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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA CINEFILIA & GUETO Notas sobre uma (auto)etnografia em um cinemão paulistano Eros Sester Prado Guimarães 1 Resumo O Cine República é um cine pornô de pegação localizado no centro antigo de São Paulo, especificamente no “gueto”, um espaço tradicional de expressão de sexodissidências. Tal espaço tem passado por transformações ligadas a mudanças amplas na configuração de tais expressões; a emergência dos mercados GLS’s e os efeitos das militâncias políticas que a comunidade LGBT tem acumulado nas últimas décadas estão inseridas neste contexto. Busco neste artigo interpretar as operações empreendidas pelos frequentadores do Cine República – os cinéfilos – em relação à sociabilidade indoors e os aspectos materiais do mesmo. Buscarei também conectar essa interpretação da sociabilidade a amplos fenômenos inscritos no universo das sexodiversidades paulistanas urbanas – inclusive os referentes às transformações no gueto –, problematizando quando possível o papel do/a pesquisador/a. Assim, buscarei estabelecer um nexo entre a sociabilidade indoors e o mundo outdoors (re)contando uma história das sexodiversidades paulistanas do ponto de vista das práticas de pegação. Para isso, me utilizarei de dados de campo e reflexões auto- etnográficas em minhas análises, bem como de uma série de textos consagrados às sociabilidades e histórias do gueto gay paulistano, problematizando sempre que possível a controversa prática de se pesquisar o campo das sexualidades como uma atividade legitimamente científica. Palavras-chave: Pegação, homossociabilidades, sexodiversidades 1 Graduação/Iniciação Científica no departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 1

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013

Universidade do Estado da Bahia – Campus ISalvador - BA

CINEFILIA & GUETO

Notas sobre uma (auto)etnografia em um cinemão paulistano

Eros Sester Prado Guimarães1

Resumo

O Cine República é um cine pornô de pegação localizado no centro antigo de São Paulo,

especificamente no “gueto”, um espaço tradicional de expressão de sexodissidências. Tal espaço

tem passado por transformações ligadas a mudanças amplas na configuração de tais expressões; a

emergência dos mercados GLS’s e os efeitos das militâncias políticas que a comunidade LGBT tem

acumulado nas últimas décadas estão inseridas neste contexto. Busco neste artigo interpretar as

operações empreendidas pelos frequentadores do Cine República – os cinéfilos – em relação à

sociabilidade indoors e os aspectos materiais do mesmo. Buscarei também conectar essa

interpretação da sociabilidade a amplos fenômenos inscritos no universo das sexodiversidades

paulistanas urbanas – inclusive os referentes às transformações no gueto –, problematizando quando

possível o papel do/a pesquisador/a. Assim, buscarei estabelecer um nexo entre a sociabilidade

indoors e o mundo outdoors (re)contando uma história das sexodiversidades paulistanas do ponto

de vista das práticas de pegação. Para isso, me utilizarei de dados de campo e reflexões auto-

etnográficas em minhas análises, bem como de uma série de textos consagrados às sociabilidades e

histórias do gueto gay paulistano, problematizando sempre que possível a controversa prática de se

pesquisar o campo das sexualidades como uma atividade legitimamente científica.

Palavras-chave: Pegação, homossociabilidades, sexodiversidades

1Graduação/Iniciação Científica no departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013

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«Sempre que se impõe mundos, se criam submundos»,

Goffman, 1974, p.246.

Os objetivos que revestem as minhas motivações na elaboração deste texto são ambiciosos.

Fazem parte deles recontar a história recente das

homossociabilidades/homoafetividades/homoeroticidades masculinas do ponto de vista do que foi

chamado sexo impessoal2 na cidade de São Paulo. Contar uma história a partir do sexo impessoal -

ou «a partir da pegação» - requer um cuidado especial: o/a pesquisador/a deve se despir de certo

manto moral na análise antropológica - uma prescrição ética. Mais do que isso, o/a pesquisador/a da

sexualidade deve assumir ativamente uma postura política, e não exatamente moralista ou tributária

do senso comum.

A necessidade – crucial para as minorias – de assumir a enunciação no campo das

«ciências» foi importantíssima para os primeiros movimentos de «emancipação» de minorias

sociais 3. Conforme já nos sugere Guattari na década dos 70s, o tema das sexualidades dissidentes

«não poderia ser abordado sem o questionamento dos métodos comuns de pesquisa em ciências

humanas que, sob pretexto de objetividade, tomam todo o cuidado em estabelecer uma distinção

máxima entre o pesquisador e seu objeto» 4.

Para compreender as transformações históricas por detrás da agência das práticas de pegação

- e, por que não?, a consistência de tais práticas enquanto geradoras de história/s - faz-se necessário

situá-las na economia das mudanças trazidas pela chamada «revolução homossexual»5.

No caso «brasileiro», esta revolução - ou «desbunde» - tem início na década de 1970s em

torno do ativismo «guei»6, em um contexto mais amplo de abertura democrática. Vinha também

acompanhada por uma mudança marcada na maneira como o problema das homossexualidades era

tratado pelas mídias e pela academia. As mudanças estéticas e políticas trazidas pela veiculação em

massa de grupos como Secos & Molhados é exemplar na composição dessas mudanças estruturais.

2 Termo paradigmaticamente cunhado por Humphreys, 1976, em pesquisa pioneira sobre práticas de pegação em banheiros públicos (tearoom trade = banheirão).

3 Em um contexto a partir do qual os «anormais» passaram a constituir um «saber coletivo sobre si mesmos», transformando a «opressão em perspectiva crítica sobre o poder», Preciado, 2009, p.139. Todos os textos em outras línguas foram livremente traduzidos.

4 «Três milhões de perversos no banco dos réus», 1981, p.38.5 Ficção político-analítica que serve de base conceitual para as análises empreendidas em «O desejo homossexual»,

Hocquenghem, e «Terror Anal», Preciado, ed. 2009. Este processo tem início nas lutas por enunciação coletiva, que visam atravessar a línguagem hegemônica heterossexual.

6 Tradução do estrangeirismo gay, utilizada no jornal militante «Lampião de esquina» e no livro «Devassos no paraíso» de Trevisan, 2011.

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A intensificação das alianças dos movimentos L/G/B/Ts/etc. com um aparato institucional já

nos anos 1990s e a concomitante expansão do gueto para um mercado rigorosamente estabelecido

foram centrais em deslocar as práticas de pegação no tempo e no espaço.

Em primeiro lugar – e aqui já me refiro à realidade dos grandes centros urbanos,

especificamente São Paulo –, elas foram retiradas de seu espaço de importância na consolidação de

uma «comunidade» – e cada vez mais parecem ser interpeladas como práticas indesejáveis e

vergonhosas no seio da mesma: «as revoluções também constroem suas margens» (Preciado, 2009,

p.142). Em segundo lugar, têm sofrido mudanças oriundas de um processo de «privatização» –

tanto no que tange à maneira como são percebidas enquanto agenciamento «vulgar» do espaço

público, como no que tange à multiplicidade de estabelecimentos comerciais voltados para a

expressão aberta de homoafetividades e homoeroticidades. A criação de lugares cada vez mais

especializados e «higiênicos» para se fazer sexo, talvez esteja contribuindo para a crescente

marginalização7 de certos lugares de pegação considerados sujos e inadequados. As práticas de

consumo são essenciais aqui para que entendamos como a (re)construção dos lugares de pegação

são operadas pelos sujeitos.

Recuso-me também a enxergar o «problema da pegação» como uma questão da área de

saúde a ser sanado com distribuição de preservativos – a política pública mais conhecida a favor

dos HSHs – Homens que fazem Sexo com outros Homens. Me sinto inclinado a concordar com

Berenice Bento quando diz, ao elogiar o trabalho de Larissa Pelúcio sobre travestis, que

o Estado passou a fazer e pensar políticas políticas públicas para a população

travesti quando esta foi considerada 'grupo de risco' [referindo-se à epidemia de

HIV-AIDS] … Pode-se argumentar que o Estado está agindo na defesa da vida das

travestis ao informar e distribuir preservativos. Esta é uma meia verdade. … Por

que foi a aids que fez o Estado produzir Programas nacional, regionais e municipais

para atender às travestis? Movido pelo medo do contágio da 'sociedade', dos

humanos mais humanos, as travestis são chamadas pelo Estado em sua cruzada

para controlar a epidemia. Por que não há campanhas do tipo: 'Homens, não

contaminem as travestis'? Por que os agentes dos Programas de Saúde não estudam

7 Aqui, marginalização escapa da esfera puramente simbólica e discursiva, para se entrelaçar numa rede complexa da qual fazem parte a dinâmica do «centro» como «região moral» (cf. Park, 1967, p.64), as políticas públicas de «higienização»/revitalização do «centro», a especialização de ofertas de mercado referentes a lugares de cultivo de masculinidades e a influência do circuito GLS em articulação com a ocupação e o trânsito de «sexodiversidades» em espaços públicos e a influência do mercado segmentado.

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métodos para abordarem os clientes que se aproximam das travestis? Mesmo

sabendo que o vírus que circula não tem um polo irradiador, o Estado continua

fazendo campanhas de sensibilização para as travestis e continua

invisibilizando/protegendo os clientes, Bento, 2009, p.21-22.

A maneira como é formulada a questão aqui é, guardadas as devidas proporções, similar à maneira

como gostaria de problematizar a atuação dos «Homens que Praticam Pegação8» (HPPs). Aqui

estou me referindo ao controle tecnobiopolítico9 que acompanha as homo-subjetividades ao longo

do século XX, e que ameaça recrudescer apesar das lutas recentes dos movimentos sexodissidentes

por emancipação. Essa ameaça corporifica-se nas análises «científicas» recentemente empreendidas

na órbita do PRO-SEX (Projeto Sexualidade do HCFMSUSP10; cf. Abdo & Oliveira Jr, 2010; Abdo

et al., 2009; Amaral & Scanavino, 2012). Tais análises têm buscado estabelecer uma série de

associações perigosas e preocupantes11 como resultados e apontado como solução para as

sexualidades anormais (por exemplo, sexo compulsivo homossexual em cinemões e também as

ditas sexualidades «não convencionais12») a educação sexual desde a infância e as terapias

psicodinâmicas e à base de sertralina ou paroxetina e naltrexona (um «conjunto de moléculas

disponíveis hoje para fabricar a subjetividade e seus afetos», Preciado, 2008, p.89).

Por fim, alimento-me de uma premissa: a de que «pegação tem história», e de que essa

história vem sendo negligenciada pelo próprio campo subalterno de produção de conhecimento. Se

a política queer tem estado preocupada com os submundos que a agenda política tradicional dos

movimentos gueis vêm criando, deve trabalhar para que essa história – a da pegação – não seja

perdida. Deve estar ela própria atenta para as «relações de poder» que não são pura e simplesmente

«produto e efeito de um novo tipo de olhar»13, mas que subvertem a objetividade do próprio olhar.

Concluindo, posso dizer que, como Goffman, creio

que qualquer grupo de pessoas … desenvolve uma vida própria que se torna

8 Dentre os vários motivos que me fazem preferir o termo, está a antipatia pelas categorias apropriadas pelas tecno-bio-políticas públicas

9 Estarei utilizando este termo em referência a Preciado, 2008, S/d.10 Hopital das Clínicas, vinculado à Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Para uma

apresentação programática inicial deste projeto, cf. Abdo & Oliveira, 1996.11 Por que aceitar sem resistência e despreocupadamente essas associações entre compulsão sexual entre HSHs e

AIDS (Abdo et al., 2009; Amaral & Scanavino, 2012) ou disfunção erétil e inibição do desejo sexual e desemprego (Abdo et. Al, 2005), por exemplo?

12 Um termo eufemístico para se referir às sexualidades anormais, enquadradas como tais nos códigos DSM-4 da Associação de Psiquiatria Norte-Americana e ICD-10 (International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems) como distúrbios de sexualidade, disfunções sexuais e parafilias.

13 Parafraseando Foucault, 1979, pp. 209-210.

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significativa, razoável, e normal, desde que você se aproxime dela, e que uma boa

forma de conhecer qualquer desses mundos é submeter-se à companhia de seus

participantes, de acordo com as pequenas conjunturas a que estão sujeitos, 1974,

p.8.

Advogo e assumo tal postura; postura esta que deveria ser a de todo/a investigador/a da sexualidade.

Feita a advertência, passemos enfim às análises.

Manicômios, prisões, conventos... Cinemões

Da imposição generalizada de um dado conjunto de regras surge um contingente

submundano de sujeitos abjetos. A reiteração da norma define quais sujeitos são capazes de habitar

o mundo14 com plenitude. Mais do que isso, é através dela que se interditam ou se reproduzem, e em

que condições, determinada expressão do desejo. Os sujeitos fadados à precariedade e

dispensabilidade são os que possuem as piores condições para se posicionar estrategicamente frente

a dispositivos tecnobiopolíticos e frente à força de certas crenças «tradicionais». A pegação de

cinemão se apresenta aqui como um objeto privilegiado de análise no que se refere ao manejo de

identidades, categorias sociais, marcadores sociais da diferença e (bio)tecnologias de sujeição

operados pelos seus agentes.

No entanto, desde já se faz necessário colocar um problema: de que forma reverte-se – ou

complementa-se – o problema da cumplicidade entre o pesquisador de práticas de pegação com as

normas que as regulam? Além de tratar desta questão, ao se debruçar sobre o assunto, o estudioso

do cinemão encontrará muita dificuldade para achar referências a respeito deste fenômeno. Me

pergunto até que ponto a falta de interesse pelos cinemões paulistanos não refletiria uma certa

aversão inconsciente dos interessados nos estudos de homossociabilidades pela sujeira e imundície

presente em tais estabelecimentos.

Tendo em vista a carência de documentos acerca da pegação de cinemão em São Paulo, a

história que aqui me proponho a fazer não deixará de ser composta em parte por elucubrações de

cunho mais teórico que empírico, e certamente se apresentará como uma história lacunar.

Como é um cinemão em São Paulo?

14 Aqui me refiro à discussão a respeito da noção «mundo habitável» em Judith Butler. Pulgarin, 2011.

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Partiremos da descrição do Cine República [CR] - conforme a análise por mim realizada

anteriormente (Sester, 2012). O CR situa-se no «gueto15 gay» paulistano, um espaço tradicional de

expressão de sexualidades ditas dissidentes. Ele, o CR, é composto por duas salas internas – uma

onde são projetados os filmes «héteros», outra para os filmes entre homens –, duas dark rooms, três

banheiros, um bar e as escadarias e corredores que os conectam. Ele é frequentado quase

absolutamente por homens cissexuais – os «cinéfilos» –; estes tendem a performatizar determinados

modelos viris/discretos de masculinidade.

No entanto, frequentam também masculinidades mais amenas, interpeladas indoors

frequentemente como femininas, desnecessárias e indesejáveis. Tal rejeição parece estar conectada à

discrição como valor fundamental para a manutenção de uma imagem pública heterossexual. A

valorização da «discrição», do passing indoors, contudo, causa a seguinte inquietação: do lado de

dentro do templo do segredo, ser masculino – e, portanto, desejável – é ser paranoico – discreto,

heteroperformativo.

Será o cinemão um lugar democrático?

A sociabilidade do CR, pautada especialmente pela busca de parcerias entre homens,

subverte o senso comum a respeito das práticas comumente chamadas promíscuas. Se seus

frequentadores buscam «sexo fácil» com «anonimato relativo»16, este não se dá senão em

observância de um conjunto de práticas, aspectos e tendências aos quais dei o nome de

«democracia». O mesmo termo é empregado por Humphreys para se referir à atividade do

banheirão (tearoom trade): «nesses ambientes públicos ... existe uma espécie de democracia que é

endêmica ao sexo impessoal».

Algo parecido é dito por um dos meus entrevistados, homem, branco, 59, quando

interpelado a respeito desta questão (grifo meu).

Eu: E, me diz uma coisa. Você acha que os cinemões são lugares democráticos? Em

algum sentido?

15 A noção de «gueto» é especialmente problemática. Diz Barbosa, 2005b, «a constituição de guetos [gays] emerge com base em dois processos: 1. uma forma e autodefesa contra a marca que traz a definição dos comportamentos sexuais praticados entre homens e 2. uma sociedade intolerante», p.232. Para uma discussão mais aprofundada, cf. McRae, 2005 e Perlongher, 2008.

16 Dora Guimarães, 2004.

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Ele: Democrático no sentido que tem tudo quando espécie de gente sim. E também

que existe tudo quanto, um lugar onde você pode extravasar todo tipo de desejo,

também sim.

Eu: Entendi.

Ele: Acho que sim. Porque lá no Cine Saci, eu via, sabe, todo tipo de gente, desde

frequentador, sabe, gente que mora na rua até aqueles caras totalmente tatuados,

travesti, e tudo quanto é tipo de bicha, bicha louca, bicha-não-sei-o-quê, enrustido,

tudo quanto é tipo de gente.

Em relação a essa democracia endêmica ao sexo impessoal, isto é, sobre este contexto de

trocas erótico-afetivas entre «todo tipo de gente», Hocquenghem formula a seguinte hipótese:

quando o ânus encontra de novo sua função desejante, quando as conexões de

órgãos se fazem sem lei nem regra, o grupo goza em uma espécie de relação

imediata da qual desaparece a diferença sacrossanta entre o público e o privado,

entre o individual e o social. E talvez possamos encontrar um indício deste estado de

um comunismo sexual primário em certas instituições – apesar de todas as

repressões e de todas as reconstruções culpáveis das quais são objeto – do gueto

homossexual: pensamos aqui nas saunas, lugar famoso em que se conectam

anonimamente os desejos homossexuais, 2009, p.88.

Eu certamente acrescentaria o cinemão à análise de Hocquenghem.

A noção de que lugares como um banho turco17 ou um banheiro (tearoom) público são

espaços «democráticos» ou componentes de um «comunismo sexual primário», portanto, já era

conhecida desde pelo menos meados da década de 1970s, quando esse fenômeno passou a ser

diagnosticado discursivamente. No Brasil, por sinal, a crônica parece ter sido um dos primeiros

espaços de produção de um diagnóstico local. Refiro-me à produção cinematográfica.

Enquanto em um filme de 1965 o banho turco ainda aparece como cenário de sobriedade e

conversas – públicas – entre homens preocupados com questões políticas e sobretudo econômicas18,

já em 1968, o espaço do cinema apresenta en passant o sintoma da apropriação indevida do espaço

em «O bandido da luz vermelha»19. Em «Aquêle dia 10»20, um homem – pedreiro, branco, que 17 Termo utilizado com mais frequência há algumas décadas, refere-se a sauna a vapor.18 «São Paulo, Sociedade Anônima», direção de Luís Sérgio Person.19 Produção dirigida por Rogério Sganzerla. Na referida cena, um jovem homem branco atravessa fileiras do cinema

com especial atenção aos seus frequentadores: caçação.20 Um dos capítulos – dirigido por Gianfrancesco Guarnieri – da produção coletiva «Vozes do medo», 1973,

organizada por Roberto Santos.

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presumidamente não possui muito poder aquisitivo – trata com hostilidade um outro homem,

branco, que dele se aproxima com demasiada urgência em um teatro especializado em striptease –

na cena, dançava uma mulher branca.

No entanto, ao tocarmos o universo incipiente da produção das ciências humanas e grupos

de militância a respeito das práticas de pegação, já no fim da década de 1970s, o diagnóstico muda.

Mictórios e cinemas já são reconhecidos aqui como espaços legítimos de pegação. O texto «Cinema

Iris: na última sessão, um filme de terror», publicado na edição zero do jornal «Lampião»21 (1978,

p.9) trazia uma breve descrição da sociabilidade indoors nesse cinema carioca.

O Cinema Íris os engole a todos, como um útero escuro e quente. Às 21h20, em sua

tela brilham as primeiras imagens, e um clima mágico, muito pessoal desse cinema,

se instala. Durante os próximos 150 minutos, as pessoas não terão que ficar

necessariamente sentadas em seus lugares – na verdade –, embora haja muitos

lugares vagos, dezenas delas se amontoam na escuridão da entrada (algumas até se

colocam entre as cortinas e a parede), enquanto outras se atravancam no banheiro

de frisos artnouveau e procuram ver algo além do que sua única lâmpada – de 40

velas – permite. Para os que entraram no Íris por acaso – ou pela primeira vez –,

uma certeza inicial: apenas as damas que pagam meia parecem realmente

interessadas no que a tela mostra: o vai-e-vem dos homens está em constante

desacordo com o fato de que estão num cinema; e os sussurros, as imprecações, as

meias palavras que se ouvem igualmente não têm a ver com as fugas entrecortadas

de Terence Hill, o Trinity do primeiro filme em exibicão.

Podemos também ler em um guia organizado e distribuído pelo Grupo Outra Coisa de Ação

Homossexualista em 1981, uma lista bem elaborada dos mictórios públicos e cinemas onde havia

práticas de pegação (em São Paulo, esses lugares se concentram no centro velho da cidade22), além

de uma «Via Sacra», um circuito de trânsitos e territórios cuja cuidadosa descrição trazia indicações

do tipo de público que frequentava determinados espaços, a presença de michetagem ou prostituição

travesti, além de indicações de atividade policial. Neste «Guia do Bandeirante Destemido», como

foi batizado, os mictórios e cinemas ocupavam lugar semelhante aos bares, saunas e boates.

Contudo, os dois primeiros, com a expansão do mercado GLS, passariam a ser sistematicamente

21 Jornal de grande importância política para os movimentos gays emergentes na virada dos anos 70s para os 80s. Foi rebatizado a partir da edição número 1 para «Lampião de esquina».

22 Cf. Barbosa, 2005a, pp.73-74, Simões & França, 2005, Perlongher, 2008.

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excluídos das representações mercadológicas de tais circuitos23, quando muito citados em roteiros

alternativos.

Os anos 1970s com o seu desbunde e as suas mudanças ampliaram o usufruto clandestino da

sala escura, ao mesmo tempo em que traziam um incipiente processo de abandono de suas salas

pelo «público geral», época em que passaram a fechar os primeiros cinemas de bairro. Trevisan

sugere que este processo está ligado à popularização de televisores domésticos24. A partir da

segunda metade dos anos 1980s, com a estrita liberação da pornografia, as salas do centro – que na

época exibiam com muita frequência filmes de alcance mais popular de Kung Fu e faroeste (ou

bang bang), quando muito o gênero pornô soft core – já completamente sucateadas e parcialmente

apropriadas por um público HPP e trans*25, investiram em um modelo de construção e manutenção

do espaço – baseado na apropriação feita por esses públicos dissidentes – que persiste na totalidade

das salas especializadas até os dias de hoje.

Essa história um tanto quanto «intrusa», no entanto, não tem conseguido se impor enquanto

patrimônio social aceitável – do ponto de vista dos discursos hegemônicos a respeito de gênero e

sexualidades. Quero com isso dizer que os cinemões têm sido rejeitados não apenas pelos aparelhos

institucionais em geral – acusados vez ou outra de higienismo –, mas também pelo próprio discurso

produzido no seio das comunidades gays paulistanas urbanas que parecem interpelá-los de forma

injuriosa, acionando discursos de condenação da promiscuidade, por exemplo. Diz um dos meus

entrevistados, homem, indígena, 35 anos, sobre sua relação com cinemas de pegação já nos anos

2000s.

Eu acho que havia uma certa ingenuidade em mim, entendeu? Eu às vezes sou meio

ingênuo de não perceber que as pessoas podem ser muito escrotas com as

informações que eu dou a elas. Eu comentei a algumas pessoas [conhecidos que

mantinham relações erótico-afetivas com pessoas do mesmo sexo] que eu ia no

cinemão. Que eu ia na Vieira de Carvalho. E aí eu comecei a sofrer uma experiência

de segregação, eu era mal visto. Só que eu não tenho muita paciência pra isso, né?

Eu não neguei, eu comecei apenas a ignorar. ... Então durante um tempo eu fiquei

23«O Guia da DiverCidade de São Paulo», de 2011, apresenta dicas sobre práticas esportivas, gastronomia e cultura, mas nenhuma indicação sobre os cines pornôs do centro velho.

24 2011, p.412.25O termo trans* tem aparecido em discussões no seio do movimento das (anti)identidades transexuais, travestis, trangêneros e outras, que preferem acioná-lo como um grande guarda-chuva (pós)identitário-conceitual e organizado contra a perpetuação social do cissexismo. Cf. http:/ /www.transfeminismo.com

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sendo visto como esse depravado, essa bicha baixa que vai a lugares baixos.

Não sendo reivindicada como valor em tais grupos, essa história depravada e baixa de

frequência nos cinemões da Vieira pode se reduzir a um mero uso indevido, um «novo uso» a ser

eliminado como interferência em um patrimônio que resguarda uma história desejável e possui uma

estética hostil a essas subversões da História. Cito um exemplo de como esse raciocínio pode ser

articulado, em um trecho emblemático de uma tese esquecida pelas estantes da Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da USP.

Atualmente … a sala [o Cine Art Palácio] encontra-se em precário estado de

conservação, tendo sido dividida em duas salas menores e, embora mantendo seu

uso original, tem sua programação voltada para a exibição de filmes pornográficos.

A preservação do Cine Art Palácio passa, inevitavelmente, pela manutenção do uso

original, já que, dentro do paradigma moderno “a forma segue a função”, e … sua

arquitetura foi inteiramente concebida para abrigar tal uso, sendo todos os

elementos desenhados em função dele, dificultando outros programas. Ademais, do

ponto de vista da restauração, os novos usos não podem ser considerados como

determinantes do projeto de restauro, como já assinalado, embora sejam

fundamentais para a continuidade dos edifícios, 2006, p. 221.

Apesar de este trecho ser bem pouco claro a respeito de onde começa e onde termina o «uso

original», ele é categórico ao rejeitar o «novo uso», definindo claramente o ponto de partida do

restauro. A história que será recontada através do restauro é a função original: não importa que a

mera duplicação de salas indique manutenção do «uso original» – em parte imposta por questões

financeiras; a retomada da história legítima só acontecerá quando o Cine Art Palácio voltar-se

novamente para a exibição de um circuito filmográfico dirigido a um público decente e interessado

na boa produção da sétima arte. O único mérito do Cine Art Palácio era ter permanecido um

cinema: eterna espera do dia do juízo final dos cinemões.

Pequena história afetiva dos cinemões

Parece-me que as práticas de pegação encontram eco nos cinemas da cidade de São Paulo

em uma origem difícil de ser apreendida com precisão. Tenho adotado a interpretação de que, de

diversas maneiras, (I) as práticas de pegação têm deslocado o significado originalmente atribuído às

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funções sociais dos banheiros e dos cinemas, para então (II) confrontar-se com um elemento de

complexificação que consiste no povoamento de identidades emergentes nos desencaixes26 do

gueto.

As lições descritas no filme «Bailão»27 são um bom exemplo de como essa apropriação

passou a ser operada, em uma época em que a pornografia ainda não era projetada na grande tela e o

gueto ainda não apresentava os sinais tão evidentes – como hoje o é – de que se constituía como

espaço tradicional de expressão da dissidência sexual.

A primeira vez que eu fui no cinema – que aconteceu alguma coisa comigo – foi no

Cine Piratininga. E eu sentei lá, de repente eu percebi que sentou alguém do meu

lado. Mas eu não me toquei, eu não tava ali pra caçar, eu era novo. Quando eu

percebi – assim – alguém pegou, eu senti uma mão pegar aqui assim.

Um outro complementa: «o namoro começava na perna: você encostava a perna na pessoa e

sentia que a pessoa queria. “Bom, se encostou e não tirou, não se sentiu incomodado”». A ansiedade

denotada por esse ritual de passagem na fala de um entrevistado meu, homem, branco, 59, está

inscrita como prelúdio de sua «vida gay».

O que aconteceu – inclusive no cinema de pegação ainda é assim – e aí o que

aconteceu é que eu me lembro vagamente de uma perna cruzando na minha perna

que eu morri, fiquei assustado, nervoso, saí de perto ... E não era um cinema de

pegação, era um cinema de bairro, mas eu acho que já tinha características que

começavam a ser de cinema de pegação, começavam a virar cines pornôs e tal.

Os tecnocordeiros28 empreendem novos usos para o templo da sétima arte

Diz José Fábio Barbosa, exagerando um pouquinho, que «podemos pensar na intensa vida

noturna, no consumo de drogas, na cultura das “saunas” e no culto do corpo como tradições gays».

Tais práticas comporiam «representações coletivas desse grupo», além de serem «ritualizadas no

dia-a-dia» (2005b, p.234).

Se a cultura das saunas existe de fato como tradição, a mesma parece estar diretamente

ligada à gênese da expressão das homoafetividades, tendo sido incorporada – para o bem e para o

26 No original «desenclave». Refiro-me a Meccia, 2011, p.527 Direção de Marcelo Caetano, 2009. O curta pode ser apreciado em http://portacurtas.org.br/filme/?name=bailão28Referência a Preciado, S/d.

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mal – nas comunidades e trânsitos gays urbanos.

Esse tipo de prática – na qual dois ou mais sujeitos se olham, ou apenas se apalpam,

e logo, às vezes sem trocar palavras, se entrelaçam no frenesi dos corpos –,

frequente nas redes homossexuais, deriva, em parte, das condições históricas de

segregação e clandestinidade tradicionalmente impostas a essas uniões: no corre-

corre da perseguição, não há tempo a perder em cortejos floridos. Mas essa

exuberância sensual dos modernos gays se encaixa também na secreta tradição da

orgia, que mina a história oficial, da qual constituiria sua trama subterrânea,

Perlongher, 1987, p.60.

O passing é a propriedade social especial que orienta essa mudança de dupla face: por um

lado, a colonização dos espaços invisíveis corresponde à necessidade de manter a dissidência

erradicada do espaço público (visível); por outro, ela opera uma ressignificação especial

desesperada e subversiva. O palco dessa apropriação invisível são os parques, praças e banheiros

públicos, casas de banho e, no caso paulistano, os cinemas.

Assim, o cinema torna-se cinemão.

Teoria dos fluxos indoors no Cine República

Parte do meu intuito em outro lugar (Sester, 2012) foi mostrar como através de certas

lógicas/normas/estruturas se realizavam o que acreditamos ser «relações sexuais» dentro do Cine

República. Um primeiro lugar, unânime, seria o aprendizado de gênero: há uma ligação gritante

entre masculinidades – ou seja, tecnologias de subjetivação e performances – e o espaço público.

As homoafetividades e homoeroticidades atravessam e distorcem essa associação, de forma que a

sociabilidade indoors se constitui como um curto-circuito entre as relações de gênero e os espaços

públicos-privados. Isto quer dizer que não sabemos até que ponto há continuidade ou subversão das

normas de gênero mesmo se olhamos ou participarmos da pegação.

Indoors, a depender de cada um dos lugares, mais ou menos claros ou escuros, mais ou

menos públicos ou privados, as masculinidades se reconstroem em observância de alguns filtros: a

(in)expressão do sexo anal, a conformação em par (monogâmica?), o sexo privado, a masculinidade

invicta etc. Tudo acontece como um complexo jogo estratégico onde agência, vulnerabilidade e

ansiedade social atuam energicamente, traduzindo normas ao mesmo tempo que criam novos

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mundos.

Cada um dos espaços internos torna-se assim um universo à parte. Os espaços bem

iluminados são os lugares do flerte, das conversas, da afetividade e da circulação. As salas de

projeção admitem menos afeto; há aqui uma pegação pouco afeita à fala, mais afeiçoada a felações,

masturbações [punhetas], volumes, exibições. Nas dark rooms acontecem as masturbações, as

felações e, com menos frequência, as penetrações. A realização do sexo anal – não por acaso na

«sala escura» – responde a um magnetismo específico.

A dinâmica interna da dark room no momento da penetração é semelhante à descrição feita

por Braz em um local comercial para encontros sexuais: «quando dois ou mais se juntam e iniciam

uma cena ... outros param ao seu lado. Algumas vezes entram na cena. Outras vezes, apenas

observam, enquanto se tocam como voyeurs.». A contingência faz parte dessa dinâmica: «também é

possível que dali, outras duplas e grupos se formem, conformando outras cenas» (2009, p.222). No

entanto, as regras que parecem orientar as agências na dark room do cinemão estão mais próximas

da observação de Terto Jr., referindo-se ao caráter subjetivo do movimento em um cinemão carioca:

«como que imantados, um atrai ou repele o outro de acordo com os códigos e preferências, que se

movimentam, se sobrepõe em meio ao aperto geral e à aparente confusão» (1989, p.131).

A situação de vulnerabilidade em que o sujeito «masculino» está alocado pela exposição

anal é facilmente revertida pela tradução interna dos mundos privados. O magnetismo é

frequentemente indesejado no CR, seja pela rejeição do sexo grupal – e complementar valorização

do par –, seja pela adoção da privacidade como valor e condição para os intercursos. A realidade

dos fluxos indoors vai de encontro com o pensamento frequentemente acionado dentro e fora do

gueto para o qual em espaços como um cine pornô, reina a promiscuidade indiscriminada. A

democracia indoors consiste justamente na grande multiplicidade de atuações (tensores libidinais29,

códigos de seletividade e preservação etc.) por detrás da tendência ao estabelecimento de trocas

erótico-afetivas (busca de parcerias).

Do quarto escuro para as cabines do banheiro, o desejo dissidente é privatizado para, por um

lado, se tornar invisível – espécie de exigência externa –, e por outro, para consolidar um modus

operandi do desejo heterossexista baseado na necessidade do par e na integridade da masculinidade

viril – uma sorte de tradução interna das normas que atravessam as paredes do cinemão e nelas se

fixam30.

29 Cf. Perlongher, 2008.30 A um resultado semelhante chega Miskolci ao analisar o armário na web: «a internet revela sua dupla face:

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O sexo entre homens, grupal ou em par, interracial, barebacking etc. é reordenado, por fim,

de forma contingente através do espaço indoors. Por fim, parece ali «imperar ... uma escala

normalizadora que orienta aqueles homens a se relegarem voluntariamente à escuridão em

conformidade com os graus de abjeção acionados através das escolhas de suas parcerias» (Sester,

2012, p.8).

Conclusão

Nesta breve exposição busquei problematizar o papel do pesquisador de pegação, apresentar

o universo dos cinemões paulistanos através da sociabilidade e arquitetura do Cine República,

apontar o aspecto «democrático» destes lugares como espaços de trocas erótico-afetivas através de

uma história em andamento, apontar o agenciamento dos cinéfilos ao criar contra-pedagogias

operando pelas normas sociais também inscritas na espacialidade do cinemão, e mostrar como

subjetividades e trânsitos estão enredados em uma escala de estratificação sócio-espacial e erótico-

afetivo-sexual.

Faço isso com um objetivo explícito. Goffman diz que a imposição de mundos resulta na

criação de submundos. Estou particularmente interessado nos exuberantes efeitos da imposição de

submundos sobre os mundos «originais».

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