ii congresso nacional de formação de professores xii...
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II Congresso Nacional de Formação de Professores XII Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores
MEMÓRIAS DE PROFESSORES EM PROCESSOS DE PESQUISA-FORMAÇÃO: REVISITANDO PRÁTICAS, RECONSTRUINDO SABERES
Matildes Aparecida Trettel De Oliveira, Simone Albuquerque Da Rocha
Eixo 4 - Políticas de formação de professores
- Relato de Pesquisa - Apresentação Oral
A pesquisa objetivou analisar o potencial das narrativas para o processo de formação do professor quando evocam memórias de episódios vivenciados na docência, descritos em um livro organizado pelos professores de uma escola no interior de Mato Grosso - Tangará da Serra em 2010. Para a investigação, de abordagem qualitativa, adotando-se a pesquisa-formação, foram realizadas entrevistas no intuito de provocar a reflexão das práticas dos professores descritas no livro ‘Memórias’ e de como esse processo consistiu em um revisitar das práticas, inclusive na perspectiva de redimensioná-las. A obra foi construída a partir das memórias de 26 professores, sendo que para este recorte, são apresentados três estudos em que os professores são convidados a relerem seus trabalhos e a refletirem sobre eles no sentido de avaliarem e ressignificarem suas práticas. Os referenciais teóricos que dão suporte a essa análise são: Lüdke e André (1986); Candau (2001); Bosi (1979); Burnier (2006); Soares (2001); Benjamim (1994); Shulman (1987); Bruner (2001); Josso (2004, 2007); Bueno (2002); Zeichner (1993); Mizukami (2000); Vasconcelos (1995); Freire (1970,1993, 1994, 1996); Carvalho (2005); Tardif (1991, 1992, 2002); Mello (2012); Prada (2010); Silva (1977); Libâneo, (2010); Schön (1992) e Wallon (2003). A pesquisa comprovou o potencial das narrativas com a descrição de episódios vivenciados pelos professores como um dispositivo de formação e reconstrução de conhecimentos, metodologias e concepções de educação. Palavras-chave: Prática pedagógica. Narrativas. Memórias de professores.
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MEMÓRIAS DE PROFESSORES EM PROCESSOS DE PESQUISA-
FORMAÇÃO: REVISITANDO PRÁTICAS, RECONSTRUINDO SABERES
Matildes Aparecida Trettel de Oliveira; Simone Albuquerque da Rocha. PPGEdu, CUR, UFMT.
INTRODUÇÃO
“Ensinar é uma arte baseada na ciência. Os melhores professores são aqueles que compreendem os diversos fatores pessoais e sociais operando dentro da sala de aula, e que, através de uma observação sensível e de métodos precisos, constroem experiências de aprendizagem que se tornarão congruentes, além de se moverem na mesma direção das expectativas de seus alunos”. Schumann (1975).
A pesquisa objetivou analisar o potencial das narrativas para o processo
de formação do professor quando evocam memórias de episódios
vivenciados na docência, descritos em um livro organizado pelos professores
de uma escola no interior de Mato Grosso - Tangará da Serra em 2010. Para
a investigação, de abordagem qualitativa, adotando-se a pesquisa-formação,
foram realizadas entrevistas no intuito de provocar a reflexão das práticas dos
professores descritas no livro ‘Memórias’ e de como esse processo consistiu
em um revisitar das práticas, inclusive na perspectiva de redimensioná-las. A
obra foi construída a partir das memórias de 26 professores, sendo que para
este recorte, são apresentados três estudos em que os professores são
convidados a relerem seus trabalhos e a refletirem sobre eles no sentido de
avaliarem e ressignificarem suas práticas. Nesse processo a memória da
docência tem um valor determinante.
Para Candau (2001), memória pode ser caracterizada como o registro que
o indivíduo tem de conhecimentos adquiridos ou de ações empreendidas ao
longo de sua vida, como também de sua dimensão temporal a partir da qual o
indivíduo diz e pensa, articula sobre si mesmo.
A proposta da pesquisa foi bem aceita pelo grupo, uma vez que, resgatar
através da memória, as histórias já narradas na obra, constituem um revisitar
da trajetória de vida e de docência, pois, como relata Thompson (1998),
“recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade;
continuar lidando com essa lembrança pode fortalecer, ou recapturar, a
autoconfiança” (apud SOUZA, 2001, p. 10). Mas, nem todos os professores
da unidade escolar aceitaram esse desafio, pois não conceberam a
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perspectiva de que muitos não estavam dispostos de “Lembrar não é reviver,
mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as
experiências do passado”, como ressalta Bosi (1979, p. 17). Escrever sobre a
própria vida, sua trajetória profissional não é mesmo uma tarefa tão fácil
assim e como afirma Soares (2001), só é possível fazer um memorial quem
tem um passado acadêmico para contar, no caso dos professores e
funcionários, o valor de suas experiências em narrativas, então refletidas, é
formação para quem as lê.
A obra intitulada Memórias, que contém 97 páginas, é composta por 26
narrativas, 02 de professores, 22 de professoras e 02 de funcionárias da
unidade escolar, o que atribui à obra uma característica de coletividade,
revelando como o tipo de relação entre os colaboradores oportuniza a troca
de experiências e o enriquecimento intelectual.
Para Bruner (2001, p. 119), “uma das primeiras e mais naturais formas
pela qual organizamos nossa experiência e nosso conhecimento é em termos
de narrativas”. Desse modo, a obra permite a divulgação de algumas
passagens de vida e profissão de professores e funcionários de forma que
tais fatos provocassem reflexões acerca da práxis pedagógica.
As narrativas foram utilizadas como estratégias que permitiram
compartilhar experiências e fomentar reflexões, tanto aos narradores quanto
aos leitores, por meio de uma abordagem de temas diversos, relacionados ao
cotidiano da prática docente e dos demais profissionais da educação que
auxiliam a compreensão sobre tais temas trazem à baila a importância dos
episódios nas vidas dos professores que, deixaram ali lembranças de suas
vidas, experiências vividas durante a infância, adolescência, juventude e vida
adulta, narrações que representam diversos espaços como cultural, social e
temporal e
O objetivo da produção do livro Memórias foi o de socializar experiências e
episódios da prática docente e profissional vivenciadas pelos professores e
funcionários. Tal atividade, no entanto, desenvolveu-se de forma que as
narrativas da maioria dos professores não apresentassem suporte teórico
que ajudam a compreender o hoje a partir da compreensão do
passado. Os relatos tratam do cotidiano de vidas familiar e profissional,
experiências no trabalho, com diferentes modalidades de ensino. Dessa
forma, explica Benjamim (1994, p.201) que: “O narrador retira da experiência
o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E
incorpora as coisas narradas a experiências dos seus ouvintes”.
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escrito que sustentasse a produção textual. Todavia, observamos o potencial
formador das narrativas inseridas no livro e então, partimos para a pesquisa-
formação que se encontra na primeira fase, a do levantamento das narrativas
junto aos próprios autores.
Para subsidiar a pesquisa contamos com os referenciais de autores
como: Lüdke e André (1986); Candau (2001); Bosi (1979); Burnier (2006);
Soares (2001); Benjamim (1994); Bruner (2001); Josso (2004, 2007); Bueno
(2002); Zeichner (1993); Mizukami (2000); Vasconcelos (1995); Freire
(1970,1993, 1994, 1996); Carvalho (2005); Tardif (1991, 1992, 2002); Mello
(2012); Prada (2010); Silva (1977); Libâneo, (2010); Schön (1992) e Wallon
(2003).
A intenção de dialogar com esses autores é a de compreendermos
melhor a importância da pesquisa científica no sentido de “servir como veículo
inteligente e ativo entre esse conhecimento acumulado na área e as novas
evidências que serão estabelecidas a partir da pesquisa”, conforme
evidenciam Lüdke e André (1986, p. 5).
Narrar é o modo de organizar uma experiência vivida através da escrita
que por si se constitui como instrumento potencial e transformador. Diante
dessa perspectiva, Josso (2007, p. 414), ressalta a importância de pesquisas
deste tipo, que envolvem reflexão e subjetividade, posto que a escrita das
narrativas se dá “sensibilizando-se, imaginando, emocionando-se,
apreciando, amando”. Para a autora, (2004, p. 58) a perspectiva das histórias
de vida é a de “transformar a vida socioculturalmente programada numa obra
inédita a construir”. Conforme Bueno (2002, p. 20), “a narrativa não é um
relatório de acontecimentos, mas a totalidade de uma experiência de vida que
ali se comunica”.
Notamos que algumas narrativas apresentadas nesta obra, permitiram
uma análise mais profunda. Alguns relatos de experiências vividas puderam
transmitir sentimentos, emoções, dificuldades, medos, e até mesmo em
certos momentos, incapacidades de resolver situações que só foram
resolvidas diante de intervenções de outros agentes. As experiências de vida
contidas na obra ‘Memórias’ serviram para as reflexões, possibilitando nessa
fase ainda inicial, a redescoberta de como é possível analisar situações
complexas, vividas no ambiente escolar, ao longo da trajetória profissional.
Assim, ao nos apropriarmos das narrativas como pesquisa-formação,
trazemos para o estudo o recorte de quatro narrativas para analisar seu
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potencial formador, quando subsidiadas por teóricos da área de formação. A
pesquisa-formação, segundo Prada (2010, p.7) compreende alguns
processos, entre eles: objetivos, planejamento, sistematização, encontros
periódicos, devolutivas, construção e formação contínua. Tal proposta
contribui para o desenvolvimento da autonomia, para o aumento da
autoestima, para a criação de espaços de estudos e diálogos, para a partilha
de experiências e, para a reconstrução de práticas.
Para o desenvolvimento do trabalho, convidamos os professores a
participarem da pesquisa e, em um segundo momento, passamos às
entrevistas, contando com três professores disponíveis no período de
desenvolvimento da mesma.
A releitura das produções narrativas é o procedimento base, trazendo os
episódios recontados pelos sujeitos. A cada parte do episódio, a pesquisa
prevê o questionamento aos colaboradores sobre como eles analisariam seus
casos e assim, abordaremos do ponto de vista metodológico, dos conteúdos
da prática, dos conteúdos do ensino, do conhecimento da profissão e do
referencial teórico, o que poderia subsidiar a ação de forma a revisitá-la com
novas bases para a análise.
Após os primeiros estudos, que foram frutos de um recontar das
experiências vividas, observamos que já a partir das leituras, os sujeitos
traziam à tona novos olhares sobre os episódios passados, isto quer dizer
que, mesmo sem estudos específicos sobre o que a pesquisa se propõe, os
participantes evidenciaram mudança de olhar. O segundo passo se daria com
um novo encontro para a discussão das análises realizadas pelos sujeitos a
partir das leituras e como os mesmos ressignificariam os episódios passados-
narrados. A pesquisa, então, tomou a característica de pesquisa-formação,
pois ao mesmo tempo em que investiga, também forma.
A narrativa tem a propriedade de conter o movimento descrito por Connelly
e Clandinin (2004), ou seja, o de revisitar o passado e projetar-se ao futuro.
Essa perspectiva dá à pesquisa narrativa um movimento de para trás
(backward) e para frente (forward).
Assim, após delinearmos os passos da pesquisa, passaremos às análises
do primeiro recorte das narrativas que se dão em torno de como os sujeitos
concebem e compreendem o trabalho do professor. São sujeitos três
professoras.
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Observamos que as preferências dos sujeitos na retomada das narrativas,
foram em torno do que conta como professor, para além dos conteúdos e das
atividades de ensino-aprendizagem. Os sujeitos trazem dados que
consideram relevantes para o exercício do magistério no cotidiano da sala de
aula, ou seja, o conhecimento do aluno, a sua dimensão pessoal Connelly e
Clandinin (2004) afirmam que no trabalho com narrativas deve manter a
sensação contínua de desenvolvimento, sempre em processo de tornar-se
(becoming). Essa perspectiva dá à pesquisa narrativa um movimento para
trás (backward) e para frente (forward). Os relatos dos professores sobre os
episódios vividos envolve a dimensão pessoal e profissional, caracterizando-
se em um movimento para dentro e um movimento para trás, já que se pode
contar ou recontar experiências vividas. Quando reconstruímos as
experiências relatadas e vividas e compomos significados para refletir sobre o
conhecimento construído e sobre formas alternativas para construir novas
experiências no futuro, estamos fazendo o movimento para frente (MELLO,
2012). Seguem-se então, as análises das narrativas dos professores, para
depois evidenciarmos os movimentos da narrativa na pesquisa-formação.
A NARRATIVA DA PROFESSORA EIDT Os primeiros anos de docência foram muito expressivos, tive uma experiência com uma quarta série que me fez crescer como pessoa e profissional. Tive um aluno que não me suportava, me provocava e me enfrentava o tempo todo, tinha alguns anos de defasagem (idade/série) e não aceitava minha autoridade de professora. Quando não conseguia me atingir diretamente, me ameaçava por intermédio de minha filha, que tinha apenas três anos de idade. Foi um ano muito difícil, por várias vezes chorei e precisei da ajuda de pessoas da comunidade para conseguir lidar com o aluno. Senti muito medo, mas nunca deixei de me preocupar com ele. Não compreendia o porquê de tanta raiva de mim, pois nunca fizera nada que justificasse tal sentimento. Convidei a mãe por diversas vezes para que viesse à escola, porém, ela nunca compareceu e mandava recados malcriados, isso me desencorajava de fazer uma visita à família. Um dia, mais ou menos um mês e meio antes do final do período letivo, fui visitar uma família que, por coincidência, morava perto do sítio onde este aluno morava. Entre as conversas que tivemos, uma delas foi sobre esta família. Descobri então que ele era parte de uma família de algumas mulheres e uma mãe muito brava e intransigente, ele era o único homem da casa e, como era muito arteiro e peralta, como parte dos castigos que recebia, ficava grande parte do tempo acorrentado em uma árvore. Como a mãe não sabia o que fazer, o amarrava. Ele deixava claro que odiava a mãe e, por conseguinte, a professora, pois era a figura feminina que o agredia. Então passei a ignorar as provocações e a elogiá-lo, mesmo sem merecer. Isso foi tornando as aulas menos agressivas e os olhares que ele me lançava menos frios e hostis, já não havia ameaças veladas nem declaradas e, finalmente, o ano acabara. Não posso dizer que não senti alívio, mas ao mesmo tempo fiquei triste por toda aquela situação, nunca havia imaginado que uma mãe, por não saber como lidar com a educação do filho, pudesse amarrá-lo. (OLIVEIRA, 2010, p. 19-20).
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Ao acompanhar o relato da professora, percebe-se que começa aqui um
processo desafiador e o quanto é complexo ser professor. O professor sente
dificuldade em nadar contra a corrente (conflito de valores, visões de mundo,
insegurança, receio de mudar, medo do novo). (Vasconcellos, 1995, p. 19).
Essa reflexão ajuda a pensar sobre a docência como uma atividade que se
desenvolve também a partir da dimensão humana da profissão.
Tardif (1991, 218) argumenta sobre os saberes do docente, “a formação
nos saberes e produção dos saberes constituem, em consequência, dois
polos complementares e inseparáveis”. Desse modo, é possível questionar:
Quem é o aluno que está à frente do professor? O que se tem procurado
saber sobre a vida do aluno? Para qual indivíduo o professor tem preparado
as aulas? O professor tem percebido a complexidade e diversidade de
situações que enfrenta no cotidiano de sua prática? O professor tem sido
capaz de organizar a aula de maneira que todos os alunos aprendam?
Explica Zeichner (1993, p.17) que “cada um deve responsabilizar-se pelo
seu próprio desenvolvimento profissional. A universidade pode, quando muito,
preparar para começar a ensinar”. Assim, é no cotidiano da profissão que o
professor vai se formando, nas relações de análise da prática referenciada
por teóricos, quando vai estabelecendo articulação entre a ação-reflexão-
ação.
Schön (1992) dispõe sobre a importância desse caráter reflexivo do saber
docente, propondo a formação desse profissional reflexivo. O professor passa
por várias situações diferentes de enfrentamento. As interações com os
alunos e professores, a prática cotidiana do trabalho escolar são momentos
de aprendizagem que incidem tanto na atuação como no desenvolvimento de
uma identidade profissional. Para Silva (1977), “as escolas não existem para
serem administradas ou inspecionadas. Elas existem para que as crianças
aprendam” (SILVA JUNIOR, 1977, p. 18). Essa é uma das muitas reflexões
que o professor educador deve ter. A própria profissão exige do professor
essa responsabilidade. Ou seja, a forma de conduzir seu trabalho para que o
aluno aprenda o que está sendo ensinado, tendo ainda sensibilidade para
perceber as diferenças individuais de cada indivíduo, e estar preparado para
perceber que esta sensibilidade se traduz em respostas educacionais. “Cabe
ao professor observar a si próprio; olhar para o mundo,[...] e não apenas
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ensinar regras, teorias e cálculos.[...] deve ser um mediador de
conhecimentos, utilizando sua situação privilegiada [...](FREIRE, 1993, p.71).
Essa amorosidade pode constituir-se também no ato de reservar um tempo
para ouvir o aluno, deixá-lo expressar seus sentimentos, suas carências,
principalmente aquele aluno que no dia-a-dia das aulas é o que mais
incomoda. “O aluno tem que ter interesse em voltar à escola no dia seguinte
reconhecendo que aquele momento é mágico para sua vida”[...](FREIRE,
1993, p.71).
Considerando que a escola é um campo de vivência para professores e
alunos, é preciso que se estabeleça uma relação de respeito, onde sejam
proporcionadas momentos agradáveis, prazerosos de aprendizagem para
ambos. Pensando assim, compreende-se a importância de se manter um bom
relacionamento entre docentes e discentes nos espaços escolares e mesmo
fora deles. Percebemos que muitos professores, ainda presos e limitados em
apenas cumprir conteúdo programático, não conseguem resolver situações
simples. É evidente que a prática do professor pode ir além da sala de aula,
dos conteúdos, dos saberes sistemáticos. O processo de ensino-
aprendizagem pressupõe a construção do saber de diversas formas, um
exemplo seria desenvolvendo trabalhos em equipes. Freire (1970), explica
que a natureza do ser humano é, por si, dialógica, e acha que a comunicação
tem um papel fundamental em nossa vida. O diálogo é uma ferramenta
fortíssima que o professor tem a sua disposição, que pode alcançar
resultados reveladores.
Estar na profissão docente requer descortinar alguns princípios
fundamentais, referentes ao âmbito emocional e moral, uma vez que ao
professor está posta a responsabilidade de tomar decisões, incorporando nas
suas ações o autocontrole, o caráter e a ética. Acompanharemos a seguir
uma outra narrativa:
A NARRATIVA DA PROFESSORA BARROS
Nesta minha trajetória profissional, um fato acontecido em 2001, quando trabalhava com uma terceira série, me marcou muito e nunca esqueci: dentre os 29 alunos da classe havia uma menina, embora inteligente, tinha certo distúrbio emocional. Qualquer coisa que a deixasse nervosa ou aborrecida ficava muito agressiva, gritava, dizia palavrões e jogava todo o seu material no chão. Diante deste comportamento chamei a mãe que era adotiva, para expor o problema e descobri a causa do distúrbio. Ela me relatou que a mãe biológica da menina que, quando adolescente, havia sido violentada, o que a levou ao mundo das drogas se tornando viciada. Ela engravidou e passou toda a gravidez usando drogas, e isso afetou a criança. Tanto que a menina
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tinha que fazer sempre um tratamento de desintoxicação do sangue, pois corria um grande risco de se tornar uma dependente também. Através dessa conversa comecei entender o porquê daquele comportamento e passei a dar uma atenção especial para aquela menina que precisava tanto de atenção, carinho e afeto. A partir daí, ela passou a ter outro comportamento. Passou a participar mais das aulas, diminuíram as crises nervosas, passou a falar menos palavrões e a conviver melhor com seus coleguinhas e comigo. O rendimento escolar dela melhorou muito. Diante deste fato, pude perceber o quanto é importante conhecermos a história de vida de cada criança para podermos entender certo comportamento e, com isso, teremos a sensibilidade e resolvermos os problemas da melhor maneira possível. Uma das alternativas para obter sucesso, eu creio, é cativar, conquistar a confiança e amizade das mesmas. Quando a criança vê o professor um amigo, ela passa a conversar mais e desabafar o que lhe aflige. Nós professores, na trajetória de nossa carreira encontramos obstáculos e passamos por muitos daqueles que foram nossos alunos, bem sucedidos, que reconhecem que fomos importantes em suas vidas. Isso nos envaidece e nos dá vontade de continuar. Eu amo ser professora! (OLIVEIRA, 2010, p.10 -11).
Tratar todos de igual maneira, manter uma máxima igualdade pode
parecer até redundante à prática educativa. Deixar o aluno fazer tudo também
não é a melhor solução. Como ser compassivo frente aos comportamentos de
agressões? Como estar próximo frente aos problemas familiares na hora de
avaliar o aluno? Como ignorar tais situações? O educador precisa se
compadecer diante dessas questões que estão posta? Ele deve agir de forma
a se sentir responsável na tarefa de cuidar desse aluno, quando traz para a
escola problemas que exigem dele ações que ultrapassam a sala de aula,
que comprometem seu desenvolvimento? Para Freire (1996) a prática
docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico,
dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer.
Outro relato de experiência que também faz parte das narrativas que
compõem a obra Memoria, onde expressa angústias e desejo de mudança
profícua, desde o início da vida profissional dessa professora, como é
possível observar:
A NARRATIVA DA PROFESSORA BORTULUZZI
Tudo começou aos meus 18 anos de idade quando entrei pela primeira vez em sala de aula... Fui convidada para trabalhar na zona rural com uma turma multisseriada, ficaria com a primeira e segunda série. Estava terminando o Magistério, então aceitei. Quando olhei para aquelas crianças, sabia que esperavam muito de mim [...] percebi que os alunos se encontravam em diferentes momentos de seus processos de alfabetização. O fato de ter crianças com níveis muito diferenciados de conhecimento me deixava insegura e ansiosa [...] Meu sonho era uma classe homogênea, como se isso fosse possível. [...] No meio de tantos alunos, uma da segunda série levantou e me disse que não sabia ler. Esta criança tinha completado 14 anos, então
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respondi que não era para se preocupar, pois tinha certeza que iria aprender muito. Com um leve sorriso e um olhar brilhante parecia não acreditar em si própria Preparava as aulas com muito carinho, me dedicava ao máximo para que pudessem ter contato com o mundo da escrita. [...] Aquela criança que não era alfabetizada aos poucos começou a descobrir as palavras e, com ajuda dos colegas, foi dedicando aos estudos e já conseguia ler. No final do ano, depois de muito trabalho, fiquei gratificada ao ver o quanto meus alunos aprenderam, não só em relação aos conteúdos escolares, mas também em relação ao convívio social em grupo como a sala de aula.[...] (OLIVEIRA, 2010, p. 42).
Na narrativa da professora, percebe-se que não é concebível a
existência de turmas homogêneas. Nesta perspectiva, o professor reflexivo
como ser humano criativo, ao planejar suas aulas, deve questionar sua
prática, deve analisar sobre como tem contribuído para a aprendizagem do
seu educando, ou se sua prática não tem passado de uma mera reprodução
de ideias ou de conteúdos. De acordo com Gauthier (2006), os saberes das
ações pedagógicas seriam saberes experiências que só são validados por
meio de pesquisas realizadas pelos professores no cenário da sala de aula.
Essa ideia apresentada pelo autor a respeito de se validar e se tornar público
os saberes e experiências dos professores remete à possibilidade de
construção de uma teoria da pedagogia. A teoria pode ser entendida como
luzes capazes de clarear caminhos seguros, frente aos grandes desafios que
traz a educação atual. Diante do exposto, comprometimento e participação
ativa são exigidos do profissional para que haja uma construção dialética do
conhecimento dos indivíduos. Assim explica Carvalho (2005, p.54) [...] “o
fazer pedagógico, visto de uma perspectiva dialética, o professor deve ter
conhecimento da realidade do aluno, [...] um ser que tem necessidade,
interesses, sonhos, experiências de vida e representação da realidade”.
Percebe-se que o segredo a respeito do fazer pedagógico do professor é
ressignificar o saber por meio da sua prática. Não existem fórmulas prontas, o
que existe é o estudo validado pelos pesquisadores da educação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao realizar a análise das narrativas presentes no livro Memórias,
narrações que traziam experiências vividas pelos seus autores, objeto
principal de estudo deste texto, percebemos que cada procedimento de
escrita revela características específicas, traduzindo um perfil individual.
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Tardif (2002) destaca a necessidade dos docentes liberarem os
conhecimento que produzem na prática cotidiana, de modo que sejam
reconhecidos por outros grupos.
O professor precisa saber incorporar os conhecimentos pedagógicos, uma
vez que exige-se dele condições de despertar no aluno o desejo de aprender
sempre mais, de aumentar os conhecimentos. A prática de educar precisa
estar pautada em princípios éticos, mantendo o respeito para com todos e à
diversidade, pois é de total responsabilidade da educação, formar homens
pensantes e reflexivos. Dessa forma podemos dizer que as narrativas acima
apresentadas servem de reflexão à práxis do professor educador.
O professor reflexivo comprometido e responsável, participa da
construção da vida e do desenvolvimento do educando. Ele exerce o papel de
agente formador e transformador, mediando a construção do conhecimento,
instigando-o, estimulando-o em atividades desafiadoras, criativas,
significativas, que possibilitem que esse sujeito se integre, sendo participativo,
autônomo, criativo e crítico na sociedade em que está inserido. Libâneo
(2010, p. 19) ajuda a compreender que, se alguém acredita que a escola deva
ser principalmente um espaço de socialização dos alunos, entende-se que é
assegurar as condições para que a aprendizagem escolar se torne mais
eficaz, mais sólida, mais consolidada, enquanto ferramenta para as pessoas
lidarem com a vida.
Os estudos que conduziram às descrições relatadas pelos sujeitos citados,
demostraram claramente a preocupação em cada relato em mostrar que é
possível fazer a diferença na vida do educando, mas para que isso aconteça
o docente precisa ser corajoso, desafiador reflexivo, exercer o papel de
docente com autonomia, com o objetivo de tornar a sua prática de ensino
qualitativa ao longo da sua vida profissional.
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