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Sabedoria Extraído da Bíblia Ave-Maria EDITORA AVE-MARIA

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Sabedoria

Extraído da Bíblia Ave-Maria

EDITORAAVE-MARIA

INTRODUÇÃO

O autor e seu tempo

O Livro da Sabedoria, de autor anônimo, parece ter sido escrito diretamente em grego, provavelmente em Alexandria, na diáspora judaica, e talvez sob o reino do imperador Au-gusto, ou seja, nos últimos anos do século I a.C.

A OBRAEstrutura

A estrutura literária do livro, suas diversas par-tes, e o gênero literário usado – o gênero epidítico da retórica grega –, confirmam a unidade da obra.

O livro tem três grandes partes e cada uma possui uma estrutura literária definida (1,1–6,21; 6,22–9,18; 10,1–19,22), todas ligadas entre si1.

1. J. Vilchez, Sabiduria, Navarra 1991, 38: segundo os gregos e romanos, os gêneros literários da retórica são três: o gênero judicial; o gênero deliberativo e o gênero demonstrativo. O judicial trata principalmente do passado: sobre o que o acusado cometeu ou não; o deliberativo, geralmente, se remete ao futuro; o demonstrativo (epidítico) se move no presente, ainda que não exclu-sivamente: é louvor à pessoa, qualidade etc. O gênero epidítico não pertence ao fórum; seu lugar é o ginásio ou a sala de conferência. Isto é, é mais um exercício escolar, reservado à juventude (M. Gilbert). Esse gênero não está submetido a um esquema muito rigoroso, mas nele deve haver sem falta ao menos três coisas: a origem (nobre, humilde etc.); a natureza (virtudes, ofícios etc.), as obras. Nosso livro parece, portanto, um elogio (louvor) à Sabedoria tal como primeiro intuiu P. Beauchamp e como confirmou M. Gilbert.

4Introdução

A introdução ou exórdio mostra a importân-cia do tema escolhido, as dificuldades e oposições que se podem encontrar e, enfim, os problemas aos quais se deve dar uma solução (1,1–6,21).

A segunda é o elogio propriamente dito da Sa-bedoria, desejada pelo sábio, representado na figura de Salomão, que pede e obtém esse dom de Deus. O autor recorda a origem, a natureza e as obras da Sabedoria, antes de repetir a sua oração (6,22–9,18).

Na terceira parte vêm evocadas as obras da Sabedoria na história antiga de Israel e se faz uma releitura dos acontecimentos do êxodo: pragas para os egípcios e benefícios para os he-breus (10,1–19,22). Esse discurso parece dirigido aos jovens da comunidade, que mais tarde se tornarão responsáveis por ela. O autor revela-se ao mesmo tempo fiel à fé dos antepassados e aberto à cultura helênica; oferece, assim, bom exemplo de adaptação. Todavia, o discurso, des-tinado a fazer refletir mais que a formar, revela, sobretudo, uma profunda dimensão espiritual2.

TEMÁTICA E MENSAGEM TEOLÓGICA

Introdução ao elogio e seu intento espiritual

Para os retóricos gregos e romanos, o elogio é um discurso bastante acadêmico, que tem o

2. M. Gilbert, La Sapienza di Salomone I, Roma 1995, 10.

5Introdução

escopo de impelir o ouvinte – ou o leitor – a pra-ticar o conteúdo do qual o orador faz seu elogio. Portanto, esse gênero de discurso pressupõe um contato real entre quem fala e quem escuta. Aquilo que vem dito deve chegar profundamente ao ouvinte, o qual deve ser tocado e impelido a aderir concretamente ao convite daquele que fala.

É desse modo que procede o autor do Livro da Sabedoria no seu exórdio (1,1–6,21). Desde o primeiro versículo, ele se dirige explicitamente a um grupo de homens, convidando-os a buscar os caminhos de Deus. Sabe que existe uma contestação religiosa carregada de perigo, que distancia o espírito da sabedoria e o conduz definitivamente à morte. Todavia, no momento em que Deus julgar o ímpio, convém evitar essa louca corrida para a ruína (1,1-12)!

Em uma comunidade dividida por escolhas religiosas, como a do judaísmo alexandrino, a lógica do mal pode conduzir à tomada de po-sições de um paganismo não somente redutor de valores (2,1-9), mas também agressivo nos confrontos com os que não o apoiam. Esses se tornarão objetos de sarcasmo, submetidos a ultrajes de uma morte humilhante (2,10-20).

A essas primeiras dificuldades que dividem uma comunidade se acrescentam outras ineren-tes ao mistério da vida. As bênçãos mais tradi-cionais na experiência bíblica frequentemente são contraditas pela realidade da vida! A virtude

6Introdução

não garante felicidade sobre esta terra a quem a pratica fielmente (3,1-9). Como reconhecer que a fecundidade e a descendência não são uma bênção imprescindível para a vida feliz? (3,13-15). Uma longa vida não é mais a recompensa de um comportamento exemplar! (4,7-15).

A todas essas perguntas o autor responde essencialmente que, segundo o plano de Deus (Gn 1-3), o homem recebeu um destino de imor-talidade e que o justo depois da morte gozará da presença de Deus. Essa será a sua recompen-sa, e ele assim obterá o fruto das suas fadigas (1,13-15; 2,21-24; 3,1-9; 3,13-15; 4,1-2.10-15). Ao contrário, o ímpio que se tornou perseguidor do justo, depois da morte, descobrirá que este último, que foi por ele desprezado, agora é co-roado de glória, enquanto o seu próprio projeto não o conduziu a nada. Depois da morte, de fato, haverá um juízo, ou melhor, um combate escatológico conduzido por Deus e que colocará fim ao domínio dos ímpios (5,1-23).

O autor agora poderá concluir a sua longa introdução com um retorno à exortação: aqueles que têm o poder lembrem que serão julgados; procurem mais a Sabedoria, porque ela conduz à incorruptibilidade! (6,1-21).

O elogioNesse ponto começa o elogio propriamente

dito. Aqui, de maneira mais explícita que nas

7Introdução

exortações que enquadram o exórdio, o autor se esconde atrás da figura de Salomão, o qual, no ápice da glória, recorda as etapas da sua vida, para reconhecer como lhe foi dada a Sabedoria e tudo aquilo que ela lhe trouxe. Salomão é bem conhecido do leitor, que vê nele um modelo.

Vindo ao mundo como um homem – não tendo assim se tornado sábio por antonomásia, nem em razão da descendência, nem por origem divina, como se afirmava sobre os reis (7,1-6) – ele recebeu de Deus a Sabedoria, porque, tendo escolhido a Sabedoria a todos os bens do reino, pediu-a ao Senhor na oração. Em seguida, descobriu que ela lhe trazia também todos os outros bens (7,7-12). Assim, por meio da Sabedoria, ele adquiriu uma vasta formação geral, que o autor resume de acordo com o saber helenístico (7,16-21). Chegado à idade do matrimônio, ele quis se casar somente com a Sabedoria, a qual lhe trouxe os fundamentos de uma autêntica cultura e as virtudes que se requer de um rei (8,2-16). Aqui, o autor vai além do Salo-mão da história, mostrando que esse personagem é símbolo e que, por meio dele, deseja-se alcançar os jovens, que buscam a Sabedoria. Enfim, reto-mando o início da evocação, afirma de novo que a Sabedoria não se recebe por nascimento, mas por meio da oração (8,17-21). Segue-se então uma longa oração (9,1-18)3.

3. 1Rs 3,4-15.

8Introdução

Justamente no centro dos dois textos (7,1-21 e 8,2-21) que evocam Salomão, o autor coloca o elogio da Sabedoria (7,22–8,1), da qual indica a natureza, a origem e a ação. Acolhendo do estoicismo a ideia do pneuma, que anima o mundo e lhe dá unidade (1,7), mas refutando qualquer tendência panteísta, ele identifica a Sabedoria com o Espírito. A Sabedoria possui a pureza absoluta do espírito, que lhe permite penetrar tudo em vista do bem (7,22-24). A sua relação com Deus é de tal modo estreita que ela pode ser descrita somente em função de Deus: é como uma emanação, um reflexo, uma imagem de Deus (7,25-26). A sua ação enfim consiste em unificar e renovar o universo, e em formar os santos e os profetas (7,27–8,1).

Todavia, se a Sabedoria só pode ser obti-da por meio da oração (7,7; 8,21), o elogio vai além de si mesmo e culmina na oração que alcançará a sabedoria (Sb 9). Para realizar a vocação humana e, mais particularmente, a própria vocação de rei, juiz e construtor da casa de Deus, aquele que deseja a Sabedoria, sendo conhecedor dos próprios limites, pede ao Deus da revelação aquela Sabedoria que estava com ele quando foi criado o mundo (Pr 8,30) e que se identifica com o Espírito do qual fala Ez 36,27. Ele, de fato, sabe que os seus antepassados puderam realizar a própria vocação somente por meio da Sabedoria que lhes foi concedida (9,18).

9Introdução

Para confirmar essa última afirmação de 9,18, o autor realiza uma verdadeira releitura dos acontecimentos fundadores da história de Israel, bem conhecidos de todos. Começando com a evocação dos personagens antigos, de Adão até Moisés, mostra que, também eles, depois da culpa, deveram sua salvação à sa-bedoria (Sb 10). Ela guiou o caminho do Êxodo (Sb 11,1). Esse quadro histórico vem construído segundo a synkrisis (confronto) grega: sete ve-zes há sempre um, benefício recebido por Israel no tempo do Êxodo em contraposição com uma praga que castigou o faraó e o seu povo (11,4-14; 16,1–19,8). A ocorrência sucessiva dessas pragas até o afogamento dos egípcios no Mar Vermelho são motivados pelo endurecimento do faraó (12,26-27). Todavia, a leveza das primeiras pragas é justificada pela preocupação de Deus de punir somente com moderação, porque ele ama as suas criaturas e procura somente a sua conversão (11,15–12,2). Um exemplo que o justo deve imitar (12,19-22). Punindo os egípcios com insetos e animais, Deus se serviu dos mesmos objetos do seu culto (Sb 13–15). Assim, as di-gressões de 11,15–12,27 e de 13–15 esclarecem o conjunto da anamnese histórica que inspira primeiro o Livro do Gênesis e depois o do Êxodo.

Essa última parte do discurso apresenta características próprias. Antes de tudo, notamos que ela continua a oração de Sb 9 sob a forma de

10Introdução

anamnese hínica, (Ex 15). Isso permite sublinhar a ação direta do Senhor – não do povo – nesses acontecimentos e, sobretudo, a sua misericórdia ao confrontar os seus. E, do momento que a Ele o sábio pede a Sabedoria, não deve de fato maravilhar se essa, depois do anúncio geral dos acontecimentos em 11,1, não vem mais mencionada: tudo provém de Deus. Enfim, essa oração de anamnese oferece uma série de ensinamentos, baseados nas ações de Deus, em particular na importância da Lei (16,6; 18,4) e da palavra do Senhor (16,12.26-28).

Essa longa evocação do Êxodo na oração termina com uma síntese, na qual os aconte-cimentos, colocados dessa vez em relação com Gn 1, aparecem como uma nova criação ao serviço dos justos (19,6-21). O autor conclui a sua exposição com um último louvor ao Senhor, o qual não abandona jamais seus fiéis (19,22)4.

MENSAGEM TEOLÓGICA

Criação e escatologia (Sb 1-6)As perícopes de Sb 1,13-15 e 2,21-24 explicam

Gn 1-3. A morte, mesmo aquela física, não fazia parte do projeto divino de criação: Deus queria somente a vida e, para o homem, a incorruptibilidade, a imor-talidade. Foi o diabo, identificado com a serpente de Gn 3, que introduziu no mundo a morte, como uma

4. M. Gilbert, La Sapienza, 10-14.

11Introdução

intrusa (2,24). Essa não é somente a morte física, mas também aquela espiritual, porque distancia de Deus. Depois da morte física, haverá uma ave-riguação conduzida por Deus sobre todo homem (1,9; 6,5-8). Todavia, o autor ignora a distinção entre juízo súbito depois da morte e juízo final. No dia do juízo os ímpios se verão acusados, até mesmo pela sua própria consciência (4,20; 5,3). Então a morte espiritual, que tinham acolhido desde a terra (1,16), revelará toda a sua monstruosidade, maior que a morte física (5,6-13). Também os justos padecerão da morte física, mas para permanecer junto ao Senhor e receber, por graça, a coroa (5,4-5). Deus, portanto, defendendo os justos em um combate cósmico final, transformará o cosmo em deserto, por causa dos ímpios: o reino desses últimos será destruído, e per-manecerá somente o reino dos justos junto de Deus (5,17-23). Essa glorificação dos justos implica também a ressurreição dos mortos? O autor não responde à pergunta explicitamente, todavia ela parece aflorar.

Vemos, pois, que a escatologia do Livro da Sabedoria implica uma cosmologia, como na apocalíptica, e esse discurso será completado na última parte do livro. Por enquanto, a esca-tologia toca ao justo, ele é chamado de sábio (4,17), o que prepara a segunda parte do livro.

A sabedoria e o sábio (Sb 6,22–9,18)A natureza da Sabedoria é de tal pureza que

penetra tudo em vista do bem (7,22-24). A Sa-

12

bedoria é efusiva, emanação, reflexo, o espelho, a imagem de Deus: tem origem desse modo em Deus, do qual é inseparável (7,25-26). A sua ação é ao mesmo tempo de ordem cósmica e de ordem moral, espiritual. Ela rege o Universo de modo benéfico, animando-o com a sua presença e forma os santos (7,27–8,1). Não é mais inacessível, uma vez que pode ser obtida por meio da oração (7,1; 8,21; 9). Não é mais somente a Torah a revelação histórica, mas a presença interior na qual se acolhe. Não é mais uma simples figura de ordem cósmica: o autor, de fato, baseando-se na doutrina dos estói-cos, vê nela a presença mesma de Deus no mundo.

Acrescentamos que, diferentemente dos mistérios gregos, a Sabedoria, aqui, é dada a todos (6,22-24); a condição, porém, é que seja preferida a todos os outros bens (7,8-10) e que seja amada com um amor exclusivo (8,2.9.16-18). A Sabedoria não é conquistada, mas doada por Deus, a quem o sábio pede na oração (7,7; 8,21; 9). Na obra, a Sabedoria aparece como a presença de Deus no mundo e nos homens (7,22–8,1). Aqueles que a acolhem, a recebem como uma força interior capaz de guiar moralmente suas ações, de iluminá-los sobre aquilo que o Deus da revelação espera deles e, enfim, de conduzi-los à salvação (9,18). Logo, o sábio não é mesmo o Salomão da história, mas sim cada homem que, desde a juventude, se abre à Sabedoria (7,14.27-28). Na verdade, aliás, é ela mesma quem toma a iniciativa ( 6,12-16 ).

Introdução

13SABEDORIA 1

1,1. Sabedoria: a sabedoria é um atributo de Deus que dirige as obras exteriores, como a criação. Ela está a ele unida, mas dele emana como um espírito. Deus dela comunica um reflexo ao homem, o qual se deve guiar por ela até a salvação. Governais: Salomão dirige-se aos reis que governam a terra por seus julgamentos e decisões, mas através deles Deus se refere a todos os homens, pois todos têm decisões a tomar.

1,3. À prova: levado ao desafio por aqueles que parecem não crer.

LIVRO DA SABEDORIA

Disposições exigidas pela sabedoria

Juízo definitivo

1 1 Amai a justiça, vós que governais a terra, tende para com o Senhor sentimentos

perfeitos, e procurai-o na simplicidade do coração,* 2 porque ele é encontrado pelos que não o

tentam, e se revela aos que não lhe recusam sua

confiança; 3 com efeito, os pensamentos tortuosos afastam de Deus, e o seu poder, posto à prova, triunfa dos insensatos.* 4 A sabedoria não entrará na alma perversa, nem habitará no corpo sujeito ao pecado; 5 o Espírito Santo educador das almas fugirá

da perfídia, se afastará dos pensamentos insensatos, e a iniquidade que sobrevém o repelirá. 6 Sim, a sabedoria é um espírito que ama os homens,

14SABEDORIA 1

mas não deixará sem castigo o blasfemador pelo crime de seus lábios, porque Deus lhe sonda os rins, penetra até o fundo de seu coração, e ouve as suas palavras. 7 Com efeito, o Espírito do Senhor enche o universo, e ele, que tem unidas todas as coisas, ouve toda voz. 8 Aquele que profere uma linguagem iníqua,

não pode fugir dele, e a justiça vingadora não o deixará escapar; 9 pois os próprios desígnios do ímpio serão

cuidadosamente examinados; o som de suas palavras chegará até o Senhor, que lhe imporá o castigo pelos seus pecados. 10 É, com efeito, um ouvido cioso, que tudo ouve: nem a menor murmuração lhe passa despercebida. 11 Acautelai-vos, pois, de queixar-vos inutilmente, evitai que vossa língua se entregue à crítica, porque até mesmo uma palavra secreta não

ficará sem castigo, e a boca que acusa com injustiça arrasta a

alma à morte. 12 Não procureis a morte por uma vida desregrada, não sejais o próprio artífice de vossa perda. 13 Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não lhe dá alegria alguma.

15SABEDORIA 2

14 Ele criou tudo para a existência, e as criaturas do mundo devem cooperar

para a salvação. Nelas nenhum princípio é funesto, e a morte

não é a rainha da terra, 15 porque a justiça é imortal.* 16 Mas a morte os ímpios a chamam com o gesto e a voz.

Crendo-a amiga, consomem-se de desejos, e fazem aliança com ela; de fato, eles merecem ser sua presa.

Falsa mentalidade dos ímpios

2 1 Dizem, com efeito, nos seus falsos raciocínios: “Curta é a nossa vida, e cheia de tristezas;

para a morte não há remédio algum; não há notícia de alguém que tenha voltado

da região dos mortos.* 2 Um belo dia nascemos e, depois disso, seremos como se jamais

tivéssemos sido! É fumaça a respiração de nossos narizes, e nosso pensamento, uma centelha que salta do bater de nosso coração!

1,15. Imortal: outros manuscritos latinos acrescentam: Mas a injustiça ganha a morte. 2,1. Alguém que tenha voltado: outra tradução – alguém que tenha libertado.

O autor desenvolve e coloca na boca dos insensatos e ímpios toda uma filosofia de vida: o breve tempo concedido ao homem deve ser aproveitado no gozo e nos prazeres, porque nada existe após esta vida. Este tema encontra-se também em outros livros bíblicos: Jó 7,1-10; Sl 38,5-14; Lc 12,16-21; 1Cor 15,32.

16

3 Extinta ela, nosso corpo se tornará pó, e o nosso espírito se dissipará como um vapor inconsistente! 4 Com o tempo nosso nome cairá no esquecimento, e ninguém se lembrará de nossas obras. Nossa vida passará como os traços de uma

nuvem, ela desvanecerá como uma névoa que os raios do sol expulsam, e que seu calor dissipa.* 5 A passagem de uma sombra: eis a nossa vida, e nenhum reinício é possível uma vez chegado o fim, porque o selo lhe é aposto e ninguém volta. 6 Vinde, portanto! Aproveitemo-nos das boas

coisas que existem! Vivamente gozemos das criaturas durante

nossa juventude! 7 Inebriemo-nos de vinhos preciosos e de perfumes, e não deixemos passar a flor da primavera! 8 Coroemo-nos de botões de rosas antes que

eles murchem!* 9 Ninguém de nós falte à nossa orgia; em toda parte deixemos sinais de nossa alegria, porque esta é a nossa parte, esta a nossa sorte!

2,4. Com o tempo: a Vulgata inverteu a ordem dos hemistíquios. 2,8. A Vulgata acrescenta: que nenhum prado perca nossos prazeres.

SABEDORIA 2

17

10 Tiranizemos o justo na sua pobreza, não poupemos a viúva, e não tenhamos consideração com os cabelos brancos do ancião! 11 Que a nossa força seja o critério do direito, porque o fraco, em verdade, não serve para nada.* 12 Cerquemos o justo, porque ele nos incomoda; é contrário às nossas ações; ele nos censura por violar a lei e nos acusa

de contrariar a nossa educação. 13 Ele se gaba de conhecer a Deus, e se chama a si mesmo filho do Senhor! 14 Sua existência é uma censura às nossas ideias; basta sua vista para nos importunar. 15 Sua vida, com efeito, não se parece com as outras, e os seus caminhos são muito diferentes. 16 Ele nos tem por uma moeda de mau quilate, e afasta-se de nossos caminhos como de manchas. Julga feliz a morte do justo, e gloria-se de ter Deus por pai. 17 Vejamos, pois, se suas palavras são verdadeiras, e experimentemos o que acontecerá quando da sua morte,

2,11. Critério, por outras palavras: Que isto seja a força que cria o direito.

SABEDORIA 2

18

18 porque, se o justo é filho de Deus, Deus o defenderá, e o tirará das mãos dos seus adversários. 19 Provemo-lo por ultrajes e torturas, a fim de conhecer a sua doçura e estarmos cientes de sua paciência. 20 Condenemo-lo a uma morte infame. Porque, conforme ele, Deus deve intervir”.* 21 Eis o que pensam, mas enganam-se, sua malícia os cega: 22 eles desconhecem os segredos de Deus, não esperam que a santidade seja recompensada, e não acreditam na glorificação das almas puras. 23 Ora, Deus criou o homem para a imortalidade, e o fez à imagem de sua própria natureza.* 24 É por inveja do demônio que a morte entrou no mundo, e os que pertencem ao demônio a provarão.*

2,12-20. Estes versículos são aplicados pela Igreja, na sua liturgia, à paixão e à morte do Salvador, o justo por excelência, que se tornou objeto de riso e foi levado à morte.

2,23. Natureza: outros textos gregos trazem de sua própria eternidade ou ainda de sua própria semelhança.

2,24. Demônio: o texto grego usa a palavra diabo (diábolos), que significa – caluniador, acusador –, e que corresponde exatamente à palavra hebraica satã. A morte entrou no mundo em consequên cia da tentação e queda no paraíso terrestre (Gn 3). Em conformidade com o plano de Deus, o homem estava destinado a ser incorruptível. O apóstolo São Paulo, na comparação estabelece entre Adão e Cristo (Rm 5,12-19), e diz também que por um só homem entrou o pecado no mundo e, pelo pecado, a morte.

SABEDORIA 2

19

Diferente sorte dos justos e dos ímpios

3 1 Mas as almas dos justos estão na mão de Deus,

e nenhum tormento os tocará.* 2 Aparentemente estão mortos aos olhos dos

insensatos: seu desenlace é julgado como uma desgraça. 3 E sua morte como uma destruição, quando na verdade estão na paz! 4 Se aos olhos dos homens suportaram uma

correção, a esperança deles era portadora de imortalidade, 5 e por terem sofrido um pouco, receberão

grandes bens, porque Deus, que os provou, achou-os dignos de si. 6 Ele os provou como ouro na fornalha, e os acolheu como holocausto. 7 No dia de sua visita, eles se reanimarão, e correrão como centelhas na palha.* 8 Eles julgarão as nações e dominarão os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre. 9 Os que põem sua confiança nele compreenderão a verdade,

3,1. Na mão de Deus: nesta vida e depois da morte. Aqui e nos versículos seguintes, o autor afirma sua fé na imortalidade da alma retribuída por Deus depois da morte, segundo seus méritos: doutrina então muito discutida.

3,7. Como centelhas: claridade e agilidade dos corpos gloriosos depois da ressurreição ou, conforme outros, destruição das nações por Israel, como a palha é destruída pelo fogo.

SABEDORIA 3

20

e os que são fiéis habitarão com ele no amor: porque seus eleitos são dignos de favor e

misericórdia.* 10 Mas os ímpios terão o castigo que merecem

seus pensamentos, uma vez que desprezaram o justo e se separaram do Senhor: e desgraçado é aquele que rejeita a sabedoria e a disciplina! 11 A esperança deles é vã, seus sofrimentos

sem proveito, e as obras deles inúteis. 12 Suas mulheres são insensatas e seus filhos malvados; a raça deles é maldita.

Infelizes bem-aventurados

13 Feliz a mulher estéril, mas pura de toda a mancha, a que não manchou seu leito conjugal: ela carregará seu fruto no dia da retribuição

das almas. 14 Feliz o eunuco cuja mão não cometeu o mal, que não concebeu iniquidade contra o Senhor, porque ele receberá pela sua fidelidade

uma graça superior,

3,9. A verdade: da qual eles não têm ainda toda a compreensão durante sua vida.

SABEDORIA 3

21

e no Templo do Senhor uma parte muito honrosa,*

15 porque é esplêndido o fruto de bons trabalhos, e a raiz da sabedoria é sempre fértil. 16 Quanto aos filhos dos adúlteros, a nada chegarão, e a raça que descende do pecado será aniquilada. 17 Ainda que vivam muito tempo, serão tidos por nada e, finalmente, sua velhice será sem honra. 18 Caso morram cedo, não terão esperança alguma, e no dia do julgamento não encontrarão

nenhuma piedade: 19 porque é lamentável o fim de uma raça injusta.

4 1 Mais vale uma vida sem filhos, mas rica de virtudes:

sua memória será imortal, porque será conhecida de Deus e dos homens.*

3,13-14. A mulher estéril... O eunuco: os profetas haviam já demonstrado a pri-mazia dos valores espiri tuais sobre o condicionamento físico ou social (raça, esterilidade etc.). A mulher estéril, o eunuco, até então desprezados e tidos por malditos, podem ser fecundos em outro plano (Is 56,3s; Mt 19,12). Se antes se pensava que a recompensa da justiça era dada na terra sob forma de bênçãos (fecundidade, paz, etc.), agora que a perspectiva da imortalidade se abriu definitivamente, a recompensa de uma vida votada ao revés e sofrimento pode ser esperada além desta vida mortal. Escrita pouco antes da era cristã, a Sabedoria já está muito perto das concepções do Novo Testamento.

4,1. Mais vale, em latim: Oh! como é bela uma geração casta em seu fulgor...

SABEDORIA 4

22

2 Quando está presente, imitam-na; quando passada, desejam-na;

ela leva na glória uma coroa eterna, por ter triunfado sem mancha nos combates.* 3 Mas para nada servirá, ainda que numerosa, a raça dos ímpios; procedendo de renovos bastardos, não estenderá raízes profundas, não se estabelecerá numa base sólida. 4 Ainda que por algum tempo estenda seus ramos, estando instavelmente assentada, será abalada pelo vento e, pela violência da tempestade, será desarraigada. 5 Os galhos serão quebrados antes do desenvolvimento, o fruto deles será inútil, verde demais para ser comido, e impróprio para qualquer uso, 6 porque os filhos nascidos de uniões ilícitas serão no dia do juízo testemunhas a deporem contra seus pais.

Morte de um jovem santificado

7 Quanto ao justo, mesmo que morra antes da idade, gozará de repouso.*

4,2. Presente: quando a mulher estéril, mas virtuosa, está presente. 4,7. Antes da idade: a longevidade era tida como uma bênção divina, e a

morte prematura parecia a muitos um castigo.

SABEDORIA 4

23

8 A honra da velhice não provém de uma longa vida, e não se mede pelo número dos anos. 9 Mas é a sabedoria que faz as vezes dos cabelos brancos; é uma vida pura que se tem em conta de velhice. 10 Ele agradou a Deus e foi por ele amado, assim (Deus) o transferiu do meio dos pecadores onde vivia.* 11 Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma: 12 porque a fascinação do vício atira um véu

sobre a beleza moral, e o movimento das paixões mina uma alma ingênua. 13 Tendo chegado rapidamente ao termo, percorreu uma longa carreira. 14 Sua alma era agradável ao Senhor, e é por isso que ele o retirou depressa do meio da perversidade. Os povos que veem esse modo de agir não o compreendem, e não refletem nisto: 15 que o favor de Deus e sua misericórdia são para seus eleitos, e sua assistência está no meio de seus fiéis.*

4,10. Transferiu: pode-se ver aqui a influência do Gn 5,24: Enoc agradou a Deus, e não se encontrou mais, porque Deus o tinha transferido.

4,15. Favor: a morte prematura pode, portanto, ser uma graça de Deus.

SABEDORIA 4

24

16 O justo, ao morrer, condena os ímpios que sobrevivem, e a juventude, atingindo tão depressa a perfeição, confunde a longa velhice do pecador. 17 Eles verão o fim do sábio, e não compreenderão os desígnios do Senhor a seu respeito, nem por que ele o pôs em segurança. 18 Eles verão e mostrarão desprezo, mas o Senhor zombará deles. 19 Depois disso serão cadáveres sem honra, desterrados entre os mortos, em uma eterna ignomínia, porque ele os ferirá, e os precipitará sem voz, ele os abaterá nas suas bases e os mergulhará na última desolação. Eles serão entregues à dor, e a memória deles perecerá.*

Arrependimento tardio dos ímpios

20 Comparecerão aterrorizados com a lembrança de seus pecados, e suas iniquidades se levantarão contra eles para confundi-los.

5 1 Então, com grande confiança, o justo se levantará

4,19. Depois disso: quadro ideado da sorte do ímpio em sua morte, em contraste com a sorte do justo.

SABEDORIA 5

25

em face dos que o perseguiram e zombaram dos seus males aqui embaixo.

Revelação póstuma do império

2 Diante de sua vista serão presos de grande temor

e tomados de assombro ao vê-lo salvo contra sua expectativa;* 3 tocados de arrependimento, dirão entre si: e, gemendo na angústia de sua alma, dirão: 4 “Ei-lo, aquele de quem outrora escarnecemos, e a quem loucamente cobrimos de insultos! Considerávamos sua vida como uma loucura, e sua morte como uma vergonha. 5 Como, pois, é ele do número dos filhos de Deus, e como está seu lugar entre os santos? 6 Portanto, nós nos desgarramos para longe

da verdade: a luz da justiça não brilhou para nós e o sol

não se levantou sobre nós! 7 Nós nos manchamos nas sendas da iniquidade e da perdição, erramos pelos desertos sem caminhos e não conhecemos o caminho do Senhor! 8 O que ganhamos com nosso orgulho, e que nos trouxe a riqueza unida à arrogância?

5,2. Sua expectativa: a realidade será bem oposta à que os ímpios tinham podido imaginar e a falsidade de seus julgamentos lhes aparecerá.

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9 Tudo isso desapareceu como sombra, como notícia que passa;* 10 como navio que fende a água agitada, sem que se possa reencontrar o rasto de seu itinerário, nem a esteira de sua quilha nas ondas. 11 Como a ave que, atravessando o ar em seu voo, não deixa após si o traço de sua passagem, mas, ferindo o ar com suas penas, fende-o com a impetuosa força do bater de suas asas, atravessa-o e logo nem se nota indício de sua passagem; 12 como quando uma flecha, que é lançada ao alvo, o ar que ela cortou volta imediatamente à sua posição de modo que não se pode distinguir sua trajetória, 13 assim, também nós, apenas nascidos, cessamos de ser, e não podemos mostrar traço algum de virtude: é no mal que nossa vida se consumiu!”. 14 Assim a esperança do ímpio é como a poeira

levada pelo vento, e como uma leve espuma espalhada pela tempestade;

5,9. Que passa: uma notícia corre de boca em boca; em seguida, logo é esquecida ou nela não se pensa mais.

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ela se dissipa como o fumo ao vento, e passa como a lembrança do hóspede de

um dia.*

Deus protege os justos

15 Mas os justos viverão eternamente; sua recompensa está no Senhor, e o Altíssimo cuidará deles.* 16 Por isso, receberão a régia coroa de glória, e o diadema da beleza da mão do Senhor, porque os cobrirá com sua direita, e os protegerá com seu braço.

Couraça da justiça

17 Por armadura tomará seu zelo cioso, e armará as criaturas para se vingar de seus inimigos. 18 Tomará por couraça a justiça, e por capacete a integridade no julgamento. 19 Ele se cobrirá com a santidade, como com um impenetrável escudo, 20 afiará o gume de sua ira para lhe servir de espada, e o mundo se reunirá a ele na luta contra os insensatos. 21 Os raios partirão como flechas bem dirigidas,

5,14. A poeira: a palha do grão. A Vulgata acrescenta à frente: Eis o que dizem os pecadores no inferno.

5,15. No Senhor: isto é, que ela é o Senhor mesmo.

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e, como de um arco bem distendido, voarão das nuvens para o alvo; 22 uma balista fará cair uma pesada saraiva de ira; a água do mar se levantará em turbilhão contra eles e os rios os arrastarão impetuosamente. 23 O sopro do Todo-poderoso se insurgirá contra eles e os dispersará como um furacão; a iniquidade fará de toda a terra um deserto, e a malícia derribará os tronos dos poderosos!*

Exortação para desejar a sabedoria

6 1 Ouvi, pois, ó reis, e entendei; aprendei vós que governais o universo!*

2 Prestai ouvidos, vós que reinais sobre as nações e vos gloriais do número de vossos povos! 3 Porque é do Senhor que recebestes o poder, e é do Altíssimo que tendes o poderio; é ele que examinará vossas obras e sondará

vossos pensamentos!* 4 Se, ministros do reino, vós não julgastes equitativamente,

5,23. A iniquidade: a iniquidade, que terá provocado tal cólera, terá, portanto, por efeito, fazer da terra um deserto.

6,1. Na Vulgata, lê-se à frente: A sabedoria é melhor que as forças, e o homem prudente melhor que o homem forte. Segue-se daí que a numeração dos versículos seguintes difere da do texto grego.

6,3. Do Senhor: é Deus que dá o poder e a autoridade, mesmo quando os soberanos são escolhidos pelo povo.

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nem observastes a Lei, nem andastes segundo a vontade de Deus, 5 ele se apresentará a vós, terrível, inesperado, porque aqueles que dominam serão rigorosamente julgados. 6 Ao menor, com efeito, a compaixão atrai o perdão, mas os poderosos serão examinados sem piedade. 7 O Senhor de todos não fará exceção para ninguém, e não se deixará impor pela grandeza, porque, pequenos ou grandes, é ele que a todos criou, e de todos cuida igualmente;* 8 mas para os poderosos o julgamento será severo. 9 É a vós, pois, ó príncipes, que me dirijo, para que aprendais a sabedoria e não resvaleis, 10 porque aqueles que santamente observarem as santas leis serão santificados, e os que as tiverem estudado poderão justificar-se. 11 Ansiai, pois, pelas minhas palavras, reclamai-as ardentemente e sereis instruídos.

A sabedoria conduz ao reinado

12 Resplandecente é a sabedoria, e sua beleza é inalterável:

os que a amam, descobrem-na facilmente.

6,7. Exceção: a justiça de Deus não é corruptível como a dos homens.

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