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p ala vras negras 1 Agosto 2006 À Sombra do Baobá

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palavrasnegras 1Agosto 2006

À Sombrado Baobá

Sumário

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Abertura, Emanoel Araujo

Apresentação, Ana Lucia Lopes

Com a palavra, os contadores de história, João Acaiabe, Giba Pedroza, Oswaldo Faustino

A palavra falada: o som e o sentido humanos, Luiz Carlos dos Santos

Ler e ouvir histórias: um exercício de pertencimento, Neide A. de Almeida

O espelho mágico, Oswaldo Faustino

Fagulhas e ostracismo: à memória de João Cândido, Cristiane Moscou

Práticas de oralidade, Viviane Lima de Morais

Quem conta o conto, conta como o conto foi..., Neide A. de Almeida

Os contadores de histórias de cada um de nós

Sugestões de leitura

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Este é o milagre das palavras. O milagre da oralidade, esse patrimônio intangível que se formou nos quatro cantos da América, silenciosamente, por um povo que veio aos ferros no tombadilho de um navio de traficantes brancos e negros, vendendo aquela carne humana, ferrada a fogo, com marcas indeléveis, aquelas que jamais se apagam.

Pelo contrário, todo sofrimento se transformou numa forma de resistência para construir a linguagem mais profunda de identificação, ao mudar hábitos e costumes de uma sociedade que nem desconfiava do que acontecia, quando a ama de leite amamentava o sinhozinho branco ou quando as novas palavras se formavam no falar cotidiano, na vida religiosa, nos atos sagrados das rezas, das preces, dos orikis para os Orixás, incorporando uma outra face do sincretismo à força das palavras.

Assim, a oralidade é a palavra que transcende e que acende a ancestralidade na mágica continuada e na magnífica vibração do tan tã de um tambor, o halo de comunicação de todos aqueles que perpetuam a mesma origem dessa poderosa identidade.

Emanoel AraujoCurador

palavrasnegras

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Negras palavras embalam sonhos, ensinam o mundo, evocam memórias, atravessam oceanos, permanecem no tempo, lutam por direitos. A palavra nos torna humanos, nomeia nossas experiências e, ao conservar os sentidos dessa humanidade, preserva a espécie.

O caderno Negras Palavras procura resgatar o significado de palavras faladas e escritas que cons-tituem o imaginário brasileiro sob o domínio do consciente ou do inconsciente. Nele, encontra-se o registro de experiências com a palavra em rodas de histórias, oficinas, depoimentos, entrevistas, encontros temáticos e seminários dedicados ao resgate da memória negro-africana na história e cultura brasileiras.

O primeiro número do caderno, intitulado À Sombra do Baobá, trata de um tema tão antigo quanto nossa memória permite alcançar, o contar e o ouvir histórias. Sabe-se que contar histórias reaproxima espaços, tempos e mentalidades, por meio da força estruturadora da narrativa. As expe-riências humanas foram e são narradas. Quem não se encanta e não se deixa levar ao ouvir “há muito tempo...” ou “era uma vez...”?

As histórias gozam da liberdade de transitar por representações passadas e presentes e ousam pro-jetar futuros. Nelas, os conteúdos de um imaginário social se corporificam, provocando identificações, repulsas e referências, tanto no nível individual como no social. Enfim, as histórias são pautadas por valores sociais narrados por seus personagens, conflitos, soluções, em tempos e espaços determina-dos pela estrutura da narrativa. O ser humano precisa de histórias para aprender a ser humano.

Em um Museu, espaço em que a memória é matéria-prima de trabalho e reflexão, evocamos antigos registros que vieram do outro lado do oceano e chegaram até nós, há mais de quatro-centos anos. Ouvimos e nos identificamos com eles, os atualizamos em nossas experiências pes-soais e, assim, partilhamos conhecimentos que nos revelam filhos de uma memória negro-africana inscrita na nossa sociedade.

Entretanto, esse reconhecimento de um modo de pensar o mundo trazido e ensinado por homens e mulheres de diversas regiões da África não é imediatamente percebido e aceito. Embora se encontrem na base da nossa sociabilidade, serão necessárias muitas histórias “à sombra de outros baobás” até que se valorize a matriz negro-africana como uma das formadoras de valores, princípios e memórias em nosso país.

Neste sentido, organizamos um conjunto de oficinas e um seminário que possibilitassem uma imersão no universo da contação de histó-rias, abrissem espaços de reflexão para a palavra falada e escrita e que permitissem encontros com as memórias de cada um. Essas atividades esti-veram sob a coordenação de Neide A. de Almeida, que integra a equipe do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil.

Como em todas as nossas ações, as exposições do Museu são o nosso fio condutor. A série À Som-bra do Baobá adotou como referência a narrativa do acervo criada por Emanoel Araujo que conta, na perspectiva negro-africana, uma história brasileira contida nas peças expostas e no arranjo da expo-sição. Os conteúdos de cada obra se associam e

Apresentação

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evidenciam o patrimônio intangível construído por essa população e que pode se ver revelado pelo espaço museal, testemunha de múltiplos encontros.

Nele, o leitor encontrará textos que recuperam o significado da tradição oral e nos remetem a uma reflexão que atualiza esse sentido. As histórias es-critas, abordadas como registro de experiências constitutivas e reguladoras da vida social, também compõem objeto de análise.

Depoimentos de contadores de história, que nos tempos atuais continuam a encantar e envol-ver pessoas, trazem para o caderno a presentifica-ção do ouvir histórias.

Fragmentos de lembranças dos participantes das oficinas são exemplos substantivos da impor-tância e da capacidade integradora contidas nas narrativas e na memória que se tem delas.

É também pela palavra que podemos encon-trar negros representantes da história e da cultura brasileira que sistematicamente são relegados ao esquecimento. Aqui, eles têm lugar marcado.

Nas páginas deste caderno indicamos também histórias daqui e de lá, que merecem ser contadas às crianças, jovens e adultos como alimento para o nosso imaginário.

Está feito o convite para a leitura. E para começar, um trecho do poema de Luiz Gama, precursor do abolicionismo, que ultrapassou os limites da sua condição de escravizado, tornando-se jornalista, poeta e advogado. Faleceu em 1882, levando consigo o reconhecimento de toda uma cidade – São Paulo.

Quem Sou Eu?

“(....)

O que sou, e como penso,

Aqui vai com todo o senso,

Posto que já veja irados

Muitos lorpas enfunados,

Vomitando maldições,

Contra as minhas reflexões.

(...) os homens poderosos

Desta arenga receosos

Hão de chamar-me Tarelo,

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo

Com repique impertinente,

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou se bode

Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há em toda a casta,

Pois que a espécie é muito vasta...”

(fragmento extraído de O Negro em Versos, antologia da poesia negra brasileira. Org. Luiz Carlos dos Santos, Maria Galas e Ulisses Tavares. 1a ed. São Paulo: Moderna, 2005, p. 35)

Ana Lucia Lopes Núcleo de Educação – Museu Afro Brasil

Negras Palavras: À Sombra do Baobá registra os diversos momentos dessa experiência e os organiza, por meio da palavra escrita, sob a forma de um caderno-revista.

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Durante a realização da série “À Sombra do Baobá”, Projeto Negras Palavras,

o Museu Afro Brasil recebeu três contadores de histórias. Cada um deles com

experiências, percursos e práticas diversas. Oswaldo Faustino contou histórias

para os quatro grupos que participaram das oficinas; Giba Pedroza nos presenteou

com suas histórias no Seminário Memórias, histórias e identidades. João Acaiabe,

gentilmente, nos concedeu uma entrevista numa noite fria do mês de maio.

O leitor agora terá oportunidade de ler um pouco da história desses três contadores

nos depoimentos que aqui transcrevemos.

os contadores de história

Com a palavra,

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Estávamos tentando montar um grupo de atores negros, na década de 80, mas a gente não tinha os textos. Normalmente, usávamos textos da África do Sul, alguns do Abdias do Nascimento (...). Então, nos juntamos com o Antônio Abujamra, que ia dirigir o espetáculo, e começamos a fazer depoimentos para coletar material. Num dia, as pessoas estavam fazendo os depoimentos e eu não tinha idéia do que ia dizer, então, resolvi contar uma história que aconteceu comigo. Era uma história que me fazia muito mal, eu ficava emocionado, indignado: foi no interior, tinha um clube de classe média alta, fui até lá com uma amiga e, num momento em que fui procurá-la num espaço reservado aos brancos, fui expulso do clube. Quando eu terminei de contar, o Abu me disse: “você tem jeito para contar histórias”.

Eu não entendi nada, estava ali emocionado com a história e ele nem parecia perceber. Mas foi a partir dali que eu comecei a contar histórias.

Em 1983, quando fui pra TV Cultura, eu entrava no programa contava uma história e ia embora. Só tinha cinco minutos de trabalho. No começo não havia muitas histórias... Eu trabalhava com coisas sobre o carnaval, historinhas de samba enredo e ia “arrumando” as histórias. Com o tempo o programa foi ficando mais profissional, começaram a chamar autores para escrever.

Quando eu decorava a história, decorava contava, decorava contava, quando eu perdia o fio da meada, precisava ler pra me encontrar... Aí eu passei a aprender a história em vez de decorar. Eu aprendia e contava do meu jeito, armava do meu jeito. Claro que demorava muito mais, mas aí eu não me perdia. Quando você aprende as histórias, você pode contar qualquer uma delas... Eu acho que é quase você contar com as suas palavras, você se apropria delas.

“Tem história que você aprende e conta, ela fica mais na sua boca”.

Se hoje eu disser que vou fazer tal história pra amanhã, por encomenda, não dá... Você tem que se integrar na história, porque criança muitas vezes interfere, você tem que saber lidar com isso.... Dessa forma, você pode responder, brincar, contar e envolver. (...) Uma vez eu fui contar histórias do Monteiro Lobato na Biblioteca Monteiro Lobato. Eu olhava no olho das crianças, aí ficava muito melhor.... não tinha câmera, nada... Eu fui achando um jeito de chamar a atenção dos meninos... Eu nunca conto a história parado, eu conto e vou andando pelo espaço, às vezes ando a platéia toda com uma história. Como eu sou ator, isso pra mim é comum...

(...)Algumas histórias ficam melhor lidas, você não consegue se apropriar delas para contar... Isso acontece

com poemas também, às vezes é melhor ler do que contar. Então, eu vejo como as histórias ficam comigo, eu leio várias vezes. Tem história que você aprende e conta, ela fica mais na sua boca e tem umas histórias que não ficam bem... Aí eu conto a história que bate no coração.(...) Aquelas que me inco-modam eu não conto, de terror, por exemplo, as histórias da minha mãe eram terríveis, a gente sentava na porta de casa e ficava morrendo de medo. Eu não gosto de contar esse tipo de história....

João Acaiabeator e contador de histórias

“Antes de contar, é preciso dormir com a história”

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Eu conto histórias há 18 anos... Por parte de mãe eu sou descendente de baiano e por parte de pai de mineiro. Às vezes, eu tinha vergonha da minha avó quando ela ia às reuniões de pais, ela era uma pessoa muito espontânea, brincava muito. Depois eu comecei a ter orgulho dela, porque eu fui crescendo e per-cebendo toda a riqueza que ela trazia. Minha avó me ensinou muitas coisas, sempre através da cultura popular, da tradição oral (...). As cantigas de trabalho, enfim, tudo isso faz parte da tradição oral. Quando eu comecei a perceber a importância disso, comecei a mergulhar fundo na história da minha família e, através da história da minha família, fui mergulhar na cultura popular brasileira. Então, eu fiz o caminho inverso. Comecei pesquisando os livros, os outros pesquisadores técnicos e fui parar onde eu tinha que ter começado, na família.

Eu reconheço dois instrumentos importantes para o contador de histórias e para o educador: a me-mória afetiva e o olhar criança... Por que há tanta gente querendo ouvir história hoje, por que a gente está nessa sede de história? Acho que o mundo está precisando das histórias porque o mundo está se revendo. (...) Eu faço uma relação entre a criança e o homem primitivo. Porque o homem primitivo quando veio ao mundo, as primeiras nações, os primeiros homens que por aqui passaram, eles inventaram e criaram as histórias pra explicar tudo o que estava à sua volta. É a mesma postura da criança. O olho da criança, o olhar da criança, brinca com as coisas do mundo enquanto vai aprendendo. Enquanto o olhar do adulto é um olhar mais centrado. Por exemplo, uma mulher andando pela rua puxando uma criança de cinco ou seis anos de idade. A menina vai o tempo inteiro brincando com os detalhes, vai olhar na parede, vê um velhinho sentado numa carruagem, enquanto a mãe vai puxando pela mão e dizendo assim: “Olha pra frente menina”. O olhar do adulto é o olhar que olha pra frente. O olhar da criança é um olhar que brinca com coisas do mundo. Por isso, não se deve jogar fora o olhar do adulto, nem o olhar da criança. O perfeito é um equilíbrio entre esses dois olhares.

“Mas a memória que eu uso nas histórias é essa memória afetiva, essa memória que traz o cheiro, a memória que traz a voz da minha avó que foi lavradora na Bahia e cantava.”

Eu acho que quando a gente perder um pouco da ansiedade e conseguir entender mais a importância do olhar da criança e da memória afetiva a gente começa realmente um caminho muito mais gostoso de ser trilhado. Isso eu acho muito importante para o educador e para o contador de história. E quando eu falo de memória afetiva ou da criança, eu falo de duas coisas que andam juntas, por que como é que eu vou buscar a minha memória afetiva? Só se eu simplesmente destravar meu olhar criança e começar a prestar mais atenção. Muita gente me diz: “Pôxa, tem que ter uma memória boa pra guardar tanta história”. Mas eu tenho uma memória péssima, para falar a verdade, se alguém me fala o nome aqui, ali na esquina eu já esqueci. Não guardo número de telefone, não guardo nada. Mas a memória que eu uso nas histórias é essa memória afetiva, essa memória que traz o cheiro, a memória que traz a voz da minha avó, que foi lavradora na Bahia e cantava.

Essa memória que registra coisas que, durante muito tempo, a gente julgou sem importância. Na mi-nha memória afetiva tem, por exemplo, uma voz assim: “Atenção dona de casa se encontra nesse local material de limpeza em geral. Temos água lavadeira”, de um vendedor ambulante que passava pela minha rua toda semana. Um dia eu estava contando história e precisava de uma voz para um vendedor que não tinha nada a ver com essa situação e essa voz saiu naturalmente. Ela estava guardada, estava registrada e quando eu vi, a voz nasceu naturalmente comigo.

Giba Pedrozacontador de histórias

“...Eu comecei a mergulhar fundo na história da minha família e através da história da minha família eu fui mergulhar na cultura popular brasileira”

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“... Essa é a coisa que tem me encantado. Essa possibilidade de passar para frente este elo que nos leva pra muito mais longe, o elo da nossa história.“

Tem uma tradição, que eu acredito que seja dos Dogon, que diz o seguinte: “eu trago dentro de mim toda a minha ancestralidade, toda a minha descendência”. Todos eles estão aqui, presentes dentro de mim, neste instante, eu sou apenas um lapso nessa história. É preciso que a gente se reconheça como um lapso, um instante dessa longa história, não somos maior que a própria história.

O grande problema de você estar em cima de um caixote, sob a mira do olhar dos outros, é você achar que é mais importante do que aquilo que está fazendo. Se você se entende apenas como parte dessa história, entende que a história é maior mesmo e se coloca como um instrumento dela.

Contar história é exatamente isso, o meu gestual, as minhas caretas, a inflexão da minha voz são importantes pra segurar a atenção, mas não são mais importantes que o que eu estou contando.

Quando a gente faz esse tipo de trabalho, tem que ter certeza: “o que é que eu quero contar?”

Tem aquele ditado que diz: “quem conta um conto aumenta um ponto”. Quem conta um conto não só aumenta um ponto, como transforma um ponto.... É fundamental que você, ao contar a história, trabalhe, envolva quem está na contação (...)... Eu olho pra ele ali, e ele tem que estar aqui, junto comigo, ele tem que estar na história, ele tem que participar da história, não pode ser um mero ouvinte.

“O som da calimba nos remete a um lugar que a gente imagina que seja a África.”

A calimba ia ser a trilha sonora da segunda história. (...) Mas eu estava tão envolvido que acabei não sonorizando. A coisa fundamental nesse som é que ele nos faz viajar um pouquinho... porque ele é um som estranho. Se vocês perceberem, ele não é um som do nosso cotidiano... O som da calimba nos remete a um lugar que a gente imagina que seja a África. Aliás, a África é também um produto do nosso imaginário. (...) Ela na verdade está na nossa alma e ocupa o nosso imaginário. E esse é um som que, como não é do nosso cotidiano, nos remete a essa viagem. E a matéria-prima da nossa contação de história, em especial a de hoje, ela precisa do imaginário, é como se eu colocasse aqui no meio um baú, abrisse esse baú e ele estivesse repleto de coisas e vocês tirassem essas coisas e elas não representas-sem o que aparentam. Você pega o tecido, mas não é o tecido...

Essa é a minha experiência de vida.

Oswaldo Faustinojornalista, escritor, dramaturgo e contador de histórias

“eu trago dentro de mim toda a minha ancestralidade, toda a minha descendência”

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A palavra falada

Luiz Carlos dos Santos

o som e o sentido humanos

A palavra falada é a alma da narrativa, e a narrativa é o caminho que a imaginação e o fazer humanos percorrem para nos ensinar quem somos, como somos e por que somos.

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A experiência de contar e ouvir história é sin-gular e, ao mesmo tempo, plural, embora possa parecer contraditório esse é mais um dos encan-tamentos que a palavra falada nos proporciona, a construção do indivíduo, enquanto se preserva o grupo. A valorização dos que sabem e a afirmação da importância dos que aprendem. É o tempo ser-vindo como argamassa entre as gerações.

Enquanto ouvimos e/ou contamos histórias, fazemos História, incorporamos modelos e consti-tuímos identidades. A gestualidade, a modulação da voz, os movimentos suaves e bruscos, os cheiros, a penumbra, constituem o contexto formador de memória e também possibilidades interpretativas que a palavra falada oferece, através do contador, para os seus ouvintes. Essa relação: contador- ouvinte é uma. Existem outras semelhantes, mas não iguais. O griot ou soma, nas sociedades negro-africanas, é o historiador da tradição, verdadeiro arquivo vivo, ou o guardião da palavra. As nossas avós, tias, mães e seus pares fazem, através da palavra, o que costumamos chamar de socialização primária, incluindo-nos, pelos caminhos da imagi-nação, no grupo social e confirmando-o como tal.

A palavra falada é a alma da narrativa e a nar-rativa é o caminho que a imaginação e o fazer humanos percorrem para nos ensinar quem somos, como somos e por que somos. Enquanto ouvimos e contamos histórias, incorporarmos valores, mo-dos de pensar, sentir e agir e aprendemos mais sobre nós mesmos e também nos construímos como pessoa dentro de um grupo social.

Hoje já se sabe que homens e mulheres estão potencialmente habilitados a narrar. Em nossas vidas, a narração ocupa lugar de destaque, sem falar no fascínio que sobre nós exerce. Entretanto, a his-tória das civilizações ao ser registrada pela palavra escrita, principalmente no ocidente, desvalorizou a palavra falada, instância primeira da identidade

humana, e priorizou a escrita como registro con-fiável da História, desconsiderando a origem oral das narrativas literárias como Odisséia e Ilíada, por exemplo, e mesmo das histórias hoje escritas, da velha Europa, como Chapeuzinho Vermelho. Por tudo isso, é importante assinalar, como ensina Jan Vansina, que a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade, como acreditam alguns historiadores, acrescentamos.

Também nas sociedades negro-africanas, epo-péias foram e são narradas, dando conta de um saber cujo eixo maior está na relação história- memória. Aqui, a circularidade narrativa se vale de paralelismos semânticos, repetições sistemá-ticas de expressões, relações de parentesco e de poder. Esse tipo de uso da palavra falada pode ser observado em narrativas como a História de Sun-diata, epopéia mandinga, Contos Criolos da Bahia, de Mestre Didi, Histórias do Musseque, de Jofre Rocha, os dois últimos são bons exemplos de ora-lização na palavra escrita.

Segundo Jan Vansina, destacado estudioso das civilizações da palavra, “uma sociedade oral reco-nhece a fala não apenas como um meio de comu-nicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A tradição pode ser definida de fato – prossegue Vansina – como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para ou-tra. Quase em toda a parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso pelo menos, é o que prevalece na maioria das civiliza-ções africanas. Os Dogon sem dúvida expressa-ram esse nominalismo da forma mais evidente; nos rituais constatamos em toda parte que o nome é a coisa, e que ‘dizer’ é ‘ fazer’”, completa.

O lugar de destaque alcançado pela História Oral, nos últimos anos, só confirma a importância

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da Palavra Falada para a sociedade; seja como expressão e veículo de conhecimento e tradição dos grupos sociais, seja como modalidade mais usada da língua para a comunicação imediata entre duas pessoas, a História Oral se impõe hoje como uma metodologia necessária e presente, nos espaços sociais de produção e reprodução do saber: escolas e museus, entre eles.

Nessa perspectiva, o Museu Afro Brasil, afinado em ser um museu dinâmico, não poderia deixar de lado uma metodologia de registro que prioriza a fonte primeira do conhecimento: a Palavra Falada. Força vital para as sociedades negro-africanas e tão marcante na oralidade afro-brasileira. A Palavra do religioso, do sambista, do artista, do quilombola, do poeta, do escritor, do operário, do professor, do anônimo. A Palavra que gera história.

Entretanto, quando falamos estamos circunscritos a um contexto, dialogamos com papéis sociais e, por isso mesmo, falamos de lugares conhecidos e reconhecidos. Somos adultos experientes e gestores de um dado grupo social.

Ao contarmos histórias, passamos valores, reafir-mamos crenças, metaforizamos personagens, hiper-bolizamos costumes e, muitas vezes, confirmamos preconceitos. E aqui só estamos considerando a palavra falada seja nas sociedades tradicionais, seja na globalizada.

Nas primeiras, as narrativas seguem a circula-ridade do conhecimento e de sua transmissão. São sociedades da palavra. O homem vale tanto quanto a sua palavra. Nestas, a mentira tem hora e lugar e o silêncio é essencial e comunica. Os homens e todos os seres vivos comungam. Há maior proximi-dade, logo, o cheiro, o gesto, os sons são elementos vivos, integrados à história narrada e futuros acio-nadores da memória.

Já na sociedade globalizada, o espetáculo toma o lugar do círculo, forma geométrica que nos per-mite concretizar contatos, e o contato inexistente,

se concretiza apenas como possibilidade virtu-al, ou seja, nunca tivemos tanta possibilidade de comunicação como hoje e, ao mesmo tempo, sen-timo-nos tão sós.

Para muitos a internet é sinônimo de demo-cracia do conhecimento, ou seja, todo mundo pode ter o seu ou produzi-lo. As narrativas desse tem-po se articulam em forma de clipes e se manifes-tam tanto nas narrativas orais, quanto na escritas e podem ser representadas principalmente nas pe-ças publicitárias, nas pixações, entre outras formas de manifestação.

Ora, todos lembramos das histórias que nos foram contadas, como nos foram contadas e quem as contou. Entre nós, vínculos mágicos colocam em cena personagens populares fascinantes que desempenham no enredo papéis sociais importantes. Se pensarmos nas histórias sobre o saci-pererê, a mula sem cabeça, o negro d’àgua, o moleque d’água e outras, e observarmos os lugares onde elas se desenrolam, as outras perso-nagens que participam da trama e o quando as histórias acontecem, encontraremos fazendas, escravos, senhores, padres, mulheres misteriosas, assombrações (memória de mortos), populações ribeirinhas, crianças, crenças morais e religiosas, enfim, micro-sociedades que falam de uma socie-dade maior, histórias que fazem História.

Transportemo-nos para o texto de Amadou Hampa Té Bâ, a fala humana como poder de criação. Segundo esse estudioso das sociedades da palavra, no Mali,

“Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as três potencialidades do poder, do querer e do fazer, contidas nos vinte elementos dos quais ele foi composto. Mas todas essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha colocá-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa

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segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, por-tanto, considerada como a materialização, ou exte-riorização, das vibrações da forças.”

Antes, Hampa Té Bâ explica como Maa Ngala, Ser Supremo, transmite a Maa (Homem) o poder criador divino, pelo dom da Mente e da Palavra. A tradição Komo, no Mali, diz que:

“Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais todos os elementos do cosmo foram formados e continuam existir. Ele o intitulou guardião do Universo e o encarregou de Zelar pela conservação da Harmonia Universal. Por isso é penoso ser Maa.

Iniciado por seu criador, mais tarde Maa trans-mitiu a seus descedentes tudo o que havia apren-dido, e esse foi o início da grande cadeia de trans-missão oral iniciatória da qual a ordem do Komo (como as ordens do Nama, do Kore etc., no Mali) diz-se continuadora.”

As palavras, como já dissemos falam de pessoas e lugares, contam histórias e fazem História. Na sua ontogênese está a criação da realidade. Ao longo da história da humanidade, a palavra ganhou e ga-nha novos sentidos e usos. Ela expressa o momento histórico do grupo social e embora seja essencial para a sociedade, ela é também representação de anseios, desejos, esperanças e preconceitos.

No tempo, o sentido de valor das palavras mudou. As histórias hoje podem ser contadas através de discos, CDs, DVDs e mesmo em pequenos círculos escolares, na esteira do que chamamos de indústria cultural que, ao transformar em pro-dutos as relações sociais, esvaziam-nas e atribuem a elas o valor de mercado, com prazo de validade pré-determinado.

Por isso, devemos ficar atentos, resultados que somos de sociedades que priorizaram diferente-mente o uso seja da palavra falada, seja da palavra escrita, ao que afirma J. Vansina, em A tradição oral

e sua metodologia: “Tudo que uma sociedade con-sidera importante para perfeito funcionamento de suas instituições, para uma correta compreensão de vários status sociais e seus respectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente transmitido. Numa sociedade oral, isso é feito pela tradição, enquanto numa sociedade que adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas à tradição. É esse fato que levou durante muito tempo os historiadores, que vinham de sociedades letradas, a acreditar erronea-mente que as tradições eram um tipo de conto de fadas, canção de ninar ou brincadeira de criança.”

Bibliografia

KI-ZERBO, J. (Coord.). Metodologia e Pré-História da África. História

Geral da África. São Paulo : Ática/Unesco, 1982. v.1.

Luiz Carlos dos Santos é consultor de História Oral do

Museu Afro Brasil, em São Paulo. Jornalista, mestre em Socio-

logia pela USP, professor de Língua Portuguesa e Literatura da

Escola Vera Cruz e do Centro Universitário Ibero-Americano.

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Ouvir e contar histórias são práticas muito anti-gas. Por mais que se recue no tempo procurando identificar o momento em que o homem passou a fazer uso sistemático da narrativa, não se encontra esse ponto de partida.

Houve um tempo em que o lugar da História, tal como hoje a conhecemos, era ocupado por relatos que recuperavam o cotidiano, justificativas para situações e fatos inexplicáveis. É com esse caráter que as histórias surgem em todos os lugares do mundo e cumprem a função fundamental de pas-sar de geração a geração a memória, a cultura, as identidades dos diferentes povos. E, ao longo dos tempos, esses conhecimentos permeiam as dife-rentes sociedades.

Aproximadamente no século XVI, sobretudo

na Europa, pesquisadores começam a recolher e registrar as histórias que circulam oralmente. Em Portugal, por exemplo, Gonçalo Fernandes Trancoso recolhe e registra diversos contos popu-lares, sempre enfatizando o cunho moral dessas histórias que contribuíam de forma significativa para a regulação social e principalmente como

Neide A. de Almeida

Ler e ouvir histórias

um exercício de pertencimento

“...a arte literária se apresenta como um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente

passar de simples capricho individual, para traço de união, em força de ligação entre

os homens (...) A Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com

os nossos semelhantes...” Lima Barreto

recurso para elaborar, assimilar experiências do-lorosas como as perdas, as mortes provocadas pelas epidemias que assolavam o país. As histó-rias de Trancoso correram mundo e tiveram grande influência no Brasil, principalmente no Nordeste.

Mas a literatura oral no Brasil tem também em sua origem a marca da herança africana, vinda da Nigéria, “onde os narradores populares, os “akpalôs”, faziam parte de uma casta especial, que se deslocava de tribo em tribo recitando os seus “alôs”. A Velha Totonha de José Lins do Rego, que se deslocava de engenho a engenho, narrando com riqueza mímica e procurando dar o tom local às suas narrativas, é sua mais autêntica seguidora.” (Guimarães : 2000, p. 86)

Outros exemplos dessa prática são os trabalhos realizados pelos Irmãos Grimm, Perrault, Andersen, muito conhecidos e, em boa parte, responsáveis pela poderosa presença dos contos europeus em nosso imaginário. Esse fato revela um dos resulta-dos da intensa articulação entre a escrita e o poder: os contos europeus de tradição oral tornaram-se, a partir do registro escrito, ponto de partida,

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ocuparam lugar de referência e deixaram à sombra as produções de outros povos, das outras matrizes constitutivas de nossa cultura. Conforme afirma Gnerre, “o modelo de língua escrita que é assumido, em geral, é aquele da modalidade expressiva das línguas européias que (...) fica mais distante das modalidades e gêneros expressivos próprios da oralidade. Desta forma, realiza-se o tipo talvez mais sutil de dominação: a de chegar a convencer os dominados de que sua língua pode (e deve) ser uti-lizada à imagem e semelhança da língua dos domi-nadores.” (p. 109)

Até bem pouco tempo, as histórias da cultura popular brasileira eram tratadas como produções menores, como deturpações de histórias originais. O olhar eurocêntrico destituindo de originalidade aquilo que é essencialmente diverso, mestiço.

No Brasil tivemos importantes pesquisadores da cultura popular: Nina Rodrigues, Artur Ramos, Sílvio Romero, Mário de Andrade, Câmara Cascudo, dentre outros, responsáveis pela coleta e registro de histórias populares brasileiras encontradas em todas as regiões. Em muitas delas observamos a

marca explícita das culturas indígenas e africanas, também fundadoras de nossa cultura. Entretanto, pouco foi o espaço destinado a esse acervo que, ainda hoje, circula num espaço muito restrito, a que poucos têm acesso, o que mais uma vez re-sulta num apagamento, na invisibilidade de uma produção intensa que representa de forma original o imaginário e a identidade do povo brasileiro.

Obviamente essa não é uma questão que envolve apenas a circulação das informações, mas é resultado de um posicionamento ideoló-gico que destina espaço privilegiado a um certo padrão cultural, que elege portanto uma estética, um modo de dizer, um modo de ver e de repre-sentar o mundo. Atribui, assim, legitimidade e valor a determinadas manifestações e margi-naliza, discrimina, inferioriza outras.

Num momento em que a formação de leitores constitui uma das grandes preocupações de diver-sas instituições que atuam nas áreas de educação e cultura, a retomada dessa discussão a respeito do caráter e das origens de nossa produção literária é essencial. Se considerarmos o lugar da literatura

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na construção da história, da memória e da iden-tidade de um povo e se observarmos o quanto a produção literária de origem africana foi relegada, discriminada, inferiorizada, teremos aí um elemento importante para analisar e entender a construção do imaginário e da identidade do povo brasileiro.

Considerando que um dos aspectos essenciais envolvidos no processo de formação do leitor é sua relação com a literatura e que um dos desa-fios para formar leitores é garantir os processos de identificação e a sensação de pertencimento, temos então uma importante reflexão a fazer: como contribuir para que o contato com a literatura que tematiza o negro como personagem e como pro-tagonista de nossa história esteja presente na formação dos nossos leitores, particularmente dos negros e mestiços?

Sabemos que não h á uma única resposta para questão tão complexa, mas ousamos indicar um caminho possível: promover a prática de ouvir, contar e ler histórias, particularmente aquelas de origem africana e as brasileiras que tenham o negro como foco.

A literatura é considerada, desde os tempos mais remotos, experiência essencial no proces-so de formação do sujeito. Por meio da literatura temos a oportunidade de conhecer tempos e lugares diversos, experimentar sensações, sentimentos e desejos, muitas vezes impossíveis no cotidiano. Esta é uma das contribuições essenciais da literatura: a possibilidade de identificar-se, de provisoria-mente ocupar o lugar de um outro, de uma perso-nagem e, protegidos por essa pele, viver as mais diversas experiências.

Em seu livro A psicanálise dos contos de fadas, Bruno Bettelheim enfatiza a importância desse processo na constituição da psique do sujeito. Imagine-se então o efeito provocado no imaginário da criança negra que tem como único modelo de beleza princesas e príncipes brancos, esculpidos de acordo com uma estética européia. E que, muitas vezes, convivem com personagens negras que são geralmente desfiguradas, caricaturizadas,

representam aquilo que se rejeita, o mal, o feio, o indesejável. Imagine-se o significado e o efeito do contato com um universo estritamente branco, no qual o negro raramente aparece e, quando isso acontece, ocupa com freqüência um lugar de subal-ternidade, representa o estereótipo...

Essa foi a tônica da produção literária até muito recentemente. Vale lembrar que a história da leitura no Brasil é marcada, em sua origem, pelas importa-ções, particularmente no que diz respeito às obras destinadas à “formação de leitores”.

A questão é que, desde então, e durante muito tempo, pouco se fez pela inclusão efetiva do negro como personagem na literatura, particularmente naquela destinada às nossas crianças. Com isso, as histórias ouvidas e lidas continuaram perpetuando um universo idealizado, marcado pelo preconceito, pela discriminação. Esse foi (e ainda é) certamente um mecanismo poderoso no processo de inferiori-zação e de negação da identidade negra. Profunda contradição se considerarmos nossa origem mes-tiça, visceralmente marcada pelas matrizes africa-nas. Como nos diz Rabassa, a “ influência do negro sobre a cultura de um país no qual seu grupo foi numeroso é, geralmente, mais profunda e alcança mais longe do que meras manifestações superfi-ciais podem fazer supor. Na época da escravidão, a escrava freqüentemente era encarregada da criação das crianças e muitas vezes tornava-se uma segunda mãe para elas. Presenteava a criança com histórias do folclore africano, cantigas, crenças reli-giosas e superstições. Tendo sido adquiridas em tão tenra idade, essas tradições tornavam-se parte do folclore local ou nacional....” (p. 34).

Felizmente nos últimos anos observa-se uma preocupação de algumas instâncias com a produção e a circulação de uma literatura em que o negro apareça como protagonista, discuta e vivencie conflitos típicos de sua posição numa sociedade preconceituosa. Preocupação também com o que podemos chamar de Literatura Negra, aquela produ-zida por negros e na qual os valores, a estética e as origens do negro ocupam espaço principal.Incluir essa produção no repertório de leitura de

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nossa sociedade é um desafio urgente que requer um movimento de reconhecimento, apropriação e identificação.

Uma das vertentes do Projeto Negras Palavras realizado pelo Museu Afro Brasil é exatamente esta: ler e refletir sobre o processo de leitura e apropriação das narrativas escritas de origem africana e brasi-leira. Para tanto, é urgente conhecer a produção de autores como Joel Rufino dos Santos, Júlio Emí-lio Braz, Rogério Barbosa de Andrade, Edimilson Pereira, Geni Guimarães, Elisa Lucinda, dentre tan-tos outros, todos eles comprometidos com o que podemos chamar de literatura negra destinada à criança e ao jovem. Nessas obras encontraremos personagens negras protagonistas de situações diversas, questões como os princípios que orien-tam a estética em culturas africanas, tal qual se lê em As tranças de Bintou; conflitos existenciais relacionados à vivência do preconceito, como o do narrador de Na cor da pele, de Júlio Emílio Braz.

É por meio desse contato que poderemos cons-tituir um repertório consistente, variado, que nos permitirá colocar ao lado das histórias já conhecidas por todos, essas que circulam desde sempre en-tre nós, mas que ainda ocupam tão pouco espaço. Vale dizer que não se trata de substituir, de negar o valor dessa literatura que atravessa os tempos, marcando as histórias de todos nós. Trata-se de am-pliar esse universo, garantir espaço, lugar e legiti-mação para o diverso, para as diferentes formas de olhar, ver e representar o mundo e o homem.

Afinal, como o contador, o leitor de histórias pre-cisa dominar plenamente a narrativa que escolhe para ler; e para tanto é preciso conhecer profunda-mente as personagens a ponto de imaginar suas

características físicas, seu jeito de falar, as expres-sões que lhe são típicas. Da mesma forma, o leitor de histórias precisa “conhecer” o lugar em que se passa a história, com seus perigos, seus fascínios. Afinal, é esse conhecimento que possibilita a fami-liaridade do leitor com a história que, nascida na tradição oral, agora se encontra registrada, escrita, mas precisa tornar-se novamente oralidade.

O leitor empresta sua voz, seus sentimentos, sua emoção ao texto e nesse movimento contagia o ouvinte, faz dele um semelhante, como nos diz Lima Barreto – o grande escritor brasileiro –, e com isso cria a possibilidade de estreitar laços, criar vínculos, pertencer.

Bibliografia

BETTELHEIM, Bruno. A luta pelo signficado. In: A psicanálise dos

contos de fadas. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980. (Literatura

e teoria literária; v. 24)

GNERRE, Maurizzio. Da oralidade para a escrita: processo de

“redução” da linguagem. In: Linguagem, escrita e poder.

3a ed. São Paulo : Martins Fontes, 1991. (Texto e Linguagem)

GUIMARÃES, Maria Flora. O conto popular. In: Brandão, Helena

Nagamine. Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel.

discurso político, divulgação científica. São Paulo : Cortez,

2000 (coleção Aprender e ensinar com textos, v.5)

RABASSA, Gregory. O negro na história e na literatura. In: O negro

na ficção brasileira: meio século de história literária. Rio

de Janeiro : Edições Tempo Brasileiro, 1965. (Biblioteca de

Estudos Literários, 4)

Neide A. de Almeida integra a equipe que coordena o

Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil. Socióloga, Mestre em

Lingüística Aplicada pela PUC-SP, é pesquisadora pelo Cenpec

– Centro de Estudos, Pesquisa em Ação Comunitária.

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Não. Ele não estava lá. Olhava que olha-va, procurava que procurava, mas ele não conseguia se ver na superfície translúcida daquele espelho. A sala estava lá, a mesa, a janela ao fundo, tudo, menos ele...

Caramba! Será que ele não existia? Existia, sim. Mas, pasme, aquele era um menino invisível.

Você sabe o que é uma criança descobrir-se invisível? Não. A gente pode imaginar, pode ter uma vaga idéia. Mas saber, saber mesmo, só sabe quem é. A dor da invisibilidade só sente quem tem. E aquele menino era invisível.

Claro que ele não era invisível para todos. A mãe conseguia vê-lo, amá-lo, compreendê-lo, e era para ela que ele sempre corria. “Mãe, eu quero me ver. Eu quero ser visto.” E ela, sempre generosa, dizia: “Calma, meu filho! Talvez isso seja porque você ainda é ninguém. Mas um dia você será alguém. Aí, o mundo inteiro vai poder vê-lo, reconhecê-lo”.

E o menino ficou matutando sobre aquelas pala-vras: “Um dia você será alguém. Aí, o mundo inteiro vai poder vê-lo, reconhecê-lo”.

E o que fazer para ser alguém? A própria mãe, que acreditava ter todas as respostas, disse-lhe o que ela imaginava ser a solução: “Para ser alguém você precisa estudar”.

– “Mãe, me põe na escola para eu ser alguém! Afinal, quem é ninguém jamais poderá se ver refle-tido no espelho.”

E lá foi o menino para o seu primeiro dia de aula e... Não. Ele não se via refletido no espelho escolar. Ele não estava lá também. Em nenhum espelho. Não estava no livro de matemática. O livro de His-tória não contava a sua história. O de língua pátria não falava a sua língua.

Nem a professora o enxergava. Ela beijava algu-mas crianças, acariciava, dava atenção, aplaudia suas respostas, caprichava na nota. Mas ele, não. Não estava lá.

O tempo passou. E, no mesmo dia em que se tornou adolescente, como num passe de mágica, ele deixou de ser invisível e se tornou... suspeito.

Suspeito crônico. Suspeito de todos os males que acometiam a comunidade em que vivia. De todos os males da sociedade.

E, no Brasil, se você é suspeito, já é culpado. Se não culpado do que suspeitam, culpado por terem suspeitado de você. E, finalmente, ele se tornou visível, na primeira página do noticiário policial.

Mas essa história não termina aí. Seria triste de-mais. Aquele menino tinha uma irmãzinha caçula. Tão invisível quanto ele. E, como ainda era criança, ela acreditava na existência de um velhinho que trazia presentes no dia de Natal. As outras crianças o chamavam de Papai Noel. Ela, porém, o conhecia por Baba Noel. Como as demais, ela escreveu uma cartinha para o tal velhinho.

E Baba Noel começou a ler as cartas das crian-ças: uma pedia boneca, outra queria bola, outra, bicicleta, aquela, computador, celular, vídeo game... E Baba Noel abriu aquela carta com um pedido es-tranho: “Para que eu possa me ver, me reconhecer, me identificar, eu quero uma jóia, uma jóia que me reflita: um espelho mágico”.

Só então Noel se deu conta de que não era a primeira carta que ele recebia com esse pedido. Havia outras, que ficaram esquecidas no fundo do baú de correspondências. Eram dezenas, centenas, milhares. Caramba! Talvez ele pudesse arranjar alguns espelhos mágicos, mas como arranjar espe-lhos para atender a tantos pedidos?

Teve, então, a idéia de fazer um único espelho. Um espelho gigantesco, em que todas as crianças invisíveis pudessem refletir-se. Baba Noel, então, procurou seu filho predileto, um artista sensível, culto, elegante, um escultor chamado M’Noel, e pediu-lhe que esculpisse, em ouro e no mais fino cristal, esse espelho mágico.

Foram anos de trabalho, muitos... Mas um dia o espelho mágico ficou pronto e todas as crianças, antes invisíveis, puderam ver seu reflexo e refletir sobre elas próprias... Aí, descobriram que são belas, belíssimas, ricas, poderosas, não ficam a dever nada a todas as demais crianças.

E o espelho mágico ganhou até um nome: Museu Afro Brasil. Olha só, a gente é lindo ou não é?

O espelho mágico Oswaldo Faustino

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(...) Então ele retirou um pedacinho de cada uma das vinte criaturas, misturou-os e, depois, soprando na mistura uma centelha de seu próprio hálito de fogo, criou um novo Ser, o Homem, ao qual deu uma parte de seu nome: Maa. Assim, esse novo ser continha, por seu nome e pela centelha divina nele insuflada, alguma coisa do próprio Maa Ngala.

Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis, segundo as quais todos os elementos do cosmo haviam sido formados e continuavam a existir. Instituiu Maa como guardião do universo e encarregou-o de zelar pela manu-tenção da Harmonia universal. Por esta razão é difícil ser Maa. (...) Hampa Té Bâ

Segundo a tradição Bambara, no Mali, o homem foi criado para fazer companhia ao criador. Em comum eles têm a palavra – transmitida na centelha por Maa Ngala – que, assim como o fogo, pode criar ou destruir. É difícil ser guardião do universo e manter a harmonia, tendo como ferramenta e aliado elemento tão potente como o fogo, ou a palavra.

Fagulhas e ostracismo:

Cristiane Moscou

à memória de João Cândido

As palavras contam histórias que, de acordo com a imaginação, lembrança ou interesse de quem conta, podem sofrer modificações – “quem conta um conto aumenta um ponto.” É a fagulha acendendo chamas ou causando incêndios.

Histórias podem ser contadas a partir de objetos e imagens, como acontece no Museu Afro Brasil. O núcleo História e Memória, por exemplo, reúne a reprodução de retratos de várias personalidades ne-gras brasileiras que tiveram destaque em diferentes áreas do conhecimento como as artes, arquitetura, medicina, engenharia, literatura, entre outras.

Essas imagens nos remetem a trajetórias que se relacionam entre si no Brasil e, não raro, em outros lugares do mundo, formando uma imensa colcha de retalhos. É o que se dá com o compositor e maestro Carlos Gomes, autor da mais famosa ópera brasileira, O Guarani, e amigo de André Rebouças, engenheiro e abolicionista. Há também o caso de Machado de Assis, que teve suas primeiras obras publicadas

João Cândido, o almirante negro e seus companheiros a bordo do encouraçado, 1910

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pelo primeiro editor de livros no Brasil: Francisco de Paula Brito. Em comum, todos esses homens são descendentes de negros africanos.

São percursos desconhecidos da maioria das pessoas, que muitas vezes não foram apropriados ou retransmitidos nas escolas, nos museus ou mes-mo na vida cotidiana. Muitos deles têm reconhecida contribuição à sociedade brasileira. Dão nomes a ruas, avenidas, escolas e até mesmo a cidades, mas a sua origem africana permanece oculta.

Muitas vezes já em vida, ou quando suas biografias foram retransmitidas, tais personalidades passaram por processos de branqueamento, ou seja, tiveram suas imagens modificadas, a fim de esconder seus traços reveladores de descendência africana e re-forçar a idéia de que o conhecimento não pode estar vinculado à origem negra.

A maioria das personalidades negras brasilei-ras tem sua história e imagem apagadas – como que destruídas por incêndios – relegadas ao ostra-cismo, como João Cândido, herói da Revolta da Chibata, às vezes mencionada nas escolas, mas nunca aprofundada. Neste momento acenderemos uma fagulha.

Para avaliar a importância da biografia que se segue, vale citar o grande escritor Gabriel Garcia Márquez:

“As histórias são como eu lembro para contar” (Viver para contar, 2003)

A data: 22 de novembro de 1910. Estava em-possado havia uma semana o novo presidente da República: Marechal Hermes da Fonseca, que, apoiado pelos militares, vencera as eleições tendo como adversário Rui Barbosa, que era apoiado pelos civilistas. Marujos da Marinha da Guerra tomam navios, alguns recém-comprados da Inglaterra, e apontam os canhões para o Rio de Janeiro e o Palácio do Catete, sede do governo.

As queixas dos revoltosos eram motivadas pelos baixos salários, má alimentação, mínima formação dada aos marujos e, principalmente, a exigência do fim dos castigos corporais com chibatas, vara de marmelo ou um chicote flexível com agulhas e pre-gos para tornar o castigo mais dolorido.

Abolidos com a Proclamação da República, os castigos corporais estavam previstos no Código da Marinha. Limitados a 25 golpes, muitas vezes chega-vam a 200. No dia anterior ao levante, o marinheiro Marcelino Rodrigues, tinha sido castigado com 250 chibatadas. Era o estopim do movimento, que já vinha sendo planejado. Vale informar que na Marinha brasileira grande parte dos marinheiros era negra e mestiça, portanto, esse castigo remetia aos tempos da escravidão. Além do mais, havia anos não era aplicado pela Marinha de outros países.

O principal líder desta revolta, João Cândido Felisberto, filho de um escravo, nascera em 24 de junho de 1880, em Rio Pardo, Rio Grande do Sul. Entrou para o Arsenal de Guerra daquele estado; aos 14 anos foi transferido para a Escola de Apren-dizes Marinheiros no Rio de Janeiro e, de lá, para a Marinha de Guerra.

O levante liderado por João Cândido, conhecido como Almirante Negro (ver box), durou seis dias, apavorando a população do Rio de Janeiro mas, após negociação com o governo brasileiro, os navios foram entregues pacificamente aos oficiais da Marinha. O governo brasileiro aceitou as reivindica-ções dos marinheiros, porém, dias depois, excluiu da Marinha quase mil homens sob o argumento de que eram “elementos não desejáveis”.

Em dezembro, por motivos desconhecidos, estourou nova revolta, desta vez dos fuzileiros navais. Controlou-se a rebelião, prisões foram feitas e quase quinhentas pessoas (ex-marinheiros, men-digos, prostitutas e vagabundos) tiveram como destino o norte do país para trabalhar na extração da borracha ou na construção da estrada Madeira-Mamoré. Muitos morreram fuzilados ou em conse-qüência dos maus-tratos.

Outros revoltosos de novembro tiveram que cumprir pena na ilha das Cobras. Em três dias, dezesseis dos dezoito presos estavam mortos. Foram expostos a uma mistura com cal que os sufocava e torturava. Desse massacre restaram dois sobreviventes: o soldado naval João Lira e o marinheiro de primeira classe João Cândido.

Enviado para o Hospital dos Alienados, dirigido pelo médico negro Juliano Moreira em 1911, foi absolvido das acusações em 1912. Sem sucesso,

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A música “Mestre-Sala dos Mares”, de Aldir Blanc e João Bosco, faz referência a Francisco do Nascimento, o Dragão do Mar, personalidade importante na história cearense no século XIX e na resistência à escravidão. Os compositores também recuperam um termo usado pela imprensa da época da Revolta da Chibata: referiam-se a João Cândido como Almirante Negro. Por imposição da censura na ditadura militar a expressão foi substituída por navegante negro:

Versão pós-censuraHá muito tempo nas águas da GuanabaraO dragão do mar reapareceuNa figura de um bravo feiticeiroA quem a história não esqueceuConhecido como navegante negro(...)

João Cândido tentou entrar para a Marinha Mercante, morar na Argentina e Grécia; também recebeu convite para ficar na Inglaterra. Não conseguiu se adaptar fora do Brasil. Foi trabalhar no mercado da pesca da Praça XV, no Rio de Janeiro, onde permaneceu até os anos 40. Morreu em 1969, em decorrência de uma infecção no estômago.

Tramita hoje, na Câmara dos Deputados, uma proposta de reconhecimento e anistia dos mari-nheiros que participaram da Revolta da Chibata.

Esta trajetória de vida surpreende e surpreende também perceber como a maioria dos heróis negros é relegada ao esquecimento ou à banalização, ainda que a história de um marinheiro possa se entrelaçar com a história do médico negro baiano Juliano Moreira. Trajetórias que, por mais brilhantes que tenham sido, continuam desconhecidas pela maioria das pessoas, dificultando o processo de identifi-cação da população com personalidades negras brasileiras destacadas nas mais diversas áreas.

Histórias de vida de brasileiros como João Cân-dido são fagulhas que precisam se manter ace-sas, para que surjam imensas chamas, trazendo luz à nossa História.

Bibliografia

HAMPA TÉ BA, Amadou. A palavra, memória viva na África.

História Geral da África. São Paulo : Ática/Unesco, 1982.

MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata. Rio de Janeiro : Edições

Graal, 1986.

ALMEIDA, Silvia Capanema. O Almirante Negro: glória a uma luta

inglória. Revista História Viva, n. 27, p. 74-80, jan., ano III, 2006.

Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 9, abr., ano 1, 2006.

Cristiane Moscou é educadora do Núcleo de Educação do

Museu Afro Brasil. Graduanda em Ciências Sociais pela Univer-

sidade de São Paulo e integrante do Movimento Hip Hop.

Versão anterior à censuraHá muito tempo nas águas da GuanabaraO dragão do mar reapareceuNa figura de um bravo marinheiroA que a história não esqueceuConhecido como almirante negro(...)

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... a fala humana anima, coloca em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas.

A. Hampa Té Bâ

Práticas de

Viviane Lima de Morais

oralidade

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Inspirados por tradições orais africanas, nas quais o aprendizado se dá na coletividade, no exato ins-tante em que se fala e que se ouve, nos reunimos, À Sombra do Baobá, para descobrir ou reanimar forças que estavam estáticas em nós.

Nosso baobá, como toda velha árvore, estava carregado de memórias, projetando sobre nós uma sombra incomensurável capaz de dar sentido às nossas superstições, nossos ditos populares, nossos sotaques, nossas cores. Ali, ao abrigo da luz ofuscante do sol da modernidade, da pressa dos nossos dias, paramos algumas horas para nos olhar e nos ouvir.

O Museu Afro Brasil foi o nosso baobá. E aquela África que parecia tão distante de nós, pelo imenso Oceano Atlântico que nos separa, ou por ainda acharmos que toda a história que nos liga a ela se restringe ao período da escravidão, veio nos en-contrar para trazer nossos avós, pais, infâncias e outras histórias. A África se tornou um lugar tão real quanto mítico, um lugar onde podemos buscar e deixar nossas músicas, instrumentos, palavras, comidas, gestos, onde podemos nos abastecer de sentidos e fantasias. E nestes encontros, à sombra do baobá, o elo estabelecido entre África e Brasil foi firmado pela oralidade.

Sempre pensamos nela como o som que sai da boca, o que é vocalizado, a voz. Mas a voz é apenas um elemento desta prática humana pre-sente em todo o corpo e fora dele. Nos gestos que fazemos, nos objetos que tocamos e rituais que executamos. Cada som e cada gesto gravam

nos corpos e nos objetos a memória produzida naquele instante. E essa memória faz parte de um momento da oralidade.

Equivocadamente, quando pensamos as socie-dades tradicionais africanas, limitamos a oralidade aos momentos e espaços ritualísticos. Entretanto, se expressa nos seus mais amplos sentidos.

Os rituais estão presentes tanto em sociedades modernas quanto em tradicionais. E, semelhante às culturas modernas de lá e de cá, estes ritos não estão condicionados apenas ao universo religioso. Temos em nosso mundo moderno diversos rituais que não se restringem ao espaço da religiosidade, ainda que contenham elementos deste.

No cotidiano de povos tradicionais africanos há rituais, religiosos e não religiosos, com a uti-lização de um elemento material da oralidade que é a máscara ou o costume de mascarar-se. Mascarar-se, entre Gueledés, Dogons etc., diz res-peito à possibilidade de se revestir da ancestralida-de invocada para aquele momento sociocultural. Por essa razão, as máscaras não se limitam a uma cobertura do rosto ou da cabeça, mas sim de toda a extensão do corpo daquele indivíduo, que sairá da sua condição física e humana para dar lugar às forças da tradição que ele representa. A máscara, portanto, é um dos elementos da perfor-mance oral que se compõe também da música, da dança, da interação com os ouvintes e de todos os ensinamentos anteriores e posteriores que concre-tizaram esse momento. Essas máscaras mantêm uma estrutura estética tradicional, que guarda em si diversos processos ritualísticos e na qual a ora-li dade está presente desde a sua concepção e confecção até o seu uso.

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Ao rememorar nossas tradições e rituais de ora-lidade, reencontramos nossos velhos contadores de histórias, um contraponto a uma prática moder-na, em que o contato com a história, quando existe, em geral, se dá por meio da leitura, numa atividade individual e solitária. Aproveitando o fato de estar-mos embaixo do baobá, uma árvore mitificada, que metaforiza de maneira poética a relação ancestral entre África e Brasil, passamos a refletir sobre a escrita e a oralidade, e como estes elementos se relacionam em sociedades tradicionais. Um modo de compreendermos nossas máscaras, que não são materializadas como entre os povos africanos, mas que também nos revestem de uma ancestrali-dade própria do ato de contar histórias.

A escrita é parte da oralidade. Segundo uma concepção malinesa, o homem é um conjunto de vinte forças que vibram e se expandem produ-

zindo inicialmente pensamentos, depois sons e finalmente palavras. Poderíamos incluir a escrita como uma destas forças que, segundo a história da humanidade, surgem após este processo inicial de expressão?

Esses elementos que se inscrevem sobre super-

fícies variadas auxiliam o homem na compreensão do mundo e de si, registrando seus pensamentos, sons e palavras.

O que em nossa sociedade reconhecemos oficialmente como escrita não se aplica para estes povos. Pois, nos seus registros, representa-se graficamente não a língua, a forma do som, e sim o modo como se vive e compreende o mundo.

Estes registros se constituem por meio de desenhos ou símbolos que não podem ser lidos de maneira literal já que apresentam concepções de mundo e sociedade extremamente complexos e específicos destas culturas. Estas inscrições, gravadas, pintadas ou esculpidas se apresentam em suportes diversificados, que nem sempre têm como finalidade guardar um registro para posteridade, como observamos na concepção de escrita ocidental.

Cada suporte definirá um tipo de registro da memória e uma necessidade de comunicação que se dá em diversos âmbitos do cotidiano: o tecido, as paredes ou portas das casas, as máscaras, o corpo (pinturas e escarificações), o chão, dentre outros. Apesar de serem de natureza e uso dife-renciado todos são suportes perecíveis. Por isso, há a necessidade de transmissão oral do conhe-cimento. Enquanto os registros escritos perecem, a memória perdura para a confecção de novos registros em uma prática hierárquica e geracional de ensinamento das tradições.

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No entanto, ainda que estes registros pareçam estáticos, não podem ser lidos desta maneira. Essa escrita, nestes casos, também deve ser compre-endida como uma força vibrante, principalmente quando analisamos os suportes escolhidos para a sua exposição.

Um corpo pintado ou escarificado, quando em movimento de caminhada ou de dança, incita-nos a falar sobre ele e com ele. Seus movimentos trans-mitem a vibração do que foi escrito naquele suporte. As pinturas corporais ou as escarificações, bem como as máscaras são colocadas em espaços visí-veis para comunicar, para serem vistas, para serem lidas. E assim, unindo o gestual com os acessórios e as inscrições, o corpo fala e convida a falar.

Os tecidos também são móveis e maleáveis, feitos para serem expostos sobre o corpo, sentidos e lidos com os olhos, com os pés, produzidos nas portas das casas em meio aos diálogos cotidianos dos espaços públicos e coletivos. A escrita se inicia no desenho ziguezagueado do entrelaçamento de fios, no dinamismo obtido por essas linhas que ex-pressam a força vital da composição que também está na fala, na dança e na silhueta das estatuetas. A vibração contida nessas linhas recupera o movi-mento contínuo do tear manual, que determinará também a escolha das formas que serão impressas no tecido e, inclusive, o uso que cada sujeito fará daquele objeto.

Nas casas ou portas inscritas podemos obser-var o uso calculado de um espaço de comunicação oral. O que se escolhe para expor, para quem e com que finalidade. As inscrições são feitas do lado de fora destes espaços para todos que passam e que chegam, comunicando, informando ou advertindo, abrindo e fechando sua mensagem. As portas são,

em si, espaços de passagem que dividem lu-gares e pessoas, permitindo ou não o contato entre eles. Mas, ao serem utilizadas como um suporte para a escrita, propiciam um elo entre o escritor e o espectador, um elo que se fará no âmbito da oralidade, do questionamento, da compreensão do outro.

Bibliografia

HAMPA TÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. História Geral da

África. São Paulo : Ática/Unesco, 1982, v.1.

ZUMPTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo :

Hucitec/EDUC, 1998.

CARRÉS D´IMAGES. Masques: espirits d Afrique. Photografies

de Thomas Renaut; Textos de Marie-Aude Priez. Paris :

ASA Éditions, 2000.

Viviane Lima de Morais Educadora do Núcleo de Edu-

cação do Museu Afro Brasil. Mestre e Doutoranda em História

Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Uma jovem mulher lê uma história para um grupo reunido em torno de uma mesa

de vidro. Todos estão sentados no chão, têm os olhos centrados na mulher que lê.

Eu também a observo atentamente, vejo o perfil da leitora. De repente, no exato

momento em que se dá a transformação que encaminha a narrativa para o final,

apagam-se as luzes da biblioteca; continuamos olhando e ouvindo a leitora que

agora passa a contar o texto. Quando se anuncia o desfecho da narrativa, lenta-

mente as luzes se acendem e iluminam o perfil da contadora. A magia da história

coincide com a mágica experiência vivida pelo grupo.

(cena flagrada em uma das oficinas À Sombra do Baobá, no Museu Afro Brasil)

Neide A. de Almeida

Quem conta o conto,

conta como o conto foi...

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Em um dos momentos da série À Sombra do Baobá, Projeto Negras Palavras, nos dedicamos a reunir e analisar histórias de origens diversas a res-peito de um mesmo tema, de um mesmo conflito. Tomamos como ponto de referência um conto bra-sileiro de origem africana: A menina e o quibungo. Nesta história uma menina transgride um limite im-posto pela mãe: “criança não deve sair sozinha à noite”. A punição para tal transgressão é tornar-se alvo e vítima do quibungo.

Como se vê, situação e conflito semelhantes aos encontrados num conhecido clássico da lite-ratura infantil, Chapeuzinho Vermelho. Mas a his-tória apresentada por Henriqueta Lisboa, recolhida por Nina Rodrigues, não é a única que aborda o mesmo tema de forma tão semelhante, há outros exemplos, dentre os quais discutimos também O bicho Pondê, recolhido por Lindolfo Gomes; A falsa avó, registrada por Ítalo Calvino; Fita verde no cabelo, de Guimarães Rosa, e dois contos afri-canos: Duula, a mulher canibal e A mãe canibal e seus filhos, o primeiro recontado por Rogério Barbosa e o segundo por Júlio Emílio Braz.

Ao reunir esse conjunto de histórias é possível observar alguns aspectos, normalmente diluídos na concepção eurocêntrica que orienta nosso olhar.

Um primeiro elemento que merece destaque é que, ao contrário do que parece, as histórias surgem no mundo inteiro “nas feiras populares de Bagdá, nos oásis que reuniam os beduínos, nas ágoras gregas, nas savanas africanas, nos feudos da Idade Média ou entre os índios das Américas”, como diz Flávio Moreira (p. 14). Ou seja, criar, contar e ouvir histó-rias não é privilégio de um povo, mas prática típica do ser humano, desejoso de explicar fenômenos naturais, sentimentos inexplicáveis, estabelecer limites, garantir que as regras de sobrevivência e convivência sejam respeitadas, interiorizadas e atuem não apenas na razão, mas também no inconsciente, no imaginário e na emoção do homem. Por isso mesmo, essas histórias quando compa-radas revelam ao leitor elementos universais.

Mas as histórias têm também suas singulari-dades, reveladoras das características das diferentes culturas, dos costumes das comunidades em que foram produzidas. O quibungo, animal mítico de origem africana, lembra um lobo, mas se parece também com um homem. Um traço marcante dessa figura é que ele tem duas bocas: uma que usa para se alimentar e outra, localizada nas costas, que é utilizada para devorar crianças. Semelhante, então, ao lobo mau tão conhecido dos contos de fadas, o quibungo remete o ouvinte também ao “homem

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do saco”, ao “bicho papão”, personagens típicos de nossa cultura popular, todos eles criados para garantir determinadas condutas infantis. Nas his-tórias africanas, o canibalismo é invocado como um exemplo da permanente tensão vivida pelo homem: fazer parte da natureza e da cultura simul-taneamente. Duula torna-se canibal durante uma das migrações forçadas, vividas por famílias soma-li. Ao longo da travessia dos desertos, as pessoas morrem e a única forma de sobreviver é alimentar-se dos restos dos que ficam pelo caminho. Assim, a menina desenvolve o gosto pela carne humana e passa a representar uma ameaça para os demais humanos. Da mesma forma, os filhos são afas-tados da mãe canibal pelo pai que quer garantir a integridade das crianças, mas o desejo de conhe-cer os pais coloca os filhos em perigo.

É interessante observar que nas duas histórias africanas, diferente do que acontece nas demais, é recorrente a presença do pai e da mãe e de dois irmãos. Os cenários também mudam conforme a cultura que produz a narrativa: a floresta, o deserto, uma aldeia. Entretanto, em todos os casos, trata-se sempre de lugares típicos e, de certa forma, também universais, basta mencionar uma floresta, um deserto, uma aldeia para que todos imaginem esse espaço.

Nas histórias brasileiras são encontradas marcas

que remetem o leitor à origem africana: nomes como o quibungo, o bicho Pondê e fórmulas que articu-lam a narrativa e que, na oralidade, são utilizadas

para envolver os ouvintes, garantir o interesse e a participação da platéia na história, como se dá com as repetições de determinadas expressões em diversos momentos do texto.

A análise desses elementos e de tantos outros constitui um aspecto importante no processo de apropriação das histórias, seja para contar, seja para ler. Daí a necessidade e a importância de ingressar no universo das narrativas africanas, que hoje ganham espaço em nosso mercado editorial, e paralelamente conhecer as inúmeras histórias da cultura popular brasileira, e em todas elas encon-trar o que há de universal e que provoca não só a imediata identificação do ouvinte, mas também o que elas trazem de singular e que permite, por meio do encantamento, uma aproximação com culturas que são, ao mesmo tempo, tão familiares e tão desconhecidas.

Bibliografia

BETTELHEIM, Bruno. A luta pelo signficado. In: A psicanálise

dos contos de fadas. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980.

(Literatura e teoria literária; v. 24)

GNERRE, Maurizzio. Da oralidade para a escrita: processo

de “redução” da linguagem. In: Linguagem, escrita e

poder. 3a ed. São Paulo : Martins Fontes, 1991. (Texto

e Linguagem)

MOREIRA, Flávio (Org.). A infância da ficção. In: Os grandes contos

populares do mundo. Rio de Janeiro : Ediouro, 2005.

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O Projeto Negras Palavras pretende iniciar um espaço coletivo sistemático de encontros para ouvir e contar histórias. As oficinas À Sombra do Baobá constituem o início desse processo.

Os contadores de histórias são personagens que marcam a vida dos homens desde os tempos mais remotos. Alguns deles se tornaram famosos e atravessam os séculos na memória dos povos. Há tam-bém uma outra dimensão dessa experiência que, quase sempre, se localiza nas relações mais cotidianas e familiares. São os pais, mães, avós as principais figuras lembradas quando se questiona a respeito dos contadores que marcaram as histórias de cada sujeito. Exemplos disso são os depoimentos de dois au-tores de origem negra que escrevem literatura sobre o negro, como o de Joel Rufino:

“Um outro fator de influência foi minha avó, analfabeta, mas que era como a Vó Totonha, de José Lins do Rego. Vocês conhecem a persoangem, que ia de fazenda em fazenda, contando histórias pros meni-nos? Ela era da casta dos contadores de histórias. Isso vem da África, da África ocidental. Minha avó era uma Griot, contava histórias, muitas histórias...” (Trecho da entrevista publicada em Garcia, Pedro Benja-mim; Dauster, Tânia. Teia de autores. Belo Horizonte : Autêntica, 2000, p. 37.)

e o de Rogério Andrade Barbosa:

“Cresci rodeado de livros. Meu pai é professor e escritor. Tem mais de cem livros publicados, entres eles, gramáticas, dicionários e livros didáticos. É professor de Latim, Português e Francês. Hoje ele tem oitenta anos e ainda se relaciona muito com livros. Minha mãe, embora tenha apenas o quarto ano primário, lê muito, talvez por influência de meu pai e de todos aqueles livros lá em casa. Os dois eram ótimos conta-dores de histórias. Muito antes de eu aprender a ler, eles já inventavam personagens.” (idem, p. 133)

cada um de nósOs contadores de histórias de

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Os depoimentos dos participantes da oficina Rituais de apropriação: o ouvir, realizadas no Museu Afro Brasil, reforçam esses dados:

“Voltei com nitidez ao ‘primário’, consegui, no caminho de volta pra casa, visualizar colegas e professores, o pátio da escola, a saída... o uniforme..., a minha ‘Pró’ como se diz na Bahia, foi uma saudade boa, realmente ouvir histórias acaba por contar nossa história”.

Nádia Rosa

“Percebi que o compartilhar de uma memória tão íntima despertou minha atenção aos meus refe-rencias de histórias e da própria história de minha vida. Lembrei-me das histórias que minha mãe contava (Festa no Céu, a da origem da mandioca, de macaco sapeca....) e que, conforme fui crescendo, foram se modificando com a adolescência, os tempos do colégio e o período da ditadura, que me marcou desde cedo por ter deixado meus pais (meus primeiros heróis) tão frágeis e humanos. Se por um lado minha mãe trazia estas referências deste passado próximo, meu pai quase as negava, só contava histórias engraçadas, de situações que aconteceram com ele e seus amigos. (...)

Creio que as histórias que ouvimos nos pertencem de alguma forma e orientam o que nós somos e como atuamos no mundo.”

Gabriela Lieiras

“Essa experiência trouxe a minha infância. Com certeza lembrei-me exatamente o dia em que minha avó contou que via o saci-pererê sob uma árvore. Era tudo tão real...”

Amanda Albornoz

“Ah! Foi maravilhoso! Num primeiro momento, fiquei um tanto presa às histórias das cinderelas, belas adormecidas, chapeuzinho vermelho etc., tentando recordar-me qual dessas histórias havia escutado na infância e qual tinha me marcado, Entretanto, minhas memórias não traziam essas histórias. Em minhas memórias estavam presentes as histórias contadas pela minha avó. Foi simplesmente maravilhoso recor-dar e poder partilhar um pedaço de mim, da minha família, da minha cultura, desse patrimônio que não está publicado nos livros. São histórias que nascem do imaginário, da vivência, experiência popular que têm entre seus objetivos, educar, criar e manter valores, culturas e tradições. Para mim foi espetacular, em especial pelo fato dos participantes se recordarem das histórias de domínio popular.”

Claudia Novais

“A minha irmã mais velha tinha um hábito, que até hoje ela tem com meus sobri-nhos. Lá em Minas, a gente tinha uma cama de casal e todos os pequeninos dormiam juntos e ela dormia com a gente. Então, antes de dormir ela contava histórias, princi-palmente na época de inverno... Ela contava histórias bíblicas (...) e toda vez era aquilo. Era uma coisa engraçada, porque mesmo depois, quando a gente ia para a missa e ouvia as mesmas histórias contadas no evangelho, não eram do mesmo jeito que ela contava, não era da mesma forma que a gente via aquele velhinho de barba branca como ela descrevia. E mesmo aquela coisa dos poucos cobertores, a gente tudo junto, tudo escutando. Eu posso até ouvir ela contando, você adormecendo, querendo conti-nuar prestando atenção, mas você não dava conta, eu sempre acabava adormecendo. Era muito bom.”

Rosana Dias Côrrea

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“Minha mãe sempre foi uma grande contadora de histórias, até hoje ela é, ela está com 84 anos e conta histórias. Nós nascemos na fazenda, não tinha luz, não tinha TV, não tinha nada. Em casa, era a mesma história que a Lourdes conta: meu pai punha uma chapa no chão, aquelas brasas, todo mundo em volta. Mas era tanta história... Todo dia; era sagrado. E na fazenda era como uma colônia, as pessoas se reuniam para contar histórias. Minha mãe contava aquelas histórias bonitas que até hoje eu gosto, ela misturava com as histórias que a gente ouve hoje, e tinham também aquelas histórias que eu tenho medo até hoje... mas era verdadeiro... Eu adoro contar histórias, eu conto história e canto pros meus filhos. Eu ouvi muito essas histórias e no vestibular eu narrei uma história, mas depois me deu uma tristeza, em plena prova eu comecei a chorar. Eu pensei ‘Meu Deus será que isso aconteceu mesmo?’ Eu fui longe, fui na África, eu contei uma história triste, e me convenci dela...”

Isabel de Fátima Estevão Pereira

“Tem uma história que minha mãe contou pra mim, que a mãe dela contou pra ela, que a avó dela contou e assim por diante. É a história ‘Josefina e a cabaça’. Era uma cidade muito próxima de onde a mi-nha avó morava e avó da minha avó e assim por diante; e tinha uma menina que se chamava Josefina, que morava numa casa e no alto do monte, lá longe, tinha uma planta que chamava cabaça e diziam que essa cabaça era mágica. O pai da menina proibia que ela fosse até aquele lugar. Como era muito travessa, ela foi até lá, pegou um graveto e começou a escrever naquela cabaça: ‘Josefina é muito bonita’, Josefina é muito bonita e inteligente’, ‘Josefina é muito bonita, inteligente e tem a perna fina’. E cada vez que ela escrevia na cabaça com o graveto, a cabaça ia crescendo, ia crescendo, ia crescendo cada vez mais. Até que um dia essa cabaça, de tão grande que se tornou, começou a rolar atrás da Josefina e cantava uma música que é mais ou menos assim:

Ô JosefinaÔ maranataMandacaruMandou te dizer que até onde você for Eu vou te comerEu vou te comerEu vou te comer(Eu não sei porque, mas ficou essa música na minha cabeça até hoje). E aí ela foi correndo, correndo, correndo até que uma hora essa cabaça se quebrou e se espalhou em

milhares de pedaços lá pela região e até a sementinha cantava pra ela:Ô JosefinaÔ maranataMandacaruMandou te dizer que até onde você for Eu vou te comerEu vou te comerEu vou te comerE aí dizem... Minha mãe diz que é a história do berimbau. É uma história que me marcou muito.

Maria Neusa Valverde

“Minha infância está repleta de histórias. Era um tempo de alegria, em que eu me sentia segura ao lado de todos os meus familiares (hoje estão todos desagregados). Essa provocação trouxe toda essa gente para perto de mim novamente e eu me senti amada como no passado, do modo que uma criança necessita.”

Nylda Rodriguez

E você? Quem foi o contador de histórias de sua infância? Você tem uma história que considerada a sua preferida, a mais marcante?

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Os comedores de palavrasEdimilson de Almeida; Rosa Maria Margarida de Carvalho. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2004.

Trata-se da história de um garoto, filho de um contador de histórias. Depois da morte do pai, o menino decidiu morar no País dos Bichos Comedores de Palavras, pois não percebia mais seu lugar no mundo, achava que não tinha a mesma arte de seu pai para contar histórias. Assim, desiludido, ele pas-

sa por várias aventuras até encontrar os bichos comedores de palavras, mas estes não conseguem comer todas as palavras que o garoto fala, pois ele conta muitas histórias, uma vez que tinha passado por muitas aventuras. Então, renegado pelos monstros, o garoto encontra um velho sábio, que o faz perceber que ele também é um contador de histórias, tão bom quanto seu pai fora. E, assim, o garoto sai pelo mundo contando suas histórias. (Ramon Koelle)

Sugestões de leitura

Não há como discordar de Pennac. Como julgar alguém por suas escolhas de leitura? Que parâmetros nos permitem considerar essas escolhas de leitura mais ou menos adequadas? De maneira nenhuma temos essa pretensão.

Ocorre, entretanto, que sempre a organização de um curso, uma oficina ou uma publicação de qualquer natureza implica escolhas orientadas por critérios subjetivos. Apresentamos, a seguir, alguns dos livros que consideramos importantes para aqueles que estejam preocupados em conhecer e abordar histórias africanas e histórias brasileiras de origem africana.

Nesta seção, o leitor encontrará não exatamente sinopses, mas apresentações, comentários, considerações e indicações a respeito de textos que circularam em nossas rodas de histórias.

“As nossas razões para ler são tão diferentes como as nossas razões para viver...” Daniel Pennac

A origem da morteIn: Sikulume e outros contos africanos. Adap. Júlio Emílio Braz; Ilustr. Luciana Justiniani. Rio de Janeiro : Pallas, 2005.

Ao saber que um reles inseto fora escolhido para levar uma mensagem da Lua aos homens, a lebre, sempre querendo ser a mais esperta, passa uma rasteira no inseto e toma o seu lugar. Atrapalhada como sempre, ela não consegue passar a mensagem original aos homens. Quando retorna contando o seu

feito, a lua furiosa dá-lhe uma paulada no focinho. Por isso, a lebre tem um focinho rachado.Uma fabúla simples e objetiva na moral passada: “Nunca tente ser mais esperto que os outros, você pode sair com o nariz rachado”. (Avelina Machado)

Sundiata, o Leão do MaliRecontada por Will Eisner. Trad. Antonio de Macedo Soares. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2004.

Nesta versão em quadrinhos, Eisner reconta a saga de Sundiata, personagem real, fundador do Império Mali na África por volta do século XIII. Depois de lutar contra a opressão do povo de Sasso, comandado por Sumanguru, o Leão do Mali vence a batalha de Kirina. Esta epopéia já foi contada em versos, baladas e cantigas; mitificada, tornou-se lenda. Do poderoso príncipe dos malinqués, chegou-nos sua coragem,

sua bravura e sua persistência. Muitas são as versões desta saga. Esta é mais uma delas... (Luiz Carlos dos Santos)

Para conhecer uma outra versão da mesma história, leia também: Sundiata ou A Epopéia Mandinga. Djibril Tamsir Niane. Tradução Oswaldo Biato. São Paulo : Ática, 1982.

As tranças de BintouSylviane A. Diouf; Ilustr. Shane W. Evans. São Paulo : Cosac & Naify, 2004.

Bintou é uma menina fascinada por cabelos e tem um sonho: usar tranças. Um dia ela descobre, contado por sua avó, o motivo pelo qual as meninas de seu povoado só podem trançar o cabelo a partir de certa idade. E, depois de, bravamente, ganhar o direito à realização de um sonho, sua avó com sabedoria e sem ferir a tradição do seu povo deixa a neta feliz. Esta é uma história que recupera o sentido da tradição

e do saber dos mais velhos em direção aos mais novos. (Ana Lucia Lopes)

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O chamado de SosuMeshack Asare. Ilustr. do autor. Trad. Maria Dolores Prades. São Paulo : Edições SM, 2005. Sosu percebe a tempo o início de uma forte tempestade que pode destruir a aldeia à beira-mar onde vive, no oeste da África. Aflito e sem poder andar, resolve avisar o seu povo do perigo iminente com o toque do tan-tã. Mas, para chegar até o instrumento, Sosu precisa enfrentar o temporal. Será que o vilarejo vai ser salvo? Essa é uma história que reafirma valores como aceitação e a superação de limites.

Ela apresenta um menino que viu sentido em enfrentar enormes desafios. O que o moveu? (Ana Lucia Lopes)

A menina e o quibungoIn: Literatura oral para a infância e a juventude: lendas, contos & fábulas populares no Brasil. Org. por Henriqueta Lisboa; Pref. e ilustr. Ricardo Azevedo. São Paulo : Peirópolis, 2002.

Você sabe o que é um quibungo? Se não sabe, o que você imagina que seja? Esses foram as primeiras perguntas feitas aos participantes das oficinas À Sombra do Baobá, antes da leitura da história. Trata-se de um delicioso conto que compõe a coletânea Literatura oral para a infância e a juventude. Nesta mes-

ma obra, você poderá ler também O bicho Pondê, entre muitas outras fábulas, lendas e contos populares. A história A menina e o quibungo provavelmente fará com que o leitor se lembre de outras histórias de diferentes origens. Esta versão é de origem africana, mas também traz marcas explícitas de que passou por um processo de apropriação brasileira. É uma história envolvente. Quem ouviu, gostou, apropriou-se dela e saiu por aí contando a sua versão... Você pode encontrar este conto também no site http://jangadabrasil.com.br/maio/im90500c.htm (Neide A. de Almeida)

O bicho PondêIn: Literatura oral para a infância e a juventude: lendas, contos & fábulas populares no Brasil. Org. por Henriqueta Lisboa; Pref. e ilustr. Ricardo Azevedo. São Paulo : Peirópolis, 2002.

Esta é a história de uma menina que sempre se distraía ao sair para fazer os “mandados” e foi avisada de que o Pondê a pegaria e mataria. Ela, como sempre saiu à noite, se distraiu e foi pega, tendo que pedir ajuda aos familiares que não a atendiam. No final, só a mãe, “abrindo uma folha da porta”, consegue tirá-la das mãos do bicho, que ficou no terreiro esperando-a sair, quando seus irmãos, ao amanhecer, o mataram e a menina aprendeu a não se distrair mais. Este conto lembra a história do quibungo, Chapeuzinho Vermelho (....) e também dos Três porquinhos. A expressão “a meia folha da porta” dá um sabor diferente à história, pela poesia que contém. As palavras que o autor usa, que a gente não está acostumada a usar, que a gente acha que o outro não vai entender é que dão sabor, que fazem o outro ficar com vontade de ler. (Nadia Rosa)

O beco do pilãoNaguib Mahfuz. Trad. Paulo Daniel Farah. São Paulo : Planeta do Brasil, 2003. Trata-se do livro “O Beco do Pilão”, do escritor egípcio Naguib Mahfuz. Logo no início do romance, o poeta e contador de histórias, que durante décadas recordou aos clientes do café do beco (o Café do Kircha), no Cairo, as aventuras de heróis tradicionais e histórias de procedências diversas, é expulso do local para marcar a rejeição do passado e um ato de “modernização”: um rádio é instalado no café, que não pode

mais acomodar o poeta/contador de histórias.Essa aparente impossibilidade de coexistência entre o novo e o antigo, como se cada um devesse decidir a que lado pertence, pode ser contraposta pelo contar e ouvir histórias, tradição tão cara à África (e ao Egito antigo e con-temporâneo como parte dela). (Paulo Farah)

Duula, a mulher canibal: um conto africanoRogério Andrade Barbosa; ilustr. Graça Lima. São Paulo : DCL, 1999.

Duula, no passado uma jovem bonita, torna-se canibal, durante uma das migrações forçadas vividas por famí-lias somali. Ao longo da travessia dos desertos, as pessoas morrem e a única forma de sobreviver é alimentar-se dos restos dos que ficam pelo caminho. Assim, a menina desenvolve o gosto pela carne humana e passa a representar uma ameaça para os demais humanos. Este é um conto africano que fará

o leitor se lembrar de muitas outras histórias ouvidas desde a infância, mas desta vez você terá a oportunidade de entrar em contato com um pouco do universo e do imaginário daquele continente. Além disso, o livro é belamente ilus-trado; oferece, desse modo, também a possibilidade de aproximação com a estética africana. (Neide A. de Almeida)

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A oficina 1, Rituais de iniciação: o ouvir, proporcionou aos participantes a oportunida-de de ouvir histórias e iniciar uma reflexão a respeito da importância da narrativa oral na preservação da memória e na construção do imaginário e da identidade:- Contação de histórias, Oswaldo Faustino- Visita orientada ao acervo, Viviane Lima de Morais e Cristiane Bernardino Dias

(Cristiane Moscou)- Palestra A palavra falada: o som e o sentido humanos, Luiz Carlos dos Santos- Roda de depoimentos: o contador de histórias de cada um de nós

Oficina 1

No seminário Histórias, memórias e identidades discutiu-se o papel e a importância da preservação da tradição oral e da prática de ouvir, contar e ler histórias para a construção do imaginário e da identidade. A mesa foi integrada por Gilberto Pedroza, Oswaldo Faus-tino, Luiz Carlos dos Santos e Neide A. de Almeida.

Na segunda oficina, Quem conta um conto..., foram abordados aspectos envolvidos nos processos de contar e ler histórias, com ênfase para a identificação de elementos universais e de singularidades em versões escritas de contos da tradição oral. - Visita orientada ao acervo, Viviane Lima de Morais e Cristiane Bernardino Dias

(Cristiane Moscou)- Palestra Ler e ouvir: um exercício de pertencimento, Neide A. de Almeida- Roda: As histórias de cada um

Oficina 2

Seminário

Roteiro

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Créditos

Curador

Emanoel Araujo

Concepção e Coordenação Editorial

Ana Lucia Lopes Neide Aparecida de Almeida

Editoria e Produção

Neide Aparecida de Almeida

Núcleo de Educação

Coordenadora

Ana Lucia Lopes

Consultora em Arte Educação

Maria da Betânia Galas

Assistentes

Neide Aparecida de AlmeidaRenata Felinto

Educadores

Alexandre Araújo Bispo Alexandre da SilvaClaudia Teles dos SantosCristiane Bernardino DiasGlaucea Helena de BrittoJuliana Ribeiro da SilvaMaria Aparecida Oliveira LopesMaria das Graças Quaresma dos SantosMilton Silva dos SantosRenato Araújo da SilvaSarah Rute BarbozaSolange Nascimento ArdilaVanicléia Silva SantosViviane Lima de Morais

Fotografia

Núcleo de Educação

Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica

Via Impressa Edições de Arte

Pré-press e Impressão

Garilli Gráfica e Editora

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