência parental se baseia na potencialidade biológica.

Não se indagam as condições materiais e emocionais para receber uma criança. Como forma de sexualidade suposta e ritualizada, a heterossexualidade é apresentada não somente como natural, mas também como culturalmente necessária (ARÁN; CORREA, 2004, p. 336-337).

No entanto, a biologia não é a exclusiva legitimadora de parentalidade. O Código Civil, em seu artigo 1.593, qual prescreve que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, traz o termo “outra origem” que pode ensejar o parentesco além da origem consanguínea.

Segundo Luiz Fernando Valladão, essa expressão “outra origem” significa, nesse contexto, um parentesco derivado da afetividade entre sujeitos

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que não necessariamente tenham uma relação biológica (VALLADÃO, 2012). Muitas vezes, inclusive, a verdade socioafetiva, construída com base no afeto mútuo entre pai e filho, se sobrepõe à verdade biológica comprovada pelo DNA.

Vale lembrar que esse reconhecimento da sobreposição da paternidade socioafeitva sobre a biológica pode e trará consequências para outros ramos do direito, principalmente no que concerne a alimentos e direito sucessório.

Essas formas de concepção, portanto, de reprodução assistida, estão abrangidas pelo princípio do livre planejamento familiar, partindo do pressuposto que casal homoafetivo é reconhecidamente entidade familiar, conforme se verá a seguir.

3.1.1 REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Vale frisar, que não serão analisados, aqui, aspectos técnicos e outros de forma aprofundada sobre o tema da reprodução humana assistida, visto que não é o foco do estudo. Esse tópico abordará a reprodução assistida pelo viés jurídico como um dos facilitadores de um casal homoafetivo ter filhos.

A doutrina massivamente conceitua a reprodução assistida heteróloga como o recebimento, pela mulher, de doação de material genético masculino para a fecundação de seu óvulo. A resolução nº 1.358 do Conselho Federal de Medicina traz, no tópico II de seu anexo73, diz que toda mulher, com prévia autorização de seu marido ou companheiro, pode ser receptora das técnicas de reprodução assistida. Nesse mesmo sentido, o artigo 1.597, inciso V, do Código Civil74, fala sobre a autorização do marido para a realização do procedimento.

Por discordar dessa especificação quanto ao sexo da parte receptora do procedimento de reprodução assistida, e por entender plausível e comum o desejo de ter filhos partir também de homens, principalmente em união homoafetiva, pareceu-me mais cabível explicitador a reprodução assistida heteróloga como um procedimento clínico no qual o material genético de terceiro é unido ao da pessoa interessada, a qual, se for mulher, irá gerar o filho em seu próprio útero, quando for capaz de tal. No entanto, se for homem, a fertilização terá de ser in vitro e terá de haver a presença de uma barriga de aluguel.

73 II - USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA1 - Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.2 - Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado.74 Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:[...]V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

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3.1.2 ADOÇÃO HOMOAFETIVA

Conforme já foi explicitado anteriormente, não há, ou não deveria haver, grandes dificuldades em relação à adoção por pares homoafetivos. Principalmente após a decisão do STF da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ, em 2011, que reconhece a união estável entre casais homoafetivos, não há porque se colocar entraves para a adoção por casais homoafetivos.

Dessa forma, a adoção é uma das formas pela qual casais homoafetivos podem usar para realizar o desejo de ter filhos.

O artigo 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente75 diz que o interesse do adotando é o que vale, bem como a motivação dos adotantes devem ser livre de vícios. Se esses requisitos forem preenchidos, a adoção pode e deve ser concretizada sem maiores problemas.

3.1.3 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

A questão da socioafetividade, também já trabalhada, é importante para poder entender legítimo o registro de parentalidade diretamente no cartório. Vale ressaltar aqui que não é só após a relação entre um adulto e uma criança como se pai e filho fossem que se pode caracterizar a socioafetividade. A partir do momento em que uma pessoa participa de todo o planejamento para ter filhos, da gestação, do nascimento, dispensando não só a questão emocional, mas também recursos financeiros para tornar a formação da família possível, a socioafetividade já está caracterizada.

Portanto, encontra-se respaldo legal para sua caracterização no artigo 1.593 do CC76. Entende-se, dessa forma, que a “outra origem” a que se refere o artigo trata-se, entre outras situações, da origem afetiva. Ou seja, a paternidade socioafetiva nasce de uma situação de afetividade entre um homem ou uma mulher com outra pessoa vivendo em situação familiar, semelhante ao sentimento que há entre pais e filhos.

Depreende-se dessa análise, então, que pai não é sempre aquele que deu existência a uma criança, e sim aquele que a tratou como filho, que participou de sua criação e educação, que lhe proporcionou sustento e apoio familiar.

Nesse sentido, discorre Maria Berenice Dias:A filiação socioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do

75 Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos.76 Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

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direito de filiação. A necessidade de manter a estabilidade da família, que cumpre com sua função social, faz com que se atribua um papel secundário à verdade biológica. [...] Em matéria de filiação, a verdade real é o fato de o filho gozar da posse de estado, que prova o vínculo parental (DIAS, 2011, p. 29).

Seguindo por esse pensamento, pode-se, então, concluir que dentro de uma relação homoafetiva em que um dos membros do casal é o pai biológico ou adotivo, o outro membro que participa para a criação e formação da criança é pai, tanto quanto o primeiro, pela interpretação extensiva do já mencionado artigo 1.593 do CC.

Da mesma forma, explica Luiz Edson Fachin, recorrendo à doutrina argentina:

A defesa da inserção da posse de estado na expressão outra origem, tem previsão similar com relativo acerto no CC argentino (art. 256), concernente ao tema do art. 1.593 no novo CC brasileiro: “Art. 256. La posesión de estado debitadamente acreditada en juicio tendrá el mismo valor que el reconocimiento expreso, simpre que no fuere desvirtuado por prueba en contrario sobre el nexo biológico”. É criticável a primazia do vínculo biológico em todos os termos e situações (FACHIN, 2003, p. 16).

Luiz Edson Fachin citou nesse trecho a premissa de que o vínculo biológico nem sempre se sobressair em relação ao afetivo. Conforme o pensamento dele e de outros autores, entre eles Maria Berenice Dias, o direito de família trata de afetividade (DIAS, 2011, p. 29), e, como tal, não poderia deixar de reconhecer a enorme importância das relações afetivas no contexto da filiação.

Dessa forma, cabe entender, então, que se a filiação está pautada na afetividade, e não no sangue ou na biologia, não há motivos para se negar a declaração de parentalidade de pessoas ou casais homoafetivos em relação a crianças que sejam tidas e tratadas como filhas, conforme abordagem a ser feita no capítulo seguinte.

3.2 QUANTO À CRIANÇA

Os estudos voltados à criança são, em sua maioria, em relação a questões de adoção, tendo em vista de que é uma discussão muito mais latente e presente no dia a dia das pessoas. Quando se fala em filho de pessoas homossexuais, pensa-se direto que o caminho mais comum é a adoção. Em seguida, as pessoas costumam

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pensar se aquilo é moralmente certo, se as crianças não podem sofrer consequências ruins por ser criada num lar em que não se tem a figura de um pai e de uma mãe, e se ser criada por homossexuais é realmente o que a criança gostaria.

Será tratado, portanto, nos tópicos a seguir a temática da homossexualidade sob a ótica da filiação. Deseja-se destacar, dessa forma, conforme a linha de pensamento de Ana Carla Harmatiuk Matos, como o fato de crianças serem criadas por casais homoafetivos pode resultar em uma exclusão jurídica das mesmas (MATOS, 2010).

3.2.1 QUESTÕES PSICOLÓGICAS DA CRIANÇA

Em relação à adoção para casais homoafetivos, hoje em dia já não há mais tanto para se discutir, tendo em vista de que a reforma do regulamento da adoção e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 2009 não trás especificidades sobre a identidade sexual do adotante. Há, ainda, barreiras a serem derrubadas, tanto jurídicas quanto morais, mas esses empecilhos não mais afetam tão profundamente a habilitação de um casal homoafetivo para a adoção.

Porém, há ainda muitas dúvidas e conjecturas acerca de prováveis ou possíveis danos psicológicos que a criança filha de pais homossexuais possa vir a sofrer. Que tipo de influências na personalidade dessa criança os pais, por serem gays, podem exercer?

Uma pesquisa realizada pela revista Superinteressante responde algumas perguntas relacionadas a essa problemática. Recorrendo a uma autoridade no assunto, a pesquisa responde as perguntas recorrentes dizendo que em muito pouco, quase nada, o fato de os pais serem homossexuais, a criança vá sofrer algum desvio de personalidade. Essas crianças se desenvolvem da mesma maneira que aquelas filhas de casais heterossexuais. Nesse sentido, citando a explicação de Mariana Farias e Ana Cláudia Maia:

O desenvolvimento da criança não depende do tipo de família, mas do vínculo que esses pais e mães vão estabelecer entre eles e a criança. Afeto, carinho, regras: essas coisas são mais importantes para uma criança crescer saudável do que a orientação sexual dos pais (CASTRO, 2012, p. 72-75).

Na oportunidade dessa mesma matéria publicada no periódico referido, foram elaboradas quatro questões que comumente sem fazem presentes em discussões sobre o assunto. As questões apresentadas foram sobre a possibilidade dos filhos de gays serem, também, gays; sobre a necessidade da figura de um pai ou de uma mãe; sobre como preconceito afetará esses filhos; e sobre o risco dos

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filhos sofrerem abusos sexuais. As respostas dadas pela jornalista dessa matéria encontram-se no Anexo B deste trabalho.

Nesse mesmo sentido, Ciclério Bezerra e Silva explica, sem uma Sentença:

Volvendo-me às pesquisas e estudos oficiais sobre a Homoparentalidade, que vêm sendo realizados ao redor do mundo há mais de 30 (trinta) anos, encapados por profissionais de múltiplas áreas do conhecimento, como a Psicologia, Antropologia, Psiquiatria, Pediatria, Serviço Social e do próprio Direito, temos que nenhum prejuízo à criança foi observado, sob o ponto de vista de sua saúde psíquica, estabilidade emocional, capacidade de adaptação ao meio, enfrentamento do estigma, desenvolvimento da identidade de gênero, orientação sexual, dentre outros aspectos (TJPE, 2012).

Depreende-se, portanto, que não há consequências significativas para a criança o fato de ter pais homossexuais. Seja por meio da adoção ou por meio de reprodução assistida, faz-se necessário destacar o princípio do melhor interesse da criança, e o melhor interesse da criança é conviver num âmbito familiar, seja ele composto por pais hétero ou homossexuais.

No entanto, o fato de a criança não precisar necessariamente da figura de um pai e de uma mãe conjuntamente para sua formação não quer dizer que ela não precise da figura dos dois sexos em sua vida. Essa necessidade pode ser sanada pela presença de tios, avós e outros parentes de suas mães ou seus pais (MAGGI, 2010).

O fato de entender necessárias as figuras do pai e da mãe na vida de uma criança também vai de encontro ao discurso da família monoparental. É perfeitamente possível a uma mãe solteira ou pai solteiro criarem seus filhos sozinhos, inclusive é possível a pessoas solteiras adotarem uma criança sem maiores dificuldades. Podendo essa figura do pai ou mãe ausente ser substituída por outros parentes, o fato de se ter duas mães ou dois pais só viria a ajudar, ser alguém a mais a prover tudo o que for necessário para a plena educação e desenvolvimento da criança.

3.2.2 O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

Tendo em vista a crescente valorização do ser humano enquanto ser único, provido de necessidades e desejos, viu-se a necessidade de não só tutelar a família como um todo, mas de cada membro dela, em especial a criança, que ainda está em processo de formação, com o fim de assegurar plena proteção para a o desenvolvimento de suas potencialidades.

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Nesse sentido, discorre Rodrigo da Cunha Pereira:

Em face da valorização da pessoa humana em seus mais diversos ambientes, inclusive no núcleo familiar, o objetivo era promover sua realização enquanto tal. Por isso, deve-se preservar, ao máximo, aqueles que se encontram em situação de fragilidade. A criança e o adolescente encontram-se nesta posição por estarem em processo de amadurecimento e formação da personalidade. Assim, têm posição privilegiada na família, de modo que o Direito viu-se compelido a criar formas viabilizadoras deste intento (PEREIRA, 2004, p. 90).

Um fato que não pode ser ignorado pelo direito é de que existem crianças que são criadas por pessoas homossexuais. Tanto quanto as relações homoafetivas precisam e devem ser tuteladas, as crianças que convivem com essas pessoas também precisam de proteção. Percebe-se um completo absurdo e atentado direto ao Texto Constitucional, além de ir de encontro ao principal princípio que protege os infantes, o princípio do Melhor Interesse da Criança, que o Poder Judiciário e Legislativo tratem essas crianças de forma desigual em relação às de filiação heterossexual.

Direito de Visita, Guarda, Tutela, Adoção (por uma pessoa, isoladamente, ou por ‘casal’ homossexual) são hipóteses em que o jurídico deverá verificar o superior princípio do Melhor Interesse da Criança, bem como as discriminações ainda sofridas, pois podem traduzir-se em exclusão (MATOS, 2010).

O artigo da Constituição Federal que traz de forma mais evidente a previsão quanto ao princípio do melhor interesse da criança é o 22777, com redação dada pela emenda nº 65/2010, o qual discorre sobre o dever não só do Estado, como de todo cidadão zelar e promover a proteção integral da criança e do adolescente.

Da mesma forma, os artigos 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente78 também trazem a ideia do melhor interesse da criança e do

77 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.78 Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar,

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princípio da proteção integral.Utilizando-se desses e de outros textos legais é que se chega não a um

conceito fechado quanto ao princípio em foco, mas à formulação de uma base adequada para se aplicar ao caso concreto e concluir qual é, afinal, o melhor interesse da criança.

É baseando-se nesses elementos, portanto, que o Poder Judiciário deve agir de forma positiva quando chega a suas mãos pedidos de casais em união homoafetiva para serem reconhecidos como entidade familiar e que lhes seja permitido ter e criar filhos. Trata-se, claro, de legitimação das uniões homoafetivas, mas também do melhor interesse da criança de fazer parte de uma família, seja lá qual for a sua formação.

Em uma situação recente, foi percebida a aplicação do melhor interesse da criança, quando um homem homossexual no Rio Grande do Sul obteve solicitação atendida junto à Previdência Social de salário-maternidade após adotar uma criança. Declarou que “os cuidados e atenção são um direito da criança, não meu ou do meu companheiro” (FOLHA DE S. PAULO, 2012).

Dessa forma, será visto no próximo tópico em que passo esses direitos estão, levando sempre em conta não só os interesses dos homossexuais, mas também das crianças e da sociedade como um todo.

4 AS POSSIBILIDADES NO SISTEMA LEGAL BRASILEIRO

O que antes parecia quase impossível, ou no mínimo muito difícil de conseguir, hoje já temos no Brasil o primeiro caso de registro de dupla parentalidade.

Em Recife, Pernambuco, um casal homoafetivo de homens pleiteou abertura da jurisdição administrativa do Juízo de Família e Registro Civil de Recife, postulando o assentamento civil com a indicação da paternidade de uma menina que planejaram conjuntamente, com o fim de fazer constar o nome de ambos os homens na qualidade de pais no registro de nascimento da menina.

O juiz do caso, Clicério Bezerra e Silva, em uma sentença (TJPE, 2012) longa e repleta de fundamentações, citando principalmente os princípios constitucionais, quais sejam o princípio da República, o princípio da igualdade, da liberdade e intimidade e proibição da discriminação, entre outros dispositivos legais, determinou a abertura e lavratura do assentamento do registro de nascimento da filha do casal, como sendo filha dos dois homens, e tendo como avós paternos os pais dos dois homens. É importante destacar que o representante

com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

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do Ministério Público deu parecer favorável ao pedido dos requerentes.Em sua fundamentação, o Magistrado ressaltou que não há espaço em

uma sociedade democrática para a prevalência de normas que sejam excludentes dos direitos das minorias, como acontece com as normas que restringem a legitimação de uniões aos casais heteroafetivos.

Resumindo a pretensão das partes, discursou o magistrado:

Nota-se que os requerentes, os quais mantêm uma relação homoafetiva há mais de 15 (quinze) anos, buscam converter um vínculo precário, em que, teoricamente, apenas um dos requerentes poderia ter a paternidade reconhecida com base na cosanguinidade, para um vínculo institucionalizado, no qual os dois requerentes poderão ter a paternidade simultaneamente reconhecida, com alicerce na afetividade e na aplicação da mais moderna hermenêutica jurídica (TJPE, 2012).

Percebe-se a menção do magistrado à hermenêutica jurídica. No que concerne à hermenêutica jurídica e à interpretação adequada e extensiva das normas, ciência muito importante na solução de conflitos, Francisco Cardozo Oliveira nos ensina que “a interpretação jurídica deve alcançar a normatividade prático-jurídica da norma, mediante critério de problematização concreta dos elementos do caso, que possa conduzir a solução materialmente adequada do conflito” (OLVEIRA, 2012).

Entende-se, portanto, pelo lógico do razoável, que, de forma não matemática, o juiz referido nada menos fez que aplicar a norma ao caso concreto da melhor forma para solucionar o conflito levado às suas mãos, utilizando-se de vários princípios constitucionais.

Em suas próprias palavras:

Daí surge a necessidade de um acurado procedimento hermenêutico, baseado numa interpretação pluralista e aberta dos ditames constitucionais e infraconstitucionais.[...]A compreensão literal de tais dispositivos [normas excludentes dos direitos das minorias] criará, com efeito, uma odiosa e confinante marginalização social de pares, que acabará por estrangular a democracia e, via oblíqua, o próprio Estado Pluralista de Direito (TJPE, 2012).

Seguindo adiante na sentença, em relação ao caso concreto, o juiz descreveu o relacionamento dos dois homens como uma entidade familiar e que almejam exercer a função de pais de uma criança; planejaram juntos a expansão

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da família, recorrendo às técnicas da reprodução heteróloga assistida, de tal forma que a afetividade em relação a essa futura criança já existia mesmo antes de sua concepção. Seria no mínimo de muito mau gosto auferir paternidade a apenas um dos homens.

Obviamente que a afetividade não é tudo, mas é a causa de tudo. Não só o pai não-biológico participou do planejamento e compartilhou o sonho junto do pai biológico, como partilhou de todas as responsabilidades emocionais e também as materiais.

Além de basear nos conceitos de afetividade, o magistrado fundamentou também sua decisão nas questões já abordadas aqui, anteriormente, inclusive utilizando suas próprias palavras, quanto às possíveis consequências sofridas pela criança criada por um casal homoafetivo. A conclusão foi por nenhuma.

Outra decisão judicial, do final de 2010, concedeu a duas mulheres a possibilidade de ter seus nomes incluídos no assentamento de nascimento de uma criança como suas mães (TJSP, 2010).

As duas também fizeram o planejamento juntas e recorreram à reprodução assistida. Utilizaram o óvulo de uma fecundando por espermatozoides de doador e implantado no útero da outra. De início, a maternidade só foi reconhecida para a mulher que gerou esse óvulo fecundado, o qual resultou em gêmeos. Enquanto ainda nascituros, eles e a mãe gestante ajuizaram ação com pedido de antecipação de tutela para o reconhecimento da maternidade da mãe doadora do óvulo com fins de já efetuar o registro de nascimento com o nome das duas mãe assim que as crianças nascessem.

A dupla maternidade foi reconhecida pelo juiz do caso, fundamentando sua decisão em moldes parecidos com a decisão anteriormente aqui citada, enfatizando o caráter familiar da relação das duas mulheres e a questão do planejamento familiar. Deferiu, portanto, o assentamento do nascimento assim que a ação transitasse em julgado, lembrando, ainda, de fazer constar como avós das crianças os pais de ambas as mulheres.

Dessa forma, resta evidente o crescente reconhecimento, rico de fundamentações, nessa questão da dupla parentalidade nas relações homoafetivas. Não há porque negar direitos que são inerentes ao ser humano pelo simples fato da pessoa não figurar em um modelo convencional de sexualidade.

Nas palavras de Sílvio Salvo Venosa:

Quando a sociedade brasileira, na sua considerável maioria, aceitar amplos direitos aos conviventes homoafetivos, a jurisprudência dará sua resposta definitiva, como já enceta os passos iniciais, e o legislador seguirá esses passos (VENOSA, 2010, p. 385).Ou seja, o único entrave para o avanço da sociedade, é a própria

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sociedade, em uma parcela específica dela. Já resta comprovado que não há prejuízo nenhum para uma criança que seja casada por homossexuais, e a pessoa homossexual também não traz malefício nenhum à sociedade, pois se trata apenas de orientação sexual. Para a legitimação dessas uniões de uma vez por todas enquanto entidades familiares completas, basta apenas um passo: a aceitação da sociedade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O registro de biparentalidade homoafetiva não é ainda um assunto amplamente discutido pela comunidade jurídica brasileira. No entanto, casos de pretensão desse registro já foram noticiados no Brasil, e foram esses casos que inspiraram a realização deste estudo.

Relembrando aqui, o registro de dupla parentalidade nas relações homoafetivas, consiste em realizar o registro da criança recém-nascida diretamente com o nome de suas duas mães ou de seus dois pais, independente dos doadores de material genético ou mesmo de barriga de aluguel, tendo em vista o livre planejamento familiar constante no rol de direitos fundamentais da Constituição Federal, sem a necessidade de demandar ação judicial que autorize e determine ao cartório proceder com o registro.

A legitimação desses registros diretos é fundamentada não só na questão do livre planejamento familiar, mas também na reconhecida paternidade socioafetiva e no princípio da afetividade que rege a família, conforme já demonstrado anteriormente. O vínculo afetivo entre um adulto e uma criança, ou mesmo entre um adulto e o nascituro muitas vezes se sobressai em relação ao vínculo biológico. Não é o DNA que torna alguém pai ou mãe, apenas comprova as origens da criança.

Não há comprovações científicas de que crianças sofrem qualquer prejuízo por serem criadas por pessoas e casais homossexuais que não sofreriam convivendo dentro de um modelo convencional. Problemas havidos entre pais e filhos partem do ser humano enquanto ser humano, tanto do adulto quanto da criança, de acordo com sua educação, com suas convicções, suas concepções, independente de ser ou não homossexual. Um filho de homossexuais não será, necessariamente, homossexual, pois aprendemos também, no decorrer do trabalho, que a homossexualidade não é definida pelo meio ou pela educação. Sua transparência talvez sim, mas a orientação sexual em si não. Inclusive, a criança crescer em um ambiente livre do preconceito não significa que ela não formará suas próprias opiniões a cerca do assunto, que podem pender tanto para aceitação quanto para a negação.

Quanto à filiação em si, outra discussão trazida no último capítulo do trabalho foi em relação ao princípio do melhor interesse da criança e alguns

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aspectos do princípio da proteção integral. O mesmo argumento para habilitar casais homossexuais pode ser trazido à situação proposta no estudo. É interesse da criança ter família, sobretudo ter pais, ter casa, educação e afeto. E não é apenas os órfãos que almejam tudo isso. Principalmente quando se pensa no planejamento familiar, é de se esperar que o melhor ambiente para o crescimento da criança é aquele no qual ela foi desejada, e não soa razoável colocar empecilhos para que pessoas, pela simples condição de homossexual, não possam ter esse desejo e realiza-lo. Muito menos coerente é admitir que uma pessoa, pela mesma condição já dita, não tenha capacidade de criar um filho porque a soma de sua sexualidade com seu gênero não resulta na possibilidade de ter um filho por meios convencionais, como seria entre um homem e uma mulher heterossexuais.

Dessa forma, tem-se por muito correta e promissora a sentença proferida pelo Juiz Ciclério Bezerra e Silva, que deferiu a um casal de homens o pedido de registrar a filha, havida por meio de reprodução assistida, como filha de ambos, de fazendo constar em sua certidão os nomes dos dois homens como seus pais e os pais deles como seus avós, de forma definitiva. O Magistrado utilizou-se da mais moderna hermenêutica jurídica e trouxe ao caso os princípios constitucionais mais caros a todo ser humano, demonstrando que as pessoas ali estavam pedindo apenas isso, o reconhecimento de seus direitos enquanto seres humanos.

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AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS NO BRASIL E A CRIAÇÃO DAS EMPRESAS INDIVIDUAIS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (EIRELI)

SOLE PROPRIETORSHIP IN BRAZIL AND THE CREATION OF INDIVIDUAL COMPANIES WITH LIMITED LIABILITY EIRELI)

laíS lima ramalho caSaGranDE

Aluna do Curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNI-CURITIBA

EloEtE camilli oliVEira

Possui graduação em Direito pela Universidade Católica do Paraná (1975), mestrado em Mestrado em Direito Econômico e Social pela Pon-tifícia Universidade Católica do Paraná (2001) e Doutorado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2008). Atualmente é professor adjunto nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, repre-sentante dos docentes no CEPE - UNICURITIBA, Supervisora do setor de registro dos Trabalhos de Conclusão de Curso- UNICURITIBA e pro-fessor titular - UNICURITIBA. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em DIREITO EMPRESARIAL, ECONÔMICO E SOCIAL.

RESUMO

O presente trabalho objetiva demonstrar a importância das Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada no Brasil indicando suas fontes e inspiradoras e motivações para o implemento deste instituto. Por anos em nosso país a possibilidade da limitação da responsabilidade do empresário individual perante as eventuais dívidas adquiridas pela empresa foi prevista por grande parte dos doutrinadores, os quais desejavam ter nosso ordenamento jurídico espelhado nos ordenamentos de países desenvolvidos. A exemplo das sociedades unipessoais existentes na Comunidade Europeia e em alguns países da América do Sul, o Brasil adotou a possibilidade de criação das EIRELI’s, as quais, apesar de não possuírem natureza jurídica societária, são passíveis de limitação de responsabilidade de seu titular, o qual gerirá os negócios empresariais individualmente. Tal instituto veio a sanar um grande problema existente no direito comercial brasileiro: a criação de sociedades limitadas com a presença do “sócio de palha”, aquele que é sócio minimamente minoritário, com detenção de mínima porcentagem do capital social apenas para fim de criação da sociedade, sem possuir nenhum interesse na gestão dos negócios. A EIRELI, instituída pela Lei 12.441/2011, entrou em vigor no dia 8 de janeiro de 2012, e modificou o Código Civil Brasileiro em três de seus artigos: a inclusão do inciso VI no artigo 44; a inclusão do artigo 980-A; bem

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como a alteração do parágrafo único do artigo 1.033. Para sua constituição se faz necessária a observação de seus requisitos e determinações reguladoras, as quais podem ser observadas nas Instruções Normativas do Departamento Nacional de Registro do Comércio.

Palavras-chave: sociedades unipessoais, empresa individual de responsabilida-de limitada.

ABSTRACT

This paper aims to demonstrate the importance of the Individual Limited Liability Companies in Brazil indicating his sources and inspiration and motivation to implement this institute. For years in our country the possibility of limiting the liability of the individual entrepreneur before any debts incurred by the company was expected by most scholars, who wanted to have mirrored our legal jurisdictions in developed countries. As with the sole proprietorship within the European Community and certain countries in South America, Brazil has adopted the possibility of creating EIRELI’s, which, despite not having legal ownership, are likely to limit the liability of the owner, the which will manage the business affairs individually. This institute came to solve a big problem in the Brazilian commercial law: the creation of limited partnerships with the presence of “socio straw”, one that is minimally minority partner with possession of minimum percentage of share capital only for the purpose of creating society, without having any interest in business management. The EIRELI established by Law 12.441/2011, entered into force on January 8, 2012, and amended the Civil Code on three of its products: the inclusion of the clause in Article VI 44; inclusion of Article 980-A; and amendment of the sole paragraph of article 1033. For its formation is needed to observe its requirements and regulatory determinations, which can be observed in the Normative Instructions National Registration Department of Commerce.

Keywords: sole proprietorship, limited liability company individually.

1 INTRODUÇÃO

Adentrando em um estudo mais aprofundado das sociedades unipessoais no Brasil e no mundo procuraremos indicar as diretrizes da criação das empresas individuais de responsabilidade limitada no Brasil. Como muito se vê no direito comercial, em diversos países existe a figura da sociedade de um único sócio há tempos, fato que deixava nosso país atrasado com relação ao primeiro mundo,

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uma vez que em sua grande maioria as sociedades unipessoais de constituição originária já são de antigo conhecimento mundial, mais precisamente, na Europa.

No que toca ao direito civil brasileiro, vê-se que não se via outra saída para os empresários individuais no que diz respeito à responsabilidade social que não criar uma sociedade de responsabilidade limitada com a figura do chamado “homem de palha”, para que assim, os bens do empresário não fossem confundidos com os bens da empresa, uma vez que sociedades unipessoais de natureza originária não faziam parte de nosso ordenamento jurídico.

Há que se falar que o fato de a construção da EIRELI no Brasil ser tardia não se dá pela falta de vontade dos legisladores tampouco da doutrina, uma vez que estes há muito vêm requerendo e prevendo a positivação deste tipo societário em nosso ordenamento jurídico.

O presente estudo busca mostrar as razões motivadoras para a criação das chamadas EIRELI’s, que entraram em nosso ordenamento jurídico através da Lei 12. 441 de 11 de julho de 2011.

Importante se faz o entendimento do porquê das sociedades unipessoais serem tão bem vistas por alguns e tão indesejadas por outros. O posicionamento doutrinário acerca deste tema merece total respaldo, pois, através de diversas ponderações é que se chegou à implementação deste tipo de pessoa jurídica de direito privado no Brasil, muito embora a EIRELI não tenha vindo inserida numa natureza societária.

Não obstante às críticas e limitações oriundas da nova lei, não se pode deixar de observar os requisitos para a constituição da referida empresa, e em quais circunstâncias pode-se constituí-la.

2 AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS

2.1 POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS

As sociedades unipessoais, como sabido, não é aceita por muitos países. Pode-se dizer que o maior motivo de sua rejeição está no fato de ser, para muitos, inconcebível a ideia de sociedade sem a pluralidade de sócios. Ou seja, cabe dizer que se partirmos do pressuposto da natureza contratual das sociedades, a aceitação de sua unipessoalidade é justificavelmente inaceitável, uma vez que a celebração de um contrato, por natureza, exige o mínimo de duas pessoas celebrantes.

A Dr. Ana Luisa Mendanha Mendes (2009, p. 216) é mister ao explicar este ponto da matéria. Para a autora, outro ponto de vista a respeito da natureza jurídica das sociedades deve ser defendido. Além de considerarmos somente a natureza contratualista das sociedades, para a aceitação de sua unipessoalidade

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se faz necessária a percepção da teoria institucionalista. “Para a primeira, encerra-se a relação jurídica empresarial assim que verificada a ausência da pluralidade de sócios; para a segunda, que defende a legalidade da sociedade unipessoal, isso não ocorre”.

Quando ocorre a dissolução de uma sociedade, sendo ela de natureza contratualista, esta deixa de existir já que uma pessoa sozinha não pode firmar um contrato, deixando de existir relação jurídica. O que não ocorre no ponto de vista institucionalista; a relação do sócio restante com a sociedade permanece, ficando este adstrito às práticas comuns da sociedade devendo apenas promover a criação de novas garantias que supram a falta de pluralidade de interesses da atividade. Cabe dizer que a tese institucional diferencia-se da contratualista por desvincular a natureza societária da ideia de associação de pessoas.

Edson Isfer (1996, p.125) assim a define

A instituição seria um ato criador, onde prevalecesse o “interesse coletivo”, ou “superior”. O interesse coletivo deve constituir o substrato da empresa em si. O que caracterizaria este interesse coletivo, seria a acentuação das obrigações de “transparência” e de “informações”.

Contrapondo-se a teoria contratualista que se baseava em um conflito de interesses, a teoria institucionalista pressupõe a existência de um interesse social predeterminado, como assim ensina o professor Salomão Filho (1995, p. 49)

A nova concepção do interesse social tem suas consequências quanto à dialética social interna. Ao contrário da concepção contratualista, no institucionalismo o conflito de interesses, ainda que existente na prática, não é requisito teórico para a explicação do funcionamento social. Com isso quer-se dizer que a diferença entre um sistema integracionista (como é o institucionalismo), que pressupõe a colaboração na persecução de um interesse social predeterminado, e um sistema autônomo (como o contratualismo), que pressupõe a existência de contraposição interna de interesses, está na limitação do objeto do conflito. O que a primeira concepção faz é limitar o objeto do conflito às de rentabilidade e às questões organizativas, ambas parametradas pelo interesse à preservação da empresa.

De fato, podemos acrescentar que aceitar a teoria institucionalista é seguir o princípio de preservação da empresa uma vez que admite a sociedade unipessoal. Para Salomão Filho (1995, p. 50), sua admissão “permite superar as restrições teóricas existentes contra a limitação de responsabilidade sem pluralidade de interesses. […] Uma vez definido o interesse social, pouco importa se é um ou se são vários sócios a persegui-lo.”

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No entanto, vale salientar que a constituição originária de uma sociedade unipessoal pode colocar em dúvida a garantia do respeito à integralidade do capital social. Isso ocorre exatamente pelo fato de não existir a pluralidade de interesses, ficando o único sócio responsável por esta função, o que pode levar a entender pela falta de existência de interesse social, ou seja, basicamente é dizer que o único sócio poderá fazer o que bem entender sem que tenha seu patrimônio pessoal confundido com o social.

A tese contratualista, por sua vez, sustenta que o interesse social é o mesmo que o interesse do grupo de sócios. Vale dizer que é este o entendimento prevalente da interpretação doutrinária que considera a disciplina societária como disciplina exclusivamente contratual. Ou seja, para muitos autores, como o próprio Salomão Filho (1995, p. 51), o contratualismo não considera o interesse social como um conceito abstrato que pode ser predeterminado, mas sim “como algo de concreto, definível apenas quando comparado com o interesse do sócio para a aplicação das regras sobre conflito de interesses.” Significa dizer, portanto, que o interesse da sociedade só é válido quando discutido e determinado pelos sócios, sendo inconcebível sua existência a partir de uma singularidade social. O que ocorre neste caso é a redução do interesse da sociedade ao interesse dos sócios.

Insta salientar acerca das teses institucionalista e contratualista que o ponto divergente entre ambas está no modo diverso de compreensão do conceito de interesse social. Ao passo que esta o enxerga de maneira precisa, definível e totalmente condicionado aos interesses da pluralidade de sócios, aquela o define de maneira abstrata, não sendo o conflito de interesses determinante para o alcance do interesse social, vez que este é predeterminado e não condicionado a um acordo de vontades.

Com relação ao enquadramento da unipessoalidade inserida como sociedade, empresa ou estabelecimento, resta dizer que este aspecto parte de uma conceituação bastante abrangente uma vez que cada país denomina a unipessoalidade de uma maneira, sendo as três denominações acima citadas igualmente utilizadas. Porém, neste aspecto, sendo levada em consideração apenas a denominação dada a este instituto, poder-se entender que se chamadas de empresa ou estabelecimento, as sociedades unipessoais seriam de melhor aceitação doutrinária. Ao desvincularmos a unipessoalidade de sua forma societária sua natureza jurídica poderia ser melhor compreendida.

No tocante a este assunto, Fábio Tokars (2007, p.481) ensina

Releva ressaltar, contudo, que o apontamento de tal solução parte da premissa de que a regulação jurídica da sociedade unipessoal estabelece uma forma societária à mesma. De fato, se restasse apontada uma

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forma não societária (empresa ou estabelecimento) os resultados de um estudo sobre a sua natureza jurídica seriam evidentemente diferentes. Nesta hipótese, se a unipessoal ganhasse a estrutura de uma empresa, não teria natureza jurídica diversa daquela outorgada à empresa de forma genérica. De outro lado, se a forma não-societária fosse a de estabelecimento, a sua provável natureza seria a de uma universalidade de direito.

Há autores que entendem a sociedade unipessoal não como uma sociedade de fato, mas sim como um patrimônio de afetação restante àquela, porém dotado de personalidade jurídica. Significa dizer que com a dissolução da sociedade e a permanência de um único sócio restante, esta não perderia sua personalidade jurídica, ou seja, a sociedade não deixaria de existir. O que restaria seria um patrimônio de afetação destinado à um fim, patrimônio este que estaria rigidamente separado ao patrimônio do sócio restante. Esta sociedade unipessoal se constitui apenas da forma social restante da que lhe deu origem, assim como é ensinado pelo autor português António de Arruda Ferrer Correia (1948, p. 329)

Da primitiva sociedade nada resta – além da pura forma social. Só esta se não perdeu, porque, na verdade, o actual detentor das acções ou quotas sociais vai continuar o exercício da empresa à sombra dessa forma, ao abrigo das normas cujo funcionamento pressupõe, como situação normal, a existência de uma efetiva relação de sociedade. Aqui não existe tal relação: o que encontramos no seu lugar é simplesmente o património da sociedade extinta, cuja autonomia persiste exactamente com o mesmo grau de intensidade.

Ou seja, a sociedade unipessoal neste aspecto é, portanto, apenas um caso de autonomia patrimonial culminada com a existente personalidade jurídica restante da sociedade originária. 2.2 POSIÇÕES NORMATIVAS

As posições normativas adotadas em face das sociedades unipessoais podem se dar a partir de várias denominações. Independentemente dos termos utilizados, seja empresa, estabelecimento ou a própria sociedade, estaremos sempre nos referindo à unipessoalidade existente.

Nas seções seguintes o estudo das sociedades unipessoais será direcionado para os principais ordenamentos jurídicos que admitem este instituto. Partindo de uma ordem cronológica de sua aceitação, chegaremos, enfim, ao

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conceito atualmente admitido no Brasil, a criação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (ElRELI).

2.2.1 AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS NO DIREITO EUROPEU

Como exemplo da grande importância deste tipo societário no direito europeu temos a XII Diretiva que foi instituída para organizar e uniformizar as sociedades unipessoais dentro da comunidade europeia. Mais precisamente, este tipo societário introduziu-se na Europa, basicamente, a partir da figura do Anstalt de Liechtenstein. Insta salientar a grande importância deste instituto. Anstalt foi o nome que recebeu a espécie de estabelecimento individual com responsabilidade limitada no início do século XX em Liechtenstein.

Para Nelson Nones (2001, p. 15)

O Anstalt pode ser entendido como um instituto jurídico que adota a forma não-societária e que permite à pessoa natural ou jurídica atuar, individualmente, na atividade empresarial com responsabilidade limitada ao patrimônio de afetação, ou seja, a um patrimônio autônomo, especificadamente destinado à garantia dos credores da empresa.

O autor, ainda, considera o Anstalt como o marco inspirador para o surgimento das sociedades unipessoais. Obviamente, muitas de suas premissas tiveram de ser modificadas nos moldes de países que não caracterizam-se como o paraíso fiscal de Liechtenstein.

A XII Diretiva 89/667 do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, em matéria de direito das sociedades relativa às sociedades de responsabilidade limitada com um único sócio, surgiu com intuitos específicos em relação à criação de um instrumento jurídico que permitisse a limitação da responsabilidade do empresário individual em toda a Comunidade Europeia, sem prejuízo das legislações dos Estados-membros que, em casos excepcionais, impõem a responsabilidade desse empresário relativamente às obrigações da empresa.

A respectiva diretiva passou a regular as sociedades unipessoais dentro da comunidade, uniformizando as premissas e classificações deste tipo societário. No que tange à sua redação, a XII Diretiva passou a estabelecer os países que terão instituídas as sociedades unipessoais, cada um com suas respectivas nomeações adequadas, mas todos com o mesmo objetivo.

Em um estudo mais específico das sociedades unipessoais na Europa, podemos brevemente analisar as questões mais relevantes em alguns de seus principais países. Em Portugal, a sociedade unipessoal é reconhecida no ordenamento jurídico do país desde 1986 (dois anos antes da XII Diretiva)

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quando o legislador optou pela criação do estabelecimento individual de responsabilidade limitada e regulamentou a sociedade unipessoal de grupo empresarial, o que levou a criação da sociedade unipessoal de responsabilidade limitada no ano de 1996.

Já na Itália, segundo Nelson Nones (2011, p. 22) a sociedade unipessoal foi incorporada a seu ordenamento jurídico em 1993 através do decreto legislativo n°88 que alterou o Código Civil Italiano. O Direito espanhol incorporou a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada em 1995, que passou a entender por sociedade unipessoal aquela que é constituída por um único sócio, sendo ele pessoa física ou jurídica, ou então aquela que foi constituída por dois ou mais sócios porém todas as participações foram passadas a um sócio.

2.2.2 AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS NO BRASIL

Quando tratamos de sociedades unipessoais no Brasil deparamo-nos apenas com sua figura a partir da dissolução parcial de uma sociedade, ou quando tratada no artigo 251 da Lei 6.404/1976, a conhecida lei das sociedades anônimas, em sua hipótese de subsidiariedade integral, ou então na constituição das empresas públicas que possuam seu capital integralizado por um único Ente Publico.

2.2.2.1 UNIPESSOAL DERIVADA

A hipótese de existência da sociedade unipessoal no âmbito das sociedades de responsabilidade limitada constitui-se na situação prevista no inciso IV do artigo 1.033 do Código Civil de 2.002, quando, da dissolução ou saída de sócios da sociedade resta apenas um sócio, criando assim uma unipessoal derivada.

Fábio Ulhoa Coelho (2007, p. 464) escreve sobre o assunto

No plano lógico, uma das premissas da dissolução parcial da sociedade limitada deveria ser a permanência da pluralidade de sócios, já que é esta um dos pressupostos de existência do contrato social. Em outros termos, as limitadas integradas por apenas dois sócios não deveriam ser parcialmente dissolvidas. O desligamento de um deles importaria a unipessoalidade da limitada, dando ensejo à dissolução total da pessoa jurídica.

No entanto, de acordo com o referido artigo, esta sociedade unipessoal derivada pode durar pelo prazo máximo de cento e oitenta dias, devendo o sócio restante regularizar-se como empresário individual ou então, como nova opção, para uma empresa individual de responsabilidade limitada, conforme incluído pela Lei n° 12.441/2011 no parágrafo único do mesmo dispositivo (artigo 1.033 do Código Civil).

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Destarte, Fabio Tokars (1999, p. 123) afirma: “O sistema jurídico brasileiro admite a temporária manutenção das derivadas, em atenção, principalmente, ao princípio da preservação da empresa.”

Ou seja, a dissolução parcial da sociedade limitada integralizada por dois sócios é possível mediante a regularização dentro do prazo previsto (com a admissão de novos sócios, ou então a transformação do registro para empresário individual ou empresa individual de responsabilidade limitada) apenas para garantir a continuidade da organização econômica e da atividade empresarial. 2.2.2.2 EMPRESA PÚBLICA UNIPESSOAL INDIVIDUAL

Não é de majoritário entendimento que este tipo societário seja enquadrado nas possibilidades de sociedade unipessoal originária no Brasil. Poucos autores referem-se ou citam as Empresas Públicas como tal modalidade.

No entanto, para o Professor Sérgio de Andréa Ferreira (2008), a empresa pública não só doutrinariamente configura-se como unipessoal, como também deveria ser civilmente prevista. “Sempre digo que os volumes de legislação de Direito Civil deviam trazer o Decreto-lei 200, porque é nele que se encontra essa figura de Direito Privado, que é a empresa pública unipessoal individual, não societária”.

Empresa Pública de acordo com o artigo 5º, inciso II do Decreto-lei 200 de 1967 é considerada “entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito.” Sua unipessoalidade decorre de sua constituição com a integralização de seu capital social e patrimônio sendo exclusivamente da União.

José Cretella Junior(1973, p. 88) conceitua

Empresa Pública é a organização unitária de bens e pessoas, dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo do Estado, criada por lei para a exploração de serviços públicos administrativos ou serviços públicos industriais ou comerciais, sob a forma de sociedade mercantil unipessoal ou de vários sócios do setor governamental, da administração direta e indireta.

Para o autor Amador Paes de Almeida (2004, p. 54) a empresa pública também é um tipo de sociedade unipessoal, ou melhor, a ideia de unipessoalidade societária, para o autor, surge através da empresa pública de um único acionista (União)

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Esta posição sectária, calcada na natureza contratual das sociedades comerciais, foi, todavia, gradativamente alterada, ensejando posicionamento diverso, com manifesto reflexo na própria legislação brasileira, com a aceitação entre nós da sociedade unipessoal, de que é espécie inequívoca a empresa pública, que, constituída por lei, possuindo um acionista – a União –, é organização econômica com patrimônio próprio, dotada de personalidade jurídica de direito privado, como enfatizam o art. 5.º do Decreto-lei n.900/69e o art. 173, II, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.19, de 4 de junho de 1998.

2.2.2.3 SUBSIDIÁRIA INTEGRAL

A sociedade subsidiária integral está inserida dentro dos tipos de sociedades anônimas e por sua respectiva lei é regulada, mais especificamente pelo artigo 251 e seguintes.

Este tipo societário, para a maioria dos doutrinadores, é a única maneira de constituição originária da sociedade unipessoal. Consiste em dizer que a sociedade subsidiária integral é a companhia que tem por único acionista outra sociedade brasileira. No entanto, cabe ainda mais uma maneira de diversificá-la, distinguindo por subsidiária integral originária ou derivada. A modalidade originária caracteriza-se pelo destaque de parte do patrimônio da sociedade controladora para a constituição de um novo ente, que terá seu capital social integralizado por esta única sociedade. A subsidiária integral derivada é aquela que é constituída a partir da aquisição de todas as ações de outra companhia, modalidade que é especificadamente regulada pelo artigo 252 da Lei das S/A’s. 3 RAZÕES MOTIVADORAS PARA A CRIAÇÃO DAS EMPRESAS INDIVIDUAIS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA NO BRASIL

Conforme tratado anteriormente, podemos observar que as sociedades unipessoais foram muito bem vindas nos países que já a adotaram. Fato este que contribuiu muito para a aceitação da unipessoalidade no Brasil, uma vez que além das vantagens deste instituto, um dos grandes problemas do direito empresarial poderá ser sanado: as sociedades fictícias.

Pode-se dizer que anteriormente à Lei 12.441 de 2011, no Brasil, a constituição de uma empresa individual onde o titular pudesse ter sua responsabilidade limitada ao patrimônio social de maneira originária era juridicamente impossível. Porém, no mundo dos fatos essa categoria de muito já se via, as chamadas sociedades fictícias. Ou seja, fictícias são aquelas sociedades onde a pluralidade de sócios existe mas apenas para suprir tal requisito, ficando apenas um sócio com a grande maioria das cotas sociais.

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O que ocorria era que os empresários apenas utilizavam pessoas conhecidas que quisessem contribuir com suas assinaturas para a constituição de uma sociedade limitada, onde deteriam apenas mínima porcentagem das cotas sociais. Fato que se dava apenas para a constituição legal da empresa, pois, até então, a constituição por no mínimo duas pessoas era requisito legal da sociedade limitada, onde o patrimônio pessoal dos sócios não é afetado em caso de dívidas provenientes da atividade empresarial.

A existência de um sócio possuidor de minúscula porcentagem do valor das cotas sociais e outro com quase a totalidade do capital social da empresa foi uma das razões motivadoras para a criação de uma lei no Brasil que oportunizasse aos empresários individuais a limitação de sua responsabilidade. O intuito foi eliminar do âmbito societário brasileiro a figura do conhecido “homem de palha” (ou “laranja”), cuja existência apenas se dava para a regular constituição da sociedade, não tendo este nenhum interesse no objeto social da empresa.

Apesar de ser juridicamente impossível a constituição de uma sociedade comercial sem a presença de pelo menos duas pessoas contratantes (teoria contratualista), é muito comum a prática da constituição societária com apenas um sócio interessado, sendo o outro apenas um mero coadjuvante perante o objeto social e porcentagem de quotas da sociedade. Desde 1948, em Portugal, o professor António de Arruda Ferrer Correia (1948, p. 17) já previa esta simulação jurídica

Não pode fundar-se uma sociedade sem que duas pessoas pelo menos a queiram constituir entre si. É possível, no entanto, que dos vários outorgantes da escritura social só um seja realmente interessado: a colaboração dos outros, apenas solicitada para a formação jurídica da sociedade, quase se esgota de todo com o dar vida ao ente coletivo. Eles não aspiram a ter qualquer ingerência efectiva na direção da empresa, mas prometem prestar em todo o caso, gratuita ou interessadamente, o quantum satis de cooperação pessoal para a manutenção da aparência criada: - assinando as actas das assembleias gerais, a que não assistem, subscrevendo os balanços, que aliás não lêem e que, portanto, não podem querer aprovar. Nenhuma pretensão alimentam a haver parte nos lucros do negócio.

Apesar de se tratar de Direito europeu português, percebe-se que em muito se assemelha tal situação ao que ocorre em nosso direito pátrio. Na mais pura realidade, a ação descrita pelo autor supracitado é o que exatamente ocorre no Brasil.

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Ocorre, neste caso, que toda a tramitação correta para a constituição da sociedade é realizada. Apenas internamente é que se verifica a falta de interesse do sócio minoritário com relação ao objeto social da empresa, ficando apenas identificado no contrato social a porcentagem mínima com relação a um e a porcentagem máxima com relação a outro sócio.

Este tipo de ação servia apenas para fins de limitação do patrimônio social, vestindo assim uma firma individual com roupagem de sociedade limitada, tendo em vista que o Código Civil Brasileiro apenas admitia a criação de uma sociedade limitada originária mediante presença de dois sócios ou mais. Ou seja, a regra que originalmente foi criada para proteger terceiros contra a atuação de empresários individuais que pudessem prejudicá-los ou enganá-los usando da personalidade jurídica de sua empresa para tais fins ilícitos, acabou por se revelar ineficaz uma vez que gera a realização de outras ilicitudes para chegar a um objetivo que, até então, não era previsto em lei.

Fábio Tokars (2007, p. 471) define estas sociedades fictícias como um quarto tipo de sociedade unipessoal. Além da sociedade unipessoal originária (até então não admitida no direito empresarial brasileiro), unipessoal derivada e unipessoal preordenada a um sócio, existiria a sociedade unipessoal de fato, assim definida pelo doutrinador Romano Cristiano e citada pelo autor:

Mas não se pode olvidar que alguns doutrinadores, como Romano Cristiano, aduzem a existência de uma quarta categoria de sociedade unipessoal: as de fato. Estas seriam as que, constituídas e mantidas em respeito ao requisito da pluralidade de sócios, evidenciam-se como sociedades de fachada, onde apenas um dos sócios dirige e controla o desenvolvimento das atividades sociais, com o outro, ou outros, restringindo-se a emprestar o seu nome à composição do contrato social (sócios de palha). Constituem as sociedades unipessoais de fato o mais evidente fundamento sociojurídico à necessidade de aceitação da sociedade unipessoal originária, vez que se constituem no instrumento necessário para que o empresário auto-suficiente possa gozar da segurança da limitação da responsabilidade.

O empresário que desejasse abrir uma empresa individual poderia apenas contar com a figura da “firma individual”, onde deveria assumir pessoalmente os riscos da atividade empresarial desenvolvida, ou seja, responderia com seus bens pessoais em caso de dívidas eventualmente contraídas pela empresa no decorrer dos negócios.

Atualmente o empresário conta com a EIRELI, que além de constituir-se individualmente tem seu patrimônio protegido e não pode ser confundido com o

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patrimônio pessoal do titular do capital. Desta forma a insegurança patrimonial antes tão temida pelos empresários individuais não há mais razão de existir e a possibilidade de constituição de uma sociedade fictícia ficará extinta uma vez que os motivos que levavam à sua existência não precisarão mais ser motivo de preocupação aos empresários individuais que não querem seu patrimônio pessoal confundido com o social.

4 A EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA NO BRASIL – EIRELI – LEI 12.441 DE 11 DE JULHO DE 2011

Não restam dúvidas de que há muito tempo no Brasil é desejo de empresários e juristas a limitação da responsabilidade do empresário individual, seja no modelo conferido no código civil, seja com a criação de um tipo empresarial para alcançar tal intuito.

Analisando a possibilidade de sociedades que conferem aos sócios tais limitações, como é o caso da sociedade de responsabilidade limitada, passou-se a discutir a razão pela qual seria necessária a presença da pluralidade de sócios para que tal resultado fosse alcançado.

Com a criação da Lei 12.441/2011, que entrou em vigor no dia 08 de janeiro de 2012, obteve-se no Brasil a oportunidade de constituição da Sociedade Individual de Responsabilidade Limitada.

O Código Civil Brasileiro de 2002, em alteração de seu artigo 44 inciso VI pela Lei 12.441/2011, prevê que as empresas individuais de responsabilidade limitada constituem-se também como pessoa jurídica de direito privado, ou seja, encaixam-se no mesmo patamar das associações, das sociedades, das fundações, das organizações religiosas e dos partidos políticos. Neste âmbito, vale salientar que, numa escala comparativa, as EIRELIS (inciso VI) e as Sociedades (inciso II) são detentoras da mesma natureza jurídica, diferenciando-se apenas no quesito pluralidade de sócios que nesta é requisito de existência e naquela é essencialmente negativa de existência.

Além do artigo 980-A também acrescentado pela referida Lei no Código Civil legislar sobre este tipo empresarial, o Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC, afim de regularizar e uniformizar os procedimentos relativos ao registro da EIRELI, criou a instrução normativa nº 117 de 22 de novembro de 2011. A publicação da Lei 12.441 ocorreu no dia 11 de julho de 2011, possuindo vacatio legis de cento e oitenta dias e ocorrendo, portanto, sua vigência a partir do dia 8 de janeiro de 2012.

Neste aspecto conclui-se que a EIRELI surgiu para que os interessados em explorar atividade empresarial no Brasil tenham mais uma opção além das já conhecidas sociedade empresária e empresário individual.

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4.1 REQUISITOS PARA CONSTITUIÇÃO DA EIRELI

Para a ideal institucionalização desta ferramenta jurídica, o Departamento Nacional de Registro de Comércio normatizou a criação das Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada.

Através da Instrução Normativa nº 117/2011, o Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC procura regular e uniformizar os procedimentos relativos ao registro da EIRELI, criando, portanto, o Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, o qual estabelece normas às Juntas Comerciais e seus respectivos usuários a serem observadas no prática dos atos referentes à EIRELI, como a especificação da documentação necessária e seus aspectos formais, bem como orientações e procedimentos a serem seguidos na elaboração dos instrumentos exigidos e na prática dos autos. A própria apresentação da referida instrução revela que o objetivo do Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC é facilitar aos interessados o adequado atendimento aos requisitos exigidos para o arquivamento de atos e orientar as Juntas Comerciais para a prática uniforme dos serviços de registro mercantil. Dessa forma, a observância dessas normas contribui para a redução de custos e prazo de processamento dos serviços solicitados, tanto para os usuários quanto para as Juntas Comerciais, uma vez que exigências serão evitadas.79

O Código Civil, por sua vez, sofreu modificações em três de seus artigos por conta da Lei 12.441/2011. O artigo 44 que estabelece as espécies de pessoas jurídicas de direito privado ganhou mais um inciso que incluiu a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. Incluiu-se também na referida carta legal o artigo 980-A, que veio para regulamentar e estabelecer os requisitos da EIRELI; além da alteração do parágrafo único do artigo 1.033, o qual estabeleceu a exceção à dissolução da sociedade em razão da falta da pluralidade de sócios.

Adiante analisaremos os requisitos para a constituição da EIRELI tanto à esfera legal, por meio da modificação do Código Civil Brasileiro, quanto à esfera administrativa com a Instrução Normativa 117/2011, sem deixar de observar as normas gerais que tratam das sociedade empresárias regidas pelos artigos 966/1.195 do Código Civil Brasileiro.

Ressalte-se, apenas, que os pilares embasadores da EIRELI são ainda de grande discussão na esfera jurídica brasileira, tanto que não se pode falar em posições doutrinárias consolidadas ou até mesmo majoritárias, uma vez que as definições da EIRELI e seus aspectos são respaldo de muitas discussões no âmbito jurídico.

79 BRASIL. 117/2011. Instrução Normativa. Departamento Nacional do Registro de Comércio.

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Neste aspecto ilustra o autor Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2012, p. 158)

As disposições relativas à empresa individual de responsabilidade limitada, denominada Eireli, são bastante singelas e lacônicas, o que traz muitas dúvidas para o intérprete solucionar, como, por exemplo, os efeitos que de sua constituição resultam relativamente aos bens atribuídos à formação do seu patrimônio, quem pode constituí-la, o alcance da separação patrimonial, sua natureza jurídica e a do vínculo com o seu criador, a forma de tornar efetiva a integralização do capital, a sucessão e assim por diante.

4.1.1 UNICIDADE EMPRESARIAL

Inicialmente, como requisito destaca-se a pessoalidade deste tipo de atividade. Ou seja, a EIRELI deve ser constituída por apenas uma pessoa que será o detentor do capital. Este empresário poderá registrar apenas uma EIRELI em seu nome.

Não poderá ser detentora a pessoa jurídica. Embora não esteja expressamente determinado em lei, a instrução normativa 117 do Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC estabelece em vários de seus dispositivos que pessoas jurídicas estarão impossibilitadas de constituírem este tipo de empresa. O parágrafo segundo do artigo 980-A também dispõe sobre este aspecto mencionando que a pessoa natural, ou seja, pessoa física, que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.

4.1.2 INTEGRALIZAÇÃO MÍNIMA DO CAPITAL SOCIAL

O caput do artigo 980-A é claro ao impor que o capital social da empresa individual de responsabilidade limitada não será inferior a cem vezes o maior salário mínimo vigente no país. A instrução normativa 117 especifica que para a integralização do capital social poderão ser utilizados bens desde que suscetíveis de avaliação em dinheiro. Dispõe ainda que no caso de bem imóvel, ou direitos a ele relativos, o ato constitutivo, por instrumento público ou particular, deverá conter sua descrição, identificação, área, dados relativos à sua titulação, bem como o número de sua matrícula no Registo de Imóveis.

Já para a comprovação da integralização deste capital, ainda se é discutido no mundo jurídico a forma ideal. Em coluna da Gazeta do Povo, podemos ver o comentário do colunista Augusto Hauer (2012)

Quanto à integralização do capital, não há previsão de como comprová-la. Pela recente mudança, não se sabe se haverá determinação para apresentar recibos ou comprovantes de valores ou bens. A princípio bastará o contrato

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de constituição da empresa. Orienta-se ao novo empreendedor que registre a efetiva integralização do capital e não apenas indique o valor no contrato social, visto que, caso seja comprovada a não integralização, o empreendedor perderá o benefício oferecido pela separação patrimonial e sofrerá as sanções previstas na lei, desde que credores comprovem esta fraude na Justiça, mediante a conhecida aplicação da “desconsideração da personalidade jurídica”.

Neste aspecto, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2012, p. 269) também escreve sobre o assunto

Essa empresa será constituída por uma única pessoa, titular da totalidade do seu capital social, obrigatoriamente integralizado. Para tal finalidade foi estabelecido um capital mínimo não inferior a 100 vezes o valor do maior salário-mínimo vigente no País. Isto significa dizer que na data da promulgação da lei em questão o capital mínimo da EIRELI era de R$ 54.500,00. Fazendo-se uma comparação, observe-se que o capital mínimo do estabelecimento mercantil de responsabilidade limitada no Direito Português foi fixado em 5.000 Euros (atualmente em redor de R$ 11.000,00), bem abaixo do similar brasileiro.

A crítica feita pelo autor é relevante, uma vez que a limitação da responsabilidade para os empresários que decidirem gerir seus negócios individualmente acaba por não abranger todo aquele que o queira. Exclui, por exemplo, todo aquele microempresário que não detenha de todo capital social exigido para a constituição da EIRELI, ou seja, não possua os 100 salários mínimos necessários.

Para Verçosa (2012, p. 269), trata-se de um valor excessivo, vejamos

Portanto, a crítica que se faz é que o capital mínimo exigido de tal sociedade deixa à margem uma parcela substancial dos microempresários pátrios, os quais continuarão dentro do regime geral de responsabilidade patrimonial pessoal (e do risco correspondente), sem acesso ao patrimônio separado que veio a ser criado para a EIRELI; a não ser por alguma fuga para mecanismo como o da constituição de uma sociedade limitada com outro sócio, este detentor de mínima expressão do capital social. Mas tal recurso, muito utilizado, apresenta custos que o microempresário dificilmente poderá suportar.O exposto pelo autor diz respeito à prevenção de constituição de sociedades

fictícias pelas quais a EIRELI veio a extinguir. Com a estipulação de um capital mínimo de valor elevado, os empresários de pequeno porte não poderão beneficiar-

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se, de forma que, se desejarem a proteção de seus bens pessoais através da limitação da responsabilidade e não possuírem o valor mínimo para a integralização do capital da EIRELI, ainda recorrerão para a constituição da sociedade limitada com a presença do tão falado “sócio de palha”, ou seja, aquele que detém parcela mínima do capital social somente para efeitos de sua regular constituição.

4.1.3 NOME EMPRESARIAL

A formação do nome empresarial da empresa individual de responsabilidade limitada corresponde ao requisito formal para sua constituição e deve seguir o disposto nos artigos 1.155 a 1.168 do Código Civil Brasileiro, que lhe são aplicados subsidiariamente. Mais especificamente falando, temos que para a formação do nome empresarial o titular da EIRELI deve observar os princípios da veracidade, originalidade e da unicidade, podendo se dividir em firma ou denominação.

Com relação aos princípios, Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2012, p. 171/172) comenta

Tanto a firma como a denominação devem observar o princípio da veracidade (impondo que o nome retrate a realidade da empresa), da originalidade (determinando que seja distinto de outros já existentes) e da unicidade (impedindo que a empresa possua mais de um nome empresarial para obrigar-se). Em homenagem ao primeiro deles, se o capital social da Eireli mudar de mãos e o titular de seu capital tiver optado pelo uso da firma, esta deverá ser alterada; se ela possuir denominação, sua alteração será obrigatória em caso de mudança de objeto, para que passe a incorporar o novo em substituição do anterior que a compunha.

Esclarece-se apenas que sob a forma de firma a EIRELI será composta pelo

nome do titular, por extenso ou abreviadamente constando no final a expressão “EIRELI”, sendo facultativa a inclusão do objeto social. A denominação é constituída por meio de nome fantasia devendo obrigatoriamente constar o objeto social, também constando ao final a expressão “EIRELI”.

O nome empresarial é a identificação da EIRELI nas relações com terceiros, devendo conter a expressão EIRELI ao final a fim de distingui-la das sociedades empresarias ou até mesmo do empresário individual, sendo que sua omissão enseja a perda da limitação da responsabilidade da pessoa física que a gerou.

4.1.4 TITULAR DO CAPITAL

Conforme citado anteriormente, o artigo 980-A em seu parágrafo segundo determina que somente pessoa natural poderá constituir a empresa

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individual de responsabilidade limitada. No entanto, este ponto é muito discutido pela doutrina. Não é de aceitação unânime este dispositivo do Código Civil Brasileiro, isso porque a criação deste instituto jurídico tem como fim a organização jurídica da atividade econômica do empresário individual.

Neste aspecto, o magistrado Oscar Valente Cardoso (2012) comenta

Por um lado, entende-se que a interpretação sistemática leva à conclusão de que apenas pessoa natural pode ser sócia porque a EIRELI está prevista no Título I-A do Livro II da Parte Especial do Código Civil, após a regulamentação do empresário individual (Título I) e antes das regras que tratam da sociedade empresária (Título II); de outro lado se afirma que, se não há restrição, qualquer pessoa pode ser sócia da EIRELI, desde que observados os demais requisitos.

Para o juiz, se analisarmos a EIRELI tão somente por seu aspecto legal afirmaríamos que sua constituição dar-se-ia apenas por pessoa natural, pois o legislador não previu que diferente o fosse, ou seja, não proibiu as pessoas jurídicas de constituírem EIRELI em seus nomes.

No entanto, existem, ainda, outros motivos para acreditarmos que a intenção do legislador foi beneficiar as pessoas naturais: a Instrução Normativa 117 em seu item 1.2.11 prevê que “não pode ser titular de EIRELI a pessoa jurídica, bem assim pessoa natural impedida por norma constitucional ou por lei especial.” Bem como os próprios parágrafos do artigo 980-A, como o §2° e §4°, o qual foi vetado, que faziam menção apenas às pessoas naturais como sócias de EIRELI.

4.2 NATUREZA JURÍDICA

Com relação à natureza jurídica da EIRELI, ressalta-se que se trata de um assunto novato no âmbito jurídico brasileiro, razão pela qual sua definição não está concretizada pela doutrina. A dúvida pairava sobre o enquadramento da mesma como sociedade, patrimônio de afetação ou empresa. O posicionamento majoritário, contudo, por entender que a constituição da EIRELI somente se dará por pessoa natural, aponta que esta, apesar de ser uma pessoa jurídica, não é uma sociedade empresária, mas sim uma forma diferenciada de constituição de empresário individual que, por sua vez, é pessoa natural.

Cite-se novamente Oscar Cardoso (2012)

Consequentemente, caso se considere que apenas as pessoas naturais podem constituí-la, no direito brasileiro a única forma de sociedade

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unipessoal continua sendo a subsidiária integral (...), a menos que se admita que a EIRELI seja formada por uma pessoa jurídica. Nesse caso, a EIRELI pode ser tanto um empresário individual (se o seu único sócio for pessoa natural) quanto uma sociedade empresária unipessoal (se composta por uma pessoa jurídica.

Em que pese reconheça somente a sociedade subsidiária integral como única forma de sociedade unipessoal no Brasil, sem citar as sociedades unipessoais derivadas tampouco a empresa pública unipessoal individual, o magistrado coloca que em caso de constituição da EIRELI por pessoa jurídica, estar-se-ia criando uma sociedade unipessoal de fato, uma vez que a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada não é reconhecida como sociedade, apesar de ser inspirada em modelos societários da Comunidade Europeia.

Não obstante aos entendimentos doutrinários acerca deste tema, imprescindível citar o Enunciado 468 aprovado pela Comissão de Direito de Empresa da V Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Concelho da Justiça Federal em Brasília, o qual definiu que “A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli) não é sociedade, mas ente jurídico personificado.”

Quanto à especulação de que a EIRELI fosse instituída de natureza jurídica de patrimônio de afetação, Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2012, p. 161/162) afirma que por definição do próprio legislador a natureza jurídica da EIRELI não pode assim ser considerada. Isso porque, caso o fosse, o patrimônio de afetação seria integrante de um regime jurídico próprio, não sendo, portanto, detentor de personalidade jurídica, como é o caso definido por lei.

Neste aspecto, ensina o professor

Antes do advento da lei que criou a empresa individual de responsabilidade limitada especulava-se se ela constituiria um patrimônio de afetação, isto é, um patrimônio separado, porém integrante do patrimônio de um mesmo sujeito de direito, submetido a um regime jurídico próprio, distinto daquele que incide sobre o restante dessa mesma pessoa. Com a opção do legislador em atribuir personalidade jurídica a essa empresa, não há como enquadrá-la assim. Trata-se de patrimônio que está sujeito a regras distintas das do patrimônio de seu fundador porque transferido à pessoa da empresa por ele constituída. Vale dizer, o tratamento próprio atribuído a esse patrimônio decorre de sua personificação como empresa individual de responsabilidade limitada e não de regras peculiares que incidiriam sobre parcela do patrimônio de uma só pessoa, por ela destinada ao exercício de sua própria empresa.

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Posto isto, é possível afirmar que a EIRELI é pessoa jurídica de direito privado tão somente porque assim o legislador positivou, seja por embasamentos doutrinários ou pela junção de duas personalidades jurídicas, quais sejam, a do patrimônio pessoa da pessoa que constitui a empresa, ou a personalidade do patrimônio de afetação inerente ao exercício da atividade empresária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, foram examinados vários tópicos em torno do tema central: a importância das sociedades unipessoais no mundo para a criação das empresas individuais de responsabilidade limitada no Brasil.

Para compreensão da constituição das chamadas EIRELI’s foram estudadas as posições normativas e doutrinárias das noções de sociedade unipessoal para que então pudéssemos compreender a criação deste instituto no Brasil. Conclui-se, portanto, que, inicialmente, a pretensão doutrinária estabelecia-se acerca da natureza jurídica societária da individualização do detentor de capital e gestor da atividade empresarial, uma vez que inspirada nas sociedades unipessoais existentes principalmente na Europa. Sendo que após a criação deste instituto restou legalmente definida sua natureza de empresa, por ser detentora de personalidade jurídica.

Finalmente, em uma breve perspectiva legal, descrevemos os principais aspectos das empresas individuais de responsabilidade limitada, observando principalmente as divergências doutrinárias acerca dos pontos predeterminados em lei.

A criação das empresas individuais de responsabilidade limitada pode ser considerada um largo passo ao desenvolvimento societário em nosso país, tendo em vista que tal instituto já é de antigo conhecimento em diversos países, muito embora divirjam em seus enquadramentos.

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O TERCEIRO SETOR NO BRASIL: O MODELOS DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (os) E DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO

(OScips)

THE THIRD SECTOR IN BRAZIL: THE MODELS OF SOCIAL ORGANIZATIONS (OS) AND CIVIL SOCIETY ORGANIZATIONS OF PUBLIC INTEREST

(OSCIPS)

luciana borGES mânica

Bacharelanda no curso de Direito do Centro Universitário CuritibaSócia Diretora na Advcom Consultores Ltda

ana luiza chaluSnhaK

Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996) e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná

(2004). Foi assessora jurídica do Tribunal de Justiça do Paraná por dez anos. Atualmente é advogada - atuando na área de Direito Público. .

Professora de Direito Administrativo no Centro Universitário Curitiba e orientadora em Trabalhos de Conclusão de Curso.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Relações contemporâneas entre Estado e Sociedade Civil: o setor público não-estatal e o princípio da subsidiariedade. 2. O Terceiro Setor no Brasil e suas relações com o Estado. 2.1. Conceito de Terceiro Setor. 2.2. Fundamentos constitucionais do Terceiro Setor no Brasil. 2.3. Parcerias do Terceiro Setor com o Estado. 2.3.1. Organizações Sociais (OS). 2.3.2. Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS). 4. Conclusões.

RESUMO

Diante da ineficácia do Estado em promover o desenvolvimento das atividades sociais estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, tem-se assistido a um aumento das parcerias entre Estado e Terceiro Setor, com destaque para as entidades qualificadas como Organizações Sociais (OS) e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). O objetivo deste trabalho é entender a lógica dessas parcerias, compreendendo as novas formas de atuação do Estado e da sociedade, sob a disciplina de um renovado Direito Administrativo, redefinidor da dicotomia clássica público-privado. Para isso, torna-se necessário a análise das relações contemporâneas entre o Estado e a Sociedade Civil, a partir da criação do setor público não-estatal idealizado pela Reforma do Estado, ocorrida sob a luz do princípio da subsidiariedade.

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Palavras-chave: Terceiro Setor, Estado, público não-estatal, princípio da subsidiariedade.

ABSTRACT

The current report has as an objective verify the (in)compatibility of the differenciated Disciplinary regime against the Principle of Humanity, found in the Federative Republic of Brasil’s Constitution, from 1988, which clearly establishes the prohibition of torture or any other type of cruel penalty apliccation. The differenciated disciplinary regime was created to maintain the intern orderliness inside the jails, keeping criminals or supposed criminals away from the social familiarity, aiming to get the rebellions and simillar finished. Through some requirements of the administrative authority, those individuals are destinated to jails living with severe liberty restrictions, where many of their rights are limited. They can go outside of the cell for maximum two hours per day, for have sunbath, and for maximum two hours per week to receive until two adult visitors. It is incontestable that this regime of penalty’s ullfilment configures psychological torture, against principle of humanity. However, this was instituted through the law number 10.792/2003 and it is still applicable. It is intended, so, to study whether there are enough valid fundaments able to support and justify in incidence of this regime or if this is absolutely incompatible to the system.

Keywords: torture, Principle of Humanity, differenciated disciplinary regime and compatibility.

INTRODUÇÃO

As relações entre Estado e sociedade civil têm sofrido aproximações e afastamentos em diferentes perídios históricos, com predomínio de contradições entre elas. No modelo de Estado Liberal percebia-se a nítida separação entre Estado e Sociedade, enquanto que no Estado Social, há aproximação entre as duas instâncias, refletindo na socialização do Estado e estadualização da sociedade. Dessa forma, atualmente observam-se mecanismos que possibilitam o estabelecimento de um equilíbrio no relacionamento de Estado e sociedade.

Nesse contexto, verifica-se uma proliferação de instituições privadas que objetivam, conjuntamente com o Estado, o desenvolvimento de atividades de interesse público. Dentre elas, destacam-se aquelas que compõem o assim denominado Terceiro Setor.

As parcerias entre a Administração e o Terceiro Setor vêm compondo um cenário administrativo inovador, por isso torna-se importante o desenvolvimento

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da pesquisa sobre o tema. A compreensão da lógica das parcerias possibilita o entendimento adequado da intenção do Estado e do Terceiro Setor em formar parcerias, assim como possibilita a delimitação da área de cada um, favorecendo, ainda, o aprimoramento de um sistema jurídico que evite fraudes e burla ao regime jurídico-administrativo.

Será objeto de análise neste estudo o desenvolvimento da esfera pública não estatal, proposta pelo Plano Diretor da Reforma do Estado e o modelo de Estado adequado às novas formas de atuação social, tendo como base o Principio da Subsidiariedade.

Por fim, será analisado o Terceiro Setor, sua definições, regime jurídico e bases constitucionais, para enfim, analisar as parcerias do Estado firmadas com as Organizações Sociais e com as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.

1 RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL: O SE-TOR PÚBLICO NÃO ESTATAL E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

Para uma compreensão adequada da concepção de público não-estatal, é necessário o entendimento do conceito de público e de privado, que atualmente passa a ser rediscutido como um dos reflexos do convívio entre o Estado e o Terceiro Setor. É necessário repensar o público, para assim propiciar a sua revalorização, e delimitá-lo em relação tanto ao estatal quanto ao privado.

Ao se estabelecer critérios de distinção para o termo público, comumente se remete ao que pertence a todos, e conseqüentemente, interessa a todos, envolvendo toda a sociedade. Por outro lado, é freqüente que se questione a quem cabe produzir e proteger os bens públicos. Essa questão facilmente interpela o Estado, mas cada vez mais cabe a sociedade fazer. Remeter ao conceito de público então é aludir tanto à sociedade, como o Estado. (GRAU, 1999, p.275).

Também é necessário entender que o conceito de interesse público não se restringe ao interesse do Estado. Não cabe mais falar que o Estado detém o monopólio do interesse público, na medida que existem vários interesses públicos, representativos da sociedade civil. MOREIRA NETO explica que ”com as profundas mudanças da sociedade contemporânea a demandar transformações do Estado, levando-o a abandonar a postura imperial de monopolista do interesse público para torna-se um instrumento da sociedade. (MOREIRA NETO, 2007, p. 16).

Segundo JUSTEM FILHO “sendo o Estado instrumento de relativização de interesses públicos, contata-se que o conceito de interesse público é anterior (lógica e axiologicamente) ao conceito de Estado, e, portanto, anterior ao conceito de interesse de Estado.” (JUSTEM FILHO, 1999, p. 117) Assim, o Estado é apenas um dos instrumentos de realização de bem comum.

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Foi a Reforma do Aparelho do Estado iniciada em 1995 e proposta por Luiz Carlos Bresser Pereira que pôs em discussão o público não-estatal. De acordo com o autor, reformar o aparelho do Estado seria garantir a esse aparelho maior governança, ou seja, maior capacidade de governar, maior condição de implementar as políticas públicas. O modelo burocrático do Estado era caracterizado pela ineficiência das estruturas hierarquizadas e centralizadoras, pelo excesso de regulamentos e pela uniformização de procedimentos para a prestação de serviços públicos, que se mostravam limitados para responder com agilidade as demandas sociais. Era necessária a passagem da administração pública burocrática à gerencial, baseada em conceitos de administração e eficiência adequados a realidade social e a novas formas de relação entre Estado e sociedade. (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 51).

Assim é que Luiz Carlos Bresser Pereira estabeleceu que no setor de atividades não exclusivas do Estado a forma de propriedade seria a pública não-estatal. Isso porque as atividades pertencentes a esse setor, chamadas de atividades sociais, não podem se submeter a lógica mercadológica do lucro e portando, não podem ser privadas. Do outro lado, na medida em que não implicam necessariamente o exercício de um poder direto do poder do Estado, não há razão para serem submetidas a todos os controles inerentes à administração burocrática. Logo, se não devem ser privadas nem estatais, a alternativa utilizada pro Bresser Pereira foi o da propriedade pública não-estatal, utilizando organizações de direito privado para a prestação de serviços sociais não-exclusivos, mas que tenham finalidades públicas.

Nesse sentido, propriedade pública quer dizer propriedade que visa ao interesse público; não-estatal porque sua propriedade não é parte do aparelho do Estado e deve ser pública para justificar o recebimento de subsídios.

A transferência para o setor público não-estatal da produção dos serviços não-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle, seria feito por um programa chamado “plublicização”.

A transformação dos serviços não exclusivos de Estado em propriedade pública não-estatal e sua declaração como organização social se fará através de um programa de ‘publicização’, que não deve ser confundido com o programa de privatização, na medida em que as novas entidades conservarão seu caráter público e seu financiamento pelo Estado. O processo de publicização deverá assegurar o caráter público, mas de direito privado da nova entidade, assegurando-lhes, assim, uma autonomia administrativa e financeira maior. (BRESSER PEREIRA, 1998, p. 23).

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A criação do espaço público não estatal proposto por Luiz Carlos Bresser Pereira procura superar a dicotomia entre esfera pública e privada, possibilitando redefinições das relações entre a sociedade e o Estado, que passam a atuar conjuntamente no desenvolvimento de atividades de interesse público através do entidades do Terceiro Setor.

Essa nova forma de atuação do Estado pode ser entendida sob a luz do princípio da subsidiariedade.

É pois, em sua formulaçao contemporânea, um pincípio de divisão de competências e de cooperação, que procura definir os domínios próprios dos indíduos, dos grupos intermédios e do Estado, exigindo que se atribuam as responsabilidades públicas às autoridades mais próximas dos cidadãos, que se encontram em condiçoes de exercê-las de forma mais eficiente. E tem, diga-se ainda, por elemento primordial, a descentralização, porquanto seu objetivo é jusntamente coibir a atribuição à autoridade centralizada de tarefas que a entidade menor pode realizar por si mesma. (TORRES, 2001, p. 35.).

Assim, entende-se que o o princípio da subsidiariedade indica uma

distribuição de competências e poderes entre a iniciativa pricada e a pública, cabendo nortear uma atuação negativa e uma positiva no ambito da atuação estatal. De um lado a atuação estatal irá sofrer limitações pela própria atuação da sociedade, quando esta consegue por sí só suprir suas necessidades; por outro lado justifica-se uma intervenção estatal quando a sociedade não tenha condições de atender suas necessidades. Nesse aspecto, o Estado deve fomentar, coordenar fiscalizar a inciativa privada, de tal modo a permitir que os particulares tenham sucesso nas suas ações.

Através da distribuição de competências entre o Estado e os particulares, reconhece-se o caráter de flexibilidade do princípio da subsidiariedade, que só se manifesta com a análise de situações concretas, variando o teor de sua obrigatoriedade e validade, já que se trata de princípio e não de norma.

Várías são as tendencias advindas da aplicabilidade do princípio da subsidiariedade no cenário do Estado em transformação: (i) diminuição do tamanho do Estado, via privatização, a partir da dácada de 80, movida por fatores de ordem financeira, jurídica e política; (ii) o interesse público que deixou de ser prerrogativa do estado; (iii) a ampliação da atividade administrativa de fomento, como meio de estimular os vários grupos sociais a realizarem seus interesses; (iv) crescimento das técnicas de fomento, com o alargamento do elenco de instrumentos de parceria entre o setor público e prvado e (v) maior desregulamentação, com a qual se busca maior equilíbrio entre liberdade e autoridade. (DI PIETRO, 2005, p.38).

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O princípio da subsidiariedade está diretamente ligado ao principio da eficiência, atrelado à idéia de qualidade na prestação dos serviços que, efetivamente, não podem ser alcançados por uma Administração Pública altamente burocratizada. Nesse sentindo, o princípio visando a maior flexibilidade, descentralização, individualização de responsabilidades, eficiência e economicidade, altera a forma de gestão do Estado, em que a Administração Pública substitui os mecanismos clássicos de coerção pelo de colaboração e o da imperatividade pela consensualidade (SCHOENMAHER, 2011, p. 14).

DI PIETRO afirma que a primazia da inicitativa privada sobre a estatal diz respeito ao direitos individuais e que o pricípio está na própia base do concepção de Estado de Direito Social e Democrático, em que os direitos fundamentais constituem a própria razão de ser do Estado. A autora aduz que o governo brasileiro pretende substituir o Estado do bem-estar social pelo Estado Subsidiário e sobre este destaca:

Não se confunde o Estado Subsidiário com o Estado Mínimo; neste, o Estado só exercia as atividades essenciais deixando tudo o mais para a iniciativa privada, dentro da idéia de liberdade individual que era inerente ao período do Estado Liberal; naquele, o Estado exerce as atividades essenciais, típicas do Poder Público, e também as atividades sociais e econômicas que o particulpar não consiga desempenhar a contento no regime da livre iniciativa e livre competição; além disso, com relação as essas últimas, o Estado deve incentivar a iniviativa privada, auxiliando-a pela atividade de fomento. (DI PIETRO, 2005, p. 38).

Destaca-se que não prover diretamente os serviços não quer dizer que o Estado torna-se irresponsável perante as necessidades sociais básicas:

O Estado apenas regulador é o Estado Mínimo, utopia conservadora insustentável ante as desigualdades das sociedades atuais. Não é este o estado que se espera resulte das reformas em curso em todo o mundo. O Estado deve ser regulador e promotor dos serviços sociais básicos estratégicos. Precisa garantir a prestação de serviços de saúde de forma universal, mas não deter o domínio de todos os hospitais necessários. Precisa assegurar o fornecimento de ensino de qualidade aos cidadãos, mas não estatizar todo o ensino. Os serviços sociais devem ser fortemente financiados pelo Estado, assegurados de forma imparcial pelo Estado, mas não necessariamente realizados pelo aparato do Estado. (MODESTO, 2001, p. 28).

Diante do exposto, percebe-se, a atualidade desse princípio, que dá novas

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formas e possibilidades de atuação, ao coordenar as relações entre o setor público e a sociedade. O novo modelo de relação entre Estado e sociedade, denominado Estado Subsidiário considera, a partir da redefinição de competências, a necessidade de negociação política com os atores sociais que se enfrentam no espaço público. Tido como uma alternativa aos embates sofridos nos modelos de Estado Liberal e o Estado Social, o Estado Subsidiário aparece como um modelo estatal da contemporaneidade.

Assim, entende-se que a aplicação do princípio de subsidiariedade é adequado na medida em que possibilita a criação de formas de atuação social, pois vê a sociedade como uma colaboradora do Estado na atuação do espaço público. Por isso, pode-se dizer que, dentro da concepção desse princípio, o Terceiro Setor surge como um ator estratégico nessa nova relação entre Estado e sociedade civil.

2 O TERCEIRO SETOR NO BRASIL E SUAS RELAÇÕES COM O ESTADO

2.1 CONCEITO DE TERCEIRO SETOR

Como cediço, o termo Terceiro Setor faz alusão a existência de outros dois setores: um “primeiro” setor, correspondendo ao Estado, e um “segundo” setor, correspondendo ao mercado. Nessa idéia, o “Terceiro” Setor viria abaixo dos dois setores anteriores e emglobaria todos os modelos de entidades que não fazem parte do Estado e do Mercado. Pode-se entender através dessa concepção, que mesmo que uma entidade não tivesse finalidade pública, faria parte do Terceiro Setor, já que não há vinculação do Terceiro Setor ao setor público.

No entanto, essa definição baseada na exclusão e na diferença entre os outros dois setores, possibilita definições imprecisas para a dogmática jurídica, impossibilitando a existência de um regime jurídico próprio. Como alerta MÂNICA:

Terceiro Setor não deve ser entendido como um conceito amplo e residual. Afinal, a expressão tomou relevo como agente social e como categoria jurídica, justamente em face de sua importância como esfera de ação localizada entre o Estado e o mercado.” (grifo do autor). (MÂNICA, 2007, p. 167). Assim, enfatiza-se que o Terceiro Setor não se encontra acima/abaixo,

antes ou depois dos demais setores, como proposto por alguns doutrinadores, mas sim entre o Estado e o mercado justamente porque a dicotomia Estado/sociedade, público/privado foi atenuada, o que foi procurado mostrar nos capítulo anteriores. Nas palavras de CARDOSO:

o conceito de terceiro setor descreve um espaço de particiáção e

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experimentação de novos modelos de pensar e agir sobre a realidade social. Sua afirmação tem o grande mérito de romper com a dicotomia entre o público e o privado na qual o público era sinonimo de estatal e o privado, de empresa. (CARDOSO, 2000,p. 34.)

É a partir desse entendimento que serão apresentadas algumas definições de Terceiro Setor e ainda a definição jurídica do termo.

Definindo o Terceiro Setor, PAES aponta:

Portanto, o Terceiro Setor é aquele que não é público e nem privado, no sentido convencional desses termos; porém guarda uma relação simbiótica com ambos, na medida em que ele deriva sua prórpia identidade da conjugação entre a metodologia deste com as finalidades daquele. Ou seja, o Terceiro Setor é composto por organizações de natureza “privada” (sem o objetivo de lucro) dedicadas à consecução de objetivos sociais ou públicos, embora não seja integrante do governo (Administração Estatal).(PAES, 2003, p.275).

Através dessa definição entende-se que o Terceiro Setor é situado entre

o Estado e o Mercado, compostos por entres privados que executam atividades socialmente relevantes.

Na concepção de OLIVEIRA o Terceiro Setor é

(...) o conjunto de atividades voluntárias desenvolvidas por organizações privadas não governamentais e sem ânimo de lucro (associações ou fundações), realizadas em prol da sociedade, independentemente dos demais setores (Estado e mercado), embora com eles possa firmar parcerias e receber investimentos (públicos e privados).(OLIVEIRA, 2007, p. 173)

Seguindo esses passos, parece claro que em termos jurídico fazem parte do Terceiro Setor, na definição de MÂNICA:

conjunto das pessoas jurídicas de direito privado, constituídas de acordo com a legislação civil sob a forma de associações ou fundações, as quais desenvolvam (i) atividades de defesa e promoção de quaisquer direitos previstos pela Constituição ou (ii) prestem serviços de interesse público. (MÂNICA, 2007, p.173)

Assim entende-se o Terceiro Setor como o conjunto de pessoas jurídicas

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de direito privado, de caráter voluntário e sem fins lucrativos, que prestem serviços de interesse público e promovem a defesa de direitos previstos pela Constituição brasileira.

Diante do exposto, verifica-se que não ná mencão do termo Terceiro Setor na legislação brasileira, assim como não há um conceito o unívoco de Terceiro Setor, e que comumente há tantos conceitos quantas são as classificações dos diversos entes que compoem a categogira. No entanto, os conceitos apresentados possibilitam o entendimento jurídico do Terceiro Setor.

O fato de as entidades serem pessoas jurídicas privadas significa que estão fora da estrutura formal do Estado, estão constituídas sob a forma de associações, fundações e cooperativas sociais e devem obedecer o regime jurídico de direito privado. Somente quando houver a celebração de parcerias com o Estado, é que haverá a assunção parcial ao regime jurídico do direito administrativo.

A questão de não possuir fins lucrativos costuma trazer algumas controvérsias. No entanto, tem-se o entendimento de que os lucros obtidos em razão das atividades prestadas não pode ser distribuído entre os associados da entidade, devendo ser aplicados integralmente em seu objeto social. (FONSECA, 2008, p. 112).

Já o desenvolvimento de atividades de interesse público diz respeito ao desenvolvimento de atividades de interesse geral da coletividade, portanto, não se enquadram nas entidades do Terceiro Setor entidades privadas que desenvolvam atividades que visam somente o benefício mútuoe dos associados.

2.2 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO TERCEIRO SETOR NO BRASIL

As entidades com características correspondentes ao conceito de Terceiro Setor existiram em todas as manifestações de vida social organizada, sendo consequentemente anteriores à Constituição brasileira de 1988. No entanto, apenas com a reforma do Estado em 1995 e a passagem à administração gerencial é que o Terceiro Setor deixou de ser visto apenas como uma forma de expressão da sociedade e começou a ser visto também como uma forma de expressão da atividade estatal.

Pode-se verificar no art. 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que o Estado brasileiro é um instrumento para realização de atividades que visem à construção de uma sociedade justa, livre e solidária, ao desenvolvimento nacional, à erradicação da pobreza, à redução das desigualdades e à promoção do bem de todos os cidadãos. (BRASIL, 1998). Dessa forma, entende-se que o Estado busca o desenvolvimento social.

A Constituição Federal de 1988, criada sob o modelo de Estado Social, apresentou pela primeira vez de maneira expressa a atribuição também à

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sociedade civil, por meio de organizações privadas sem fins lucrativos, o dever de contribuir para a consecução dos objetivos do Estado brasileiro.

Nesse sentido, MÂNICA preceitua:

No caso brasileiro, a Constituição de 1988, após as sucessivas revisões e reformas, manteve como seus objetivos fundamentais os mesmos valores constantes de sua redação original – modelo de um Estado Social. Em nossa opinião, como veremos adiante, alteraram-se, portanto, apenas os instrumentos para a consecução dos objetivos propostos. (MÂNICA, 2005, p. 37).

A própria noção de Estado Democrático de Direito, previsto na Constituição Brasileira no art. 1º, caput, é absolutamente determinante para a conceituação de Terceiro Setor, diante da obrigatória democratização do Estado de Direito. É destaque no texto constitucional, as referências à democracia participativa e não apenas um modelo de democracia representativa. O Terceiro Setor se insere exatamente nesse contexto de convocação e encontra legitimidade dentro da própria Constituição na consecução de sua finalidade, o que significa a participação no exercício e na garantia dos direitos.

Nesse diapasão, segundo OLIVEIRA:

É possível sustentar que o Terceiro Setor é o resultado da combinação do exercício da cidadania com a efetiva participação direta dos cidadãos — individual ou de modo associativo — nos assuntos de interesse da sociedade, sempre com fundamento na busca pela solidariedade entre os indivíduos. Sendo assim, os elementos fundantes do Terceiro Setor encontram-se previstos expressamente na Constituição de 1988. A cidadania é tida como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. II); a participação direta dos cidadãos nos assuntos públicos possui suporte no art. 1º, parágrafo único;36 a solidariedade é elencada como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, inc. I). (OLIVEIRA, 2007, p. 26)

O texto da Constituição da República que serve de base para a estruturação das entidades sem fins lucrativos, reside no conjunto de artigos integrado pelos incisos XVII a XXI do art. 5º da Constituição Federal, que traça a garantia fundamental do direito à liverdade de associação. De acordo com Gustavo Justino de Oliveira, esses preceitos podem, inclusive, resultar na conformação de uma principiologia constitucional do Terceiro Setor. (OLIVEIRA, 2007, p. 26).

No Título VIII, “Da Ordem Social”, verifica-se que a Constituição de 1988 apresenta expressamente a participação das entidades do Terceiro Setor em diversas atividades sociais, quais sejam: (BRASIL, 1998).

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(i) Saúde:

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

(ii) Seguridade Social:

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e a assistência social.

Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade, com base nos seguintes objetivos:

VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

(iii) Educação:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições(iv) Meio ambiente:

Art. 216.§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida, impondo-

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se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações

(v) Família, criança e idoso.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar aspessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Verifica-se com esses dispositivos constitucionais que, ao utilizar-se de expressões tais como sociedade, comunidade, coletividade e iniciativa privada a Constituição da República Federativa do Brasil está confirmando seu apoio ao Terceiro Setor, demonstrando que não é apenas responsabilidade do Estado, mas de toda a sociedade a promoção de atividades de interesse social.

Nesse sentido, tem-se a lição de MODESTO:

Não há, portanto, impedimento constitucional algum à assunção por particulares de tarefas e missões de interesse social em colaboração com a administração pública. Desde que cumpridos requisitos de salvaguarda do interesse público, mais intensos e onerosos quanto mais ampla for a transferência de encargos e recursos, a cooperação é lícita e até mesmo estimulada pela Constituição da República. (MODESTO, 1997, p. 27)

Nesse contexto, o papel do Terceiro se insere dentro de um conjunto de direitos e responsabilidades preconizados pela Constituição Federal de 1988, na busca pela efetivação de atividades sociais conjuntamente com o Estado.

Assim, a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, que estabelece um rol extenso de direitos fundamentais, depende também da participação da sociedade. Se o Brasil, nos termos de sua Constituição é um Estado Social e Democrático de Direito, a concretização dos direitos estabelecidos depende da participação da sociedade. Essa participação pode ocorrer de diversas maneiras, dentre as quais, por meio de parceiras

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que proporcionam a colaboração de entidades organizadas da sociedade na consecução de objetivos relacionados aos direitos sociais. Importantes instrumentos de disciplina dessas parcerias foram criados recentemente: o Contrato de Gestão com as Organizações Sociais (OS) e os Termos de Parceria com as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).

2.3 PARCERIAS DO TERCEIRO SETOR COM O ESTADO

2.3.1 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OS)

As Organizações Sociais foram idealizadas a partir do Plano Diretor da Reforma do Estado, de 1995. Isso porque, como firmado acima, o projeto de publicização visava a transferência de atividades do setor não exclusivo do estado a entidades privadas de qualificação especial, criadas com a finalidade de substituir a atuação dos órgãos estatais na prestação de serviços públicos. No entanto, Maria Sylvia Di Pietro afirma que a transformação de entes estatais em organizações sociais, sem fins lucrativos e desenvolvendo atividades de interesse público trata-se de privatização e não publicização:

Embora o Plano Diretor fale em publicização para definir a forma como se substituirá uma entidade pública por uma entidade particular qualificada como organização social, não há qualquer dúvida quanto a tratar-se de um dos muitos instrumentos de privatização de que o Governo vem se utilizando para diminuir o tamanho do aparelhamento da Administração Pública. A atividade prestada muda a sua natureza; o regime jurídico, que era público, passa a ser de direito privado, parcialmente derrogado por normas publicísticas; a entidade pública é substituída por uma entidade privada. (DI PIETRO, 2005, p. 279)

A fim de possibilitar o entendimento dos administradores e dos cidadãos em geral sobre as Organizações Sociais, foi publicado o Caderno MARE sobre a Reforma do Estado nº 2, detalhando esse novo modelo de prestação de serviços de interesse público. Nele, as Organizações Sociais são descritas como:

um modelo de organização pública não-estatal destinado a absorver atividades publicizáveis mediante qualificação específica. Trata-se de uma forma de propriedade pública não-estatal, constituída pelas associações civis sem fins lucrativos, que não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse público. (BRASIL, 1997, p. 15)

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Assim, parece claro que se trata de privatização na medida em que há a transferência da propriedade pública estatal para a iniciativa privada destinada ao interesse público, ou seja torna-se público não-estatal, fundamento estruturante das Organizações Sociais.

Importante destacar, assim como afirma Di Pietro, que o que serviu de inspiração para o projeto das Organizações Sociais foram os serviço sociais autônomos, do chamado “Sistema S” (SESI, SENAI, SESC, SENAC).(DI PIETRO, 2005,p.405). Eles são considerados, segundo JUSTEM FILHO, sinônimos a entidades paraestatais, que atuam paralelamente ao estado na prestação de atividades de interesse público, com receita proveniente de contribuições parafiscais instituídas pelo Poder Público. (JUSTEM FILHO, 2008, p. 201).

O objetivo da criação das Organizações Sociais foi a possibilidade de melhor a qualidade e eficiência na prestação de serviços não-exclusivos devido a uma flexibilização de sua gestão, em que o Estado deixa de executar ou prestar diretamente o serviço de interesse público. O Estado passa a atuar predominantemente nas atividades de regulação e fomento das atividades publicizadas.

Nesse sentido, tem-se a definição de organizações sociais elaborada pro MODESTO:

organizações sociais são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, voltadas para atividades de relevante valor social, que independem de concessão ou permissão do Poder Executivo, criadas por iniciativas de particulares segundo modelo previsto em lei, reconhecidas, fiscalizadas e fomentadas pelo Estado. (MODESTO, 1997, p. 3)

Ressalta-se que as organizações sociais não são um novo tipo de pessoa jurídica criada por lei, e sim pessoa jurídicas estruturadas como associações e fundações do Terceiro Setor. O que significa ser organização social é a obtenção de um título, de uma qualificação concedida pelo poder público.

A Lei 9.637/98 estabeleceu os requisitos que devem ser atendidos pela entidade privada obter a qualificação de organização social. Esses requisitos estão relacionados com a natureza da pessoa jurídica, o objetivo social, a finalidade e as estrutura dos seus órgãos deliberativos.

O título de Organização Social é fornecido segundo um ato discricionário da autoridade administrativa competente. O Poder Executivo apenas deve se vincular ao atendimento ou não dos requisitos formais exigidos pela Lei. Assim, se cumprido tais requisitos, a qualificação da entidade dependerá dos critérios de oportunidade e conveniência da Administração Pública. Essa ausência de critérios claros para a qualificação da entidade acarretou críticas pelos administradores públicos.

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Importante relatar que a Lei 9637/98 está sendo alvo de questionamento perante o Supremo Tribunal Federal, pela via de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, a ADIN nº1923-6 e a ADIN nº 1943-1.

Independente do aguardado julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidades, as repercussões das falhas legislativas são atacadas desde o início do surgimento das Organizações Sociais, já que elas são esparsas em comparação a nova qualificação fornecida pelo poder Público, as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.

O art. 1º da Lei 9.637/98 estabelece que somente uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que se dedique a atividade de ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde pode se qualificar como OS.

Nesse contexto, MODESTO descreve três propósitos para a concessão da qualificação para as organizações sociais:

Em primeiro lugar, diferenciar as entidades qualificadas, beneficiadas com o título, relativamente ás entidades comuns, destituídas dessa especial qualidade jurídica. Essa diferenciação permite inserir as entidades qualificadas em um regime jurídico específico. Em segundo lugar, a concessão do título permite padronizar o tratamento normativo das entidades que apresentam características comuns relevantes, evitando o tratamento casuístico dessas entidades. Em terceiro lugar, a outorga de títulos permite o estabelecimento de um mecanismo de controle de aspectos da atividade das entidades qualificadas [...]. (MODESTO, 1998, p. 59)

Percebe-se então que a qualificação jurídica traz peculariedades à personalidade jurídica das organizações sociais, que passam a obter tratamento diferenciado tal qual das demais pessoas jurídicas de direito privado, para possibilitar, através da parceria com o Estado, o desenvolvimento da finalidade de interesse social a que se destina.

Com a qualificação obtida, a entidade poderá formalizar contratos de gestão com o Poder Público e receber orçamentos, bens e até mesmo servidores públicos para o cumprimento do contrato de gestão. Além de recursos governamentais, poderá receber auxílios de meios diversos, como da produção e comercialização de bens e serviços e doações.

O Contrato de Gestão, segundo o artigo 5º da lei 9.637/98 é o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como Organização Social, com vistas à formação de parceria para fomento e execução das atividades referidas no art. 1º, já enumeradas.

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ROCHA trata do fomento a Organização Social pelo contrato de gestão:

Objetiva-se, com o contrato de gestão, que o Estado entregue à organização social recursos orçamentários, bens públicos e servidores para que a organização social possa cumprir os objetivos sociais tidos por convenientes e oportunos. É desta forma que o estado incentiva a denominada iniciativa privada de interesse público. (ROCHA, 2003, p. 120)

Nesse sentido, DI PIETRO leciona:

O contrato de gestão, quando celebrados com entidades da administração indireta, tem por objetivo ampliar a sua autonomia; porem, quando celebrado com organizações sociais, restringe sua autonomia, pois, embora entidades privadas, terão que sujeitar-se a exigências contidas no contrato de gestão. (DI PIETRO, 2005, p. 268)

Assim, entende-se que o contrato de gestão é ao mesmo tempo instrumento de fomento e de ajuste (parceria) entre a Administração Pública e a entidade do Terceiro Setor qualificada com Organização Social. Ele discrimina as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da Organização Social. 4.3.2 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE INTERESSE PÚBLICO (OSCIPS)

A Organização Civil de Interesse Público – OSCIP é disciplinada pela lei 9.790/1999, criada um ano após a lei que disciplina as Organizações Sociais. Constitui-se em uma nova qualificação dada as entidades do Terceiro Setor que preencham os requisitos exigidos pata celebrar parcerias com o Poder Público para a realização de atividades de interesse social.

Assim, pode-se dizer que a ideia inspiradora dos dois modelos de entidades do Terceiro Setor é a mesma, no entanto, verificam-se diferenças marcantes entre as OS e as OSCIP.

Cumpre ressaltar que as OS foram criadas pelo Plano Diretor da Reforma do Estado, e que através do o processo de publicização visavam, substituir a atuação dos órgãos estatal na prestação de serviços públicos, permanecendo o Estado apenas na sua atividade de fomento.

De outro modo, as OSCIP, através da celebração do Termo de Parceria com o Estado (contrapondo o Contrato de Gestão das OS), não objetivam a substituição do Estado, mas sim a formação de parcerias, que significa a complementação da atividade do Estado.

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Nesse contexto, tem-se a lição de OLIVEIRA:

[...] a Lei federal n° 9790/99 inaugurou um novo modelo de prestação de serviços públicos, a ser viabilizada por meio de um acordo administrativo colaborativo firmado entre o Poder Público e uma OSCIP (Termo de Parceria). [...] a OSCIP não recebe delegação do Poder Público para a prestação de serviços, atuando a entidade privada sem fins lucrativos de modo complementar ou suplementar aos serviços prestados pelo Poder Público. (OLIVEIRA, 2007, p. 222)

DI PIETRO posiciona-se sobre a questão:

Em relação às organizações da sociedade civil de interesse publico, o Poder Público exerce verdadeira atividade de fomento, ou seja, o incentivo à iniciativa privada de interesse público. Ao contrário do que ocorre na organização social, o Estado não abre mão do serviço público para transferi-lo a iniciativa privada, mas faz parceria com a entidade, para ajudá-la, incentivá-la a exercer atividades que, mesmo sem a natureza de serviços públicos, atendem a necessidades coletivas. (DI PIETRO, 2005, p. 273)

Dessa forma, verifica-se que a lei 9790/99 utiliza-se de mecanismos diferenciados da lei 9637/98, com o objetivo de superar algumas insuficiências das Organizações Sociais.

Destaca-se que o ato de qualificação das OSCIP, ao contrário das OS, é vinculado nos termos do que dispões ao artigos 3° e 4º da Lei 9790/99, obedecendo a requisitos mais restritos e rígidos para conceder a qualificação as entidades.

Isso significa que, preenchidos os requisitos legais exigidos pela entidade interessada em se qualificar como OSCIP, não resta outro comportamento ao agente do Ministério da Justiça, senão deferir o pedido. Não há para o agente qualquer margem de liberdade. Isso garante à entidade candidata a obter o título o direito subjetivo de exigi-lo caso este lhe seja negado por motivos diversos daqueles mencionados na lei. ( ROCHA, 2003, p. 68)

Verifica-se que a Lei 9.790/99, no seu art. 2°, estabelece, além dos requisitos exigidos para a qualificação, enunciação taxativa daquelas entidades que não podem qualificar-se como OSCIP, restringindo-se assim e reforçado as características da entidades do terceiro Setor que podem vir a formar parcerias com o Poder Público.

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O Termo de Parceria, disciplinado no art.9º da Lei 9790/99 é o instrumento de ajuste firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como OSCIP, que possibilita a formação de parcerias para fomento e a execução e atividades de interesse público.

No entanto, a parceria com o as OSCIP é facultativa, não bastando a qualificação para que a OSCIP formalize termos de parceria com o Poder Público. A decisão cabe ao Estado, se manifestar interesse em promover a parceria para a realização de projetos com a OSCIP. (ROCHA, 2003, p. 68).

Diante da exposição, verifica-se que a OS e OSCIP representam um marco legal inovador quanto ao modo de relacionamento entre Estado e as entidades do Terceiro Setor.

4 CONCLUSÕES

As novas relações entre Estado e sociedade, refletidas nas parcerias do Terceiro Setor, são entendidas a partir da criação, pelo Plano Diretor da Reforma do Estado, da esfera público não- estatal. Esta esfera, que representa o espaço de atividades não exclusivas do Estado, procura superar a dicotomia clássica entre esfera pública e privada.

O novo modelo de atuação do Estado é entendido a luz do princípio da subsidiariedade. O Estado deixa de ser o detentor de todas as atividades sociais, e passa a atuar juntamente com a esfera de participação de entidades do Terceiro Setor. Destacou-se que não se trata de um retrocesso aos moldes do liberalismo, já que no modelo proposto o Estado é regulador e gerenciador de todas as atividades sociais.

Diante disso, evidencia-se a atuação do Terceiro Setor, através de parceiras firmadas com o Estado na consecução de atividades e direitos sociais relacionados pela Constituição Federal.

As Organizações Sociais, embora apresentem algumas críticas, representa um avanço no sentido da flexibilização da atuação do Estado, culminando na criação das Organizações Sociais de interesse Público, criadas para suprir algumas deficiências da lei anterior e fortalecer o apoio do Estado a formação de parcerias com o Terceiro Setor.

Entende-se que o crescimento das entidades do Terceiro Setor é reflexo de um conjunto de fatores e representam novas estratégias para estimular parcerias com entidades do Terceiro Setor, fomentando a participação da sociedade nos serviços não-exclusivos do Estado. Torna-se necessário o aprimoramento das regulamentações e dos mecanismos de controle para que a parceria com o Estado atinja o objetivo essencial a que se destina, qual seja, o interesse público.

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A INELEGIBILIDADE DECORRENTE DE DECISÃO PROFERIDA POR ÓRGÃO COLEGIADO E AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LC 135/2010

maria auGuSta FranciSco Kuba

Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA

luiz GuStaVo DE anDraDE

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), pós-graduação pela Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2008). Atualmente é professor da Faculdade de Direito de Curitiba do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e advogado militante no Paraná.

RESUMO

O presente artigo discorre sobre o instituto das inelegibilidades no ordenamento jurídico brasileiro. Demonstra-se os fundamentos jurídicos deste instituto, bem como a sua área de abrangência. Faz-se distinção entre esse instituto e o instituto jurídico da elegibilidade. Faz-se uma análise das hipóteses de inelegibilidades trazidas pela Lei Complementar 135/2010, comparativamente a disposição anterior – LC 64/1990 – através de julgados e posicionamentos doutrinários, além de demonstrar as origens de toda a discussão perante a doutrina e a jurisprudência envolvendo a sua aplicação, como por exemplo a discussão da irretroatividade e da aplicação imediata da nova lei de inelegibilidades. Procura-se demonstrar a força determinante da opinião popular para a sua aprovação. Discorre-se, especialmente, sobre as alterações incluídas por essa novel norma e que dispõem que as decisões proferidas por órgão colegiado acarretarão em inelegibilidade, mesmo sem o trânsito em julgado do processo. Analisa-se a constitucionalidade de tais normas, através da análise de seus aspectos formais e materiais. Faz-se um estudo desta lei sobe o viés da aplicação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, da segurança jurídica, do princípio da moralidade e da proporcionalidade.

Palavras-Chave: inelegibilidade, princípio da presunção de inocência, decisão proferida por órgão colegiado, inconstitucionalidade.

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ABSTRACT

This article discusses the Institute of ineligibility in the Brazilian legal system. Demonstrates up the legal basis of this institute and its catchment area. It is this distinction between the institute and the institute’s legal eligibility. It is an analysis of the chances of ineligibility brought by Complementary Law 135/2010, compared to previous provision - LC 64/1990 - through trial and doctrinal positions, besides demonstrating the origins of the whole discussion before the doctrine and jurisprudence involving your application, such as the discussion of retroactivity and the immediate application of the new law of ineligibility. It seeks to demonstrate the determining force that popular opinion for approval. Discourses themselves, especially on the changes included in this standard and novel feature that judgments by a collective body will lead to ineligibility, even without the final judgment of the case. Analyzes the constitutionality of such standards by analyzing its formal aspects and materials. It is a study of this law increases the bias of the application of constitutional principles of the presumption of innocence, legal certainty, the principle of morality and proportionality.

Keywords: Inelegibility, principle of presumption of innocence, adjucation by court without res judicata, Unconstitutionality.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Inelegibilidades. 3. As alterações introduzidas pela LC 135/2010. 4. Aplicação dos Princípios Constitucionais. 5. Considerações finais.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende discutir as alterações introduzidas pela Lei Complementar 135/2010 à Lei de Inelegibilidades, principalmente as modificações que determinam que a inelegibilidade pode ser decretada a partir da primeira decisão proferida por órgão colegiado, sem a necessidade do trânsito em julgado do processo.

O instituto das inelegibilidades é um dos alicerces do regime democrático brasileiro e tal qual, deve ser visto como uma exceção ao exercício dos direitos políticos de cada cidadão, uma vez que é forma de restrição dos direitos individuais de cada um.

A relevância dessa pesquisa se encontra na possibilidade de estas alterações confrontarem com os princípios dispostos na Constituição Federal de 1988, dentre eles o princípio da irretroatividade das leis, o postulado da segurança jurídica, o princípio da proporcionalidade e o da presunção de inocência; todos

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muito caros ao constitucionalismo e a democracia. Tais afrontas poderiam levar ao desvirtuamento da finalidade do instituto das inelegibilidades.

Também deve-se ressaltar que essas inovações foram fruto de grande mobilização de entidades sociais que ocasionaram em um projeto de lei com iniciativa popular. Essa mobilização é considerada como a grande propulsora da aplicação dessas normas, já que em outras tentativas regras como essas não foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

Devido a isso, considera-se de suma importância a discussão sobre tais inovações e as substanciais mudanças nos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do tema, bem como se há, de fato, qualquer afronta aos alicerces constitucionais do regime democrático de direito.

INELEGIBILIDADES Acarretarão em inelegibilidade as ações ou omissões não condizentes

com o exercício da capacidade eleitoral passiva. Ou seja, trata-se do requisito negativo para se postular cargo público. Não é permitido que alguém que pretenda se candidatar se encaixe em alguma das hipóteses de inelegibilidade dispostas na Lei (art. 14, parágrafos 4o, 7o e 9o da Constituição Federal e Lei Complementar 64/1990).

As inelegibilidades não se confundem com as elegibilidades, também conhecida como capacidade eleitoral ativa. Tais institutos, lado outro, não representam palavras antônimas. Segundo Telles (2009 p. 16) “conceituar a inelegibilidade como antônimo de elegibilidade, isto é, como a circunstância de não possuir as condições de elegibilidade, é errônea e desnatura esse instituto jurídico”.

Segundo Ramayana (2011 p. 296) as inelegibilidades “são regras que estabelecem padrões ordenadores de um estatuto jurídico político. Assinala-se um dever para as candidaturas políticas (...) é espécie de filtro político”.

As elegibilidades, por sua vez, são conceituadas por Moraes (2011 p. 246) como “a capacidade eleitoral passiva consistente na possibilidade de o cidadão pleitear determinados mandatos políticos, mediante eleição popular, desde que preenchidos certos requisitos”.

Apesar de as condições de elegibilidade – previstas pela Constituição Federal, art.14, parágrafo 3o - não se confundirem com as condições de inelegibilidade, alguns autores optam por considerá-las como palavras antônimas. Dentre esses autores pode-se citar Cândido (2003 p. 104) e Coêlho ( 2010 p. 165).

Como exposto, o instituto jurídico das inelegibilidades para Zilio (2012, p. 151) representa “o impedimento ou restrição à capacidade eleitoral passiva, previsto expressamente na Constituição Federal ou em Lei Complementar, pelo

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prazo estabelecido em lei.” Para que uma pessoa possa exercer a capacidade eleitoral passiva, deve obrigatoriamente, cumprir os requisitos inerentes a elegibilidade e não incorrer em nenhum dos requisitos de inelegibilidade.

Ainda, as inelegibilidades são divididas entre constitucionais e infraconstitucionais. Disse-se constitucionais aquelas hipóteses expressamente previstas pela Constituição Federal: inelegibilidade dos analfabetos e dos inalistáveis, disposta no art. 14, parágrafo 4o.

Para Ramayana (2011 p. 298) entretanto a inelegibilidade dos inalistáveis na verdade é uma hipótese de falta de elegibilidade. “Na verdade, esta última hipótese não é um caso de inelegibilidade, mas,sim, de falta de condição de elegibilidade que é o alistamento eleitoral”.

As inelegibilidades infraconstitucionais, por sua vez, estão previstas pela LC 64/1990.

A doutrina, para melhor entendimento desse instituto, ainda divide as hipóteses de inelegibilidade em algumas classificações.

A chamada inelegibilidade absoluta representa as vedações que atingem todo o território brasileiro ou ainda as que incidem sobre qualquer cargo eletivo enquanto estiverem presentes as suas causas. É esta a inelegibilidade que atinge os analfabetos. Ramayana (2011 p. 298) expõe que nesta classificação incluem-se também os condenados criminalmente por sentença transitado em julgado por cometimento de crime eleitoral. Contudo, para Alexandre de Moraes (2011 p. 158) essa inelegibilidade absoluta tem caráter restritivamente constitucional. Ele não considera como inelegibilidade absoluta as possibilidades previstas em lei infraconstitucional.

A inelegibilidade relativa atinge somente alguma parte do território brasileiro - estado ou município – ou que incidem sobre determinada eleição. Estas querem representar as restrições concernentes a desincompatibilização de servidor para concorrer a algum cargo eletivo, por exemplo. Ele será inelegível para concorrer em determinado local, no caso onde exerce o cargo público, porém essa inelegibilidade não o acompanhará por todo o território nacional, pois não é inerente a sua pessoa e sim ao cargo que exerce.

Ramayana (2011 p. 298) ainda faz uma classificação pormenorizada de suas espécies, como mostrar-se-á a seguir:

A primeira classificação elaborada por ele diz respeito as consideradas inelegibilidades inatas, que, segundo o autor, decorrem da ausência de alguma condição de elegibilidade. Essa classificação é muito criticada pela doutrina, uma vez que, conforme já exposto acima, inelegibilidade não se confunde com elegibilidade e esta classificação permite essa interpretação.

A segunda classificação se refere a inelegibilidade cominada, que nada mais é do que a restrição como forma de sanção devido a determinados fatos praticados, revestidos de ilicitude eleitoral.

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Ainda, tem-se a inelegibilidade conhecida como nacional,que nada mais é do que aquela que diz respeito as eleições para os cargos de Presidente e Vice-presidente da República. Essa classificação determina que quem não tiver circunscrição eleitoral em território brasileiro não pode postular o exercício destes cargos.

A inelegibilidade estadual quer ter o mesmo significado da inelegibilidade nacional, o que as difere porém, é o âmbito de incidência, que nesta quer representar a circunscrição eleitoral em território estadual para poder candidatar-se aos cargos de governador e vice governador de estado, bem como aos cargos de deputados estaduais e federais. Pode-se fazer, também, relação entre as duas últimas classificações de inelegibilidades apresentadas com a inelegibilidade municipal, onde o âmbito de vigência é ainda mais restrito, ocorrendo somente dentro da circunscrição eleitoral do município e, incidindo somente para os candidatos que postulam o exercício dos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador.

Por último, há ainda a inelegibilidade reflexa, que nada mais é do que a aplicação do princípio da contaminação de cônjuge, parentes, consangüíneos e afins, até o segundo grau. Essa inelegibilidade não decorre do art. 14, parágrafo 7o da Constituição Federal. Tem a finalidade de evitar o uso da máquina do governo, já que há a possibilidade de que ela influencie candidatos que tenham laços consangüíneos com o ocupantes de cargo público.

Depreende-se desta classificação que algumas divisões acabam por ser redundantes. Isso se deve ao fato de que este instituto pretende alcançar todas as condutas que se consideram reprováveis por qualquer pessoa que vá exercer mandato político, porém estes motivos muitas vezes não se encontram isolados, pois vive-se em um meio social. Com isso algumas vezes ocorrerá hipóteses onde uma conduta poderá ser encaixada em mais de uma hipótese. É o que ocorre, por exemplo, com a causa do artigo 1o, inciso I da lei das inelegibilidades que se encaixa em mais de uma classificação doutrinária.

AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LC 135/2010

Alguma reforma na LC 64/1990 era pretendida desde o advento da Emenda Constitucional de revisão número 04 de 1994. Tal emenda modificou o artigo 14 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, parágrafo 9o, incluindo a possibilidade de se considerar a vida pregressa da pessoa como forma de requisito para o exercício da atividade política, prestigiando desta forma, a moralidade e a probidade administrativa. Ela possibilitava a criação de maiores restrições às candidaturas entretanto, ainda precisava de norma que a regulasse.

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Em 2008 houve a propositura e julgamento da ADPF 144, proposta pela AMB – Associação dos Magistrados do Brasil - sobre a possibilidade de se considerar a vida pregressa do candidato para o pretenso registro de candidatura. O que se discutia em tal argüição era se os juízes poderiam levar em conta a existência de processos judiciais ainda em curso, principalmente os criminais, no exame da capacidade eleitoral passiva no momento do registro da sua candidatura. A decisão do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que não seria possível tal exame, pois não se podia definir como critério de inelegibilidade a mera instauração de processos judiciais. Naquela época ficou decidido que somente seriam relevantes as decisões condenatórias criminais com trânsito em julgado.

Com o “fracasso” da citada ADPF, a AMB (Associação dos Magistrados do Brasil), juntamente com a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), com o MCCE (Movimento Contra Corrupção Eleitoral) e demais entidades, iniciou um projeto para que a lei da ficha suja (primeira nomenclatura a ser usada) chegasse à votação nas casas legislativas.

Após conseguir que o projeto de lei popular fosse enviado ao Congresso Nacional, iniciou-se o movimento para que tais normas tivessem a aprovação do Congresso Nacional e fossem sancionadas pelo Presidente da República.

Devido ao grande empenho da população, que exigiram de seus representantes a aprovação da lei, tal projeto foi finalmente convertido em lei em 2010, fazendo com que ao que se fizera parecer a época, fosse encerrada a discussão e a lei da ficha limpa fosse finalmente ser aplicada. No entanto, logo após a sua entrada em vigor, surgiram várias discussões sobre a constitucionalidade de tal lei.

As alterações e inclusões feitas pela LC 135/2010 geraram tanta repercussão pois, além de refletirem uma vontade do povo brasileiro, restringiram significativamente as pessoas que podem se candidatar, além de tornar as penas aplicadas a estes indivíduos muito mais rígidas. Tais alterações suscitaram consultas e questionamentos nos Tribunais já no ano de 2010, uma vez que apesar de estar em vigor, não se sabia se ela poderia ser aplicada já nas eleições daquele ano, em virtude do princípio da anualidade que rege as normas eleitorais, disposto no art. 16 da Constituição da República.

O Tribunal Superior Eleitoral, como forma de solucionar estes problemas, uniformizar o entendimento e também para acalmar os ânimos da população, decidiu por maioria, em consulta feita por Arthur Virgílio, que tais alterações não precisariam respeitar o disposto no artigo 16 da CF, uma vez que ela (a lei) fora aprovada antes de se iniciar o processo eleitoral, por isso não haveria a necessidade de esperar um ano da sua vigência. Único voto discordante, Ministro Marco Aurélio, por sua vez entendeu que naquele momento o processo

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eleitoral estava já em curso, não podendo deste modo, se permitir a incidência de tais alterações.

Apesar da decisão do TSE que permitia a aplicação da nova lei já para o ano de 2010, o Supremo Tribunal Federal, em votação apertada, na decisão de Recurso Extraordinário, decidiu que a LC não poderia ser aplicada. Entenderam os ministros, naquela ocasião, que tal aplicabilidade seria afronta à CF e ao já supracitado art. 16. Por conta dessa decisão, ficou autorizado aos ministros que aplicassem monocraticamente o entendimento adotado naquele julgamento, ou seja, os ministros poderiam optar pela incidência da lei da ficha limpa ou pela sua inaplicabilidade por afronta ao art. 16 da CF.

Apesar de realizar grandes e importantes alterações, a lei da ficha limpa não foi a pioneira em considerar a vida pregressa do candidato como requisito a candidatura. A lei no 05 de 1970, fruto das atividades legislativas da época ditatorial brasileira, já previa na alínea “n” que os condenados por decisão judicial proferidas em processos movidos com o intuito de proporcionar a investigação de crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, seriam considerados inelegíveis. Esta mesma alínea, assim como a LC 135/2010, também previa que eram inelegíveis aquelas pessoas que respondessem a processos judiciais e que ainda não haviam sido condenadas. Ou seja, essa alínea já previa a hipótese de se mitigar o princípio da presunção de inocência em favor da preservação da moralidade na administração pública. Tal alínea foi revogada pelo próprio regime militar, conforme redação do artigo 1o da lei complementar no 42 de 1982, que passou a exigir o trânsito em julgado a condenação para se encaixar em causa de inelegibilidade.

Após esta lei de 1970, somente a LC 135/2010 voltou a introduzir mudanças que geraram tamanha repercussão no âmbito das inelegibilidades. Essas leis, no entanto, foram alvos de grande comoção pelo momento que fez com que elas surgissem. Tamanha repercussão decorrente daquela lei (no 5/1970) se deveu ao fato de ter sido incluída pelo governo militar, momento em que não havia democracia no Brasil. Já a repercussão gerada pelas alterações introduzidas pela LC 135/2010 se deve ao fato ser decorrente de mobilização popular e por ir contra a Constituição Federal de 1988, que é de natureza democrática.

Uma das mudanças decorrentes da nova lei de inelegibilidades foi a majoração das penalidades advindas de atos que ensejem a decretação da inelegibilidade. Antigamente, na vigência da LC 64/1990, as penas variavam de 3 a 5 anos. Atualmente, com a entrada em vigor da lei da ficha limpa esse prazo passou a ser de 8 anos para todas as infrações. Como exemplo, pode- se citar o art. 1o, I, alínea “b” que previa penalidade de 3 anos para os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas Estaduais e

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para os membros das Câmaras Municipais que tivessem perdido mandato em decorrência de infringência dos dispositivos dos incisos I e II do art. 55 da CF ou de normas equivalentes contidas nas Constituições Estaduais e na Lei Orgânica do Município. Com o advento da nova lei, o prazo de inelegibilidade passou a ser de 8 anos.

Tal mudança gerou repercussão pois, segundo alguns doutrinadores, tal majoração infringe o princípio da razoabilidade, uma vez que em algumas hipóteses a inelegibilidade começará a contar a partir do transcurso da pena e ultrapassará o prazo da condenação criminal. Assim é o posicionamento do Ministro Luiz Fux

A extensão da inelegibilidade para além da duração dos efeitos da condenação criminal efetivamente fazia sentido na conformação legal que somente permitia a imposição da inelegibilidade nos casos de condenações transitadas em julgado. Agora, admitindo-se a inelegibilidade já desde as condenações não definitivas – contanto que prolatadas por órgão colegiado –, essa extensão pode ser excessiva. (Brasil, Supremo Tribunal Federal 2012)

Ainda, segundo o Ministro, em tal cumulação

não há inconstitucionalidade, de per se, na cumulação da inelegibilidade com a suspensão de direitos políticos, mas a admissibilidade de uma cumulação da inelegibilidade anterior ao trânsito em julgado com a suspensão dos direitos políticos decorrente da condenação definitiva e novos oito anos de inelegibilidade decerto afronta a proibição do excesso consagrada pela Constituição Federal. (Brasil, Supremo Tribunal Federal 2012)

Outra discussão trazida à debate com a vigência da nova lei que trata das inelegibilidades foi a possibilidade dessas novas normas alcançarem fatos pretéritos. Segundo o voto proferido na decisão das Ações Diretas de Constitucionalidade no 29 e 30 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.578, já citadas acima, o Min. Relator Luiz Fux entendeu que tais alterações poderão ser aplicadas aos casos já julgados. Ou seja, se uma pessoa foi considerada inelegível por 3 anos em decorrência de prática de ato disposto na alínea b, I, do art. 1o da LC 64/1990, a partir da entrada em vigor da nova norma ela será considerada inelegível por mais 5 anos – já que a LC 135/2010 majorou tal inelegibilidade de 3 para 8 anos - mesmo que os mencionados três anos já tenham transcorrido.

Pela posição adotada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, inelegibilidade não é pena e portanto, não pode ser aplicada a norma

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disposta no inciso XL, do art. 5o, da Constituição Federal que dispõe sobre a irretroatividade da lei penal. Também se permite a retroatividade destas normas pois, a inelegibilidade não é considerada como um direito adquirido pelos ministros.

Importante ressaltar também que embasados por esses posicionamentos, os ministros consideraram que não haverá retroatividade da lei nova e sim retrospectividade. Tal retrospectividade ou irretroatividade inautêntica permite que os efeitos de uma ação perdurem no tempo. Sendo permitido, por isso, a sua aplicação a fatos já julgados anteriormente.

Segundo o Ministro Fux (Brasil, Supremo Tribunal Federal 2012) não é razoável a expectativa de candidatura de individuo que já tenha sido condenado à inelegibilidade, por isso não há que se falar em óbice a segurança jurídica. Também porque nestas hipóteses não haverá violação a coisa julgada nem a sua respectiva desconstituição.

Em contraponto à posição do relator, o Ministro Gilmar Mendes, ao proferir seu voto no julgamento das ADCS e ADI citada acima, defendeu que a hipótese de retrospectividade da lex nova comentada por Fux, se trata, verdadeiramente de retroatividade da lei – ainda que mínima – e votou pela proibição da retroatividade. Uma das justificativas do Ministro para não aceitar a retroatividade lei, além da disposta na Constituição Federal, se refere a suposta criação de normas para alcançar destinatários conhecidos e o desrespeito que tal aplicação trará aos princípios do constitucionalismo:

Não tenho dúvida, portanto, de que a LC 135/2010, nas hipóteses em que apanha fatos passados para atribuir-lhes efeitos nos processos eleitorais futuros, viola o princípio da irretroatividade da lei. (Brasil, Supremo Tribunal Federal 2012) Jurisprudencialmente, desde 2010 a Corte do Tribunal Superior Eleitoral

têm considerado a retroatividade da lei para atingir casos anteriores a sua vigência. O Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, segue esta posição majoritária

Ementa: recurso eleitoral – registro de candidatura – eleições 2012 – aplicabilidade integral da lei complementar no 135/2010, inclusive aos casos em que o acórdão que reconheça o abuso do poder econômico tenha transitado em julgado antes da vigência da lei – constitucionalidade decarada pelo stf em sede de controle abstrato de constitucionalidade – efeito vinculante – incidência do art. 1O, inciso i, alínea d, da lc 64/90 – prazo de inelegibilidade de 8 anos – recurso desprovido. (Brasil, tribunal superior eleitoral, 2012)

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Ademais dessas normas já permitirem discussão somente pelo falo de abrangerem novas causas de inelegibilidade, a grande discussão e inovação decorrente dessa legislação se deu pela inclusão da frase “proferida por órgão judicial colegiado”.

Tais normas não exigem a necessidade de condenação definitiva com trânsito em julgado para a incidência de tais causas de inelegibilidade. Tais dispositivos estão elencados no artigo 2o da Lei Complementar 135/2010, alíneas ‘d’, ‘e’, ‘h’, ‘j’, ‘l’, ‘n’, e ‘p’. De acordo com estas alterações, basta que a pessoa tenha uma condenação proferida por órgão colegiado para que ela seja considerada inelegível.

Esse é o cerne de boa parte de toda a discussão que envolve a LC 135/2010. É possível, ou ainda, é constitucional uma norma infraconstitucional vigente

incluir novos dispositivos à lei e estar, a primeiro olhar, claramente contraposta ao que dispõe a Constituição Federal da República Federativa do Brasil?

Aqui, refere-se ao princípio da presunção de inocência, encontrado no artigo 5o, inciso LVII, da Constituição Federal.

O entendimento jurisprudencial adotado pelas cortes superiores durante muito tempo foi que esse princípio abrangeria o âmbito civil das condenações, uma vez que se trata de garantia constitucional.

Segundo julgados do Supremo Tribunal Federal, tal princípio se irradia, transmite sua aplicação as outras seções do direito pois trata-se de norma sancionatória, mesmo que não tenha caráter de pena.

O Tribunal Superior Eleitoral, anteriormente à entrada em vigor da LC 135/2010, também aplicava o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade nos casos de improbidade administrativa.

Contudo, após o seu advento tal aplicabilidade ficou restrita a alguns posicionamentos isolados

O Supremo Tribunal Federal – que já havia decidido pela inconstitucionalidade da ADPF 144 e pela plena aplicabilidade de tal pressuposto – assim como o TSE, começou a olhar a questão por outro viés. Somente alguns ministros mantiveram suas posições sobre a necessidade do trânsito em julgado para a proteção do estado de inocência.

Diante dos posicionamentos apresentados acima, fica clara a mudança de paradigma advindas com essas novas normas, portanto, nasce a pertinência para o exame da constitucionalidade de tais hipóteses.

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Os princípios constitucionais são os alicerces e os guardiões de uma Constituição. Existem para proteger os direitos dos cidadãos e limitar o poder punitivo do Estado.

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Devido a isso, qualquer norma infraconstitucional deve se moldar para respeitar tais princípios. As alterações introduzidas pela LC 135/2010 geraram tanta repercussão pois, em algumas hipóteses, elas poderão violar os princípios da irretroatividade das leis, da segurança jurídica, da presunção de inocência e da proporcionalidade.

Com o julgamento da constitucionalidade da LC 135/2010, sobreveio a discussão se a possibilidade dessa lei abranger fatos pretéritos acarretaria em afronta ao princípio da segurança jurídica e da irretroatividade da lei.

O Ministro Luiz Fux, relator do processo entendeu a época que não houve afronta à Constituição uma vez que a lei não retroagiria para atacar fatos pretéritos. O que aconteceria é a chamada retrospectividade.

A aplicabilidade da Lei Complementar n.º 135/10 a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos. A situação jurídica do indivíduo condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo – estabeleceu-se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no tempo. Esta, portanto, a primeira consideração importante: ainda que se considere haver atribuição de ADC 29/ ADC 30/ ADI 4578 4 efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida-se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta Corte. (Brasil, Supremo Tribunal Federal, 2012)

Em posição contrária, o Ministro Gilmar Mendes defendeu que em alguns casos específicos, aconteceria a retroatividade e não a retrospectividade. Nessas hipóteses, a lei não poderá retroagir para alcançar fatos pretéritos, uma vez que estaria infringindo o dispositivo constitucional. Para elucidar a questão, o ministro expõe que as mazelas do judiciário não podem sacrificar as garantias constitucionais dos cidadãos. Por fim, o ministro defende que a celeridade processual e a razoável duração do processo, de modo que garantirá os mesmos fins almejados, sem infringir a Carta Magna:

Em suma, a condição intransponível do trânsito em julgado de decisão colegiada condenatória para a suspensão dos direitos políticos não tisna o Estado Democrático de direito, ao contrário, consagra a segurança jurídica como seu fundamento estruturante.(Brasil, Supremo Tribunal Federal, 2012).

A posição majoritária entende que não haverá afronta ao princípio da irretroatividade e da segurança jurídica, entretanto, no exame do caso concreto poderá haver hipóteses em que a retroatividade aconteça.

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A presunção de inocência, por sua vez, é um dos princípios basilares do regime democrático e do Estado de Direito. A doutrina o considera que “há a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal” (MORAES, 2010, p. 125). Devido a isso, o Supremo Tribunal Federal sempre o invocava nos momentos em que poderia haver indícios de afronta aos direitos individuais de cada individuo, mesmo que a decisão não tivesse cunho penal.

Contudo, com o advento das novas normas de inelegibilidades, o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Estaduais passaram a restringir a aplicação desse princípio. A doutrina também segue tal posicionamento de que tal princípio não deva ser aplicado ao direito eleitoral, em específico.

Um dos argumentos mais utilizados é o de que a presunção de inocência – disposta no artigo 5o, inciso LVII – possui tanta aplicabilidade quanto o artigo 14, parágrafo 9o da Constituição, conhecido como princípio da moralidade pública, que determina que seja considerada a vida pregressa do candidato para a averiguação da elegibilidade. Esse seria o dispositivo legal que torna constitucional a lei da ficha limpa.

Rodrigo López Zilio é adepto dessa corrente. Segundo este autor, é lógico concluir que:

a não-culpabilidade do Direito Penal não deve ser transportada para o Direito Eleitoral, porquanto o legislador, no uso de sua prerrogativa assegurada pela Constituição Federal, entendeu que a proteção da probidade e da moralidade administrativa somente resta concretizada se não houver contra o pretenso candidato, em determinadas hipóteses exaustivamente catalogadas no novo diploma normativo, condenação definitiva ou por órgão colegiado. O legislador, em verdade, traçou distinção e reconheceu a autonomia entre a categoria dos direitos políticos – que servem à coletividade e os direitos individuais – que protegem o interesse do titular. (Zilio, 2012 p. 183)

Ainda, há a justificativa que a presunção de inocência não possui caráter punitivo. Esta é a justificativa mais utilizada pelos adeptos na defesa da constitucionalidade das normas proferidas por órgão colegiado e que acarretam em inelegibilidade.Para eles, tais inelegibilidades dispostas nos artigos dessa lei não podem ser consideradas pena, apesar de decorrerem de ação ou omissão que ensejem em processo e conseqüente condenação.

Sabe-se que a pena é uma sanção imposta pelo Estado ao infrator de uma contravenção penal, porém ela possui requisitos que devem ser comentados. Cezar Roberto Bitencourt expõe que “ainda que se reconheçam fins preventivos

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– gerais ou especiais – para a doutrina tradicional, a pena é concebida como um mal que deve ser imposto ao autor de um delito para que expie sua culpa. Isso não é outra coisa que a concepção retributiva de pena” (BITENCOURT, 2007, p. 81).

Necessariamente, para que incida a pena o individuo deve ter cometido ato ilícito e tal punição deve ser cominada com base nas características pessoais do individuo bem como as do crime cometido, de modo que se deve averiguar, ao longo do processo, a gravidade do fato cometido, os meios para atingir os resultados, os antecedentes do infrator, a sua possível periculosidade dentre outros.

Ainda, a pena deve ser individualizada – em respeito ao art. 5o, XLVI da Constituição Federal e respeitar os todos os requisitos do art. 59 do Código Penal, que compreendem a culpabilidade, à conduta social, à personalidade do infrator, os motivos, as conseqüências do crime, bem como o comportamento da vitima, além de outro dois requisitos citados anteriormente. São eles; os antecedentes e a circunstâncias do crime.

A partir desses requisitos é que se começa a distanciar os institutos da pena e da inelegibilidade.

O primeiro ponto a ser levado em conta é a de que para a aplicação da pena o individuo deve, obrigatoriamente, ter cometido algum ato ilícito disposto nos artigos da parte especial do Código Penal. Entretanto, para que o cidadão seja inelegível, não precisa, necessariamente, ter cometido ato ilícito disposto na Lei de Inelegibilidades. Isso se dá por um único motivo: esta lei não prevê apenas a punição pelo cometimento de atos ilícitos. Em alguns casos o mero exercício de direito poderá resultar em inelegibilidade. Como exemplo, pode-se citar os incisos “k” e “q” do artigo 2o da LC 135/2010.

As duas hipóteses de inelegibilidade não tratam de atos ilícitos cometidos, tratam simplesmente do exercício de um direito que acarretará em inelegibilidade, seja pelo exercício do direito de renúncia seja pelo exercício de exoneração. Devido a isso, não se pode considerar o instituto da inelegibilidade como pena, pois não houve a subsunção do fato a norma considerada ilícita pelo legislador para que o indivíduo se torne inelegível.

E, em relação aos incisos que tratam a inelegibilidade como conseqüência a ser imposta a quem comete os atos ilícitos estabelecidos naquela lei? Estas hipóteses podem ser consideradas equivalentes a aplicação da pena? A título de exemplificação, pode-se citar os incisos ”d” e “e” do at. 2o, da LC 135/2010. Segundo Rodrigo Tenório (TENÓRIO, 2012) a resposta é não. Tais conseqüências, incutidas a essas pessoas, criminosas – no sentido em que os exemplos tratam de crimes -, não são consideradas penas pois a legislação não determinou a elas nenhum tratamento especial. Por tratamento especial pode-se compreender como a individualização da pena. Como já exposto, para a aplicação da pena deve-se considerar todos os requisitos do artigo 59 do Código

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Penal e do inciso XLVI do art. 5o da Constituição Federal. Isso não ocorre na aplicação da inelegibilidade uma vez que o período a sanção, em todos os casos e hipóteses da lei, será de 8 anos. Ou seja, não há uma dosimetria, por assim dizer, do período de inelegibilidade conforme a infração cometida.

A inelegibilidade acaba sendo considerada como um efeito secundário da condenação, assim como a inclusão do nome do condenado no rol dos culpados, a revogação do sursis, a caracterização da reincidência caso haja crime posterior, a revogação da reabilitação e a interrupção a prescrição executória quando houver reincidência.

Marcus Vinicius Furtado Coêlho é adepto à esse posicionamento e entende que a inelegibilidade não se confunde com pena, pois o mandato exercido não se trata de propriedade privada ou beneficiamento individual, na verdade, se trata de um ônus. (COÊLHO, 2010, p. 55)

Juntamente com os posicionamentos apresentados acima, encontra-se boa parte das orientações jurisprudenciais. O Tribunal Superior Eleitoral, em consulta realizada no ano de 2010 já decidiu pela diferenciação de ambos institutos, desconsiderando a natureza sancionatória da inelegibilidade.

Realmente, não há , a meu ver, como se ver a inelegibilidade como pena ou sanção em si mesma, na medida em que a ela se aplica a determinadas categorias, por exemplo, a de juízes, ou a de integrantes do Ministério Público, não porque elas devam sofrer essa pena, mas, sim, porque o legislador os incluiu na categoria daqueles que podem exercer certo grau de influência no eleitorado. Daí, inclusive, a necessidade de prévio afastamento definitivo das funções.[...] A inelegibilidade , assim como a falta de qualquer condição de elegibilidade, nada mais é do que uma restrição temporária à possibilidade de qualquer pessoa se candidatar, ou melhor, de exercer algum mandato. Isso pode ocorrer por qualquer influência no eleitorado, ou por sua condição pessoal, ou pela categoria a que pertença, ou ainda, por incidir em qualquer outra causa de inelegibilidade. (Brasil, Superior Tribunal Eleitoral, 2010)

Entretanto, Adriano Soares da Costa vai na contramão de todos esses doutrinadores e defende o posicionamento que, sim, a inelegibilidade é pena. Segundo o autor, a teoria geral do direito somente permite um efeito para o cometimento de fatos ilícitos e tal efeito é a sanção imposta pelo estado. Portanto, para ele, a prática de abuso de poder político aplica-se a sanção de inelegibilidade. É a diferença entre a licitude ou a ilicitude do ato jurídico ensejará em inelegibilidade. Ainda, segundo o autor, afirma que inelegibilidade não é pena é proposição ad hoc. (COSTA, 2012)

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Este doutrinador defende o pensamento de que as inelegibilidades decorrentes da prática de fatos ilícitos têm caráter sancionatório, pois não versa sobre mero requisito disposto na Constituição e em leis infraconstitucionais. São consequências advindas da prática de ato ilícito. Ou seja, é uma punição pelo cometimento de infração.

Corroborando tal pensamento, têm-se o voto do Ministro Gilmar Mendes proferido na ocasião do julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade no 29 e 30 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4578, que discutiam justamente a constitucionalidade dessas normas.

Em suma, a suspensão dos direitos políticos não é prevista pela Constituição como medida acautelatória, mas sim como sanção. Portanto, observada sua natureza penalizadora, para se impingir a suspensão dos direitos políticos ao réu da ação civil por improbidade, é necessário um juízo de certeza, existente apenas após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Ou melhor, é necessário que a condição de réu se convole em de condenado, condição esta que pode ser aceita, somente, de forma imutável. É inadmissível que o processado sofra efeitos de uma sanção, na condição de “condenado provisório” ou de “condenado em segunda instância”, sob pena de se converter o princípio da presunção de não culpabilidade em princípio da presunção de culpabilidade.(Brasil, Supremo Tribunal Federal, 2012)

Diante do exposto, parece correto chegar a conclusão de que a inelegibilidade pode até não cumprir com os requisitos inerentes do instituto da pena (tais como os antecedentes, a conduta social do infrator, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias do fato e as conseqüências do crime), entretanto, verifica-se que a inelegibilidade decorrente do cometimento de atos ilícitos é uma espécie de sanção ao individuo infrator.

Com isso, verifica-se que aplicação da inelegibilidade em momento anterior ao trânsito em julgado do processo, somente com a condenação proferida por órgão colegiado, afrontará o princípio da presunção de inocência, ao da irretroatividade da lei e o da segurança jurídica, pois considera-se o instituto das inelegibilidades como uma exceção e não a regra.

Como tal, ela deve ser aplicada com responsabilidade e cuidado para que os reais propósitos do estado democrático de direito e do estado constitucional sejam efetivamente aplicados sem que haja desrespeito aos direitos individuais dos cidadãos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve o objetivo de discutir os pontos controversos acerca das alterações introduzidas pela LC 135/2010 na LC 64/1990, que dispõe sobre o regime concedido ao estatuto jurídico das inelegibilidades.

Este instituto está previsto na Constituição Federal, artigo 14, e dispõe sobre os casos de inelegibilidade. Ainda, esse artigo regulamenta que leis complementares virão para determinar outras hipóteses de inelegibilidade, prestigiando a moralidade e probidade administrativa, podendo, para isso, considerar a vida pregressa do candidato. Este dispositivo constitucional é o fundamento jurídico da LC 135/2010 bem como o das leis de inelegibilidades anteriores.

Cumpre salientar que a inelegibilidade não quer representar a condição de pessoa que não seja elegível. Como demonstrado, a inelegibilidade e a elegibilidade são estatutos diferentes, possuindo requisitos diversos. Uma pessoa que é elegível não é necessariamente inelegível, pois não se trata uma de condição negativa da outra. São elegíveis todas as pessoas que preencham, obrigatoriamente, as condições dispostas na Constituição Federal, tais como: nacionalidade brasileira, pleno exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicilio eleitoral, filiação partidária e idade mínima. Ou ainda as previstas em norma infraconstitucional, como a elegibilidade dos militares prevista pelo Código Eleitoral. Além de preencher os pressupostos acima elencados tal pessoa não pode incidir em nenhuma das hipóteses de inelegibilidade determinadas pela Constituição Federal e pela Lei Complementar 135/2010.

Como demonstrado, o grande diferencial desta lei complementar para as anteriores é a de que esta foi fruto de grande mobilização popular, chegando ao legislativo pelas vias do projeto de lei popular. Ademais, ela trouxe substanciais modificações às inelegibilidades. Dentre as mais relevantes está o aumento do prazo de inelegibilidade para 8 anos – na lei anterior variava de 3 a 5 anos -, a inclusão de novas hipóteses que causarão inelegibilidade, a aplicação retroativa da lei e a desnecessidade do trânsito em julgado para a decretação da inelegibilidade. Esta última modificação é a que causou mais divergências entre a jurisprudência e doutrina, uma vez que determina que decisão proferida por órgão colegiado determina desde logo a inelegibilidade, mesmo que a decisão seja passível de recurso.

Foi demonstrado também o possível confronto destas decisões com o princípio da presunção de inocência, da segurança jurídica, da irretroatividade e proporcionalidade. Ou seja, foi discutido se essa lei vestiria os trajes da inconstitucionalidade.

Procurou-se demonstrar, também, que nem toda inelegibilidade pode ser considerada pena, porém as chamadas inelegibilidades cominadas possuem, sim, caráter sancionador.

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Em relação à constitucionalidade ou inconstitucionalidade destas normas, introduzidas pela lei da ficha limpa, considera-se que houve um depreciamento do princípio da presunção de inocência e da segurança jurídica em face do princípio da moralidade, devido ao grande anseio da população brasileira em busca de moralidade na política nacional. Tal raciocínio de se dá pelo exames dos julgados mais atuais feito pelos Tribunais sobre a matéria. É gritante a diferença de posicionamento da Corte Suprema no ano de 2008 – quando foi julgada a ADPF 144 - para o ano de 2010, quando foi aprovada a lei da ficha limpa.

Contudo, não parece correto os meios utilizados para se chegar a esse fim (a busca por moralidade). A melhor saída seria buscar um judiciário mais célere para que o processo tivesse uma razoável duração, sem a necessidade de correr o risco de infringir os princípios constitucionais da presunção de inocência e da segurança jurídica.

Concluindo, entende-se que mesmo que esta lei seja considerada constitucional, haveria de haver uma melhor aplicação do princípio da proporcionalidade, pois ele possibilitaria uma melhor adequação da lei ao caso concreto, uma vez que desta maneira como ela se apresenta, pode haver possibilidades de ela se portar como se inconstitucional fosse.

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REFERÊNCIAS

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RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: UMA RELEITURA DIANTE DA

PÓS-MODERNIDADE E ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

arioSto tEixEira nEto

Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA-PR. Especialista em Ministério Público. Advogado.

EmanuEl FErnanDo caStElli ribaS

Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA-PR. Especialista em Direito Tributário Contemporâneo pelo

UNICURITIBA. Professor do Instituto de Ensino Superior de Londrina. Advogado.

SUMÁRIO: I. Introdução. II. Delimitação do tema e princípio da autonomia patrimonial. III. Desconsideração da personalidade jurídica. III.1. Breve histórico e introdução na doutrina brasileira. III.2. Conceituação - teoria Maior e teoria Menor IV. Desconsideração da personalidade jurídica e responsabilização dos sócios. V. Análise da legislação brasileira V.1. Código Tributário Nacional. V.2. Consolidação das Leis Trabalhistas. V.3. Lei de Sociedades Anônimas. V.4. Código de Defesa do Consumidor. VI. Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

Historicamente, as empresas surgiram como meio para oficializar união de esforços e patrimônio de pessoas físicas para exercer uma determinada atividade e, especialmente, para não confundir os bens dos sócios com os da empresa (princípio da autonomia patrimonial80), levando a conclusão lógica que a sociedade empresária seria a gestora dos bens que lhe pertenciam e responsável pelos seus próprios atos, em especial para a atual sociedade limitada.

Assim, não é de se estranhar a dificuldade em responsabilização dos sócios de uma sociedade de responsabilidade limitada por atos cometidos supostamente em nome da empresa, tendo em vista que se trata literalmente de uma afronta a própria existência da sociedade empresária e seu objetivo principal.

O quadro evolutivo desse instituto de responsabilização dos sócios recebe maior significância a partir do século XX, quando a lacuna legislativa envolvendo responsabilidade civil da empresa e a possibilidade de responsabilização dos sócios é aventada contra atos cometidos com abuso de poder ou desvio

80 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed. Rev. E atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38-40.

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de finalidade (desconsideração da personalidade jurídica), e mesmo outras exceções em ramos específicos do Direito, como o Direito Tributário, do Trabalho e do Consumidor.

Isso não é uma mera coincidência, haja vista que as conjunturas do pós-guerra até a contemporaneidade são marcadas como um período de mudanças rápidas e profundas, devido ao grande avanço tecnológico e científico, à globalização e diversos outros fatores que facilitaram a atividade empresária e, consequentemente, a criação de novas empresas, de uma forma nunca antes existente na história desse instituto.

Sob o aspecto do avanço científico e tecnológico, cabe lembrar a geração de riscos que deles decorrem, muito bem expostas por Ulrich Beck na obra “Sociedade do Risco”81 onde adverte que riscos podem ser inclusive invisíveis e imperceptíveis, a ponto da própria técnica científica não ser capaz de reconhecê-los, mas são inegáveis a sua existência e seus efeitos.

Diante disso, a criação desses riscos são realizados pelos mais diversos atores, nas mais diversas situações, inclusive inúmeras vezes de acordo com a legislação vigente, sem nem ao menos haver um ato ilícito tanto civilmente ou penalmente, mas que geram danos a outrem e, por conseqüência, devem ser verificadas a responsabilização pelos danos e, eventualmente por esses riscos.

Nesse contexto, as sociedades empresarias são um desses agentes criadores de riscos e com essa nova visão da sociedade do risco, deve-se verificar se o princípio da incomunicabilidade entre os bens da empresa e dos sócios continua absoluto, se haveriam exceções e quais seriam elas, e para tanto é necessário analisar a responsabilidade dos sócios e da desconsideração da personalidade jurídica.

No Direito Brasileiro contemporâneo confrontam-se inúmeras determinações legais que possibilitam a responsabilização dos sócios por determinados atos civis e até mesmo atos ilícitos, em que a própria doutrina no âmbito do Direito Penal discute a possibilidade de responsabilização dos sócios por atos praticados por subordinados como v.g. na Teoria do Autor, Teoria do Domínio do Fato e Teoria do Aparato Organizacional.

Já na esfera do Direito Civil, excluindo-se, portanto, as consequências penais dos atos dos sócios e empresariais, deve-se entender o instituto da desconsideração da personalidade jurídica e da responsabilização direta dos sócios, e, principalmente diferenciá-los, pois suas consequências são diversas e necessitam de uma releitura em virtude das mudanças ocorridas na sociedade, em especial, nos últimos vinte anos.

Dito isso, cabe a análise sobre o instituto da responsabilidade dos sócios que é entendido aqui como a responsabilidade do sócio por atos ou obrigações

81 BECK, Ulrich. A Sociedade do Risco: rumo a uma nova modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

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tomados pela empresa ou por seu representante diante de terceiro, importante diferenciar isso metodologicamente de outras responsabilidades dos sócios.

2 DELIMITAÇÃO DO TEMA E PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL

Antes de discorrer sobre o real tema do artigo que é a responsabilidade dos sócios e a desconsideração da personalidade jurídica, deve-se, por questões metodológicas explicitar alguns pontos teóricos importantes.

O primeiro deles é delimitar que ao se falar de “responsabilização dos sócios” no curso desse artigo, está se discorrendo sobre as responsabilidade que os sócios em uma empresa limitada possuam frente a obrigações assumidas pela pessoa jurídica empresarial da qual ele faz parte perante terceiros, presumindo, a princípio, uma relação de boa-fé e nos moldes do ordenamento jurídico.

Dessa forma, não se estará analisando a responsabilidade do sócio para com a sua própria sociedade empresarial ou outros sócios, uma responsabilidade de caráter interno da empresa, que deriva muitas vezes das formas de sociedade empresarial escolhida e com regras específicas dispostas no Código Civil.

Também ao limitar essa responsabilidade dos sócios ao nosso entendimento, não se discorrerá sobre a responsabilidade dos sócios em questões de ingresso ou mesmo em situação falimentar ou de recuperação judicial, que novamente, possuem um regramento específico no Código Civil acerca do tema.

Em suma, ao ser usado o tema “responsabilidade dos sócios” neste artigo pressupõe que seja uma responsabilidade por atos regulares da empresa em um estado de atividade normal, ou seja, sem estar em processo de falência e com seu registro e demais responsabilidades legais em total cumprimento.

Cabe também explicar que não se pode confundir a desconsideração da personalidade jurídica com a despersonificação da pessoa jurídica (invalidação da personalidade societária), vez que esta significa “a suspensão dos efeitos da personificação relativamente a ato específico, a algum período determinado de atividade da sociedade ou ao relacionamento específico entre estes e certas pessoas”82. Outro ponto que merece destaque antes de se falar em desconside-ração da personalidade jurídica e responsabilidade dos sócios é o princípio da autonomia patrimonial da empresa enquanto pessoa jurídica em comparação com os bens dos sócios.

A partir do momento da personificação da sociedade empresarial, o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com os bens dos próprios sócios, ou seja, o patrimônio da pessoa jurídica é dela, respondendo

82 ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF, Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 158.

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ilimitadamente pelo seu passivo83.Seguindo as lições de Rubens Requião acerca do tema:

Partindo das premissas rigidamente estabelecidas pela teoria da personalidade, de que a pessoa do sócios é distinta da pessoa da sociedade, e de que os patrimônios são inconfundíveis – pois apenas ocorre a responsabilidade subsidiária, pessoal, do sócio solidário – não se poderia compreender, dentro dos ditames da lógica, pudessem fatos da sociedade envolver a pessoa física do sócio, ou ao revés, vicissitudes dos sócios comprometer a vida social.84

Dessa forma, resta claro que a personalidade jurídica das empresas resulta na autonomia patrimonial da mesma, em separado do patrimônio dos seus sócios, que é um dos principais objetivos na opção de criação de uma pessoa jurídica para atividade empresária, evitando os riscos da confusão patrimonial, facilitando a confiança no sócios e a execução da atividade, ou seja, é basicamente o objetivo principal da criação de uma “empresa”.

3 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Para facilitação da estrutura do estudo, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser analisada preliminarmente com o objetivo de saber no que ela consiste e posteriormente diferenciar na legislação pátria suas hipóteses e quais seriam casos de responsabilização direta dos sócios.

3.1 BREVE HISTÓRICO E INTRODUÇÃO NA DOUTRINA BRASILEIRA

A origem das noções da desconsideração da personalidade jurídica datam do final do séc. XIX, início do séc. XX no Direito Americano, com primeira decisão judicial acerca do tema na jurisprudência britânico, ao serem decididos casos concretos em que um dos sócios se valeu dos créditos da pessoa jurídica enquanto saldava suas dívidas pessoais de modo fraudulento85.

Contudo, foi na Itália e Alemanha que desenvolveram a teoria com contornos mais definidos durante a primeira metade do século XX86, destaque

83 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol.1: 23ª ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 353.84 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol.1: 23ª ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 348.85 ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF, Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 159.86 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol.1: 23ª ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 350.

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dado ao doutrinador alemão Rolf Serick no aperfeiçoamento do instituto87, chegando ao Brasil pelos escritos de Rubens Requião88, no final dos anos 1960, com destaque para o desenvolvimento da teoria na obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira89.

Cabe ressaltar que toda essa construção doutrinária tanto na origem do instituto como no desenvolvimento do direito alienígena fundou-se na existência de fraude ou abuso de direito, possuindo como principal finalidade a superação da personalidade jurídica empresarial para responsabilização dos sócios que se utilizavam da mesma para cometer atos ilícitos ou ilegais.

3.2 CONCEITUAÇÃO - TEORIA MAIOR E TEORIA MENOR

Fabio Ulhoa Coelho destaca que “a sociedade empresária, em razão de sua natureza de pessoa jurídica, isto é, de sujeito de direito autônomo em relação aos seus sócios, pode ser utilizada como instrumento na realização de fraude ou abuso de direito”90.

Para impedir isso, foi criada a desconsideração da personalidade jurídica que é um instrumento, nas palavras de Vaneska de Araújo, que “possibilita ao Judiciário tornar ineficaz, em um caso concreto e particular, a estrutura formal de uma pessoa jurídica”91.

Nos dias atuais, a doutrina acerca do assunto está tão avançada que é aceita sem maiores problemas a desconsideração da personalidade jurídica inversa, ou seja, “trata-se da persecução do mesmo fim, pela via inversa, ou seja, combater o mau uso do arcabouço da pessoa jurídica para fins de alcance do patrimônio pessoal do sócio, integralizados na pessoa jurídica, para fins de macular interesse de credores de dívidas pessoais”92.

Assim, na doutrina nacional, a desconsideração da personalidade jurídica

87 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 37.88 ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF, Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 159.89 OLIVEIRA, J. Lamartine Corrêa de. A Dupla Crise da Pessoa Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 608.90 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 35.91 ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF, Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 157.92 HENRIQUE, Gustavo Guimarães. Desconsideração inversa da personalidade jurídica.. In: MARQUES, Jader, e FARIA, Maurício (coord.). Desconsideração da Personalidade Jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. p. 85-95.

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pode ser subdivida em teoria maior e menor, sendo que na primeira basta a comprovação de que houve abuso de direito, desvio de finalidade ou fraude para possibilitar a refutação da responsabilidade da pessoa jurídica e direcioná-la ao(s) sócio(s), enquanto na outra é necessário apenas a inexistência de bens da empresa para satisfazer uma dívida, recaindo sobre a pessoa física dos sócios93.

Interessante notar que a modalidade de abuso de direito na teoria maior é melhor demonstrada pelo art. 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costume”, constituindo uma verdadeira “válvula de escape” para situações em que há dúvida sobre a necessidade de desconsideração da personalidade jurídica.

Um exemplo comum são as dissoluções empresariais sem o devido procedimento administrativo na Junta Comercial para tanto. Não se precisa analisar se houve ou não a intenção dos sócios em dar baixa na empresa de acordo com os termos legais no caso concreto, mas pelo simples fato da lei impor isso como obrigação que não foi cumprida, já caracteriza uma afronta à boa-fé e aos bons costumes. Isso é importante no campo probatório, haja vista a dificuldade muitas vezes da prova de fraude.

Em que pese o respeito com essa divisão da desconsideração da personalidade, não parece adequado considerar a teoria menor como um caso de desconsideração de personalidade jurídica, mas deve ser enquadrado como um caso responsabilidade subsidiária, ou mesmo solidária em alguns casos, dos sócios, autorizada legalmente94.

Ora, se a teoria menor fosse indicada como uma desconsideração da personalidade jurídica, o fato da empresa vir a receber créditos posteriores a decretação da sua desconsideração para determinado fato ou ato deveria ser considerado irrelevante para o pagamento das dívidas elencadas como aptas da teoria menor, algo que não ocorre.

Isso quer dizer que mesmo em casos que a empresa comprove que não possui bens para o pagamento de uma dívida de natureza tributária ou trabalhista, caso ela venha receber crédito posteriormente, esse bem incorporado a empresa pode ser objeto para a quitação da dívida, respeitando-se a ordem de credores.

Também cabe ressaltar que a teoria menor não foi recebida pelo ordenamento jurídico brasileiro, vez que o art. 50 do Código Civil95 que

93 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 36-38.94 ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF, Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 176.95 BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 50: “Em caso de abuso

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estabelece a “cláusula geral” da desconsideração da personalidade jurídica cita apenas o abuso de direito e a fraude como atos passíveis desse instituto.

Tal posicionamento de não considerar a teoria menor tecnicamente como uma desconsideração da personalidade jurídica é também vislumbrada por Fabio Ulhoa Coelho96.

Assim, tendo em vista esse posicionamento de que a desconsideração da personalidade jurídica ocorre apenas em casos de fraude ou abuso de direito, e exatamente, pelo fato de ser um instituto de proteção da pessoa jurídica contra atos indevidamente praticados por seus sócios, será feita uma breve análise de alguns dos artigos mais importantes da legislação brasileira acerca do tema, para se considerar em quais hipóteses ocorre a desconsideração da pessoa jurídica e em quais hipóteses ocorre a responsabilização subsidiária ou mesmo solidária dos sócios por obrigações da pessoa jurídica.

4 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E RESPONSABILIZAÇÃO DOS SÓCIOS

Como visto, o principio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica é a regra no Direito Empresarial e, como consequência, a responsabilidade acerca de atos da pessoa jurídica é dela.

Exceção é feita quando os sócios podem responder subsidiariamente ou solidariamente por obrigações da pessoa jurídica, mas para isso, deve haver lei específica autorizando isso (como nos casos de alguns tipos de sociedades) ou quando houver a desconsideração da personalidade jurídica derivando de atos abusivos de direito ou fraudulentos.

Essa mitigação ao princípio da autonomia patrimonial da sociedade empresária e de seus sócios não é de maneira alguma uma afronta ao instituto da pessoa jurídica ou a qualidade de sócio/empresário97, mas tratam-se de instrumentos para preservação da sociedade empresaria.

Assim, a desconsideração da personalidade jurídica é uma forma de responsabilização dos sócios, ou seja, é um tratamento de gênero e espécie.

Ressalte-se que muito embora as sociedades possam ser vistas como entes ideais providos de proteção da lei nos termos dos artigos 45 e 985 ambos

da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.96 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 47.97 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38.

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do Código Civil98, a realidade é que com o acirramento de crises econômicas e financeiras que se reflete em diversos setores, não tem sido incomum os sócios serem chamados á responsabilidade por atos que desfiguram a sociedade, e portando, remetem-nos para fora do âmbito de proteção da empresa, passando a responder isoladamente.

Prova desse argumento está na análise dos principais artigos da legislação brasileira que tratam do assunto, sendo que em absolutamente todos eles, está se tratando de casos de desconsideração da personalidade jurídica com base na “cláusula geral” do art. 50 do Código Civil99 ou está se fazendo uma exceção legislativa ao princípio da autonomia patrimonial e responsabilizando diretamente, seja subsidiariamente ou solidariamente, os sócios, não havendo possibilidade de cogitar-se aceitação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica.

A importância de considerar tais casos de previsão legal de responsabilidade dos sócios como diferentes da desconsideração da personalidade jurídica está nas consequências diversas e fundamentação diversa de cada instituto.

Nessa responsabilização dos sócios autorizada por lei percebe-se a mitigação da autonomia patrimonial em preferência da qualidade dos créditos a serem pagos, das dívidas oriundas de ramos tão relevantes para o Direito que devem ser recebidos o mais rápido possível, de acordo com os anseios da sociedade em preservar alguns direitos de maneira mais contundente, como o meio ambiente, os direitos trabalhistas, previdenciários e fiscais.

Já na desconsideração, o que fundamenta ela não é a importância do crédito a ser recebido, mas a existência de uma fraude ou um abuso para que o sócio (ou mesmo a pessoa jurídica no caso da desconsideração inversa) obtenham uma vantagem ilícita ou ilegal, escondendo-se atrás da pessoa jurídica.

Vale frisar que na desconsideração da personalidade jurídica não há dissolução ou anulação da sociedade100, mas é desconsiderada a autonomia

98 BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 45: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo”. Art. 985: “A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150)”.99 BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.100 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 43.

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patrimonial em um caso específico, literalmente não importando a diferença entre o patrimônio da pessoa jurídica e pessoa física (podendo existir inclusive confusão patrimonial), enquanto na responsabilização direta dos sócios pela lei, o princípio da autonomia patrimonial é mitigado por força legal, mas continua existindo diferença entre os patrimônios, sendo o foco principal o pagamento da dívida em específico, não importando se pessoa física ou jurídica que o fizeram.

Também é vista essas diferenças nas consequências da aplicação de um ou outro instituto. Enquanto na desconsideração da personalidade jurídica (considerando a teoria maior) é irrelevante se a pessoa jurídica, após a decretação da desconsideração, tem meios para o ressarcimento e reparação do ato ilícito, haja vista que o objetivo é evitar o mau uso dessa pessoa jurídica para proteger outros atos da mesma estirpe, no caso da responsabilização direta dos sócios pela lei, se procura o ressarcimento e resposta mais eficaz aos atos danosos cometidos contra os direitos considerados mais relevantes pelo legislador, dependendo do regramento dado para cada ramo.

Diante disso, ressalta-se o argumento de que a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica deve ser afastada da aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, vez que não existe previsão legislativa alguma de uma “cláusula geral” para sua aplicação, bem como não apenas mitiga o princípio da autonomia patrimonial, mas simplesmente ignora a sua existência.

Em que pese o argumento de que a aplicação da teoria menor ocorre na fase processual da execução e seria mais simples em teoria do que a desconsideração da personalidade jurídica em sua teoria maior101, não se deve acolher tal argumento como legitimador da aplicação genérica dessa teoria, vez que nada impede que o magistrado, em análise a um caso concreto, com o requerimento da parte interessada, ouvido o Ministério Público e com um mínimo probatório de indícios de fraude ou abuso de direito (cita-se exemplo a dissolução da pessoa jurídica de forma irregular), pode determinar a desconsideração da personalidade fundamentado no art. 50 do Código Civil102 e não em uma teoria controversa como a teoria menor.

Aliás, tanto a teoria maior como a menor utilizadas em um processo de execução sem um novo incidente em que os sócios fossem chamados ao processo ou participassem desde o início do processo de conhecimento afetariam

101 ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF, Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 176.102 BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

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princípios constitucionais de ampla defesa103, mas reforça-se, entre a aplicação de uma teoria controversa e sem fundamento legal e outra consolidada e com respaldo legislativo, deve-se optar pela segunda.

De outro lado, a análise em sede de execução processual civil também vai além do objetivo desse estudo pela incidência dos artigos 592 e 596 do Código de Processo Civil104, que expõe os sócios como responsáveis subsidiários da pessoa jurídica, inclusive com direito de regresso contra a empresa, contudo há uma ressalva de tal responsabilização ser de acordo com a legislação vigente, retornando ao ponto da ausência de previsão legal no ordenamento brasileiro da teoria menor.

Mais grave ainda aos princípios processuais constitucionais penais seria o caso de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica com fundamento na teoria menor no âmbito da execução penal de crimes ambientais, e responsabilizar os sócios por crimes ambientais da pessoa jurídica sem que tenham participado de todo o processo penal, importante alerta trazido por Bruna LIMA105.

Estabelecidas as diferenças teóricas entre os institutos mencionados, cabe analisar a legislação brasileira quais são as hipóteses expressas de responsabilização direta dos sócios ou casos de desconsideração da personalidade jurídica.

5 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

5.1 CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

O sistema legal em normas especificas apresenta hipóteses de responsabilidade dos sócios “fora da sociedade”, pelo que irá se verificar algumas situações. Inicialmente o artigo 116, § Único do Código Tributário Nacional (CTN), dispõe:

103 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 57.104 BRASIL. Lei nº 5.869/1973 – Código de Processo Civil. 11 de janeiro de 1973. Art. 592: “Ficam sujeitos à execução os bens: I - do sucessor a título singular, tratando-se de execução fundada em direito real ou obrigação reipersecutória; II - do sócio, nos termos da lei; III - do devedor, quando em poder de terceiros; IV - do cônjuge, nos casos em que os seus bens próprios, reservados ou de sua meação respondem pela dívida; V - alienados ou gravados com ônus real em fraude de execução” Art. 596: “Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade. § 1o Cumpre ao sócio, que alegar o benefício deste artigo, nomear bens da sociedade, sitos na mesma comarca, livres e desembargados, quantos bastem para pagar o débito. § 2o Aplica-se aos casos deste artigo o disposto no parágrafo único do artigo anterior”.105 LIMA, Bruna. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na execução da multa decorrente de crimes ambientais. In: MARQUES, Jader, e FARIA, Maurício (coord.). Desconsideração da Personalidade Jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. p. 13-25.

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Parágrafo único106. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. Tal premissa legal decorre diretamente do fato gerador do tributo, que

não pode ser alterado visando o não pagamento da exação. Para que o fato gerador se subsuma ao fato fenomênico, concreto, determinados requisitos devem estar legalmente previstos.

Na forma do artigo 118 do CTN107, para interpretação do fato gerador tributário deve-se abstrair da validade jurídica dos atos efetivamente praticados (contribuintes, responsáveis ou terceiros) bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos e dos atos efetivamente ocorridos.

Portanto, busca norma tributária a verdade do fato fenomênico, independentemente da denominação ou forma que possa tentar lhe atribuir os sujeitos passivos no sentido de desconstituir a ocorrência do fato gerador. Quando ocorrer, os atos assim praticados, sem o recolhimento do tributo devido (correto) poderão ser objeto de desconsideração para fins tributários, podendo inclusive gerar responsabilidade direta dos sócios com o débito gerado perante o sujeito ativo, conforme previsão da legislação ordinária.

Na mesma esteira, o artigo 124, I também do CTN, visa aplicar a solidariedade passiva muito próxima daquela prevista ao artigo 264108 do Código Civil, quando passa a atribuir a responsabilidade pelo passivo a mais de um devedor:

Art. 124 - São solidariamente obrigadas:I - as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;

Deste modo, pela interpretação literal do texto, os sócios da sociedade empresarial, poderiam ser declarados solidários com todo e qualquer fato de obrigação tributária, vez inequívoco o interesse ou em outras palavras, que

106 Acrescentado pela LC 104/2001107 BRASIL. Lei nº 5.172/1966 – Código Tributário Nacional. Art. 118: “A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos”.108 BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 264: “Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”.

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venham a se beneficiar do não recolhimento do tributo, podem ser por este ato, declaradas solidárias com débito.

Assim, na forma do artigo 124 do CTN, dois são os critérios para estabelecer a solidariedade109: a) o interesse comum na situação que constitua fato jurídico tributário; e b) a designação expressa de lei. Todavia, adverte o Professor:

A diretriz do interesse comum dos participantes na realização do evento, sobre ser vaga, não é roteiro seguro para a indicação do nexo que se estabelece entre os devedores da prestação tributária. Basta imaginar que tanto o prestador quanto o tomador do serviço, em se tratando de ISSQN, estão interessados na concretização da ocorrência, mesmo porque, não fora assim, e o acontecimento não se daria. Todavia, nem por isso, ousaríamos proclamar o absurdo de que ambos seriam devedores solidários. Da mesma forma no ICMS, no IPI e em muitas outras exações do nosso sistema. Resta claro que não é essa a intenção do legislador, mas sim, aplicar o critério

unicamente em situações que não haja bilateralidade no tributo, v.g. no caso da incidência do ITR, quando duas ou mais pessoas forem proprietárias do imóvel.

Diferentemente da conjuntura descrita no artigo 135 também do CTN, onde encontra-se a hipótese mais próxima ao objeto de estudo proposto:

Art. 135 - São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:I - as pessoas referidas no artigo anterior;II - os mandatários, prepostos e empregados;III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

Misabel Derzi, em nota à obra de Aliomar Baleeiro110 entende tratar-se de uma situação onde a norma “transfere o débito, nascido em nome do contribuinte, exclusivamente para o responsável, que o substitui”.

Nesta interpretação, o débito oriundo de fatos geradores concretizados com excessos de poderes ou infração a lei, contrato social e estatutos são de

109 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 163.110 BALEEIRO, Aliomar, Direito Tributário Brasileiro, 11ª ed., atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, Forense, 1999.

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responsabilidade integral daquelas pessoas constantes do artigo 134 do CTN111, além dos representantes (latu sensu) das sociedades empresárias.

Veja-se que a responsabilidade pelo recolhimento do tributo deixa imediatamente o âmbito da responsabilidade da empresa e é atribuída com a mesmo imediativismo ao responsável pelo ato ilegal ou excessivo gerador do tributo, desde que presentes alguns requisitos, os quais Misabel Derzi112 anota com precisão que lhe é peculiar:

A lei que se infringe é a lei comercial ou civil, não a lei tributária, agindo o terceiro contra os interesses do contribuinte. Daí se explica que, no pólo passivo, se mantenha apenas a figura do responsável, não mais a do contribuinte, que viu, em seu nome, surgir dívida não autorizada, quer pela lei, quer pelo contrato social ou estatuto. Finalizando a questão tributária deste pequeno estudo, cabe ainda dizer

que na regra posta pelo artigo 135 CTN, que inadimplemento de obrigação tributária, não é fato que se subsume a regra do artigo, como tem interpretado a Fazenda Nacional, pois trata-se de análise que deve ser feito no conjunto factual contábil e econômico da sociedade, não podendo gerar, de pronto, responsabilidade dos seus representantes.

Dessa forma, percebe-se que o CTN não aceita a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, vez que os arts. 124, 125 e 135 são previsões legais de responsabilização dos sócios de maneira subsidiária ou solidária em situações definidas, enquanto o parágrafo único do art. 116 não retrata desconsideração da personalidade jurídica por tratar de atos e fatos dissimulados apenas e não acerca dos atores desses atos ou fatos jurídicos.

5.2 CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS

No campo da legislação trabalhista, o texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) já em seu artigo 2º113 prevê a responsabilidade solidária de

111 BRASIL. Lei nº 5.172/1966 – Código Tributário Nacional. 25 de outubro de 1966. Art. 134: “Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: I - os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores; II - os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou curatelados; III - os administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes; IV - o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio; V - o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário; VI - os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício; VII - os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas”.112 Idem nota 31.113 BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452/1943. 1º de maio de 1943. Art. 2º: “Considera-se empregador a

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empresas. Contudo, a aplicação subsidiária do Código Civil e do Código, torna possível a responsabilização não apenas dos sócios atuais, mas também dos ex-sócios da empresa114, pela aplicação da desconsideração da personalidade jurídica:

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – PRO-CESSO DO TRABALHO – No processo trabalhista, para que ocorra a aplicação da teoria da disregard doctrine, de modo que o patrimônio do sócio venha a responder pelos débitos da sociedade, mostra-se suficiente a inadimplência da empresa devedora, sendo, pois, despicienda a com-provação de fraude ou abuso de poder.

Destarte, os sócios respondem não apenas pelo passivo trabalhista existente, mas também por aqueles que lhe sejam posteriores, desde que tenha participado da gestão da sociedade, e nela tenha cometido ato contrário a lei (aqui inclui-se o desrespeito ao contrato/estatuto social)

Também pela aplicação subsidiária do Código Civil, a interpretação do artigo 1.032115, tem gerado decisões interessantes na esfera trabalhista, abaixo ementa da lavra do singular estudioso do Direito, saudoso e querido Professor e Desembargador Marcus Pina Mugnaini116:

SÓCIO – RETIRADA DA SOCIEDADE – RESPONSABILIDADE – Responde o sócio pelas dívidas contraídas pela sociedade, até o lapso temporal de 02 anos depois da retirada do quadro societário (art. 1032 do CC).

Portanto, o sócio responderá sim, pelo prazo de 2 anos, após sua retirada da sociedade pelos débitos trabalhistas, nesta hipótese, sem a necessidade de comprovação

empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. § 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados. § 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas”.114 TRT 8ª R. – AP 00161-2006-001-08-00-0 – 1ª T. – Rel. Juiz Mário Leite Soares – J. 10.10.2006115 BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 1.032: “Art. 1.032. A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação”.116 TRT 12ª R. – AP 02148-2006-027-12-00-6 – (05834/2007) – Rel. Juiz Marcus Pina Mugnaini – DJU 28.03.2007

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de cometimento de ato fraudulento durante a sua participação na empresa.Conforme pode ser visto, a aplicação no Direito do Trabalho da

desconsideração da personalidade jurídica sobre um problema típico desse ramo do direito, pois se defende interesses da maior estirpe social que são os direitos do trabalhador, bem como é costumeiro nessa área a maior importância dos enunciados e pouca atividade legislativa, ou seja, o direito trabalhista costumeiro é transformado e regrado pelos tribunais.

Em que pese isso ocorrer, não parece adequado a simples desconsideração da personalidade jurídica pela inadimplência da empresa com os seus empregados sem uma rasteira “investigação” sobre a situação empresarial, algo fácil de se verificar com a Junta Comercial ou mesmo órgãos da Receita Federal.

Com isso seria possível aplicar o art. 50 do Código Civil fundamentado na ausência de boa-fé da empresa e desconsiderar a personalidade jurídica de maneira mais adequada.

Por outro lado, os direitos trabalhistas são direitos de suma importância e de natureza alimentar, não se podendo ignorar a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica pelo inadimplemento seria de acordo com o art. 50 do Código Civil, justamente pelo inadimplemento dessas verbas comprovarem uma violação da própria boa-fé estabelecida com a assinatura do contrato de trabalho.

Fato é que existem argumentos para ambos os lados, sendo facilmente superados por uma expedição de alguns ofícios ou mesmo a argumentação de desconsideração da personalidade jurídica com base no Código Civil com um fato que esteja nos autos do caso em concreto, ou ainda, por uma manifestação em enunciados trabalhistas ou adição de uma norma nessa área do Direito. Soluções simples e que resolveriam um grave problema do cotidiano legal.

5.3 LEI DE SOCIEDADES ANÔNIMAS

Para as sociedades por ações, (Sociedades Anônimas) a aplicação da responsabilidade dos sócios, aqui chamados de acionistas – com grande diferença terminológica – aplica-se diretamente as previsões da Lei nº. 6.404/76 (LSA)117, em especial os artigos 115 a 117, 158 e 233.

Os artigos 115 e 117 tratam diretamente da responsabilidade do acionista controlador, não se limitando este somente aquele que detém mais 50% das ações, mas assim considerado pessoa jurídica ou natural, ou ainda grupo de pessoas vinculadas a um acordo que seja titular de direitos assegurados pelos demais acionistas, de modo permanente, que lhe conceda a maioria dos votos na Assembléia Geral, contando com o poder de eleger a maioria dos administradores, bem como possuir condições de dirigir as atividades sociais

117 BRASIL. Lei nº 6.404/1976 – Lei das Sociedades Anônimas. 15 de dezembro de 1976.

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da empresa, orientando o funcionamento da companhia118.Nesta Lei, também se chama a responsabilidade do acionista controlador,

quando este age com abuso de poder. O fato novo na LSA é a descrição legal das hipóteses de abuso de poder, elencadas para responsabilização:

a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional;b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente;e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembléia-geral;f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas;g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade.h) subscrever ações, para os fins do disposto no art. 170, com a realização em bens estranhos ao objeto social da companhia

A responsabilidade do acionista controlador fica então adstrita a estas hipóteses de abuso de poder? Não responderá por outros atos que possam ser identificados como tal? A doutrina divide-se, mas pende para a resposta de que a “lista” da LSA não é taxativa ou limitadora da responsabilidade, especialmente quanto a atos que gerem efeitos contra terceiros, em acordo com a “cláusula geral” da desconsideração da personalidade jurídica do art. 50 do Código Civil.

Vale ainda destacar que tais responsabilidades são também aplicáveis aos

118 BRASIL. Lei nº 6.404/1976 – Lei das Sociedades Anônimas. 15 de dezembro de 1976. Artigo 116.

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administradores, que responderão solidariamente com o acionista controlador perante terceiros e a própria companhia.

Quando, todavia, o acionista controlador estiver exercendo a função de administrador, se sujeita ainda, as responsabilidades daquele, previstas no artigo 158 da LSA.

O artigo 233 da LSA, por sua vez, permite o cláusula de incomunicabilidade de passivos e a declaração de não solidariedade dos sócios nos casos de cisão parcial, onde a nova sociedade absorve patrimônio da empresa cindida. Dispõe o texto da Lei:

Art. 233. Na cisão com extinção da companhia cindida, as sociedades que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da companhia extinta. A companhia cindida que subsistir e as que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da primeira anteriores à cisão.Parágrafo único. O ato de cisão parcial poderá estipular que as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida serão responsáveis apenas pelas obrigações que lhes forem transferidas, sem solidariedade entre si ou com a companhia cindida, mas, nesse caso, qualquer credor anterior poderá se opor à estipulação, em relação ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data da publicação dos atos da cisão.

Assim, no Protocolo de Intenções e Justificativa da cisão, podem os envolvidos (sócios) decidirem, por exemplo, que o passivo ficará sob responsabilidade da empresa cindida, e o patrimônio transferido para a nova sociedade que o recebe sem solidariedade com a dívida antes existente na empresa nova. Tal disposição também está expressa no Código Civil.

No prazo de 90 dias contados da publicação dos atos da cisão pela Junta Comercial, qualquer credor pode se opor a cláusula de não solidariedade, pelo que para todos os efeitos e para este credor, a solidariedade passaria a não existir. O fundamento da outorga ao credor de tal direito é, justamente, protegê-lo da diminuição da garantia que seu crédito teria caso houvesse a solidariedade.

A LSA estabelece que na cisão parcial descrita no artigo 229 a existência de sucessão apenas quanto aos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão, como consta do Protocolo de Intenções da cisão em tela.

Como regra geral para proteção dos credores, o artigo 233 prevê que a sociedade cindida que subsistir e as sociedades que receberem parte de seu patrimônio serão solidariamente responsáveis pela satisfação das obrigações da sociedade cindida anteriores à cisão.

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Carvalhosa119 entende que o efeito imediato da oposição é suspender a eficácia do negócio de cisão parcial, até que se restabeleça a solidariedade plena ou que seja seu crédito antecipadamente pago. Se as sociedades envolvidas na cisão optarem por não satisfazer antecipadamente o crédito do opositor, o benefício da retratação quanto à estipulação de ausência de solidariedade beneficiará o opositor.

Portanto, não há como se determinar a anulação da cisão, fazendo desaparecer a empresa originada com a divisão, como entende parte da doutirna, mas sim, em última análise, obter declaração de solidariedade, excluindo a condição do Protocolo de Intenções.

Brandão Lopes120 adverte que a oposição do credor importa tão-somente na existência de solidariedade entre as companhias exclusivamente com relação ao crédito do opositor, de forma a garantir a solidariedade entre as companhias, não tendo o condão de anular o ato de cisão como um todo, suspender sua eficácia ou de impedir sua consecução:

Os credores da companhia cujo patrimônio se cinde não podem pleitear a anulação da operação, nem têm a possibilidade de receber os seus créditos, ou de ver garantida a sua execução se ilíquidos; nem podem obter a separação de patrimônios, na falência de companhia beneficiária de cisão, por parcial e inadequada que pudesse ser esta medida. E à situação no seu todo, criada pela solidariedade do art. 233, nada acrescenta o seu parágrafo único. Afastada a solidariedade de companhia beneficiária da cisão parcial, mediante estipulação no ato da operação, a oposição de credores no prazo previsto mais não faz do que restabelecer quanto a seus créditos a solidariedade que se tentou remover, e que não vai beneficiar credor omisso por desatento”.

O artigo 233 Lei nº 6.404/76, por sua vez, não confere ao credor o direito de opor-se ao negócio de cisão. O único direito do credor é opor-se à estipulação de ausência de solidariedade.

Do outro lado, se não exercida a notificação no prazo estipulado pela lei, nem mesmo a declaração de solidariedade poderá ter efeito. O ingresso de ação judicial com pedido de anulação do ato de cisão, juridicamente perfeito e acabado resume-se unicamente a tentativa de afastar a “Cláusula de Não Solidariedade”, mas jamais, em tempo algum, porque juridicamente impossível, até mesmo por ausência de legitimidade processual poderá desfazer ato cuja competência, interesse e responsabilidade são unicamente dos sócios envolvidos.

119 In CARVALHOSA, Modesto. Comentários À Lei de Sociedades Anônimas. Saraiva, 2008.120 In LOPES, Mauro Brandão. A Cisão no Direito Societário. RT.

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Como se vê, os artigos citados da Lei de Sociedades Anônimas elencam especificamente casos de desconsideração de personalidade jurídica em casos de fraudes, nos moldes da “cláusula geral” do Código Civil, ou abrem a possibilidade para a responsabilização subsidiária ou solidária nos termos da lei, uma forma de responsabilização direta dos sócios.

5.4 CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Por sua vez também o Código de Defesa do Consumidor (CDC)121 prevê em Seção V a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade dos sócios, no artigo 28 e seus Parágrafos:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.§ 1º (Vetado.)§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decor-rentes deste Código.§ 3º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.§ 4º As sociedades coligadas só responderão por culpa.§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

É de se anotar que a base fática para a responsabilização dos sócios também no CDC são os atos praticados com abuso de poder e infração a lei ou aos estatutos/contratos. O CDC por sua vez, apresenta forma mais maleável para a responsabilização dos sócios, inclusive quando houver má administração, o que deixa o fato legalmente exigível, muito subjetivo e assim, altamente discutível.

No § 5º a responsabilização dos sócios pode ser dar pelo CDC “sempre que for obstáculo de alguma forma” para ressarcimento do consumidor. Veja-se o campo de abrangência desta disposição. Caberá ao magistrado, diante do conjunto probatório decidir se está ou não havendo “algum obstáculo” que

121 BRASIL. Lei nº 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor. 11 de setembro de 1990.

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impeça a indenização ao consumidor. Trata-se efetivamente de verificação e justa ponderação do juízo em cada caso, vez que o artigo é demasiadamente vago e abrangente. Salienta Heloísa CARPENA122 que:

Ao incorporar avanço de técnica legislativa, valendo-se de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, o Código de Defesa do Consumidor acompanhou a tendência de flexibilização do sistema jurídico, reforçando o papel do magistrado na apreciação dos conflitos de consumo. O juiz é então chamado a criar a ‘norma do caso concreto’, preenchendo a sua valoração os comandos. Tem, sem dúvida alguma, mais condições de responder às demandas sociais, sempre novas e crescentemente complexas.

Esta norma consumeirista, vem constantemente sendo aplicada ao Processo Trabalhista, com o qual não guarda nenhuma singularidade. Para aplicação deste § 5º na própria defesa do consumidor a doutrina diverge longamente, por se tratar de norma excessivamente aberta, - um dos motivos do veto presidencial ao § 1º - imagine-se transferir o instituto para seara completamente diversa em termos de relação jurídica.

Destarte, resta instaurada a questão de aplicabilidade das normas de consumo ao processo trabalhista. Carina Rodrigues Bicalho123 teoriza:

Aplicar-se-ia, entretanto, o Código Civil ou a norma do Código do Consumidor? O Código de Defesa do Consumidor, como já ressaltado anteriormente, estabelece norma de tutela ao hipossuficiente assemelhando-se ao objetivo de tutela do direito do trabalho. Essa similitude de finalidade tutelar das normas do consumidor e trabalhistas justifica a aplicação da normatização mais ampla do direito do consumidor em detrimento do Código Civil, que apresenta hipóteses mais restritas da teoria em exame, posto que assegurará garantia mais ampla aos créditos trabalhistas.Os princípios juslaborais chamam à aplicação, pois, o § 5º do art. 28 do CDC e, sendo este uma cláusula aberta, permite seja preenchido pelos princípios e valores da sociedade no momento de sua aplicação.

O Estado Democrático de Direito tem como fundamentos a dignidade da

122 CARPENA, Heloísa. Abuso de direito no contrato de consumo. Forense, 2001, p. 3, apud GAULIA, Cristina Tereza. A desconsideração da personalidade da pessoa jurídica no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, n. 43, p. 160/161.123 BICALHO, Carina Rodrigues. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.39, n.69, p.37-55, jan./jun.2004.

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pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV).A empresa, como organização dos fatores de produção, capital, trabalho e tecnologia, a personalidade jurídica, bem como seu corolário, que é a autonomia patrimonial, devem continuar sendo tuteladas Estado como propulsoras que são do desenvolvimento social.

No entanto, o princípio da alteridade e o caráter alimentar do crédito trabalhista, na situação concreta de colisão entre proteção à autonomia patrimonial de sócios/sociedade e a satisfação do trabalhador, fazem preceder o valor trabalho à iniciativa privada, pois a empresa deve servir ao homem e não este àquela.

Ao ponderar os valores da dignidade da pessoa humana e do trabalho em contraposição ao valor da livre iniciativa, tende a balança para os primeiros quando a análise serve ao caso concreto trabalhista.

Ademais, “A visão realista do mundo contemporâneo considera que não há mais como distinguir o econômico do social, pois ambos os interesses se encontram e se compatibilizam na empresa, núcleo central da produção e da criação da riqueza, que deve beneficiar tanto o empresário como os empregados16” e, quando a tanto não serve, deixa de cumprir sua função social.

Cede a proteção à personalidade jurídica em face da proteção ao trabalhador, pessoa humana cuja dignidade é valor constitucional, mormente quando deixa de cumprir sua função social.

São estes, pois, os princípios que devem preencher a norma do § 5º do art. 28 do CDC: a dignidade da pessoa humana, o princípio da alteridade, a natureza alimentar do crédito trabalhista, impondo-lhe uma interpretação literal e principiológica.

Ainda que não se negue validade os princípios constitucionais elencados, a norma consumeirista possui campo de aplicação completamente diverso e distante da realidade trabalhista, o que escapa, mesmo diante do esforço de justificação feito, dos efeitos pretendidos pelo legislador, sob pena de inexistência de limites jurídicos para aplicação de normas a situações não reguladas, ferindo outros princípios constitucionais tais como o da estrita legalidade e da segurança jurídica, além do princípio da aplicação da norma mais específica.

Entretanto, as decisões judiciais, tem se valido do argumento, e ainda, justificam que a proteção a empresa pelo Estado, deve ceder quando em conflito

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com a dignidade de pessoa humana, especialmente nas relações de trabalho, daí, como afirma a então Magistrada Mineira124, é “a pós-modernidade que bate as portas da Justiça do Trabalho. É imperativa a sua entrada”. Dir-se-ia mais, é o pós-positivismo que transcende os limites de aplicação das leis para que o Estado possa se voltar em atenção Homem e ao bem estar social.

Enfim, o Código de Defesa do Consumidor traz a aplicação da teoria maior do Código Civil de modo mais amplo, com uma redução dos requisitos apenas para as relações de consumo.

Quanto a aplicação para o Direito do Trabalho, como dito anteriormente na tópico acerca desse ramo, existem soluções muito mais eficazes como a aplicação subsidiária do Código Civil desde de que minimamente comprovado a ausência de boa-fé ou mesmo motivando a decisão no caso concreto com fatos dos próprios autos, sem a necessidade de recorrer a outro ramo específico do direito.

Não é adequada a comparação do Direito do Trabalho com o Direito do Consumidor por serem relações de “hipossuficiência” quando o próprio Direito do Trabalho possui em sua essência elementos suficientes para justificar uma relativização dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, inclusive de cunho constitucional.

6 CONCLUSÃO

Sobre a responsabilidade dos sócios, é de se anotar que as normas prevêem sua solidariedade ou ainda, sua responsabilização direita subsidiária, em situações excepcionais e que dependem muito do ramo do Direito a ser protegido, os interesses que visam em contraposição ao princípio da autonomia patrimonial.

Quando há qualquer tipo de fraude ou abuso de direito por parte de um dos sócios em valer-se da pessoa jurídica para conseguir qualquer vantagem, não há a menor dúvida que a desconsideração da personalidade jurídica é aceita de acordo com o Código Civil, previsão essa que é repetida em vários outro documentos legais com maior ou menor especificação e/ou requisitos.

A teoria abraçada pelo ordenamento jurídico brasileiro sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é unicamente a teoria maior, vez que a teoria menor, em que pese ser utilizada por alguns magistrados, em especial na Justiça do Trabalho, não foi incluída pelo nosso ordenamento.

Sobre a aplicação da teoria menor na Justiça do Trabalho, seja tentando equiparar com o Código de Defesa do Consumidor ou mesmo em uma construção frente a cláusula geral do Código Civil, ela não é adequada, contudo, é tolerável pelo Judiciário frente a ponderação dos direitos do trabalhador frente a quebra do vínculo de boa-fé quando da assinatura do contrato de trabalho.

124 Idem nota 33.

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Em que pese essa ser uma justificativa plausível e adequada para a responsabilização direta dos sócios sem ao menos haver fraude ou abuso de direito a primeira vista, deve-se ressaltar que simples medidas de investigação superficial como expedição de ofícios à Junta Comercial ou mesmo aos órgãos fiscais dariam maior substância decisória para a desconsideração da personalidade jurídica com base na própria cláusula geral do Código Civil aplicada ao Direito do Trabalho.

Também é uma sugestão a criação de enunciados ou mesmo norma aplicando e especificando a desconsideração da personalidade jurídica para a Justiça do Trabalho, como fazem outros ramos do Direito, como o Consumidor, Tributário e outros, em particular para a definição dos limites para a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito trabalhista.

Em homenagem a alguns princípios gerais do direito, a análise para que os sócios sejam chamados a responsabilidade restou deferida ao magistrado, diante da conjuntura processual que se apresentar podendo este inclusive aplicar subsidiariamente normas não específicas ao caso, como no processo trabalhista.

Deste modo, pode se concluir que a responsabilidade dos sócios no sistema legal brasileiro é medida que será imposta sempre de alguns fatores se confirmarem, a critério do magistrado, mas para tanto, o juízo de valor deve estar muito bem fundamentado, pois as normas regulamentares deste procedimento permitem vasto campo para discussão da efetiva ocorrência dos fatos que desencadeiam o pedido, pois como visto, a simples inadimplência da pessoa jurídica não é motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica (teoria menor) no Direito Brasileiro.

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ACESSO E CRISE DA JUSTIÇA: DEMORA JUDICIAL E ANÁLISE DOS PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS EXTRAJUDICIAIS EM CARTÓRIOS

COMO MEIO ALTERNATIVO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITO

ACCESS AND CRISIS OF JUSTICE: JUDICIAL DELAY AND ANALYSIS OF ADMINISTRATIVE PROCEDURES IN PUBLIC NOTARIES EXTRAJUDICIAL

AS ALTERNATE MEANS OF CONFLICT RESOLUTION

PaSqualino lamortE125

FErnanDo GuStaVo KnoErr126

RESUMO

O presente artigo versa sobre o acesso à justiça, bem como a ideia de jurisdição e a crise do poder judiciário como uma forma de repensar uma busca alternativa de solução de conflitos. Estuda ainda a questão do acesso e crise à justiça nos últimos anos, por meio de uma análise acerca dos instrumentos extrajudiciais de solução de conflitos nas relações jurídicas, em especial os procedimentos administrativos em cartórios.

ABSTRACT

The present article studies the access to justice, and the idea of jurisdiction and the crisis of the judiciary as a way to rethink a search for alternative dispute resolution. It also studies the issue of access to justice and the crisis in recent years, through an analysis of the instruments on extrajudicial dispute resolution in legal relationships, especially the administrative procedures in registries.

Palavras-chave: Jurisdição; Acesso à justiça; crise na justiça; meios alternativos de soluções de conflitos; procedimentos administrativos dos cartórios.

Keywords: Jurisdiction; access to justice; crisis in righteousness alternative means of conflict resolution; administrative procedures of the registry offices.

125 Advogado. Professor da graduação no Curso de Direito da PUC/PR. Mestrando pelo Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Membro do Grupo de Pesquisa “Direito Empresarial e Cidadania no Século XXI”.126 Procurador Federal. Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA.

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SUMÁRIO: Introdução; 1. Jurisdição; 2. Acesso e crise da Justiça, 2.1. A distância do cidadão ao acesso à justiça; 3. Demora Judicial; 4. Responsabilidade Civil do Estado em caso de demora na prestação jurisdicional; 5. Resolução de Conflito em via Administrativa, 5.1. Da Função Notarial e os Procedimentos Extrajudiciais, 5.2. Lei 11441/2007 - Divórcio, Partilha e Inventários Administrativos, 5.3. Procedimentos extrajudiciais e atividade empresarial; 6. Considerações finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO

Não é de hoje que se observa uma grande insatisfação do cidadão brasileiro no que diz respeito ao acesso à Justiça. O Estado apresenta um aparelho burocrático que por muitas vezes acaba por ocasionar demora na prestação jurisdicional, o que acarreta insatisfação da sociedade como um todo.

O presente trabalho trata da questão do acesso e crise da justiça nos últimos anos, com uma análise acerca dos instrumentos extrajudiciais de solução de conflitos nas relações jurídicas, em especial os procedimentos administrativos em cartórios.

O tema sugerido para análise são as formas em que os Notários e registradores que compõe o ramo extrajudicial cartorial podem atuar como meio alternativo para solução dos conflitos, contribuindo para a desjudicialização, isto é, a retirada de muitos conflitos da via judicial para que sejam resolvidos na via administrativa.

Possibilitar que as partes resolvam seus conflitos sem adentrar na estrutura do Poder Judiciário, permite tornar a justiça mais célere, e, portanto, mais efetiva, na sua função, em contraposição ao problema da crise da justiça.

Quando este acesso fica obstruído ou inacessível em virtude, por exemplo, da demora judicial, cria-se assim um crise denominada de “crise do Poder Judiciário”.

O presente trabalho tem interesse em demonstrar a importância do acesso à justiça partindo da constatação de que o sistema judicial brasileiro não encontra totalmente estruturado para garantir os direitos previstos em toda a nossa norma constitucional.

Em virtude disso, surgem novas propostas alternativas de resolução da crise da justiça. Algumas delas estão relacionadas às práticas dos cartórios extrajudiciais como uma forma de resolução de conflitos, passando a ser uma solução mais célere e muito menos burocrática.

1 JURISDIÇÃO

Para iniciar o presente trabalho faz-se necessário esclarecer a função do Estado para a resolução de conflitos visando uma organização entre a sociedade e o interesse particular.

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O homem vive em sociedade e onde há sociedade há direito, por isto, quando este mesmo homem, que se organiza e defende seus direitos, faz nascer necessidades individuais, vislumbra que essa mesma necessidade seja inerente á vida social quando se depara com algum tipo de conflito de direitos.

Discute-se então a legítima titularidade por parte do Estado para resolução de conflitos entre particulares e se essa legitimidade pode ser levada a outros campos, vez que muitas vezes a justiça privada encontra solução com a participação do Estado, no entanto, não sendo este o detentor absoluto de resolução de conflitos.

Por isto, resta esclarecer o termo jurisdição, como sendo a função estatal de prestar a tutela legal em relação aos casos concretos, desde que as partes tenham interesse nesta resolução de determinados conflitos.

Assim, pode-se definir Jurisdição como sendo o poder-dever conferido ao Estado de solucionar determinado litígio concreto que é trazido para seu exame.

Por isto, a tutela jurisdicional se concretiza com a provocação do interessado ou de alguma parte em particular e tem como finalidade a dar ao Estado o poder de decidir e impor decisões acerca da lide.

O conceito adotado no livro Teoria Geral do Processo, de Antônio Carlos de Araújo Cintra e outros127, indica a jurisdição como uma função do Estado:

Podemos dizer que é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça.

Para Antônio Carlos Costa e Silva128, o Estado possui uma determinada função de editar normas e também de promover a atuação da vontade desta determinada lei:

O Estado, órgão soberano, se possui funções formais organizativas que lhe permitem editar as normas jurídicas e promover sua execução, tem, também, que solucionar os “conflitos de interesses”, promovendo a atuação da vontade de lei, ante cada caso concreto.

2 ACESSO E CRISE DA JUSTIÇA

Após os conceitos acima descritos sobre a Jurisdição e o papel do Estado na resolução de conflitos de interesses, passa-se agora, a descrever o acesso e

127 ARAÚO CINTRA, Antônio Carlos de, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel, Teoria Geral do Processo, 26ª. ed., São Paulo, Malherios, 2010, pag. 149.128 SILVA, Antônio Carlos e. Da jurisdição executiva e dos pressupostos da execução civil. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1980.

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consequentemente a crise da Justiça, como um dos problemas mais anacrônicos quando se fala em demora da prestação jurisdicional do Estado.

No Brasil, com o advento de nossa Constituição Federal de 1988, ocorre uma ampliação da ideia ao acesso da justiça, com uma consequente ampliação pelo direito à Justiça, e assim, consequentemente um crescimento das demandas judiciais.

Em virtude disto, deveria o poder judiciário estar preparado para atender as demandas, o que não ocorreu mesmo com o advento de nossa Constituição Cidadã, culminado assim, com a discussão em torno do acesso ao chamado direito à justiça.

O acesso à Justiça, que é um direito efetivo, verifica-se ainda mais com o aumento populacional e uma consequente proliferação dos conflitos, sendo que, estes conflitos têm relação direta com o aumento populacional.

Nesse sentido, se manifesta Kazuo Watanabe129:

(...) o acesso à Justiça não se limita a possibilitar o acesso aos tribunais, mas de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, a saber: (i) o direito à informação; (ii) o direito à adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do país; (iii) o direito ao acesso a uma justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo da realização da ordem jurídica justa; (iv) o direito a preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela dos direitos; (v) o direito à remoção dos obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo a uma justiça que tenha tais características . Abaixo são identificados alguns problemas que dificultam ou

impossibilitam o acesso à Justiça.

2.1 A DISTÂNCIA DO CIDADÃO AO ACESSO À JUSTIÇA

No Brasil, boa parte da população vem sendo segregada do acesso à justiça muitas vezes por questões econômicas, ficando impossibilitadas de lutar por seus direitos que deveriam ser resguardados pelo Estado através do poder judiciário.

Viviane Coêlho de Séllos Knoerr130 destaca:

“Vivemos em uma sociedade na qual a maioria da população vive e cria seus filhos em condições precárias, dada a problemática da desigualdade

129 WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e a Sociedade Moderna. In: Participação e Processo. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1988.130 Séllos, Viviane. O Problema da Dignidade Humana e os Projetos Para Erradicação da Exploração do Trabalho Infantil. In Anais Do Conpedi. (Http://Www.Conpedi.Org.Br/Manaus/ Arquivos/Anais/Recife/ Trabalho_Justica_Viviane_Gondim.Pdf). Florianópolis: Boiteux, 2006.

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na distribuição de renda, o que reduz as chances de ascensão individual. No entanto, pelo crescimento e desenvolvimento dos indivíduos é que se constrói um Estado forte, sendo imperativa a erradicação da pobreza, da marginalização e do analfabetismo total, funcional ou político.”

Neste sentido, é muito relevante as palavras observadas por Boaventura Souza Santos131:

“(...) estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. (...) os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo um problema jurídico.(...) em segundo lugar, mesmo reconhecendo o problema como jurídico, como violação de um direito, é necessário que a pessoa se disponha a interpor a ação. Os dados mostram que os indivíduos das classes mais baixas hesitam muito mais que os outros em recorrer aos tribunais (...)”

De acordo com Alcio Manoel de Sousa Figueiredo:

“A propósito, o sistema judicial brasileiro não se encontra estruturado para garantir os direitos expressos na Constituição, em decorrência de inúmeros fatores e obstáculos limitantes para o acesso à justiça, tais como: (i) fatores econômicos: custas judiciais e custas periciais elevadas para a produção de provas; (ii) fatores sociais: duração excessiva do processo, falta de advogados, juízes e promotores; (iii) fatores culturais: desconhecimento do direito; analfabetismo; ausência de políticas para disseminação do direito; (iv) fatores psicológicos: recusa de envolvimento com a justiça; medo do Poder Judiciário; solução dos conflitos por conta própria; (v) fatores legais legislação com excesso de recursos e chicanas protelatórias; lentidão na outorga da prestação jurisdicional.”

2.2 FALTA DE ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO

Muitos são os autores que criticam o fato de que o Poder Judiciário não tem estrutura para acompanhar a mudança social, o aumento de conflitos e a velocidade dos acontecimentos.

131 SANTOS, Boaventura de Sousa et al. Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso português. Porto: Afrontamento, 1996, pag. 48.

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Conforme descreve Dallari132, percebe-se a deficiência do Estado em relação ao Poder Judiciário:

“[...] em muitos lugares há juízes trabalhando em condições incompatíveis com a responsabilidade social da magistratura. A deficiência material vai desde as instalações físicas precárias até as obsoletas organizações dos feitos: o arcaico papelório dos autos, os fichários datilografados ou até manuscritos, os inúmeros vaivens dos autos, numa infindável prática burocrática de acúmulo de documentos”.

Nos dias de hoje é inaceitável que o judiciário apresente problemas relacionados à sua estrutura, mas torna-se visível que os recursos humanos, a quantidade insuficiente de Juízes, funcionários e auxiliares da justiça não conseguem ser suficientes para as soluções de conflitos que são deparados atualmente pelo Poder Judiciário.

Faz-se necessário um aumento do número de juízes, de varas cíveis, de auxiliares da justiça através de concursos públicos, pois sem estas mudanças torna-se inviável alcançar uma qualidade efetiva do judiciário em prol do cidadão.

A implementação da informática através de programas virtuais para instalação de novos processos em todo o poder judiciário, também é uma forma de combater a morosidade do judiciário.

Ocorre que, o presente artigo tem o condão de demonstrar que outras formas de resolução de conflitos, como os procedimentos extrajudiciais, são soluções para atender os anseios do cidadão em determinadas lides.

Conforme os obstáculos declinados na presente citação, o acesso à justiça passa a ser uma preocupação da sociedade, pois deve-se tentar medidas que possam solucionar os conflitos sociais de forma mais célere e não deixar que os problemas ligados ao judiciário impeçam de se fazer justiça em determinados conflitos.

Por essa razão, a discussão do acesso à justiça como uma consequente crise, passa a ser um tema de grande relevância as questões sociais.

O excesso de trabalho, o infindável número de processos, a falta de estrutura, de funcionários ou de juízes, são fatores que podem ser considerados para uma explicita lentidão da aplicação da justiça e da tutela jurisdicional.

3 DEMORA JUDICIAL

A demora judicial é um dos elementos caracterizadores da negação de acesso à justiça, sendo que, com a promulgação da Emenda Constitucional nº. 45 verifica-se a preocupação quanto ao andamento de um processo judicial.

132 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juizes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 156-157.

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Na Emenda Constitucional n°45, a celeridade e duração razoável do processo passaram a ser determinações constitucionais expressas, como preceitua o art. 5°, inciso LXXVIII:

“A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

A Constituição Federal, no inciso LXXVIII, positivou, entre nós, o princípio da razoável duração dos processos e da celeridade processual, garantindo assim, direitos que deverão ser preservados para o cidadão.

É preciso buscar novas formas de resolução de conflitos, evitando que o Poder Judiciário continue a ser o destino de questões que não necessitam de pronunciamento jurisdicional para sua resolução, uma vez que, quando não se existe litígio, é possível a composição pela via administrativa.

Sobre a demora na prestação jurisdicional, apenas para exemplificar, a Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica, no seu Artigo 8º. (Dos Direitos à liberdade Pessoal) garante o direito a um prazo razoável na tramitação do processo:

Artigo 8º - Garantias judiciais1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

A inafastabilidade do Poder Judiciário está prevista no Artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, quando diz: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Ocorre que, esta garantia constitucional fundamental não poderá se confundir com a atividade exclusiva jurisdicional, isto é, conforme explica Roberto Portugal Bacelar133:

“A inafastabilidade do Poder Judiciário prevista no art. 5º., inc. XXXV, da Constituição Federal da República é garantia fundamental que não

133 BACELLAR. Roberto Portugal. A mediação no contexto dos modelos consensuais de resolução de conflitos. Revista de Processo. Revista de Processo. Editora Revista dos Tribunais. 1999.

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se confunde com o monopólio da atividade jurisdicional. Este não pressupõe que todas as questões devam necessariamente ser decididas por um Juiz de Direito. Já há muito tempo sabemos que um dos problemas que prejudica a celeridade da justiça reside principalmente nas pautas dos Juízes. Enquanto um Juiz, no limite máximo de sua capacidade, conseguiria – em tese – fazer dez audiências por dia, este mesmo juiz, se fosse auxiliado por dez Juízes leigos, com a mesma capacidade produtiva, poderia fazer cento e dez audiências em um único dia”.

Por isto, deve-se esclarecer que a morosidade, a precária estrutura do Poder Judiciário e o sistema processual brasileiro contribuem como uma má distribuição da justiça, mas não se deve ficar adstrito apenas a estes empecilhos, e sim, encontrarmos soluções viáveis para resolução de conflitos que satisfaçam de maneira rápida o desejo de cada um.

4 RESOLUÇÃO DE CONFLITOS VIA EXTRAJUDICIAL

O procedimento em via administrativa é diferente do judicial, pois permite que as partes ou os interessados possam resolver seus conflitos de forma consensual, isto é, sem a intervenção do Poder Judiciário.

A desjudicialização é o meio de retirar a responsabilidade do Poder Judiciário, quanto à apreciação de um determinado processo, e transferi-la aos Cartórios Extrajudiciais, com o intuito de simplificar o andamento de processos e agilizar ações que envolvam um determinado litígio.

Assim, pode-se conceituar desjudicialização como sendo:

“Desjudicializar é desburocratizar os procedimentos e o Estado nas resoluções de conflitos, transferindo para a via extrajudicial por meio do Registro Civil”.

Tal via vem beneficiar as pessoas que enfrentam demorados e cansativos processos judiciais, tendo como reflexo a redução dos grandes números de processos a cargo do Poder Judiciário.

Em razão disto, o presente artigo apresenta a seguir a função notarial e os procedimentos alternativos como forma de desjudicialização.

4.1 DA FUNÇÃO NOTARIAL E OS PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS

A função notarial busca o cumprimento do ordenamento jurídico e concomitantemente a resolução de interesses sem necessariamente uma determinada ocorrência de litígio. Por isto, tem-se uma maior celeridade nos procedimentos resolvendo rapidamente os interesses individuais.

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Sobre os serviços notariais, dispõe o Artigo 236 da Constituição Federal134. A função notarial tem como principal característica ser dotada de fé pública, e está evidentemente submetida ao princípio da legalidade.

O Conselho Nacional de Justiça CNJ, no tocante a Resolução de Conflitos em via Administrativa, a normatizou através de resolução. A seguir segue parte da Resolução nº. 35 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ135).

O CNJ pacificou a questão de ser ou não opcional a escolha da via administrativa em substituição à via judicial (Poder Judiciário), eliminando quaisquer dúvidas neste sentido ocorridas até a edição da citada Resolução.

No próprio preâmbulo da Resolução nº 35/2007 do CNJ, o Conselho justifica a edição da Resolução em função da natureza da Lei nº 11.441/2007, cuja principal proposta foi a de conferir maior celeridade à celebração dos atos por esta Lei contemplados, no sentido de minimizar o verdadeiro afogamento em que se encontra o Poder Judiciário brasileiro, emperrado sob a responsabilidade de dizer o direito em milhares de lides sob sua tutela.

Compreende-se, portanto, pela leitura do citado artigo 3º, pela não existência de óbice para que a escritura seja lavrada em qualquer tabelionato localizado no país, seja em qualquer parte, observadas e respeitadas as condições, requisitos e pressupostos determinados pela própria legislação em estudo.

4.2 LEI 11441/2007 - DIVÓRCIO, PARTILHA E INVENTÁRIOS ADMINISTRATIVOS

Como exemplo de resolução de conflito, achamos importante destacarmos a Lei 11441/2007, que após muita luta do IBDFAM – Instituto

134 Art. 236 – Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.§1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.§2º. Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.§3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.135 Art. 3º As escrituras públicas de inventário e partilha, separação e divórcio consensuais não dependem de homologação judicial e são títulos hábeis para o registro civil e o registro imobiliário, para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores (DETRAN, Junta Comercial, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, instituições financeiras, companhias telefônicas, etc.). (BRASIL, CNJ/2007).

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Brasileiro de Direito de Família, trouxe grande inovações em medidas de divórcios e inventários.

A Lei n° 11.441/07136 traz uma mudança significativa no sistema de inventários, partilhas, separação e divórcio consensuais, desde que sem partes incapazes, inclusive filhos menores de 18 anos ou interditados.

Conforme o Art. 982 do CPC, havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro imobiliário.

Outrossim, a Lei n° 11.441/07 mantém a obrigatoriedade de se ter um advogado assistindo, assessorando as partes, mesmo sem ter bens a partilhar137.

A Lei 11441/2007 traz a obrigatoriedade da presença do advogado, pois o mesmo comparece como assistente das partes, não havendo necessidade de exibição de procuração, sendo que, tem o advogado o múnus público de assistir as partes, não criando assim nenhuma dificuldade na superação de problemas, pois sendo sabedor das normas jurídicas, somente auxiliará na composição da vontade individual das partes.

Valestan Milhomem Costa descreve a importância da Lei 11.441/07 e como a edição da mesma está em perfeita sintonia com a sociedade moderna, que pede uma justiça mais célere e menos burocrática.

“A Lei nº 11.441/07, que passou a permitir o inventário, a separação e o divórcio administrativos, é a demonstração inconteste do bom senso daqueles que vêm conduzindo a reforma do Judiciário, demonstrando um sério compromisso com a desburocratização, com a celeridade, com a efetividade e com a segurança jurídica, princípios cogentes em toda sociedade moderna comprometida com o desenvolvimento

136 Art. 1124 – A do CPC - A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. 137 Art.982 do CPC(...)Parágrafo único. O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.Art.1124-A do CPC(...)§ 2o O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.

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sustentável, com a defesa de suas instituições, com a economia popular e com o fortalecimento do crédito, cuja principal garantia ainda é imobiliária. Já era tempo de dispensar a tutela judicial para as sucessões sem testamento, quando os interessados, sendo maiores e capazes, estão de pleno acordo quanto à partilha dos bens, pois a função de aquilatar se o quinhão concreto não fere o quinhão abstrato contemplado na lei, observando-se a devida vocação hereditária, e de fiscalizar o recolhimento da contribuição tributária correspondente ao valor dos bens, pode perfeitamente ser desempenhada por um tabelião, profissional do direito dotado de fé pública, sobretudo quando as partes contam com a assistência de advogado”138.

A edição da referida Lei nº 11.441/2007, fará com que haja uma melhor aplicação desta que tem por finalidade descongestionar o Judiciário e levar mais comodidade aos interessados em realizar os atos previstos na respectiva lei, bastando às partes apenas comparecer, com advogado, ao Cartório de Notas e realizar o procedimento pertinente.

4.3 PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS E ATIVIDADE EMPRESARIAL

O presente tópico tem o condão de demonstrar à importância do procedimento extrajudicial ligado a atividade empresarial, pois os interesses de uma determinada empresa que possa ser resolvido em via administrativa, em muito auxiliaria a descentralização de demandas judiciais em prol das extrajudiciais.

As modificações iniciadas através da Lei 11.441/2007, tornou mais acessível a atuação perante os Cartórios para a prática dos atos enunciados na respectiva Lei, pois sendo nítido o caráter social dos institutos referidos, não podem estes culminarem em grandes despesas para os interessados, e pode-se assim, pensar em uma alternativa para empresas como forma de resolução de futuros conflitos com novas elaborações de normas neste sentido.

Por essa razão, em virtude de poucos escritos sobre o referido assunto ligado a atividade empresarial, deve-se pensar em aplicação desta via extrajudicial em atuações empresarias como forma de descentralização do poder judiciário e aplicação de determinada norma jurídica ligada as atividades empresariais.

138 COSTA, Valestan Milhomem. A atividade notarial, o inventário, o divórcio e a separação administrativos. A Lei nº. 11.441/07. Disponível em: <http://www.irib.org.br/be/BE/2979.html>. Acesso em 8 jun 2007.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos principais objetivos dos procedimentos administrativos aqui demonstrados é desafogar o poder judiciário, retirar da apreciação de juízes um determinado conflito para a resolução particular e imediata dos principais interessados.

Em virtude de um mundo globalizado o acesso à justiça deveria ser disponível às pessoas independente da condição econômica ou intelectual, sendo que, o referido acesso deve ser de caráter absoluto, isto é, atingir a todos.

Enquanto temos um grande aumento populacional e não obrigatoriamente um avanço legislativo que acompanhe os anseios e desejos de todo cidadão, pode-se encontrar a injustiça ao invés de se fazer justiça.

Quando se discute a demora judicial, vem á tona a morosidade do poder judiciário, sua falta de estrutura, mas o presente artigo tem o condão de demonstrar que tal problema pode ser ocasionado pelo Estado, e que a via administrativa é uma resolução para conflitos particulares.

Para o cidadão é importante que seu problema – que pode ser temporário – seja analisado e que uma solução seja tomada em tempo razoável, e não ter que aguardar vários anos para seu interesse ser apreciado pelo Estado.

Por tudo que foi descrito no presente artigo, verifica-se que alguns meios de solução de conflitos apresentam-se como alternativas a serem utilizadas pelos cidadãos, como exemplo, o trabalho dos Cartórios Extrajudiciais, que visam uma solução rápida para os desejos individuais.

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CONTRATAÇÃO DE ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR X CONTRATAÇÃO DE EMPRESAS ECOSSOCIOAMBIENTALMENTE RESPONSÁVEIS:

POSSIBILIDADES, PARÂMETROS E LIMITES PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DA LEI Nº 12.349/2010

DaniEl FErrEira139

INTRODUÇÃO

Tratar da possibilidade de contratação pública (direta) de entidades do Terceiro Setor, por si só, revela certa dificuldade; fazer isso depois da alteração visceral havida na Lei nº 8.666/93, por conta das inovações trazidas pela Lei nº 12.349/2010, configura trabalho mais complexo ainda.

E não por conta de assuntos de somenos importância que exigem prévia investigação, mas pelo fato de quase todas as abordagens feitas terem silenciado acerca da particular novidade, a de que a licitação passou a assumir uma terceira finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, ao lado da observância do princípio da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa.

Logo, aquilo que se sustentou como um plus, como um instrumento adicional de implementação de políticas públicas pelos responsáveis pela gestão do erário, e para consecução de outros interesses públicos que não a direta e imediata satisfação da necessidade ou da utilidade, administrativa ou coletiva,140 passa a ser regra.

Melhor dizendo, o [...] dever-poder administrativo extraível do sistema jurídico, a partir da Constituição da República e de leis esparsas, passa a figurar como uma obrigação genérica e ordinária, da qual o gestor público apenas poderá se desonerar por justa causa, devidamente motivada e comprovada. Caso contrário estará a descumprir uma finalidade (de três) para a licitação, contaminando-a de vício insanável.

Aliás, descumprir a função social da licitação (de promoção do desenvolvimento nacional sustentável), em tempos atuais, importa em simultaneamente desatender a seleção da proposta mais vantajosa,

139 Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUCSP. Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Curitiba e do Corpo Docente Permanente do Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, junto ao qual lidera o Grupo de Pesquisa “Atividade Empresarial e Administração Pública”.140 FERREIRA, Daniel. Função social da licitação pública: o desenvolvimento nacional sustentável (no e do Brasil antes e depois da MP 495/2010). In: Fórum de contratação e gestão pública – FCGP. Belo Horizonte: Fórum, 2010, ano 9, n .107 nov. p. 49-64.

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porque não mais pode haver “benefício neutro”, aquele que apenas considera como juridicamente relevantes os benefícios econômicos para a Administração e a utilidade obtida diretamente pelos destinatários da obra pública, por exemplo. É que o interesse (público) geral exige mais, muito mais.141

Portanto, com base no direito atualmente vigente, qualquer licitação instaurada no Brasil não apenas pode como deve promover o desenvolvimento nacional sustentável, o que coloca em cheque, de plano, as razões jurídicas de legitimidade vislumbradas para algumas das disposições contidas no art. 24 da Lei nº 8.666 antes da mudança radical operada em 2010. É que a justificativa outrora encontrada para elas era exatamente a satisfação de outro interesse público relevante que, mui excepcionalmente, poderia encontrar na licitação um difícil empecilho, senão mesmo um obstáculo intransponível.

Em suma, dada a nítida mudança de cenário, é preciso rever alguns “dogmas”, especialmente para refletir acerca do (des)acerto de certas posições e conclusões tomadas ao longo do tempo em relação aos pactos firmados entre as entidades do Terceiro Setor e a Administração Pública, com ou sem prévia licitação. Este, afinal, é o escopo deste perfunctório estudo.

CONTRATAÇÃO ADMINISTRATIVA

Para que se possa analisar a contratação direta de entidades do Terceiro Setor faz-se necessário, por primeiro, melhor compreender e delimitar a contratação administrativa, que se assume, para fins deste ensaio, viabilizada basicamente por dois instrumentos, o contrato administrativo e o convênio.

Isso porque, antecipa-se, a satisfação – direta ou indireta, imediata ou mediata – da necessidade ou da utilidade coletiva (e que, na passagem, engloba a necessidade ou a utilidade administrativa) pode dar-se por intermédio de um instrumento ou de outro, conforme o caso e como se fará notar.

CONTRATO ADMINISTRATIVO

Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO conceitua contrato administrativo como um “tipo de avença travada entre a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do

141 .FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 39.

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contratante privado”.142 Daí se extrai três importantes características para fins de identificação do contrato administrativo – (i) as cambiáveis imposições de interesse público (leia-se: a presença de cláusulas exorbitantes)143, (ii) os interesses contrapostos144 e (iii) a natureza privada do parceiro145.

Em princípio, pois, somente haverá contrato administrativo em senso estrito146 quando o negócio for firmado pela Administração Pública (nesta especial condição) com particulares.

Demais disso, ao contrato administrativo compete, por excelência, viabilizar a satisfação das necessidades ou das utilidades da coletividade ou da própria Administração Pública.147 Por esse motivo ele é diuturnamente manejado e nas mais franciscanas situações.

CONVÊNIO

No entanto, não se pode desprezar a existência dos “acordos firmados entre entidades públicas de qualquer espécie, ou entre estas e organizações particulares, para realização de objetivos de interesse comum dos partícipes”,148 ditos convênios. Nestes não há interesses contrapostos, porque os signatários têm idênticos ou, pelo menos, similares objetivos institucionais. Da mesma forma, não há contrapartida remuneratória pela ausência de atrelada prestação obrigacional contratada e, por fim, não se propõe o tema de aplicação de sanções,149 menos ainda unilateralmente,

142 . BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 632-633. 143 .Como a alteração unilateral do contrato, a imposição de sanções etc. 144 . Enquanto o vendedor pretende as maiores vantagens com o negócio, como receber de uma só vez o maior preço pela coisa, o comprador almeja, em especial, o menor desembolso no maior número de parcelas possível.145 . Ou seja, ele não integra a Administração Pública. Quando isso excepcionalmente ocorre, (em tese) a entidade contratada (da Administração Indireta, como a sociedade de economia mista que explora atividade econômica) se submete, no ajuste, como se particular fosse. 146 . Mas há outros, denominados contratos da Administração Pública, nos quais esta, ainda quando contratante, não se apresenta em condição de privilégio, por falta da necessidade de tutela do interesse público. Logo, sua presença se faz indiferente na relação, de sorte que o liame será regido, basicamente, pelas regras ordinárias de direito privado e não pelo regime jurídico-administrativo.147 .Respectivamente mediante a prestação de serviços públicos, formalizada por meio de um contrato de concessão, ou da execução de obra pública voltada a sediar órgão administrativo (por exemplo). 148 . MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 408.149 . Sustentando – e justificando – o contrário: DE BRITTO, Alzemeri Martins Ribeiro; VALADÃO, Perpétua Leal Ivo. Convênios administrativos celebrados com entidades privadas – necessidade de rediscussão do cabimento de seleção prévia e da possibilidade de sanções

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porquanto não exista posição de privilégio de um sobre o outro. O que existe, de fato e de direito, é cooperação, por conta da qual se

verifica mútua colaboração, mediante repasse de verbas, uso de equipamentos, de recursos humanos e materiais, know-how e outros, colimando a obtenção de resultados almejados em comum.150 Nessa toada, os convênios na atualidade têm larga e relevante utilidade e que em muito supera a sua original vocação, a de simplesmente possibilitar a descentralização administrativa, mediante intercâmbio de servidores, bens e estruturas públicas.151

CONTRATOS ADMINISTRATIVOS E CONVÊNIOS: INSTRUMENTO DE PAC-TUAÇÃO COM O TERCEIRO SETOR152

Ocorre que a figura – e mesmo o préstimo – dos contratos administrativos e dos convênios acabou rediscutida por conta de institutos relativamente recentes, trazidos à baila no final da década de noventa. São eles os contratos

administrativas. In: Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 171, mai. 2008. 150 .DI PIETRO, Maria Sylvia. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 230.151 . Decreto-Lei nº 200/67: Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada. § 1º A descentralização será posta em prática em três planos principais: a) dentro dos quadros da Administração Federal, distinguindo-se claramente o nível de direção do de execução; b) da Administração Federal para a das unidades federadas, quando estejam devidamente aparelhadas e mediante convênio; c) da Administração Federal para a órbita privada, mediante contratos ou concessões.152 .Decreto 6.170/07: Art.  1o    Este Decreto regulamenta os convênios, contratos de repasse e termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da administração pública federal com órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, para a execução de programas, projetos e atividades de interesse recíproco que envolvam a transferência de recursos oriundos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União. § 1º Para os efeitos deste Decreto, considera-se: I - convênio - acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento que discipline a transferência de recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou entidade da administração pública federal, direta ou indireta, e, de outro lado, órgão ou entidade da administração pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, ou ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, visando a execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação; (...).O Decreto nº 93.872/86, revogado pelo Decreto nº 6.170/07, assim estipulava: Art. 48. Os serviços de interesse recíproco dos órgãos e entidades de administração federal e de outras entidades públicas ou organizações particulares, poderão ser executados sob regime de mútua cooperação, mediante convênio, acordo ou ajuste. § 1º Quando os participantes tenham interesses diversos e opostos, isto é, quando se desejar, de um lado, o objeto do acordo ou ajuste, e de outro lado a contraprestação correspondente, ou seja, o preço, o acordo ou ajuste constitui contrato.

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de gestão153 e os termos de parceria,154 imbricados, respectivamente, com as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público, que nada mais são do que associações civis sem fins lucrativos ou fundações privadas que preencham certos requisitos legais,155 exigência necessária para a qualificação.

O atrapalho adicional é que essas novas formas de ajuste podem assumir naturezas diversas, de sorte que “caberá examinar a situação concreta para atingir uma conclusão. O regime jurídico aplicável dependerá da identificação

153 . Lei nº 9.637/98: Art.  5o  Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1o.Art. 6o O contrato de gestão, elaborado de comum acordo entre o órgão ou entidade supervisora e a organização social, discriminará as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da organização social. Parágrafo único. O contrato de gestão deve ser submetido, após aprovação pelo Conselho de Administração da entidade, ao Ministro de Estado ou autoridade supervisora da área correspondente à atividade fomentada.Art. 7o Na elaboração do contrato de gestão, devem ser observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e, também, os seguintes preceitos: I - especificação do programa de trabalho proposto pela organização social, a estipulação das metas a serem atingidas e os respectivos prazos de execução, bem como previsão expressa dos critérios objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e produtividade; II - a estipulação dos limites e critérios para despesa com remuneração e vantagens de qualquer natureza a serem percebidas pelos dirigentes e empregados das organizações sociais, no exercício de suas funções. Parágrafo único. Os Ministros de Estado ou autoridades supervisoras da área de atuação da entidade devem definir as demais cláusulas dos contratos de gestão de que sejam signatários.154 . Lei nº 9.790/99: Civil de Interesse Público; II - a de estipulação das metas e dos resultados a serem atingidos e os respectivos prazos de execução ou cronograma; III - a de previsão expressa dos critérios objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de resultado; IV - a de previsão de receitas e despesas a serem realizadas em seu cumprimento, estipulando item por item as categorias contábeis usadas pela organização e o detalhamento das remunerações e benefícios de pessoal a serem pagos, com recursos oriundos ou vinculados ao Termo de Parceria, a seus diretores, empregados e consultores; V - a que estabelece as obrigações da Sociedade Civil de Interesse Público, entre as quais a de apresentar ao Poder Público, ao término de cada exercício, relatório sobre a execução do objeto do Termo de Parceria, contendo comparativo específico das metas propostas com os resultados alcançados, acompanhado de prestação de contas dos gastos e receitas efetivamente realizados, independente das previsões mencionadas no inciso IV; VI - a de publicação, na imprensa oficial do Município, do Estado ou da União, conforme o alcance das atividades celebradas entre o órgão parceiro e a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, de extrato do Termo de Parceria e de demonstrativo da sua execução física e financeira, conforme modelo simplificado estabelecido no regulamento desta Lei, contendo os dados principais da documentação obrigatória do inciso V, sob pena de não liberação dos recursos previstos no Termo de Parceria.155 .JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 299.

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do substrato da relação jurídica pactuada”.156 Destarte, a Administração Pública pode ajustar com o Terceiro Setor mediante a firmação de contratos administrativos ou de convênios, estejam eles formalizados, ainda, como contratos de gestão ou termos de parceria.

O que importa é reconhecer que em alguns deles haverá obrigações assumidas mediante contraprestação pecuniária contratualizada e, em outros, a assunção de encargos voluntários em prol de interesses comuns e institucionalizados, por conta dos quais o Poder Público concorrerá com o repasse de numerário, equipamentos, servidores etc. Por sua vez, ao convenente competirá não apenas a manutenção das atividades coletivamente desejadas, mas o atingimento de metas específicas dentre outras específicas atribuições.157

Contudo, e adiantando um problema, não se pode confundir a atuação estatal deliberadamente voltada ao fomento do Terceiro Setor, em regime de colaboração (mediante convênio ou de instrumento de mesma índole), com a contratação, – pura, simples e episódica – de entidades daquela ordem, precedida

156 .Idem, ibidem. p. 299.157 . Lei nº 8.666/93: Art.  116.    Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração. § 1o  A celebração de convênio, acordo ou ajuste pelos órgãos ou entidades da Administração Pública depende de prévia aprovação de competente plano de trabalho proposto pela organização interessada, o qual deverá conter, no mínimo, as seguintes informações: I  -  identificação do objeto a ser executado; II  -  metas a serem atingidas; III - etapas ou fases de execução; IV - plano de aplicação dos recursos financeiros; V - cronograma de desembolso; VI - previsão de início e fim da execução do objeto, bem assim da conclusão das etapas ou fases programadas; VII - se o ajuste compreender obra ou serviço de engenharia, comprovação de que os recursos próprios para complementar a execução do objeto estão devidamente assegurados, salvo se o custo total do empreendimento recair sobre a entidade ou órgão descentralizador. § 2o  Assinado o convênio, a entidade ou órgão repassador dará ciência do mesmo à Assembléia Legislativa ou à Câmara Municipal respectiva. § 3o   As parcelas do convênio serão liberadas em estrita conformidade com o plano de aplicação aprovado, exceto nos casos a seguir, em que as mesmas ficarão retidas até o saneamento das impropriedades ocorrentes: I - quando não tiver havido comprovação da boa e regular aplicação da parcela anteriormente recebida, na forma da legislação aplicável, inclusive mediante procedimentos de fiscalização local, realizados periodicamente pela entidade ou órgão descentralizador dos recursos ou pelo órgão competente do sistema de controle interno da Administração Pública; II  -  quando verificado desvio de finalidade na aplicação dos recursos, atrasos não justificados no cumprimento das etapas ou fases programadas, práticas atentatórias aos princípios fundamentais de Administração Pública nas contratações e demais atos praticados na execução do convênio, ou o inadimplemento do executor com relação a outras cláusulas conveniais básicas; III  -  quando o executor deixar de adotar as medidas saneadoras apontadas pelo partícipe repassador dos recursos ou por integrantes do respectivo sistema de controle interno.

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ou não de licitação, para prestação de serviços.158/159

Mas antes de resolver esse imbróglio impõe-se precisar em que consiste esse intitulado “Terceiro Setor”.

TERCEIRO SETOR

O Terceiro Setor é “um sector intermediário entre o Estado e o mercado, entre o sector público e o privado, que compartilha de alguns traços de cada um deles”.160 Ele objetiva “retratar a prestação de bens e serviços por parte de organizações não estaduais e não lucrativas muito diversas – como as cooperativas, as mutualidades, as igrejas, as organizações beneficentes, as fundações de fins sociais –, muitas vezes baseadas em doações de fundos e na colaboração voluntária”.161

Destarte, não configura algo novo, que deva ser criado, ou, ainda pior, mantido pelo Estado; ao contrário, as entidades do Terceiro Setor podem e devem ser autossuficientes, de forma a subsistir no cumprimento de seus misteres sem qualquer apoio estatal, o que, de outra banda, não inibe o interesse coletivo na sua existência e manutenção.

O terceiro setor coexiste com o primeiro setor, que é o Estado, e o segundo setor, que é o mercado. Na realidade, ele caracteriza-se por

158 . Assim, apesar da amplitude do conceito de convênio comumente adotado, é importante ressaltar que os convênios entre o Poder Público e entidades privadas têm como objetivo instrumentalizar a atividade administrativa de fomento. O convênio não deve ser utilizado para obtenção, mediante remuneração, de um bem ou serviço de interesse próprio do ente público convenente, mas para incentivo a que determinada atividade de interesse público seja realizada pela entidade privada. [MÂNICA, Fernando Borges. Negócio jurídico para prestação de serviços por entidade do terceiro setor – natureza jurídica, requisitos, critérios e procedimento para celebração do ajuste. In: Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 174, ago. 2008].159 . Essa é, também, a compreensão do C. Tribunal de Contas da União – Ementa: Representação formulada pela Procuradoria da República PA. Possíveis irregularidades praticadas pela ELETRONORTE. Convênio com a Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa para elaboração do estudo e do relatório de impacto ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Inadequação do instituto jurídico utilizado, face a inexistência de interesse comum e o objeto do ajuste ser uma contraprestação de serviços. Conhecimento. Procedência parcial. Determinação. Juntada às contas (TCU, Ac. 10/2002, Rel. Min. Ubiratan Aguiar, Plenário, j. 23/01/2002). Estranhamente, porém, o E. Supremo Tribunal Federal já decidiu em contrário, admitindo a existência de convênios de prestação de serviços ao analisar suposto crime de dispensa irregular de licitação fundada no art. 24, inc. XIII, da Lei nº 8.666/93 (STF, Inq 1957, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 11/05/2005). 160 . MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e administração pública. Coimbra: Almedina, 1997. p. 33.161 . Idem, ibidem.

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prestar atividade de interesse público, por iniciativa privada, sem fins lucrativos; precisamente pelo interesse público da atividade, o estado tem interesse em fazer parceria com as mesmas, dentro da atividade de fomento; (...).162

É que “assiste-se atualmente a uma repartição das responsabilidades entre Estado, iniciativa privada (responsabilidade social empresarial) e sociedade civil (terceiro setor) para a consecução de atividades que têm por fim gerar benefícios à coletividade”.163 De fato,

Foi-se o tempo em que todo empresário poderia ser visto como um oportunista escravizador que se valia do poder do capital para espoliar as forças de trabalho. Hoje, muitos se mostram espontaneamente engajados na minimização das desigualdades sociais e regionais, na busca do pleno emprego, na promoção do desenvolvimento nacional (sustentável) e na edificação da nossa sociedade como livre, justa e solidária. Portanto, com marcante compreensão da função social da propriedade, da empresa e dos contratos. De conseguinte, não pouca vez atuam lado a lado com o Poder Público almejando erradicar a pobreza e a marginalização, de modo a materializar – ainda que aos poucos – a democracia e fazer da dignidade da pessoa humana não apenas um sonho distante, mas uma meta a ser plenamente atingida.164

Logo, é no entorno do princípio da subsidiariedade165 e da promoção do

162 . DI PIETRO, Maria Sylvia. Obra citada, p. 249.163 . OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito ao desenvolvimento na Constituição Brasileira de 1988. p. 5. Disponível em: http://www.justinodeoliveira.com.br/wp-content/uploads/2011/10/26_Direitoaodesenvolvimento._Gustavo_Justino_mar_08.pdf. Acesso: 06 de maio de 2012. 164 . FERREIRA, Daniel. Inovações para a responsabilidade socioambiental das empresas: o papel das licitações e dos contratos administrativos. In: DOTTA, Alexandre Godoy; HACHEM, Daniel Wunder; REIS, Luciano Elias. (Org.) ANAIS do I Seminário Ítalo-Brasileiro em Inovações Regulatórias em Direitos Fundamentais, Desenvolvimento e Sustentabilidade. Curitiba: Negócios Públicos, 2011. pp. 42-65.165 . “No direito público o princípio da subsidiariedade serve para fundamentar uma nova concepção de Estado, onde o papel do Poder Público deve ser delimitado ao fito de se resguardar a liberdade, a autonomia e a dignidade humana. (...) A grande virtude do princípio está em que a partir dele se dá primazia ao grupo social e ao indivíduo, com a devolução à sociedade civil de matérias de interesse geral que possam ser eficazmente por ela realizadas. A subsidiariedade eleva a sociedade civil ao primeiro plano na estrutura organizacional do Estado e concebe a cidadania ativa como pressuposto básico para sua realização, colocando a instância privada a serviço do interesse geral a partir, também, da idéia de solidariedade, que se funda, principalmente, na maior eficiência da ação social sobre a ação estatal junto a grupos menores” (DA ROCHA. Sílvio Luís Ferreira. Terceiro setor. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 15-16.)

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desenvolvimento nacional sustentável, como objetivo da República166 e como terceira finalidade da licitação, que se percebe que firmar contrato administrativo ou convênio com entidade do Terceiro Setor pode figurar tão relevante quanto contratar com empresário que cumpre função social; com aquele que não apenas atende aos reclamos legais, mas que o faz com voluntária folga, de sorte a maximizar sua responsabilidade social.

Em face do realinhamento do papel do Estado, muitas das ações qualificadas como ações do Estado passaram a ser levadas a cabo por organizações provadas, com e sem ânimo de lucro. Ressurgiram institutos consagrados do direito público, como as concessões e permissões de serviços públicos, bem como emergiram termos e expressões como terceirização, parceria, gestão compartilhada e transferência, todos representativos dessas relações associativas ou colaborativas entre Estado e sociedade.167

O que não se admite, entretanto e em nenhuma hipótese, é que o Estado busque ilicitamente se desonerar de seus mais basilares misteres, especialmente na prestação de serviços sociais exigidos constitucionalmente, mediante terceirização a qualquer título168/169 e seja lá com quem for. Basta considerar o

166 .O desenvolvimento nacional sustentável pode ser inicialmente decantado da combinação dos incisos Ia IV do art. 3º da Carta Magna (: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação). Contudo, a eles se devem somar todas as precauções constitucionais em matéria ambiental, com destaque para o inciso VI do art. 170 [: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação] c/c o art. 225 (: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações).167 . MÂNICA, Fernando Borges. Negócio...168 .VIOLIN, Tarso Cabral. Estado, ordem social e privatização: as terceirizações ilícitas da Administração Pública por meio das organizações sociais, Oscips e demais entidades do terceiro setor. In: Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 168, fev. 2008.169 . Ementa:  AÇÃO CIVIL PÚBLICA. NULIDADE DE CONVÊNIO ENTRE O MUNICÍPIO DE CORONEL BICACO E A APAE LOCAL. TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS DO PROGRAMA DE SAÚDE DE FAMÍLIA. É nulo o convênio firmado entre Município e associação, para fornecimento de mão de obra a serviço público de saúde, sem que tenha havido concurso público e sequer tendo a entidade por fim essa atividade. Hipótese em que os profissionais da área

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conferir o que determina a Carta da República.170

Assim sendo, pouco importa tratar-se de uma fundação privada, associação, organização social171 ou mesmo de uma organização da sociedade civil de

da saúde são contratados por interposta pessoa (APAE), prestando serviço municipal junto ao Programa Saúde da Família, remunerados pela comuna através daquela entidade. APELAÇÃO DESPROVIDA. VOTO VENCIDO EM PARTE. (Apelação Cível Nº 70033045790, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins, Julgado em 10/12/2009.)170 . Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; (...) IV - a obrigação de manter serviço adequado. (...)Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. (...)Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...)Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (destaques nossos).171 . Lei nº 9.637/98: Art.  1o  O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.Art.  2o  São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social: I  -  comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre: a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação; b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades; c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei; d)  previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral; (...) h)  proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese, inclusive em razão de desligamento, retirada ou falecimento de associado ou membro da entidade; i) previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados; II - haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou

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interesse público.172 Nenhuma entidade do Terceiro Setor pode fazer-se substituir

regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado.172 . Lei nº 9.790/99: Art. 1o Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei.  § 1o Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurídica de direito privado que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social. § 2o A outorga da qualificação prevista neste artigo é ato vinculado ao cumprimento dos requisitos instituídos por esta Lei.Art. 2o  Não são passíveis de qualificação como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, ainda que se dediquem de qualquer forma às atividades descritas no art. 3o desta Lei: I - as sociedades comerciais; II - os sindicatos, as associações de classe ou de representação de categoria profissional; III - as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais e confessionais; IV - as organizações partidárias e assemelhadas, inclusive suas fundações; V - as entidades de benefício mútuo destinadas a proporcionar bens ou serviços a um círculo restrito de associados ou sócios; VI - as entidades e empresas que comercializam planos de saúde e assemelhados; VII - as instituições hospitalares privadas não gratuitas e suas mantenedoras; VIII - as escolas privadas dedicadas ao ensino formal não gratuito e suas mantenedoras; IX - as organizações sociais; X - as cooperativas; XI - as fundações públicas; XII - as fundações, sociedades civis ou associações de direito privado criadas por órgão público ou por fundações públicas; XIII - as organizações creditícias que tenham quaisquer tipo de vinculação com o sistema financeiro nacional a que se refere o art. 192 da Constituição Federal.Art. 3o  A qualificação instituída por esta Lei, observado em qualquer caso, o princípio da universalização dos serviços, no respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham pelo menos uma das seguintes finalidades: I - promoção da assistência social; II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei; IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei; V - promoção da segurança alimentar e nutricional; VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; VII - promoção do voluntariado; VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza; IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar; XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo. Parágrafo único. Para os fins deste artigo, a dedicação às atividades nele previstas configura-se mediante a execução direta de projetos, programas, planos de ações correlatas, por meio da doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou ainda pela prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que atuem em áreas afins.Art. 4o Atendido o disposto no art. 3o, exige-se ainda, para qualificarem-se como Organizações

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ao Estado, menos ainda para intermediar a prestação de serviços públicos, a ele acometidos por força de lei ou por determinação constitucional.

O ESTADO NEM SEMPRE É SUFICIENTE EM SI

Contudo, isso não evita situações corriqueiras que reclamam por solução heróica, fático-jurídica inclusive, como a compulsória contratação de prestadores de serviço, com ou sem intuito de lucro (como as empresas e as cooperativas), ou mesmo a firmação de convênio (com entidade do Terceiro Setor) para complementar ou mesmo para suplementar certos serviços públicos essenciais.

Não são poucas as vezes em que há razoável prestação de serviços públicos diretamente pelo Estado, o que não equivale a dizer que ela seja completa ou mesmo satisfatória para toda a comunidade a ser atendida. Por exemplo,

da Sociedade Civil de Interesse Público, que as pessoas jurídicas interessadas sejam regidas por estatutos cujas normas expressamente disponham sobre: I - a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência; II - a adoção de práticas de gestão administrativa, necessárias e suficientes a coibir a obtenção, de forma individual ou coletiva, de benefícios ou vantagens pessoais, em decorrência da participação no respectivo processo decisório; III - a constituição de conselho fiscal ou órgão equivalente, dotado de competência para opinar sobre os relatórios de desempenho financeiro e contábil, e sobre as operações patrimoniais realizadas, emitindo pareceres para os organismos superiores da entidade; IV - a previsão de que, em caso de dissolução da entidade, o respectivo patrimônio líquido será transferido a outra pessoa jurídica qualificada nos termos desta Lei, preferencialmente que tenha o mesmo objeto social da extinta; V - a previsão de que, na hipótese de a pessoa jurídica perder a qualificação instituída por esta Lei, o respectivo acervo patrimonial disponível, adquirido com recursos públicos durante o período em que perdurou aquela qualificação, será transferido a outra pessoa jurídica qualificada nos termos desta Lei, preferencialmente que tenha o mesmo objeto social; VI - a possibilidade de se instituir remuneração para os dirigentes da entidade que atuem efetivamente na gestão executiva e para aqueles que a ela prestam serviços específicos, respeitados, em ambos os casos, os valores praticados pelo mercado, na região correspondente a sua área de atuação; VII - as normas de prestação de contas a serem observadas pela entidade, que determinarão, no mínimo: a) a observância dos princípios fundamentais de contabilidade e das Normas Brasileiras de Contabilidade; b) que se dê publicidade por qualquer meio eficaz, no encerramento do exercício fiscal, ao relatório de atividades e das demonstrações financeiras da entidade, incluindo-se as certidões negativas de débitos junto ao INSS e ao FGTS, colocando-os à disposição para exame de qualquer cidadão; c) a realização de auditoria, inclusive por auditores externos independentes se for o caso, da aplicação dos eventuais recursos objeto do termo de parceria conforme previsto em regulamento; d) a prestação de contas de todos os recursos e bens de origem pública recebidos pelas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público será feita conforme determina o parágrafo único do art. 70 da Constituição Federal. Parágrafo único. É permitida a participação de servidores públicos na composição de conselho de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, vedada a percepção de remuneração ou subsídio, a qualquer título.

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contratar médicos anestesistas ou ginecologistas no interior, especialmente em regime estatutário, é para poucos, muito poucos municípios. Nada obstante, nem mesmo o desinteresse da classe pelo chamamento público para a firmação desse tipo de vínculo – legal, profissional e permanente – justifica a ausência de disponibilização do serviço específico pelo Poder Público.

É em situações exatamente como essa que mais nitidamente vêm à tona a necessidade-utilidade do empresariado ou do Terceiro Setor na realização do interesse público que o Estado, sozinho, não deu conta de satisfazer. Mas como será possível firmar validamente tais parcerias?

O ESTADO CONTRATANTE E A LICITAÇÃO COMO IMPERATIVO CONSTITUCIONAL Por se tratar o Brasil de uma República, nem seria preciso, mas a

Constituição foi taxativa, ao dispor no inciso XXI do art. 37 que “ ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.

Logo, tanto a contratação administrativa de serviços como a firmação de convênios173 devem ser ordinariamente precedidas de licitação.

173 . É o que se extrai da combinação dos arts. 2º e 116 da Lei nº 8.666/93: Art.  2o  As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei. (...) Art. 116.  Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração. Nada obstante, no âmbito da União o Decreto nº 6.170/2007 (com a redação dada pelo Decreto nº 7.568/2011) só reforça essa necessidade:Art. 4o A celebração de convênio ou contrato de repasse com entidades privadas sem fins lucrativos será precedida de chamamento público a ser realizado pelo órgão ou entidade concedente, visando à seleção de projetos ou entidades que tornem mais eficaz o objeto do ajuste.  § 1o Deverá ser dada publicidade ao chamamento público, inclusive ao seu resultado, especialmente por intermédio da divulgação na primeira página do sítio oficial do órgão ou entidade concedente, bem como no Portal dos Convênios. §  2o    O Ministro de Estado ou o dirigente máximo da entidade da administração pública federal poderá, mediante decisão fundamentada, excepcionar a exigência prevista no caput nas seguintes situações: I - nos casos de emergência ou calamidade pública, quando caracterizada situação que demande a realização ou manutenção de convênio ou contrato de repasse pelo prazo máximo de cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação da vigência do instrumento; II - para a realização de programas de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer sua segurança; ou III - nos casos em que o projeto, atividade ou serviço

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O ajuste direto, sem licitação, configura hipótese excepcional, que apenas se justifica e legitima por inviabilidade de competição (configuradora de inexigibilidade) ou por conta de extraordinário interesse público, assim reconhecido por lei (em situações taxativas de dispensabilidade, portanto), mas apenas quando efetivamente presente no caso concreto.

Demais disso, antes da alteração do art. 3º da LGL, apenas a necessidade de observância do princípio da isonomia (e de seu correlato, o da impessoalidade) levaria à mesma conclusão, ficando as supostas autorizações para contratação direta, contidas nos incisos do art. 24, sujeitas a confirmação do real interesse público na avença fugidia à competição.

INVIABILIDADE DE COMPETIÇÃO (INEXIGIBILIDADE)

Em hipóteses de inviabilidade de competição, lastreadas na singularidade do objeto ou mesmo do parceiro, tanto a contratação administrativa de serviços com a iniciativa privada – interessada ou não no lucro resultante da atividade – como a firmação de convênios exige a fuga da licitação.

Licitar, no caso, é proibido, por contrariar o interesse público, quer porque a instauração do processo administrativo concorrencial delongaria no tempo a prestação necessária, quer pelo fato de importar em gastos absolutamente desnecessários, porque desprovidos de utilidade.

objeto do convênio ou contrato de repasse já seja realizado adequadamente mediante parceria com a mesma entidade há pelo menos cinco anos e cujas respectivas prestações de contas tenham sido devidamente aprovadas. Afinal, a LDO 2012 (Lei nº 12.465/2011) põe uma pá de cal no assunto, ao assim estatuir, reclamando seleção prévia (que se pressupõe como isonômica e objetiva), comprovação de aptidão para firmação do pacto e a própria existência da entidade por pelo menos três anos antes do recebimento de qualquer benesse da União: Art. 34.  Sem prejuízo das disposições contidas nos arts. 30, 31, 32 e 33 desta Lei, a transferência de recursos prevista na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, a entidade privada sem fins lucrativos, nos termos do disposto no § 3º do art. 12 da Lei nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997, dependerá da justificação pelo órgão concedente de que a entidade complementa de forma adequada os serviços prestados diretamente pelo setor público e ainda de: (...) VI - publicação, pelo Poder respectivo, de normas, a serem observadas na concessão de subvenções sociais, auxílios e contribuições correntes, que definam, entre outros aspectos, critérios objetivos de habilitação e seleção das entidades beneficiárias e de alocação de recursos e prazo do benefício, prevendo-se, ainda, cláusula de reversão no caso de desvio de finalidade; VII - comprovação pela entidade da regularidade do mandato de sua diretoria, além da comprovação da atividade regular nos últimos 3 (três) anos, por meio da declaração de funcionamento regular da entidade beneficiária, inclusive com inscrição no CNPJ, emitida no exercício de 2012 por 3 (três) autoridades locais sob as penas da lei; (...).

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DISPENSABILIDADE DE LICITAÇÃO

De outra banda, seja por condições específicas do caso (atreladas aos fatores “tempo”, “custo econômico” ou “falta de potencial benefício”), seja por conta dos “especiais fins pretendidos alcançar” ou mesmo dos “atributos pessoais dos destinatários” da exceção legalmente estatuída, as virtuais razões de legitimação para as hipóteses abstratamente emolduradas no art. 24 da Lei nº 8.666/93 devem ser confirmadas uma a uma, caso a caso.

E isso por uma razão simples: conforme as circunstâncias, ainda assim a licitação poderá ser material e juridicamente possível, portanto, exigível; basta que o interesse público valorado no caso concreto assim o recomende. O que se admite, no entanto, é uma eventual simplificação do processo, nem que o seja, exemplificativamente, para garantir a isonomia e para propiciar a seleção da proposta mais vantajosa em situações de contratação módica.

Em similar vertente, não basta que a lei permita, em tese, a contratação emergencial direta de um prestador de serviços. É preciso que tanto a emergência como a urgência na satisfação da necessidade desautorizem, de plano, a prévia realização da licitação.

In casu, sempre que houver tempo hábil, o imperativo constitucional se projetará sobre o permissivo legal, infirmando-o. Faz sentido, pois, a lei limitar a contratação para os “bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade” (inc. IV do art. 24). Excessos seriam intoleráveis, exatamente por falta de justa causa. No rol de tais exceções, previstas no art. 24 da LGL, há reserva de espaço para diversas categorias de parceiros desejados, como as empresas que simplesmente atuam no mercado,174 a Administração Indireta175 e as concessionárias e permissionárias de serviço público176 e, até mesmo, para as entidades sem fins lucrativos. Nesta última situação, as entidades são assumidas pelo legislador como de personalizado interesse público, conforme a qualificação jurídica e a própria atividade desempenhada.

174 . XVII  -  para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira, necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência da garantia (...).175 . XXIII - na contratação realizada por empresa pública ou sociedade de economia mista com suas subsidiárias e controladas, para a aquisição ou alienação de bens, prestação ou obtenção de serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.176 . XXII - na contratação de fornecimento ou suprimento de energia elétrica e gás natural com concessionário, permissionário ou autorizado, segundo as normas da legislação específica.

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CONTRATAÇÃO DIRETA (E DELIBERADA) COM ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR ANTES DA LEI Nº 12.349/2010

As possibilidades de “contratação direta” e deliberada com entidades do Terceiro Setor estão previstas no mesmo artigo de lei e, em tese, se sustentam basicamente por conta dos atributos pessoais do contratado.177

Isso não inviabiliza, todavia, que entidades sem fins lucrativos não possam ser diretamente contratadas em razão do objeto, de baixo valor da contratação ou, ainda, em situações excepcionais (como de calamidade).178 No entanto, isso também poderia acontecer, indistintamente, com empresas. Logo, em tais circunstâncias não é a qualidade de entidades sem fins lucrativos que legitima a solução legal extraordinária, restando para esta circunstância, apenas (sic), os incisos XIII, XX, XXIV e XXVII,179 que, outrora, poderiam ser compreendidos nos termos que se seguem.

Em princípio, a finalidade não-lucrativa de tais entidades aliada ao fato de sua vocação institucional aproximar-se das “razões-de-ser” do Estado era o que justificava a fuga dos certames concorrenciais; exatamente aqueles que, por regra, se dirigiriam ao mercado e, não por acaso, teriam na seleção da proposta (técnica e economicamente) mais vantajosa o fator de escolha do parceiro a ser contratado.

Contratação de Instituição Brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de

177 .NIEBHUR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum: 2011. p. 96. 178 .DE SOUSA, Leandro Marins. Parcerias entre a Administração Pública e o Terceiro Setor: sistematização e regulação. p. 139. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-27012011-103455/pt-br.php>. Acesso: 06 de maio de 2012. 179 .Art. 24.  É dispensável a licitação: (...) XIII - na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos; (...) XX - na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado; (...) XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão; (...) XXVII - na contratação da coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis, em áreas com sistema de coleta seletiva de lixo, efetuados por associações ou cooperativas formadas exclusivamente por pessoas físicas de baixa renda reconhecidas pelo poder público como catadores de materiais recicláveis, com o uso de equipamentos compatíveis com as normas técnicas, ambientais e de saúde pública.

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Instituição dedicada à recuperação social do presoA primeira hipótese está descrita no inciso XIII. E ela já foi bastante

analisada e criticada pela doutrina180 e pelas Cortes de Contas181 e de Justiça,182 exatamente porque a previsão regimental ou estatutária da incumbência de pesquisa e de desenvolvimento institucional acabou se prestando a viabilizar a contratação de quaisquer instituições e para os fins mais diversos.

Nada obstante, parece que a restrição de aplicação do dispositivo encontra-se sedimentada, de sorte que os parâmetros de sua concreta e escorreita utilização podem ser cumpridos com certa facilidade e, pois, dispensam maiores comentários, notadamente para os fins deste arrazoado.

Importa apenas lembrar que o valor da contratação não precisa ser o “de mercado”, mormente quando a instituição voltar-se à recuperação do preso, até mesmo porque a entidade não se encontra “no mercado” e em regime de livre concorrência. Ao contrário, a instituição como prevista em lei não pode estar a voluntariamente concorrer com ninguém, menos ainda para aumentar o leque de parceiros ou mesmo de contratantes para maximizar os resultados da atividade, como sói ocorrer no âmbito empresarial.

Logo, a competição, pela competição, não faz sentido, o que não inibe o dever de seleção do projeto mais adequado à parceria, por preço adequado (não-abusivo) e sem qualquer traço de subjetiva pessoalidade.

Contratação de Associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade,

180 . DE SOUSA, Leandro Marins. Parcerias... p. 139-146; JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012. p. 366-377.181 . Ementa: Administrativo. Projeto de súmula. Contratação de instituição sem fins lucrativos, por meio de dispensa de licitação, com fundamento no art. 24, XIII, da Lei nº 8.666/1993. Necessidade de nexo efetivo entre o mencionado dispositivo, a natureza da instituição e o objeto contratado, além da comprovada compatibilidade com os preços de mercado. Aprovação. Arquivamento. (ACÓRDÃO Nº 1279/2007 - TCU – PLENÁRIO, j. 27/06/2007, p. 29/06/2007).182 . Ementa: Constitucional e administrativo. Remessa oficial e apelação. Ação popular. Contratação direta para realização de concurso público para provimento de cargos e de cadastro reserva de cargos de Analista Judiciário e Técnico Judiciário do TRE/CE. Art. 24, XIII, da Lei nº 8.666/93. Princípios constitucionais regentes da Administração Pública. Violação. Contratadas sem experiência em certames de mesma natureza e com concursos invalidados por irregularidades. Contratação em confronto com a manifestação dos setores técnicos do órgão contratante. Procedência integral do pedido. Invalidação da contratação. Desprovimento da remessa ex officio. Pleito recursal de exame da postulação sob determinado argumento. Ausência de interesse recursal. Inexistência de obrigatoriedade de manifestação jurisdicional acerca de todas as alegações deduzidas pelas partes. Não conhecimento dessa parte do apelo. Honorários advocatícios. Pretensão recursal de majoração da condenação. Considerações acerca dos ônus sucumbenciais nas ações coletivas. Parcial provimento dessa parte do apelo. (TRF5, APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 15897/CE, Rel. Francisco Cavalcanti, j. 24/05/2012).

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para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obraEm boa medida, os mesmos comentários feitos acima se aplicam à novel

situação. A peculiaridade, entretanto, que salta aos olhos diz com o fornecimento de mão-de-obra (de portadores de deficiência). A intenção legislativa parece mirar a inclusão dos especiais no mercado de trabalho conferindo-lhes dignidade.

Portanto, não faria qualquer sentido cotejar propostas de fornecimento de mão-de-obra de especiais e não-especiais indistintamente e, do mesmo modo, pretender mensurar preços de atividades que, materialmente, serão prestadas de forma distintamente desejada, ainda que com eventual decréscimo de eficiência (nos resultados) e presteza (no atendimento).

O que importa, em tais hipóteses, não é a qualidade final da prestação, mas a eleição de quem pessoalmente prestará e porque prestará o serviço contratado. Basta ingressar em repartições públicas para poder perceber a aparente utilização dessa extraordinária (e elogiosa) opção legal nas portarias, nos primeiros guichês de atendimento ao público em geral.

Mas um detalhe é preciso ressaltar: a despeito de se tratar de exceção à regra (da licitação), a interpretação que o dispositivo reclama é aquela inteligente, que alberga o sentido necessário para cumprimento dos fins.183 Logo, onde se lê associação de portadores de deficiência física, leia-se física e mental. Interpretação restritiva (da hipótese “taxativa”) na passagem não há de ser confundida com interpretação restrita da finalidade legal.

Celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, para atividades contempladasno contrato de gestão184

183 . “DEVE O DIREITO SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela, sem efeito, inócua, ou êste, juridicamente nulo. Revela acrescentar o seguinte: ‘é tão defectivo o sentido que deixa ficar sem efeito (a lei), como o que não a faz produzir efeito senão em hipóteses tão gratuitas que o legislador evidentemente não teria feito uma lei para preveni-las’. Portanto, a exegese ha de ser de tal modo conduzida que explique o texto como não contendo superfluidades, e não resulte um sentido contraditório com o fim colimado ou o caráter do autor, nem conducente a conclusão física ou moralmente impossível.” (MAXIMILANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 2. ed. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1933. p. 183.)184 . Contudo, para que se escolha a Organização Social com a qual será firmado contrato de gestão, o processo administrativo licitatório, outra vez, apresenta-se como imperativo. Outro não foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – Ementa: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO, DÚVIDA OU FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONTRATO DE GESTÃO.

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Referida possibilidade foi assumida como inconstitucional por BANDEIRA DE MELLO no que concerne à celebração dos contratos de gestão propriamente ditos.185 E nisso lhe acode razão, porque contemporaneamente há inúmeras organizações sociais em prontidão para atender os mais variados anseios do Poder Público. Portanto, o caminho de escolha do futuro parceiro no contrato de gestão, em situações de pluralidade de interessados, indistintamente interessantes para fins de fomento estatal, há de ser o da seleção impessoal, mesmo que o critério não se reduza è escolha, e quanto o mais objetiva, da proposta mais vantajosa.

Demais disso, é preciso atentar para o fato de que a celebração do contrato de gestão tem duplo escopo: a formação de parceria entre as partes para (i) fomento (da entidade/atividade) e (ii) execução de atividades de interesse público prestadas pela entidade, conforme previsto no art. 5º da lei específica.186

BENEFÍCIOS PATRIMONIAIS. NECESSIDADE DE LICITAÇÃO. DANO PRESUMIDO. (...) 3. O ato discutido nos autos evidencia-se como viciado, flagrantemente, pela ilegalidade. O contrato de gestão, por resultar benefícios patrimoniais, deve, obrigatoriamente, ser precedido de licitação. O fato de já ter sido celebrado e consumado não afasta a possibilidade da decretação de sua nulidade, com efeitos ex-tunc. A Administração Pública tem compromisso maior com os princípios da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade, eficiência e transparência. O procedimento licitatório só pode ser dispensado ou inexigível nas situações previstas na Lei nº 8.666/93. Impossível ampliar as situações nela previstas. O descumprimento ou inobservância de princípios legais e constitucionais que norteiam a atuação estatal presume o risco do dano. 4. Recurso não provido (STJ, REsp 623197/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/09/2004, DJ 08/11/2004, p. 177).Não por acaso, o mesmo se exige para seleção da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público com o fito de celebrar termo de parceria, de sorte que o decreto regulamentar da Lei nº 9.790/1999 assim prevê: “Art. 23.   A escolha da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, para a celebração do Termo de Parceria, deverá ser feita por meio de publicação de edital de concursos de projetos pelo órgão estatal parceiro para obtenção de bens e serviços e para a realização de atividades, eventos, consultoria, cooperação técnica e assessoria.  § 1o Deverá ser dada publicidade ao concurso de projetos, especialmente por intermédio da divulgação na primeira página do sítio oficial do órgão estatal responsável pelo Termo de Parceria, bem como no Portal dos Convênios a que se refere o art. 13 do Decreto no 6.170, de 25 de julho de 2007. § 2o  O titular do órgão estatal responsável pelo Termo de Parceria poderá, mediante decisão fundamentada, excepcionar a exigência prevista no  caput  nas seguintes situações:  I  -  nos casos de emergência ou calamidade pública, quando caracterizada situação que demande a realização ou manutenção de Termo de Parceria pelo prazo máximo de cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação da vigência do instrumento;  II  -  para a realização de programas de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer sua segurança; ou III - nos casos em que o projeto, atividade ou serviço objeto do Termo de Parceria já seja realizado adequadamente com a mesma entidade há pelo menos cinco anos e cujas respectivas prestações de contas tenham sido devidamente aprovadas.”185 . BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... p. 243-246.186 . A situação do termo de parceria a ser firmado com as organizações da sociedade civil de interesse público encontra o mesmo entrave no art. 9º da Lei 9.790/99: não parece ser juridicamente possível contratar a prestação de serviços, apenas. É preciso a deliberada intenção de

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Desse modo, ao menos aparentemente, a contratação direta apenas faria sentido quando o objeto do contrato administrativo dissesse respeito, direto e imediato, à atividade fomentada em si, ou ainda quando não estivesse contemplado no original contrato de gestão, mas algum motivo superveniente assim o exigisse. Fora disso a contratação direta configuraria acintosa burla aos princípios da isonomia e da impessoalidade.

Contratação de associações ou cooperativas formadas exclusivamente por pessoas físicas de baixa renda

Pela aproximação temática, que alardeia a pretensão de inclusão social (mediante erradicação da pobreza e acesso ao mercado de trabalho) replicam-se os mesmos comentários feitos em relação de associação de portadores de deficiência.

E tudo isso fazia sentido, sem a necessidade de grandes considerações ou reflexões, mas apenas antes da inserção da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como terceira finalidade da licitação.

Em sínteseA perfunctória análise dessas possibilidades leva à conclusão de que tais

hipóteses, como legalmente previstas, tinham por escopo fomentar certos sujeitos por conta de certas atividades (sem fins lucrativos) reconhecidas como de relevante interesse geral, a ponto mesmo de se permitir sacrificar a busca da vantajosidade da proposta em competição isonômica. Essa era a justificativa de então.

Contudo, é preciso rever o cenário depois do advento da Lei nº 12.349/2010. E aqui reside o ápice deste estudo, rapidamente revisar as considerações e conclusões supra a partir do direito hic et nunc, porque ainda não se tem notícia do enfrentamento das possibilidades, dos parâmetros e dos limites para a contratação direta de entidades do Terceiro Setor depois dessa especial consideração.

Marçal JUSTEN FILHO, ao sistematizar as hipóteses de dispensa de licitação, apontou situações em que haveria uma “função extraeconômica da contratação: quando a contratação não for norteada pelo critério da vantagem econômica, porque o Estado busca realizar outros fins (incs. VI, IX, X, XIII, XV, XVI, XIX, XX, XXI, XXIV, XXV, XXVII, XXX e XXXI).”187 Entretanto, essa função “anômala” da contratação não pode se ver confundida com a função social da licitação.188

cooperação, naturalmente expressiva do fomento, e que em nada se confunde com o atendimento de uma necessidade singular, específica.187 .JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários... p. 335. 188 . Nada obstante, o Ministro Luiz Fux referiu-se a ambas, proferindo voto-vista da ADIN 1923, ao aproximar a fomento conferido pela LC 123/2006 às microempresas e a dispensabilidade de

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FUNÇÃO EXTRAECONÔMICA DA CONTRATAÇÃO x NOVA FINALIDADE LEGAL DA LICITAÇÃO

Não restam dúvidas de que a função extraeconômica da contratação administrativa serviu de mote para justificar a excepcional fuga da licitação como prevista na Lei nº 8.666/93, mormente no que se refere à real cooperação com entidades (legítimas) do Terceiro Setor.

Todavia, de longa data o ordenamento jurídico brasileiro vem distanciando a simplória satisfação da necessidade ou da utilidade, administrativa ou coletiva, mediante regular execução do objeto da licitação dos seus próprios fins: garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa e, hodiernamente ainda, a promover o desenvolvimento nacional sustentável.189

A PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL COMO TERCEIRA FINALIDADE LEGAL DA LICITAÇÃO

Antes da MP 495/2010 (que se viu convertida na Lei nº 12.349/2010) outros atos legislativos e mesmo administrativos davam conta da mudança do perfil teleológico do processo administrativo licitatório, que, na atualidade, exige a “função social” como nova finalidade legal. Função essa, perceba-se, que faz o interesse público transcender do objeto licitado ou da satisfação que com ele se visa obter.190

licitação relativa aos incisos XIII, XX, XXI e XXVII, exatamente para sustentar a constitucionalidade do inciso XXIV: “51. Por identidade de razões, mesmo a dispensa de licitação instituída no art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93 deve observar os princípios constitucionais. Em primeiro lugar, tal dispositivo não é, em abstrato, inconstitucional. A dispensa de licitação aí instituída tem uma finalidade que a doutrina contemporânea denomina de função regulatória da licitação, através da qual a licitação passa a ser também vista como mecanismo de indução de determinadas práticas sociais benéficas. Foi assim, por exemplo, que a Lei Complementar nº 123/06 institui diversos benefícios em prol de micro-empresas nas licitações públicas, estimulando o seu crescimento no mercado interno. E é com a mesma finalidade que os incisos XIII, XX, XXI e XXVII do art. 24 prevêem outros casos de dispensa, em idêntica linha ao que prevê o agora impugnado inciso XXIV. (Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ Voto__ADI1923LF.pdf>. Acesso: 10 de maio de 2012.Consulte, também: FERRAZ, Luciano. Função regulatória da licitação.  Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDE),  Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia, n. 19, ago./set./out. 2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-19-AGOSTO-2009-LUCIANO-FERRAZ.pdf> Acesso: 10 de maio de 2012.189 . FERREIRA, Daniel. Função social... 190 . “Finalidade ‘materia’ da licitação e finalidade da contratação administrativaContudo, ainda parece ser possível distinguir as três apontadas finalidades legais da licitação da sua finalidade material ordinária, qual seja a de viabilizar a satisfação da necessidade ou mesmo

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Agora, o interesse público volta-se ao sincero e nada comedido reconhecimento do “poder de compra estatal”191 e dele faz legítimo uso, induzindo os interessados à prática de comportamentos que aproveitam a todos os brasileiros, indistintamente.

Ou seja, daqui por diante não serão apenas os alunos os diretamente favorecidos com a merenda escolar fornecida pelo estado. À “nova” licitação cumprirá, a lattere, desenvolver a economia (eventualmente restringindo o acesso aos microempresários), garantir a preservação do meio ambiente (reclamando

da utilidade administrativa ou coletiva. Assim sendo, a finalidade material da licitação se aproxima, em muito, da finalidade (material) da contratação administrativa e no mesmo panorama antevisto para o objeto licitado e o objeto contratado: enquanto o fim ordinário da licitação é, abstratamente, tornar viável a satisfação da necessidade ou da utilidade, administrativa ou coletiva, a finalidade material da contratação administrativa é concretamente satisfazê-la, na forma e nas condições propostas.No contexto é preciso compreender, ademais e a partir do exemplo oferecido, que a Administração Pública, por meio de uma licitação, jamais pretende, em si e por si, adquirir um veículo. Sua intenção, na hipótese, recai na (viabilização da) satisfação de uma necessidade administrativa, de transportar pessoas e coisas, da forma mais adequada possível. Daí porque, em tese, sob o manto da discricionariedade — de liberdade nos limites da lei —, a solução administrativa “ótima” poderia se concretizar, similarmente, mediante licitação (e futura contratação) de outros objetos, como a locação de veículo ou a contratação de cooperativa (para prestação de serviços mediante fornecimento de veículo com motorista).Todavia, ainda assim a finalidade material da licitação (e da contratação administrativa) seria aquela de natureza ordinária, que não agregaria qualquer ganho extra, em especial para aqueles sujeitos que não fossem os destinatários diretos ou indiretos da regular execução do objeto licitado e contratado.Perceba-se: se a necessidade da Administração Pública reside na substituição de móveis funcionais, porque inservíveis, os diretamente favorecidos com a contratação administrativa serão os servidores que deles farão uso e, indiretamente, os usuários dos serviços por eles prestados porque, em tese, propiciarão melhores condições (e resultados) de trabalho.De outra banda, se com a licitação se almejar potencial satisfação de utilidade coletiva, como a prestação de serviço público de transporte de passageiros, então serão diretamente beneficiados os usuários e indiretamente, dentre outros, seus familiares, que gozarão da sua presença física maximizada, por conta do menor tempo despendido em deslocamentos. De qualquer sorte, nos dois simplórios exemplos mentados “os benefícios” da licitação — e mesmo da contratação — (em princípio) não se espraiam em outras direções coletivamente desejáveis e desejadas, como o fomento estatal ao microempreendedorismo ou à preservação do meio ambiente para as futuras gerações, dentre outras.Quando assim se der, então se estará diante de uma finalidade (material) adicional, extraordinária, no sentido de satisfação indireta e mediata de outros interesses também reconhecidos como relevantes pelo Direito, mas que em nada se confundem com aqueles direta e imediatamente imbricados com o objeto licitado e/ou contratado. (FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 34-35.) 191 . Confira, a título ilustrativo, a análise do Governo de Sergipe acerca do uso do “poder de compra” a favor das micro e pequenas empresas. Disponível em: <http://www.consad.org.br/sites/1500/1504/00001353.pdf> Acesso: 10 de maio de 2012.

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o fornecimento de legumes e verduras produzidos sem agrotóxico) e, ainda, determinando a compulsória apresentação da CNDT (Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas) como instrumento de prova da responsabilidade social.

Logo, a indução do mercado dar-se-á voluntariamente e em abstrato, pela simples expectativa de realizar negócios com o poder público. Não será apenas o contrato porventura firmado que cumprirá função extraeconômica, mas a própria licitação – em curso ou prevista para ser instaurada – realizará função social: a de promover o desenvolvimento nacional sustentável.

Sintetizando: não é mais juridicamente possível reconhecer a neutra seleção da proposta mais vantajosa, ainda que promovida de forma isonômica, como uma licitação realizada de forma válida. Ou ela também cumpre função social, ou será nula de pleno direito.

O NOVO IMPASSE: FOMENTAR O TERCEIRO SETOR OU FOMENTAR O DE-SENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL?

Não se nega que seja dever do Estado fomentar o Terceiro Setor. Da mesma forma, não é possível negar que promover o desenvolvimento nacional sustentável pela via das licitações (e, eventualmente, por meio dos contratos administrativos) é dever legal, e que configura condição de validade dos certames concorrenciais. E como resolver esse impasse?

A solução não parece tão problemática. Mas é preciso inteligência, no sentido de o fomento ser realmente deliberado, num ou noutro sentido, e, além disso, previamente motivado e planejado.

Fomento ao Terceiro SetorSe houver interesse público no fomento ao Terceiro Setor, então assim

se revele por meio do planejamento – de curto, médio e longo prazo –, como política de governo e, não por acaso, assim indicada no PPP (plano plurianual), além de nas específicas LDO (lei de diretrizes orçamentárias) e LOA (lei orçamentária anual).

Da mesma forma, será preciso identificar, objetivamente, no que consistirá a parceria, a cooperação, que jamais poderá ser confundida com a simples prestação de serviços pelas organizações sociais e pelas organizações sociais da sociedade civil de interesse público no contexto dos contratos de gestão e dos termos de parceria.

E somente depois de tudo isso é que, eventualmente, será possível cogitar, e.g., de contratação direta nos moldes do inciso XXIV do art. 24 da Lei nº 8.666/93. Dantes, para escolha de uma entidade a ser beneficiada com um convênio ou com um contrato administrativo “avulso”, será preciso promover

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a uma seleção isonômica – ainda que não necessariamente nos moldes da Lei nº 8.666/93. Contudo e por evidente, ficam mantidas como idôneas as hipóteses de inexigibilidade ou de dispensabilidade por fatores outros, como a singularidade (que inviabiliza seleção) e a urgência.

Fomento “aberto” ao desenvolvimento nacional sustentávelQuando não houver espaço para o planejado, motivado e deliberado

fomento ao Terceiro Setor – que é exceção; não a regra –, então será o caso de singelamente cumprir dever de ofício, ou seja, emprestar à licitação de tempos idos utilidade geral transcendente, sob pena de invalidade.

Essa nova utilidade geral há de amoldar-se à própria noção de desenvolvimento, que reclama por considerações de índole econômica, ambiental e social. De conseguinte, as preocupações em princípio estranhas ao objeto em si devem mirar o desenvolvimento nacional pleno, mas o que nem sempre será possível obter no caso concreto.

Conforme a esfera do ente licitante será de assimilação fácil o destaque para uma ou para outra das facetas do desenvolvimento, o que só reforça a idéia de o rumo ao desenvolvimento nacional ser um caminho que se constrói a cada dia e que deve ser analisado caso a caso. Isso não significa dizer, entretanto, que o controle (interno, judicial ou das Cortes de Contas) seja impossível, mas que não há fórmulas mágicas, de certeza e de incerteza, de validade e de invalidade nessa seara.

Mas até na névoa é possível enxergar uma luz, aquela que adverte a impossibilidade jurídica de se colocar, indiferentemente, entidades do Terceiro Setor e empresas disputando a prestação de serviços em licitação. Ou o objeto se dirige à contratação de empresas ou a entidades sem fins lucrativos e, neste caso ainda, há de haver justificativa séria, objetiva, motivada e congruente para tanto na fase interna da licitação e que não viole, ainda assim, o dever de promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Caso contrário, licitação conduzida pela indiferença conferiria tratamento igualitário aos desiguais e deixaria em situação de prejuízo concreto os empresários que cumprem função social, respondendo com folga às obrigações legais.

Expresso objetivo de maximizar a responsabilidade social empresarialE nesse sentido a legislação atual não é indiferente, porque ao objetivar

os mecanismos de valoração da promoção do desenvolvimento nacional pelo empresariado, induzindo-os a assim atuar ou a continuar atuando, fez as seguintes considerações:

Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a

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administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. § 1o É vedado aos agentes públicos:I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5o a 12 deste artigo e no art. 3o da Lei no8.248, de 23 de outubro de 1991; II - estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local de pagamentos, mesmo quando envolvidos financiamentos de agências internacionais, ressalvado o disposto no parágrafo seguinte e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991.§ 2o Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:I - (Revogado pela Lei nº 12.349, de 2010)II - produzidos no País;III - produzidos ou prestados por empresas brasileiras.IV - produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País. (...)§ 5o Nos processos de licitação previstos no caput, poderá ser estabelecido margem de preferência para produtos manufaturados e para serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras. § 6o A margem de preferência de que trata o § 5o será estabelecida com base em estudos revistos periodicamente, em prazo não superior a 5 (cinco) anos, que levem em consideração: I - geração de emprego e renda; II - efeito na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais; III - desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País; IV - custo adicional dos produtos e serviços; e V - em suas revisões, análise retrospectiva de resultados. § 7o Para os produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País, poderá ser

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estabelecido margem de preferência adicional àquela prevista no § 5o. § 8o As margens de preferência por produto, serviço, grupo de produtos ou grupo de serviços, a que se referem os §§ 5o e 7o, serão definidas pelo Poder Executivo federal, não podendo a soma delas ultrapassar o montante de 25% (vinte e cinco por cento) sobre o preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros. (negritamos.)

Salta aos olhos, portanto, a intenção legislativa de proteger a indústria nacional e, similarmente, a prestação de serviços por empresas brasileiras, conferindo vantagem competitiva (preferência em caso de empate ou margem de preferência) àquelas empresas com evidente impacto na geração de emprego e de renda, na arrecadação tributária, na inovação tecnológica etc.

A maximização da responsabilidade social empresarial passa a ser, pois, não apenas legalmente desejada, porém configura dever-poder para a Administração Pública – de sorte que a sua desconsideração imotivada (ou não suficientemente motivada) no certame ou em contratação direta passa a configurar erro grosseiro, no cumprimento da lei e do Direito. E para isso há responsabilidades a apurar e sujeitos a sancionar, inclusive nos âmbitos disciplinar e da improbidade administrativa, pelo menos.

À GUISA DE FECHO

A presente investigação, a toda evidência, não comporta conclusões absolutas, pelo menos não até o momento, haja vista a mudança de paradigma ser relativamente recente.

Nada obstante, um resultado preliminar – e tomado a contrario sensu – parece de plausibilidade razoável: não se podem desprezar os efeitos da Lei nº 12.349/2010 para fins de estipulação das possibilidades, limites e condições de admissibilidade de contratação direta com entidades do Terceiro Setor.

O que antes se revelou, por si só e legitimamente, como uma forma excepcional de satisfação de outros interesses públicos que não a simples necessidade ou utilidade, administrativa ou coletiva – como a contratação de entidades sem fins lucrativos com espeque nos incisos XIII, XX, XIV e XXVII do art. 24 da Lei nº 8.666/93 – não parece mantido.

A inserção da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como terceira finalidade legal da licitação reclama uma profunda revisão da interpretação e aplicação da lei geral de licitações no contexto, tanto para a realização dos processos administrativos licitatórios como para excepcionalmente deixar-se de realizá-los.

E se for o caso de, ainda assim, fomentar o Terceiro Setor, com exclusão do empresariado, então que essa opção seja previamente planejada e

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legislativamente prevista no âmbito orçamentário. Logo, dando espaço para a cooperação com as OS e as OSCIP, via

contratos de gestão e termos de parceria, respectivamente, mas fazendo da seleção impessoal do parceiro a regra.

A exceção da contratação direta, por sua vez, só preserva sentido para atingimento dos fins de uma parceria já individualizada e formalizada, mas que reclame a eventual contratação de prestação de serviços para sua extraordinária complementação; jamais para necessidades episódicas e fugidias a uma cooperação institucionalizada.

Em não havendo espaço para fomento do Terceiro Setor ou, ainda, se a contratação almejada se situar em outras áreas por ele não atendidas, então que se coloque e assuma o empresariado no seu devido lugar: de parceiro, em regra e por excelência, da Administração Pública e do Estado, na geração de emprego e de renda, na concretização do pleno emprego e na minimização das desigualdades sociais e regionais.

Tudo o que, enfim, justifica o tratamento favorecido e como conferido, apto a alocar, lado-a-lado o Estado, o Terceiro Setor, o empresariado e a sociedade, na condução do Brasil rumo à ecossocioeconomia.192

192 .SACHS, Ignacy; VIEIRA, Paulo Freire (org.). Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Garcez, 2007.

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INSTITUTO DA RENÚNCIA NO DIREITO TRIBUTÁRIO

marcElla GomES DE oliVEira

DEmEtriuS nichElE macEi

RESUMO

O presente trabalho objetiva demonstrar a importância da discussão dos efeitos práticos do parcelamento no âmbito tributário, pois tal figura tem como prerrogativa a confissão da dívida, de forma que causa a renúncia de sua rediscussão, causando para o sujeito passivo prejuízos se demonstrado que a dívida não era devida ou inexistente na sua origem inconstitucional. Parte-se do pressuposto, nesses casos, de que a confissão pode ser retratável e revogável para que se possa proteger o contribuinte, sendo que este não pode dispor de direito indisponível, pois quando renuncia discutir a obrigação tributária fere assim a Constituição Federal Brasileira em seu artigo 5º, inciso XXXV, no qual a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou a ameaça a direito, desta forma abre possibilidade para a discussão do pagamento através do parcelamento e os efeitos da renúncia frente à obrigação tributária tanto no âmbito administrativo quando no âmbito judicial.

Palavras-Chave: parcelamento, confissão, obrigação tributária, sujeito passivo.

RESUMEN

En este trabajo se pretende demostrar la importancia de la discusión de los efectos prácticos del pago en cuotas de impuestos, ya que esta cifra tiene la prerrogativa de confesión de la deuda, por lo que causa de su renuncia del derecho de discutir de nuevo el tema de fondo, causando pérdidas para el contribuyente si la deuda se muestra que no se deba o es inconstitucional en su origen. Se parte de la suposición en estos casos que la confesión puede ser retráctil y revocable para que podamos proteger a los contribuyentes, y esto no puede tener un derecho inalienable, porque cuando se exime de la obligación tributaria ofende tanto la Constitución Federal en artículo 5, párrafo XXXV, donde la ley no puede ser excluido de revisión por parte del Poder Judicial lesión o amenaza al derecho lo que abre la posibilidad de discutir el pago a plazos y los efectos de la exención de la deuda tributaria, tanto en cuando los procedimientos sean judiciales o administrativos.

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Palabras clave: Pago en cuotas, confesión, obligación tributaria, sujeto pasivo.

SUMÁRIO: Resumo; Lista de Siglas; 1 Introdução. 2 Noções fundamentais. 3 Direito, Estado e tributo. 4 Processo tributário. 4.1 A inviolabilidade do direito de defesa. 4.2 Processo administrativo tributário. 4.3 Processo judicial tributário. 4.4 Vulnerabilidade do contribuinte; 5 Suspensão da exigibilidade do crédito tributário. 6 Conclusão; Referências; Bibliografia

1 INTRODUÇÃO

Acerca dos efeitos da renúncia do sujeito passivo no parcelamento tributário, primeiramente é necessário explicar tal instituto, que surge como um benefício para o sujeito passivo na relação tributária, porém seu acolhimento gera a confissão da dívida dando ensejo à discussão da retratabilidade e irrevogabilidade desta confissão e seus efeitos quando demonstrado que o tributo é indevido e quando se fala no possível exame da obrigação fiscal e sua eventual restituição.

A importância da questão abrange conceitos de confissão, parcelamento tributário e versa sobre direitos disponíveis e indisponíveis, visando analisar os papéis do Fisco e do sujeito passivo em suas posições no que diz respeito aos efeitos da renúncia quando da opção do parcelamento tributário.

Para que o contribuinte tenha a possibilidade de exercer vários direitos é necessária a sua regularidade fiscal, o que demonstra a importância e a utilização do parcelamento frente à obrigação tributária, que, quando acolhido gera a confissão da dívida, repercutindo quanto à validade da obrigação e quanto aos efeitos causados do seu acolhimento. Examina-se a possibilidade da renúncia do direito à rediscussão da dívida nos âmbitos administrativo e judicial e até mesmo a desistência de ações em trâmite.

A análise do caráter irretratável e irrevogável da confissão de dívida tributária ocorre para que o parcelamento seja concedido nos casos em que se consta expresso como prerrogativa no instrumento de confissão de dívida, pois parte-se da premissa da exigibilidade da desistência da discussão administrativa e judicial para demonstrar a validade da dívida tributária.

O parcelamento está previsto no Código Tributário Nacional (CTN), especificamente no artigo 151, inciso VI, porém tal instituto figura derivação de moratória, amoldando-se também aos artigos que versam sobre ela, trazendo interpretações e conceitos que geram inúmeras discussões judiciais, pois quando acolhido o parcelamento figura a possibilidade de discutir se os efeitos da renúncia frente à obrigação tributária atingem o artigo 5º, inciso XXXV, da

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Constituição Federal (CF), o qual determina que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou a ameaça a direito, trazendo assim a figura da inviolabilidade do direito de defesa.

O presente artigo possuirá como fundamento pesquisa em artigos e obras referentes ao tema, utilizando também dispositivos legais, na maioria os dispositivos do Código Tributário Nacional e da Constituição Federal em relação às pesquisas bibliográficas. As referencias tratam de todas as obras citadas expressamente e a bibliografia refere-se às obras consultadas mas não citadas diretamente.

2 NOÇÕES FUNDAMENTAIS

Discorrer sobre parcelamento tributário e examinar os efeitos da renúncia do sujeito passivo em discutir a obrigação tributária é necessário introduzir alguns conceitos e desmembrar o Direito desde sua origem, a explicar noções de Direito, Estado, tributo, fazendo referência ao Direito Material e ao Direito Processual para que através deste desmembramento se chegue ao foco do tema, ou seja, o parcelamento tributário e a confissão da dívida relacionada ao seu acolhimento.

É importante definir o homem como um ser social dotado de livre-arbítrio, sendo que tal liberdade e sociabilidade demonstram a necessidade de um mecanismo regulamentador, ou seja, aparece a figura do Direito como sistema de regras de conduta visando disciplinar o comportamento humano193.

Para Sacha Calmon Navarro Coêlho o Direito “é a mais eficaz técnica de organização social e de planificação de comportamentos humanos”194. Desta forma, o Direito como técnica é utilizado para organizar a sociedade e determinar comportamentos, porém também pode ser utilizado como valor, no sentido de que os valores impulsionam o poder político e justificam as normas comportamentais e organizatórias do âmbito jurídico, seja com ou sem a anuência da sociedade, assim sendo, o Direito não é atemporal, pois é datado de forma histórica situando-se de maneira geográfica, ainda que universal mostra-se incipiente e complexo195.

193 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo tributário. São Paulo: Atlas, 2010. v. 37, p. 01.194 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 03.195 COÊLHO, loc. cit.

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3 DIREITO, ESTADO E TRIBUTO

O Direito emerge como sistema de regras de conduta designado a disciplinar o comportamento humano e como sua derivação, temos o Direito Positivo – considerado um sistema formado por enunciados prescritivos através dos quais constroem-se normas jurídicas decorrentes de sua interpretação – e também o Direito é o Direito Material e o Processual, sendo que aquele versa sobre as normas que tratam da própria distribuição dos bens da vida, enquanto que o Direito Processual regula o processo como uma série encadeada de atos destinada a dirimir o conflito e as normas que disso cuidam.

Quanto ao Estado, este foi criado para buscar imprimir uma maior eficácia às regras de conduta criadas pelo Direito e, de forma a se manter exige em troca o pagamento de tributos aos que estão submetidos ao seu poder. Na opinião de Hugo de Brito Machado Segundo:

Com o advento dos modernos Estados de Direito, Democráticos, limitados pelo Direito, as pessoas que integram ou corporificam o Estado também passaram a se submeter, no exercício de suas funções, a regras de conduta previamente estabelecidas. O ramo do Direito que cuida disso chama-se Direito Público, e, mais especificamente, no que toca à subdivisão ocupada de disciplinar a cobrança de tributos, Direito Tributário.196

Sobre o Estado brasileiro é importante frisar que este é a entidade

jurídica que regula as relações econômicas e sociais daqueles que integram uma determinada população em certo território. Em relação à organização do Estado, este possui a prerrogativa do princípio da autonomia da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com sua competência determinada através da Constituição Federal – conforme disposto em seu art. 18 – tais entes formam a organização político-administrativa do Estado brasileiro.

Já a ciência do Direito Tributário – construída através da necessidade de o Estado regulamentar suas relações – estuda o Direito Positivo, no qual a linguagem prescritiva é utilizada pelo legislador de uma forma técnica e livre com aplicação no direito dependente da norma tributária constituída através do intérprete.

O Estado deve subordinar-se ao direito de forma que ele, os poderes locais e regionais, os órgãos, funcionários ou agentes dos poderes devam respeitar, observar e cumprir as normas jurídicas da mesma forma como devem fazer os particulares, portanto o Estado age e atua por meio do Direito, significando que o exercício do poder só pode efetivar-se através de instrumentos jurídicos

196 MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 02.

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institucionalizados pela ordem jurídica, de forma a garantir o princípio geral da segurança jurídica, que protege os cidadãos contra incertezas provocadas pelo Poder Público197. Como afirma Marilene Rodrigues:

Assim, a segurança jurídica em suas dimensões e em sentido geral abrange todas as relações entre cidadãos e Poder Público, sejam decorrentes de funções administrativas ou judicial e principalmente em relação a proteção e tutela constitucional de respeito ao direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

O desafio está sempre em encontrar o justo equilíbrio entre direitos dos contribuintes, de um lado, e os poderes da administração de outro lado, para que não sejam exercidos de forma arbitrária, retirando direitos do contribuinte, que são constitucionalmente assegurados, para fins de arrecadação dos tributos e aplicação em gastos públicos.198

No que se refere a tributo, este tem como sua noção empírica a de que o

particular deve entregar uma quantia em dinheiro ao Estado, limitada através do direito. Em sua perspectiva ideológica, o tributo ocorre por meio da fixação de critérios legais, solidariedade social, capitalismo, conflitos imanentes entre particulares e Estado ou então entre os próprios entes competentes para tributar, ou ainda entre os próprios particulares.

Existe um conceito unitário de tributo que é utilizado pela Constituição Federal permitindo ao jurista identificar as principais características comuns das taxas, empréstimos compulsórios, contribuições especiais e impostos para lhes dar operacionalidade jurídica199. Desta forma, para Ricardo Lobo Torres:

O tributo, noção nuclear do Direito Constitucional Tributário, é a categoria básica sobre a qual se edificam os sistemas constitucionais tributários (do nacional ao federado e ao internacional) e a partir da qual se formam as diferenças para com as figuras próximas do preço público e da multa, integrantes do fenômeno da quase-fiscalidade, e das contribuições econômicas e sociais, nos ordenamentos que cuidam da extrafiscalidade e da parafiscalidade. O termo tributo aparece inúmeras vezes na Constituição Tributária, sem qualquer definição: o art. 150, I, veda a exigência ou o aumento do tributo sem lei que o estabeleça; o art.

197 RODRIGUES, loc. cit.198 RODRIGUES, 2007, p. 193.199 TORRES, Ricardo Lobo. Aspectos fundamentais e finalísticos do tributo. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). O tributo: reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 35.

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151, I, proíbe a instituição de tributo que não seja uniforme em todo o território nacional; o art. 150, III, dispões sobre a irretroatividade e a anualidade dos tributos; o art. 150, IV, veda a utilização do tributo com efeito de confisco. De rara complexidade pelas inúmeras funções que exerce no seio da Constituição Tributária, o conceito de tributo há que ser entendido de modo unitário, através da definição que lhe abarque todas as características. Mas a unidade, que lhe dá sentido, é ao mesmo tempo a sua perdição, por não se adequar à complexidade fiscal do Estado de Direito dos nossos dias.200

Observa-se que o conceito de tributo não deve ser buscado apenas no discurso da Constituição, da doutrina e do Código Tributário Nacional, mas também na jurisprudência que fez o balizamento para a compreensão de suas diversas espécies.

É necessário visualizar o tributo e sua relação entre Estado e história para que se possa estabelecer uma relação jurídica-tributária, nas palavras de Rogério Martins:

Pelo que vê, “História”, “Tributo” e “Estado” sempre caminham juntos e a relação jurídica-tributária foi sempre uma relação advinda do poder do Estado e nunca uma relação voluntária por parte do indivíduo. Outrossim, a coerção sempre foi o elemento que dá a eficácia à relação jurídico-tributária, uma vez que é a imposição fiscal clássica norma de rejeição social.

Por se tratar de uma relação jurídica de poder e com eficácia conferida por coerção é que o indivíduo procura, no ordenamento jurídico, normas que o resguardem a fim de se evitarem abusos por parte do Poder Tributante.

Nesta esteira de raciocínio é que a nossa Constituição Federal contempla todo um capítulo às “Limitações ao Poder de Tributar”, assim como cada vez mais cresce na sociedade o conceito de “direito do contribuinte”, existindo já projeto de “Código de Defesa do Contribuinte” em curso perante o Congresso Nacional, assim como a edição da Lei Complementar nº 101/2000, denominada “Lei de Responsabilidade Fiscal”, visando a conter e gerenciar os gastos do Poder Público.

Os direitos do contribuinte e mecanismos para sua defesa são necessários, uma vez que o Estado possui uma gama de atividades e funções a ele conferida pela Constituição Federal e demais normas jurídicas.201

200 TORRES, loc. cit.201 MARTINS, Rogério Lindenmeyer Vidal Gandra da Silva. A política tributária como instrumento

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Para que o contribuinte possa exercer seus direitos e os mecanismos para sua defesa, necessita de recursos obtidos por meio da exploração de seu patrimônio, da sua entrada no mercado financeiro e também da arrecadação de tributos da sociedade. Essa última modalidade refere-se à que mais financia a atividade estatal, porém o montante arrecadado nem sempre é bem gerido ou aplicado, portanto a imposição tributária acaba por tornar-se injusta, inadequada ou desmensurada, entendendo que a “Política Tributária” – sistemática adotada pelo Estado – objetivando o cumprimento de suas finalidades de maneira eficaz e onerando o mínimo possível a sociedade pode vir a se transformar em um instrumento de defesa do contribuinte202.

O tributo é criado no Estado de Direito cobrado e pago conforme as normas jurídicas estabelecidas203, e são cobrados para:

[...] restringir a demanda doméstica contrapondo-se à expansão dela decorrente de gastos governamentais, evitando a inflação e, principalmente para realizar a equidade ou justiça fiscal, impedindo que contribuintes de renda mais baixa suportem encargos tributários relativamente mais elevados do que os de renda mais alta.204

Cabe destacar que a tributação tem como finalidades: os objetivos econômicos de desenvolvimento, de estabilização interna da economia (de forma a combater o desemprego e a inflação), a estabilização externa da economia (buscando o equilíbrio do balanço de pagamentos internacionais e formação de reservas monetárias conversíveis), a realização da equidade ou justiça fiscal, a finalidade política no sentido de distribuição do poder através do fortalecimento da federação, a finalidade jurídica para a proteção dos direitos do contribuinte e a finalidade administrativa referente à realização na prática das demais205.

4 PROCESSO TRIBUTÁRIO

A existência e vigência das normas tributárias servem para dirimir de forma definitiva os conflitos entre o Estado, que é o cobrador de tributos, e os cidadãos, aos quais os tributos são exigidos, porém tais normas demonstram-se

de defesa do contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). O tributo: reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.133.202 MARTINS, loc. cit.203 MELLO, Gustavo Miguez de. O tributo: finalidades econômica, jurídica, política e administrativa. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). O tributo: reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 423.204 MELLO, 2007, p. 425.205 Ibid., p. 426.

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insuficientes pela sua função, pois em relação à aplicação das normas tributárias e para que se tenha a garantia de sua eficácia a fim de dirimir eventuais conflitos entre Fisco e contribuintes utiliza-se o Processo Tributário ou o Direito Processual Tributário.

O Direito Processual Tributário insere-se em uma relação jurídica tributária de cunho obrigacional e deve ser derivado de um conjunto de regras e princípios tanto em sua esfera administrativa quanto judicial. Na visão de James Marins em sua definição da disciplina jurídica Direito Processual Tributário mencionando a suspensão da exigibilidade do crédito tributário pela busca da justiça:

Poucas disciplinas jurídicas encontram tão variadas matizes e facetas. Reúne o processo tributário, a um só tempo, problemáticas multiseculares, nem sempre de cunho essencialmente jurídico, mas que encontram notas sempre atuais – como a regra solve et repete na roupagem de depósito garantidor de instância – até questões suscitadas mais recentemente, como a responsabilidade do Estado pelo excesso de tributação ou, ainda, formulações cada vez mais em voga, de que é exemplo, entre nós, a suspensão da exigibilidade do tributo mediante antecipação temporal de tutela jurisdicional. Todo este iter, ademais, está orientado pela incessante busca da realização da justiça. É disciplina tão fértil que permite até mesmo que seja examinada a partir do conteúdo jurídico da doutrina da Tripartição dos Poderes, celebrizada há mais de dois séculos pelo Barão de Montesquieu e podendo-se incluir em sua problemática até mesmo a questão do repúdio da lei pelo administrador (com a finalidade de realização da justiça), e ainda, especificamente entre nós, a desmoralizante ação declaratória de constitucionalidade ou a panacéia ainda em gestação denominada súmula vinculante em matéria tributária.206

Sobre a aplicabilidade do Direito Processual Tributário que está vinculada de forma inerente ao Estado, à ideia de seu interesse, nas palavras de James Marins:

O Estado cria braços administrativos dedicados a concentrar toda a atividade tributária arrecadatória, avocando para si a solução de todas as lides fiscais. Paradoxalmente tais órgãos administrativos, de modo sistemático, afastam de si a responsabilidade na realização da justiça tributária ao tempo que afastam e cerceiam o Poder Judiciário.207

206 MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro: (administrativo e judicial). 3. ed. São Paulo: Dialética, 2003, p. 16-17.207 MARINS, 2003, p. 18.

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Para que o estudo e a sistematização do Processo Tributário tenham maior efetivação, ou seja, tenham a precisão dos contornos atuais da relação jurídica tributária e a sua atuação subsumida ao influxo da concepção atual de Estado de Direito, e também dos princípios jurídicos de justiça que alicercem o sistema positivo, cabe mencionar o devido processo legal, ou seja, a disciplina processual tributária que se edifica através dos elementos figurados na relação jurídica tributária, partindo da premissa da divisão material e processual do Direito Tributário e repercutindo em sua dinamização.

O Processo Tributário inicia-se na CF em seu art. 5º, LV:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;208

Desta forma a utilização do termo processo no inciso LV refere-se tanto ao processo de natureza administrativa quanto judicial209.

O Direito Processual Tributário deve ser encarado como um processo diferenciado, pois a noção peculiar da relação tributária faz com que a lide eclodida no percurso dinâmico desta relação assuma um caráter estritamente tributário. A relação entre Estado e contribuinte não pode ser submetida a qualquer outra espécie de categoria jurídica por não assemelhar-se com as demais210.

4.1 A INVIOLABILIDADE DO DIREITO DE DEFESA

A inviolabilidade do direito de defesa encontra-se presente no texto constitucional. Neste sentido Cezar Britto e Marcus Vinicius Coêlho afirmam que:

O diploma legal, corolário do direito de defesa e decorrência do estado de direito, proclama a liberdade do cidadão de se defender diante do autoritarismo, da arrogância, da perseguição, da má-fé, da incompetência ou do simples erro do Estado. Afirma a prevalência dos direitos humanos em oposição ao discurso da intolerância.211

208 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.209 CASSONE, Vittorio; CASSONE, Maria Eugenia Teixeira. Processo tributário: teoria e prática. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 02.210 MARINS, 2003, p. 94.211 BRITTO, Cezar; COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. A inviolabilidade do direito de defesa. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. p. 4-5.

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Sobre a inviolabilidade da defesa e o devido processo legal cabe evidenciar que o direito de defesa, imprescindível limitador do poder estatal, está assegurado pelo processo e deve ser compreendido como um instrumento essencial para o avanço democrático212.

A configuração da defesa tem seu conceito ampliado pela Constituição Federal de 1988, no sentido de que ela constitui um âmbito de proteção contemplando todos os processos, administrativos ou judiciais, não se resumindo apenas a um simples direito de manifestação do processo213, para Cezar Britto e Marcus Vinicius Coêlho:

A ampla defesa é o “direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador” e o “exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica”.214

O direito de defesa disposto pela norma brasileira visa proteger e garantir o equilíbrio democrático entre o cidadão e o Estado, tendo o homem como o mais importante bem jurídico tutelado, assim sendo, o Estado possui o direito de punir mas não pode retirar o direito de o cidadão se defender215, pois o homem é o centro gravitacional da Constituição Federal e o povo pilastra do Estado Democrático de Direito216.

4.2 PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO

O processo administrativo tributário surge através da atuação da Administração Pública, que atua por meio de atos interligados e disciplinados de forma a garantir a efetividade do controle de sua legalidade e eventual participação dos sujeitos interessados.

Em relação a essa série de atos interligados pelos quais a Administração Pública realiza suas atividades, a fim de obter um resultado final que deve ser legitimado através da participação das pessoas que serão afetadas por ele, e consistindo seu desenvolvimento organizado de forma a facultar ou permitir tal participação, referimo-nos acerca de um processo administrativo. Porém quando o resultado final gerar a resolução de um conflito firmado entre o cidadão e a Administração Pública, a participação dos interessados deverá ocorrer em contraditório (art. 5º, LV da CF). Refere-se Machado Segundo em relação ao processo administrativo:

212 Ibid., p. 7.213 Ibid., p. 14.214 BRITTO; COÊLHO, 2011, p. 14.215 Ibid., p. 72.216 Ibid., p. 74.

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Em face do princípio da legalidade, entende-se que a Administração Pública pode rever seus próprios atos, anulando-os, quando neles constate alguma ilegalidade. É a chamada “autotutela vinculada”, também conhecida como “autocontrole”, da Administração. Quando se sente prejudicado por ato praticado pela Administração Pública, o cidadão pode, nos termos da lei, provocar o exercício do autocontrole sobre esse ato, pleiteando seu reexame a fim de que se corrija a ilegalidade nele presente. Trata-se de decorrência do próprio direito de petição (CF/88, art. 5º, XXXIV, a), que, em face do direito ao devido processo legal administrativo, à ampla defesa e ao contraditório, no qual se devem assegurar amplas oportunidades de manifestação e defesa ao cidadão interessado.217

Já na visão de James Marins sobre o processo administrativo tributário, este propõe a conceituação de tal instituto:

O processo administrativo tributário contempla o conjunto de normas que disciplina o regime jurídico processual-administrativo aplicável às lides tributárias deduzidas perante a administração pública (pretensões tributárias e punitivas do Estado impugnadas administrativamente pelo contribuinte). Integra, ao lado do processo judicial tributário o denominado Direito Processual Tributário.218

O processo administrativo tributário não deve ser confundido com o procedimento administrativo tributário, pois este contempla a preparação do lançamento, que é o momento em que o Estado demonstra sua pretensão tributária frente ao contribuinte, e configura através do procedimento fiscal ato meramente apuratório ou fiscalizatório. O momento seguinte ao lançamento tributário é passível do processo administrativo, sendo necessário que o sujeito passivo desista dos meios de impugnação previstos administrativamente e ofereça de maneira formal a resistência à pretensão gerada pelo Fisco. Quando a lide fiscal se formaliza o procedimento fiscal transforma-se em processo tributário219.

Sobre a distinção entre processo e procedimento feita pelos processualistas, de acordo com Paulo Celso Bonilha, ela se apresenta no sentido de o processo ser a soma de atos que se realizam para compor o litígio e de o procedimento ser somente a ordem e sucessão da sua realização, ou seja, o modo e a forma pelos quais se movem os atos ocorridos no processo. Assim sendo a terminologia

217 MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 04-05.218 MARINS, 2003, p. 94.219 MARINS, loc. cit.

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“processo” era utilizada exclusivamente para referir-se ao processo judicial220.Desta forma o processo administrativo é a etapa litigiosa no percurso

para que a obrigação tributária seja formalizada na esfera da Administração Tributária, sendo o processo administrativo considerado como um vértice do Direito Processual Tributário, de forma que o procedimento de lançamento encontra-se no âmbito do Direito Tributário Formal.

Este tipo de processo encontra raízes na Constituição Federal, como já demonstrado em seu artigo 5º, inciso LV.

Desta forma a Constituição Federal afirma princípios e institucionaliza o processo administrativo com diversos pontos de afinidade com o processo jurisdicional, pois em ambos está presente a atividade estatal aparelhada para a composição de litígios por força das disposições do ordenamento jurídico, e ainda que as decisões tenham efeitos de natureza e grau diferentes, a jurisdicionalidade demonstra-se presente nas sentenças do processo judicial.

Assim, na seara processual patenteia-se a redescoberta e o resgate do processo administrativo como espécie do fenômeno processual e a partir disso o necessário tratamento e contemplação sob a visão da teoria geral do processo221.

A se falar em prova no processo administrativo tributário é importante mencionar que a prova possui um objeto que são os fatos da causa, ou seja, os fatos deduzidos pelas partes que podem ser os que fundamentam a ação ou os indicados na contestação. Como a destinação da prova é o juiz, este quer e necessita saber a verdade sobre os fatos demonstrados pelas partes, portando, a produção da prova é indispensável, pois é nela que o juiz buscará formar sua convicção.

Desta forma é possível o entendimento dos meios de prova como instrumentos ou provas por meio dos quais haverá a representação dos fatos no processo, assim sendo, os meios de prova podem variar conforme a necessidade da utilização de métodos técnicos e juridicamente idôneos para a fixação dos determinados fatos em juízo222.

No processo administrativo tributário não existe limitação expressa quanto às provas a serem produzidas, observa-se que nele predominam as provas documental, pericial e indiciária, não se utilizando muito a prova testemunhal e a inspeção ocular da autoridade julgadora, a função da confissão também é limitada223.

De acordo com Bonilha a confissão deve ser interpretada invocando o Código de Processo Civil com foco na hipótese de sua utilização no processo administrativo tributário, portanto:

220 BONILHA, Paulo Celso Bergstrom. Da prova no processo administrativo tributário. 2ª. ed. São Paulo: Dialética, 1997, p. 58.221 BONILHA, 1997, p. 60.222 Ibid., p. 69.223 Ibid., p. 82-83.

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Como prescreve o artigo 348 do Código de Processo Civil (em sua primeira parte): “Há confissão, quando a parte admite a verdade de um fato contrário ao seu interesse e favorável ao adversário”. Consiste, pois, a confissão no reconhecimento da verdade, por uma das partes, dos fatos (ou parte deles) alegados pela parte contrária.

Essa situação sói acontecer no processo administrativo tributário quando, no seu decurso, o impugnante venha a reconhecer, expressamente, a procedência dos fatos alegados pela Fazenda. Este elemento probatório, todavia, deve ser sopesado no conjunto das provas do processo e seu efeito cuidadosamente avaliado no momento da apreciação e do convencimento da autoridade julgadora. Isto porque a confissão deixou de ser considerada a “rainha das provas”, concepção superada e que não mais se coaduna com o avanço da ciência processual.224

As alegações firmadas pelos contribuintes, os responsáveis tributários e as informações do Fisco consideram-se confissão conforme sejam utilizadas como elementos probantes225.

Como o contribuinte procede ao registro de suas atividades e os assentos patrimoniais, isto representa uma autêntica confissão como consequente efeito tributário. Da mesma forma ocorre com os parcelamentos de valores tributários, nos quais o contribuinte firma termo de confissão irretratável e irrevogável de débitos, de forma a renunciar os questionamentos nos âmbitos administrativo e judicial226.

Assim sendo a confissão realizada pelo sujeito passivo merece ser analisada com restrições, pois a obrigação tributária, de acordo com o princípio da legalidade, não decorre da vontade das partes, mas sim exclusivamente da lei, de maneira que mesmo que haja a confissão da ocorrência do fato jurídico tributário pelo sujeito passivo em algum momento do processo, e se comprove que aquele fato não ocorreu, sua manifestação demonstrada na confissão não terá o poder de validar a obrigação tributária227.

4.3 PROCESSO JUDICIAL TRIBUTÁRIO

O sujeito passivo, ainda que tenha sido vencido na fase administrativa ou se por ventura venha a preferir utilizar-se desta discussão administrativa,

224 BONILHA, 1997, p. 82-83.225 MELO. José Eduardo Soares de. Processo tributário administrativo federal, estadual e municipal. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p.151.226 Ibid., p. 152.227 HOFFMANN, Suzy Gomes. Teoria da prova no direito tributário. Paraná: Copola Editora, 1999. p. 210.

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pode interpor ações judiciais para garantir seus direitos. Ao Estado também é possível a utilização da seara judicial para satisfazer seu direito, como por exemplo, no caso da interposição de execução judicial.

Na visão de Luiz Fernando Maia:

O Processo Judicial Tributário visa tornar clara e precisa a vontade da lei incidente em cada caso concreto de Direito Tributário submetido à justiça. Tanto o Fisco como o contribuinte têm esse direito em face do permissivo exarado no art. 5º, XXXV, da Constituição.228

A ação é vista como um direito público, subjetivo que é disciplinado pelo direito processual, tendo natureza abstrata e com a finalidade de produzir efeitos jurídicos obtidos pela intervenção do Poder Judiciário, que é detentor da jurisdição por meio da qual chega o processo. Como uma resposta à ação temos a atividade jurisdicional, que se mostra procedente quando fundada na lei e improcedente se não tiver respaldo legal, já como exemplo das ações julgadas improcedentes podemos citar as sentenças declaratórias negativas, pois declaram negativamente o direito do autor.

4.4 VULNERABILIDADE DO CONTRIBUINTE

Parte-se da premissa de que o Estado de Direito potencializa a vulnerabilidade existente na relação tributária, pois é ao mesmo tempo criador da regra obrigacional, na qual figura como sujeito ativo (através de seus órgãos legislativos) e ainda formalizador e cobrador da obrigação em que aparece como credor (por intermédio de seus órgãos fazendários). Ainda é possível ao Estado julgar a lide e executar o título executivo através dos órgãos administrativos e judiciais.

Desta forma o Estado fiscal mostra-se como único credor nos ditames do Direito, pois é criador, executor e julgador da relação tributária obrigacional, de forma que o sujeito passivo figura como único devedor, restando evidente a vulnerabilidade do contribuinte frente ao credor onipotente229. No entendimento de James Marins:

Sem dúvida este ente jurídico domina amplamente os três momentos da relação tributária. Momento estático, relacionado ao Direito Tributário Material (DTM); e crítico, relativo ao Direito Processual Tributário (DTP). Semelhante condição de controle pluripotencial do devedor pelo

228 MAIA, Luiz Fernando. Compêndio de direito tributário: doutrina prática processual, legislação. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2009, p. 383.229 MARINS, James. Defesa e vulnerabilidade do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009, p. 24.

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credor não ocorre nas relações obrigacionais civis ou comerciais, quer sejam, excontractus, e portanto diretamente decorrentes de contratos, cártulas ou mesmo quando ex lege, i.e., decorrentes da lei.230

Verifica-se também que:

A vulnerabilidade do contribuinte, que se deduz deste tríplice apoderamento do Estado, e, portanto, da Fazenda Pública, leva à existência de sensível assimetria de forças entre credor-estatal e cidadão-contribuinte e fornece o fundamento para conceituar, sinteticamente, a vulnerabilidade do contribuinte como a condição factual de susceptibilidade do cidadão diante da tríplice função exercida pelo Estado no âmbito da relação tributária.231

Analisa-se a suscetibilidade do cidadão na relação fiscal sob três

perspectivas que espelham as funções do Estado, sejam elas: o Estado como criador da norma jurídico-fiscal causando a vulnerabilidade material do contribuinte; o Estado como aplicador da norma jurídico-fiscal de modo a causar a vulnerabilidade formal do contribuinte; e por fim o Estado como julgador da lide fiscal causando a vulnerabilidade processual do contribuinte232.

Cabe ao Estado promover a tutela dos conflitos intersubjetivos dos particulares de modo criterioso e independente, porém, põe-se a prova o Estado quando este é chamado para promover, com grau satisfatório de critério e independência, o conflito em que ele mostra-se como sujeito de direitos. A vulnerabilidade processual do contribuinte se exprime quando a função jurisdicional do Estado, administrativa ou judicial, ocorre especificamente no caso de o julgador integrar os quadros funcionais do próprio Estado, gerando assim susceptibilidade ao contribuinte233.

5 SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

A suspensão da exigibilidade do crédito, em rigor, ocorre quando o sujeito ativo admite que o cumprimento da obrigação tributária deixe de ser exigido, porém não suspende a obrigação em si ou o crédito tributário, conforme admitido pelo CTN, do surgimento da obrigação tributária e o aparecimento do crédito tributário que dela for decorrente (art. 113, parágrafo 1º do CTN).

230 Ibid., p. 25.231 MARINS, loc. cit.232 MARINS, loc. cit.233 MARINS, 2009, p. 47-48.

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Desta forma surge a possibilidade da existência da obrigação tributária sem o crédito tributário, conforme disposto no art. 139 do CTN, segundo o qual “o crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta”234. Portanto não existe obrigação sem crédito ou débito, porque são imprescindíveis para a ocorrência de uma relação jurídica denominada obrigação tributária, pois figuram elementos indispensáveis e integram o vínculo obrigacional.

Uma vez realizado o lançamento e notificado o sujeito passivo, sem que ocorra o pagamento do tributo no prazo fixado, cabe à Fazenda Pública exigir judicialmente o seu crédito, pois como as demais obrigações em geral, a obrigação tributária não é auto-executável, por isso se o direito de crédito estiver dotado de liquidez, certeza e exigibilidade pela efetuação do lançamento o Fisco procederá à formalização do título executivo através da inscrição do crédito em Dívida Ativa235.

Acerca da imprescritibilidade do procedimento administrativo conten-cioso, cabe visualizar que o lançamento notificado de forma regular ao sujeito passivo, inexistindo pagamento, irá fundar a formação de título executivo extra-judicial em inscrição em Dívida Ativa236. É importante definir o que é um título executivo, que no caso de acertamento extrajudicial o título executivo extraju-dicial, realizado pelos interessados, mostra-se como o ato portador da razoável certeza em relação à incidência da norma, à pertinência da sanção e à violação do preceito237. Neste sentido Carlos Valder Nascimento:

[...] a impugnação ao lançamento ou auto de infração em sede administrativa é suporte básico na formação do título executivo extrajudicial, pois substitui o consenso inexistente entre as partes. Por meio da impugnação, assegura-se ao contribuinte oportunidade para interferir na formação do título executivo. Ela enseja, no curso do procedimento administrativo, controlar a regularidade e a correção do ato administrativo atenuando-lhe os efeitos de unilateralidade e conferindo-lhe razoável grau de certeza e liquidez. Resulta desse fato o caráter de inafastabilidade do efeito suspensivo atribuído às impugnações e recursos administrativos pelo art. 151 do CTN.238

Uma das medidas judiciais cabíveis para assegurar o direito do contribuinte é a concessão de liminar em Mandado de Segurança que tem como dispositivo legal o art. 5º, LXIX, da Constituição Federal:

234 BRASIL, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.235 NASCIMENTO, Carlos Valder (Coord.). Comentários ao código tributário nacional: Lei n. 5172, de 25.10.1966. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 406.236 NASCIMENTO, loc. cit.237 NASCIMENTO, 1997. p. 406.238 Ibid., p. 411.

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LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;239

Tal ação é constitucionalmente fundada a fim de proteger direito líquido e certo de forma repressiva ou preventiva, individual ou coletivamente, porém o que suspende a exigibilidade do crédito ocorre quando o juiz conceder cautelarmente a medida liminar diante da lesividade do ato ou sua iminência, afastando então o ato abusivo da autoridade para que assim evite a irreparabilidade do dano com a demora da sentença. A liminar é, portanto, remédio provisório não representando decisão final de mérito e suspende a exigibilidade do crédito tanto quanto durar, impedindo a Fazenda de ajuizar a execução240.

Acerca da suspensão do crédito tributário cabe ainda diferenciar moratória de parcelamento sendo que a moratória encontra-se disposta no art. 152 do Código Tributário Nacional e para Carlos Valder Nascimento:

Moratória é a concessão de melhores condições e prazo para execução da dívida (dilação do prazo para pagamento, parcelamento da dívida), etc. não tem, assim, o sentido de remissão extintiva do débito ou anistia das penalidades cabíveis. Funda-se a lei concessiva em razões de ordem pública, como guerra, calamidade, comoção política ou grave crise econômica e financeira.

No direito tributário somente decorre de lei, em razão do princípio da indisponibilidade dos bens públicos, de modo que a autoridade fazendária não pode – sem lei – conceder moratória de tributos.241

Cabe então à União, aos Estados e aos Municípios a concessão da moratória, mediante lei geral ou individual, de seus próprios tributos242.

A moratória e o parcelamento praticamente como toda a atividade administrativa é procedimentalizada. No que se refere ao deferimento dos pedidos de parcelamento, tal procedimento desenvolve-se desde o requerimento, passa pela verificação realizada pela autoridade competente no que diz respeito ao preenchimento dos requisitos legais exigidos como condição para seu deferimento, até o aperfeiçoamento do ato que o concede.

239 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil.240 NASCIMENTO, op. cit., p. 412.241 NASCIMENTO, 1997, p. 413.242 NASCIMENTO, loc. cit.

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O procedimento que defere o parcelamento deve ter suas exigências legais atendidas para que então se conceda o benefício, de forma que não é facultado ao Fisco a concessão de um parcelamento e em outro momento formular novas exigências para que sejam reconhecidos seus efeitos.

Ainda que o parcelamento ou seus efeitos só possam ser desconsiderados pelo Fisco no caso de o sujeito passivo der causa à sua rescisão, ocorre que, eventualmente após concessão do parcelamento seus efeitos não sejam respeitados pelo agente autorizador.

Por mais que o parcelamento seja causa para a suspensão da exigibilidade do crédito parcelado (art. 151, I e VI do CTN), por vezes faz-se necessário o fornecimento de Certidão de Dívida Ativa com efeito de Negativa (art. 206 do CTN) pelo Fisco, para que sejam atendidas as garantias do contribuinte, que não é considerado devedor de nenhuma dívida vencida e exigível nos casos em que sejam indicados bens garantidores do débito parcelado.

A fim de que seja garantido o crédito tributário parcelado pela Fazenda Pública, esta deve formular a exigência de garantia para o atendimento da condição para que seja concedido o benefício desde que previsto em lei. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem decidido que o sujeito passivo possui direito de receber a certidão, tratada pelo art. 206 do CTN, ainda que na hipótese de parcelamento do débito desde que seja efetuado o pagamento de suas parcelas. Nesse sentido se o credor não exige garantia para a celebração do acordo de parcelamento, não pode, no curso do negócio jurídico firmado, inovar.

Em relação à natureza plenamente vinculada da atividade administrativa tributária, existem algumas exigências necessárias para que o parcelamento seja concedido e também seus termos, como: número de parcelas, juros aplicáveis, penalidades pelo descumprimento etc., que devem ser disciplinadas em lei. Não têm validade disposições que condicionam a concessão do benefício ao discricionarismo da autoridade administrativa. Expressões como a autoridade poderá..., por exemplo, devem ser entendidas como “desde que presentes os requisitos legais, a autoridade deverá...”.

Entre as exigências legais ao deferimento deste instituto cabe invocar o sentido de confissão ao acolhimento do parcelamento, pois para Machado Segundo:

Deve ser entendido com o devido cuidado, também, o termo confissão de dívida contido nos formulários preenchidos pelo contribuinte que requer um parcelamento. Não se pode esquecer que a obrigação tributária é ex lege. Nasce da incidência da norma jurídica tributária sobre o fato nela previsto, e a vontade do contribuinte não é ingrediente formador desse fato. Assim, se o crédito tributário a ser objeto do parcelamento não encontra amparo em lei, ou encontra amparo em lei inconstitucional, o fato de o

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contribuinte haver “confessado” a dívida é absolutamente irrelevante, e não impede o posterior questionamento judicial das quantias parceladas. O Fisco poderá rescindir o parcelamento, em face do questionamento judicial, mas isso é outra questão. A confissão só terá algum relevo no que pertine aos elementos de fato nos quais se funda o lançamento, mas, mesmo nesse caso, pode ser objeto de ulterior prova em contrário.243

Quanto às condições para o deferimento do parcelamento, insista-se, estas hão de estar legalmente previstas em lei, sendo o seu descumprimento a única causa para seu indeferimento ou rescisão. Por conta disso, dessa vinculação da autoridade administrativa fiscal à lei, é evidente que o ato que exclui o sujeito passivo do âmbito de um parcelamento, ou indefere a sua entrada no mesmo, há de ser fundamentado, e é impugnável, não só administrativa como também judicialmente.

Muito se discutiu a respeito das relações entre o ato que defere o parcelamento e o instituto da denúncia espontânea, de que cuida o art. 138 do CTN. Questionava-se se o contribuinte que realiza a denúncia espontânea e obtém o parcelamento das quantias devidas teria, ou não, direito à exclusão das penalidades correspondentes ao ilícito denunciado. A jurisprudência, depois de algumas idas e vindas, sedimentou-se agora a respeito da questão no sentido de que o contribuinte que leva a prática de infrações espontaneamente ao conhecimento do fisco e requer pagamento parcelado do débito não tem direito ao benefício previsto no art. 138 do CTN, de exclusão das penalidades. Para tanto, o pagamento teria de ser feito de forma integral e imediata, e não parcelada.

Registre-se que o ato que exclui um contribuinte de um programa de parcelamento, por imputar-se a prática de uma irregularidade, é passível de impugnação administrativa e deve ser assegurado o direito constitucional à ampla defesa.

6 CONCLUSÃO

Conforme o exposto percebe-se que o Direito deve ser analisado conforme a perspectiva história e geográfica, pois o Direito é temporal e muda de acordo com a geografia, a história e o âmbito cultural no qual é criado, interpretado e aplicado.

A Constituição Federal, as normas de estrutura, a carga axiológica e a perspectiva sistemática formam o sistema constitucional tributário brasileiro, de modo que a principal regra normativa tributária encontra-se disposta na CF. A competência tributária versa sobre a aptidão para criar ou modificar tributos, englobando um amplo poder político, observados os critérios para a partilha da competência delimitados pela Constituição.

243 MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 50.

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Portanto o sistema de regras de conduta que disciplina o comportamento humano decorre do Direito Positivo que constrói normas jurídicas provenientes de sua interpretação. O Estado, criado para efetivar as regras de conduta dispostas pelo Direito, se mantém em troca de pagamento de tributos aos que se encontram submetidos ao seu poder.

O tributo ocorre a partir da fixação de critérios legais, capitalismo, solidariedade social e conflitos imanentes entre o Estado e particulares ou entre os próprios entes que detêm competência para tributar ou então pelos próprios particulares. O conceito unitário do tributo encontra subsídio legal na Constituição Federal, de modo a identificar as características comuns dos tributos a fim de lhes dar operacionalidade jurídica. É tido como noção nuclear do Direito Constitucional Tributário, pois se mostra como categoria básica através da qual os sistemas constitucionais tributários se edificam, sua conceituação, no entanto não deve permanecer apenas nos discursos da CF, da doutrina e do CTN, mas também na jurisprudência que permite a compreensão de suas variadas espécies (impostos, taxas, contribuições, empréstimo compulsório, etc.)

As normas tributárias constituem-se da interpretação da obrigação tributária principal (norma jurídica tributária ou em sentido estrito) ou das obrigações acessórias (norma tributária em sentido amplo), desta forma a aplicação do direito positivo mostra-se dependente da construção da norma jurídica, ou seja, da interpretação da doutrina ao texto criado pelo legislador, enquanto as normas tributárias em sentido amplo funcionam como uma forma de o Estado controlar a conduta do contribuinte. As normas tributárias são, portanto, o corolário dos princípios fundamentais.

De modo que a existência e vigência das normas tributárias servem para dirimir os conflitos entre o Estado e os cidadãos, contudo mostram-se insuficientes através de sua função, pois em relação a sua aplicação, para que se tenha garantia de sua eficácia e para dar fim a eventuais conflitos surge a figura do Processo Tributário ou o Direito Processual Tributário, que se insere na relação jurídica tributária de cunho obrigacional, derivando de um conjunto de regras e princípios tanto no âmbito administrativo quanto judicial.

O Processo Tributário está subsumido ao influxo da concepção de Estado de Direito e também dos princípios jurídicos de justiça, alicerces do sistema positivo, cabendo ressaltar alguns dos princípios que versam sobre essa matéria, que são: o devido processo legal; o princípio da dualidade de cognição; da tutela judicial efetiva em matéria tributária; e o princípio da autotutela vinculada ao ente tributante.

Presentes na Constituição Federal encontramos ainda a inviolabilidade do direito de defesa, que decorre do Estado de Direito, proclamando a liberdade do cidadão de defender-se frente ao autoritarismo, a incompetência ou simples erro do Estado. O direito de defesa, assegurado pelo processo, é um imprescindível

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limitador do poder estatal, devendo ser compreendido como um instrumento garantido do avanço democrático, pois visa proteger e garantir o equilíbrio entre Estado e cidadão.

Acerca da relação jurídica ocorrida em decorrência da incidência da norma disposta na lei tributária, depois de acertada, quantificada e liquidada remete-se a outra fase, denominada crédito tributário. Tem-se como lançamento a liquidação, ou seja, a quantificação da obrigação tributária (art. 142, CTN). O lançamento pode ser de ofício, por declaração ou por homologação e possui natureza declaratória frente à obrigação tributária, sendo indispensável a comprovação e a notificação do sujeito passivo para que não seja considerado inválido.

Determina-se ao sujeito passivo um prazo para que efetive o pagamento ou impugnação administrativa, que pode ser realizada em razão do direito de petição e das garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, conforme o art. 5º, XXXIV, a, LIV e LV da Constituição Federal. Portanto o lançamento configura um ato administrativo que externa a exigibilidade da obrigação tributária, ensejando à inscrição na dívida ativa como respaldo a uma eventual execução fiscal.

Através da atuação da Administração Pública, que ocorre por meio de atos interligados e disciplinados aparece a figura do processo administrativo tributário a fim de garantir a efetividade do controle de sua legalidade e eventual participação dos sujeitos interessados. O processo administrativo tributário nada mais é que o conjunto de normas que disciplinam o regime jurídico processual-administrativo aplicável às lides tributárias, ou seja, é a soma de atos realizados para a composição do litígio (art. 5º, LV, CF).

O objeto da prova são os fatos da causa, os fatos deduzidos pelas partes que fundamentam a ação ou a contestação e tem como destinatário o juiz. O meio de prova varia de acordo com a necessidade de sua utilização e no processo administrativo tributário são admissíveis todos os meios de prova na fase administrativa contenciosa, não havendo limitação expressa. As provas predominantes são a documental, pericial e indiciária, utilizando-se pouco as provas testemunhal e inspeção ocular da autoridade julgadora, a confissão aparece com limitação em sua função.

A confissão ocorre quando a parte admite a verdade de um fato favorável ao seu adversário e contrário ao seu interesse, consiste no reconhecimento de uma das partes dos fatos alegados pela parte contrária. No caso dos parcelamentos tributários em que o contribuinte firma termo de confissão irrevogável e irretratável de débitos de maneira a renunciar os questionamentos nos âmbitos administrativo e judicial, a confissão deve ser analisada de forma restrita, pois de acordo com o princípio da legalidade, a obrigação tributária decorre exclusivamente da lei, e mesmo que haja confissão da ocorrência de

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determinado fato jurídico pelo sujeito passivo em algum momento do processo, e seja comprovado que tal fato não ocorreu, a manifestação de vontade demonstrada na confissão não poderá validar a obrigação tributária.

O processo tributário judicial é utilizado para a garantia de direitos por meio de ações judiciais ainda que o sujeito passivo tenha sido vencido na fase administrativa ou que prefira utilizar da discussão administrativa para a interposição de ações no âmbito judicial. O sujeito ativo também pode dispor de tal âmbito para a satisfação de seu direito, por exemplo, com a execução fiscal.

Porém é importante frisar que o Estado potencializa a vulnerabilidade do contribuinte existente na relação tributária, pois se mostra ao mesmo tempo como criador da regra obrigacional, formalizador e cobrador da obrigação em que aparece como credor, e ainda é possível ao Estado julgar a lide e executar o título executivo por meio dos órgãos administrativos e judiciais, portanto o Estado aparece como único credor nos ditames do Direito, pois é criador, executor e julgador da relação tributária obrigacional, de modo que o sujeito passivo mostra-se como único devedor, deixando evidente a vulnerabilidade do contribuinte em relação ao Fisco.

Depois de referidos conceitos acima, cabe mencionar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, mais especificamente as figuras da moratória e do parcelamento tributário. A suspensão ocorre quando o sujeito ativo admite que o cumprimento da obrigação tributária deixe de ser exigido sem suspender a obrigação em si ou o crédito tributário (art. 151 do CTN).

A moratória se exprime pela concessão de melhores condições e prazo para a execução da dívida (art. 152 e seguintes do CTN) mediante dois requisitos obrigatórios, que são: o prazo de duração do favor e os tributos a que se aplica.

Tanto a moratória quanto o parcelamento são procedimentalizados. Na hipótese de concessão do parcelamento, em vários casos, faz-se necessário o fornecimento de Certidão Positiva com efeitos de Negativa pelo Fisco (art. 206, CTN) de modo a serem atendidas as garantias do contribuinte, que não é considerado devedor de qualquer dívida vencida e exigível nos casos de serem indicados bens a garantirem o débito parcelado.

Evidencia-se o sentido de confissão do acolhimento do parcelamento com certo cuidado, pois a obrigação tributária nasce da incidência da norma jurídica tributária sobre o fato que nela encontra-se previsto e não da vontade do contribuinte. Assim a confissão terá algum relevo somente no que diz respeito aos elementos de fato nos quais se funda o lançamento, porém até mesmo neste caso pode ser objeto de futura prova em contrário.

Conclui-se, portanto, que do acolhimento do parcelamento em relação à confissão da dívida de forma irretratável e irrenunciável, cabe sim ao sujeito passivo o direito de discuti-la em âmbito administrativo e judicial, para que não sejam afrontados os direitos do contribuinte, como a inviolabilidade do direito

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de defesa, de modo que o sujeito passivo não pode dispor de direito indisponível conforme previsto constitucionalmente. Percebe-se que a confissão é tratada de modo cuidadoso a fim de proteger o sujeito passivo do Estado, pois é clara a sua vulnerabilidade frente ao Fisco.

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A REPRODUÇÃO ASSISTIDA COMO DIREITO FUNDAMENTALE SUA PRESTAÇÃO PELO ESTADO

ASSISTED REPRODUCTION AS A FUNDAMENTAL RIGHTAND ITS PROVISION BY STATE

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RESUMO

O presente artigo tem por finalidade a análise da reprodução assistida como um direito fundamental e sua via de prestação pelo Estado através da implementação do serviço público de reprodução assistida. A Constituição Federal prevê que o Estado tem o dever de garantir o direito fundamental à uma vida digna, englobando neste o direito à saúde e o direito ao planejamento familiar, seja através dos métodos contraceptivos, como métodos conceptivos. Tratam-se de direitos básicos do Estado social e democrático de direito valendo ainda a relevante observância ao princípio da dignidade da pessoa humana e sua decorrência lógica do moderno direito de ser feliz. Além de se preservar a saúde psicológica do indivíduo e garantir o seu direito de constituir família, há de ser observada a sua felicidade, visto que o abalo emocional e psicológico por não poder naturalmente gerar a sua prole afeta diretamente a felicidade deste. E neste aspecto verifica-se que o Poder Público tem a obrigação de garantir saúde aos seus administrados. Inobstante a existência de outras formas para se ter um filho, não é razoável privar o indivíduo de gerar eu filho, já que o impedimento de concepção de um filho pela via natural pode acarretar abalo em seu psicológico, consoante reconhece o Conselho Federal de Medicina, cabendo ao Estado garantir, assim, a saúde dos seus administrados. O Estado não pode ser presente num aspecto do planejamento familiar (contracepção) e omisso noutro (concepção), é o que se visa analisar. Para a realização da pesquisa, utilizou-se de pesquisa bibliográfica e doutrinária essencialmente.

244 Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pela UNICURITIBA. Especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo pela PUC/PR. Membro do Grupo de Pesquisa “Cidadania Empresarial”, liderado pela Prof. Dra. Viviane Séllos, registrado no CNPq.245 Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUCCAMP. Atualmente é coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Líder do grupo de pesquisa “Cidadania Empresarial”, registrado no CNPq.

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Palavras-chave: reprodução assistida; direitos fundamentais; saúde; planeja-mento familiar; serviço público; Estado.

ABSTRACT

This article aims to analyze the assisted reproduction as a fundamental right and its provision by the State through the implementation of a public service of assisted reproduction. The Federal Constitution provides that the State has the duty of guarantee the fundamental right to a dignified life, including the right of health and family planning, either through contraception or conception. These are basic rights of social and democratic State of law, still related to the relevant principle of human dignity and its logical result of the modern right to be happy. Besides preserving the psychological health and guarantee their right to build a family, necessary to be observed their happiness, once the emotional and psychological shock of their natural disability of having a child directly affects their happiness. At this aspect the Government has the obligation of ensure their health. Even though the existence of other ways of generating a child, it is unreasonable to deprive somebody of generating a child, since the impediment of a child’s conception by natural means may result in psychological shock, as the Federal Council of Medicine recognizes, while the State ensure health for all population. The State cannot be one when treating about family planning (contraception) and missing in another (conception). To perform the research, it was consulted the literature and doctrine, essentially.

Keywords: assisted reproduction; fundamental rights; health; family planning; public service; State.

1 INTRODUÇÃO

Segundo Flávia Piovesan (1998) todas as pessoas têm assim o direito fundamental à saúde sexual e reprodutiva, sendo que referido direito decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio este que o Estado tem o compromisso de garantir à coletividade.

O Estado, em sua função de garantidor de direitos, possui o dever de fornecer aos indivíduos os meios com os quais eles possam ter acesso à eles, porém em casos excepcionais, em razão da imediatidade dessas garantias e direitos fundamentais, deve assegurá-los diretamente, como forma de garantir a observância da Constituição da República.

Isto ocorre em razão de que nem sempre é possível aguardar os resultados das medidas de médio e longo prazo destinadas àqueles cidadãos que necessitam gozar do que o sistema constitucional lhes assegura prontamente.

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Em se tratando do fornecimento gratuito pelo Estado dos meios auxiliares à concepção, há que se falar do direito à família, que goza de proteção especial, conforme art. 226 da Constituição Federal. O direito à constituição da família ainda imputa ao Estado o dever de propiciar recursos para se garantir o planejamento familiar, igualmente em razão do princípio da dignidade da pessoa humana.

Noutro aspecto, imprescindível estabelecer algumas características do serviço prestado pelo Estado, tal como a sua imediatidade, o que reforça a inafastabilidade de sua prestação. Ainda, vale apreciar o conceito de serviço público e seus limites de atuação Estatal no âmbito de suas competências.

Segundo o entendimento majoritário, o artigo constitucional que apresenta o rol dos serviços denominados “públicos” não constitui um rol taxativo, mas meramente exemplificativo, cabendo ao legislador descrever outras modalidades de sua prestação. Neste contexto, falar de prestação do serviço público de reprodução assistida não é algo improvável, pelo contrário, tendência já implementada no país, porém pendente de uma sistematização eficiente.

Portanto, uma vez que o assunto é atual, pretende-se demonstrar neste artigo que o direito à reprodução assistida constitui um direito fundamental e, por esta razão, deve ser prestada gratuitamente e eficientemente pelo Estado, sem prejuízo da prestação dos mesmos serviços pelas clínicas particulares, de modo a garantir a efetivação dos direitos básicos trazidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.

2 O SERVIÇO PÚBLICO

2.1 A GÊNESE DE SERVIÇO PÚBLICO

Afirma Dinorá Grotti (2003) que o modelo de Estado adotado em certo momento da história e em certo local guarda uma relação com as funções pertinentes à Administração Pública e consequentemente com o delineamento do Direito, cuja compostura pode retratar caráter mais flexível ou mais autoritário aos valores democráticos.

Tendo em vista esta estreita relação entre o momento histórico e o rumo do direito, e o fato de que os serviços públicos assumem características próprias ao longo do tempo, é interessante analisar o que se passava na sociedade quando o conceito de serviço público surgiu.

Refiro-me a 3 fases eminentemente marcadas: a primeira fase delimitada pelo final do século XVIII até a primeira parte do sáculo XIX. Neste período predominava no mundo a concepção liberal clássica de Estado, sendo ele limitado, com funções reduzidas, e não interventor da economia. Ou seja,

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nesta fase o Estado assumia apenas aqueles serviços que já lhe incumbiriam naturalmente, quais sejam a implantação da infraestrutura, proteção do território, a manutenção da ordem pública e a segurança das relações jurídicas.

Ainda nesta fase prevalecia a famosa “mão invisível” de Adam Smith, segundo a qual o Estado tinha apenas três papéis, quais sejam: a. Proteger a sociedade da violência e invasão territorial de outros Estados; b. Estabelecer uma adequada administração da justiça; c. Realizar obras públicas e prestar serviços públicos economicamente desinteressantes aos particulares.

A segunda fase ocorreu da segunda parte do século XIX ao início do século XX. Após a primeira grande Guerra Mundial, devido às injustiças sociais, desigualdade social e incapacidade de auto-regulação dos mercados, o Estado assumiu nova função, pois o Estado Social passou a ter relevância máxima, um crescente intervencionismo e por consequencia a ampliação dos serviços públicos.

O Estado passou a ter o dever de garantir os direitos fundamentais. Observa-se assim uma atuação do Estado no fornecimento de serviço de utilidade coletiva, como transporte, água, gás e eletricidade.

Neste período, o desenvolvimento dos países passou a ser qualificado pelo adjetivo “humano”. O desenvolvimento nos anos 50, antes medido com o referencial grau de industrialização dos países, nos anos 90 passou a ser o IDH (expectativa de vida ao nascer, educação e PIB per capita).

No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, como pontua Adriana Schier (2011), ocorre a constitucionalização dos direitos sociais, sendo que o instituto do serviço público seria utilizado como objeto de intervenção estatal para assegurar a efetividade desses direitos, concretizando a dignidade dos jurisdicionados.

Em meados da década de 90, o país enfrentou a crise do Estado Social, mesma época em que emergia no contexto internacional a globalização e o neoliberalismo, pretendendo diminuir a estrutura estatal mediante privatizações. Devido à forte crítica ao Estado de bem-estar social decorrente do endividamento público, o potencial do Estado foi visto com descrédito, inaugurando uma terceira fase.

Na terceira fase, iniciada no final do século XX surge um consenso de que seria necessário o enxugamento dos encargos estatais e a devolução das atividades à iniciativa privada. Portanto, na década de 80, a discussão de serviço público reaparece no contexto internacional da globalização e do neoliberalismo, pretendendo diminuir a estrutura estatal mediante privatizações.

Enquanto isso no Brasil, com o advento da República, o serviço público caracterizou-se por ser um instrumento de infraestrutura, aparecendo pela primeira vez na Constituição Federal de 1934, mas tornando-se instrumento visando o desenvolvimento do país nas áreas de segurança e desenvolvimento econômico apenas na fase do Estado Novo, período compreendido entre 1937 a 1945), com o presidente Getúlio Vargas.

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2.2 CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO

Para Adriana Schier (2011), serviço público constitui a atividade de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade, que o Estado presta por si mesmo ou quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público.

Oferecendo uma visão desenvolvimentista ao serviço público, Adriana Schier (2011) aponta que atribuir ao serviço público o conceito de direito fundamental não é suficiente para efetivar os direitos sociais. Serviço público como integração social e redistribuição de riqueza não quer dizer distribuição de renda, mas sim diminuição da exclusão social na medida em que permite aos cidadãos o acesso aos bens que garantirão uma existência digna.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2009b) certas atividades destinadas a satisfazer a coletividade são qualificadas como serviços públicos quando o Estado reputa que não convém relegá-las à livre iniciativa, pois não seria socialmente desejável que ficassem sob responsabilidade privada.

Para definir o termo, Bandeira de Mello (2009b) propõe que serviço público possui um substrato material e um formal. O substrato material caracteriza-se pelo serviço tratar-se de uma prestação de atividade singularmente fruível pelos usuários, constituindo na prestação seguidamente disponibilizada, destinada à satisfação da coletividade em geral.

Os serviços devem ser considerados pelo Estado como de utilidade pública. Para aqueles serviços que não o são, o Estado deve fomentar, abrindo linhas de crédito, por exemplo.

Ainda segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2009b), o substrato formal caracteriza-se pela submissão a uma específica disciplina de direito público, conferindo o caráter jurídico do conceito de serviço público. Ao submeter a prestação do serviço à disciplina específica, busca-se assegurar que o interesse público prepondere sobre o particular.

2.3 COMPETÊNCIA PARA A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO E POSSIBILI-DADE DE ESTABELECIMENTO DE NOVOS SERVIÇOS

No artigo 21 da Constituição Federal consta o rol de serviços de titularidade privativos da União. Serão públicos federais: o serviço postal e o correio aéreo nacional, os serviços de telecomunicações, serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens, serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, navegação aérea, aeroespacial e a infraestrutura aeroportuária, serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território, serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, portos marítimos, fluviais e lacustres.

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Além desses, há serviços não exclusivos da União mas também serviços públicos federais, tais como saúde, educação, previdência e assistência social. E aos Estados cabe a competência remanescente, conforme previsto no artigo 25, parágrafo 1° da Constituição Federal, competência aquela que não cabe a União e aos Municípios.

Aos Municípios compete os serviços de natureza local (ou de peculiar interesse, conforme consta na CF/88), inculuido o transporte coletivo. Há competências comuns aos entes, devido à sua relevância, como saúde e sistema de ensino. Alguns serviços, quando desempenhados pelos particulares não serão considerados públicos, por exemplo a seguridade e previdência social, assistência social e ensino.

Quanto a possibilidade de criação de novos serviços, observa-se que na realidade jurídica brasileira, foi o constituinte quem fixou o que seria serviço público e portanto, o rol de serviços pode mudar, pois não há um serviço público por natureza.

A expressão serviço público surgiu pela primeira vez na Constituição Fderal de 1934, tratando-se de atividade de titularidade do poder público.

Alguns serviços, quando desempenhados pelos particulares não serão considerados públicos, por exemplo a seguridade e previdência social, assistência social e ensino. Porém o ingresso da iniciativa privada não descaracteriza a categoria de serviço público, ainda que não dependam de delegação.

Quanto a possibilidade de criação de serviços públicos pela via legislativa, divergem os doutrinadores.

Para o primeiro grupo, composto por Celso Antonio Bandeira de Mello, Benedicto Porto Neto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia Antunes Rocha, Eros Roberto Grau, Juarez Freitas e Marçal Justen Filho, é possível a criação de novos serviços públicos, havendo uma relativa liberdade ao legislador ordinário, desde que respeitadas a ordem econômica garantidora da livre iniciativa. Neste caso, deve-se analisar a essencialidade do serviço e se ele atende ao interesse social.

Diversa é a posição adotada por Fernando Herren Aguilar (1999), corrente esta minoritária, segundo a qual serviços públicos são exclusivamente aqueles contidos no corpo constitucional, só havendo inclusão de nova categoria por via de emenda constitucional, tendo em vista que não se extrai da Constituição um conceito ou qualquer mecanismo expresso que permita ao legislador ordinário converter uma atividade econômica em sentido estrito em serviço público.

Acompanhando a corrente majoritária pode-se concluir portanto que é possível a criação de novos serviços, sendo necessário observar primeiro que o serviço deve estar estar dentro das competências da pessoa jurídica instituidora e segundo observar que as indicações do artigo 173 da Constituição Federal merecem respeito, no que se refere a exploração da atividade econômica diretamente pelo Estado.

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3 O SERVIÇO PÚBLICO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

3.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Todo ser humano nasce com direitos e garantias, não podendo estes ser considerados como uma concessão do Estado, pois alguns destes direitos são criados pelos ordenamentos jurídicos, outros são criados através de certa manifestação de vontade, e outros apenas são reconhecidos nas cartas legislativas.

Os Direitos Fundamentais são definidos como conjunto de direitos e garantias do ser humano, cuja finalidade principal é o respeito a sua dignidade, com proteção ao poder estatal e a garantia das condições mínimas de vida e desenvolvimento do ser humano, ou seja, visa garantir ao ser humano, o respeito à vida, à liberdade, à igualdade e a dignidade, para o pleno desenvolvimento de sua personalidade.

Esta proteção deve ser reconhecida pelos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais de maneira positiva.

Os Direitos Fundamentais, atualmente, são reconhecidos mundialmente, por meio de pactos, tratados, declarações e outros instrumentos de caráter internacional. Esses Direitos fundamentais nascem com o indivíduo. E por essa razão, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, diz que os direitos são proclamados, ou seja, eles pré existem a todas as instituições políticas e sociais, não podendo ser retirados ou restringidos pelas instituições governamentais, que por outro lado devem proteger tais direitos de qualquer ofensa.

3.2 O DIREITO FUNDAMENTAL À PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO

Os sensíveis níveis de exclusão social no país demonstram que ainda é tempo de se defender o Estado social e democrático de Direito, premissa que norteia o estudo do serviço público como instrumento de concretização dos direitos fundamentais e mecanismo de desenvolvimento social mediante intervenção do poder público. Portanto deve-se buscar formas para assegurar a máxima efetividade dos direitos sociais.

Serviço público constitui a atividade de utilidade material destinada à satisfação da coletividade, que o Estado presta por si mesmo ou quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público.

Verificou-se que atribuir ao serviço público o conceito de direito fundamental não é suficiente para efetivar os direitos sociais. Necessário um regime jurídico especializado, o regime de direito público, previsto no artigo 6° da Lei n° 8.987/95.

Serviço público como integração social e redistribuição de riqueza não quer dizer distribuição de renda, mas sim diminuição da exclusão social na medida em que permite aos cidadãos o acesso aos bens que garantirão

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uma existência digna. É a noção de desenvolvimento social baseada no desenvolvimento humano.

A devida prestação do serviço público permite à sociedade alcançar níveis de desenvolvimento mais abrangentes do que a diminuição da pobreza.

A defesa do serviço público, prestado sob regime adequado, elevado à categoria de direito fundamental, contribui para assegurar a redistribuição de bens essenciais à concretização da vida digna permitindo a inclusão de pessoas na esfera política e emancipação.

E nos países emergentes, a intervenção do Estado continua sendo para a maior parte da população, o único meio de acesso aos bens essenciais.

Portanto, a releitura do serviço público como mecanismo de concretização de direitos fundamentais apresenta-se no contexto da reformulação dos papéis do Estado como condição de desenvolvimento democrático.

O serviço público é, certamente, o instrumento de realização efetiva dos direitos sociais viabilizando a todos uma condição digna no alcance do bem comum e trazendo à população felicidade.

4 A REPRODUÇÃO ASSISTIDA

O desenfreado desenvolvimento tecnológico tem provocado rupturas com a ordem até então vigente, impulsionando-nos à criação de novos conceitos e institutos capazes de promover a adaptação necessária aos tempos modernos.

Novas questões criadas pelo progresso no campo da genética colocam em xeque concepções arraigadas há séculos, e por vezes abrangem, todo um novo entendimento a respeito da vida.

Diante da realidade vislumbrada, necessário se faz incluir, entre as temáticas que tiveram alterados ou ampliados os seus conceitos e os seus paradigmas, a referente à reprodução, pois tal vocábulo, há bem pouco tempo, poderia indicar, apenas, a capacidade natural de procriação, ou seja, aquela proveniente da conjunção carnal.

Porém, na atualidade, o ato ou efeito de reproduzir-se, de gerar, de procriar, de multiplicar, de perpetuar-se pode ser atingido por outros métodos que não o presumível.

Afirma-se isto, pois, hoje, técnicas que compreendem a chamada fertilização artificial, fecundação artificial, fecundação por meios artificiais, impregnação artificial, concepção artificial, semeadura artificial, inseminação artificial, fecundação in vitro ou fertilização matrimonial são realidade no meio médico e na vida daqueles impossibilitados de reproduzirem-se através do meio convencional.

Em razão da variada nomenclatura citada, deve-se esclarecer que a expressão mais aceita é Reprodução Assistida, em face das demais denominações.

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De acordo com o exposto, necessário indicar ser cabível conceituar a reprodução humana assistida como o conjunto de técnicas que favorecem a fecundação humana, a partir da manipulação de gametas e embriões, objetivando principalmente combater a infertilidade e propiciando o nascimento de uma nova vida humana.

Nas palavras de Andréa Aldrovandi e Danielle Galvão de França (2002, p. 01), tal método de reprodução consiste na “[...] intervenção do homem no processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas com problemas de infertilidade e esterilidade satisfaçam o desejo de alcançar a maternidade ou paternidade”.

Maria Helena Diniz (2002, p. 524), ao manifestar-se acerca do tema, é enfática em sua posição, não admitindo como terapêuticos os processos da reprodução assistida. Profere, nessa senda, o seguinte comentário:

“[...] é mister que se tome consciência de que aqueles processos de fertilização humana assistida não trazem em si, remédio algum à esterilidade, pois quem é estéril continuará a sê-lo, uma vez que, na verdade, o partícipe da criação é o doador, um estranho ao casal, que tão somente coloca à disposição seu material fecundante”.

4.1 INEXISTÊNCIA DE LEGISLAÇÃO PARA TUTELAR A PRÁTICA DA REPRO-DUÇÃO ASSISTIDA E SUAS IMPLICAÇÕES

Silvio de Salvo Venosa (2012, p. 259) ao tratar do significado de Direito, em sentido amplo, adentra aspecto de grande relevância. Declara o autor que “[...] para que haja essa disciplina social, para que as condutas não tornem a convivência inviável, surge o conceito de norma jurídica”.

No mesmo sentido, merece enfoque, ainda que breve, a Teoria do Tridimensionalismo do Direito. De acordo com o sustentado por Miguel Reale (1998, p. 65), fato, valor e norma “[...] não existem separados uns dos outros”.

Porém, nítidas as descobertas da Biomedicina constantes e velozes, diferentemente do Direito, o qual não detém a mesma dinâmica em sua atualização. É notório que o Direito, ciência mais estagnada que a Medicina, por sua própria natureza, não tenha acompanhado, lado a lado, a evolução das técnicas de reprodução assistida.

Na verdade, os progressos científicos comprovam a lacuna jurídica – ou a incompletude da ordem jurídica – nestas matérias, de outro, fizeram rever princípios clássicos, que se tinham como definitivos, tais como o da prevalência da paternidade biológica ou da certeza da maternidade e que, diante das procriações artificiais, dão mostras de insuficiência ou esgotamento.

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Não obstante, a falta de regulamentação sobre o tema não indica ser ela desimportante. Ao contrário, as implicações sociais, políticas, morais e sanitárias das tecnologias reprodutivas exigem suporte jurídico como forma de proteção dos direitos e interesses das pessoas envolvidas.

Cabível, mais uma vez, repetir incumbir ao Direito a criação das condições para prevenção e preservação da saúde moral e social dos indivíduos. Nessa senda, deve corresponder aos anseios e necessidades da sociedade a que se refira, pois as inter-relações entre as normas jurídicas e a sociedade são mútuas, e dessa influência se deriva em grande parte a evolução e a vida de ambas.

Em face da importância existente na conexão das normas e da sociedade, incompreensível se torna a falta de respaldo legal em torno da reprodução orientada, pelo ensejo, por esta promovido, de questões tormentosas, envolvendo a dignidade e a vida do ser humano, desde sua concepção.

Além disso, não se trata de assunto distante, mas sim, amplamente inserido na realidade nacional. Hoje calcula-se que um em cada seis casais em idade fértil tenha problemas para gerar filhos e seja, em potencial, candidato à reprodução assistida.

Por sua vez, Eduardo de Oliveira Leite (1995) garante que a procriação artificial surge como meio legítimo de satisfazer o desejo de ter filhos. Do mesmo modo, enfatiza que o intento de barrar sua constante evolução é algo impossível.

No concernente à divergência de posicionamentos sobre o tema, o autor assevera que a própria pluralidade de posições está a exigir uma manifestação sem ambiguidades do mundo jurídico.

Atente-se que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade.

Diante da periculosidade de se ter assunto tão sério relegado à falta de regulamentação, buscam-se soluções jurídicas, para os casos que delas necessitam, pela análise dos costumes, do Direito Comparado, da analogia, dos princípios básicos de nossa sociedade.

Ressalte-se que a base da própria existência do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, fim permanente de todas as suas atividades, é a criação e manutenção das condições para que as pessoas sejam respeitadas, resguardadas e tuteladas, em sua integridade física e moral, assegurados o desenvolvimento e a possibilidade da plena concretização de suas potencialidades e aptidões.

Nítido é, no entanto, que, embora sendo um direito fundamental, a dignidade não foi, ao longo da história, garantia constante. Ao contrário, passou por recuos e avanços, tendo em vista a influência de fatores culturais, econômicos e, por certo, científicos.

No âmbito dos progressos científicos, no que tange à reprodução assistida, a dignidade é relevante na demonstração do caminho a ser seguido,

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na falta de legislação específica, na obrigação a um compromisso inafastável: o do absoluto e irrestrito respeito à identidade e à integridade de todo ser humano. Isso porque o homem é sujeito de direitos: não é, jamais, objeto de direito e, muito menos, objeto livremente manipulável.

A ponderação, em muitos casos, deverá recair na análise da relação entre os interesses dos que almejam se tornar pais, com o auxílio das tecnologias reprodutivas, e os da criança a ser concebida. Nesse sentido deve-se garantir que a criança não seja apenas um objeto a ser reivindicado. A dignidade do novo ser é merecedora de ampla proteção.

Continuando a busca por dispositivos constitucionais que embasam o contexto da reprodução assistida, necessária menção requer objetivo fundamental do Estado brasileiro, constante no Artigo 3°, inciso IV. Trata-se da promoção do bem estar.

Por certo, o significado de bem estar é bastante complexo, atentando-se, por exemplo, para o fato de que diferentes entendimentos podem surgir em decorrência de concepções individuais.

Além disso, no contexto da procriação artificial, pode-se considerar bifrontalmente a expressão, analisando-a pelo critério positivo e pelo negativo. Desse modo, refere-se a bem comum tudo aquilo que contribui para a consolidação e para a expansão, em harmonia com o contexto social, das virtualidades de cada indivíduo.

Por outro lado, o infringe, toda e qualquer medida contra a vida e a liberdade, contra a dignidade e a igualdade dos seres humanos.

Fundamental esclarecer que o direito à vida, conforme a abordagem da atual Constituição, apanha todo e qualquer projeto vital (inclusive células, tecidos, etc.), vocacionado à vida ainda quando incapaz de manter, por si só, a existência.

Assim, por certo, conclamados podem ser os procedimentos da reprodução orientada, mesmo porque, a vida humana integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais).

Ressalta-se que o direito em tela foi trazido à discussão, pois imprescindível função exerce na abordagem sobre quem pode fazer uso dos procedimentos artificiais de reprodução. Uma indagação paira sobre o fato de ser a utilização das tecnologias reprodutivas direito de todos, indistintamente, em decorrência do direito à igualdade.

O direito à liberdade, também encontrado na abertura do artigo 5° da Constituição Federal, reclama destaque, pois sendo a liberdade encarada como permissão jurídica que se reconhece às pessoas para serem senhoras de sua própria vontade, ocorre sua forte interligação com o tema abordado, no que tange à oportunidade de as pessoas poderem optar por recorrer às técnicas reprodutivas e à necessidade de consentimento informado para a prática das técnicas citadas.

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O princípio da legalidade e da anterioridade, inscritos, respectivamente, nos incisos II e XXXIX do mesmo artigo, implicam estudo. Por seus ditames, entende-se que, no Brasil, o que não é proibido, é permitido, do mesmo modo como, determinado é, não haver crime sem lei anterior o definindo.

Frente à inexistência de legislação específica, considerando-se tais disposições, isoladamente, torna-se, então, plenamente legal a aplicação de técnicas que visam à procriação artificial. Todavia, necessária se torna a observação de outras regras constitucionais, conjuntamente.

A garantia de livre expressão científica, prevista no inciso IX do artigo 5°, pode, ainda, ser mencionada. Na verdade, a possibilidade dada a todos para poderem exprimir o pensamento a respeito de descobertas na área científica, não parece adequar-se à ideia de liberalidade total na implementação de técnicas nessa área. Há que se atentar à questão de que a ciência deve submeter-se ao crivo ético e jurídico, em prol da dignidade humana.

O direito ao acesso à informação, transcrito no inciso XIV, por seu turno, necessita de menção na atual abordagem, uma vez que, sob sua alegação, questiona-se a relevância de permanecerem anônimos os doadores de material genético.

A proteção à família, encontrada no artigo 203, inciso I da Constituição Federal, requer citação, especialmente no que concerne aos princípios da paternidade responsável (artigo 227, § 6°) e do planejamento familiar (artigo 226, § 7°).

No tocante ao planejamento familiar é o artigo 2°, da Lei 9.263/96 que oferece sua conceituação. De acordo, novamente, com o já referenciado, o planejamento familiar inclui a chance, por parte da família, de optar pelo uso das tecnologias reprodutivas.

O direito à convivência familiar também é direito assegurado pela Carta Magna em seu artigo 227. Tal dispositivo, certamente, produz influência sobre o enfoque deste trabalho, já que, frustrada estaria a conclamada convivência familiar, sendo permitida a utilização da reprodução artificial por determinadas pessoas, como no caso de ser usada por solteiras e por homossexuais.

Para finalizar esta abordagem, cabível é a referência ao artigo 225 da Constituição Federal. Por esse dispositivo, depreendido é o direito ao meio ambiente equilibrado, sendo dever da coletividade e do Poder Público sua defesa e preservação em prol das presentes e das futuras gerações.

Nessa senda, salienta-se que na proteção ao meio ambiente está inserida a necessária proteção à espécie humana de forma que a diversidade e a integridade do patrimônio genético deve ser preservada, bem como devem controladas ser as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação do material genético.

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5 A REPRODUÇÃO ASSISTIDA COMO SERVIÇO PÚBLICO

Poucas instituições oferecem tratamentos gratuitos de fertilização no Brasil, e como resultado disso, a espera do atendimento pode levar anos.

Como requisito ao acesso gratuito ao tratamento, nas poucas instituições que oferecem, é necessário que os casais passem por uma série de exames para averiguar se a fertilização in vitro é a única opção para ter filhos.

E este procedimento da mesma forma contribui para aumentar o tempo de espera. Por tal razão, a inclusão da fertilização in vitro na tabela do SUS com certeza disponibiliza um número muito maior de vagas para os casais interessados.

Em 2001 foi aprovado no Estado de São Paulo um projeto de lei que prevê a criação de um programa gratuito de reprodução humana. O intuito do projeto de lei 517/2001, nomeado “Programa de Assistência Básica em Reprodução Humana”, foi o de oferecer tratamento de inseminação artificial e de fertilização in vitro para casais que não podem pagar o alto custo do serviço, que pode variar de R$ 5.000,00 a R$ 50.000,00 por tentativa.

O objetivo do projeto, mais do que oferecer o serviço para pessoas carentes, foi tentar frear o envelhecimento da população brasileira. Atualmente, para a maior parte da população, fica inviável pagar um tratamento de fertilização, devido ao alto custo.

Em decorrência do projeto apresentado no Estado de São Paulo, o Ministério da Saúde iniciou estudos para discutir a inclusão da fertilização in vitro na tabela do Sistema Único de Saúde (SUS).

Atualmente, são oferecidos pelo SUS trinta e um procedimentos de reprodução humana assistida - a maioria, exames preparatórios para tratamentos mais complexos, como a própria fertilização.

A primeira vez que se aventou a ideia de inserir a fertilização no SUS foi em março de 2005, quando o Ministério publicou uma portaria que determinava o oferecimento da fertilização pelo SUS a pessoas com dificuldade para ter filhos. Quatro meses depois, ela foi suspensa para a avaliação dos impactos financeiros.

Se a medida for aprovada, será a primeira vez que o governo federal vai bancar os custos da mais eficiente forma de engravidar para quem tem problemas de fertilidade - um procedimento de alto custo e inacessível para a maioria da população.

Com esta novidade, o Estado passa a assumir mais um serviço público a ser prestado para a população. Neste compasso, os indivíduos que necessitam deste serviço se beneficiarão gratuitamente de um tratamento de saúde que na realidade efetivará o direito constitucionalmente garantido à vida.

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Hoje há uma demanda cada vez maior da sociedade. Além disso, ao longo destes últimos anos, o que se considerava prioridade já foi contemplado por recursos da área da saúde.

Uma das possibilidades para atendimento via SUS é reembolsar esses centros de reprodução assistida que já oferecem fertilização in vitro de forma gratuita. Espalhados por São Paulo, Brasília, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre, pelo menos oito hospitais realizam cerca de duas mil fertilizações por ano – enquanto a iniciativa privada realiza entre 25 e 30 mil, segundo a Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida.

Recentemente o Estado do Rio Grande do Sul inaugurou Hospital Fêmina, que parece ser o maior prestador do serviço público de reprodução assistida do Rio Grande do Sul, permitindo a fertilização in vitro pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em média, o novo laboratório pretende realizar 20 procedimentos de alta complexidade por mês.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 15% (quinze por cento) dos casais sofrem de infertilidade, em função de problemas que atingem tanto as mulheres quanto os homens.

Tendo em vista o exposto, é função do Estado atender casais que não querem mais ter filho, mas também aqueles que desejam e não conseguem.

CONCLUSÃO

Através dos argumentos apresentados, é possível perceber que a reprodução assistida é um direito fundamental e deverá ser implementado como serviço público pelo Estado.

Conforme abordado, a Constituição Federal prevê que o Estado tem o dever de garantir saúde aos seus administrados e o direito fundamental à uma vida digna, englobando neste o direito à saúde e o direito ao planejamento familiar, seja através de métodos contraceptivos mas também métodos conceptivos.

Portanto, não é razoável privar o indivíduo de gerar um filho, já que o impedimento de concepção de um filho pela via natural pode acarretar abalo em seu psicológico, consoante reconhece o Conselho Federal de Medicina, cabendo ao Poder Público intervir para garantir, assim, a dignidade dos seus administrados.

Quanto à legislação, observou-se que ela é omissa, pois inexiste regulamentação legal para tutelar o procedimento. Diante da periculosidade de se ter assunto tão sério relegado à falta de regulamentação, necessário buscar soluções jurídicas para os casos que delas necessitam, pela análise dos costumes, do Direito Comparado, da analogia, dos princípios básicos de nossa sociedade.

Neste aspecto, de grande importância é perceber que o Direito detém papel fundamental na determinação de respostas às realidades propiciadas pela

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reprodução assistida, pois é clara sua responsabilidade de adequar a convivência social através de seus ditames normativos.

Por conseguinte, diante da inexistência de legislação específica a respaldar o complexo tema abordado, incontestável é a questão de que na Constituição Federal, Lei Maior do país, podemos também encontrar as soluções para as lacunas geradas.

Portanto, diante de todos os aspectos analisados no presente artigo, pode-se afirmar que a prestação adequada do serviço público, elevado à categoria de direito fundamental, contribui para assegurar a concretização da vida digna permitindo a concepção da vida àqueles impedidos de fazê-lo.

Notável é a importância dos métodos conceptivos em função do conturbador diagnóstico da infertilidade. Tais procedimentos, diversos e diferenciados, oferecem respostas aos mais variados problemas ligados à infertilidade.

Nos países emergentes, a intervenção do Estado continua sendo para a maior parte da população, o único meio de acesso à reprodução assistida.

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REFERÊNCIAS

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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Serviço público e atividade econômica: serviço postal. In: Grandes temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009a.

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BRASIL. Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981 sobre a Política Nacional do Meio Ambiente.

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003.

LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações Artificias e o Direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

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REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

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SCHIER, Adriana da Costa. Serviço público como direito fundamental: mecanismo de desenvolvimento social. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. Globalização, direitos fundamentais e direito administrativo: novas perspectivas para o desenvolvimento econômico e socioambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

VENOSA, Silvio de Salvo. A reprodução Assistida e seus aspectos legais. Disponível em: <http://www.e-juridico.com.Br/noticias/exibe_noticias.asp?grupo=5&código=10401> Acesso em 21/10/2012.

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TÓPICOS CONCLUSIVOS

Após a leitura da presente coletânea “Concretização Constitucional: reflexões, desafios e conquistas”, foi possível concluir que:

• Apesar de concisa, a Lei 12.506/2011 é suficiente para atender ao seu fim, ou seja, criou um parâmetro de proporcionalidade para ser aplicado ao aviso-prévio, sendo esse critério baseado no tempo de serviço do cabe aos estudiosos do Direito sanarem as dúvidas decorrentes de sua aplicação no que tange às suas insuficiências. (TEIXEIRA e CAMPOS).

• O capitalismo é o fator que determinou a formação e cristalização da crise habitacional, sob o prisma de sua própria lógica interna, bem como sobre a influência que se estabeleceu sobre as instituições sociais, especialmente, a figura do Estado. (CHMYZ e BENITEZ).

• Houve um aprimoramento das regras que versam sobre as inelegibilidades, sobretudo com a fixação de critérios legais, objetivando igualar os postulantes, impedindo a pratica de posturas que atentem contra os princípios da administração pública contidos na Lei Maior. (ANDRADE e MARIN).

• O Poder Público deve melhorar a qualidade de vida da população como um todo, mas principalmente atendendo os indivíduos menos privilegiados, que no caso em específico são crianças desfavorecidas economicamente e seus responsáveis, não sendo a saúde um privilégio apenas de uma pequena porção que possui recursos suficientes para a contratação de um plano de saúde particular que supra os defeitos do Sistema Único de Saúde (SUS). (HANDA e COLUCCI).

• A partir de tudo em relação ao princípio da função social da propriedade urbana, como sendo aquele utilizado como substrato material para interpretação e aplicação do ordenamento jurídico vigente, conclui-se que os conceitos de propriedade, e de finalidade social, não são como pareciam num primeiro momento, conceitos conflitantes entre si. (SANTOS e BACELLAR).

• O vínculo afetivo entre um adulto e uma criança, ou mesmo entre um adulto e o nascituro muitas vezes se sobressai em relação ao vínculo biológico, não sendo é o DNA que torna alguém pai ou mãe, apenas comprova as origens da criança. Também chegou-se a conclusão que não há comprovações científicas de que crianças sofrem qualquer prejuízo por serem criadas por pessoas e casais homossexuais que não sofreriam convivendo dentro de um modelo convencional. (SILVA e BRESSANELLI).

• A pretensão doutrinária estabelecia-se acerca da natureza jurídica societária da individualização do detentor de capital e gestor da

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atividade empresarial e que a criação das empresas individuais de responsabilidade limitada pode ser considerada um largo passo ao desenvolvimento societário em nosso país. (CASAGRANDE e OLIVEIRA).

• As Organizações Sociais representam um avanço no sentido da flexibilização da atuação do Estado, que o crescimento das entidades do Terceiro Setor é reflexo de um conjunto de fatores e representam novas estratégias para estimular parcerias com entidades do Terceiro Setor e que torna-se necessário o aprimoramento das regulamentações e dos mecanismos de controle para que a parceria com o Estado atinja o objetivo essencial a que se destina, qual seja, o interesse público. (MÂNICA e CHALUSNHAK).

• A inelegibilidade e a elegibilidade são estatutos diferentes, possuindo requisitos diversos, que o grande diferencial da Lei Complementar 135/2010 para as anteriores é a esta é fruto de grande mobilização popular, chegando ao legislativo pelas vias do projeto de lei popular; que nem toda inelegibilidade pode ser considerada pena. (KUBA e ANDRADE).

• A responsabilidade dos sócios no sistema legal brasileiro é medida que será imposta sempre de alguns fatores se confirmarem, a critério do magistrado, mas para tanto, o juízo de valor deve estar muito bem fundamentado, pois as normas regulamentares deste procedimento permitem vasto campo para discussão da efetiva ocorrência dos fatos que desencadeiam o pedido, pois como visto, a simples inadimplência da pessoa jurídica não é motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica (teoria menor) no Direito Brasileiro. (TEIXEIRA NETO e RIBAS).

• Alguns meios de solução de conflitos apresentam-se como alternativas a serem utilizadas pelos cidadãos, como exemplo, o trabalho dos Cartórios Extrajudiciais, que visam uma solução rápida para os desejos individuais. (LAMORTE e KNOERR).

• A responsabilidade dos sócios no sistema legal brasileiro é medida que será imposta sempre de alguns fatores se confirmarem, a critério do magistrado, mas para tanto, o juízo de valor deve estar muito bem fundamentado, pois as normas regulamentares deste procedimento permitem vasto campo para discussão da efetiva ocorrência dos fatos que desencadeiam o pedido. (TEIXEIRA NETO e RIBAS).

• Não se podem desprezar os efeitos da Lei nº 12.349/2010 para fins de estipulação das possibilidades, limites e condições de admissibilidade de contratação direta com entidades do Terceiro Setor e o que antes se

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revelou como uma forma excepcional de satisfação de outros interesses públicos que não a simples necessidade ou utilidade, administrativa ou coletiva não parece mantido. (FERREIRA).

• Do acolhimento do parcelamento em relação à confissão da dívida de forma irretratável e irrenunciável, cabe ao sujeito passivo o direito de discuti-la em âmbito administrativo e judicial, para que não sejam afrontados os direitos do contribuinte, como a inviolabilidade do direito de defesa, de modo que o sujeito passivo não pode dispor de direito indisponível conforme previsto constitucionalmente. (OLIVEIRA e MACEI).

• A reprodução assistida é um direito fundamental e deverá ser implementado como serviço público pelo Estado, que a legislação é omissa em relação à reprodução assistida; que o Direito detém papel fundamental na determinação de respostas às realidades propiciadas pela reprodução assistida e que a prestação adequada do serviço público contribui para assegurar a concretização da vida digna permitindo a concepção da vida àqueles impedidos de fazê-lo. (FENDRICH e SÉLLOS-KNOERR).