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Previdência Social e populações afro-brasileiras

Gabriel O. Alvarez | Luiz Santos

Tradições Negras,Políticas Brancas

Copyright © Ministério da Previdência SocialTodos os direitos reservados.

1ª edição1ª impressão (2006): 5.000 exemplaresISBN

Distribuição gratuitaEsta obra faz parte da “série especial”da Coleção PREVIDÊNCIA SOCIAL

É permitida a reprodução parcial ou total desta obra desde que haja prévia autorização por escritodo detentor de copyright e dos autores, exceto quando para fins de resenha e divulgação.Proibido qualquer tipo de comercialização.

Ministério da Previdência SocialSecretaria de Políticas de Previdência Social

Tradições negras, políticas brancas: previdência social e populações afro-brasileiras /Gabriel Omar Alvarez, Luiz Santos. - Brasília: Ministério da Previdência Social –MPS, 2006.224 p. : il. – (Coleção Previdência Social. Série especial; v. 2)Fotografias de Luiz Santos

ISBN - ??????????1. Previdência social. 2. Assistência social. 3. Aposentadoria rural. 4. Negros.5. Populações afro-brasileiras. 6. Inclusão social.

I. Alvarez,Gabriel Omar II. Santos, Luiz. III. Título. IV. Subtítulo.

Alvarez, Gabriel Omar.

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Ministro da Previdência SocialNelson Machado

Secretário ExecutivoCarlos Eduardo Gabas

Secretário de Políticas de Previdência SocialHelmut Schwarzer

Diretor do Departamento do Regime Geral de Previdência SocialJoão Donadon

Diretor do Departamento dos Regimes de Previdência no Serviço PúblicoDelúbio Gomes Pereira da Silva

Chefe de Gabinete da Secretaria de Políticas de Previdência SocialMônica Cabañas

Coordenador-Geral de Estudos PrevidenciáriosRafael Liberal Ferreira de Santana

Ensaio antropológico e textoGabriel O. Alvarez

Ensaio fotográficoLuiz Santos

Projeto cartográficoRafael Sanzio dos Anjos – CIGA/UnB

Coordenação editorialLuiz Santos

Edição de fotografiaLuiz Santos e Gabriel O. Alvarez

Revisão de textoJosiany Salles Rocha

Projeto gráficoSidney Rocha

Pré-impressão e impressãoArtprinter Gráficos & Editores

Todos as fotos desta publicação são de Luiz Santos, com exceção daquela na página 106, que é deGabriel O. Alvarez.Nos processos técnicos desta publicação contamos, ainda, com o valoroso apoio de Bachar Samaan,Gabriela Pires, Sebba Cavalcanti e Lorenzo Vagni.

Previdência Social e populações afro-brasileiras

Gabriel O. Alvarez | Luiz Santos

Tradições Negras,Políticas Brancas

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AgradecimentosQuando um trabalho desta envergadura chega ao fim, lembramo-nos de todos os que nos acompanharam nesselongo caminho. Queremos agradecer àqueles do Ministério da Previdência Social, na Secretaria de Políticas dePrevidência Social, que tornaram possível a realização desta pesquisa: Helmut Schwarzer, Secretário de Políticasde Previdência Social e Vinícius Pinheiro, ex-Secretário de Previdência Social. O último abriu as portas para arealização deste trabalho, e o primeiro empenhou-se, pessoalmente, na orientação e na publicação dele.Agradecemos também a Rafael Liberal Ferreira de Santana, Coordenador-Geral de Estudos Previdenciários daSPS; Mônica Cabañas, Chefe de Gabinete da SPS; e a Tereza Ouro, Coordenadora do PEP à época do trabalho decampo, os quais acompanharam esta pesquisa do início ao fim e foram atentos interlocutores deste diálogo daantropologia com os estudos previdenciários.

O trabalho de campo não teria sido possível sem o apoio e a colaboração de nossos interlocutores.Agradecemos especialmente o apoio dado por Txicão e a sabedoria cheia de graça de Zé Guará, dona Furtuosa edona Catarina no Brejo dos Crioulos. No Córrego da Misericórdia, foi fundamental o apoio de Eva. Nos terreirosde candomblé, um agradecimento especial ao Pai Ari, presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro,que nos introduziu em um universo incomensurável. Nosso agradecimento também à Mãe Luiza Gaiaku, MãeCaiudê, Mãe Ditinha e ao Pai Balbino, que nos abriram as portas de suas casas e seus altares, assim como ao OjéBaruê, que permitiu que compartilhássemos dos segredos dos Egum. Agradecemos ao povo dos Maracatus-naçãodo Recife, em especial Ivaldo do Cambinda Estrela, Elda e Schacon do Maracatu Nação Porto Rico do Oriente,em memória de Dona Mariú, que viveu 104 anos e morreu antes desta publicação, e às rainhas e calungas dosmaracatus visitados em Recife. Um agradecimento especial ao Manoel Papai, filho de Pai Adão, sacerdote de umdos mais tradicionais terreiros da cidade do Recife. Agradecemos ainda aos presidentes, reis e tambozeiros dasIrmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí, da INSRHP de Chapada do Norte eda Confraria de Olinda, particularmente Pedro Pereira dos Santos, Seu Vicente e Luiz Sapateiro (aposentado),homem simples e sábio.

Um reconhecimento especial para Luiz Santos, Fotógrafo (com letra maiúscula) e companheiro, co-autor destapesquisa. As imagens dos aposentados em seus lugares cotidianos, os detalhes dos colares, as cores das roupas,todos esses elementos visuais fazem parte de uma dimensão particular da comunicação desses aposentados como leitor, capturados nos retratos confeccionados por Luiz Santos.

Um agradecimento a Gabriela Nunes, que foi nossa assistente de pesquisa e que organizou a transcrição dosdepoimentos, realizou o levantamento bibliográfico e foi a primeira leitora da versão preliminar; com seu olhardesde a negritude, participou do espírito do trabalho. Um agradecimento também aos alunos do curso deTradições Afro-brasileiras, aos quais lecionei no primeiro semestre de 2004, no Departamento de Antropologiada Universidade de Brasília. Em sala de aula, discutimos a bibliografia acadêmica e o material empírico quecompõem o corpo deste livro.

Um agradecimento também a Rafael dos Anjos, que acrescentou uma projeção cartográfica aos dados levantadosno trabalho de campo. Cabe destacar que os mapas incluídos na obra são produto de uma trajetória de vinteanos realizando uma cartografia que retrata a matriz africana do Brasil.

Finalmente, um forte abraço para Roberto, nosso motorista em Minas Gerais. Em Itinga, antes da construção daponte, quando cruzávamos de balsa o rio Jequitinhonha, sugeri a Roberto que perguntasse ao balseiro se sabia daexistência de algum grupo de Congado na cidade. Solicitei que fizesse a pergunta, porque ambos, o balseiro e omotorista, tinham o característico sotaque carregado do interior de Minas. Roberto perguntou ao balseiro:— “Você conhece o povo que mexe com Congado?”

Ao que o balseiro respondeu, solícito:

— “Eu mexo com gado, mas minha especialidade é cavalo”.

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Apresentação

No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Previdência Social possui um papelfundamental na extensão da proteção social do país. Por causa dos recursos transferidos pelaPrevidência, cerca de 20,2 milhões de pessoas deixaram de viver abaixo da linha de pobreza,segundo dados do IBGE de 2004. A Previdência, em um Estado de Bem-Estar moderno, aoreconhecer o tempo de trajetória laboral dos indivíduos e conceder benefícioscorrespondentes, repondo renda e combatendo a pobreza, gera segurança social e constitui-se em uma das principais portas para a cidadania.

No caso brasileiro, grande parte dos impactos redistributivos da Previdência deve-se àPrevidência Rural, hoje reconhecida no mundo inteiro como um modelo inovador e bemsucedido, que melhora de forma sustentada o tecido social rural. Suas características, que aafastam do modelo contributivo estrito, passam a ser extremamente importantes quando seanalisa a relação entre a população negra e a Previdência Social no Brasil. É de conhecimentogeral que os indicadores sociais apontam historicamente para uma diferença pronunciadaentre brancos e não-brancos em praticamente todos os setores de políticas sociais. Não édiferente na trajetória de brancos e negros no mercado de trabalho, cuja formalidade épressuposto para o acesso à Previdência contributiva. No entanto, sabemos hoje que negros emulheres, via de regra fragilizados no mercado de trabalho, têm sido relativamente maisfavorecidos pelo reconhecimento da condição de trabalhadores rurais pela Previdência Rural,que não requer o histórico contributivo individual, mas a documentação do trabalho comoagricultor em regime de economia familiar. Vários dos depoimentos contidos neste livroapontam nesta direção.

Tradições Negras, Políticas Brancas, escrito pelo professor Gabriel O. Alvarez, antropólogo daUniversidade de Brasília e colaborador do Ministério da Previdência Social, em parceria com ofotógrafo documentarista Luiz Santos, retoma a série de estudos sobre os impactos daPrevidência a partir da ótica dos beneficiários, agora com o foco nas populações afro-brasileiras. Ao visitarem os remanescentes de quilombos e a Irmandade de Nossa Senhora doRosário dos Homens Pretos, em Minas Gerais, os terreiros de candomblé e as baianas doacarajé, na Bahia, e os maracatus de Recife, os autores verificaram que os benefíciosconcedidos aos aposentados reforçaram seu lugar nas comunidades, em vez de afastá-los dasinstituições tradicionais. Ademais, o estudo recupera uma importante discussão sobre anegritude e cidadania no Brasil, temas para os quais o governo do presidente Lula demonstraextrema sensibilidade, haja vista a criação de uma estrutura específica como a SecretariaEspecial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial - SEPPIR.

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PrefácioOs resultados deste livro nos levam a conhecer melhor os nossos segurados e beneficiários, oque contribui substancialmente para o processo de construção da cidadania via Previdência. Ainclusão social é uma visão estratégica deste governo, e, no âmbito da Previdência Social, ainclusão se reflete em dois aspectos importantes: a garantia de acesso aos direitosprevidenciários e o fortalecimento do diálogo social, com participação da sociedade civil. Porum lado, o fortalecimento do diálogo social vem se refletindo na maior participação dasociedade civil na definição de políticas previdenciárias, por meio de medidas como orestabelecimento dos Conselhos de Previdência Social. Por outro lado, a meta de garantia deacesso aos direitos previdenciários vem inspirando um conjunto integrado de ações na áreade gestão, que temos conduzido com determinação.

Estamos acostumados com números, indicadores, análises quantitativas sobre a Previdência.Este importante livro, contudo, com seu ensaio antropológico, depoimentos dos cidadãos ebelas fotografias, lança um outro olhar sobre os impactos qualitativos da Previdência e a vidadas pessoas. As conclusões do estudo nos dão a convicção de que estamos no caminho certo.É preciso reforçar a Previdência básica, pública, de caráter universal e buscar alternativas depolíticas para ampliar a cobertura para que o acesso ao direito previdenciário por parte dossegurados possa ser plenamente exercido.

Brasília, novembro de 2006

NELSON MANELSON MANELSON MANELSON MANELSON MACHADOCHADOCHADOCHADOCHADO

Ministro de Estado da Previdência Social

Os estudos sobre impactos da Previdência são tradicionalmente focados em análisesquantitativas. Até há pouco tempo, eram raros os trabalhos que privilegiassem a ótica dosusuários da política previdenciária, em especial dos beneficiários. Nos últimos anos, aSecretaria de Políticas de Previdência Social do Ministério da Previdência – SPS/MPS temprocurado preencher esta lacuna com a divulgação de resultados e encomendas de novaspesquisas que avaliem os impactos qualitativos da Previdência em comunidades selecionadas.O livro Tradições Negras, Políticas Brancas, além de seguir esta linha, contribui para suprir umaoutra carência: estudos que relacionam negritude e Previdência no Brasil.

A discriminação enfrentada pela população negra na sociedade brasileira já foi analisada comprofundidade por diversos especialistas, como por exemplo o IPEA. Em um de nossos estudosrecentes, baseados na PNAD/IBGE 2004, a SPS reconstatou que há uma inserção fragilizada dapopulação negra em relação à branca no mercado de trabalho, com taxas de desempregomaiores, postos de trabalho de pior qualidade e menores salários. Sabemos que a PrevidênciaSocial, em seu papel de repor a renda do trabalho nas situações de risco social – idadeavançada, invalidez, morte, enfermidade, maternidade, acidente de trabalho, etc. – refletediversas distorções existentes no mercado de trabalho. A motivação para a realização desteestudo foi exatamente captar, através de depoimentos dos próprios representantes daspopulações negras, a imagem e o grau de importância que a Previdência Social possui em suasvidas, bem como o papel corretor de iniqüidades que ela porventura possa desempenhar.

A SPS contratou para a coordenação do projeto o professor Gabriel O. Alvarez, antropólogoda Universidade de Brasília, que possui vasta experiência em trabalhos desta natureza, autordo belíssimo ensaio Amazônia Cidadã, de 2002, também encomendado e publicado pela SPS/MPS, bem como o premiado fotógrafo documentarista Luiz Santos. Juntos, visitaram osremanescentes de quilombos, em Minas Gerais, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosáriodos Homens Pretos, no vale do Jequitinhonha, no mesmo estado, os terreiros de candomblé eas baianas do acarajé, na Bahia, além dos maracatus do Recife. Ou seja, populações negras comdiversas formas de organização social, bem como suas principais instituições.

Uma das hipóteses inovadoras usadas pelos autores é a de que, em um país como o Brasil, aassociação de negritude exclusivamente à cor da pele pode ser questionável em termos depesquisa. Sendo um antropólogo cultural competente, Gabriel Alvarez aponta que asinstituições e tradições culturais, bem como a organização social, são tão reveladoras quanto acor da pele. A partir deste ângulo, entrelaçando a descrição da história viva, de ricas tradiçõesculturais, do sofrido cotidiano com imagens de sublime estética, o estudo caminha poridentificar como a Previdência Social logra ou não participar da vida destas comunidades.

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Nas comunidades selecionadas, os autores identificaram beneficiários da Previdência e osentrevistaram. Através dos depoimentos, foi possível verificar as mudanças ocorridas emfunção da aposentadoria e as maneiras de utilização do dinheiro. A investigação permitiutambém que se pudesse traçar um panorama da forma de vida tradicional de cada grupo, sejano dia-a-dia ou em momentos especiais, como as festas e os rituais, e as mudanças ocorridasnas últimas décadas, além das atividades no seio das instituições e as interações com orestante da sociedade. Os técnicos locais da Previdência também foram entrevistados, eatravés dos depoimentos foram colhidas importantes informações sobre as estratégias deampliação do acesso ao direito previdenciário às comunidades negras.

Os resultados apontam para o importante papel dos idosos aposentados nas comunidades,como já verificado em estudos anteriores. A concessão de um benefício previdenciário nãoafasta esses idosos de suas instituições, como diversos estudiosos chegaram a acreditar nopassado, ao afirmar que a Previdência destruiria a solidariedade tradicional; ao contrário, acondição de segurado beneficiário fortalece a participação do idoso negro nas suas famílias ecomunidades.

No caso dos remanescentes de quilombos e dos idosos na Irmandade de Nossa Senhora doRosário dos Homens Pretos, em Minas Gerais, o impacto da Previdência Rural é notável, poisalém de evitar situações de dependência e mesmo penúria, a percepção de um benefíciopermite autonomia e lugar de destaque aos aposentados nas festas e rituais.

Nos terreiros de candomblé, em Salvador, a imagem da Previdência ultrapassa os impactosprovenientes da concessão de benefícios. Consideram-na uma política pública queefetivamente reconheceu o candomblé como religião, ao permitir que pais e mães de santopudessem contribuir – e se aposentar – no exercício de suas funções religiosas. Até o ano2000, pais e mães de santo tinham que declarar outra atividade profissional para recolher acontribuição e ter direitos aos benefícios. Importante destacar também o relevante trabalhoda Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro no apoio e orientação aos representantesdessas instituições religiosas.

Ainda em Salvador, os autores registraram as conseqüências de outra importante forma dereconhecimento de direito à população negra por parte da Previdência: o caso das baianas doacarajé – símbolo da cultura da Bahia. Na década de 90, essas mulheres tiveram oreconhecimento de sua atividade profissional para caracterização de trabalho artesanalautônomo junto à Previdência Social. A organização dessas baianas, especialmente através daAssociação das Baianas do Acarajé – ABA, favoreceu o contato com a Previdência através dasações do Programa de Educação Previdenciária – PEP, do Ministério da Previdência, o queresultou em uma interessante estratégia. Para conscientizar as baianas – muitas já idosas – ase filiarem, contribuir para a Previdência e ter direito a benefícios, os representantes do PEPlocal encontraram uma solução extremamente criativa. Conseguiram disseminar a idéia deuma poupança diária, equivalente ao valor de um acarajé, para ser guardada em um “cofrinho”.Ao final do mês, o “cofrinho” conteria o valor suficiente para a contribuição previdenciária.

Finalmente, o trabalho de campo visitou a população que participa dos Maracatus-nação,instituições urbanas, também de tradição afro-brasileira, localizadas na região norte de Recife.Essas instituições possuem princípios de organização social similares aos observados naIrmandade de Nossa Senhora do Rosário e nos terreiros de candomblé. Assim como empraticamente todas as periferias de metrópoles brasileiras, a pobreza e a informalidade nomercado de trabalho constituem enorme obstáculo ao acesso de direitos, em especial osprevidenciários. Tal fato foi constatado pelos autores no trabalho de campo em Recife. Por

outro lado, também foi destacado o papel social desempenhado pelos integrantes dosMaracatus, que compartilham tradições, sentimentos comuns e religiosidade e contribuem,através de atividades sociais voluntárias, para minimizar os efeitos da pobreza que osenvolvem.

Os resultados apresentados neste livro ratificam o fato de que a Previdência Rural brasileira éuma inovação mundial por utilizar mecanismos não-bismarckianos, ou seja, sem vinculaçãoestrita entre contribuição e benefício. O critério de comprovação de condição de trabalhorural – e não necessariamente contribuição monetária – permite um alto impacto de inclusãosocial de famílias trabalhadoras rurais pobres e melhora de forma sustentada o tecido socialrural. Por outro lado, o desafio de inclusão passa necessariamente por uma estratégia deincorporação do contingente urbano.

Lidar com a herança da informalidade e exclusão, produtos de modelos de desenvolvimentopassados, requer múltiplas abordagens simultâneas. De um lado há falta de conhecimentosobre a Previdência, o que requer o esforço de publicizar nosso sistema, inclusive por meiodo Programa de Educação Previdenciária. Além disso, uma fiscalização cada vez mais rigorosacombate a sonegação e informalidade entre os empregadores que não assinam a carteira deseus trabalhadores. Modificações nas alíquotas de contribuição – como na desoneraçãoparcial da folha de salários, na redução da alíquota dos contribuintes individuais de baixarenda ou na dedutibilidade do Imposto de Renda das contribuições patronais para astrabalhadoras domésticas – podem auxiliar vários grupos sociais e setores de atividadeeconômica específicos. Tudo isto, obviamente, também requer uma constelaçãomacroeconômica mais favorável à geração de empregos formais do que foi aquela dos anos80 e 90.

Como lição do livro Tradições Negras, Políticas Brancas, fica que, além das medidas acimamencionadas, uma alternativa de política talvez seja a continuidade no caminho de criação deum benefício universal básico, não contributivo, que esteja baseado em critérios objetivossimples, como, por exemplo, ser residente no país e ter atingido determinada idade. Passosrumo ao gradativo desacoplamento de critérios contributivos para a obtenção de umbenefício básico, que resgate o idoso de debaixo da linha da pobreza, o Brasil já têm dado pormeio do aprofundamento da Previdência Rural nos anos 90, bem como do Benefício dePrestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social-LOAS, aperfeiçoado pelo Estatutodo Idoso. Diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento estão fazendo a avaliação dese hoje é possível avançar nesta direção para suprir as lacunas de cobertura previdenciáriadeixadas por mercados de trabalho fragilizados ao longo das últimas décadas.

Tradições Negras, Políticas Brancas traz, para nós da Secretaria de Políticas de Previdência Social,um importante subsídio para a reflexão na formulação de políticas públicas. Espero que oleitor aprecie este belo trabalho.

Brasília, novembro de 2006

HELMUT SCHWHELMUT SCHWHELMUT SCHWHELMUT SCHWHELMUT SCHWARZERARZERARZERARZERARZER

Secretário de Políticas de Previdência Social

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Sumário

Introdução, 16

1. Populações negras em Minas Gerais:

Irmandades, garimpos e quilombos, 32

Remanescentes de quilombos: Quilombos de resistência eremanescentes da exploração do ouro, 34

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, 68

2. Religiões africanas na Bahia e políticas de reconhecimento:terreiros de Candomblé e Baianas do Acarajé, 96

As nações do candomblé, 112

Egum: culto aos antepassados, 126

Da descriminalização às políticas de reconhecimento,134

3. Maracatu Nação do Recife:

tradições afro-brasileiras e déficit social na periferia das metrópoles, 156

O Maracatu-nação, 158

A festa da calunga, 176

As sedes dos maracatus e a população da periferia, 186

4. Temas cruzados:tradições afro-brasileiras e Previdência Social, 198

Bibliografia citada, 212

Anexo, 215

Mapas, 220

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A negritude e a questão racial no Brasil são temas repletos de nuances. A negritude constituium dos componentes da imagem tropical do Brasil e, ao mesmo tempo, é invisibilizada poruma imagem de modernidade, pensada como branca ou, quando muito, mestiça.

De acordo com a situação social, as pessoas de pele escura identificam-se em diversascategorias, como negro, moreno, negro-mestiço, preto, jambo, afro-brasileiro, pardo ou outrasdenominações que aludem implícita e tangencialmente à questão racial. Existe um certoracismo cordial que se revela ao tratar o interlocutor negro como moreno. Essebranqueamento implica a negação da negritude. Em outras situações, o próprio negrorenega-a ao se identificar como pardo. No Brasil, os censos utilizam as categorias branco,preto, pardo, amarelo ou indígena. Na hora da declaração, muitos identificam-se como pardosporque consideram a classificação preto ofensiva, pois esse termo seria aplicável às coisas enão às pessoas. Essa atitude gera uma distorção estatística, pois estabelece a categoria pretocomo sinônimo de negro e introduz uma defasagem e subestimação das populações negrasno Brasil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Pesquisa Nacional porAmostra de Domicílios (PNAD) de 1976, introduziu a auto-atribuição no quesito cor/raça;o resultado foi a existência de 136 “cores” diferentes (Schwarcz, 1999).

Segundo os dados da PNAD 2004, a população brasileira está composta por 93.604.435brancos (51,4%), 76.635.241 pardos (42,1%), 10.739.709 pretos (5,9%), 763.456 amarelos(0,4%) e 304.911 índios (0,2%), além de 12.356 na categoria ignorados. Estudos quantitativos,como os realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), assumem acategoria negro como resultado do somatório de pretos e pardos. Segundo esse princípio, apopulação negra do Brasil é de 87.374.950 pessoas (48%). Essa metodologia pode serempregada em determinadas regiões, como no Rio de Janeiro ou em Salvador, mas produzdistorções ao ser aplicada a outros estados, onde diversas populações não-negras sãoidentificadas como pardas. Por outro lado, a categoria pardo inclui amplos setores não-negros, muitos deles pertencentes à classe média da sociedade; isso gera um novo viés queinvisibiliza a desigualdade, subestimada pela inclusão de setores de maior poder aquisitivo.

Embora esse fator possa introduzir alguma distorção positiva, todas as análises quantitativasapontam para a situação de desigualdade social e de discriminação sofrida por essaspopulações (Alexandre Pinto e Marcelo Neri, 2000; Henriques, 2001; Soares, 2000). Apesar dacrescente produção de trabalhos sobre a negritude no Brasil, existe um vazio bibliográficosobre políticas de Previdência Social e populações negras. Quando analisados os indicadoresde raça e de população idosa em condições de pobreza, como assinala o trabalho deSchwarzer e Querino (2002:33), verifica-se que: “A pobreza entre os idosos é negra. Dois

Introdução

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terços dos idosos pobres são negros”, se considerada, segundo os dados da PNAD, apopulação com sessenta anos ou mais abaixo da linha de pobreza fixada pela Lei Orgânica deAssistência Social – LOAS.

Existem diversos estudos sobre a negritude no Brasil; porém, o propósito aqui não é fazeruma revisão exaustiva da produção brasileira e internacional sobre o tema. No entanto, éindispensável, em um trabalho desta natureza, fazer algumas reflexões em torno dosautores mais relevantes que abordaram essa questão. Eles devem ser vistos comointelectuais que expressaram o pensamento social do Brasil acerca da negritude.

Neste estudo, a negritude não será trabalhada como raça, mas sim como uma construçãosocial; mais especificamente, um conjunto de tradições culturais que reproduzem sistemasde valores, instituições, uma forma de estar no mundo. Em um país como o Brasil, quesofreu políticas de branqueamento amparadas pelo mito da democracia racial, as tradiçõesafro-brasileiras são a expressão de resistência das populações negras. A análise dasinstituições tradicionais permite mostrar, a partir de sua cultura, a chegada da Previdênciajunto a essas populações, invisibilizadas nas análises usuais. Uma antropologia das políticasde Previdência passa por compreender o olhar do “outro” sobre as políticas públicas, um“outro” personalizado por meio de suas imagens e depoimentos. É isso que este ensaioantropológico-fotográfico visa apresentar aos formuladores de políticas.

A negritude no pensamento social brasileiroNina Rodrigues, ao final do século XIX, realiza um importante esforço de sistematizaçãosobre a origem e a religião das diferentes populações negras do Brasil. Para esse autor, oBrasil era um laboratório que permitia estudar as populações africanas, suas crenças ereligiões como amostras da África. A temática era, naquele momento, enquadrada noparadigma criminalista. Artur Ramos (1988 [1934]) continua a obra, enquadrando seusestudos em um campo que oscila entre a antropologia e a psiquiatria. As preocupações emtorno da raça e das crenças levaram-no a classificar a população negra brasileira em doisgrandes troncos de acordo com suas zonas de origem na África negra. Apesar das diversasdivisões étnicas, ele caracteriza uma população banto, com origem no Congo e em Angola, euma ioruba, proveniente dos reinos do Golfo do Benin. A primeira estaria concentrada nosestados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco; a segunda ocupa, predominantemente,uma proporção do estado da Bahia. Para o autor, imbuído de uma ideologia evolucionista, osbantos teriam uma religião mais animista, se comparados aos iorubas. No caso dos primeiros,os feitiços seriam o traço mais marcante; já os povos iorubas teriam uma religião maissofisticada, cujos fetiches ocupam o centro de rituais elaborados e levam os participantes aestados de transe. Os trabalhos sobre religiões africanas desenvolvidos pelo autor explicavame classificavam os estados de transe característicos desses cultos. Procurava-se explicar odiferente. Os negros eram vistos como algo extrínseco ao Brasil, não deixavam de serafricanos, como mostra a ênfase na classificação dos diversos grupos que compunham adicotomia banto/ioruba, descritos pelos trabalhos.

Gilberto Freyre (2002 [1933]) introduziu o negro na imagem do Brasil. Era um negrobrasileiro descrito a partir da intimidade da convivência nas plantações de cana-de-açúcar.Os trabalhos do autor caracterizaram o Brasil a partir do Nordeste e criaram a imagemluso-tropical do país. Para ele, a família patriarcal dos engenhos de cana-de-açúcar modeloua moral dessa formação social. A casa grande e a senzala estavam interligadas nos serviços enos lençóis. A ama de leite negra do menino branco, as brincadeiras dos filhos do patrão

com os moleques ¯ às vezes carregadas de sadismo — eas primeiras experiências sexuais com as escravas negrasmodelaram a subjetividade desses brasileiros. Asaventuras sexuais do patrão com as escravas do serviçodoméstico da casa grande, as vinganças das patroas, asaventuras dos adolescentes e os filhos mulatos faziam dafamília patriarcal uma instituição marcada por segredos erelações hierárquicas que criavam famílias extensas nãoreconhecidas. Para Gilberto Freyre, a hibridação entre acultura portuguesa e a africana aconteceu na cama.Criou-se uma imagem romântica do negro e de suascontribuições para a “cultura nacional”, com umsomatório de traços isolados, como palavras, comidas,ritmos e sensualidade. No livro Casa Grande e Senzala, afamília patriarcal e a plantação tornam-se o modelo queexplica as relações raciais no nordeste. O trabalho nasplantações e as histórias de alcova modelaram amestiçagem e a hierarquia social como um fenômenobrasileiro que se expressa na formulação da ideologia dademocracia racial.

Na década de 1950, a UNESCO patrocinou uma série deestudos sobre as relações raciais no Brasil, cujo objetivoera contrastar a situação no país com outros paísesmarcados pelas tensões inter-raciais, como os EstadosUnidos e a África do Sul. Esperava-se que esses estudospudessem sugerir políticas baseadas nas relações entrenegros e brancos no Brasil como modelo para a criaçãode novas políticas a serem aplicadas em países onde asrelações inter-raciais estavam marcadas por tensões e poraberta discriminação. Desse projeto, participaramGilberto Freyre, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, oantropólogo francês Roger Bastide, entre outros.

Florestan Fernandes (1969, 1972) é um dos autores queassinala a situação de discriminação sofrida pela populaçãonegra, excluída do mercado após a abolição da escravatura.A transformação da economia baseada nas plantações comtrabalho escravo em uma economia industrial-urbanaatrelada às políticas migratórias marcou o destino dessaspopulações. Os migrantes europeus inseriram-se na novaestrutura de classes, e a população negra liberta foideslocada. Os dados estatísticos apresentam um Brasil comprofundas desigualdades regionais. Por um lado, a regiãosul-sudeste com uma população majoritariamente branca,destacada pela industrialização que a transformou em umadas regiões mais dinâmicas do Brasil. Por outro, a regiãonordeste, majoritariamente negra, com elevados índices depobreza e uma distribuição de renda caracterizada pela

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concentração em uma elite branca. O autor denuncia o caráter mítico da democracia racialbrasileira e apresenta a desigualdade social como produto da discriminação racial.

O racismo no Brasil caracteriza-se, segundo Florestan Fernandes (1972), pelo branqueamentono trato interpessoal; as desigualdades entre negros e brancos reproduziam-se sob o mantode um racismo cordial. O racismo ficava invisibilizado, tanto pelo trato “gentil” ao evitarreferir-se ao interlocutor “de cor” como “negro”, como pela introjeção do preconceito. Osnegros que conseguiam certa ascensão social o faziam ao preço da sua cultura, umbranqueamento produto da introjeção dos parâmetros do branco. Isso passa inclusive pelanegação da própria negritude e serve de fermento para a multiplicação de categorias usadaspara definir as pessoas “de cor”. Ser negro era sinônimo de descendente de escravos, e essalembrança dissolver-se-ia mediante a multiplicação de categorias.

Oracy Nogueira (1985) compara o racismo nos Estados Unidos e no Brasil. No primeiro,onde existe um preconceito de origem, existe uma linha divisória nítida entre as populaçõesnegras e brancas. No preconceito de origem, basta a suposição de que o indivíduo descendede um determinado grupo para que sofra o preconceito. Para os norte-americanos, basta umagota de sangue negro para assim ser considerado. No Brasil, devido à idéia da mestiçagem, aidentificação de cor é ambígua e depende da estratificação. O preconceito de marca estárelacionado com a aparência, o sotaque, os gestos. Por outro lado, a discriminação de marcaestá estreitamente relacionada à classe social. Assim, as pessoas de classes mais baixas sãoconsideradas negras; mas, conforme ascendem na estratificação social, deixam de identificar-secomo negras e passam a se considerar “morenas” ou mestiças. A reduzida população “de cor”pertencente a estratos superiores chega a considerar ofensivas as referências à sua negritude.Cabe destacar que, nesse tipo de racismo, a etiqueta de comportamento inter-racial dá ênfaseao controle do comportamento dos indivíduos do grupo discriminador. Em contrapartida,onde o preconceito é de origem, a ênfase recai sobre a conduta do grupo discriminado, comoforma de conter a agressividade do grupo discriminador. Como assinala o autor: “onde opreconceito é de marca, a ideologia é, ao mesmo tempo, assimilacionista e miscegenacionista;onde é de origem, ela é segregacionista e racista” (Oracy Nogueira, 1986: 422).

Gilberto Freyre foi um dos ideólogos do modelo da democracia racial para explicar asrelações raciais no Brasil. Essa construção ideológica foi desmontada por FlorestanFernandes, mas foi Abdias do Nascimento (1978) um dos mais enfáticos ao denunciar oracismo neste país. Abdias do Nascimento criou, já em 1944, o grupo de TeatroExperimental do Negro (TEM), no Rio de Janeiro, e apresentou as denúncias na FESTAC 771

sobre as políticas de branqueamento no Brasil e o genocídio sofrido pelo povo negro. Esseautor transformou-se, por mérito próprio, em um dos principais ícones do movimentonegro no Brasil e em uma bússola na luta contra a discriminação. Abdias do Nascimentocritica as visões folclorizantes sobre a cultura negra. Ele chama a atenção para observaressas tradições como um exemplo de resistência frente ao processo de genocídio cultural,empreendido pelos projetos modernizadores do Brasil. Esses projetos tinham como um deseus componentes, ao lado da industrialização e da expansão da fronteira agrícola, obranqueamento da população do país, seja pela miscigenação, seja pela migração decontingentes europeus, ou ainda pela repressão das manifestações culturais negras. Ascríticas realizadas à visão folclorizante a partir do movimento negro ressaltam que essastradições são manifestações de resistência cultural. As lutas pelo reconhecimento permitemque a análise não fique presa a essencialismos e concentre-se nas demandas por cidadania,um fato moderno, pleiteado pelas populações tradicionais.

A década de 1980 foi marcada pela mobilização e pelo florescimento dos movimentossociais. O Movimento Negro Unificado concentra centenas de intelectuais que questionama posição do negro na estrutura social brasileira. Se sua figura estava estigmatizada pelaassociação com a escravatura, era necessário reavaliar a negritude. Nesse contexto, surgemtrabalhos que valorizam a negritude a partir das resistências dos quilombos. O Quilombodos Palmares (1630-1694) e seu rei Zumbi transformam-se em ícone de liberdade e de lutacontra o regime escravocrata (Nascimento, 1978; Moura, 1988). Cabe destacar a crescenteforça política do movimento negro ao longo da década de 1990, assim como os espaçosconquistados, a partir de 2003, na administração do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,quando foi criada a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial(SEPPIR); com o impulso dado à Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura; ecom a nomeação do Sr. Gilberto Gil como o primeiro afro-brasileiro a ocupar o cargo deMinistro da Cultura.

Previdência, negritude e tradições culturais: os propósitos deste estudoVários trabalhos assinalam a discriminação enfrentada pelas populações negras do Brasil,como ela se traduz em desigualdade social. Os indicadores sobre a população negracontrastam com os índices da população branca. Salário, educação, saúde e saneamentotraduzem em cifras essa desigualdade ancorada na discriminação. Esses preconceitosrefletem-se em uma participação desigual nos postos de trabalho, em menores salários e naexploração trabalhista. Diversas análises de dados censitários revelam que a populaçãonegra ganha salários inferiores aos da população branca, seus índices de escolaridade sãomais baixos e são poucos os que completam os estudos superiores. As populações negrashabitam a região rural ou a periferia das grandes cidades. A falta de condições de higiene,assim como a falta de água potável e de tratamento de esgoto, se reflete nos maioresíndices de mortalidade infantil. A desigualdade expressa-se na distribuição de renda.

Em relação ao mundo do trabalho, os dados mostram que os negros ingressam mais cedo nomercado. Na faixa de idade entre 10 e 15 anos, uma idade crítica de preparação para a vidalaboral, a participação dos negros é muito superior à dos brancos. Ao longo da vida, a taxa dedesemprego daqueles tende a ser maior do que a destes últimos. Além disso, os negrosocupam postos de trabalho de pior qualidade e, em geral, na informalidade. Na populaçãobranca, 43% ocupam postos de trabalho formais e 56,2%, informais. Dentre a população negra,só 33,5% dos postos de trabalho são formais, e 66,5% deles ocupam postos informais nomercado de trabalho. Os dados indicam que os trabalhadores negros recebem remuneraçõesinferiores pelos mesmos trabalhos e apresentam, ao longo das diferentes faixas etárias, índicesde desemprego progressivamente maiores.

Como assinalam Paiva e Paiva (2003): “Fundamentalmente, os negros apresentam, mais queos brancos, uma inserção inadequada no mercado; enfrentam taxas de desemprego maiores,sem que haja uma justificativa para isso; estão inseridos em postos de trabalho de piorqualidade; e, finalmente, recebem menos, mesmo quando controlados estatisticamente osatributos ligados aos rendimentos, como escolaridade e experiência profissional”. Está claroque essas condições enfrentadas no mercado de trabalho se refletem na coberturaprevidenciária.

Análises dos dados da PNAD/IBGE de 2004, realizadas pela Secretaria de Políticas dePrevidência Social (SPS), apontam uma menor proporção de contribuintes negros noRegime Geral de Previdência Social (RGPS), assim como um percentual maior da população

1 II Festival Mundial das Artes eCulturas Negras, realizado emLagos, na África, entre 15 dejaneiro e 12 de fevereiro de1977.

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negra entre os segurados especiais (rurais) do RGPS, os quais correspondem a 8.545.888.Deles, 5.278.005 enquadram-se na categoria dos negros (como somatória de pretos epardos). Por outro lado, mais de 40% da população negra não são contribuintes, umpercentual maior do que aquele encontrado entre os brancos. No Brasil, 28.513.007trabalhadores não estão socialmente protegidos; ou seja, 38,70% da população. Desse total,15.224.365 são negros; isso indica que 42,5% dos trabalhadores negros não estãoprotegidos pelo sistema de Previdência Social.

Do total populacional do Brasil, 12.277.021 trabalhadores encontram-se desprotegidos, comrendimento inferior a um salário mínimo. Desses, 7.422.178 são negros, ou seja, quase 60% dototal, o que corresponde a 20,70% da população negra entre 16 e 59 anos. A proporção dapopulação negra ocupada e desprotegida com capacidade contributiva segundo as faixas derendimento indica que os maiores percentuais de trabalhadores desprotegidos concentram-senas faixas mais baixas; 74% estão na faixa de 1 a 2 salários mínimos. Isso corresponde a maisde 5.400.000 trabalhadores negros. Ao analisar essa parcela da população negra, de ocupadose desprotegidos, podemos observar que a maior parte concentra-se na faixa etária de 30 a 39anos, quase 30% do total; mais de 23% estão na faixa de 40 a 49 anos, com mais de 1.700.000trabalhadores sem cobertura previdenciária.

Se analisada a proporção da população negra ocupada e desprotegida, com capacidadecontributiva, segundo posição no mercado de trabalho em 2004, pode-se observar que só42,8% dela possui emprego com carteira assinada. O emprego sem carteira representa19,2% do total ocupado e responde por 43,4% da população negra desprotegida. Outrogrupo importante são os que declaram trabalhar por conta própria. Eles representam 18%do total de pessoas negras ocupadas e respondem por 40% da população negradesprotegida. Finalmente, temos as trabalhadoras domésticas com carteira assinada, quecorrespondem a 3,5% do total de ocupados; já as trabalhadoras domésticas sem carteirarepresentam 4,1% da população total e mais de 11% da população desprotegida. Ao agruparos dados sobre as populações negras por ramos de atividade, observa-se que a maior partede sua população sem cobertura previdenciária concentra-se nos setores de comércio ereparação (23,68%); na construção (18,32%); na indústria de transformação (11,43%); e nosserviços domésticos (11,31% do total).

Apesar de esses indicadores assinalarem as populações negras como um dos segmentos dasociedade nacional em situação de “risco social”, chama a atenção o fato de que a maiorparte dos estudos previdenciários tenham-nas ignorado. A Previdência Social, enquadrada naseguridade social, tal como definida na Constituição de 1988, tem de ser entendida comouma política orientada para solucionar os problemas das populações brasileiras que seencontram em situação de “risco social”. Embora grande parte da população negra estejaenquadrada nos parâmetros utilizados para definir essa condição, é chamativa a ausência detrabalhos destinados a analisar as políticas previdenciárias para esses grupos.

Diversos estudos mostram a importância das políticas de Previdência rural no combate àpobreza nas regiões norte e nordeste do Brasil. Em vários municípios dessas regiões, osbenefícios recebidos pelos aposentados mobilizam importantes setores da economia local. Asaposentadorias para trabalhadores rurais, estruturadas a partir de um sistema não-bismarckiano, transformaram-se, na década de noventa, em um dos mais importantesmecanismos de redistribuição de renda no Brasil (Delgado e Cardoso, 2000). Vários trabalhosqualitativos mostram como essas comunidades rurais utilizam esse dinheiro (Schwarzer, 2000)e como ele é incorporado a partir dos usos e costumes dos diferentes grupos (Alvarez, 2002).

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Moçambique não eram apenas escravos, mas príncipes, guerreiros, agricultores, sacerdotes,homens, mulheres e crianças que vieram com suas culturas, seus valores, seus saberes. Astrajetórias de vida variaram ao longo dos séculos; muitos deles ganharam a liberdade, algunscomo alforriados, outros por meio da resistência, como a fuga e a reorganização emquilombos. Escravos e alforriados reuniam-se em diversos tipos de sociedades, como aordem leiga de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, com suas irmandades, ounos terreiros, onde foi mantida a fidelidade ao culto dos orixás.

Juridicamente, o processo de abolição da escravatura foi marcado pela Lei do Ventre Livre, em1871; a Lei dos Sexagenários, em 1885; e a Lei Áurea, em 1888, que pôs fim à escravatura. Em1891, Ruy Barbosa teria mandado queimar todos os arquivos que documentavam o tráficode escravos no Brasil, proclamando-os cidadãos da República. Por trás de um discurso deigualdade e cidadania, ocultava-se o propósito de evitar ações judiciais de indenização porparte dos antigos proprietários de escravos (Verger, 2002.a, Freyre, 2002).

Passaram-se pouco mais de cem anos desde essa integração forçada. O trauma traduz-se emuma invisibilização das populações negras, na discriminação ou ainda na criação deestereótipos que reforçam ou justificam sua posição social. Esse segmento negro,secularmente ignorado, quando não discriminado de maneira aberta, desenvolveu váriasestratégias de ajuda mútua em diferentes contextos. Nas instituições em que esta pesquisa seconcentra – os remanescentes de quilombos, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dosHomens Pretos, os terreiros de candomblé e os maracatus –, a festa e a religião ocuparam umpapel central na reprodução da tradição e da solidariedade. Essas instituições negras foramaqui estudadas, passando, metodologicamente, da cor da pele para a tradição cultural e aorganização social. Igualar negritude à cor da pele é bastante problemático no Brasil, onde aspopulações negras se auto-classificam por meio de um universo de categorias aplicadas emdiferentes contextos de negociação de posições sociais.

Este ensaio tem o propósito de informar o leitor sobre essas populações de modopersonalizado. Ao longo dos capítulos, a cultura e a sociedade são apresentadas como panode fundo sobre o qual se projetam os personagens. Todos os entrevistados foraminformados sobre os propósitos do trabalho e deram seu consentimento para asentrevistas e as fotos. Em geral, as entrevistas foram feitas em um primeiro momento e aseguir passou-se à realização das fotos. Os depoimentos transmutaram-se e deram lugar auma apresentação cheia de códigos. As fotos representam um registro da pessoa por trásdo depoimento, constituem uma expressão visual produzida de maneira espontânea, umaperformance ou apresentação visual da tradição para o leitor. Como já mostrou PierreVerger, as tradições afro-brasileiras privilegiam a tradição oral e as performances carregadasde elementos visuais de grande poder simbólico. As fotos não são um simples elementoestético, elas falam ao entrelaçar significados, como os colares do candomblé ou a bonecado maracatu, cujos significados são explicados nos depoimentos.

Este trabalho retoma as várias formas adquiridas pela negritude no Brasil. Elas não se esgotam;pelo contrário, assinalam diferenças, traduzem realidades distintas, falam de alternativas e daconstrução de uma cidadania plural, capaz de reconhecer as diferenças. O propósito aqui éduplo: por um lado, visibilizar essas diferenças pelo reconhecimento das tradições afro-brasileiras e identificar formas tradicionais de assistência; por outro, observar a chegada daPrevidência para essas populações e analisar, na figura dos aposentados, a hibridação entreesses espaços tradicionais de assistência e a cobertura oferecida pelo sistema previdenciário.

Durante a execução da pesquisa, foram identificadas instituições tradicionais entre

Apesar dos importantes avanços realizados no campo dos estudos previdenciários, aindaexiste um vazio bibliográfico em torno da questão “negritude e Previdência no Brasil”. Osestudos sobre Previdência Social ignoraram a questão racial sistematicamente e, quando aabordam nos estudos quantitativos, produzem a imagem de uma população negra pobre,explorada, caracterizada pela cor da pele, onde o componente cultural, a visão de mundo, ficaexcluído por não ser susceptível de quantificação (Escobar, 1996).

O presente trabalho foi orientado segundo a hipótese de que, frente à invisibilização daspopulações negras do Brasil, é possível visibilizá-las centrando-se não na cor da pele, mas natradição cultural.

Para realizar o presente estudo qualitativo, foram selecionadas diferentes populaçõesnegras, com diversas formas de organização social, e analisaram-se também suas principaisinstituições. À luz desse cenário, foram observados os tipos de benefícios previdenciáriospresentes nos diferentes grupos e as estratégias desenvolvidas pela Previdência para atingiresse público; além disso, são assinaladas, no final do trabalho, possíveis estratégias paracobrir o déficit de políticas previdenciárias. Os capítulos iniciam-se com uma análise dasformas de organização social e das tradições culturais e encerram-se com uma reflexãosobre as políticas previdenciárias das quais participam.

A escassez de informações quantitativas sobre a Previdência entre as populações negrasdeterminou a estratégia da pesquisa. O público-alvo foi delimitado a partir da interseçãoentre os beneficiários da Previdência e as instituições tradicionais das populações afro-brasileiras. Durante o trabalho de campo, a atenção foi focalizada nos rrrrremanescentes deemanescentes deemanescentes deemanescentes deemanescentes dequilombosquilombosquilombosquilombosquilombos, em Minas Gerais; na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos HomensIrmandade de Nossa Senhora do Rosário dos HomensIrmandade de Nossa Senhora do Rosário dos HomensIrmandade de Nossa Senhora do Rosário dos HomensIrmandade de Nossa Senhora do Rosário dos HomensPrPrPrPrPretosetosetosetosetos, no vale do Jequitinhonha, no mesmo estado; nos terterterterterrrrrreireireireireiros de candombléos de candombléos de candombléos de candombléos de candomblé, na Bahia;e nos maracatus maracatus maracatus maracatus maracatus do Recife. O leitor se perguntará: por que essas tradições?

Para compreender essas tradições negras, é necessário remeter-se ao passado escravista. Anegritude no Brasil tem o estigma da escravidão. O tráfico de escravos, entre os séculosXVI e XVIII, trouxe ao Brasil milhões de africanos negros. Diversas estimativas assinalam otransporte de uma população de quatro milhões de africanos como escravos ao Brasil. Essamigração forçada teve vários fluxos, os mais antigos eram provenientes dos reinos doCongo. Em um segundo período, vieram dos reinos do Congo e da Costa dos Escravos. Emum último ciclo, houve um forte comércio entre a Bahia e a costa do Benin, já sem amediação dos portugueses e seu sistema de triangulação comercial que envolvia África,Brasil e Portugal (Wolf, 1984).

Segundo Verger (2002.a), o tráfico de escravos entre a África e a Bahia pode ser divididoem quatro períodos: a) ciclo da Guiné (segunda metade do século XVI); b) ciclo do Congoe de Angola (século XVII); c) ciclo da Costa da Mina (três primeiros quartos do séculoXVIII); d) ciclo da Baía de Benin (1770-1850). O autor assinala que, nas outras regiões doBrasil, o segundo ciclo, Congo-Angola, prolongou-se até a abolição do tráfico de escravos.Verger (2000, 2002.a, 2002.b) lidou especialmente com as relações entre a costa da Bahia eo Golfo do Benin, que se manifestam no culto aos antigos orixás e voduns, semelhantes aospraticados ainda hoje pelas populações ao sul do Daomé e do sudoeste da Nigéria.

Esses africanos foram transportados como força de trabalho escravo, mas trouxeram suastradições. As crenças reproduziram-se no segredo e no sincretismo. O mimetismo foi aestratégia de resistência frente ao mundo dos brancos, onde foram obrigados a integrar-sede forma subordinada. Os iorubas e Djè-djès trazidos da Costa do Ouro ou Costa dosEscravos, dos antigos reinos do Benin, Fon e Ifé, os bantos do Congo, de Angola e

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populações negras. Realizou-se um levantamento antropológico, que consistiu ementrevistas semi-estruturadas com os aposentados desses grupos, na observação direta deatividades sociais e das festas com elementos culturais afro-brasileiros, com registrofotográfico e em vídeo digital. Sabe-se que o tempo de pesquisa, aproximadamente dez diasem cada uma das localidades visitadas, foi pouco em termos de trabalho de campoantropológico, mas as condições de sua realização em ritmo de consultoria impuseram essadinâmica. Realizou-se um trabalho intensivo, com foco nas instituições. Entrevistaram-se aslideranças das organizações, e houve observação direta de eventos que acontecem tanto nocotidiano como em momentos especiais, tais como rituais, festas e outros tipos deapresentações. As lutas pelo reconhecimento permitiram uma abordagem centrada nastradições, mas considerando-as como processo político.

Durante o trabalho de campo também foram entrevistados técnicos da Previdência quetrabalham com essas populações tanto no atendimento direto (como o realizado peloPREVmóvel), como em atividades destinadas a ampliar a cobertura do sistemaprevidenciário (como os técnicos do Programa de Educação Previdenciária - PEP/MPS).

As entrevistas com os aposentados e as pessoas idosas foram estruturadas a partir dediferentes tópicos: apresentação, a forma de vida tradicional do grupo e as mudançasocorridas nas últimas décadas, o antes e o depois da aposentadoria, as atividades nointerior das instituições tradicionais de assistência e as interações com o resto dasociedade, as mudanças decorrentes da aposentadoria e as formas de utilização do dinheiro.

Na primeira etapa do trabalho de campo, em Salvador, foram realizadas aproximadamente18 entrevistas gravadas, o que constitui um acervo de 15 horas de gravação. Foramentrevistados funcionários da Previdência, pais-de-santo, mães-de-santo e baianas doacarajé. Cabe ressaltar que foram realizadas também entrevistas não gravadas, pois ametodologia empregada demandou a localização de personagens-chave, o que terminou porimplicar diversas sondagens. Devido às restrições do grupo, as gravações em vídeoresumem-se a vinte minutos nos quais aparecem rodas de terreiro e outros rituais docandomblé.

Na segunda etapa do trabalho, no interior do estado de Minas Gerais, foram realizadas 28entrevistas, totalizando 17 horas de gravação. Durante essa etapa, registraram-se, em vídeo,aproximadamente duas horas e meia de fragmentos de entrevistas e festas nas quais osaposentados desempenham um papel central. Entre esses eventos, estão o batuque e ascongadas nos remanescentes de quilombos e uma apresentação dos reis e dos tambozeirosda Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí.

Na terceira etapa dessa pesquisa de campo, em Recife e municípios vizinhos, foram visitadosseis maracatus, três terreiros e a Confraria de Nossa Senhora do Rosário. Realizaram-se 23entrevistas semi-estruturadas com aposentados, líderes dos maracatus, pais e mães-de-santo, técnicos da Previdência, da Gerência do INSS e do PEP. Essas entrevistas somam maisde catorze horas de gravação; realizou-se também um registro, em vídeo, dos ensaios e dasapresentações de maracatu.

Nos próximos capítulos, serão expostos os resultados obtidos, com as limitações do tempoe do ritmo intensivo impostos à pesquisa. Em dez dias para cada localidade, foi apenaspossível entrever as principais linhas que orientam as relações sociais, escutar as demandase observar algumas atividades dos grupos. Parte da interpretação das observações apóia-sena literatura antropológica; outra parte é produto das distintas situações etnográficasobservadas no trabalho de campo. O propósito do livro não é realizar uma apresentação

acadêmica que explore, de maneira exaustiva, o universo da negritude no Brasil. Seupropósito é realizar um experimento de tradução cultural, confrontar o leitor,possivelmente branco, com os depoimentos e os retratos desses cidadãos negros, seuspontos de vista, suas várias formas de ser brasileiro. Ao leitor é oferecido um espelho, ondepoderá enxergar fragmentos do patrimônio cultural afro-brasileiro.

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A população negra do estado de Minas Gerais, no interior do Brasil, é composta pordescendentes de escravos transportados para o trabalho nas minas, tanto na extração deouro, como de diamantes. O ciclo do ouro impulsionou o traslado dos escravos quechegavam aos portos do Rio de Janeiro e da Bahia. Esses contingentes formaram umapopulação predominantemente originária do Congo e de Angola, com a presença de nagôsou iorubas em menor número. Durante a época colonial e o império, a região foi modeladapela exploração de ouro e diamante nos garimpos. Mata Machado (1943) apresenta umadescrição das formas tradicionais de exploração aurífera. Esse autor, preocupado com aperda das tradições negras na região, coleta e traduz diversos bissungos, cantos compalavras em banto e em ioruba.O trabalho de campo em Minas Gerais, realizado no Vale do Jequitinhonha e no norte doestado, é apresentado a partir da análise dos remanescentes de quilombos e da Irmandadede Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Nos remanescentes de quilombos,pesquisamos uma população descendente de um antigo quilombo de resistência e umaoutra descendente de escravos que trabalharam na extração de ouro. A Irmandade deNossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, apesar de não ser uma instituiçãoexclusivamente mineira, ainda mantém sua vitalidade no estado. Antigamente a irmandadeera formada por escravos e alforriados, organizados em torno da instituição do rei doCongo, e agrupava descendentes dos povos do Congo, de Angola e Moçambique.A contraposição entre as comunidades remanescentes de quilombos que habitam a zonarural e as irmandades congregadas nas cidades permitiu também analisar a coberturaoferecida pela Previdência a populações rurais e urbanas, naturais de municípios do interiordo estado.

1 Populações negrasem Minas Gerais:irmandades, garimpose quilombos

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Remanescentes de quilombos:quilombos de resistência eremanescentes da exploração do ouro

Os quilombos remetem à imagem romântica de resistência, de grupos de escravos fugitivosque reconstruíram suas sociedades negras no interior e travaram uma luta de guerrilhacontra o regime escravocrata. O mais emblemático dos quilombos foi o dos Palmares, oqual, no século XVII, resistiu a diversas investidas do governo do império, financiadas pelosprodutores no interior de Alagoas. A imagem de Zumbi dos Palmares surge como um íconede liberdade e luta contra a escravatura. Outros quilombos históricos, como o deMalunguinho em Pernambuco, nas proximidades do Recife, com suas incursões nas fazendase seus roubos nas estradas, contribuíram para formar essa imagem romântica, a qual levouo quilombo a transformar-se em símbolo da resistência negra.

Almeida (2002) criticou a idealização dos quilombos a partir de definições da épocacolonial. O autor assinala que a definição do século XVIII os caracterizava formalmentecomo “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, aindaque não tenham ranchos e nem se achem pilões neles”. Esse conceito foi formulado emresposta ao rei de Portugal, em virtude de uma consulta do Conselho Ultramarino em1740 (Almeida, 2002:47). Essa definição acabou por criar uma imagem congelada no tempo.Junto aos quilombos de resistência, como Palmares e Malunguinho, existem outros tipos dequilombos; alguns deles são produtos de heranças de terras que passaram de família emfamília; outros, produtos de doações de falidos senhores de engenho ou, ainda, de terrascompradas com recursos do garimpo ou do trabalho assalariado. Há também populaçõesque se mantiveram autônomas dentro da esfera da grande propriedade.

Na atualidade, os remanescentes de quilombos caracterizam-se por serem populaçõesnegras, majoritariamente rurais, com um relativo isolamento, o qual se traduz em um altograu de endogamia, com um passado imaginado comum e uma valorização do espaço e dotempo. Esse é construído em uma seqüência iniciada com a opressão/escravidão, seguidapor um tempo de liberdade/abundância no quilombo e pelo tempo atual, marcado pelapobreza e pelas lutas por terra. Esses grupos possuem também uma tradição cultural,expressa em rezas, danças e festas tradicionais. A projeção territorial, as pautas decomunicação, as marcas raciais e as tradições contribuem para delimitá-los de formaanáloga aos grupos étnicos. Assim como os diversos povos indígenas, os remanescentes dequilombo foram afetados pelo avanço da sociedade nacional, caracterizada pela pressão nointuito da posse de territórios mais produtivos e pela expropriação dos recursostradicionais. Pleitear o reconhecimento como remanescente de quilombos, segundo o

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Artigo 68 das disposições transitórias da Constituição de 1988, possibilita que essaspopulações tenham reconhecido o direito à terra (O‘Dower, 2002). Vale enfatizar o caráterrelativo do isolamento, uma vez que essas comunidades tiveram, tradicionalmente, umcontato com as localidades vizinhas mediado pelo comércio.

Existem aproximadamente 2.300 comunidades rurais no Brasil em condições de reivindicarseu status de remanescente de quilombo, como mostra o levantamento realizado porRafael dos Anjos (2005). Durante o presente trabalho de campo, tivemos a oportunidade demapear a situação de duas comunidades remanescentes de quilombos: BrBrBrBrBrejo dos Crioulosejo dos Crioulosejo dos Crioulosejo dos Crioulosejo dos Crioulos,no norte de Minas Gerais, e CórCórCórCórCórrrrrregegegegego da Misericóro da Misericóro da Misericóro da Misericóro da Misericórdiadiadiadiadia, no município de Chapada do Norte,no Vale do Jequitinhonha, no mesmo estado. A primeira, um antigo quilombo de resistência;a segunda, um núcleo de população em uma antiga zona de mineração, onde os garimpos deouro eram explorados com trabalho escravo. Ambas as populações estão localizadas nazona rural, em pequenos municípios do interior do estado. Neles, o atendimento daPrevidência é realizado por meio do PREVmóvel, uma unidade móvel de atendimento queleva os serviços previdenciários montados no interior de um veículo utilitário e trabalhaem parceria com o Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) e com as Secretarias deAssistência Social dos municípios.

O Brejo dos Crioulos está localizado na divisa dos municípios de São João da Ponte eVarzelândia, no norte de Minas Gerais. Esse remanescente de quilombo está composto pordiversas famílias vinculadas pelo parentesco, que moram em sete localidades relativamentepróximas. Cada uma dessas localidades possui mais de trinta casas agrupadas pelas pressõesda expropriação das terras. Tivemos oportunidade de visitar duas delas: Araruba eCaxambú.

O Brejo dos Crioulos foi o nome recebido pela “terra de negros”, onde se formou um antigoquilombo de resistência. A memória oral permitiu reconstruir a genealogia da ocupação dolugar desde o século XIX.2 O território era formado por terras baixas e alagadiças; amalária e a febre amarela faziam dele uma terra imprópria para os brancos e indígenas quelutavam pelo controle do território. Negros fugidos da escravidão no interior dos estadosda Bahia e de Minas Gerais encontraram nessas terras um lugar propício para se instalarem,longe das pressões dos brancos e dos índios. A malária também atacava as populaçõesnegras, mas, devido à anemia falciforme3, o número de óbitos entre essas populações eramenor. Segundo os relatos dos moradores:

“O Brejo dos Crioulos é composto por sete comunidades, é uma terra grupal. O Brejo dosCrioulos conseguiu crescer muito, é um quilombo, mas conseguiu crescer porque na épocanão sofreu ação do capitão do mato... assim de atacar, né! Antigamente, tinha os capitão domato; eram contratados pelo fazendeiro para sair atrás dos quilombo, onde é que o pessoalacampava dentro dos mato. Eles chegavam e atacavam, e aí que eles pegavam uns, outroscorriam, outros morriam. O Brejo dos Crioulo já não sofreu essa ação do capitão do mato. Opovo desceu aqui a margem toda do Rio Verde e subiu aqui a margem. Aqui têm umas setelagoas permanente, que não seca, e têm umas treze a catorze lagoas que secam. Aqui eraum lugar muito rico em peixe e frutos naturais, tinha muita caça; então, aqui era um alvopreferido para os negro habitar. Tinha muito “cezão”, que é a malária, chamada de “cezão”.O pessoal aqui sentia “cezão”, mas não conseguia morrer de “cezão”. Agora, já o pessoalbranco, se viesse, morria de “cezão”. Aí o Brejo dos Crioulos conseguiu crescer. Mesmo coma malária e tudo, o pessoal vivia livre, não tinha ninguém de fora. Não existia ninguém defora, não existia nada. Vivia aquele pessoal ali.

2 Observação pessoal deJoão Batista de AlmeidaCosta, que realizou estudosmais aprofundados na região.Ver também Costa (1999).

3 A anemia falciforme égeneticamente transmitidaem diversas populaçõesnegras. Esse tipo de anemiaoutorga um formato de foiceaos glóbulos vermelhos,tornando-os resistentes àinfecção do protozoário damalária.“Essa área é a mata da Jaíba, é uma área quilombola.

Era uma mata assim, em falagem indígena, era pobreera uma área que dava muito sertão. Os índios nãohabitavam nessa área e você sabe que os índiostomavam os territórios dos negros. Os negros nãotinham território, após que eles foi libertado, eles foiexpulsado. Aí eles começaram a fugir da fazenda. Aítambém se eles acampassem em território indígenaeram mortos, aqui não. Nesta área chamada de matada Jaíba, não existia homem branco e não existiatambém índio nela....”

FRANCISCO, LIDERANÇA DE BREJO DOS CRIOULOS – MG

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Essa área é a mata da Jaíba, é uma área quilombola. Era uma mata assim, em falagemindígena, era pobre, dava muito sertão. Os índios não habitavam nessa área, e você sabeque os índios tomavam os territórios dos negros. Os negros não tinham território; depois queeles foram libertados, eles foram expulso, aí eles começaram a fugir da fazenda. Também, seeles acampassem em território indígena, eram mortos; aqui não. Nesta área, chamada demata da Jaíba, não existia homem branco e não existia também índio nela. Então, para osnegros, foi uma área melhor que eles tiveram; daqui pra Jaíba, só via eles dizendo negão daJaíba, né!” (Francisco, liderança do Brejo dos Crioulos, MG.)

As diferentes comunidades do Brejo dos Crioulos são caracterizadas por uma densa rede derelações de parentesco. Essas relações são orientadas segundo a inclusão nos três troncosfamiliares principais que marcam a distância em relação às famílias originárias. Antigamente,eram quatro troncos; mas, com a chegada de ex-escravos libertos e com o aumento dapopulação, um dos troncos tomou a decisão de migrar para o sul.

“É que esse local em que nóis estamos aqui, foi fundado por três irmãos, que é Moreno,Leopoldo e Manoel Novo. Eles tocaram isso aqui tudinho. Então, isso aqui tá com pelomenos cento e tantos anos; é aqui que nóis moramos, nesse local aqui. É por aí, a gente vemcrescendo, crescendo, vai chegando gente e aumentando o lugar. E depois, quando osmeninos nasciam, aqui era tudo mataria, aqui tudo, e tinha muita caça, peixe demais, e hojetá desse jeito.” (Ciriaco, Brejo dos Crioulos, MG.)

Os três troncos ainda orientam as relações sociais, e os novos membros da comunidadetraçam suas relações de parentesco de acordo com os antigos. O casamento entre primosaparece como união preferencial entre os membros do grupo. O tempo é marcado pelasgenealogias que ordenam os mais novos e os mais velhos em função de alguém no grupo.

O passado é evocado como o “tempo dos antigos”, caracterizado pela fartura de caça,pesca e de cultivos. As habitações, baixas, encontravam-se camufladas debaixo das árvores.As camas, uma pequena elevação construída sobre o solo, permitia dormir acima do nívelda água nos períodos de enchente. As terras periodicamente alagadas produziam arroz emabundância, o qual era vendido na cidade de Gorutuba - MG, a três ou quatro dias decaminhada. Esse tipo de comércio permitia a aquisição de sal, pólvora e outros insumos.

“Na época dos antigos, aqui era o seguinte: nóis vivia aqui das lavouras; plantava arroz, feijão,fava, catador; plantando, criando porco, gado, tudo solto aqui. Então, por aí foi crescendo,aumentando e chega nesse ponto que tá hoje. Eu me lembro; aqui era um sertão, sabe! Agora,foi o Capitão que descobriu aqui, e o povo chegou e tomou conta de tudo, o povo foi chegandode fora e foi tomando conta disso. Antes do Capitão Enéas, aqui era um sertão. Tinha quecomprar era lá, pra vender também era lá. Não tinha outro lugar aqui.

Os pais da gente iam lá e vendiam; às vezes, engordavam um porco, não tinha quemcomprava aqui, tinha que tratar o toicinho e vender lá na cidade. Tinha que matar o porco,fazer e depois pôr na carga e levar a carne dele a cavalo, de a pé. De lá, traziam osproduto pra aqui; você vê, feijão, arroz, essas coisas aqui produziam, mas o café e o sal aquiera difícil, tinha que buscar em Januário.” (Sr. Manoel Fernando Sousa, 70 anos,aposentado, Brejo dos Crioulos, MG.)

Nas épocas de escassez, as populações negras de outras localidades atravessavam o matopara usufruírem da abundância existente no Brejo dos Crioulos, onde diferentescomunidades do norte do estado de Minas Gerais se agrupavam. A exceção, naquelestempos áureos, foram as secas ocorridas em 1938 e em 1942, quando a população se viu

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obrigada a comer raízes de árvores como o mucunã e outras espécies, que tinham de serpreparadas para não produzir “inchação”. Essas são as únicas referências à escassez em umtempo considerado de abundância. O tempo dos antigos é recordado como a época emque as mulheres teciam o pano no tear e cortavam a roupa. A população do brejo viviaseminua e utilizava roupa quando ia à cidade.

“Meu pai falava que, quando uma panela está vazia, tem que procurar. Porque entrou umafome, mas eu não sei o que era fome, que o povo comeu a raiz de pau, mucunã. Também,as águas não choveu pra poder a gente ter as coisas. No passado, caso chovia, a genteplantava; gerou aquela mudinha de alagar, e fazia duas planta por ano pra poder vê sesalvava. Ia na cidade e comprava milho, comprava feijão; comprava pra tornar a plantar,porque, se não plantasse, o aperto era certo mesmo. Eu estava conversando com odelegado lá em Varzelândia, e ele estava falando que o avô dele vinha aqui pra comprarcoisa pra vender em Porteirinha.

Ele tava falando que o meu avô trazia coisas pra vender aqui e aí trocava. Era justamenteporque, com as águas boas, colhia de tudo, mas depois que entrou essa fome que eu estoufalando, o trem foi estragando. Essa fome foi em 1938. É, teve duas fome enrustida assim,que chegou a comer raiz de mucunã. Aqui morreu dois de fome, morreu o filho do velhoJoão, que comeu raiz de mucunã que não tinha sido tratada. Na época, não tinhaestrada pra ir pra fora, transporte pra comprar alguma coisa fora.” (Sr. ManoelFernando Sousa, 70 anos, aposentado, Brejo dos Crioulos, MG.)

Na década de 1950, com a criação das agências nacionais de desenvolvimento e com a açãoda agência de saúde para a eliminação das doenças endêmicas, o Brejo dos Crioulosexperimentou a chegada da frente de expansão da sociedade nacional. Os planos dedesenvolvimento tornaram rentável a posse das terras para os brancos. A vegetação nativafoi desmatada para sua utilização no assentamento das vias férreas que passavam porMontes Claros.

“Então, o Capitão Enéas começou a abrir estrada nas matas. Começou a vir a Sucam, aantiga Sucam combateu a malária. Aí começou a vir o homem branco, começou a vir genteporque têm umas terras muito boas aqui. Produzia muito arroz. Aí começaram, acabou osossego dos negros, aquela união que tinha. O nego começou a perder terra, a ser expulso.Acabaram com o sossego; os brancos vêm pra cá, vivem desmanchando, desmanchando,mas mesmo assim a gente segura. O pessoal foi esparramar, mas tá aqui ainda a tradição,segura. Têm muitos remanescentes de quilombo aqui ainda, e todos têm seus aposentados.”(Francisco, liderança do Brejo dos Crioulos, MG.)

A frente de expansão corporizou-se com o Capitão Enéas e outros fazendeiros, os quaispressionaram essas populações negras a venderem suas terras. Teve lugar, então, umperíodo de trabalho forçado na extração de madeira, que muitas vezes terminava com amorte do operário, quando este tentava acertar os pagamentos para sair doempreendimento. Em outras ocasiões, essas populações eram pressionadas por jagunçosque soltavam as boiadas nos campos de cultivo e atiravam nos moradores das casas.

“Eles mesmo atiraram em mim, quando tavam tomando a terra nossa, só não pegou, né?Foram três tiros na porta da casa, quando era menina. Lembro pegando na roupa, chorando.Ele matou uma cachorra pertinho de mim, assim, pra tomar as terras nossa de ali em baixo.Sabe que eu nem gosto de lembrar disso, quando eu vou lembrar, meu coração já bate ruim.

Nóis tinha umas terras lá em baixo, o jagunço tomou nossa terra, agora nóis ficou sem 42

nada. Ele nóis fez correr de lá, colocou a polícia e colocou bagunça aí equeria atirar em nóis. Tinha vez que eu mesmo escondia debaixo dacama, às vezes que ia assim, que caçou nóis, que não achou nóisporque nóis tava debaixo da cama, aí nóis escondeu dele. Ele tava aquinão era pra agradar, era pra tomar a terra da gente.

Meu pai passou 15 dias sem sair fora, sem comer, sem bater nas roçaspra nóis comer. Na outra roça, lá de baixo, eles puseram o gado ecomeram a roça toda; aí, meu Deus!!! A maior parte do meu povoacabou, tudo de gente que tem meu é só esse menino, só esse, o outroque entrou aqui dentro e o filho meu. A maior parte do meu povo todoacabou. Eu tenho os filhos que tá tudo esparramado.” (Elisarla Pinheirode Abril, 63 anos, aposentada, Brejo dos Crioulos, MG.)

Para os grupos de camponeses tradicionais, a divisão da terra é umfator de pressão sobre a família, a qual recorre a arranjos comocasamentos e migrações para manter as propriedadeseconomicamente viáveis. No caso das populações negras, oprocesso de expropriação das terras por fazendeiros brancos,recém estabelecidos na região, agrava as condições de pobrezaenfrentadas por esses grupos.

Antes de passarmos à outra localidade visitada, detenhamo-nos nodepoimento de um dos moradores do Brejo dos Crioulos, queperdeu as terras tradicionalmente pertencentes a sua família paraos novos fazendeiros da região:

“A gente já melhorou um pouco, melhorou mais um pouco. Que só como salário da gente já tava dando; com essa aposentadoria, eu considero

que Deus abençoou a gente, que dura mais. Com a aposentadoria, tá sobrando mais umpouco, dá pra eu mais minha mulher. Eu tô muito satisfeito. Me desculpa, se eu tiver falandoerrado; é que às vezes a gente pensa que está falando direito, mas pode tá falando errado.

Meu filho, essa história aqui é o seguinte: eu estou com sessenta anos de idade, e aqui nóissomos muito favorável, mas hoje nóis tamo um pouco muito apertado, tá entendendo? Oaperto, que eu falo para vocês, é por isso. Bem, antigamente, no tempo do meu bisavô, do meuavô, eu tinha uma liberdade, aqui ninguém tinha essa paliação [cercas], dava pra todo mundo,faz uma roça aqui, amanhã outra acolá, e todo mundo concordava. Ah, depois que osfazendeiros conheceu que nóis tava numa boa aqui dentro dos territórios, o fazendeiro chegouapertando pra nós, apertando, apertando, apertando... e foi indo.

Hoje, que eu estou com sessenta anos, eu ganho o pão de cada dia; mas na terra do senhor,ou na terra daquele que me dê um pedaço pra mim trabalhar de meeiro. Eu tenho quepedir: ‘me dá um pedaço de terra pra trabalhar milho?’ O que nóis tinha, o que meu bisavôdeixou pro meu avô, os fazendeiros tomaram. O que fez meu avô? Ele saiu fora, e entãoficou nóis, nesse sofrimento. E, nesse sofrimento, nóis tá até hoje.

Provo pra vocês que eu não sou sujeito de contar mentira e mostro onde estou trabalhando;até hoje trabalho de meia. Quando eu colho seis saco de milho, eu tenho que dar três prodono de lá. Do que dá, é três pra lá e três pra mim. Se eu tivesse o local como antigamente,aqueles três que eu dei pra ele serviria pra mim, pra mim comprar um arroz, um açúcar,

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um café ou outras coisas que eu podia vender e deixar o resto pro meu gasto. Mas, comoeu não tenho a terra, eu sou obrigado a trabalhar de meia; então, o que eu faço? Na horaque Deus abençoa, que dá, eu colho seis saco de milho; então, eu tenho que dar três prodono da terra. Que ele é dono, ou não é? Eu não sei. Ele falou que é dono, nóis é obrigado aacompanhar. Que é a palavra dele, né? Então eu cedo pra ele três, e três eu levo pra casa.Os três que eu levo pra casa eu não tenho condição de vender, porque, se eu vender, o queeu vou comer? Se eu tivesse a terra, dava pra mim vender, aqueles três dava pra mimcomprar um saco de arroz, um saco de açúcar, outras coisas pra se manter. Mas, como agente é fraca, então fica obrigada a ficar chupando o dedo... chupando o dedo, chupando odedo... (Zé Guará, 61 anos, aposentado, Brejo dos Crioulos, MG.)

Como quem relata uma parábola, Zé Guará continua com seu relato sobre a situação dosquilombolas depois da expropriação das terras da comunidade.

Eu estive falando com o padre da família: ‘Em casa somos eu e minha mulher; eu sustentoduas mulher, e a minha mulher sustenta dois home.’ Aí o cabra disse pra mim: ‘Por que vocêvai falar isso? Ela é uma mulher tão direita, e você é tão direito? Rapaz, eu nunca vi sujeiraem vocês. Como vai falar uma coisa dessas?’ Eu digo: ‘Eu falo, eu falo que não é segredo.’‘Por que você fala? Sua mulher não é dessa forma.’ ‘Você não é o dono da terra?’ ‘Sou.’ ‘Osenhor não me dá a terra pra trabalhar?’ ‘Dou.’ ‘Então, o dia que o senhor me dá a terra pratrabalhar lá, cê não vai roçar nela, vai?’ ‘Não.’ ‘O senhor não me dá a mata bruta?’ ‘Dou.’ ‘Odia que eu pego a foice pra roçar a mata lá, a minha mulher faz um café de manhã, me dá,e eu vou pra roça trabalhar. Quando dá nove, dez horas, que o almoço daquele pessoaldaqui do interior é nove, dez horas, aí ela chega com o almoço pra mim, eu almoço, e elavai embora. Quando dá doze horas, ela chega com um café pra mim. Sua mulher está nasua casa sentada, você está lá sentado, não? Não está, não?’ ‘Estou.’ ‘Pois é, o que é que vocême dá? Sua mulher leva o almoço pra mim?’ ‘Não.’ ‘Ela leva o café pra mim?’ ‘Não.’ ‘A minhaleva pra mim o café, leva almoço e, de tarde, quando chego em casa, ela tem a água mornapra mim tomar banho, pra não dormir sujo. Sua mulher vai lá amornar a água pra mimtomar banho?’ Ele diz: ‘Não’. ‘Pois é, tá vendo que minha mulher sustenta dois home, e eu,duas mulher? Porque o dia que eu colho o mantimento, que eu corto, sua mulher está lásentada, não tá?’ Ele diz: ‘Tá.’ Pois é, vai pegar do meu mantimento pra ela rolar. ‘Senhora,seu marido não recebe?’ ‘Recebe.’ ‘Você ajudou eu plantar?’ ‘Não.’ ‘Você ajudou eu coletar?’‘Não.’ Pois é: ‘Ela levou lá uma xícara de café pra mim?’ ‘Não.’ ‘Quem levou não foi minhamulher?’ ‘Foi.’ ‘É por isso que ela está sustentando dois home e eu sustento duas mulher,verdade?’ Se eu tivesse a terra, eu não passava por isso, porque eu plantava e eu colhia oque é meu. Verdade?

Isso aí eu explico pra vocês. Eu tenho 61 anos, aposentei, certo? Mas não esqueço o que jápassou comigo. Eu já comi o pão que o diabo amassou. Onze anos de idade, eu ganhava 50centavos, ajudava minha mãe a criar cinco filhos. Ganhava quinhentos réis, trabalhava seisdias na semana pra ganhar três mil réis. Não é mentira não! Nessa vida, eu trabalhei, estouaté hoje; mas eu espero que Deus e nosso presidente não deixe ficar nesta situação. Porquenóis somos aposentados e eu recebo o salarinho, eu não vou pedir a Deus pra que esseoutro receba? Eu quero que todos recebam, entendeu? Porque eu estou sofrido e, meusofrimento, eu desejo que os outros não sofram, certo?

Eu estou falando a verdade.”

(Zé Guará, 61 anos, aposentado, Brejo dos Crioulos, MG.)

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desses remanescentes. O CórCórCórCórCórrrrrregegegegego da Misericóro da Misericóro da Misericóro da Misericóro da Misericórdiadiadiadiadia, outro remanescente de quilombosvisitado no Vale do Jequitinhonha, apresenta muitas semelhanças e algumas característicasdiferentes relacionadas ao ciclo do ouro. Essa comunidade encontra-se localizada nomunicípio de Chapada do Norte, pertencente à microrregião de Diamantina. Esse municípioestá, tradicionalmente, ligado ao município de Minas Novas, antiga sede da comarca.Segundo os moradores, residiam, neste último, os fazendeiros e os que exploravam o ouroextraído dos garimpos mediante o trabalho escravo. O município de Chapada do Norte foiformado pelos descendentes desses escravos que trabalharam nos garimpos. Apredominância da população negra chama a atenção; muitos deles são de grande estatura.

Nas proximidades da cidade de Chapada do Norte, localizam-se diversas comunidadesrurais negras, muitas das quais reivindicam seu reconhecimento como remanescentes dequilombos: Cubas, Porções, Córrego da Rocha, Água Suja e Córrego da Misericórdia.Escolhemos esta última localidade, entre outros motivos, porque o grupo, com as congadas,participa da Festa de Nossa Senhora do Rosário, organizada pela Irmandade de NossaSenhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte.

Essa população localiza-se às margens do Córrego da Misericórdia, que dá nome àcomunidade formada por aproximadamente trinta casas dispersas, localizadas às margensdo córrego, quase seco. As terras arenosas que no passado deram ouro, abrigam essacomunidade rural a 20 km da sede do município.

Pode-se inferir que a comunidade está composta por descendentes de escravos trazidos paratrabalhar nos garimpos, mas a escravatura parece estar relegada ao esquecimento; um temanão abordado, uma amnésia estrutural, o lugar do não dito. Essa sociedade apresenta-se comoformada por uma família extensa. Os descendentes do patriarca já morto encontram-sedispersos em diversas habitações distantes em centenas de metros umas das outras. Trilhas namata entrelaçam as casas, e o casamento entre primos entrelaça a família extensa. Àsemelhança do Brejo, a maior parte dos moradores do Córrego da Misericórdia vive da roça,em economia de subsistência. As limitações desse tipo de economia expulsam os mais jovens,que vão buscar trabalho no cultivo da cana-de-açúcar em São Paulo, e favorece os casamentosentre os filhos mais velhos. Na prática, esse arranjo matrimonial evita a fragmentação daspequenas propriedades rurais. A comunidade possui altos índices de endogamia, o que ordenaas relações sociais em um denso entrelaçado orientado pelo parentesco.

O passado é valorizado desde a época em que o pequeno córrego ainda tinha ouro emsuas margens. Os habitantes guardam a lembrança dos tempos áureos, quando viviam degarimpar ouro com as bateias nos rios da região.

“Fico em casa. Agora minha família tem pouco grão; agora, com a aposentadoria, tôajudando a criar esses neto meu. Trabalho era na roça, na bateia, garimpando. Agora eudeixei, mas tudo isso eu fazia. Achava ouro.

Pra garimpar, levava a bateia e uma pá. E pegava aquilo ali e rapava assim a areia. Quandorapava, tirava a areia na bateia, punha lá, trazia de lá. Abanava assim [girando o prato comum leve movimento circular] até achar o ouro. Agora que eu deixei, porque a ‘espinhagem’não tá dando. Agora eu deixei e tô mais na roça.” (Maria dos Reis Rocha, 68 anos,aposentada, Córrego da Misericórdia.)

Ao abordarmos o tema do ouro nas entrevistas, mandaram buscar, no interior de uma dascasas, uma velha bateia de madeira, ressecada, com uma rachadura, indelével marca dapassagem do tempo. As mulheres adultas ainda lembram como usar o prato de madeira

Esse depoimento sintetiza uma situação comum para muitas famílias do Brejo dos Crioulos, aconsciência da exclusão social e da participação em uma ordem nacional (marcada pelo apeloao presidente). O depoimento traduz a sensação de expropriação, construída tanto pelaalegoria de trabalhar para dois homens e duas mulheres, quanto pela consciência daimpotência frente à perda das terras tradicionais. Destacam-se também as demandas porpolíticas sociais. A Previdência, uma das políticas de distribuição de renda que chega a essascomunidades, é altamente valorizada e permeia o depoimento do princípio ao fim. A demandaé por inclusão em igualdade de condições. A aposentadoria apresenta-se como uma rendaperiódica que brinda amparo à população idosa e mostra a possibilidade de essas populações,até há pouco tempo isoladas, serem contempladas pelas políticas da ordem nacional.

Por outro lado, valoriza-se o passado como a época de fartura, e o presente caracteriza-sepela expropriação da terra, pelo contraste com o passado, quando o acesso à terra obedeciaa arranjos tradicionais, ancorados no parentesco e não na propriedade privada. As relações detrabalho encontram-se, agora, no colete de força da privatização do acesso à terra. Os novosarranjos, trabalho como meeiro, reinscrevem práticas do trabalho tradicional – como nocultivo de milho, feijão e mandioca – com novas formas de exploração pelas quais se tem depagar metade da produção ao proprietário privado e branco das antigas terras tradicionais. Sea apropriação aconteceu por meio de processos de documentação duvidosos para essaspopulações, as relações de meeiro, vistas como exploratórias, são um dos últimos recursosdas famílias que querem permanecer em suas terras, ainda que, para isso, tenham de ficar,conforme o depoimento, “chupando o dedo” e observar a ordem do branco.

Depois da quebra do vínculo com as famílias influentes de São João da Ponte e daapropriação das terras, essas populações foram relegadas ao esquecimento, marcado pelodéficit no acesso às políticas públicas. Recentemente, na década de 1990, algumascomunidades tiveram acesso à energia elétrica e ao funcionamento de um grupo escolarmantido por uma equipe de professores leigos.

O trabalho dos que permanecem no Brejo dos Crioulos continua marcado pelo ritmotradicional. O tempo de trabalho é determinado pelas variações climáticas, maisespecificamente pela época de chuva (de setembro/outubro a janeiro) e de seca, o restantedo ano. Antes do início das chuvas, ocorre a preparação dos terrenos para a roça. Com asprimeiras chuvas, realiza-se o plantio.

“De roça, que nóis trabalha e trabalhava só na roça. Aqui nóis plantava mandioca, nóisplantava feijão, plantava arroz. Meu pai andava com a casa cheia, comprava gado, nóis viviatudo na fartura. Hoje, é como se diz, eu só tô melhor porque sou aposentada, mas se eunão fosse aposentada, eu tava era morta. Ai, meu Deus do céu!” (Furtuosa, aposentada,Brejo dos Crioulos, MG.)

O trabalho na roça tem início às cinco horas da manhã e vai até as dez, quando se realiza apausa para o almoço. Depois da refeição, os trabalhos continuam até as dezessete horas,quando tem lugar a janta e, em seguida, o recolhimento para descansar. “A vida nacomunidade é como a das galinhas. A gente acorda cedo e vai dormir ao cair do sol.” Esse climamarca o ritmo social da época compreendida entre o início da chuva e o da seca, quando sefaz a colheita. Nesse mesmo período (meados de janeiro e início de fevereiro), verifica-se oinício do ciclo de festas, marcado pela Folia de Reis e as festas para o Santo. Durante essetempo de festas, acontece o pagamento das promessas; um conjunto de festeiros oferececomidas e bebidas aos participantes e dança ao som do batuque, ritmo tradicional banto.

Passemos para outra comunidade a fim de esclarecer algumas variações na organização

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para filtrar os cascalhos do rio com um leve balanço que leva o ouro a depositar-se nofundo. Hoje, o rio está seco, e a demora das chuvas ameaça os incipientes brotos da roça.Não tem mais ouro, nem água para abrir uma roça grande.

“Tem história do ouro, da comunidade; viviam mais era com ouro em pó. Até hoje muitosprocuram, mas lá não acha mais o ouro em pó... tem gente aí que criou a família com ouroem pó e hoje não acha o ouro, não sei o que tá acontecendo com ele não.” (Eva, liderançado Córrego da Misericórdia, MG.)

O ouro é idealizado como um ganho extraordinário e complementar à roça. Ele provém deum trabalho individual, em contraposição à roça, representada como trabalho coletivo. Osmoradores das habitações dispersas reúnem-se, periodicamente, para o trabalho coletivo epara as festas. Quando de nossa visita, em um domingo, encontramos o grupo reunido emtrabalho comunitário para realizar a construção da igreja. Vários homens e mulheres, muitosdeles aposentados, trabalhavam descascando os paus que seriam transformados em teto.Eles trabalhavam na construção da igreja porque o padre ameaçou não voltar ao povoadoaté que construíssem uma igrejinha. Atualmente, a capela funciona na sala da creche. Nomesmo espaço, a líder da comunidade realiza um trabalho preventivo na área de saúde.

As festas tradicionais, como os rituais, constroem a identidade dos grupos e criamconsciência social. Centremo-nos em suas festas, as quais, como ritual, constituem umíndice que nos permite observar um tempo social mais amplo e, especialmente, a existênciade instituições responsáveis pela reunião dos grupos em um espaço social cheio designificados. Uma análise desses rituais possibilita enxergar suas diferenças e semelhanças.Apesar das variações nas danças, na composição das coreografias e nos instrumentosutilizados, eles expressam um momento extraordinário de encontro da comunidade, umarepresentação das tradições recriadas em grupos distantes geograficamente.

Nas comunidades do Brejo dos Crioulos, as mulheres ocupam um lugar central naestruturação das relações familiares. Esse fato obedece a diferentes motivos, entre os quaisse pode mencionar o costume tradicional dos homens de manterem distintos núcleosfamiliares: a família antiga, a velha e a nova4. Entre os motivos contemporâneos, pode-seapontar a migração sazonal dos homens para participar da colheita do café.Independentemente das razões, um dos fatos mais significativos é o papel de destaqueocupado pelas mulheres durante o batuque. São elas que tocam a caixa, marcam o ritmo dadança e cantam as diferentes toadas.

“Essa dança tá aqui há cento e poucos anos, ou antes. Essa dança que nóis tinha é umadança usada em festa. Quer dizer, em toda festa deles, eles faziam como se fosse de rezamais religiosa, eles rezavam as rezas, faziam os dizeres antigos, os terço, as reza; aí, após adança, iam batucar no terreiro até o dia amanhecer, até às nove da manhã batucando asdanças típicas daqui. Não tinha os instrumentos, não tinha nada; tinha essas danças típicasque eram os batuques, danças de sala, né?” (Francisco, liderança, Brejo dos Crioulos, MG).

“Botava batuque, a festa aqui era doze dias, treze dias de noite de reza. Todo dia tinhabatuque na festa. Têm muitas coisas que eu já esqueci – muito velho já – tem o xote, tinhao batuque, tinha a dança de sala, tinha tudo.” (Elisarla Pinheiro de Abril, 63 anos,aposentada, Brejo dos Crioulos, MG.)

“...As histórias era isso, tinha um batuque, tinha uma festa, nóis ia, pai não deixava ir naescola. A escola nossa era trabalhar na roça. Depois nóis tinha festa, nóis ia. Num botavanóis na aula, o estudo que ele botou foi trabalhar. Na festa que nóis ia, ele botava nóis pra

4 Costa, 1999.

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dançar um batuque, mas baile nóis não dançava. Nóis aprendeu a dançar baile porque nóisvia Sofrano tocar. Aí nóis passava, pegava a cabaça pra apanhar água e passava, quando iaapanhar água. Aí nóis aprendeu, mas não porque pai ensinou nóis, porque ele botava nóispra trabalhar. Então, nóis tudo tem essa formação, é no serviço mesmo. Nóis não temestudo, nóis aqui, os irmãos tudo não tem estudo, que dessa época aqui não tinha escola.De certos anos pra cá que tá tendo escola, e agora uma pessoa de minha idade nãoaprende mais. Cê acha que aprende? Aprende não.” (Dona Catarina, 55 anos, aposentada,Brejo dos Crioulos, MG.)

“Isso até hoje se bate uma viola, ela vai bem, ela não nega mesmo. Agora que tá parado.Ninguém tá brincando mais, os batuqueiro já tão acabando tudo; depois que eles morrem,acabou. Acabou. Era batuque, era dança de sala, era o brinquedão... Nóis tudo aqui, tanto degente, agora ficava aí, nóis... bota a viola aí, nóis dançava até o sol alto, um batuque, amesma coisa, hoje não tá o mesmo mais. Eu gostava de bater na perna... rolou ciúmemesmo... muié bastava. O que passava rasteira na muié dançava! É, no batuque tem essadança de brigar. É! O home... aí a mulher vinha e encontrava, assim, e dava uma chegadano saco, assim, do home. É isso... que parou, mas eu vou falar pro cê, que era bonito, erabonito...” (Júlia, idade desconhecida, Brejo dos Crioulos, MG).

Para a dança do batuque, forma-se uma roda com os homens de um lado e as mulheres dooutro. No centro da roda, em pares, realizam-se as evoluções. Um homem e uma mulherentram na roda de cada vez, realizam algumas evoluções e voltam aos seus lugares. A dançapossui, implícito, um forte conteúdo sexual. Antigamente, os mais velhos não permitiam aosmais jovens participar do batuque como uma estratégia para reservar o acesso às mulheres.Por outro lado, se um homem é inconveniente na dança, as mulheres literalmente oderrubam no chão, provocando o constrangimento do participante. Esse jogo sutil deencontros durante a dança prolongava-se no mato.5 Arthur Ramos (1988:150) descreve adança com o nome de umbigada, identificando-a com a dança quizomba, de Angola.

Muitos dos aposentados entrevistados durante o dia, de aparência frágil e que, por vezes,pareciam desmemoriados, participaram ativamente da dança. A festa tradicional e a dançarepresentam, para esses aposentados, o “bom viver”, o momento quando o grupo apresentaa sua identidade e as relações sociais são atualizadas. A participação dos homens e dasmulheres no batuque reflete a estrutura social do grupo. Na dança, representa-se e coloca-se em jogo o controle do acesso às mulheres. No batuque, participam as mulheres e oshomens mais velhos; antigamente, era proibida a participação dos mais jovens.

“Meu pai me conta um causo que o véio Benze... é o tio do meu pai, ele é pai da donaIsaura. Ele... meu pai era, então, um rapaz mais novo. Antes, onde tava os mais velhos, osmais novo tinha que respeitar; onde tavam os mais velhos, os mais novo mesmo... tinhamque recuar. Ele tinha desejo; aí, as muié que tava dançando tinha preferência pelos maisvelho, e os mais novo não tinha preferência. No meio daquelas muié, meu pai tinha aqueledesejo, mas num podia... os mais velho não deixavam... Aí meu pai sentia desejo de darumbigada naquelas muié...

E tinha muié gorda e tinha muié magra; então, meu pai ia na mata onde tinha as madeira,o tamboril, que era madeira gorda, e usava como as muié gorda... E, quando era uma árvoremagra, fina, era a muié magra lá do batuque, certo? Então ele disse que o Benze o viu, e foiseguindo ele. Ele não viu. Aí ele veio de cá, ele batucava de cá, assim, e encontrava com asmuié, chegava no pau, tam... Ele batucava e falava e fulano, só gritava o nome da muié e

5 Costa op. cit.

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cantando por causa daquele pé de milho todo enfeitado. Tinha biscoito, fazia uma comida,levava, quando chegava cantando do “terreiro”, no terreiro dos camaradas também, epegava a bandeja com cachaça depois. Tinha era a bandeja com a cachaça enfeitada, vocêpegava e passava pra lá... a cozinheira entregava aos camarada a bandeja com a garrafaenfeitada e recebia o pé de milho. Aí fazia aquela festa na chegada, e aguardavam a vinda,os camaradas iam tomar o banho deles; e à noite tinha a brincadeira, tinha jantar e tinhaas brincadeiras que é da congada, dança de sala, dança de roda, vários tipos de roda quetinham e, acabando, véio morre.

Esse véio morreu, as lavouras... o pessoal não ficou fazendo mais lavoura igual fazia, porquea chuva tá sendo muito pouca. Às vezes até tinha lugar que planta e dá qualquer coisa,porque, conforme o tempo da chuva, plantou e não colhe nada do mesmo jeito, porque achuva tá sendo pouca, né? E aí esse velho acabou morrendo e, quando esse velho morreu,esse pessoal não tá fazendo mais aquela roça, aquela lavoura igual esse velho fazia. E essetrabalho cultural ficou parado, porque mesmo esse pessoal que faz a roça não vai fazerquantidade de fazer festa igual o véio fazia.” (Eva, liderança comunitária, Córrego daMisericórdia, MG.)

Vale ressaltar alguns elementos dessa festa como ritual. Por um lado, a existência de ritossemelhantes em outros remanescentes de quilombos visitados, como a dança do auie entreas comunidades do Rio Trombetas, no Estado do Pará. Nessa dança, uma planta enfeitadacom fitas e moedas ocupa um lugar central nos festejos. Por outro lado, é possível inferir, apartir do milho enfeitado, um simbolismo relacionado à fertilidade e à abundância queencerra o trabalho coletivo realizado pelos homens. Finalmente, a garrafa de cachaça, comoveremos, aparece também na festa da Irmandade. Nesse caso, indica o início da festa, umperíodo de atualização da comunidade e um momento de permissão para certoscomportamentos extraordinários, incomuns no cotidiano.

A música é executada por uma pequena banda de homens, composta por violões, pandeiros euma sanfona. Durante a festa, as danças são acompanhadas pelo consumo de cachaça e sãopermitidos comportamentos normalmente censurados. Liberdade e permissividade marcamesses momentos, quando os homens, responsáveis por marcar o ritmo das danças, tentamconquistar as moças. Aí a permissividade traduz-se no consumo de bebidas por parte,inclusive, de adolescentes e crianças. Um ar de embriaguez permeia o ambiente marcadopelos cantos e pelos ritmos que encerram o trabalho coletivo em uma festa que se estendeaté o raiar do sol. Nessa dança coletiva, participam velhos, jovens e crianças. Durante nossacurta estada na comunidade, pedimos que fizessem uma apresentação da congada, a fim deregistrar esse importante momento da vida comunitária. Ficamos emocionados ao ver, entreos dançarinos e músicos, muitos dos aposentados entrevistados ao longo do dia.

Como assinalamos anteriormente, os membros desses remanescentes de quilombos,expropriados de suas terras mais produtivas, vivem hoje em uma economia de subsistência.As comunidades estão formadas basicamente pelos mais idosos, os primogênitos dasfamílias e as crianças mais novas. Uma parte importante dos grupos viu-se forçada a migrarpara trabalhar na colheita da cana-de-açúcar ou em outras atividades produtivas em outrosestados. Esses migrantes voltam à comunidade para as festas do santo padroeiro, ocontexto mais amplo que dá sentido aos batuques e às congadas. Nesses momentos, ogrupo se reagrega e atualiza os vínculos. Muitos dos migrantes enviam dinheiro a seusparentes para poderem participar da festa, como uma forma de pagar promessas. Outrafonte de recursos utilizada para a realização dos festejos é o dinheiro dos aposentados, os

dava uma chegada de saco no pau. Aí vai e vai, e o tio seguindo ele. Aí chegou num pontoque ele achou um tamborilzão bem grosso no meio do caminho e falou: ‘Ah...’ Fez umtemorso assim... E ameaçou e foi lá e deu uma chegada assim e falou e fulano, o nome damuié, né? Ficou agarrado, sabe? Aí meu tio deu uma risada assim aberta, como ele nuncatinha dado; aí meu pai não riu mais, nem brincou, porque o véio riu. Ele tava com vergonhaporque tinha feito muito feio” (Francisco, liderança, Brejo dos Crioulos, MG.)

O batuque foi um tema recorrente entre os entrevistados. Perguntamos se podiam fazeruma apresentação para registrarmos a dança. Eles mobilizaram-se rapidamente emanifestaram dedicação e empenho na sua realização. Mandaram buscar as roupas queconfeccionaram para as apresentações e realizaram-na, excepcionalmente, à tarde, para quea luz natural fosse aproveitada para as fotografias. Os participantes desse grupo eram, emsua maioria, os aposentados entrevistados durante o dia, aos quais se somaram outros dascomunidades vizinhas.

Essas festas, que duram a noite toda, funcionam como um ritual de inversão e de agregação.Como ritual de inversão, a festa, o espaço lúdico, contrasta-se com o dia, a hora de trabalhoe sacrifício. Como ritual de agregação, é o momento de o grupo fazer-se sensível para si epara os outros (Costa, 1999). Esse caráter de agregação é mais evidente e explícito nasfestas do Córrego da Misericórdia.

Passemos agora para as festas do outro grupo, na Chapada do Norte. As congadas têm suaorigem, segundo os habitantes do Córrego da Misericórdia, em uma antiga tradição mantidana comunidade pelo pai do Sr. Cesário. Naquela época, quando chegava o tempo depreparar a terra, o dono do terreno convidava seus vizinhos para realizar o trabalhocoletivo: “Ele convocava dez homens, mas apareciam vinte ou mais”. Enquanto os homens iampreparar a roça, as mulheres permaneciam em casa, preparando a refeição. Ao finalizar otrabalho, eles escolhiam uma planta bonita, um pé de milho, que era todo enfeitado comflores, fitas de cores e notas de dinheiro. Voltavam para a casa do anfitrião carregando o péde milho enfeitado e eram recebidos pelas mulheres, as quais os esperavam com umagarrafa de pinga enfeitada. Eles davam o pé de milho e recebiam a garrafa de cachaça.Depois desse intercâmbio ritual, começava a festa, quando comiam, bebiam e dançavamcongada e outros ritmos até o raiar do sol.

“O que eu sei passar mais ou menos é o que a gente pegou do avô dele, né? É quejustamente o avô dele era lavorista e, quando dava nesse tempo que se chamava pra plantarlavoura, aí chamava e descia cinqüenta; só que hoje você chamou cinqüenta, vai dez, né?

Então ia essa turma pra roça trabalhar e, lá trabalhando, ele, o dono da roça, contratava oscamaradas e, no caso de ele ficar satisfeito e terminasse a lavoura durante o dia, à noitefazia brincadeira para ele com os camaradas.

É, aquilo ele saía olhando o pé de milho que tivesse maior, umas flor, que na casa tinha nomeio da roça; o nome é parreira, inclusive eu tenho até ele ali... Ele tava muito satisfeito e,quando era tarde, já pegava aquele pé de milho e mandioca que achava no meio da roça,pegava as flores que tinha encontrado e enfeitava esse pé de milho com dinheiro e traziapra casa, e em casa tinha cozinheira que fazia a comida pra todos eles.

Aí ele enfeitava esse pé de milho que ficava lá com a bandeira, e traziam. Só que ele vinhada roça cantando e, quando chegava em casa, encontrava aquela cozinheira também lácom a garrafa de cachaça na mão, que era enfeitada também, justamente as mulheres coma cachaça e o dono da roça com o pé de milho enfeitado nas costa. Aí fica a turma

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vadiando, brincando com ele aqui no carrinho e tem outro neto, nasceu e criou aqui dentro decasa com a parteira.

Olha pra vocês verem, esse meu osso dói demais, e porque eu já trabalhei demais e játrabalhei muito, se você vê essa roça aí, desse pé de pau pra lá até embaixo é minha. Tenhoroça pra acolá, tenho o fundo de um brejo, mandei armandei armandei armandei armandei arararararar,,,,, tava aí com um quebr tava aí com um quebr tava aí com um quebr tava aí com um quebr tava aí com um quebradinho,adinho,adinho,adinho,adinho,fffffiquei sem os quebriquei sem os quebriquei sem os quebriquei sem os quebriquei sem os quebradinhoadinhoadinhoadinhoadinho, mandei arar, qualquer hora que Deus abençoar e mandar adivina [chuva], eu corro e planto. E essas terras daí eu vou dar de amigo, que eu não vouagüentar roçar, é problema demais, é febre demais, eu sinto problema nos músculos, eentão eu vou dar de amigo, eu moro aqui.

É, crio uma galinha, então Deus dá o milho, e a gente vai comendo. Quem vai garantircomprar carne cara do modo que tá? Então, a gente tem que fazer força, criar uma galinha,criar um porco, não é? E tratar, jogar o milho, porque a gente não pode deixar só naaposentadoria, e cada vez agora as coisas saem mais dinheiro. Olha aí, ó, agora mesmo eu tôcom dois meses que não compro um gás. Tem um fogão a lenha, mas agora pra fazer acomida só com a lenha da mata, a gente pega na mata. Como eu vou comprar um gás, comque dinheiro? Ai, eu não tô agüentando cortar com machado mais não.” (Dona Catarina, 55anos, aposentada, Brejo dos Crioulos, MG.)

Outra compra altamente valorizada é a do botijão de gás, mas a renda não é suficiente paraisso todos os meses, motivo pelo qual normalmente preparam os alimentos no fogão alenha. Finalmente, outro gasto apontado é com a educação dos netos ou dos filhos decriação, que acompanham esses aposentados em sua velhice, quando ficam sozinhos devidoà migração ou à morte dos filhos biológicos. Outros depoimentos são enfáticos na comprade carne, realizada quando vão receber os benefícios.

Furtuosa: – “Uai! Não, o que eles dá de dinheiro é bom, não tem que falar nada. É isso? Ébom. É, graças a Deus, com as coisas que tem, come carne com arroz, feijão com carne.Antes de aposentar, era difícil comer carne aqui. Bom, antes de aposentar não comiamesmo não, mas aposentando, começamos a comer carne.”

únicos que possuem uma renda fixa e regular nesses remanescentes de quilombos.

Por fim, abordemos o tema do dinheiro nessas comunidades tradicionais. As principais fontesde renda são as aposentadorias, e sua importância depreende-se das numerosas menções aosbenefícios ao longo dos depoimentos. Essas rendas são complementadas com o dinheirorecebido dos que migraram e com a venda de alguns produtos oferecidos na feira ou nomercado local. Esses produtos podem ser alguma saca de milho ou um saco de farinha. Odinheiro da aposentadoria é visto como aquele que os tira da linha de pobreza.

“Com a aposentadoria mudou, eu fiquei foi boazona. Antes de eu aposentar, eu estavasofrendo, eu tava sofrendo. Depois, com a aposentadoria, melhorou. Eita, graças a Deus,moço.” (Dona Furtuosa, aposentada, Brejo dos Crioulos, MG.)

O dinheiro da aposentadoria, além de ser utilizado nas festas patronais, é usado na comprade alimentos, remédios, bens duráveis e no transporte. Nos depoimentos, os aposentadosmanifestam que, sem o dinheiro da aposentadoria, não poderiam viver. Com ele, cuidam dasaúde tanto pela compra de medicamentos, como pela compra de diversos gênerosalimentícios. O depoimento a seguir ilustra a utilização dos recursos da aposentadoriatambém para o pagamento de serviços eventuais realizados pelos mais jovens, como arar aterra ou cortar a lenha.

“Graças a meu bom Deus, depois que eu aposentei, não me falta as coisas dentro de casa;eu compro saco de arroz, saco de feijão, eu compro quatro quilos de café, dez quilos deaçúcar, meu sabão, eu tenho tudo; a sobra de um quebradinho eu guardo pra pagar contade luz e eu ter o dinheiro pra eu pegar o ônibus. Agora, isso aí eu não escondo, beber umacerveja, eu bebo.

Então, o que eu tenho para contar é isso aí. Tô louvando a Deus, porque Deus preparou,porque eu tenho o meu gainho, meu dinheirinho que todo mês eu apanho, graças a meu bomDeus! Nunca fiquei com fome, graças a meu bom Deus! E essas duas meninas, ó, eu tenhouma mulher que lava pra mim: é a esposa do meu filho. Eles têm filho e mora aqui comigo,mas depois eles vão fazer a casa deles. Pois é, eu tenho dois netos, aquele que o moço estava

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Francisco: – “Naquele tempo matava gado, eles comia carne, mas depois de um tempo quedeu pra viver, questão do território ficou pequeno, eles viveu em crise, não comia quasecarne. Eles comia mesmo, mas depois foi apertando, se foi perdendo, o que colhia não davamais pra família, aí passou uma crise e não comia quase carne, não tinha dinheiro. Depoisveio a aposentadoria, mesmo com o território pequeno, a gente é trabalhador rural, nãodepende mais da terra pra trabalhar, mesmo com a terra pequena, está comendo carne;não tanta, mas no dia que vai lá, compra uma carninha!”

Furtuosa: – “É, compra!!!”

Francisco: – “Como a família dela é pequena, dá pra comer carne, mas, se a família delafosse grande, também não dava pra comer carne o mês inteiro. O dia que vai lá, compra.Passa muitos dias sem comer carne de vez em quando. Nóis não vamos falar que dá pracomer o tempo inteiro, que também não dá.”

O emprego do dinheiro da aposentadoria é semelhante nas diferentes comunidadesremanescentes dos quilombos visitadas, como se pode concluir a partir do depoimentoseguinte. A aposentadoria não implica, necessariamente, deixar de trabalhar e é valorizadacomo uma renda que permite custear os gastos necessários para alimentação emedicamentos.

“O dinheiro da aposentadoria ajuda e muito. Eu era pobrezinha e fiquei sem pai, sem mãe.Vivia lá bateando, na bateia, pra comprar alimentação. Tinha uma irmã minha que eradoente, ela não trabalhava; eu vivia trabalhando pra dar de comer. Eu plantava milho,plantava tudo sozinha. Ainda ia bater bateia pra comprar alimentação.

Ajudou, favoreceu eu. Eu ainda faço minha roça, ainda não fico sem minha roça, mas aindafaço, acabo mexendo aí, e a aposentadoria ajuda. A gente dá um jeito em casa com a ajudada aposentadoria e a gente vai tocando aí pra fora. Tem que gastar muito, comprandoremédio direto também.” (Adelina, 63 anos, aposentada, Córrego da Misericórdia.)

A aposentadoria é algo relativamente novo para esses grupos. Uns poucos a recebem desdea época do FUNRURAL. A maior parte teve acesso aos benefícios durante a década de1990 por meio de parcerias entre a Previdência e os sindicatos de trabalhadores rurais.

Um dos problemas enfrentados consiste na falta de documentos de identificação por partedessas populações que, até bem pouco tempo atrás, mantinham uma relação de autonomiaem relação a outros grupos sociais. Trazemos dois depoimentos de quilombolas, um de umapessoa ainda indocumentada e outro de uma aposentada que completou o processo dedocumentação mobilizada pela expectativa de obtenção do benefício.

“Tem documento não. Logo que começou, tirou, mas tá parado. Não. Nada. Nunca. Batistériomeu? Eu não sei, se eu tiver não lembro, porque aqui, quando a gente nasce, ninguém sabe,né? Agora, de batizado que eu vi, foi de uma menina minha, que batizou que eu vi. Masbem, o meu eu nunca vi. Antigamente, não tinha contato fora, então, não batizava. Há poucotempo que tem. No tempo meu, tinha não, no tempo meu, no tempo do pai dele aí, ó.

Não tirei batistério, não sei a idade não. A mãe minha nem deu ela pra mim. É, se ela tivessedado ela pra mim, eu sabia, mas ela não deu. Se pai que é pai não dá pro filho, né? Que setivesse sabido minha idade, tava bão, mas eu não sei de minha era. É porque eu não sei,porque é os pais que deve de informar pros filho, né? Os pais não informam pra ninguém.”(Júlia, idade desconhecida, aproximadamente 60 anos, Brejo dos Crioulos, MG.)

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Apenas algumas pessoas em condições de pleitear a aposentadoria como “trabalhadorrural” não possuem o benefício. É o caso de D. Júlia, indocumentada. Apesar dessa crítica, oserviço tem o reconhecimento da população. As comunidades visitadas apresentam bonsíndices de cobertura previdenciária; a maior parte dos idosos em condições de seaposentarem usufrui do benefício, independentemente das questões de gênero.

“Pra mim, aposentar deu bem trabalho; porque eu não tinha os papeis certos, tudo certo.Para eu aposentar, perdi cinco anos de aposentadoria. Me aposentei tava com sessentaanos. Foi bem difícil pra mim. Eu aposentei no sindicato é de trabalhador rural. Cresci noserviço, trabalhando mais com meu pai, né? Então continuei na enxada, no pé de cana e namandioca. Desde pequena trabalhando; imagina se não vai dar para aposentar, tá ruim pramim. Mas hoje deu certo. Faz três anos que aposentei.” (Adelina, 63 anos, aposentada,Córrego da Misericórdia, MG.)

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A Previdência é uma das poucas políticas sociais a chegar a esses grupos rurais que vivemhoje de uma agricultura de subsistência. Espera-se que esses recursos permitam ajudar apopulação abaixo da linha de pobreza a melhorar sua situação. Esses grupos reconhecem ascontradições enfrentadas e têm a Previdência como referência à possibilidade de aspolíticas nacionais chegarem às regiões rurais. Atualmente, a principal queixa é motivadapela demora na aplicação do artigo 68 das disposições transitórias da Constituição de 1988,o qual trata do reconhecimento das terras dos remanescentes de quilombos.

“É o que o INSS tem. Mesmo antes de a gente ser reconhecido como remanescente dequilombo, o INSS tem aposentado bem a gente. Aí, após o reconhecimento, também o INSSvem vindo ajudar aqui na forma de combate à pobreza, com salário maternidade, mesmo aaposentadoria, auxílio doença... E o INSS tem ajudado muito também nessa parte, estãotentando ajudar mais. Tamo aí pra receber.

Esse dinheiro é na comunidade. As pessoas fazem casa, arrumam casa e se alimentammelhor. Você toma seus remédios melhor. Então, por aí já vai acabando mais com a pobreza,com as necessidades. E aqui mesmo, a mulher fez o salário maternidade, o crescimento deuma casa, fez um barraquinho também depois que teve o INSS. É, os idosos têm seudinheiro pra melhor alimentar e comprar também seus remédios em paz, que a pessoa,quando tá idoso, não tem como não ter as doenças. Eu acho que o INSS é ideal nessaparte. Tem um pai de família também que tá adoentado, vem o auxílio doença. Então é poraí, acho uma coisa que é pra entrar. Eu acho muito bom, assim, aproximar do INSS.

Porque as terras boas tava na mão do pessoal daqui. E a terra boa foi o alvo dosfazendeiros, tá na mão deles; então, o pessoal não tem como plantar tudo aquilo que agente deseja plantar mais. É, foram expulsos das suas terras, vieram juntados, sãotrabalhador rural, mas tamo dependendo das nossas terra, né? Nóis hoje tamo com a causana procuradoria, nóis tamo exigindo do governo o reconhecimento como remanescente dequilombos. Toma uma providência prá nóis, pra resolver essa causa o mais rápido possível,

pra colocar essa família que trabalha de volta pra produzir como produzia antes.

Aqui, antes, pra nóis, vendia arroz, feijão, vendia banana. Agora, nóis não temos fartura. Hojenóis encontra uma dificuldade dessa que... se não fosse o INSS mesmo, a gente não seaposentava, né? Tem salário-maternidade, tem ajudado muito a gente. Pelo menos quemtem na casa um aposentado, já ajuda, né? Eu sinto aqui que o INSS tem ajudado muito.

E depois quem tem uma aposentadoria, a coisa melhorou. Às vezes o pai da gente éaposentado, o pai tem três, quatro, cinco filhos que é casado, mas ele não vai agüentar veraqueles filhos dele passar fome; às vezes ele ajuda com um peixe... então, arrumar umbiquinho pra modo dele manter. Depois que tem uma aposentadoria, acabou a miséria aqui.Uns passam necessidades, mas não era uns muitos depois que teve a aposentadoria.”(Francisco, liderança do Brejo dos Crioulos, MG.)

Ao longo do capítulo, analisamos duas comunidades que reivindicam a condição deremanescentes de quilombos e preenchem os requisitos legais para terem suas terras assimdemarcadas. Ambas as comunidades ocupam terras tradicionais; em um dos casos, é umquilombo como zona de refúgio; no outro, uma terra tradicionalmente ocupada por umafamília extensa há várias gerações. As duas comunidades vivem em economia de agriculturade subsistência e têm direito à aposentadoria rural como segurado especial. A tendência àuniversalização da política de Previdência Social na área rural, juntamente com a política deatendimento descentralizado, criou uma rede capaz de atingir esses remanescentes dequilombos nas áreas rurais. Esse atendimento é realizado em parceria com sindicatos detrabalhadores rurais e com as equipes da Previdência responsáveis por levar os serviçospor meio das agências montadas no PREVmóvel. Apesar dos problemas enfrentados quantoà posse da terra, essas populações rurais não estão excluídas do sistema de PrevidênciaSocial. A Previdência apresenta-se, ao longo dos depoimentos, como referência àpossibilidade de o governo produzir mudanças; por exemplo, na posse definitiva da terra.

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A Irmandade de Nossa Senhorado Rosário dos Homens Pretos

Passemos agora aos núcleos urbanos, às vilas formadas na época da colonização, hoje, cidadessedes dos municípios. É nesse contexto urbano que encontramos as Irmandades de NossaSenhora do Rosário dos Homens Pretos. A Igreja teve um importante papel em relação àspopulações negras, seja pelo apoio, pela omissão ou por ter servido de referência aosincretismo das crenças dessas populações. Nesta seção, será analisada a Irmandade de NossaSenhora do Rosário dos Homens Pretos, criada por aqueles negros, escravos ou alforriados,que se organizaram no seio da Igreja. No próximo capítulo, será analisado o candomblé, queutilizou, por muito tempo, os santos católicos para continuar louvando seus orixás.

Gilberto Freyre descreve as irmandades negras como: “verdadeiras organizações dedisciplina, com os ‘reis do Congo’ exercendo autoridade sobre ‘vassalos” (2002:409).Guerra-Peixe (1981) procura a origem das irmandades na instituição do Rei do Congo,criada pelos portugueses para evitar rebeliões e insurreições entre os escravos. Segundo oautor, as informações mais antigas sobre a instituição do Rei do Congo, em Pernambuco,datam de 1711, em Olinda. Cada paróquia tinha seu rei, sua rainha e sua corte. Os reiseram eleitos, e o ato solene da coroação e da posse acontecia no dia de Nossa Senhora doRosário, quando o pároco da freguesia coroava os reis. Ele assinala que, em Recife, essainstituição foi estabelecida, pelo menos, em 1674, segundo registros de diversos reinados.Com a proibição do tráfico de escravos e, finalmente, com a abolição da escravatura, ainstituição, segundo o autor, desaparece em meados do século XIX, mas persistiria emRecife o “auto dos Congos”, como a representação de uma peça teatral, um auto-religioso.

Verger (2002.a:546) menciona a existência de diversas irmandades que agrupavam osnegros de acordo com suas nações de origem. O autor menciona também a existência dejuntas ou sociedades de alforria. O caso analisado por meio da documentação históricamostra a organização de escravos e libertos em uma sociedade que funcionava como uma“caixa de empréstimo”. Segundo os documentos sistematizados, essas caixas deempréstimos estavam organizadas de acordo com uma chefia, a qual recebia o dinheiro etomava conta das quantias recebidas como amortização e prêmios, além de um cobrador ejuízes que, em caráter ordinário, reuniam-se aos domingos. Os associados tinham o direitode retirar o dinheiro em caso de necessidade. O propósito dessa poupança era conseguir orecurso necessário para a compra das cartas de alforria. Quando o mutuário retirava odinheiro necessário para sua alforria, podia receber um empréstimo que depois devolveria à

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junta com juros. O autor analisa o caso da Irmandade de Nossa Senhora da SoledadeAmparo dos Desvalidos, criada em 1832. O número de associados não era limitado, mastinham de ser pretos. O estatuto estabelecia, no seu artigo 3O, que era estritamenteproibido revelar a parentes ou amigos o discutido nas reuniões do comitê. Numerososmembros dessa confraria eram, ao mesmo tempo, cristãos e muçulmanos e faziam parte daConfraria de Nossa Senhora do Rosário das Pessoas de Cor, no Pelourinho.

Na mesma obra, Verger (2002.a:555) mostra como as várias nações africanas estavamagrupadas em diferentes “cantos” da cidade e também organizadas em torno de confrariasreligiosas ligadas a diversas igrejas. Uma das mais antigas, fundada na Igreja de NossaSenhora do Rosário do Pelourinho, em Salvador, BA, era a Confraria Venerável OrdemTerceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo. Essa confraria, no ano de1786, encaminhou uma carta às autoridades reais solicitando permissão para utilizar asmáscaras, realizar as danças e os cantos angolanos, assim como para usar os instrumentospara “cantigas e louvações”. Os “daomeanos jejes” formaram, em 1752, a Confraria doSenhor Bom Jesus das Necessidades e Redempção dos Homens Pretos em torno da Igrejado Corpo Santo, na cidade baixa. As mulheres nagô-iorubas da nação “queto” formaram aConfraria de Nossa Senhora da Boa Morte. O autor ainda observa que: “Foi à sombra destaigreja que se reuniram os primeiros participantes nos cultos dos deuses africanos destanação queto” (Verger, 2002:555).

Sousa (2000) assinala que os terrenos da irmandade, onde estava construída a igreja,serviam também para a construção de moradia para os escravos alforriados membros dairmandade, o que criou verdadeiros bairros. Outras das preocupações eram com a “boamorte” dos irmãos e com a organização das festas, durante as quais se apresentava,cenograficamente, a organização social das irmandades.

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ainda funciona empequenas cidades do interior de Minas Gerais. Em lugares como Olinda, Pernambuco, aconfraria ainda funciona em torno de um presidente e não tem reis, nem tambozeiros,assim como não realiza a festa da nossa Senhora do Rosário. Em outras cidades, comoSobral, no interior do Ceará, a confraria não funciona há décadas, mas ainda é possívellocalizar alguns antigos participantes. As terras ao redor da igreja, antes destinadas àconstrução de habitações para os alforriados, transformaram-se em bairros urbanos, tantoem Sobral como em Olinda.

Durante o trabalho de campo, foi possível realizar entrevistas com participantes daIrmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que funciona nas localidadesde Chapada do Norte e Araçuaí, ambas em Minas Gerais, assim como com participantes daConfraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos em Olinda, Pernambuco. Essasirmandades possuem registros datados do início do século XIX, mas presume-se quevieram formalizar o funcionamento de irmandades já em atuação na época, no caso deOlinda, desde 1667.

A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos remonta-nos ao BrasilImperial e, mais longe ainda, à época da colônia, quando as relações entre os homens e oEstado eram mediadas pela Igreja. Antes da República, pertencer às diferentes irmandadeslevava ao reconhecimento como pessoa, como cidadão. A participação na vida social e atémesmo o direito a uma “boa morte” eram mediados pela Igreja, em particular para osnegros residentes na cidade, fossem livres, alforriados ou escravos.

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As irmandades, uma forma de organização leiga, constituíam diversos grupos dentro daigreja. Na Europa medieval, esses agrupamentos eram marcados pela clivagem dosdiferentes ofícios; na América portuguesa, tiveram uma marca racial. Várias irmandadestomaram parte da empreitada de colonização territorial/espiritual no Brasil. Comfreqüência, elas tinham uma clivagem racial, como ocorre com a Irmandade do Santíssimo,composta exclusivamente de brancos, e com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário,composta por negros.

“Naquela época, o negro não podia freqüentar igreja, ser enterrado como cristão. Aí o queeles faziam? Eles chegavam ali e, dali pra trás, eles se reuniam. E construíram essa igreja ali,escondida. Depois que eles construíram essa igreja, teve muita polêmica entre os negros, osbrancos da igreja do Amparo, os militares – que é São João a igreja dos Militares, aquelaque fica lá em cima – e Guadalupe, a igreja dos pardos. Aqui, como você está vendo, éformado um triângulo de igrejas: Rosário, Amparo e Guadalupe e, no meio, a igreja de SãoJoão dos militares, que era pra que não tivesse briga quando eles se encontrassem, naépoca. Aí dá esse triângulo. Lá no Guadalupe, era a igreja dos homens pardos; Amparo, doshomens brancos; e Rosário, dos negros. Aí eles construíram, no meio, a igreja dos militares,na época. Foi quando, no Campo de Bonsucesso, tinha um quartel, aí na frente onde hojetem o campo de futebol.

Na igreja do Rosário, tinha um cemitério no assoalho dos negros. Porque esses negrosforam, nessa época, pessoas que não tinham… Eram discriminadas por toda a sociedade, equeriam se valorizar. Através disso que eles brigaram pra encontrar toda essa parte, mas foicom tempo.” (Nilson Canuto de Santana, presidente da Confraria de Nossa Senhorado Rosário dos Homens Pretos, aposentado, Olinda, PE.)

A igreja oferecia poucos referentes negros, como São Benedito ou um dos reis magos,Baltazar, também negro. Nesse contexto colonial e escravocrata, no qual os negros nãopodiam compartilhar a igreja com os brancos, teve lugar a criação da Irmandade do Rosárioem torno do culto a São Benedito, o mouro, um dos poucos santos negros da igreja católica.A imagem do santo está associada ao culto a Nossa Senhora do Rosário nas procissões:

“Ah, à tarde, a imagem segue em procissão, sempre acompanhada de São Benedito. VaiNossa Senhora na frente e São Benedito atrás, ou então São Benedito na frente e NossaSenhora atrás.” (Sr. Pedro Antonio Ribeiro Pereira, presidente da Irmandade de NossaSenhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)

Pensou-se a irmandade, inicialmente, como um espaço para a catequização e o controle daspopulações negras. Com o tempo, essa ordem leiga foi ganhando autonomia e transformou-se tanto numa sociedade de assistência aos irmãos mais necessitados, como em um lugarpara a reprodução das tradições africanas com certa transformação. Muitas das irmandadesorganizaram-se nos séculos XVII e XVIII. No século XIX, frente às pressões da IgrejaCatólica para a romanização da liturgia, para controle do catolicismo popular, as irmandadespassaram por um processo de formalização que incluiu, em um primeiro momento, o seuregistro frente ao governo e à Igreja (Sousa, 2000). A partir daí, tiveram de realizar umregistro de seus regulamentos e lavrar as atas das reuniões. Os Livros das irmandades,datados de finais de 1800, transformaram-se em um valioso documento de testemunho daantigüidade desses agrupamentos.

Diversos propósitos contribuíram para a sua criação. Tanto o auxílio aos irmãosnecessitados como a “boa morte” foram os objetivos responsáveis pela estruturação da

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irmandade de forma permanente. Outro dos propósitos era a construção da igreja – quelevava o nome de Nossa Senhora do Rosário – e sua manutenção. Durante o século XVIII,os mortos eram enterrados na igreja; só a partir do século XIX, passaram a ser enterradosem cemitérios públicos. Muitas das irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos HomensPretos, como a de Araçuaí, ainda têm um cemitério próprio nos fundos da igreja. Na épocado império, a cidadania era mediada pela Igreja, e os negros só podiam participar dela pormeio das irmandades. O negro que não participasse, não tinha direito a uma “boa morte”,ou seja, a ser enterrado como um ser humano.

“Porque, antigamente, os negros, quando morriam, eram jogados no mar. Então elesconstruíram, atrás da igreja, um cemitério para os negros, e essa Irmandade dava todo o apoioà comunidade negra daqui de Olinda. Quando eles formaram essa Irmandade, em 1628... foiformada aqui em Olinda, aí foi pra do Rosário dos Homens Pretos do Recife, e lá eles nãotomaram a iniciativa de levar a coisa à frente. Depois foi pra Igarassu, na Igreja do Rosário dosHomens Pretos. E lá também passou vários tempos e não teve como dar prosseguimento. Aífoi quando veio. Voltou novamente pra Olinda, em 1748, e foi quando foi formada aIrmandade. Aí ela passou a ser divulgada em todo o Brasil. Foi a primeira irmandade negra, decomunidade negra.” (Nilson Canuto de Santana, presidente da Confraria de NossaSenhora do Rosário dos Homens Pretos, aposentado, Olinda, PE.)

A festa de Nossa Senhora do Rosário é a expressão mais visível da Irmandade, o momentodurante o qual esta é representada e as tradições afro-brasileiras, atualizadas. Algunsautores, como Guerra-Peixe (1980) e Katarina Real (1990), vêem na coroação dos reis umaanalogia à coroação dos reis africanos do Congo, ou consideram a apresentação um auto-religioso ou uma reminiscência dessa instituição. Nosso interesse está nas suas implicaçõescomo ritual, nos elementos simbólicos reproduzidos, na organização social que a sustenta. Afesta transforma-se em um momento de inversão de hierarquias, onde os negros ocupam olugar central nos festejos em uma sociedade que os relegou à periferia.

Detenhamo-nos na descrição da série de eventos que compõem o ritual da festa de NossaSenhora do Rosário dos Homens Pretos. Essa série de eventos inicia-se vários meses antesda festa propriamente dita com a instalação da mesa do futuro festejo dos reis. Duranteuma reunião de todos os membros da Irmandade, ocorre a eleição do rei festeiro, da rainhae dos juízes. Essa eleição é realizada por votação secreta, e os candidatos têm de sermembros da Irmandade.

O Rei e a Rainha, também conhecidos como festeiros, são eleitos anualmente. A eleiçãoacontece de acordo com uma tríade de nomes propostos em assembléia. Os votos dosirmãos definem quem serão os escolhidos. Atualmente, um dos eleitos pode ser branco oumestiço, mas o outro tem de ser negro. Segundo a tradição da Irmandade, caso os doisindicados para o reinado sejam brancos, a eleição é anulada, e realiza-se uma nova votação.Realizada a escolha dos reis, os tambozeiros anunciam a decisão com seu toque. A festa deNossa Senhora do Rosário entrelaça as festas religiosas do catolicismo popular e os rituaisafricanos, marcados pela presença dos tambozeiros.

A festa é precedida pela organização de uma novena, da qual participam os membros daIrmandade. Cada um desses encontros é organizado por um grupo. Vale notar que a novenaé um culto católico que dispensa a presença do sacerdote. Durante a sessão, os irmãosreúnem-se, rezam, passam recados à comunidade; ela é, antes de tudo, um momento deencontro periódico e reforça tanto os vínculos dos homens com Deus como as relaçõesdentro do grupo.

Dentro da Irmandade, a maior honra é ser o festeiro. É o rei quem se mobiliza paraoferecer a comida e a bebida consumida nesse ritual de comensalidade. Os fundos para afesta são levantados com as doações pedidas pelo festeiro e com a organização de umleilão, onde são vendidas roupas e comidas. O prestígio do rei é proporcional à quantidadede alimentos e bebidas conseguidos para a festa.

“Bem antes da festa, uns quinze, vinte dias, clareia tudo pra quem é rei, porque aí você vai,porque realmente gasta muito, porque é uma festa tradicional, que nunca pode acabar essatradição. Nós até queremos fazer um pouco de economia, mas não tem condições. Na festa,não tem; você gasta mesmo. E a pessoa que ajuda tem, já é tradição, um nicho cativo. O JoãoNeiva, ele sempre dá uma vaca pra matar pro dia da festa. Madre Iani faz a comida prostambozeiros e pro resto, o pessoal da Irmandade ajuda.

Quando tem, no mês de agosto, quando vem chegando a festa, o rei e a rainha pegam acoroa da mão do presidente pra retirar donativos. Cada um pega o que tem, e a pessoa dá20 centavos, 30 centavos, 1 real, 10 reais, pra ir juntando pra gastar na festa. Isso a genteconsegue, dá muito trabalho, mas vale a pena, porque o dia que você entrega, você fica todoemocionado. Eu mesmo fiquei muito emocionado, porque, graças a Deus, a minha festa, eucomo presidente, fui muito de sorte pra ganhar as coisas. E, gente, rei e rainha, sabendotrabalhar, não gastam do dinheiro deles não. No segundo Domingo do mês, após a festa,tem que declarar quanto ganhou e quanto sobrou. Às vezes a consciência da pessoa, emcaso de sobrar alguma coisa... você vê que devolve pra igreja. Se não sobrou, fazer o quê?”(Sr. Pedro Antônio Ribeiro Pereira, presidente da Irmandade de Nossa Senhora doRosário dos Homens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)

Na quinta-feira antes da festa,lava-se a igreja. Nesse mesmodia, à noite, é oferecido o angu,comida que lembra os temposda escravidão. Além disso,antes do nascer do sol, asmulheres das comunidadessaem das suas casas,carregando suas vassouras decoqueiro. Na Irmandade deNossa Senhora do Rosáriodos Homens Pretos deChapada do Norte, asmulheres do Córrego daMisericórdia, apresentadascomo remanescentes dequilombos, são as responsáveispela lavagem da igreja. Elas sãorecebidas à porta da igrejapelos reis e pelos membros daIrmandade. Depois, o pessoal éconduzido, ao som dostambores, até o rio, ondepegam a água para lavar a

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igreja. Após a lavagem, por volta das dezessete horas, é oferecido, na casa da rainha, o angu,que simboliza os alimentos da época da escravatura. Esse angu de milho é acompanhado demolho de abóbora e quiabo, alimentos antes oferecidos aos escravos.

As águas e o rio voltam a estar presentes no sábado, quando se retoma o ritual com abusca da imagem da virgem depositada sobre as pedras no rio. Nessa parte do ritual, avirgem é levada à igreja, ao som da congada e dos tambozeiros, em percussiva procissão.

“Quando é no sábado, tem a busca da imagbusca da imagbusca da imagbusca da imagbusca da imagem em em em em de Nossa Senhora, na pedra do rio, evoltam os rituais de tambor e de congado. Tudo acompanhado pela cidade. Busca, passapela casa do rei e da rainha, batuca, festeja. Daí volta para igreja, onde tem a festa ao meiodia e, à noite, tem a celebração do mastrmastrmastrmastrmastro.o.o.o.o.” (Teco, presidente da Irmandade de NossaSenhora do Rosário dos Homens Pretos, Chapada do Norte, MG.)

Outros autores, como Leda Martins (1997), também chamam a atenção para a associaçãoentre a virgem e as águas.

“Uma das versões mais recorrentes em Minas nos conta que, no tempo da escravidão, osnegros escravos viram uma imagem da santa vagando nas águas do mar. Os brancos aresgataram e entronizaram numa capela construída pelos escravos, mas na qual os negrosnão podiam entrar. Apesar dos hinos, preces e oferendas, no dia seguinte, a imagemdesaparecia do altar e voltava ao mar. Após várias tentativas frustradas de manter a santana capela, os brancos rendem-se à insistência dos escravos e permitem que eles rezem paraa imagem à beira mar. Uma guarda de Congo dirige-se, então, para a praia e, com seuritmo saltitante, sua coreografia ligeira, suas cores vistosas, paramentos brilhantes e fitascoloridas, canta e dança para a divindade. A imagem movimenta-se nas águas, alça-se sobreo mar, mas não os acompanha. Vêm, então, os moçambiqueiros, pretos velhos, pobres, comvestes simples, pés descalços, que trazem seus três tambores sagrados, os candombes, feitosde madeira oca e revestidos por folhas de inhame e bananeira. Com seu canto grave egutural, seu ritmo pausado e denso, as gungas, seus patangomes e sua fé telúrica cativam asanta que, sentada no tambor maior, o Santana ou Chama, acompanha-os devagar, sempredevagar.” (Leda Martins, 1997: 45)

Para Leda Martins, essa narrativa implica três elementos: a descrição de uma situação derepressão vivida pelos escravos; a reversão dessa situação com a retirada da santa; e ainstituição de uma hierarquia de outro poder, fundado em elementos míticos, como opoder do som dos tambores, do canto e da dança. Canta-se a favor da divindade, celebram-se as autoridades e, ao mesmo tempo, canta-se contra a escravidão, a falta de liberdade, aopressão. É instaurada uma outra ordem social, ancorada nas hierarquias do reinado.

A associação entre a virgem e as águas pode ter outras implicações simbólicas se analisadaà luz de outro valor da Irmandade: a boa morte. A igreja e o cemitério não se organizamem torno dessa virgem, proveniente das águas, de maneira gratuita. A morte também erasimbolizada, entre os grupos bantos, pelo termo “calunga”. Na tradição banto, o mar – aságuas – era chamado de “calunga grande”, enquanto a morte era chamada de “calungapequena”, talvez com base na crença de que essa água era a moradia dos mortos. Aassociação da virgem com as águas está carregada de sentido. São as águas que guardam osmortos, são elas que os conectam à África. Elas podem ser interpretadas, simbolicamente,como a representação da viagem na qual os escravos vieram da África.

Depois dessas celebrações centradas na virgem e de sua aparição sobre as águas, tem lugaro clímax do ritual, no domingo, com a preparação e a posse dos novos reis.

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“Quando é dezessete horas, faz o fechamento, aí faz a marcha rápida, devolvendo a Santa.Então, vai ter a celebração de posse da Irmandade. Os reis já estão lá posicionados, aíexistia a transferência da coroa, foi empossado o rei, aí tem o ro ro ro ro reinadoeinadoeinadoeinadoeinado. O reinado é levadoaos reis. Primeiro entrega o que recebeu, a rainha que recebeu a coroa, depois o rei querecebeu a coroa, depois a rainha que sai, depois o rei que sai. Tem que ser essa ordem, nãoimporta se às vezes você passa na porta de uns três, mas não pode entregar ele não.

Aí passa o toque do tambor com gana, aí os festejos finais da festa, o encerramento dafesta. Aí vêm os tambozeiros, a gente fala os tambozeiros: os pessoal que mais conhece otambor, que bate melhor, que sabe usar melhor o tambor, que esses dias participammesmo.” (Teco, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos HomensPretos, Chapada do Norte, MG.)

Como se depreende do relato, os reis – ou a instituição do reinado –ocupam um lugarcentral em toda a série de eventos que compõem a festa de Nossa Senhora do Rosário; seulugar é tão proeminente que parece relegar a Santa católica a um segundo plano. Os reissão a figura em torno da qual se estrutura uma corte composta por juízes, tesoureiros,secretário e – na atualidade – o presidente da Irmandade. Esse modelo de ordem social realserve para dotar o grupo de uma forma de organização e outorgar-lhe certa autonomia,ainda que enquadrado dentro da Igreja. A mesa diretora, responsável pelo funcionamento daIrmandade e pela prestação de contas, está composta por juízes, secretários, tesoureiro eprocurador.

A coroação é acompanhada de uma grande festa popular, durante a qual são oferecidosalimentos e bebidas, conferindo-lhe um caráter de dádiva e de inversão social. A populaçãomais pobre, mobilizada pelo sistema de festas, oferece um banquete do qual se orgulham daabundância e dos recursos angariados. A realização da festa implica mobilizar toda uma redede relações sociais, nas quais a honra do festeiro, seu prestígio, é medido em função dasrelações que consegue mobilizar. Em contraposição ao rei soberano que impõe sua vontade,vemos aqui um poder ancorado na reciprocidade. As pessoas colaboram com a celebraçãopor pertencerem à Irmandade, por serem conhecidas do rei, por serem beneficiárias deantigos favores pessoais, ou por algum outro tipo de lealdade. É esse caráter de reciprocidadeque leva alguns autores a qualificar o poder do rei como uma “falsa jurisdição”. Leda Martins(1997:47) ressalta que, tradicionalmente, havia dois pares de reis: os reis do Congo e os reisfesteiros. Os primeiros tinham um caráter vitalício e de linhagem tradicional no congado, osoutros eram escolhidos anualmente. Enquanto os reis festeiros representam a Nossa Senhorado Rosário, a igreja e os santos, os reis do Congo simbolizam as nações negras africanas.

Nesse sistema simbólico, o fato mais marcante é a oposição entre o rei e os tambozeiros,representantes do lado profano da festa, associado à feitiçaria. Segundo a interpretação dosparticipantes, essa oposição tem como significado o romance contado pela seguinte história:antigamente, o rei tratava mal os negros, os castigava e os fazia passar fome. Certo dia, osnegros enfeitiçaram-no. Ele ficou doente e teve de recorrer aos tambozeiros para recuperar asaúde. Segundo a tradição, a partir desse dia, o rei começou a tratar bem os negros.

“E se é uma tradição da festa, eu vejo falar que, naquela época, quando começou a Festade Nossa Senhora do Rosário, tinham os reis que dominavam os escravos. Então, naquelaépoca, quando apertavam os escravos demais, eles começavam a ‘rezar’.

O rei e a rainha mandavam os capatazes judiar com os escravos, para fazer tudo. Tinhaescravo que não agüentava, eles eram chicoteados para poder fazer a festa. Quando foi um

“Depois vem a prprprprpreparepareparepareparação da posseação da posseação da posseação da posseação da posse dos que foram eleitos. O rei anterior transfere acoroa para outro. Aí começa, sete da manhã, escada do rei novo, escada do rei que vai sair,leva lá, apresenta para a Irmandade. Depois vai a marcha da Irmandade,,,,, busca do cofr busca do cofr busca do cofr busca do cofr busca do cofreeeee, éum cofre muito antigo de madeira, muito antigo, onde fica os pertences da Irmandade.Chama marcha rápida. Aí é conferido todos os bens da Irmandade, na presença dos irmãos,onde é feita a prprprprprestação de contasestação de contasestação de contasestação de contasestação de contas. Aí fica tudo na igreja lá, pro público saber tudo que aIrmandade tem e o que não tem, a parte dos bens pertencentes à Irmandade, a partefinanceira, que fica no banco, e tudo prestado contas. E, aquele dia, os juízes ficam lá,acompanhando tudo.” (Teco, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosáriodos Homens Pretos, Chapada do Norte, MG.)

A prestação de contas e a busca do cofre só podem ser entendidas, em sua real dimensão,caso se considere que essas irmandades já funcionaram como verdadeiras caixas depoupanças para os escravos, onde eles depositavam suas economias para poder comprarsua liberdade com a carta de alforria. Alguns escravos ofereciam seus serviços comocarregadores ou exerciam algum ofício nos dias de folga; outros, como lembram osmembros mineiros, eram escravos na mineração e às vezes tinham a oportunidade de seapropriarem de alguma pepita de ouro e escondê-la entre os cabelos para, posteriormente,depositá-la na Irmandade. O cofre e a prestação de contas revivem as estratégiasimplementadas para alcançarem a liberdade. Hoje em dia, os irmãos pagam uma pequenataxa, a qual permite o funcionamento da Irmandade.

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dia, um escravo teve uma visão de Nossa Senhora do Rosário, e começaram a fazer ostambores de pau.

Aí, quando o rei mais a rainha chegaram, eles foram louvar eles naquele momento, batendo ostambores e cantando ‘vamos louvar seu rei, vamos louvar sua rainha, vamos louvar seu rei, vamoslouvar sua rainha’. O rei se sentiu mal naquele momento, junto com a rainha. Aí os escravosdominaram eles e trataram eles muito bem, fez um chá pra eles melhorar. Então, eles melhorou,aí eles ficou assistindo os tambores bater e eles começou a cantar ‘eita Maria, eita Maria, adeussinhô rei, adeus sinhô rei, até o ano que vem, até o ano que vem’.

E na hora da saída deles, dá pra fazer o batuque deles. Eles cantaram...como é que é mesmo, gente, que eles cantaram? ‘Ei, sai sai de cumeçar, oicumeçar, sai sai de cumeçar’. Aí tava saindo da igreja, quando começou a sairda igreja, os escravos daquela época ganharam na festa do rei e da rainha ecomeçaram a cantar outras músicas, começaram a cantar outras músicasque eu nem lembro agora... como é que foi a outra música? ‘Ei sá rainha, eisá rainha, até o ano que vem, até o ano que vem’. Desse modo aí, o rei ficoujunto com os escravos, não atrapalharam eles em mais nada, e aícomeçaram a conviver com os escravos; isto é, fazendo a festa, né?

Aí, quando eles sentiam um pouco assim abatidos, os escravos começavam atocar o tambor, aí os reis vinham, aí foi que Nossa Senhora do Rosárioapareceu. Assim ficou a tradição da festa.” (Sr. Pedro Antônio RibeiroPereira, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dosHomens Pretos de Araçuaí, MG, aposentado.)

Esse episódio é representado ao longo da festa, quando ostambozeiros, por meio de diferentes cantos, desafiam o rei. O ritualencerra-se com uma dança, durante a qual o capitão do tambor, em umgesto dadivoso, oferece simbolicamente cachaça ao rei, depois aostambozeiros e, por fim, faz uma dança com a garrafa de cachaça nacabeça. Tivemos a oportunidade de presenciar essa parte do ritual,apresentada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dosHomens Pretos de Araçuaí.

Segundo Porto (1997), os tambozeiros são os conhecedores dosfeitiços. No seu trabalho sobre a Festa de Nossa Senhora do Rosáriona Chapada do Norte, a autora diz ter coletado diversas histórias queassociam os tambozeiros ao uso de plantas medicinais para fazeradormecer seus oponentes e ao uso de certa raiz de efeitosestimulantes. Leda Martins (1997) ressalta o poder atribuído ao somdos três tambores, chamados candomblés. Eles são o meio decomunicação com o mundo dos espíritos, o meio que transporta ossentidos à África. Os tambozeiros constituem um elementopermanente, diferente do rei festeiro, eleito periodicamente.

Como se depreende dos relatos, a festa de Nossa Senhora do Rosáriodos Homens Pretos envolve, em primeiro lugar, como núcleo duro, osmembros da irmandade; em segundo, as pessoas das comunidades e dacidade, durante as novenas e os preparativos: os leilões, a quinta do angue outras atividades preparatórias que implicam uma complexa trama de

prestações e contraprestações tradicionais. Finalmente, quando acontecem a procissão, acoroação e a festa propriamente dita, contam com a participação de toda a comunidade e demuitos festeiros de outras localidades. Tais eventos transcendem os limites da cidade paramobilizar um universo social mais amplo.

A festa é o momento culminante e, durante essa série de eventos rituais, a Irmandade éapresentada cenograficamente; mas ela, como instituição, tem uma existência permanente edefine-se como uma sociedade de apoio mútuo ou filantrópica. Os irmãos pagam uma anuidadeutilizada para a manutenção do templo e para prestar auxílio em casos de necessidade, porexemplo, adoecimento de algum dos membros, realização de enterros, entre outras.

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“Faz parte do nosso dia cotidiano, trabalho com boa vontade. Não tem nenhum ordenando,mas a entidade é isso mesmo, é uma entidade filantrópica e não tem fins lucrativos. Nóstemos é que saber respeitar a verba que entra no município e também saber executar elapro povo ver que a gente tá fazendo alguma coisa.” (Sr. Pedro Antonio Ribeiro Pereira,presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos deAraçuaí, MG, aposentado.)

Em Araçuaí, o cemitério da irmandade, nos fundos da igreja, continua a receber os irmãosmortos. O cemitério e os tambores são temas abordados em suas reuniões.

“Nas reuniões da Irmandade, os temas são freqüência, gente que está precisando de maisfreqüência. Nós discutimos aí também várias coisas do problema comum que acontece emqualquer entidade que surge, aí tem problemas pra resolver com sua família da entidade.Coisas que tem pra fazer e que necessita fazer: se tem que arrecadar alguma coisa prapoder fazer isso ou aquilo, ajudar os irmãos. Agora, a idéia é fazer uma casa à parte,tambozeira. Nós estamos pensando em fazer uma casa ali, separada lá, até pra facilitar pragente não precisar ficar abrindo a igreja, porque a igreja já é uma coisa mais... tem quelevar mais a sério, não ficar ali dançando. Hoje a Irmandade já tem quase um cemitério ládentro, só para a Irmandade. E nesse cemitério, há 12-13 anos atrás, teve a idéia de agente fazer um negócio grande assim pra poder sepultar, porque ficava enchendo detrabalho, cada um fazia um, cada um fazia um. E aí foi o jeito.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva,72 anos, sapateiro e aposentado, Araçuaí, MG.)

Por ser uma Irmandade de ordem vitalícia, pode-se observar a participação ativa de diversosaposentados. Alguns, mais idosos, participam como assessores e têm uma preocupaçãoespecial em manter a tradição e evitar mudanças introduzidas pelos mais jovens. Um dessesaposentados fez-se de desentendido durante a entrevista. Ele, um antigo capitão do tambor,Luiz Pereira dos Santos, de 85 anos, repetia que estava velho, que não se lembrava de maisnada e queixava-se das mudanças. Quando a Irmandade realizou a apresentação, esse senhoridoso, que mal conseguia andar, parecia um jovem puxando os tambozeiros e foi um dos que

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pessoas que acabaram deixando de lado. Você tem que ter um pouco de sabedoria, ser maisesperto. Aí eu pago um salário, porque um de todo jeito eu pago, porque eu vou precisar dissoe eu pago.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos, sapateiro e aposentado.)

Para esses aposentados urbanos, enquadrados em um regime contributivo, a PrevidênciaSocial é vista como um seguro social e não como uma poupança, como são apresentados osprogramas de aposentadoria privados que não fazem parte do Regime Geral da PrevidênciaSocial. Os maiores temores relacionam-se, nesse caso, à possibilidade de inadimplência e aosencargos da mora, caso não possam ser pagas as contribuições na data estabelecida. Diantedesses riscos, a opção dos trabalhadores autônomos é realizar a inscrição básica, que assegureao menos o benefício de um salário mínimo, uma vez cumprido o prazo de carência. Osistema de aposentadoria a partir das contribuições é visto como um sistema financiado comaportes individuais que pesam no orçamento e, em caso de mora, podem tornar-seimpossíveis de serem pagos. Além disso, o sistema não é visto como uma poupança, poisimaginam que sucessivas reformas podem implicar em uma alteração do cálculo do benefício.

“Fiquei pagando no carnê até interar os anos deficientes quando fizer 65 anos, não chegueia contribuir 35. Com 65 anos, você tem direito, eu atingi os 65 anos, fui, peguei adocumentação, a carteira há muito tempo guardada, o carnê, cheguei no contador lá: ‘O queque tá faltando agora?’ Aí: ‘Nada, você já fez 65 anos, acabou. Você tem direito àaposentadoria com tempo proporcional’. Agora, a felicidade minha é de aposentar comcondições de continuar trabalhando, família já criada. Porque se você tiver com família parasustentar, claro que com 200 reais não ia ter condições, mas já... a família já... a caçulaminha fez agora 27 anos, esse mês passado. Então, já está casada também, quer dizer, agente não tem mais essa obrigação, pode até ajudar, mas não tem mais a obrigação. Aí já tátodo mundo casado, todo mundo já procurou seu lugar.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72anos, sapateiro e aposentado.)

Para esses trabalhadores autônomos, a aposentadoria é percebida como uma rendasuplementar que compensa os menores ganhos decorrentes da idade avançada. Ela não évista como o afastamento compulsório do mercado de trabalho; pelo contrário, éconsiderada um complemento dessa renda.

Ao saber que estávamos fazendo um trabalho para a Previdência, uma mulher negra, deidade avançada, veio ao nosso encontro para nos contar as penúrias pelas quais passavaporque tinham cortado sua aposentadoria. Embora a Irmandade se apresente como umainstituição tradicional de assistência social, a autonomia é altamente valorizada entre seusmembros. Ela pode prestar auxílio nos momentos de necessidade, mas não se valoriza odepender da Irmandade. Os que participam dessa ordem valorizam mais o poder prestarassistência aos irmãos necessitados do que receber aquela oferecida por eles. As formastradicionais de assistência não podem ocupar o lugar reservado ao sistema de seguridadesocial, apesar de ter sido constituída com o propósito, entre outros, de oferecer o auxílionão fornecido pelo Estado aos mais pobres, aos idosos e aos doentes. Da Irmandade,esperam auxílio para terem uma boa morte e serem lembrados pelo curto reinadopossibilitado pela festa. Nesse contexto urbano, o dinheiro tem um papel relevante nacompra de alimentos e medicamentos. Apesar disso, a aposentadoria não se apresentacomo um fato tão marcante como entre as populações rurais, onde é constantementemencionada e valorizada.

permaneceram mais tempo na roda cantando e puxando os tambores.

Por ser o reinado de um ano, dificilmente a mesma pessoa poderá ser rei mais de uma vez.O Senhor Vicente, aposentado rural, com mais de oitenta anos de idade, orgulha-se de tersido rei duas vezes; fato extraordinário e que mostra seu prestígio na Irmandade.

Na Chapada do Norte, a maior parte dos aposentados entrevistados recebia aaposentadoria rural. Em Araçuaí, encontramos aposentados do setor público, ex-funcionários da prefeitura da cidade e um aposentado como trabalhador autônomo,sapateiro, enquadrado como beneficiário urbano no Regime Geral da Previdência Social.Por ser um fenômeno urbano, os aposentados que participam da Irmandade conseguiram obenefício como autônomos ou como funcionários públicos da prefeitura. Encontramostambém aposentados rurais nesses pequenos municípios, onde se entrelaçam o rural e ourbano e muitos dos habitantes têm suas roças perto da cidade.

Observemos o depoimento de um desses aposentados, Luiz Gonzaga da Silva, conhecidocomo Luiz Sapateiro, que exemplifica a lógica seguida pelos trabalhadores autônomosinscritos na Previdência e revela as impressões que a população mais humilde tem acerca daaposentadoria.

“Eu aposentei com um salário só, porque você trabalhando... eu trabalhei muito tempo assimde sapateiro, né? Então não tinha condições de eu continuar pagando também comoautônomo pra ganhar... pra tirar três salários, quatro salários. (...) Pra pagar no carnê todo mêsaquela quantia... pesa pra quem paga como autônomo, profissão simples dessa. Esse mês vocêganha o suficiente pra pagar sem peso nenhum, no outro, você já não ganha. Se você atrSe você atrSe você atrSe você atrSe você atrasa,asa,asa,asa,asa,no outrno outrno outrno outrno outro mês é o dobro mês é o dobro mês é o dobro mês é o dobro mês é o dobro e com juro e com juro e com juro e com juro e com jurososososos,,,,, e aquilo vai acabando. e aquilo vai acabando. e aquilo vai acabando. e aquilo vai acabando. e aquilo vai acabando. Eu conheço centenas de

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devida apenas ao chefe da família e tinha um valor de meio salário mínimo, já a pensãoequivalia a 30% do salário mínimo. O financiamento dos benefícios era feito com umacontribuição de 2,1% sobre o valor da comercialização da produção rural, além de umaalíquota de 2,4% sobre a folha de salários urbanos.

O PRORURAL/FUNRURAL significou um rompimento com os princípios do seguro socialde padrão contributivo bismarckiano, o qual modelou a história da Previdência Social naAmérica latina. “Houve ruptura com as noções de que: (i) a um benefício deve corresponder umacontribuição; (ii) essa contribuição deve ser tripartite (segurado, empregador e Estado); e (iii) obenefício resultante deve estar vinculado ao padrão de rendimentos pregressos do segurado”(Delgado e Schwarzer, 2000:195/6; Schwarzer, 2000).

No contexto da redemocratização, esses benefícios foram incorporados ao Regime Geralda Previdência Social por meio da Constituição de 1988 e de sua regulamentação pelas Leisn°. 8.212 e 8.213 em 1991. Essa incorporação provocou a extinção do tratamentoadministrativo institucional separado que era dado ao regime da Previdência Social rural.Os trabalhadores rurais e os segurados em regime de produção familiar, chamadossegurados especiais, foram incorporados ao plano dos benefícios normais do Regime Geralda Previdência Social. Uma das conseqüências da mudança constitucional foi oestabelecimento de um piso de um salário mínimo para os benefícios. Por outro lado, aregulamentação contemplou as mulheres em igualdade de condições com os homens,independentemente do seu desempenho como chefes de família. Esse fato outorgou aoprograma um caráter pioneiro em termos de reconhecimento de gênero. Outra diferençade tratamento diz respeito ao tempo de carência, baseado na condição de trabalho rural enão no tempo de contribuição, como no caso dos segurados urbanos.

Outra modificação legislativa com impacto sobre os benefícios rurais foi a Lei n°. 8.742, de1993, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Essa lei regulamentou a substituição daRenda Mensal Vitalícia (RMV) pelo Beneficio de Prestação Continuada (BPC) ou amparoassistencial de um salário mínimo. O BPC, nas suas modalidades idoso e pessoa portadora dedeficiência, não faz mais distinção entre os universos de atividades rurais e urbanas, comotambém não prevê mais o requisito da contribuição prévia, que constava da RMV. Requer quea renda familiar per capita seja menor do que um quarto do salário mínimo e, na modalidadeidoso, a idade de acesso atualmente prevista é de 65 anos para homens e mulheres6. Essebenefício foi implementado a partir de 1996 (Delgado e Schwarzer, 2000:196).

A aplicação dos dispositivos jurídicos que reconhecem direitos sociais mínimos para gruposhistoricamente marginalizados – como trabalhadores e pequenos produtores em regime deeconomia familiar rural e as mulheres igualadas em direitos aos homens trabalhadores –criou um setor com cobertura social universal e acesso a um seguro de renda mínima(Delgado e Cardoso, 2000).

Tanto os segurados especiais como o BPC previsto na LOAS apresentam importantesmudanças nas percepções acerca do seguro social, por seu caráter não-contributivo. Umadessas transformações, no caso das aposentadorias rurais com base no tempo de trabalhoe não nas contribuições, levou à percepção de que é possível se aposentar sem pagar ascontribuições.

“Tá, muitos aí hoje não pagam. Foi ontem mesmo, numa entrevista que eu vi na televisão,eles entrevistando o pessoal sobre o negócio do INSS, e falou sobre aposentadoria e tudo. OOOOOsujeito paga 40 rsujeito paga 40 rsujeito paga 40 rsujeito paga 40 rsujeito paga 40 reaiseaiseaiseaiseais,,,,, que m que m que m que m que muita guita guita guita guita gente acente acente acente acente acha pesado e acaba que fha pesado e acaba que fha pesado e acaba que fha pesado e acaba que fha pesado e acaba que fica sem pagarica sem pagarica sem pagarica sem pagarica sem pagar,,,,, e a e a e a e a e a

A Previdência Social e as percepções sobre a Previdência entre aspopulações analisadasA aposentadoria como trabalhador rural, para o segurado especial, e o Benefício dePrestação Continuada, BPC-idoso, previsto na LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social),são as referências mais fortes entre os benefícios oferecidos pela Previdência. Embora oBPC-idoso tenha caráter assistencial e seja de responsabilidade do Ministério doDesenvolvimento Social e Combate à Fome, sua operacionalização é feita pelo INSS, o quefaz parecer, para parte da população, que o benefício também é previdenciário, assim comoa aposentadoria rural. Ambos, por diferentes motivos, são benefícios não-contributivos, oude contribuição diferenciada, no caso de algumas aposentadorias rurais. Esse caráter não-contributivo leva os usuários a percebê-los mais como um direito, deixando para umsegundo plano o caráter de seguro social associado aos benefícios contributivos. Aaposentadoria rural e, dentro dessa categoria, os benefícios do segurado especial são asreferências que orientam as representações sobre Previdência Social na zona rural e naspequenas cidades do interior visitadas durante a pesquisa.

Paradoxalmente, o regime militar (1964/1984) foi o responsável pela expansão da coberturaprevidenciária até os setores rurais da população por meio do PRORURAL/FUNRURAL(1967/1971), como destacam Delgado e Schwarzer: “Entretanto, para relativizar essa aparência,basta lembrar que o próprio evento do nascimento da Previdência moderna, na Alemanhabismarckiana, é um exemplo clássico de como, em sociedade e economia de desenvolvimento tardio,um regime autoritário, imperial e patrimonialista serve-se de concessões em política social paraaplacar focos de oposição. Mais do que isso, por meio da natureza paternalista do vínculoestabelecido entre Estado e população afetada, logra criar profundos laços de lealdade edependência dos beneficiários para com seu ‘soberano” (Delgado e Schwarzer, 2000:190).

Segundo os autores, essa política foi produto do encontro da vontade dos estrategistas doregime para quem ela representou “a possibilidade de, por meio de um programa social decunho paternalista e centralmente administrado, aumentar a dependência individual emrelação ao Estado e, além disso, cooptar organizações sociais tais como Sindicatos deTrabalhadores Rurais” (ibidem). Por outro lado, os tecnocratas encarregados daadministração do sistema previdenciário identificavam-se com as diretivas da OIT, que viamna universalização da cobertura previdenciária um objetivo a ser atingido.

Em 1967, o INPS assumia o seguro de acidentes de trabalho, e formulava-se o PRORURAL,voltado à prestação de serviços médicos para a população rural. Em 1969, criou-se umplano básico de Previdência para os empregados rurais; em 1971, ampliou-se o PRORURALcom o lançamento de benefícios monetários para a área rural; em 1973, estendeu-se oseguro de acidentes de trabalho a essa área. Em 1974, foi criado o Ministério da PrevidênciaSocial; e, em 1974/75, foi instituída a Renda Mensal Vitalícia, que dava cobertura a inválidos eidosos até então excluídos do usufruto dos benefícios. “Do ponto de vista dos militares,ademais, a Previdência rural teria a qualidade de contribuir para a integração do setor rural aoprojeto de desenvolvimento nacional, manteria a ‘paz social’ e evitaria a intensificação da migraçãorural-urbana ao tornar disponível, no campo, uma infra-estrutura de assistência médica e benefíciosmonetários, mesmo que precariamente” (Delgado e Schwarzer, 2000:193).

O PRORURAL/FUNRURAL beneficiava trabalhadores rurais dependentes ou autônomosem regime de economia familiar, pescadores (incluídos em 1972) e garimpeiros (a partir de1975). Oferecia aposentadoria por idade aos 65 anos, aposentadoria por invalidez, pensãopara viúvas e órfãos, auxílio funeral e assistência médica. A aposentadoria por idade era

6 Até a instituição do Estatutodo Idoso, em 2003, a idadeprevista para o BPC-idoso erade 67 anos.

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vários segmentos de segurados: empregados, contribuinte individual (autônomo), contribuintefacultativo, empregadas domésticas e segurado especial. Diferentemente das outras categorias,onde o tempo de carência é computado com base no tempo de contribuição, no caso dossegurados especiais, a carência é contabilizada com base no tempo de serviço na condição detrabalhador rural. Portanto, o foco está no reconhecimento do trabalho, pelo que não seenquadra como política assistencial, mas sim como política previdenciária para enfrentar ascontingências previstas na convenção 102 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),formulada em 1958. No caso da LOAS, trata-se de benefício assistencial, o qual é definidosegundo a falta de condições econômicas e não está relacionado com o trabalho realizadopelo beneficiário. A condicionalidade da LOAS não passa pelo trabalho e está relacionada auma renda inferior a ¼ do salário mínimo por pessoa na família, além da idade avançada oudeficiência.

Nessas pequenas cidades do interior, como Chapada do Norte ou Araçuaí, que nãopossuem uma agência da Previdência, o atendimento móvel e periódico realizado peloPREVmóvel transformou não apenas a dinâmica do atendimento, mas também aspercepções sobre a Previdência. Por meio do atendimento do PREVmóvel, algo tão abstratocomo o sistema previdenciário transforma-se em algo sensível, ao alcance da população.

A estreita parceria com Sindicatos de Trabalhadores Rurais faz com que o PREVmóvel sejaassociado aos benefícios para a população rural. As ações do PREVmóvel podem ampliarseu público-alvo a fim de incluir diversos setores urbanos e no sentido de umauniversalização das políticas de seguridade social.

Na cidade de Chapada do Norte, tivemos a oportunidade de entrevistar um ex-presidentedo Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) e também capitão do tambor da Irmandade deNossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte. No seu depoimento,ele conta as transformações pelas quais passou o atendimento às populações rurais.Inicialmente, o sindicato tinha de oferecer transporte, alojamento e lugar de atendimentoaos técnicos da Previdência que se mobilizavam até os municípios do interior. As campanhaseram realizadas esporadicamente e tinham de contar com o apoio da prefeitura paraconseguir infra-estrutura. Uma das principais mudanças ocorridas no município foi aimplementação do atendimento por meio dos veículos utilitários da Previdência, que levam,periodicamente, os serviços até a sede do STR. Com o PREVmóvel, os técnicos têmmobilidade e podem prestar atendimento no interior do estado, além de evitar odeslocamento dos usuários mais idosos e necessitados. Nessa nova parceria, o sindicatoencarrega-se de realizar uma montagem preliminar dos processos e de organizar oatendimento de diversas comunidades, enquanto o PREVmóvel permanece no município.Uma central de computador, conectada à linha telefônica por um serviço gratuito (do tipo0800), permite realizar as consultas dos processos e outorgar os benefícios on-line, pormeio da Internet.

“Olha, a parceria com o sindicato é o seguinte: quando vinha, antes de ter o PREVmóvel,vinham os funcionários para fazer os trabalhos na zona rural. O sindicato chegava emDiamantina, às vezes pegava os funcionários em Diamantina – que era o posto que tinha –,levava nas comunidades do povo do sindicato e ainda pagava cama e alimentação, algumasvezes. Agora, tinha vezes que eles falava que agora, dessa vez, não vai precisar de vocêspagar a cama e nem a comida, mas, algumas vezes, tinha que pagar cama e comida prosfuncionários. É! E pra ir nas comunidades, toda vida o sindicato arcou com tudo, com ocarro pra andar nas comunidades pra fazer a entrevista, as pesquisas com o pessoal. A

PrPrPrPrPreeeeevidência fvidência fvidência fvidência fvidência fica vazia.ica vazia.ica vazia.ica vazia.ica vazia. E, depois, ela tem que atender essas pessoas sem contribuiçãonenhuma.

No tempo que eu aposentei, parece que era 7 anos, e você já conquistava. Hoje são 15anos que você tem que contribuir, se você quiser aposentar no sentido que eu aposentei, dos65 anos. Homem 65, mulher 60, contribui 15 anos. Têm pessoas que se for contribuir 15anos e já está com 60... igual eu usei o exemplo de uma dona, ela vai aposentar com 75anos se ela tiver 60 e começar a pagar agora.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos,sapateiro e aposentado.)

Os benefícios pouco ou não-contributivos, ao serem computados na mesma conta doRegime Geral da Previdência Social, produzem um desequilíbrio nas despesas. A impressãoprevalecente no senso comum dos usuários é a de que os benefícios não-contributivos sãoresponsáveis pelo “rombo” da Previdência. A falta de informações sobre o financiamento daaposentadoria rural, como a alíquota sobre a comercialização dos produtos rurais e oimposto sobre a folha de salários urbanos, assim como os aportes do Tesouro Nacional,levam à percepção errônea de serem os contribuintes individuais quem cobrem o déficitgerado pelos benefícios não-contributivos. Delgado e Abrahão de Castro (2003) assinalamque esse déficit seria melhor conceituado se diferenciássemos, dentro do Regime Geral daPrevidência Social, a Previdência como seguro social contratual para os setores urbanos e aPrevidência como seguridade social para os aposentados rurais. A separação desses doistipos de Previdência pode levar a computar a Previdência rural como gasto com seguridadesocial e não como déficit do sistema previdenciário.

Na visão dos usuários, esse desequilíbrio orçamentário não pode ser solucionado às expensasda seguridade social, percebida como um direito fundamental. Segundo o depoimento a seguir,esse direito é visto como contraditório quanto à condicionalidade do BPC-idoso, queestabelece como teto uma renda familiar de ¼ de salário mínimo por pessoa.

“Ele falou assim, que não tem mais como aposentar, a não ser ela ser encostada porinvalidez, que não tem condições de trabalhar; esse diresse diresse diresse diresse direito tem condição de reito tem condição de reito tem condição de reito tem condição de reito tem condição de receberecebereceberecebereceberalguma coisa. Eles inventam tanta coisa pra ver se impede da pessoa aposentar: ‘Ah, vocênão pode ter, sua casa já tem gente que tem uma renda de... tem gente só com saláriomínimo, o seu marido já ganha isso e tal’. Tá enrolando a pessoa.

Às vezes, quando chega a dizer ‘ó, tem direito’, você já não está quase no tempo de ganharmais nada, apesar de ser uma aposentadoria sem contribuição. Mas, de qualquer maneira,eu, como pessoa, tinha o direito de viver. É difícil,É difícil,É difícil,É difícil,É difícil, o papel da Pr o papel da Pr o papel da Pr o papel da Pr o papel da Preeeeevidência é uma coisavidência é uma coisavidência é uma coisavidência é uma coisavidência é uma coisammmmmuito séruito séruito séruito séruito séria.ia.ia.ia.ia.” (Sr. Luiz Gonzaga da Silva, 72 anos, sapateiro e aposentado.)

Nesse depoimento, as impressões sobre a Previdência e a LOAS têm limites difusos. Por umlado, a aposentadoria é reconhecida como um direito que tem de ser garantido pelo Estado,e isso inclui os benefícios não-contributivos, os quais, ao serem computados na mesmaconta do RGPS, produziriam um desequilíbrio nas despesas. Esse desequilíbrio não pode sersolucionado às custas da seguridade social, um direito fundamental, traduzido nessedepoimento como o direito de viver.

Cabe destacar, para desfazer mal-entendidos, as principais diferenças existentes entre osbenefícios previdenciários para segurados especiais, como os trabalhadores rurais emeconomia de subsistência, e os benefícios assistenciais estabelecidos pela Lei Orgânica deAssistência Social (LOAS), entre os quais está a LOAS-idoso. Do ponto de vista do Ministérioda Previdência Social, os trabalhadores rurais enquadram-se na Previdência como um dos

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gente tinha à disposição o carro com o motorista e um diretor do sindicato. No dia que nãotava um, tinha o outro, porque às vezes eles nem exigiam que fosse. Mas você sabe que opessoal é muito simples lá no mato; então, chega uma pessoa estranha: ‘Eu quero conversarcom você!’, a pessoa assusta, não sabe, nem acredita que é a aposentadoria dele; às vezesfica com medo. Então a gente tinha que chegar e apresentar aquela pessoa. A gente, comosindicato, ia apresentar aquela pessoa. Aí eles conversavam tranqüilos, porque sabiam quenão era nada. Então, o sindicato fazia isso.

Outras vezes, precisava a gente levar o pessoal em Diamantina, a gente fretava o ônibus –isso aconteceu umas três vezes –, a gente fretava o ônibus, e eles reservavam lá a vaga, e agente levava o ônibus cheio para fazer entrevista lá em Diamantina, e sempre o sindicatocontribuindo. As passagens de ônibus pra Diamantina, os clientes pagavam; a gente fretavao ônibus, e eles pagavam. Aqueles que não podiam pagar, que não tinha como pagar, osindicato pagava pra eles, então o sindicato contribuía. Essas pesquisas que o funcionáriovinha fazer na região eram livres de gastos, a gente pagava tudo, e o sindicato não cobravado cliente nada, a gente passava pra ele gratuito.

Com o PREVmóvel, mudou o seguinte: a gente faz o trabalho, reúne o povo, passa ainformação e organiza o atendimento. O sindicato só controla pra não fazer tumulto,controla o povo. Agora, com o PREVmóvel, a despesa do sindicato é só com o telefone ematerial de escritório. O sindicato já não tem mais despesa de carro, o PREVmóvel vem com

o carro, eles já vêm com o carro, e a alimentação eles pagam também; mas, no início, osindicato é que pagava tudo.” (Olimpo Rodrigues Soares, ex-presidente do Sindicato deTrabalhadores Rurais, aposentado, Chapada do Norte, MG.)

A equipe do PREVmóvel está composta por um chefe, um técnico e um motorista, os quaistrabalham em parceria com sindicato de trabalhadores rurais. Os técnicos revezam-sesemanalmente; já o chefe da unidade sempre acompanha as viagens. O atendimento éprestado próximo ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, e o técnico realiza osdeslocamentos necessários para a realização de perícias e para levar os serviços até àquelaspessoas que, por estarem incapacitadas, não podem deslocar-se até à unidade deatendimento. De acordo com uma das técnicas, a maior recompensa desse trabalho époder ver a cara de felicidade dos idosos quando recebem o benefício depois de toda umavida de trabalho na lavoura.

“É muito difícil, umas viagens nossas estressam muito. E quando a gente não encontra gentebrava, né? Que não pode aposentar... igual a um dono de bar que quer aposentar comotrabalhador rural e ele fica bravo com a gente. É difícil. Teve uma colega da gente que o outroqueria matar ela, o moço veio de faca pra matar, e deu uma turma. Mas o moço, depois de duassemanas... o homem morreu. Ela ficou limpa aí. A gente passa muito isso, mas é um trabalhogostoso. Em compensação, com os trabalhadores... às vezes você atende... você aposenta apessoa, daí a pouco a pessoa chega com um pouquinho de polvilho, chega com um pouco defarinha de mandioca feita na roça, vem um e dá um frango pra gente. É isso. Tem um lado muitobom. A gente tem que ter carinho pelas pessoas; falam: ‘ó, eu tô rezando procê pra sempre’, ‘ó,todo dia que eu dobro os joelhos, eu peço a Deus pra te proteger’. Isso é o lado legal da coisa. Osorriso da pessoa quando aposenta, quando sabe que vai ter o dinheirinho pra receber todo mêsno período certo. Essa alegria é o que eu acho que mais ajuda a gente a vir na região. Oscontratempos são poucos, as vitórias são maiores, os prêmios são maiores: o sorriso na boca dopovo.” (Valda, técnica da Previdência, comissionada no PREVmóvel.)

Uma das principais críticas feitas a esse tipo de parceria entre a Previdência e os sindicatosde trabalhadores rurais é que a ênfase nas aposentadorias poderia provocar uma distorçãona função dos STR e transformá-los, de uma entidade de classe, em uma entidadeespecializada na prestação de serviços assistenciais (Schwarzer, 2000). Essas associaçõessindicalistas recebem uma contribuição pela tramitação dos benefícios, a qual é descontadada folha de pagamento dos aposentados. Esses recursos financiam, de forma indireta, oprocesso de organização no campo. Deve-se ter em conta que, ao longo da década, muitosdos sindicatos rurais passaram por importantes mudanças na orientação política de seusdirigentes.

Outra crítica realizada pelos usuários sobre essa modalidade de atendimento diz respeito àênfase dada aos sindicatos de trabalhadores rurais; isso faz com que a maioria dosatendimentos recaia sobre a aposentadoria para os trabalhadores rurais. Esse é, sem dúvida,o benefício mais difundido. Em diversos casos, existe desconhecimento acerca de outrosbenefícios, como os BPC da LOAS ou outros benefícios da Previdência, como salário-maternidade ou auxílio-doença. O salário-maternidade, em especial, não é conhecido poruma parte dessas populações remanescentes de quilombos. Uma campanha informativapoderia, com poucos esforços, dar uma maior divulgação a esse tipo de benefício.

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2 Religiões africanas na Bahia epolíticas de reconhecimento:terreiros de Candomblée Baianas do Acarajé

Durante o trabalho de campo em Salvador e em outros municípios da Bahia, centramos nossaatenção no candomblé, tanto como religião, quanto como tradição cultural. A partir desseponto de vista, os terreiros são analisados como formas de organização social, comoinstituições de reprodução cultural, de valores e hierarquias. Esses padrões estruturados deinteração entre os membros, diferentes das relações estabelecidas com os outros grupos,contribuíram para a reprodução de tradições culturais de matriz africana no Brasil.

A religião, assim como a festa, constitui um momento especial nessa representação cultural.Trata-se do momento em que a comunidade se reúne, quando a cultura éperformaticamente representada por meio de danças, músicas e cantos. Nessas periferias,os terreiros configuram-se como uma forma de organização, onde uma série de tradiçõesimbricadas reconstruiu as crenças africanas e manteve vivas as tradições ancestrais. Oterreiro proporcionava o que o Estado moderno oferece aos seus cidadãos e que foisecularmente negado às populações negras. No terreiro, o povo do candomblé encontraassistência, comida, um lugar onde ficar em caso de necessidade e um sentido para a vida,no complexo culto aos orixás.

No candomblé, como religião iniciática, o segredo, representado por uma pequena cabaça,igba, ocupa um lugar central.

“Sabe-se que entre os Yoruba, o casal divino primitivo é constituído por Obatalá, o céu, eOdudua, a terra, e que da união do céu e da terra nascem Aganjou, o firmamento, eYemanjá, as águas. Sabe-se também que este casal em cópula é representado por duasmetades de cabaça, fechadas uma sobre a outra, uma figurando a abóbada celeste, a terrafecundada, cabaça sagrada chamada Igba.” (Bastide, 1961:97.)

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Essa cabaça simboliza tanto a fecundidade como o segredo guardado em seu interior. Osegredo é um valor central nos candomblés da Bahia. Partes das cerimônias do culto aosorixás são secretas, as iniciações e os fundamentos são secretos. Só podem ser reveladosaos iniciados. Os cantos, uma das formas de transmissão desses saberes africanos, sãoensinados na língua ioruba, por exemplo; mas o significado dos oriki, seu sentido emportuguês, é transmitido posteriormente, quase a conta-gotas, como uma forma de mantere reproduzir a hierarquia. Somente os mais velhos conhecem o significado dos cantos eescolhem atentamente a quem transmitir esses saberes.

Como o segredo ocupa um lugar central no candomblé, a nossa estratégia de pesquisa foiolhar o terreiro como forma de organização social. Essa estratégia permitiu-nos, por um lado,a partir da análise da organização social, chegar a alguns dos conteúdos culturais e, por outro,analisar tanto a vida no interior dos terreiros, quanto sua relação com a vida fora deles. Oterreiro ou a roça do Santo é a base da organização social, nele se reproduz a tradição em umimbricado tecido que entrelaça lugares e pessoascom diferentes posições sociais e significados.

“A diferença que tem entre os terreiros dePernambuco e os da Bahia é muito pequena. ABahia é tudo isso porque criou o mundo docandomblé. Mas o terreiro não é nada mais, nadamenos do que um espaço litúrgico onde seguardam crianças, se guardam adultos e ossegredos de orixás. É uma comunidade religiosaque tem pessoas boas e ruins. Existe umahierarquia do Abiã, que é uma pessoa não-iniciada,até o Ebômim, que é uma pessoa que já podecriar sua casa de candomblé. Então, se passa a serAbiã, Iaô e Ialorixá. Você pode ser Ogam comohomem, e mulher é Equede, pessoas que nãoviram santo. Então existe uma estrutura.” (ManoelPapai, pai-de-santo, Recife, PE.)

A hierarquia dentro do candomblé é marcada portrês posições: o ebômim, ou sacerdote; o noviço,chamado iaô ou filho de santo; e o abiã, ou não-iniciado. A passagem entre essas posiçõessociais é realizada por meio de diferentes rituais; em primeiro lugar, a iniciação, “dar decomer à cabeça”, e depois a confirmação, ou “fazer a cabeça”.7 A condição de ebômim éalcançada sete anos depois da confirmação. Nesse momento, o pai-de-santo ou a mãe-de-santo adquire o status sacerstatus sacerstatus sacerstatus sacerstatus sacerdotaldotaldotaldotaldotal e está em condições de abrir seu terreiro. As hierarquiassão indicadas por um sistema de sinais, composto por colares, pela posição do manto, entreoutros indicadores da posição dos iniciados no candomblé.

Mãe Ditinha: – “O pai Ari vai me dar permissão, mas eu vou falar uma coisa que eu nãoaceito, mas eu tenho que conviver com isso porque é o progresso que tá fazendo isso.Porque, antigamente, entrando no candomblé, pela roupa se conhecia o grau que a pessoatinha: se era iaô nova, se já tinha 3 anos de santo, se já tinha 5, se já era ialorixá. Tanto aroupa como a conta tem história, porque uma pessoa nova de santo não pode usar umaconta assim. Não pode usar uma assim. Uma abiã também não pode. Uma pessoa que nãotem cargo não pode usar essa conta, só quem tem cargo é que pode. Hoje, todo mundo que

7 Para uma descrição dessesrituais, veja Bastide, 1961:31ss/38-56.

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ialorixá no culto; iyá bassé, responsável por preparar os alimentos especiais para asdivindades; iyá têbêxê, encarregadas de tomar as iniciativas dos cânticos nas festas públicas eprivadas; iyalaxé, quem cuida do axé e das pedras sagradas do peji; a mãe pequena, iyá kêkêrêou jibonam; e finalmente o cargo de ialorixá, que administra o santuário.

No sistema de cargos do terreiro, existem outras funções desempenhadas por pessoas quenão podem cair em transe, as de ogã e ekede (ogan e ekedy para Bastide, op. cit.). Entre os ogãs,temos dois tipos com funções diferentes. Um destes grupos, integrado por brancos, são umaespécie de protetores do terreiro, devido à sua situação social e sua posição na sociedade;freqüentemente, eram chamados para defender os membros do terreiro das arbitrariedadespoliciais; em outras ocasiões, prestam auxílio em caso de necessidade financeira. O outro tipode ogã forma uma espécie de sacerdócio secundário, encabeçado pelo peji-gã, encarregado doaltar e presidente do conselho administrativo, além do alagbê, que toca o rum e dirige amúsica. Entre os ogãs, destaca-se o axogun, pessoa encarregada de fazer os sacrifícios. Para osterreiros da tradição djè-djè, como se verá mais adiante, esse cargo recebe o nome de pejigum.O alagbê é o responsável pelos atabaques, que ocupam um lugar central nos rituais. Ogãs eekedes não “recebem o santo”, não incorporam as entidades.

Além desses cargos fixos, existem outros que nem sempre têm titular e correspondem afunções extraordinárias dependentes das vontades dos deuses. Entre eles estão o deOjuobá (olhos do rei), ligado a Xangô, e que tem o privilégio de agitar o xèrê; Wessa, quesaúda as divindades, conhece os orikis e preside os sacrifícios; Iyanaso, dirigente de um cultoespecial a Xangô (Bastide, op. cit.). Em relação às hierarquias no interior dos cultos afro-brasileiros, apresentamos em anexo uma lista dos sistemas de cargos dos diferentes cultos,tal como aparece registrado no Código de Ética apresentado pela Federação Nacional doCulto Afro-brasileiro.

faz obrigação bota essa conta no pescoço. Eu não vou longe: eu tenho um filho de santoque todo mundo da casa dele fez obrigação, ele bota uma conta dessa. É errado, porqueesta conta só recebemos na hora do cargo (de ebômim), após uma obrigação de sete anos.Quando nós fazemos sete anos e que temos o cargo depois da confirmação; porque tempessoas que fazem sete anos, mas não têm capacidade pra cargo. Então esta pessoarecebe esta conta. Esta daqui só a partir dos três anos é que pode usar, quando faz aobrigação. Esta aqui só pode também depois dos sete anos. É igual à roupa.

A roupa também… é porque é o seguinte: a roupa é o luxo, vamos dizer, mas também temfinalidade, porque as pessoas novas de santo têm que usar a roupa bem arrastando no chão.Tem que usar um pano amarrado aqui. O pano da cabeça também não pode usar isso. Querdizer, a roupa tem uma parte muito fundamental no candomblé. À medida que os anos vãopassando, a gente vai subindo a saia um pouquinho; a pessoa nova de santo não usa salto. Euposso usar deste tamanho assim… essa peça também, que chama cibata, só usa quem játem obrigações, o novo não pode usar. Quer dizer, a roupa tem uma parte muito importantedentro do candomblé. O vestuário tem uma indicação do sapato até o pano da cabeça.”

Pai Ari: – “Até o pano da cabeça. Ela aí tá trajada como ialorixá. Aí ela representa um cargode iá; como todas as iá, ela carrega o alacá do lado esquerdo. Ela representa que ela já temfilhos de santo, netos de santo, então a pessoa é um agabá. O que é um agabá? É umapessoa velha no santo. Ela já é uma pessoa velha no santo, então ela usa aquele pano delaque significa isso. Se ela estiver com a bata sem esse pano, ou usado na cintura, ou botandoo pano na costa, representa um ebômim. É uma pessoa que já tem obrigação de sete anos,já é uma autoridade. Aí também significa ebômim, esse pano da costa dela passado aquirepresenta que ela é uma autoridade.”

Mãe Ditinha: – – – – – “Quando uma pessoa que é entendida no candomblé vai entrar nocandomblé, pelo traje já se sabe quem é que está ali. É a mesma coisa… eu posso estarnormalmente de vestido ou de calça e com o pescoço cheio de conta. Aí eu chego só comessa, com a roupa normal, mas todo mundo vai saber que eu sou uma ialorixá. O colar é oque me identifica.”

A vida nos terreiros é organizada hierarquicamente. Em primeiro lugar, está o ebômim, queocupa o cargo de mãe-de-santo ou ialorixá e o de pai-de-santo ou babalorixá. Na Bahia, osterreiros têm babalorixá ou ialorixá, apenas um deles. Em outros estados, comoPernambuco, os terreiros possuem pai e mãe-de-santo. Outra denominação que traduz osentido do cargo em ioruba é a de zelador do Santo (Carneiro, 1948; Ribeiro, 1978). Comodiz o termo, trata-se de quem cuida do orixá principal da casa, quem mantém a tradição,conhece os cantos, as rezas e as obrigações que devem ser seguidas em relação aos orixás.Antes de receber o cargo de ebômim, passa por um processo de iniciação que pode durarsete, catorze ou vinte e um anos. Uma vez assumido o cargo, é preciso dedicar sua vida aoSanto e ter condições de abrir seu próprio terreiro. Os ebômins, como sacerdotes,orientam os membros do terreiro no cumprimento das suas obrigações. Como dizia mãeLuiza Gaiaku em seu depoimento: “Tem coisa que só sacerdote pode fazer; no candomblé, éo mesmo, tem coisa que só ebômim pode”.

Iaôs é uma forma genérica de referir-se aos iniciados. De acordo com o gênero, podem serfilhas de santo ou iyawo e filhos de santo ou iyaworixa. Depois de se tornarem ebômins, asfilhas de santo podem desempenhar diversos cargos no santuário. Bastide (1961: 59-60)menciona: dagã e sidagã, especializadas na celebração do padê de Exu; iyá mêrê, que auxilia a

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Em um lugar de destaque na sala, localiza-se a cadeira do paiou da mãe-de-santo; perto dela, está o lugar reservado paraos ogãs. Os homens e as mulheres iniciados ocupam lugaresseparados. Um lugar diferente é reservado para os visitantes,geralmente perto dos atabaques. O centro do salão é o localreservado para a realização das danças e evoluções dosebômins e iaôs, que marcam o ritual. Os atabaques têm umpapel de relevância nas cerimônias. Eles são consideradossagrados e têm nomes que variam de acordo com asdiferentes nações. Por exemplo, entre os Keto, levam o nomede rum, rumpi e le. Nos terreiros Keto, os tambores sãotocados com baquetas, e o ajuste deles é realizado comcravelhas. Nos terreiros de angola, os atabaques são tocadoscom as mãos e ajustados por meio de um sistema de cunhas.

O quarto do Santo, o peji, é uma sala na qual estão osfundamentos e as oferendas para o orixá do terreiro. Nele,acontecem algumas das cerimônias privadas e os sacrifícios.Ele é o altar onde estão os fetiches que representam osorixás, seus fundamentos. O ronko é um quarto especial noqual permanecem os noviços durante os processos deiniciação. Quando o iniciado “faz a cabeça”, permanecevários dias ou meses recluso nessa câmara. Os ilê são ospequenos templos espalhados pela roça. Na Bahia, cada peji édedicado a um orixá. Já nos terreiros do Recife, observamospejis que continham os fundamentos de diferentes orixás.No ilê, ocorrem os sacrifícios e as cerimônias privadas,momentos não abertos ao público. Esses templos são a casados orixás. Neles estão os fundamentos e os fetiches que

encarnam o axé do orixá.

Existe todo um sistema de festas. Um tipo de festas se relaciona com homenagensrealizadas a determinados orixás e marcam um calendário litúrgico. Existem outras festasdurante as quais são invocados os diferentes orixás da casa. Ao longo desse breve trabalhode campo, presenciamos uma festa para Omolu, que seguia o calendário litúrgico, e outraque tinha caráter de comemoração pessoal, um aniversário de santo de uma ialorixá quetinha Oxum como orixá.

Descrevamos, de forma genérica, a estrutura contida nas festas. Relatos similares podem serencontrados em Bastide (1961) e Carneiro (1948); outros autores como Bastide e Verger(2000, 2002) e Lünhing (2002) também fizeram descrições detalhadas de rituais tanto naBahia como na África e incluem os orikis, cantos sagrados utilizados na invocação dosdiferentes orixás.

As festas dos orixás, na Bahia, iniciam-se com uma fase privada, na qual se cumprem asobrigações e se realizam os sacrifícios. À noite, ocorre o candomblé ou a festa aberta aopúblico. Por exemplo, uma das festas que tivemos a oportunidade de presenciar durante otrabalho de campo iniciou-se às dez da manhã com diferentes sacrifícios. Nessa parte doritual, foram sacrificados vários animais, como aves, cabritos, pombos. A forma de realizar osacrifício e os animais utilizados variam de acordo com o orixá homenageado. Uma parte

As relações no terreiro criam um parentesco ritual e marcam relações sociais carregadasde reciprocidades, como no interior de uma grande f. Ninguém pode desobedecer aozelador do Santo; já este, em determinadas ocasiões, não pode recusar o pedido de umaekede. Um ogã pode mandar parar um ritual se achar que tem algo errado acontecendo. Arelação com o pai ou a mãe-de-santo é marcada pelo respeito e pela reverência. Os filhosde santo pedem a benção deles e os reverenciam.

“Existe uma hierarquia de homenagens dentro do candomblé. Nós somos uma tradição dehomenagens. Mojubá é prestar homenagens. Em todas as religiões... na Igreja Católica, o Papaque é o Alabá; então, todo mundo que vai ao Papa rende homenagens, não é isso? Dentro docandomblé, o maior cargo é o Babá ou a Iá, são os cargos elevados. Então, se eu sou o paidaquela casa, todos os filhos-de-santo têm que fazer aquela homenagem, não a eu comoBabá, mas aquela homenagem que ele faz em consideração ao Orixá, ao pai maior da casa.Eu represento o pai, estou aqui representando Ajagunã, que é o Orixá da casa, então, comoAjagunã não está presente, eu estou representando o Orixá. É por isso que se faz toda aquelareverência. Dentro do candomblé, tem que tomar benção: ‘benza, meu pai’, ‘benza, minha mãe’.Existe aquele respeito fraterno dentro do candomblé, né? (Pai Ari, Salvador, BA.)

Por sua vez, a relação dos pais-de-santo com seus filhos-de-santo destaca-se pelo cuidado epela assistência prestada em caso de necessidade. Os iniciados pelo mesmo ebômim sãoirmãos-de-santo. As relações entre esses irmãos são marcadas por uma forte solidariedade, eo vínculo renova-se com a participação nas festas dos terreiros. O parentesco ritualsobrepõe-se ao biológico, e as relações com os pais e irmãos orientam o universo social dosiniciados. Essa sobreposição é tão forte que, em diversas entrevistas, foi necessário esclarecerse os informantes referiam-se ao parentesco biológico ou ao “parentesco no santo”.

Na tradição do candomblé, as características pessoais estão associadas aos orixás. Cadapessoa está regida por dois orixás. O primeiro é o dominante, o outro é chamado de“segunda cabeça”. Cada pessoa tem o seu e lhe devota um cuidado especial. Uma série decolares de contas com as cores dos orixás indica o nome daquele que rege os fiéis. Essescolares de contas não devem ser confundidos com os de miçangas, os quais indicam asposições dentro do culto, como mencionado no início do capítulo.

Concentremo-nos, pois, nos terreiros, embora a instituição não seja o lugar físico. Ainstituição, no sentido antropológico do termo, são as pautas padronizadas de conduta, asrelações sociais orientadas por determinados valores, que têm esse lugar como cenário. Osterreiros, tradicionalmente, localizavam-se nas periferias das cidades. Com a expansão deSalvador, alguns ficaram dentro de áreas urbanas: Gantois e Casa Branca; outros localizam-seem bairros da periferia, onde moram muitos dos pais e mães-de-santo; outros terreiros,ainda, encontram-se a poucos quilômetros da cidade, em municípios vizinhos, como Laurode Freitas e Cachoeirinha.

O terreiro é composto por diferentes partes. A roça, onde estão localizados os templos nosquais se rende culto aos orixás, se cultivam diversas plantas, cujas folhas são utilizadas nosrituais, e onde estão as árvores sagradas. O barracão consiste em uma grande sala onde sãorealizadas as cerimônias abertas ao público ou as festas do Santo. Ele é enfeitado combandeiras de papel, cuja cor corresponde ao orixá homenageado na festa. Nessas ocasiões,o salão pode ter a imagem de algum santo representante dos orixás. Esse conjuntocompleta-se com um quarto, no qual se realiza a troca de roupas, como nas sacristias dasigrejas; uma cozinha, onde são preparados os alimentos para o santo; e vários outrosquartos utilizados pelos que têm de prestar obrigações aos orixás.

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do animal sacrificado é oferecida ao orixá, geralmente o sangue, os pés e a cabeça. Orestante dos animais é utilizado na preparação da comida que será oferecida aosparticipantes da festa. A carne dos animais sacrificados é dividida conforme as hierarquiasdos participantes. Uma parte é doada aos pais-de-santo, ao ogã, que auxiliou na cerimônia, eàs ekedes. A outra parte será utilizada para preparar a comida da festa. O resto é doado,como caridade, aos vizinhos do bairro, normalmente, necessitados.

Os sacrifícios são realizados ao som dos atabaques. Posteriormente, no peji, o ritmo serámarcado pelos cantos em língua ioruba. À noite, durante a festa, cantos e atabaquescombinam-se para a invocação dos orixás, que encarnam no “cavalo do santo”, os iaôs eebômins da casa.

As festas têm início com uma invocação a Exu, o mais temperamental dos orixás. Ele é vistocomo um mensageiro entre o mundo dos homens e o dos orixás. O pade, a realização dasoferendas a Exu, tem como propósito apaziguá-lo, para poder contar com sua colaboraçãoe evitar que atrapalhe o ritual. Posteriormente, realiza-se uma invocação a Ogum, orixáguerreiro que tem, entre outros atributos, o saber sobre os metais; sem ele, não é possívelfazer os sacrifícios. Seguem-se os diferentes toques destinados aos orixás. Eles variam deacordo com o tipo de ritual. Durante a festa, os atabaques podem ser acompanhados porsinetas de percussão duplas, chamadas agogô, ou simples, conhecidas como gam. Duranteessa parte pública da festa, a iyalorixá ou o babalorixá do terreiro dança ao ritmo dosatabaques e dos cantos com os seus filhos-de-santo. Outras iaôs participam da roda nocentro do barracão, a qual gira no sentido anti-horário.

Os diferentes toques do atabaque e os cantos invocam distintos orixás. A roda é formadano meio do salão, e os ritmos repetem-se até que os orixás encarnem nos participantes. Asconvulsões, a posição das mãos e outros sinais mostram que o iniciado transformou-se em“cavalo do santo”. As ekedes, então, retiram os colares, relógios e outros objetos da pessoaem transe e a conduzem ao quarto onde é vestida com as roupas do orixá correspondente.Pouco tempo depois, o orixá retorna ao salão e, de acordo com o tipo de festa, dança esaúda os presentes, é homenageado e interage com o mundo dos homens.

Os orixás representam um complexo de relações sociais cujo significado émetaforicamente expresso pelos romances que contam a vida de cada um. Nessasnarrativas, os santos relacionam-se com as forças da natureza, com seres míticos, dos quaisé possível reconstruir sua gênese histórica na África, com sentimentos e sistemas deatitudes. Os diferentes orixás encontram-se relacionados por matrimônios e relações dedescendência e criação, os quais refletem uma ordem social africana. Iansã, que foi mulherde Ogum, casou-se com Xangô depois de uma briga. Oxum foi a segunda mulher de Xangô.Omolu, filho de Nanã, foi criado por Iemanjá. Cada um dos orixás está relacionado comdiferentes elementos da natureza e com vários tipos de saberes ou poderes. Iemanjá é oorixá do mar; Iansã é a deusa da guerra, associada ao fogo; Ogum é o orixá da metalurgia edos metais; Omolu é o das doenças.

Uma descrição de cada orixá extrapolaria os limites deste ensaio. Como exemplo,detenhamo-nos em um deles, Omolu, também conhecido como Obaluaiê. Segundo osdepoimentos coletados, ele seria o orixá que melhor representaria a Previdência. Cabe ressaltarque, na Federação Nacional de Cultos Afro-brasileiros, a imagem desse orixá vestido compalhas da costa é a mais presente em estatuetas e pinturas. Essa figura, associada à proteçãoe ao auxílio em casos de doenças ou necessidades, foi descrita por Edson Carneiro (1948)como o “médico dos pobres”.

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Nanã, mãe dos orixás, não criou seu filho Omolu, que foi deixado na beira do mar. Oscaranguejos comeram sua carne e deixaram feridas na sua pele; por isso, veste umaindumentária composta de palhas da costa, a qual cobre seu rosto e corpo. Iemanjá oencontrou e o criou. Omolu transformou-se em um grande guerreiro e conquistou váriosreinos. Pelas suas chagas, é considerado o orixá protetor da varíola e das doenças contagiosas.No sincretismo afro-católico, ele está representado por São Lázaro, na Bahia, e por SãoSebastião, no Rio de Janeiro.

Às segundas-feiras, na igreja de São Lázaro, em Salvador, as ialorixás oferecem banhos depipoca para limpar os fiéis. Segundo uma das ialorixás, com as mãos cheias de pipoca, “ele éo único orixá que tem esta flor”. Por ser um poderoso guerreiro e, ao mesmo tempo, umbenfeitor nos casos de doença e necessidade, Omolu ou Obaluaiê é o orixá que poderia sermais facilmente identificado com as políticas de Previdência. Por outro lado, Omolu carregao xarara, estolho feito com folhas de palmeira e enfeitado com búzios, o qual carrega Egumem seu interior. Mais adiante falaremos sobre os Egum.

Diversas comidas também estão associadas a determinados orixás. Durante o trabalho decampo, levantamos um relato que conta a história do acarajé, entrelaçada nas tradições docandomblé da Bahia. Conta a tradição da nação Keto que os primeiros terreiros decandomblé de Itaparica foram criados pelas três Marias: Iacala, Iacose e Iatala. Elas deramorigem às primeiras casas de candomblé. Maria de Xangô, filha de Iacala, foi a primeira avender acarajés, a pedido de Iansã. Diz a história que Maria de Xangô recebeu da orixá opedido, que deveria vender os bolinhos de feijão miúdo, tradicionalmente oferecidos a Iansã.Segundo a tradição, ela sairia com sua gamela oferecendo os bolinhos frios com temperoquente. Originalmente, era só o bolo de feijão. No século XIX, os bolinhos de feijão fritosem azeite-de-dendê ganharam tempero e camarão. Recentemente, na década de 1970,agregaram o vatapá e, mais tarde, a salada. Acarajé seria uma palavra de origem ioruba(acará significa bolo de pão e jé, comer). Essa comida africana recebe o nome de oxobô naNigéria. A venda de doces e quitutes, acarajés e abará, era um dos recursos das mulheresdo terreiro para poderem sustentar-se. Outras vendiam cocada ou outros quitutes, os quaisentraram para o gosto da população de Salvador.

O povo do candomblé tem uma vida cheia de obrigações, mas também tem sua vida forado terreiro. Grande parte pertence aos setores mais pobres da sociedade e sustenta-se emempregos humildes. Outros, como as baianas, têm nos acarajés e nos quitutes uma formade trabalho artesanal e informal.

O terreiro, como forma de organização social, apóia seus membros nos momentos dedificuldade. Vários autores, como Bastide (1961:67, 132), assinalaram o espírito desolidariedade reinante entre os membros do terreiro: “Se por um lado, os sacerdotes ousacerdotisas supremas têm autoridade absoluta sobre os membros da confraria religiosa quedirigem; por outro lado, têm também obrigações para com eles, tanto de assistência pecuniáriaquanto moral, o que, em plena cidade da Bahia, torna os candomblés verdadeiras sociedades desocorro mútuo, de auxílio fraterno, que mantém o espírito comunitário africano” (Bastide1961:67). Esse fato reflete-se também nos depoimentos coletados:

“Eu cheguei aqui com seis meses de nascida, Intê Pá Oá de Axé, que minha mãeMenininha... que o apelido era mãe Menininha, mas o nome dela era Maria ConceiçãoEscolástica Pinto. Com doze anos, eu já tô no Santo. Nasci em 1936, fiz santo, fiz meu orixá,sou filha de Obaluaiê. Com doze anos, tô aqui até hoje, com esta vida toda aqui na casa docandomblé. Depois que minha Mãe Menininha faleceu, tomou a posse a minha mãe Creusa.Eu fiquei com ela durante todo o tempo, até que nosso senhor chamou ela. Tô agora é comminha mãe Carmem, estou acompanhando ela.

A vida do candomblé é essa, a gente vem cumprir os orixás, vem, conversa. Por exemplo, hojemesmo é dia de Obaluaiê. Aí a gente vem, chegamos aqui sábado para ficar fazendo asobrigação: carregar água, fazer o ossé, cumprir as obrigação toda, porque não pode dormirfora. Para quem tá a obrigação, não pode dormir fora, tem que dormir na casa do candomblé.

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Dorme tudo, a gente acorda, tomamos um banho e vai fazer o ossé8 dosorixás. O ossé é a mudança da água para lavar as vasilhas dos orixásque nós temos, é num quarto de santo para os orixás que a gente cultua.E aí a gente vai fazer as comidas, os quitutes para os orixás. Depois, agente... quando chegou o horário, nós oferecemos, ainda é pros orixás. Avida é essa, uma coisa boa.

Então, essa idade toda que eu tenho de santo e de idade é aqui nessacasa do candomblé; elas todas me apóiam. Se a gente briga com omarido, se o marido larga a gente, a gente corre pra aqui, ela acolhe agente, faz com a gente filha, filha mesmo, feito uma mãe materna. Elaacolhe a gente aqui, a gente almoça, janta, ceia, passeia, a gente faztudo aqui nessa casa do candomblé. Coisa boa, gostosa. Quando umase desemprega, ela vem pra aqui, ela dá almoço, janta, ceia, dá umacesta básica pra gente comer, pra gente ter, pra gente se sustentar.Quando a gente não pode, ela vem, ela dá um dinheiro. Elas não sãoruim não, ela mantêm a gente como filha, se a gente tropeçar, elaajuda a gente.” (Antônia Castro, 76 anos, Terreiro Mãe Menininhado Gantois, não tem aposentadoria ou benefícios previdenciários.)

Por outro lado, cabe ressaltar que alguns dos terreiros desenvolvemações sociais junto à comunidade. No terreiro Axé Opô Afonjá, porexemplo, funciona uma creche para as crianças do bairro. O terreiro IlêAxé Opô Ajagunã oferece creche, cursos de capacitação profissional, aulasde informática, cursos sobre cultura afro e o aprendizado da construçãode instrumentos musicais. Participantes do Terreiro de Mãe Menininha doGantois organizaram as Filhas de Gandhi, um grupo de afoxé, e realizamoutras atividades: oferecem, por exemplo, cursos de formaçãoprofissional, que vão da culinária ao turismo, passando pela cultura afro.Pela sua forma de organização, os terreiros podem ser importantesparceiros na implementação de programas sociais junto às comunidades.

8 Ossé: oferecimentosemanal de alimentos aoorixá no seu dia especial(Cacciatore, 1988:199).

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A floresta de símbolos apresentada pelos diferentes orixás mostra também variações deacordo com as nações africanas que ordenam as várias tradições dentro do candomblé. Arelação com as nações tradicionais da África reflete as variações dos cultos africanos noBrasil de acordo com seu lugar de origem. No candomblé, existem várias nações, as quaispodem ser notadas pelos diferentes nomes atribuídos aos orixás, pelos diversos elementosde cultos ou nos cantos e rituais. Como exemplo, podemos indicar a diferença entre osnomes dos orixás nas nações Keto, Djè-djè e Angola. Outra diferença já mencionada está naforma de tocar os tambores, nos nomes dos tambores e em outros detalhes. Anexas,encontram-se as hierarquias utilizadas pelas diversas nações. Algumas tradições,praticamente extintas na África, mantêm-se vigorosas no Brasil. Segundo as estimativas dosinformantes, 75% dos terreiros da Bahia são Keto, 23% são Angola e o restante Keto / Djè-djè; a nação Djè-djè está quase extinta na Bahia.

“Hoje, na Bahia, as casas tradicionais são as das raízes de Keto, pela história que vem doséculo XVIII, pelas três Marias, que é a Iacala, Iacose e Iatala. Então, dessas três fundadorasda nação Keto que nasceram: primeiro, a Casa Branca, na rua Vasco da Gama, Ilê Ialaxô;depois, veio o Gantois; e depois do Gantois, nasceu o Ilê Axé Opô Afonjá. Todos os três sãosociedades: Sociedade Santa Cruz, Sociedade São Jorge e Sociedade Lia Masur, são as trêsirmãs. Desses três segmentos nasceu, hoje, o meu pai-de-santo, que já é a segunda geração;eu já sou a terceira geração da família de Keto. (Pai Ari, Salvador, Bahia.)

Podemos contrastar a fidelidade dessa genealogia com o levantamento realizado por EdsonCarneiro (1948:37), no qual apresenta os principais terreiros das nações Keto, Djè-djè,Angola e Congo. Essa genealogia constatada na década de 1940 permanece fiel, exceto pelofato de que um dos terreiros apresentados como da Nação Congo é classificado agoracomo Angola, possivelmente porque o informante é da nação Keto, mas não se devedescartar uma fusão das nações banto. Ela aplica-se também a outras nações do candomblé:

“E temos hoje a geração da família de Angola, que nasceu do Bate Folha, com MariaNeném, que foi a fundadora, e depois com o finado Bernardino. E hoje têm os segmentos: oBate Folha, o Bate Folhinha e o Folhinha do Angola. Então, hoje, já têm três segmentos dos

As nações do candomblé

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cuja particularidade é falar, dado que os orixás não falam. Nos terreiros de Angola, detradição banto, essa entidade fala com os assistentes, dá conselhos e realiza curas.

“No Angola, o orixá se chama de inkice. Mas, por exemplo, nós temos uma entidade noKeto que se chama Logunedé. Logun é um cruzamento de um homem e uma mulher; entãoele é Oxóssi e Oxum. Já no Angola, ele é considerado Gongonbira: Gon, o homen, e bira, amulher; um homem e dois sexos. Então, só é a tradição que muda de nação, mas a entidadeé a mesma.

O pessoal confunde muito o Angola com Caboclo. Angola e caboclo não tem nada a ver.Angola é tradição da África Ocidental, certo? E o Keto é Nigéria Barake. Então, o caboclo ébrasileiro. Mas o povo confundiu, achavam que era o Angola que tem aquelas regras,mistura com caboclo, aí o pessoal confundiu Angola com caboclo, mas não tem nada a ver.Caboclo é indígena, e Angola é inkice, igual ao Keto, só que ele recebe uma incorporaçãoinkice. Como o Angola tinha inkice, e inkice significa o marco, a transformação do espírito,como o caboclo era do mato, eles ligaram que o Angola tinha parte com o caboclo... Então,hoje, aqui na Bahia, eles fazem a festa do caboclo, aí bate Angola, que não tem nada a ver

filhos da casa do Bate Folha. Nós temos outra família de Angola que é a família de Ciriaco.Aí já nasce o Tumba Junçara. O Tumba Junçara foi criando várias raízes, como tem hoje noRio, em São Paulo, já raízes do Tumba Junçara de Angola.

Hoje, da raiz Djè-djè nós temos uma casa tradicional, que é o Bôgún, que é uma casa demuitos anos, mas que hoje está em recesso pela titular ter falecido, e a sucessão Djè-Djè exigesete anos. Então, a casa fica sete anos em recesso; depois de sete anos é que a casa volta afuncionar. É o que acontece.... do Bôgún nasce o Aventura, que era mais velho, mas a mãe-de-santo do Aventura vem se dedicar ao Bôgún, e aí nasce o Aventura; do Aventura nasce mãeLuiza Gaiakú. O Rumpayme é o terreiro dela, lá em Cachoeira, que você conheceu.

Essas são as famílias tradicionais, que hoje é o Keto, o Angola e o Djè-djè. Temos poucasraízes de outras nações na Bahia, que era o finado Eduardo Ijêxá, que já faleceu, e hoje oque nós temos de Ijêxá... a comprovação... o efã é Rui Pólvora, em Itabuna, e tem MãeEstelita aqui em Salvador, que já está uma senhora de idade, já perdeu a visão, ela que é opessoal único de Ijêxá, que consagra a nação Ijêxá. Temos o Caboclo, que tem umadenominação muito forte. Nós temos poucas pessoas de Caboclo e temos uma pessoa hoje,que é Nivaldo Pena Branca, que é feita de Imoraxó. Tinha o finado Rufino e outrossegmentos que era Imoraxó, mas já foram. Hoje só existe uma pessoa que é feita deImoraxó aqui, é o Caboclo.” (Pai Ari, Salvador, Bahia.)

Durante a pesquisa de campo, visitamos também uma das últimas mães de santo Djè-Djè, aqual disse não fazer mais as iniciações tradicionais. Essa mãe-de-santo, Luiza Gaiakú, doterreiro Rumpayme Runtoloji, na sua juventude, foi a mais famosa baiana do acarajé. Ela foicapa de jornais e musa inspiradora de Dorival Caymmi, quando este criou “O que é que abaiana tem?”, em 1938. Hoje, aposentada, ainda deseja que seu terreiro seja tombado, a fimde preservar os fundamentos da nação Djè-djè.

As diferentes nações dentro do candomblé remetem a uma África imaginada comdiversidade, inclusive de tradições. Não se trata de uma África homogênea ou nebulosa. Nacultura afro-brasileira, as tradições chegam a reproduzir as línguas e os saberes de povosafricanos que, às vezes, encontram-se ameaçados no seu lugar de origem. As nações Keto eDjè-djè estão localizadas no Benin e na Nigéria, na Costa dos Escravos, área dos reinosIoruba e Fon. As tradições banto, como as nações de Angola e do Congo, provêm do centroe do sul da África. Essas diferenças refletem também certa profundidade temporal dasgenealogias. Durante o século XVII, a importação de escravos tinha como origem os reinosdo Congo; já nos séculos XVIII e XIX, os fluxos de escravos têm como origem os reinosIorubas. Muitos dos cativos dessa última leva eram capturados durante as guerras deexpansão do povo Fon, do reino de Daomé (Verger, 2002.b).

Por exemplo, a nação Djè-djè, que corresponde aos reinos Fon, tem várias diferenças emrelação à nação Keto, hoje dominante na Bahia. Na cultura Djè-djè, os orixás recebem onome de voduns. Os principais também são cultuados pela nação Djè-djè, mas recebemnomes diferentes. Por exemplo, Exu recebe o nome de Legba; Ogun responde pelo nome Gu;Omolu é conhecido como Sapata ou Azoai; Oxóssi é Age; Xangô é conhecido como Sobo ouBade; Oxum recebe o nome de Aziri e Oxalá é conhecido por Olisasa ou Lisa (Berger, 2000).Variações análogas ocorrem com os nomes dos orixás na tradição de Angola. Nos terreirosde Angola, o inkice é o equivalente ao orixá da tradição ioruba. As tradições são inteligíveisentre si e seguem classificações similares em termos de orixás e de suas atribuições. Aprincipal diferença está na presença de uma entidade muitas vezes apelidada de “caboclo”,

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com o caboclo. Está aí rezando, o caboclo vinha e tinha que saudar oAngola, que o inkice do Angola é como se fosse Orixá. Só que ele é uminkice e fala. Ele só muda a tradição da origem da nação.” (Pai Ari,Salvador, Bahia.)

Em síntese, o candomblé é uma religião iniciática, de tradição oral,centrada no culto aos orixás. Os orixás são um princípio imaterialrepresentado pelo axé, a força que se relaciona com diferentes forças danatureza, com cores distintas e com um sistema de atitudes transmitidopor romances que narram a vida dos orixás. Cada terreiro tem suacomunidade moral composta pelos integrantes do axé da casa; na naçãoKeto, denomina-se egbé.

Apesar das diferenças quanto às tradições e aos sistemas de nomes, osistema de representações é semelhante. À medida que passamos dastradições iorubas, como Keto, às tradições banto, como Angola, oselementos do culto aos antepassados e a presença de outros tipos deentidades acentuam-se. Os limites difusos entre o candomblé e outroscultos espiritistas tornam-se mais nítidos na umbanda, nas macumbas eem outras variantes como a kimbanda.

Os terreiros organizam-se em diversos segmentos de acordo com alinhagem estabelecida pelo “parentesco no santo”. Por outro lado, essessegmentos organizam-se em nações que agrupam as diferentes tradiçõesdo culto aos orixás. O candomblé poderia ser considerado um dosnúcleos duros da tradição afro-brasileira.

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Entre as diversas tradições do candomblé, abordaremos, mais uma vez, a nação Keto e umde seus segredos revelados nesta pesquisa. Bastide (1961:167-ss), na sua apresentação docandomblé, divide a religião em quatro partes diferenciadas: o culto aos orixás, nas mãos debabalorixás e ialorixás; o conhecimento das plantas e das folhas, sob responsabilidade dobabaossain; a adivinhação do Ifá, nas mãos do babalaô; e o culto dos Egum, cujo sacerdote éo ojé. Para Bastide, tal sacerdócio corresponde a uma estrutura quatripartite do mundo:deuses, homens, natureza e os mortos ou a linhagem.

Na análise desses diferentes sacerdócios, Roger Bastide é enfático ao comentar asdificuldades encontradas na obtenção de informações sobre os terreiros de Egum.

“O culto dos Egum pertence, na Bahia, à Sociedade dos Egum, e esta sociedade, aqui, como naÁfrica, é uma ‘sociedade secreta’. De duas, uma: interrogam-se exteriormente alguns dosmembros, que não dão senão poucas informações e logo se refugiam no silêncio, ou entãopenetra-se na sociedade, mas fica-se prisioneiro da lei do segredo. A morte é a condenação detodos os que violam os mistérios dos Egum.” (Bastide, 1961: 169-170)

Os Egum representam o espírito dos antepassados, são os sacerdotes mortos que retornamdepois de sete anos para indicar seu sucessor. Na complexa trama do parentesco ritualestabelecida pelo candomblé, “o parentesco no santo” permite construir linhagens ousegmentos nas diferentes nações. Os Egum permitem construir outras genealogias, que têmcomo referências os espíritos dos antepassados. Durante uma entrevista com o Pai Balbino,ao ser indagado quanto aos seus ascendentes africanos, ele respondeu:

“Nunca ninguém estudou de onde veio na África. O povo era muito ignorante, não sabiadessas coisas. Eu encontrei famílias da gente lá, num lugar que se chama Uidá, a família doDaniel de Paula. E também tem ‘Kute Babá Egum’ nesse lugar. Mas isso foi uns doze anosatrás. (...) Os antigos passavam só a religião mesmo. Esse povo da geração de meu pai eratudo ignorante e eles não ligavam para esse tipo de coisa. Eles morriam, e a gente não sabiacomo se chamava o bisavô, nem o tataravô. Eles não falavam, eles eram muito fechados. Nãoconversavam nada não. Eles só contavam essa parte de Egum. Você sabe o que é BabaEgum?” (Pai Balbino, Alapini, terreiro Ilê Axé Opô Aganju, Lauro de Freitas, BA.)

Egum: culto aos antepassados

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por serem espíritos de pessoas iniciadas no santo, possuemseus orixás, os quais também devem ser contemplados pormeio de oferendas e sacrifícios. Ao cuidar dos fundamentosdos Egum, os orixás dos ancestrais também sãocontemplados, sacrifícios são oferecidos e renova-se o axédos orixás. A cerimônia para invocar os Egum guardasemelhanças, em sua estrutura, com aquela realizada nasfestas dos orixás do candomblé. Inicia-se com a invocação deExu, para que não atrapalhe os caminhos, e de Ogum, o deusdos metais, para a realização dos sacrifícios.

“Porque, primeiramente, aqui, pra nós convocar Egum, nós temosque trabalhar com Exu, cantar pra Exu, cantar pra Omilé. Você vaiver o que é Omilé, Omilé é o tempo. Aqui na seita de Egum, nóschama Omilá, Omilá de Omilé. Esse Omilé chama Obaluaê, que éo tempo. Aí nós canta pra Omilé, canta pra Ogum, entrega, chamaIansã, quando canta pra Balé. Aqui, Egum é apresentado com asobrigações que eu vim marcar aqui nesse chão, que é o carneiro, éo negócio que nós dá pra fazer. Tem que ter a confirmação quenós foi... a gente primeiro faz a confirmação pra poder o Egumsair.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)

Os Eguns representam o espírito dos antepassados. Sete anosapós sua morte, realiza-se o ritual do Oapu, quando osespíritos regressam à terra como Egum.

“O problema dos Egum é esse. O primeiro Egum vai representarObabadebolá, que é o dono do terreiro. Ele pertence a Ogum; tema Genuda, que pertence a Oiá; tem o pai do meu tio, que chamaBabalategum, que é de Xangô. Aí, os Egum de cada um desses

que caiu têm seus orixás. Porque eles têm os orixás. Hoje eu sou um ojé, eu tenho meuorixá, eu sou de Oxalá e Iansã. Amanhã ou depois, quando eu falecer, eles vão me chamar eaí vão dar as minhas obrigação. Pelas obrigação, você tem que receber... que nós chamaprimeiramente Axoxé, e esse Axoxé, depois de sete anos, se chama Oapu, sair debaixo daterra. O axoxé de acordo, eu como dono da casa, eu e mais outros que seriam da casa, quetiveram a permissão dos Egum, primeiramente Deus, sai para dançar. É, porque o que eusei, como eu aprendi que o meu mais velho contou, foi assim. Eu faço aquilo que meus maisvelhos me ensinou. Eu não passo do meu limite.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)

Após seu depoimento, Ojé Baruê apresentou os Egum do terreiro; os quais apareceramcom seu axó, vestimentas rituais que cobrem todo o corpo. É interessante comentar quefalam com voz “cavernosa”. Tenho de confessar que, quando o ojé pediu queentrevistássemos o primeiro Egum, fiquei sem palavras. O segundo Egum falou por meio deOjé Baruê, revelando o caráter genealógico da organização de seu culto:

“Este Egum é meu avô, foi o dono desta sede. E esta sede aqui é de Balbino, que é pai doBabalorixá hoje. O senhor sabe quem é Balbino. Ele não pôde ter esse cargo por causa deXangô, aí esse cargo ficou pra mim. Quando ele me dá Olorum que é Deus, me dando vidae saúde, eu estou zelando Deus.

Na tradição Keto da Bahia, os terreiros de Egum estãodedicados exclusivamente ao culto aos antepassados. Essesterreiros, originários da Ilha de Itaparica, apresentamdiferenças significativas em relação aos outros terreiros decandomblé.

A hierarquia do terreiro é estabelecida da seguinte forma:quem está passando pelo processo de iniciação ocupa ocargo de amuichan. Depois de iniciado, ocupa o cargo de ojé,após uma preparação de sete anos a partir da sua iniciaçãoem Babá Egum. O ojé ocupa uma posição análoga à doebômim no culto aos orixás. A hierarquia dentro da naçãoBabá Egum encontra-se anexa.

Visitamos o terreiro Alaba Ilê Adebolá, do Ojé BabagungunBaruê. No candomblé da Bahia, os Egum são cuidados porum sacerdote especial, o ojé (ou odje). Os terreiros deEgum não possuem babalorixá ou iyalorixá; as cerimôniassão dirigidas pelo ojé, o qual, com uma vara de nome dankô,invoca e controla os Egum. Para preparar essa vara mágica,esfregam-se diversas plantas, tais como comigo-ninguém-pode, espada de São Jorge e Iroko. Os Egum são os espíritosdos antepassados, e o contato direto com os vivos poderiaser fatal. Os Egum não podem ser vistos diretamente, nemtocados. Com a vara, o ojé guia os Egum e mantém umadistância entre eles e os fiéis. À semelhança do candomblé,realizam-se diversos sacrifícios e cantos para convocar osEgum.

“A nossa nação é a nação dos Nagô. Nagô é parte daÁfrica, e essa seita de Egum chama-se Egum-gungum porque é como os africanos chamam.Aconteceu que meu avô, Pedro Daniel de Paula, que é o pai do Egum que o senhor vai verele aqui agora, Daniel de Paula, foi que me fez em 1961. Aí, aconteceu que eu levei essecargo, que já aprendeu, e até hoje eu tô agüentando, porque é uma herança dos nossosmais velhos, que vai passando de um para outro. Que amanhã ou depois, Olorum que éDeus, me chamar, eu tenho que botar outra pessoa no meu lugar. Aqui é uma seita que nãopode parar, o terreiro é usos e usufrutos dessa seita.

Aí acabou pegando o aceite; é pra nós cumprir o nosso resguardo e dar todas asobrigações. As obrigações que nós damos aqui dentro do terreiro é o Axó, que chama Arrô; éo Abô, que é carneiro; Raquicó Miximetalá Bocan, que são quatro galos. Rabocó é bode praExu, Tete-teté é cabra pra Iansã, acompanhado com Adié9. Para nós poder pegar essefundamento desse Egum, nós temos que dar tudo isso para apresentar o Egum. Quemtrouxe os Egum pra nosso Brasil foi Ogum e Iansã, que trouxe pra poder nós ser hoje Ojé,entendeu? Foi trazido por eles. Porque todas as partes desse orixá tem que ter seu Egumassentado; no caso desta casa, é Ogum e Iansã.” (Ojé Baruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)

Ogum é o orixá do metal, elemento presente nas facas com as quais realizam-se ossacrifícios. Iansã é o único orixá que não teme os mortos. Uma das sete Iansãs éresponsável pela passagem que conecta o mundo dos vivos com o dos mortos. Os Eguns,

9 Adié: galinha, animal depreferência de váriosorixás (Cacciatore,1988:38).

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Foto do Egum entrando vertical

Aqui, você sabe, uma festa dele é no dia 29 de Junho, São Pedro; eu aífaço pra ele, se eu puder, se minha condição permite dar um Axó a ele,eu dou; se puder dar um abô10, um carneiro, eu dou, raquicó miximetalá,quatro galos. E o ageim pra dá ao povo; o curim é o vinho pra fazer afesta dele. Esses espíritos de luz que tá aí, quando chega aqui, que vêtodo mundo alegre, tocando, cantando, dando tio, se eles preferir aosgritos que tá aí, é uma maior alegria. Essa alegria que ele põe aqui, eleslevam pros pés de Olorum que é Deus. E pede ao Olorum que é Deus,muitos anos de vida e saúde a nós todos que estamos aqui olhando paraele. Gostou das palavras do Egum?” (Ojé Baruê)

Olorum é o orixá supremo, o criador. Ele não pode ser representado e não é cultuado nosterreiros. Nesses terreiros de Egum, eles, os Egum, são os mediadores que comunicam comOlorum. Os Egum têm de ser bem tratados. Existe uma lógica da reciprocidade. Se bemtratados, em agradecimento, cuidam dos vivos, abrem caminhos, protegem contra asadversidades. Essa lógica aplica-se tanto aos Egum quanto aos orixás.

“O senhor fica aqui na minha casa, se não lhe tratar bem, o senhor volta? Mas não. Amesma coisa. Esse Egum aí é o mesmo, ele vai embora e vem no dia da festa. Aí ele vê afesta dele e fica alegre, satisfeito. Ele aí é que traz mais os companheiros, porque temmuitas pessoas que é morto. Daí, pra animar as pessoas, nós estamos tocando, aqui a portaestá aberta, aí aparece um bocado de pessoa, aí nós só vamos chamando, vai entrando,senta aqui, um cafezinho, uma merenda. E vai agradando o povo pra poder nós ter o valor.Uma coisa é eles, eles vão, “Vamos parar lá porque lá tem comida, tem sangue”. Sangueeles não comem, recebem sangue que lhes jogam, aí que eles recebem o sacrifício.” (OjéBaruê, terreiro Alaba Ilê Adebolá.)

Assistimos à invocação ao Egum e ao Babaegun-gungun, antepassado de um pai-de-santo, comascendência em Xangô. Os antepassados marcam as distâncias internas das nações docandomblé, recriam as linhagens segmentárias dentro da religião. Por meio dos antepassados,constroem-se as proximidades e as distâncias entre os galhos dessa árvore genealógica.

“Agora nós que somos Nagô, que temos uma tradição de Nagô, nós temos mais raízes porquetemos mais histórias, ele que é de Lessa Egum, ele é Gum-Gum Babá, então ele já tem umatradição muito forte com a gente Keto. Porque na nossa tradição, quando as três Mariaschegaram aqui, elas vieram com o Bangboxé, elas trouxeram Bangboxé, o Martiniano; então,eram pessoas que tinham um fundamento de Lessa Egum, com o Bangboxé.11

Eles próprios é que botaram o Axé de Egum em Ponta de Areia, donde ele foi feito. Dali é quesaiu essa história. Se vê que nós não despachamos Exu, nós mandamos axexê, Ilê Axé OpôAfonjá, Casa Branca e Gantois, ele roda primeiro o axexê. Não pode despachar Exú.Inamoejuba: Inamoe, o senhor do poder; Juba, mingau. Então, nós rodamos, falamos com osnossos ancestrais que são os Egum, damos o mingau a Exu, nós chamamos os Egum, nósinvocamos a Iami, que são as mulheres do feitiço, aonde elas se transformam num Aparacá,que é uma parte de Oxum. Elas se transformam, aí a gente manda ela seguir o caminho paraque, à noite, nós encontremos a nossa espiritualidade purificada. Na linguagem popular, se dizassim que a coruja é o símbolo da inteligência; para nós, a coruja é o símbolo da Iami, que é amulher, a mulher que traz o segredo, a mulher que traz a maçonaria, certo?” (Pai Ari,presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro.)

O Axexê é uma cerimônia ritual fúnebre dos candomblés, na qual os Egum são invocados.Iami representa, coletivamente, todas as genitoras ancestrais míticas femininas (Odudua,Nanã, Iemanjá, Oxum). Essas representações estão ligadas ao igba, a cabaça que representao segredo. Iami é simbolizada pela coruja, mas também pela cabaça que representa a mulhergrávida, a que traz o segredo.

Os Egum não podem ser vistos, não podem ser tocados, não se pode falar deles;representam a parte masculina. Iami representa a parte feminina. Ao mostrar-nos os Egum,estão revelando um dos mais guardados segredos do candomblé. Essa exposição de Egum àPrevidência tem de ser entendida com base na lógica da reciprocidade e doreconhecimento. Não devemos esquecer que, há poucas décadas, os candomblés eramperseguidos pela polícia.

10 Abô: líquido feito comfolhas sagradasmaceradas em água dasquartinhas do ronco(Cacciatore, 1988:35).

11 Segundo Verger (2002,b:29), Bangboxé seriaRodolfo Martins deAndrade, que veio daÁfrica junto a Iyanassô,uma das três Marias.

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Durante muito tempo, em lugar de respeito e tolerância para com o candomblé, a políticapública foi norteada pela repressão. O candomblé foi reprimido, principalmente durante aépoca de Vargas e do Estado Novo. Entre 1930 e 1950, as reuniões eram freqüentementereprimidas pela polícia, e os praticantes do culto eram presos, humilhados e discriminados.Pesquisadores do início do século XX, como Nina Rodrigues e Arthur Ramos, criaram suascoleções de peças de cultos afro-brasileiros a partir do material apreendido pela polícia emsuas operações nas casas de candomblé. A mesma origem tiveram as peças que compõem oacervo de vários museus, como o Museu de História de Alagoas. A discriminação e aposterior descriminalização do culto permanecem vivas na memória dos mais velhos.

“A gente era discriminada em todos os sentidos, o candomblé era discriminado em todos ossentidos. Primeiro, anos atrás, nós não tínhamos a liberdade que se tem hoje. A políciaperseguia, os moleques abusavam, pessoas de posição mais elevada não queriam ser docandomblé, porque achavam que era... como é que se diz?... era coisa para gente pequena,coisa para gente muito baixa, inclusive diziam que era “negragem”, tá entendendo?

Porque ninguém tinha coragem, a gente era apedrejada, as gentes eram massacradas, agente andava correndo. Quem chegou agora não alcançou isso, mas eu alcancei. Por issoque as casas, os terreiros grandes de candomblé, todos são distantes da cidade, porque nãose podia fazer festas no centro.

Hoje aqui eu abro, é pequenininho, deste tamanho, mas abriga terreiro, eu registrei, temobrigação, tudo bem, mas assim mesmo ainda tem quem persiga o candomblé. Aqui mesmojá teve quem dissesse que daria queixa de mim na polícia porque eu estava tocando. Eutoquei dois dias das cinco da tarde às onze da noite e já estava incomodando. Mas depois,em conversa, fiquei sabendo que foi um crente [o que deu queixa]. Inclusive, os evangélicossão os que mais nos perseguem. Hoje a polícia nos deixou em paz, o governo nos deixouem paz, não tem mais ordem para ninguém prender ninguém, nós temos defesas porque jáfoi criado... antes não tinha essa federação do afro. Hoje nós temos a Federação, quequalquer problema que tenha, nós podemos ir lá, e eles tomam providência, e aquilo vai serapurado, mas ainda continua a perseguição, porque o evangelismo nos persegue.

Da descriminalização às políticas dereconhecimento

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Ao longo do século XX, os terreiros foram abrindo-se para a participação da populaçãobranca, a qual foi incorporada aos cargos do terreiro desde a categoria de ogã até outrospostos sacerdotais. Em alguns casos, a criação do cargo de ogã para figuras influentes nomundo dos brancos tinha como propósito a obtenção de apoio e mediação frente àsautoridades, a fim de evitar a repressão. Entre as figuras que ganharam esses títulos estãovários artistas e escritores conhecidos. No Ilê Axé Opô Afonjá, foram Ministros de XangôJorge Amado – Otun Oba Onan Xokun; Carybé – Otun Oba Onan Xokun; Vivaldo Costa Lima– Ossi Oba Elerin; Dorival Caymmi – Ossi Oba Onikoi; Antonio Olinto - Ossi Oba Até. Noterreiro Ilê Iyá Nasso, Engenho Velho, Édison Carneiro foi Ogã de Xangô; Nina Rodrigues foiOgã de Oxalá no candomblé de Mãe Menininha do Gantois Ilê Iyá Omin Axé iyá Massê;Mario Cravo Júnior foi Ogã de Omolu no Ilê Oxumaré (Cacciatore, 1997: 237-238). PierreFatumbi Verger recebeu o grau de Babalaô na África e, no Ilê Axé Opô Afonjá, recebeu ocargo de Ojuobá – olhos do rei – ligado a Xangô.

A organização das diversas nações e a mobilização foram o caminho para obter oreconhecimento como religião e pôr fim à repressão das autoridades policiais. Bastide(1961:76) menciona, em seu livro, a criação da União de Seitas Afro-brasileiras, formada,originariamente, em 1937. Nos depoimentos levantados ao longo desta pesquisa, asreferências variam em torno de uma década. A Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro,que funciona em Salvador, cujo presidente, Pai Ari, ciceroneou nosso trabalho, foi fundada em24 de novembro de 1946. Não sabemos se é a mesma organização ou uma reorganização daentidade mais antiga. A Federação, ao longo de sua história, acumulou maiores atribuições.

“Em 1946, a Federação nasceu, ela foi fundada; mas devido a não ter apoio dos órgãosgovernamentais, que não há interesse dos governos da época, ela não teve grande força eargumento para lutar em prol dos terreiros. Em 1976, Roberto Santos foi governador doEstado da Bahia e ele... sendo governador, apesar de ser católico apostólico romano, mas apedidos de uma comissão de vários terreiros como Casa Branca, Axé Opô Afonjá, Bate Folha,Bôgún e outros terreiros que fizeram um segmento... Então, foram ao governador, todos, né?Foi aquela luta com o governador, e o governador liberou e disse que ia libertar ocandomblé da polícia. Na lavagem do Bomfim... o governador assinou um decreto na ladeirado Bomfim, libertando o candomblé da polícia. Então, a partir daquela data, o candombléficou desvinculado da polícia e deu poderes para que a Federação passasse a administraras casas de culto do Estado da Bahia.” (Pai Ari, presidente da Federação Nacional doCulto Afro-brasileiro, Salvador, Bahia.)

Cabe ressaltar, no depoimento anterior, a expressão “libertar da polícia”. Apesar dadeclaração constitucional de liberdade de culto, o candomblé, na prática, não só não erareconhecido como religião como era criminalizado, e seus praticantes sujeitos a detençõesarbitrárias por parte das autoridades policiais. Para as elites da época, as crenças dos negroseram consideradas fetichismo e não religião. A Federação Nacional do Culto Afro-brasileiroencabeçou a luta pela descriminalização e pelo reconhecimento como religião afro-brasileira.

As principais casas de candomblé organizaram-se para formar uma federação que defendesseseus interesses. Depois de longas negociações com o poder público, conseguiram que aresponsabilidade de fiscalizar as atividades dos terreiros passasse a ser atribuição daFederação. No ano de 1976, o governador Roberto Santos assinou um decretodescriminalizando o candomblé e desvinculando os toques de candomblé da ação da polícia. Aresponsabilidade pelo culto passou à Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro, criadapelos principais pais e mães-de-santo. O decreto foi assinado e, em uma cerimônia no terreiro

Quando foi liberado, artificialmente, né? Tirava-se licença era na Delegacia Especial de Jogos eCostumes, mas eles não davam proteção. Tirava-se a licença para tocar, mas eles não nosdavam proteção; o que fizesse tava feito e pronto. Tanta gente já foi presa, quanto pai-de-santocom os atabaques na cabeça foram pra cadeia! As casas são distantes por isso; antes, chegavaa polícia e prendiam, prendiam, botavam os atabaques na cabeça e levavam pro xadrez, setivesse tocando, prendiam sim, prendiam. Há poucos anos é que isso não acontece mais, masjá aconteceu muito. Eu era menina, eu me lembro, muita gente foi presa assim, levava filho-de-santo, levava pai-de-santo, levava atabaque, levava tudo. Sempre existiam, como é que se diz, opago deles, eles sempre recebiam as rebarbas deles, mas faziam isso, uns não iam.

Aqui teve casos de polícia que ia aí a prender pai-de-santo e, quando chega lá, dá ordem deprisão e viraram no santo. Muitos passaram essa vergonha do orixá pegar ele, ele ir prendere... chegar lá..., e o orixá pegar. Quer dizer..., ficava o dito pelo não dito. Muitas coisas dessasjá aconteceu aqui. Era a polícia? Como é que o santo iria prender? O santo veio praenvergonhar ele, para mostrar a ele que ele não poderia fazer aquilo. Tá entendendo? Osanto desceu no policial, aconteceu. Você sabe disso, não sabe?

Era o Delegado Pedrinho, delegado mesmo, que mandava prender mesmo, mandava mesmo.Era na época da cavalaria, quer dizer, eu venho desse tempo, de todo mundo se esconder, todomundo sair descarregando. Eu não estou lhe contando nenhuma mentira. Se o senhor apurar,o senhor vai ver que isso existia; muitos se calavam. Por quê? Por medo, porque, como diz, ocandomblé é primitivo. Hoje todo mundo é do candomblé, já tem doutor, tem isso; masnaquele tempo, só tinha arraia miúda; então, todo mundo se calava, sofria e calava porque nãopodia se defender. Hoje não. Hoje todo terreiro tem um personagem de mais alta posição eque já defende, não é isso? Mas, naquele tempo, só era arraia miúda, era carregador, eradoceiro, era engraxate, baiana do acarajé. Porque os grandes não tinham coragem de dizer ‘eusou’, quando chegava essas horas, eles se encolhiam e aí passavam uma vergonha.

Eu já vi tenente, já vi major, já vi doutores chegarem no terreiro com toda a pose e, daqui apouco, você vê ele entrar com a mão para trás. Eu tô falando que orixá é orixá, então isso éque eu quero lhe dizer.” (Mãe Ditinha, 70 anos, aposentada como mãe-de-santo,Salvador, BA.)

O “toque” nunca foi totalmente permitido e, em muitas oportunidades, foi motivo derepressão. Durante a Primeira República e o Estado Novo, as religiões afro-brasileiras foramsistematicamente reprimidas (Lima, 2005). Até a década de 1970, os terreiros tinham de tirarum alvará de funcionamento junto à Delegacia Especial de Jogos e Costumes, da Secretaria deSegurança Pública. Tinham de avisar o dia em que iam realizar o “toque”, e a delegacia nãooferecia nenhum tipo de proteção. Muitas vezes, a polícia aparecia nos terreiros para dar umabatida e levar todo o pessoal para a delegacia, com os atabaques na cabeça. Um tal delegadoPedrinho era famoso por esse tipo de ação policial. Contam as pessoas que esse delegadoinfernizou a vida do povo do candomblé até que, um dia, no meio de uma batida, o santodesceu nele e ficou encarnado. Depois desse dia, não voltou a dar batidas nos terreiros decandomblé. Essa história, possivelmente, refere-se ao delegado Pedro Gorgulho, que foirepressor dos terreiros na década de 1920 na Bahia (Lima, 2005:103).

Nenhum terreiro esteve a salvo das batidas da polícia, inclusive os mais antigos erespeitados passaram por esse constrangimento e por essa agressão consumada pelaapreensão dos objetos sagrados. Apesar dessa atitude repressiva que se estendeu porséculos, mantiveram o culto aos orixás e as tradições africanas.

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historicamente construída. Detenhamo-nos noprocesso de luta pela obtenção de direitosprevidenciários. Esse processo de mobilizaçãoinicia-se com a demanda da aposentadoriapara as baianas do acarajé. A luta pelosdireitos previdenciários leva à criação de umaorganização específica para elas. Uma vez queobtiveram o reconhecimento dos seusdireitos, a organização continuou trabalhandoem outros âmbitos, como a defesa do figurinotradicional das baianas. Vejamos odesenvolvimento desse processo segundo apresidente da Associação das Baianas doAcarajé (ABA) e uma das figuras chaves doprocesso.

“Existem outros tipos de Previdênciaprivada, mas a gente fica naquela... nãosabe se acredita ou se não acredita.Primeiro aquele contrato que eles dão comas letras tão pequenininhas que a gentenão enxerga direito para ler e terminaassim, passando, e depois, quando a gentevai reivindicar nossos direitos, a genteesqueceu de ler alguma causa.

A Previdência é para pobre mesmo, todomundo já sabe, todo mundo sabe na pontada língua o que é a Previdência, para queserve a Previdência. Se você não contribuicom a Previdência, você não tem futuro, e até mesmo as pessoas mais ignorantes, aspessoas menos esclarecidas sabem o que é o INSS, né? Então, eu acho que é por aí. Minhamãe teve um problema seriíssimo com a Previdência porque, antes de existir a ABA[Associação das Baianas do Acarajé], existia e existe a Federação do Culto Afro-brasileiro,que é uma entidade que cuida de terreiros de candomblé.

Eu fui criada por baiana. Minha mãe é baiana, eu também sou baiana. Eu sentia anecessidade de minha mãe ter uma determinada coisa e não tinha porque não tinha umaentidade específica que cuidasse dessa parte social, não é? E, pior ainda, eles não orientavamela, dizendo para elas que tinham que contribuir com a Previdência, que você ser associadonão lhe dá direito a você ter uma aposentadoria, nem por você ser sócio você tem direito dese aposentar por aqui, porque aqui não é órgão empregatício, aqui é uma entidade como umclube, como uma assistência médica, onde você escolhe para que lado você quer ir.

Minha mãe não tinha esse conhecimento; então, eles pegaram a carteira de trabalho daminha mãe e deram um carimbo e deram uma assinatura lá, e na cabeça da minha mãe,aquilo ali era uma assinatura de carteira aonde ia se descontar, aonde ia se pagar aPrevidência, aonde ia... Ninguém explicava isso para ela; eu, na época, também muitoadolescente, não entendia, e por aí foi.

do Pai Rufino, o governador recebeu um paxoru12 das mãos de Mãe Caiudê.

Esse processo, que se inicia com a descriminalização, continua na luta pelo reconhecimentodo candomblé como religião. Em 1988, a Constituição Federal do Brasil, também conhecidacomo Constituição Cidadã, reconheceu a liberdade de cultos, mas o candomblé não erareconhecido como religião. Em 1989, na Constituição Estadual da Bahia, o candomblé foireconhecido oficialmente como religião, segundo o artigo 275.

As lutas pelo reconhecimento dos direitos previdenciários tiveram um importante papel noreconhecimento do candomblé como religião e ajudaram a reparar uma discriminação

12 Paxoru é o nome docajado de Oxalá.

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definidas como “em condição de risco social”, aquelas sem cobertura previdenciária. O PEPestá composto por técnicos da Previdência que vão ao encontro dos movimentos sociais edas organizações representantes dos setores não incluídos nas políticas de Previdência. Opropósito principal desse programa é disseminar informações sobre os direitos e deveresdos cidadãos junto à Previdência e impulsionar a participação dos diferentes grupos nosistema previdenciário. Por meio de várias estratégias, como encontros, palestras, reuniõescom as lideranças, o programa consegue explicar a importância da incorporação àPrevidência como seguro social. O PEP de Salvador desenvolve diversas atividades comgrupos de pescadores artesanais, feirantes, vendedores ambulantes, prostitutas, entre outrosgrupos excluídos. Vejamos os trabalhos realizados com as baianas do acarajé e nos terreirosde candomblé. Segundo o depoimento da coordenadora do PEP de Salvador:

“O problema da baiana do acarajé é que, justamente, tem muita baiana velha, estáentendendo? Muitas baianas velhas que pensavam que podiam se aposentar só por já serassociada. Porque elas têm uma associação, né? Essa associação, elas pagam por mês; écomo o rural tem o sindicato, aí é a mesma coisa delas, elas já pensavam que, com o quepagavam à Federação, elas já podiam se aposentar.

Então, as baianas que estão chegando agora, essas novas é que estão tendo justamente umnovo conhecimento. Elas estão se despertando que a Previdência é uma coisa, a associaçãoé outra. Foi a mesma coisa das lavadeiras. A gente fez um trabalho aqui muito grande comas lavadeiras de Abaeté. Então, elas tinham associação e pensavam que a associação já eratudo. Porque elas fazem assim, eu não sei se o senhor já conhecia como é que o povoguarda documento: pega um saco, joga os documentos tudo dentro daquele saco, quando éno dia de vir para a Previdência, traz o saco, aí derruba assim aquele saco para procurartoda aquela documentação.

É assim, agora elas estão se organizando; o Programa de Estabilidade Social está trabalhandocom este problema. O serviço social já vinha trabalhando nisso. É, o programa justamente estádespertando estas populações para como é que ela deve se proteger.” (Maria da Penha,coordenadora do Programa de Educação Previdenciária, Salvador, BA.)

A Previdência, por meio do Programa de Educação Previdenciária (PEP), realizou esforçospara incorporar esses setores ao sistema. Uma das maiores dificuldades enfrentadas aotrabalhar com esse grupo era como fazer para que essas mulheres, de renda modesta,conseguissem poupar o dinheiro necessário para realizar as contribuições que lhes dariamdireito aos benefícios.

O Comitê de Educação Previdenciária de Salvador, BA, encontrou uma fórmularelativamente simples e criativa para que essas baianas conseguissem realizar suascontribuições e, assim, ter direito aos benefícios. Por meio de diálogo, chegaram àconclusão de que, se guardassem o equivalente a um acarajé por dia em um cofrinho, aofinal do mês teriam o dinheiro suficiente para realizar as contribuições previdenciárias. Essapoupança diária é interpretada pelas baianas do acarajé como uma “oferenda” nos códigosdo candomblé. Independentemente dessa interpretação cultural, a contribuição diáriapermite, no final do mês, pagar a prestação da Previdência.

A lógica de depositar um acarajé para a Previdência é entendida nos termos do sistema deoferendas do candomblé. Ainda lembro quando, durante uma entrevista com um ogã, eleficou desorientado com a pergunta acerca da possibilidade de ter um Exu e não pedir nadapara ele. O pedido é a outra cara da oferenda, sem pedido não tem oferenda e sem

Agora, há seis anos atrás, minha mãe teve um problema de tireóide e ficou muito doente,muito doente mesmo. E eu senti a necessidade de aposentá-la pela idade que ela já tinha etambém pela capacidade de trabalhar que ela não tinha mais. Aí fui procurar a Previdência.Chegando lá, a assistente social falou para mim assim: ‘Cadê os carnês de contribuição?’ Aíeu falei: ‘Ela falou que não precisa porque ela é associada no Culto Afro’. Ela (a mãe) falou:‘Não, minha filha, eu tenho aqui minha carteira assinada pelo Culto Afro’. E falaram paraela que essa era uma identidade errada, necessitava dos carnês de contribuição. Eu nãoesqueço disso porque ela repetia ‘n’ vezes: ‘Eu sou, eu pago ao Culto Afro-brasileiro, eles temque me aposentar’. Aí a assistente social: ‘Não, senhora. Olha, minha filha, sua mãe precisacontribuir pelo menos três anos para poder se aposentar’. Na época, era três anos, agoraque é oito meses. Falei: ‘Mãe, e agora? A senhora não tem dinheiro, como é que a senhoravai se aposentar? Eu também não tenho para pagar, são três anos, faça a conta. Como éque a gente vai pagar isso? E a senhora precisa de uma assistência.” (Clarisse, presidenteda Associação das Baianas do Acarajé, Salvador, BA.)

Como se depreende do depoimento, havia um problema e um mal-entendido: o nãoreconhecimento das baianas do acarajé como categoria de trabalhador artesanal, para suainscrição como contribuinte individual, e a confusão entre o regime para os trabalhadoresurbanos, contributivo, e o regime para o segurado especial, para trabalhadores rurais, não-contributivo ou não-bismarckiano. O problema foi solucionado com o reconhecimento dacategoria das baianas do acarajé como trabalhadoras por conta própria e, portanto,seguradas da Previdência Social na qualidade de contribuintes individuais, em 1998.

O principal mal-entendido verificado na percepção das baianas do acarajé sobre aPrevidência surgiu em torno da confusão entre os benefícios urbanos, contributivos e asaposentadorias rurais. Essa confusão revela as percepções sobre a Previdência como umdireito desvinculado dos aportes. Como já mencionado no capítulo anterior, osaposentados rurais enquadram-se em um sistema não-bismarckiano, em que o benefícionão está diretamente relacionado com as contribuições feitas pelos aposentados. Ofinanciamento do sistema provém de um imposto sobre a comercialização dos produtosrurais e do extrativismo, além dos recursos do tesouro destinados a esse fim. Na opiniãode Delgado, pela importância social desse gasto, ele teria de ser visto como uma despesa doorçamento da Seguridade Social, em vez de impactar a despesa e conseqüentemente odéficit da Previdência (Delgado e Abrahão de Castro, 2003).

No sistema de aposentadorias rurais, os trabalhadores, para provar que se enquadram nacategoria de trabalhador rural, em geral, filiam-se aos sindicatos de trabalhadores rurais,muitos destes criados para canalizar as demandas de aposentadoria. O fato de serpraticamente uma regra ter de ser filiado a sindicatos de trabalhadores rurais leva osusuários desse serviço a imaginarem que, ao pagar o sindicato, estão pagando a Previdência.Na lógica das baianas, sua filiação à Confederação de Cultos Afro-brasileiros teria de ter omesmo significado que o pagamento dos trabalhadores rurais junto aos sindicatos. Essainterpretação errônea levou uma parcela das baianas a criar uma associação independenteda Federação, com o intuito de orientar suas sócias nas atividades além das questõesreligiosas. A criação de um movimento social pelo reconhecimento do direito àaposentadoria é reveladora do valor atribuído à Previdência Social, e a Previdência soubecanalizar essa energia por meio das parcerias estabelecidas mediante o Programa deEducação Previdenciária (PEP).

A Previdência Social, por meio do PEP, desenvolve diversas ações junto às populações

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significativo é que, uma vez satisfeitas as suas demandas iniciais, a organização continuou aexistir e ampliou seu leque de ação a partir de outras demandas da categoria. Uma destasdemandas foi com a relação à descaracterização da comida tradicional por parte de ex-baianas, convertidas a cultos evangélicos, que continuam a vender o tradicional bolinhorebatizado de bolinho de Jesus. O depoimento indica, ainda, como o reconhecimento dodireito à aposentadoria das baianas do acarajé impulsionou a luta dos pais-de-santo comoministros de ordem religiosa, com vistas à obtenção desse mesmo direito.

O reconhecimento do direito à aposentadoria para as baianas do acarajé foi um processomais fácil comparado àquele dos pais e mães-de-santo, uma vez que as primeiras tiveramreconhecida sua atividade de trabalhadoras artesanais, enquanto o reconhecimento dobenefício para os ebômins resultou no reconhecimento oficial do candomblé como religião.No caso das baianas, a demanda foi em torno da forma de classificar a atividade para seremconsideradas contribuintes individuais. O reconhecimento dos ebômins como ministros deordem religiosa implicava o reconhecimento pleno do candomblé como religião, por partedo Estado, inclusive no que tange ao direito à aposentadoria. As objeções do Estado eramque as religiões afro-brasileiras não tinham uma doutrina, um corpo unificado de crenças.

Como assinalamos em nossa análise, a exigência de um corpus de crenças escrito ou umadoutrina sistematizada entra em contradição com o fato de serem essas religiões iniciáticas,de tradição oral, em que o segredo tem um papel fundamental. Por outro lado, as diferentestradições bantos e iorubas criam um amplo leque que abarca orixás, Egum e inkices, que,apesar da intercomunicabilidade, dificilmente poderiam ser homogeneizadas em um corpusúnico. A solução encontrada pela Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro foi a criação deum código de ética. Um dos pontos desse código é a obrigação do período de preparação desete anos para o exercício do cargo de ebômim ou sacerdote. O código de ética estáconstruído como uma série de regras, em torno das quais existe o acordo entre asfederações reunidas na Federação Nacional e a explicitação de determinados pontos, como osistema de cargos nas diferentes tradições. O registro dessas informações recebeu o nome deProjeto de Reconhecimento da Resolução do Código de Ética Afro-brasileiro como Religião no Brasil.

Depois de muitas reivindicações, no ano 2000, os pais e as mães-de-santo obtiveram oreconhecimento do direito de se aposentarem como sacerdotes de cultos afro-brasileiros.

“Em 1981, o ex-presidente da Federação de Cultos Afro-brasileiros requereu da PrevidênciaSocial (na época era o INPS) a aposentadoria para titulares de terreiro e baianasvendedoras de acarajé. Daí foi dado o reconhecimento às baianas vendedoras de acarajé,como trabalhadoras da parte artesanal. E foi indeferido o pedido dos titulares de terreiropor falta de dogma, segundo a legislação do INSS. Daí, fizemos um congresso. Dessecongresso, tiramos uns anais, averbamos esses anais no cartório e comprovamos para aPrevidência Social que nós não tínhamos dogmas, tínhamos um código de ética.

Na nossa religião, há um código de ética. Daí, eles queriam saber, dentro desse código deética, o que era um orixá, o que era ogã... Aí a gente passou, nesse código de ética, a falarsobre a religião e falar da parte da iniciação até os sete anos, quando a pessoa se torna umebômim com a obrigação de sete anos e, a partir daí, passava a contribuir com aPrevidência como sacerdote.

Na época, Waldeck Ornélas era o Ministro [da Previdência]. Aí foi a estudo, como um bombaiano, a pressão em cima dele direto... e aí concedeu, né? Deferiu-se o processo, e a mãeDitinha foi a primeira a aposentar. Depois da mãe Ditinha, já teve um bocado de senhoras

oferenda não tem Exu. Mas voltemos ao cofrinho da Previdência.

“Essa do cofrinho... a Previdência instituiu mesmo, institucionalizou a coisa. Porque elasgostaram, elas compraram aquele cofrinho de barro e botaram a marca da Previdência.Quando uma baiana vai se inscrever, ela dá o carnê da Previdência e dá o cofrinho. Essecofrinho até já deu um bocado de confusão, porque antes, o cofrinho, se botasse um real,dava para pagar a Previdência. Então, houve o aumento: ‘Agora vocês não botem mais um,botem um e cinqüenta’. Elas protestavam: ‘Ah, mas não é possível! Daqui a pouco a gentenão sabe mais nem quanto é que vai botar nesse negócio!’ Mas aí nós começamos a fazeresse trabalho, posteriormente...

Porque era assim, as baianas eram alinhadas ao Culto Afro. Era um só as baianas com aAssociação ao Culto afro. Posteriormente, eles se separaram, porque as baianas tambémeram ligadas ao candomblé. Elas eram do candomblé. Hoje elas estão brigando justamentepara que não fique no candomblé, mas não seja da maneira como está hoje, porque hojeestá todo mundo querendo ser baiana de acarajé, está entendendo? E elas não querem,estão prevendo isso.

Quando elas se desvincularam da associação, aí o que passou? Culto Afro só candomblé; e aAssociação das Baianas do Acarajé se separou. Aí, o que foi que aconteceu? Aconteceu umproblema também, já que o Culto Afro começou também a ter conhecimento da Previdênciaem nível de proteção social. Isso porquê? Porque elas não tinham despertado ainda, elaspensavam que, pagando a Associação, já podiam se aposentar. Aí começou a correr muitagente para o INSS para se aposentar pagando só a Associação, não pagava o INSS. Foiquando verificou que não era possível, porque eles pagavam lá a Associação, o sindicato, enão estavam pagando a Previdência. Aí foi que começamos a fazer esse trabalho com opessoal do candomblé. Começamos a fazer também visitando, porque aqui são 4.850terreiros na Bahia toda, né?

Nós começamos a fazer um trabalho com eles, principalmente com esse pessoal mais velho,mais antigo. Porque nos terreiros tem muita gente velha, muita gente que é pai-de-santo,mãe-de-santo, aqueles negócios todo de lá, aquela formalidade deles. Aí nós começamos afazer esse trabalho com eles, visitando a sede, vindo e fazendo mapas entre as palestras etambém nós chegamos pela Federação, porque eles têm a Federação, é um grupo local quetem também um número muito grande de terreiros. Aqui na Bahia, em todo canto temterreiro, aonde o senhor vai, vai ter terreiro de candomblé, muito, muito.

Foi quando a gente começou a fazer esse trabalho, e até hoje a gente ainda está nessetrabalho com eles. Eles encaminham para a gente orientar aqui, e fazemos também umtrabalho junto à Associação, que é no Pelourinho. Esses são os dois trabalhos. Agora, foracandomblé e as baianas, nós trabalhamos com os barraqueiros de praia, nós fizemos umtrabalho na feira de São Joaquim... Olha aqui as baianas: as baianas são 3.500, viu? Estãotodas aqui. O Afro, 4.800; os barraqueiros, 780 barracas; e os ambulantes, 4.850 também.”(Maria da Penha, coordenadora do PEP, Salvador, BA.)

Este depoimento é relevante porque expõe as negociações em torno de estratégias quepermitissem a esses setores a realização das contribuições previdenciárias, como ocofrinho, que terminou por vincular o preço do acarajé às prestações da Previdência. Eletambém apresenta o processo de mobilização social em torno de demandas previdenciáriase a criação de uma organização específica para canalizar as demandas das baianas. Um dado

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de idade que sempre caminhou na religião e conseguiu aposentadoria. Já tem um bocadode senhor aposentado; já tem também mães-de-santo que contribuíram com a Previdência ejá estão aposentadas. Temos também o aumento das pessoas, porque, no ano passado, foifeita uma pesquisa, e nós já estávamos com dezoito mil pessoas contribuindo com aPrevidência pelo código 19620/7; hoje cresceu. Nessa nova geração, nós temos 40%masculino, são 18 mil pessoas contribuindo já com a Previdência. O número é o código deidentificação, que é 19620/7; esse é o código religioso. Na Previdência, eles vão passar acontribuir como contribuinte individual e, quando eles vão se aposentar, a FENACAB dá umatestado religioso onde consta o tempo do exercício sacerdotal como ebômim.

Mais de setenta e sete anos de Previdência sem reconhecer os direitos dos sacerdotes doscultos afro-brasileiros. Até hoje ainda tem uns funcionários do INSS que dizem que nãoconhecem isso...” (Pai Ari, presidente da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro,Salvador, BA.)

O direito à aposentadoria foi reconhecido oficialmente mediante um despacho da áreajurídica durante a gestão do então Ministro da Previdência e Assistência Social, o qual prevêo direito dos ebômins de se enquadrarem na categoria de “ministro de confissão religiosa,membro de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa” para ostrâmites da aposentadoria. Esse despacho foi assinado em 21 de outubro de 2000. Paraefetivar o trâmite, a Federação tem de emitir um certificado que ateste o exercício doculto por mais de 14 anos. A aposentadoria para os pais e mães-de-santo levou aoreconhecimento de uma religião tradicional que, apesar da declaração de liberdade decultos inscrita na Constituição de 1988, não era reconhecida pela Previdência e por outrasinstituições do Estado. Encerremos esta sessão com o depoimento de Mãe Ditinha,primeira mãe-de-santo a ser aposentada como Ebômim. Ela recorda o acontecimento comas seguintes palavras:

“Foi importante porque muita gente passou a acreditar mais nos dirigentes da Federação,vamos dizer assim, né? Porque até aí... hoje dizem que todo idoso tem direito a essebenefício, mas eu não sabia, eu não sabia, tanto que eu procurei eu estava com sessenta epoucos anos de idade e não sabia disso. E, através do candomblé, foi que eu vim a saber,porque ele me convidou e tal, e que tava acontecendo isso e que já era realidade. Eu fui efiz. Daí foi um reboliço, foi televisão, tive uma semana de cama, era televisão, era jornal, eraisso, telefonema da Espanha, telefonema de outros países. Quer dizer, ‘propalou’. Aí foi umbenefício muito grande, porque nossa religião precisa de expansão, precisa porque já foimuito, como é que se diz?... já foi muito discriminada. Então, uma coisa dessas veio levantarmais um pouco o candomblé, e daí todo mundo agora se interessa, todo mundo quer, todomundo que estava fora tá voltando, tá entendendo? Porque já viram que é alguma coisa quevale a pena, não só na parte religiosa, como também na parte material, porque aí é umbenefício material; e vamos em frente. Logo foi proclamada a religião que, até então, só erapreta, e isso beneficiou em tudo. Você vê que muita gente importante entrou, muita genteimportante ajudou, influenciou, e isso nos engrandeceu muito.” (Mãe Ditinha, aposentada,70 anos, Salvador, BA.)

Em síntese, a análise das populações que participam do candomblé e são contempladaspelos benefícios da Previdência permite assinalar, por um lado, as diferenças entre ossegurados especiais rurais e os segurados urbanos de baixa renda. No caso destes, aPrevidência aplica um sistema contributivo diferente da política previdenciária aplicada na

área rural. Por outro lado, o reconhecimento tardio do direito dos pai e mães-de-santo àPrevidência vem corroborar o preconceito que orientou um sistema previdenciárioelaborado a partir de parâmetros brancos, urbano-industriais e, por que não, católicos.

Essas mudanças políticas, como a inclusão das baianas do acarajé e dos pais-de-santo nosistema previdenciário, são produto de lutas pelo reconhecimento. Essas lutas partem datradição para a reivindicação de direitos ditos “modernos”. A estratégia das políticas dereconhecimento transcende uma política focal, tem o sentido de incorporar os diferentesgrupos excluídos e favorece a tendência à universalização dos benefícios.

Essas associações canalizaram as demandas desses movimentos sócio-religiosos eengajaram-se na luta tanto pelo reconhecimento da diversidade religiosa como pelo direitoà aposentadoria. Tais fatos levaram esses movimentos a pleitear, de uma ou outra forma,uma reformulação do conceito de cidadania para que contemple a diferença, transcenda ocampo clássico dos direitos e deveres ao incorporar uma dimensão simbólica que inclua adiversidade cultural: o direito à diferença.

O reconhecimento do povo do candomblé passa por seus expoentes mais idosos, uma vezque, nessa tradição oral, quando morrem os mais velhos, a perda para o grupo tem umvalor inestimável, pois uma parte do saber é perdida para sempre.

“E nós verificamos que aqui e em todas as casa de axé, em sua maioria... porque diferentedas outras, de outras comunidades, nós valorizamos o nosso idoso. Eu não digo no caso dosíndios, né? Tem um provérbio africano que diz assim: “Quando um idoso falece, é como se umabiblioteca inteira se incendiasse”. É o nosso caso, cada mulher dessa que a gente perde, perdemuito, porque a nossa cultura é oral. Tem muita coisa escrita, muita produção, mas quais sãoas confiáveis? Quais não são? Não é verdade? Tem muita coisa que está escrita, mas nóssabemos que a nossa cultura, a tradição nossa mesmo, é a cultura oral, aquilo que vaipassando de pai para filho.” (Maria José, Terreiro de Mãe Menininha do Gantois, parceirado Programa de Estabilidade Social, Salvador, BA.)

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Tem um provérbio africano que diz assim:

“Quando um idoso falece,

é como se uma biblioteca inteira

se incendiasse”.

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3 Maracatu Nação do Recife:tradições afro-brasileiras e déficitde política social na periferia dasmetrópoles

A terceira etapa da pesquisa centrou-se na população negra das periferiasdas cidades de grande porte. Em relação aos resultados obtidos nas duasprimeiras etapas, nos terreiros de candomblé, em Salvador, e nos quilombose na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, emMinas Gerais, considerou-se oportuna, de acordo com a coordenação dapesquisa, a realização do terceiro trabalho de campo na cidade do Recife,tendo como alvo a população que participa dos Maracatus-nação.

Assim como o Rio de Janeiro tem suas escolas de samba, Recife tem seusmaracatus. Os Maracatus-nação são de tradição afro-brasileira, e suas sedeslocalizam-se na periferia da cidade, nos bairros populares, onde seconcentra a população negra da cidade. As representações em torno dessaexpressão cultural permitem compreender melhor certos aspectos datradição cultural africana, registrados nas etapas anteriores. As sedes dosMaracatus-nação são instituições tradicionais que apresentam princípios deorganização social semelhantes aos observados nos terreiros de candomblée na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Por outro lado, ao compararas comunidades remanescentes de quilombos com as populações dasperiferias das grandes cidades, destaca-se o déficit de políticas dePrevidência e Assistência Social no último grupo. Pela composição dapopulação e pela informalidade dos vínculos de trabalho, a população temmenor cobertura previdenciária, e são poucos os que têm benefícios deprestação continuada.

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Concentremo-nos no Maracatu-nação, também conhecido como maracatu de baque virado.Esse maracatu é de tradição urbana, ancorado em elementos culturais afro-brasileiros detradição banto. O maracatu rural é um fenômeno mais recente, que traz manifestações dointerior do estado, da zona da mata e que tomou emprestados elementos do maracatutradicional. Diferenciam-se também no ritmo, daí a denominação baque virado para omaracatu tradicional, e baque solto para o maracatu rural.

O Maracatu-nação é um fenômeno urbano, localizado geograficamente na zona norte doRecife, em bairros com população majoritariamente negra. Neles, concentra-se a populaçãode baixa renda, grande parte com emprego informal ou desempregada. Esses bairros sofremproblemas de saneamento, apresentam déficit de assistência e políticas sociais e baixoíndice de escolaridade. Existem ali altos índices de criminalidade, tráfico de drogas e óbitosrelacionados à violência. Com um pano de fundo católico, uma parte da população alinha-sesob cultos afro-brasileiros, e outra porção dela converteu-se aos cultos protestantes. Apolaridade entre crentes e praticantes do Xangô e da Jurema orienta as relações sociais. Naseção anterior, descrevemos diferentes variações do candomblé na Bahia, as quais servirãode base para entender a variação Xangô-Nagô, nação predominante em Recife, e suasvinculações com o Maracatu-nação.

Na introdução do livro Maracatus do Recife (Guerra Peixe, 1980), o editor e diretorexecutivo da Fundação de Cultura da cidade do Recife realiza uma sintética descrição domaracatu, uma definição, por extensão, de como se apresenta aos olhos de quem assiste aodesfile de carnaval:

“O Maracatu é apenas um cortejo. Um cortejo de coroação, onde as figuras do Rei e daRainha destacam-se de todo o préstito: dois ou mais lampiões de carbureto, duas negrastrazendo as calungas (damas-do-paço), arqueiros, baliza, porta-estandarte (embaixador),damas de frente, personagens da corte em dois cordões de baianas, soberanos (Rei eRainha) protegidos pela umbela, que é conduzida por um escravo, lanceiros e batuqueiros,que vêm fechar o cortejo real.” (Guerra Peixe, 1980:4)

O Maracatu-nação

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contraste faz-se evidente ao comparar a pompa do cortejo do maracatu, apresentado comoum ator coletivo, com os dançarinos de frevo, que, com suas sombrinhas, se emaranham emum mar de individualidades.

As representações sociais sobre maracatu remontam à explicação sobre os tempos daescravatura, na época do império, quando o direito elementar a uma boa morte estavamediado pelo pertencimento à Confraria de Nossa Senhora do Rosário. A igreja de NossaSenhora do Rosário de Olinda, uma das primeiras construídas pela Irmandade de NossaSenhora do Rosário dos Homens Pretos, tinha um conjunto composto pela igreja, ocemitério, a bica-de-água e outra casa destinada ao “Rei do Congo”. Esta habitação foivendida para restaurar o telhado da igreja, destruído por um raio na década de 1970.

“A primeira comunidade negra, foi aqui que eles fundaram, os negros alforriados, foi quandoeles fizeram a Igreja do Rosário dos Homens Pretos, construíram a bica e aquele casarãoque tem na frente da igreja. E ali morava quem? Morava o Rei Nagô, que era docandomblé. O candomblé, que na época não podia participar da igreja, porque tinha aeucaristia da igreja e tinha o santíssimo. É a única igreja do Brasil que tem alpendre. Vocêviu aquele alpendre que tem lá na frente? O alpendre é feito um terraço. O alpendre erapara quando chegava a solenidade na época de Xangô, do maracatu, tudo que fazia partedo candomblé não podia entrar pela porta da igreja por causa do santíssimo. Naquelaépoca não podia. Aí o que eles faziam? Eles chegavam ali e, dali pra trás, eles se reuniam.”(Nilson Canuto de Santana, aposentado, presidente da Confraria de Nossa Senhorado Rosário dos Homens Pretos, Olinda, PE.)

No discurso dos participantes do maracatu: “o Rei do Congo era designado pela igreja e tinhacomo função evitar rebeliões entre a população negra. Depois da abolição da escravatura, o Rei doCongo deixou de existir e as diferentes nações puderam ter seus reis” (Shacon, Maracatu NaçãoPorto Rico). No contexto do maracatu, “nação” tem de ser entendido como sinônimo decandomblé. A nação está formada pelos que freqüentam a sede do maracatu e participamtanto do terreiro como dos esforços para a apresentação do carnaval.

“Primeiro vocês têm que ficar bem conscientes de uma coisa: hoje, aqui em Pernambuco,não são todos os maracatus que têm o conhecimento religioso. Preste atenção ao que voudizer a vocês: vocês vão conhecer outros maracatus e vocês vão ver o que eu estou dizendo;que você, quando entra na casa, já sabe que o maracatu é aqui. Se entra naquela porta ali,vocês vão ver os orixás; passou da outra porta, já vê o Xangô; sobe e vê o barracão, você jásabe que tá no maracatu! Você vai ver outros maracatus... você não vai ver nada disso,porque outros maracatus não tão seguindo a linha do candomblé, estão virando pop,levando pro lado pop, esquecendo a questão religiosa e trabalhando pra fazer turista, botarbranco no samba, como eu chamo, e esquece a comunidade.

Você chegou aqui em casa e viu o quê? O que você viu hoje, não é porque vocês vinhamnão. Hoje tinha pouco, tem dia de eu ter quase 30 crianças aqui dentro, fora os adultos quepagam pra eu ensinar. E é uma zoada, bicho, eu divido as turmas. Amanhã tem mais quinze,hoje teve quinze, daqui a pouco tá cheio. Isso é maracatu; isso é a nação; isso sem falar naquestão religiosa. Hoje as pessoas dizem que nem você falou pra mim: o maracatu tem umpé no candomblé. Não é só um pé não. Maracatu é um culto todo do candomblé, todo.

Pro maracatu sair, temos que arriar a obrigação pros santos, pro maracatu ir a outro lugar, oupra qualquer outra coisa, os orixás têm que comer, a boneca tem que ser arriada. Nós temos

Guerra Peixe (1980) procura as origens do maracatu na instituição do Rei do Congo. Parao autor, o Rei do Congo, uma instituição implementada pela igreja, permitia – por meio dainfluência dos reis consagrados pela igreja – um certo controle sobre as populações negras.Segundo ele, com a ajuda da igreja e de suas instituições, a ordem imperial conseguiacontrolar as populações negras. Com o fim de tal instituição no século XIX, a coroação dosreis do Congo teria perdurado como auto-de-fé religioso. O maracatu seria umareminiscência desses autos-de-fé, dessa teatralização da coroação dos reis do Congotransformada em cortejo real, que se apresenta nos desfiles de carnaval. Guerra Peixe(1980:35) levanta a hipótese de que o primeiro rei do Maracatu Elefante tenha sido um dosúltimos reis coroados pela igreja na instituição do Rei do Congo.

O autor faz uma das descrições clássicas do maracatu e indica as relações desse “folguedo”com o Xangô do Recife ao analisar uma das figuras centrais do cortejo, a “dama-do-paço”,que carrega as calungas. Ele reconhece o significado religioso das bonecas e descreve adama-do-paço por analogia ao papel desempenhado pela mãe pequena nos terreiros doXangô. “As calungas – bonecas bonecas bonecas bonecas bonecas representam os antepassados e mestiços do cortejo”.(Guerra Peixe, 1980:45)

Katarina Real (1990) compartilha o ponto de vista que relaciona os maracatus à instituiçãodo Rei do Congo, com a diferença de que, se para Guerra Peixe o maracatu era umareminiscência, para ela é uma sobrevivência:

“(...) temos ainda em Pernambuco sobreviventes das antigas “nações africanas”, cujamanifestação carnavalesca é o “cortejo régio”, com reis e rainhas, denominado hoje de“Maracatu”.

E o aspecto mais extraordinário desse cortejo régio tem sido sua grande estabilidade notempo, isto é, durante muito mais de cem anos, o cortejo do Maracatu-Nação tempermanecido inteiramente “estável”, virtualmente sem modificação.” (Real, 1990:59)

A estabilidade pode ser observada na estrutura característica do Maracatu-nação. Ela édescrita por cinco características assinaladas pela autora: a presença do Rei, da Rainha e dasua corte; a presença das calungas ou bonecas; a composição da orquestra de Baque Virado,com vários bumbos ou zabumbas que fazem a polirritmia sem a presença de qualquerinstrumento de sopro; a “preferência pelas pessoas de cor preta”; e a ligação mais oumenos estreita com os cultos de Xangô de influência Nagô.

Katarina Real (1990) assinala que a vida social nas sedes das nações está estreitamenteassociada aos “santos” (orixás), quer dizer, a atividades mais de cunho religioso do queprofano (op. cit, p. 68). Fora o carnaval, as principais apresentações do maracatu acontecemem “toques” religiosos: “Reis”, em janeiro; São Jorge (Ogum), em abril; N.S. do Carmo(Oxum), em julho; Cosme e Damião, em setembro; N. S. da Conceição (Iemanjá), emdezembro; e em datas patrióticas como 13 de maio (abolição) e 15 de novembro, quando,segundo a autora, realizam toques especiais.

Verger (in Lüning, 2002) relaciona o maracatu às procissões da igreja portuguesa medieval.Essas procissões religiosas barulhentas das irmandades, relatadas por diversos cronistas daépoca colonial, vieram refugiar-se no carnaval de rua. Para o autor, o maracatu, originário daprocissão religiosa dos reis do Congo, foi incorporado ao carnaval.

Outro ponto assinalado por Bastide (1945) é o caráter coletivo do carnaval negro, emcontraste com o caráter individualista do carnaval dos brancos. No carnaval do Recife, o

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Um rei e uma rainha negra, um negão no pai, príncipes e princesas, todo mundo negro. Issopra eles era engraçado, pra gente não era. Pra gente, a gente tava louvando um trabalhoque já tinha feito lá atrás. Tão entendendo mais ou menos a base da coisa? É você gostarde consertar, é você ter que fabricar carro, mas tá proibido de fabricar carro. Mas vocêfabrica o carro lá atrás e, na frente da casa, coloca um carro de mão e tenta colocar ummotor nele. Eu passo e acho engraçado: ‘olha, querendo colocar motor num carro de mão, táficando doido?’ Mentira, lá atrás o trabalho tá pronto, eu não tô vendo, mas tô achandoengraçado o que estás fazendo. É mais ou menos essa a base, a intenção com que omaracatu foi criado: disfarçar a questão religiosa do candomblé, porque tava perseguido.”(Shacom, liderança do Maracatu Nação Porto Rico, bairro do Pina, Recife, PE.)

Na interpretação de lideranças de diferentes maracatus, essa foi a forma encontrada pelosnegros para cultuar seus orixás em procissão nas ruas da cidade. O rei costuma ser umbabalorixá, e a rainha, uma ialorixá. Na interpretação dos participantes do Maracatu NaçãoPorto Rico, eles representam Xangô e Iansã. As calungas, por sua vez, representam a rainhae a princesa, que corresponderiam às orixás Iansã e Oxum. Como assinalado mais adiante, ébem possível que representem também o espírito dos antepassados. A explicação darepresentação desses orixás em detrimento de outros tem uma resposta lógica dentro docandomblé: “esses são os únicos orixás que têm coroa”. Uma terceira calunga, presente noMaracatu Nação Porto Rico, simboliza a pombagira, também conhecida como bruxa.

As calungas articulam maracatu e Xangô. No discurso dos entrevistados, elas são asverdadeiras donas do candomblé. As calungas, como fetiche, representariam diferentes orixáse o Egum de mortos do terreiro. Em algumas das nações, elas relacionam-se também com omundo dos espíritos por meio do culto da Jurema, no qual representam espíritos mestres.

Como assinalamos anteriormente, existe uma forte ligação entre o Maracatu-nação e ocandomblé, a ponto de vários termos serem utilizados como sinônimos por muitos dosentrevistados. Cada Maracatu-nação está fortemente ligado a um ou mais terreiros. Omaracatu, para ser nação, tem de ter os fundamentos de um orixá, cuidar dos Egum dosseus mortos, e a calunga tem de cumprir as obrigações com o santo.

O Xangô do Recife, freqüentemente, é associado à prática de umbanda e da Jurema. Essamistura foi definida por uma informante da seguinte forma: “Em Recife, todo Xangô temfumaça”. Manoel Papai, dono de um dos terreiros mais prestigiados da cidade, fez questãode ressaltar que os orixás não falam, os que falam são os outros espíritos invocados naJurema. A fumaça faz referência a pombagiras, aos pretos velhos e aos espíritos dos mestrese das mestras. Os terreiros de Xangô, em suas distintas variações, possuem tamboresdiferentes dos atabaques. Nos terreiros que misturam Xangô e Jurema, o peji, onde seencontra guardado o axé dos orixás, localiza-se à direita dos atabaques; à esquerda, está opeji dedicado aos exus e aos espíritos dos mestres.

“Jurema é uma árvore, um pé de planta bonito, cheiroso, gostoso, mas bravo. Cada pé deárvore representa um mestre. No culto da Jurema, só entra mestres, caboclos, índios e,eventualmente, preto velho. No culto de orixás, só orixá. Embora as pessoas que jogam apombagira como mestra... mas a pombagira está dentro do terreiro, porque ela é um exuangolano, mas é um exu. A Jurema nasceu só para cuidar desses espíritos de pessoas queeram curandeiros, índios, caboclos e que tinham o saber. Então ele morreu, e o espíritovoltou pra fazer caridade. É uma das coisas mais bonitas que eu conheço, fora o candomblé,que pra mim é a mais bonita mesmo. Eu vou ter no sábado uma festa de Jurema.

a nossa boneca, Inês, que ela só sai duas vezes por ano, no carnaval: uma vez na coroação eoutra na passarela. Que ela é arriada perto de Xangô, perto de Iansã. Iansã é o iabalá daminha mãe, que é a rainha do maracatu. Os únicos orixás coroados da seita foram Iansã eXangô. Então, existe essa relação que é direta e objetiva: maracatu, simplesmente, é umcandomblé disfarçado. Entendeu? Porque foi pra isso que o maracatu surgiu.

O maracatu, quando surgiu, quando existiam as nações que eram comandadas pelos Reisdo Congo desde o século XVII, que não eram administradas pelos babalorixás e ialorixás,mas sim pelos Reis do Congo, por questões políticas... Tinha o Rei do Congo, que dominavaas nações, porque o Rei do Congo comia na mão de seus governantes, os governadores;então, qualquer coisa, o escravo tava amarrado. Em 1889, foi que veio a questão religiosa,que entregaram as suas nações aos seus babalorixás ou ialorixás, e que as nações podiamdifundir e se espalhar. Hoje, tem Porto Rico, Elefante etc. Elas são comandadas por seusbabalorixás. E hoje, o único maracatu que tem uma ialorixá comandando ele e uma rainha,a única rainha coroada de Pernambuco, é aqui em Porto Rico. Porque minha mãe hoje éialorixá, é ebômim e foi coroada como rainha na igreja.” (Shacom, liderança do MaracatuNação Porto Rico, Bairro do Pina, Recife, PE.)

Em suas apresentações, o maracatu mimetiza-se na figura de uma corte européia, da épocado império. O cortejo é aberto pelo embaixador ou porta-bandeira, que leva o estandarteda nação. O estandarte, ricamente decorado, anuncia a chegada da corte real da nação. Ele éseguido pelas damas-do-paço, que levam as calungas. O rei e a rainha, debaixo de umguarda-sol chamado pálio, símbolo do poder dos reis, são acompanhados por uma cortecomposta por duques e duquesas, soldados e diferentes tipos de baianas. A procissãoencerra-se com o batuque, composto de caixas, agogô e um grande número de tambores,também conhecidos como alfaias, que oscila entre vinte a sessenta.

“Agora, dentro do Maracatu, nós temos... vou falar... as peças principais, que é as calungas,a dama-de-paço, que segura a calunga. A calunga é a boneca. Nós temos o rei e a rainha, oescravo que segura o pálio, vassalo e vassala, príncipe e princesa, embaixador e embaixatriz,conde e condessa, imperador e imperatriz, a corte. Vêm as baianas de chitão, que podemoschamar de serviçais, as baianas de branco, vêm as baianas ricas, que são as convidadas dacorte, que vêm com uma fantasia mais bonita. Temos o lanceiro, que são os soldados queficam fora do reino. E temos os batuqueiros, esses são as peças principais, o abajur e osoldado romano…

Assim é questão de uma sátira; o maracatu é muito uma sátira. O maracatu foi criado prapoder esconder a questão religiosa. Teve uma época que foi proibida a questão religiosa. Ocandomblé foi perseguido, e então, nessa perseguição, o único meio que os escravosencontraram pra poder bater o seu tambor e cultivar os seus orixás foi criando alguma coisaque os brancos, ao ver, não iam discriminar, iam achar engraçado e iam entrar na onda.

Então, foi aí que o maracatu apareceu. O maracatu não, tô colocando o nome maracatuagora, mas antes eram as nações. Essas nações resolveram usar os atabaques de baqueta;uns tocando em mãos, outros, de baqueta. Com o baque de maracatu, mas com a dança decandomblé. As danças não mudam nada. O que eles louvavam no baque? Os orixás. Portrás, todos os santos, orixás, estavam comendo; arriavam a obrigação para todos os orixás,todo mundo com a obrigação pronta. Todo mundo no xirê, mas os brancos nem se tocavam.Por quê? O que eles viam? Uma negra de rainha. Pô, negra de rainha é foda, né bicho?Imagina uma negra de rainha imitando a corte de Portugal, imitando a corte da Inglaterra.

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Existe uma árvore que é a própria Jurema. O culto nasce desse pé de planta, o culto aoscaboclos nasce desse pé de planta. Então, toda a casa de mestres tem que ter Jurema, temque cantar pra Jurema, tem o mestre Jurema. Tudo gira em torno dessa árvore.” (ManoelPapai, Centro Cultural Afro Pai Adão, Recife, PE.)

No Xangô do Recife, o culto aos orixás e o culto à Jurema sobrepõem-se, agregandosentidos de forma sintética, em um sincretismo de raiz africana. Por exemplo, as calungas,que representam Iansã e Oxóssi e são a rainha e a princesa na clave dos orixás, têm umoutro sentido marcado pelo nome, associado a um dos espíritos do culto da Jurema. Cadaboneca representa, simultaneamente, os orixás e diferentes espíritos da jurema.

Segundo diversos depoimentos, assim como os iniciados no candomblé, as bonecas cumpremsuas obrigações e, antes do carnaval, devem guardar reparo, ou seja, permanecer no ronkódurante um período que pode chegar a dois meses. No peji, as bonecas recebem sua comidae sua bebida. Esses rituais são destinados a reforçar a calunga espiritualmente, para que possaproteger o maracatu dos feitiços dos inimigos, dos terreiros de outros maracatus. Essasbonecas podem ser de madeira ou de pano.

“Sim, de madeira, e são vestidas. Elas representam... elas têm um… eu não diria um fetiche.Não posso reduzir a calunga a isso. É como se a calunga fosse uma espécie de símbolo,também não posso dizer vestígio totêmico, é inapropriado. É um personagem, não vivo,aonde se depositam os axés, quando se sacrifica, quando a gente dá de comer à cabeça.Por exemplo, o Cambinda Estrela tem donos. Quais são os donos do Cambinda Estrela?Xangô, Iansã e Oxum. Daí as suas cores, vermelho e amarelo. Quero deixar claro que isso éuma ressignificação, quando ele foi surgindo, quando ele foi reinventado, ele não foiinventado com tal proposta. Quem o fundou, não fundou com tais propostas. Mas,atualmente, se diz que Cambinda Estrela é de Xangô, Iansã e Oxum, por causa de suascores, vermelho e amarelo, e pela predominância dos filhos-de-santo. Há muitos filhos-de-santo de Xangô aqui em Pernambuco, por isso que o termo não é nem candomblé, éXangô. Candomblé é mais na Bahia, assim como no Maranhão é Casa de Minas, Tambor deMinas, mais relacionado aos Axanti e tal. Mas, assim, a calunga, ela recebe o axé, o sangue.O sangue do animal sacrificado chama-se axé. Então os axés são depositados na calunga. Eela tem a função de proteger o grupo durante o carnaval. Ela também é um contra-egum,um contra-feitiço. Ela corta as demandas que vêm de fora. Uma outra nação manda pra ela,ela corta a demanda.” (Ivaldo de França, liderança do Maracatu Nação Cambinda Estrela,bairro de Campina do Barreto, Recife, PE.)

“A calunga que recebe a obrigação e vai pra rua também. Ela sai sim com uma pessoaindicada pra aquilo, com todo o regime, com todo o respeito. Aquela pessoa não bebe e nãofuma, porque aquela calunga está com obrigação. Então, a gente faz o serviço e tudo.Aquela pessoa fica dois, três dias no salão com os orixás, que é pra poder ter competênciade pegar naquela calunga. E de tudinho, o principal e o importante é essa calunga. Omestre não importa muito. O importante é eles dois. Não é a corte, nem a rainha, nem osreis, não são as Catarina. O que importa são as bonecas. As calungas são o nosso pai, é aapresentação da nossa religião.” (Jaciresse, rainha do Maracatu Cambinda Estrela).

Cada maracatu pode ser conhecido por sua calunga. A imagem simboliza os espíritos dosantepassados e, com freqüência, carrega um romance que a liga à história da nação.

“No maracatu, o mais importante é a boneca; porque o maracatu pode estar muito bom,mas se não tiver boneca não é maracatu.

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Antigamente, na época da escravidão, os homens trabalhavam, e, na senzala, ficavam osescravos velhos que já não tinham força para o trabalho. Lá na senzala, tinha a feiticeira,que ficava fazendo as obrigações para os negros e cuidando da parte espiritual. Quequando passou, que a preta Velha que ficava na senzala morreu, todo o mundo ficou doido,parecia que todos os negros iam morrer.

Então, quando a velha Inês morreu, os negros tiraram a foto: pegaram um pano, molharamem cera e colocaram no rosto da velha, nos lábios dela, nos olhos, em todo canto e depoistiraram pra fazer uma boneca de madeira. Esse foi o molde a partir do qual fizeram aboneca. E eu tenho ela, toda velha, bem velhinha. Ela é Inês, Dona Inês, era a dona dasenzala. Ela morreu, os negros endoidaram, mas riscaram tudo direitinho como era feito, efez aquela máscara, e fez a cópia, e fizeram de madeira.

Essa é a história da calunga. Essa bonequinha tá na minha mão, que vai de mão em mão.Vai pra museu, sai, vai pra mão de quem pega, vai pra museu, e sai, e vai pra mão de quempega. Ela passou desse João Francisco do Itar pra José França, Pedro França. De PedroFrança, passou pra seu Eudes Chagas. Agora de Pedro França, já passou pra Clube Misto,quando ele morreu, seu Eudes já pegou e juntou com Catarina Real e foram na beira domar encontrar o nascente do sol. Aí quando nasceu o sol, ele disse: em vez de Porto Rico, onome do Maracatu vai ser Maracatu Nação Porto Rico do Oriente.

A boneca simboliza a rainha e o rei. A boneca significa a legítima rainha, a segundaboneca… uma é rainha, a outra é a princesa legítima, e a terceira é a pombagira.Entendeu?” (Elda, Rainha do Maracatu Nação Porto Rico).

Como mostra essa narrativa, independentemente da veracidade dos fatos, o nome dacalunga sintetiza a vida da pessoa cujo axé está na boneca. No Maracatu Nação Porto Rico,a calunga Inês representa uma antiga ialorixá, da época da escravidão. Segundo a narrativadessa nação, quando a velha Inês morreu, os escravos copiaram as feições do seu rosto comum pano. Com o modelo, fizeram a calunga que está no maracatu até os dias de hoje. Aautenticidade desses fatos decorre mais da fé religiosa do que de qualquer registrodocumental ou das especulações locais em torno da continuidade entre o antigo MaracatuNação Porto Rico do Sr. Eudes e o Maracatu Nação Porto Rico da rainha Elda. Lima (2005)realiza uma revisão sobre as fontes clássicas e aponta diversas inconsistências e erros nahistória dos maracatus.

Toda calunga tem um nome e uma história associada a ela. A calunga do Maracatu EstrelaBrilhante de Igarassu é Emília; as calungas do Maracatu Nação Gato Preto são Jupira eLaurunda; as do Maracatu Estrela Brilhante são Joventina e Erundina. Ivanize de Xangô,rainha do Maracatu Nação Encanto da Alegria, relata-nos a história de suas calungas, DonaBrígida e Dona Alice.

“Minhas calungas tão lá dentro. Pega aquelas calungas… Não, o Sr. bebeu. Bebeu, não peganas minhas calungas. E minhas calungas comem… pegam obrigação. Os nomes das calungas:,Dona Brígida, é a amarela; a outra é Dona Alice. Alice era uma ialorixá que já se foi, AliceNovais. E aqui é Sabrina Brígida, é uma ialorixá muito falada lá no Morro do Pascoal e ela émuito minha amiga; então, ela deu o nome a essa. E essa de Iansã é Dona Alice, Dona AliceNovais que era mãe-de-santo do rei do maracatu.” (Ivanize de Xangô, rainha do MaracatuNação Encanto da Alegria, bairro de Bomba do Hemetério, Recife, PE.)

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A festa da calunga

Uma vez por ano, realiza-se a festa da calunga. No dia denossa visita ao Maracatu Nação Porto Rico, presenciamos afesta da calunga Princesa Isabel. O início da cerimônia ésimilar às festas de candomblé. As pessoas vão chegando econcentrando-se no barracão onde já estão soando osatabaques nas mãos de ogãs do terreiro. São os mesmosjovens que participam do maracatu. O segmento docandomblé a que pertence o terreiro, assim como a naçãoKeto, toca os atabaques com baquetas, quando a batida épara o orixá. Um dos detalhes que chama a atenção é ofato de os atabaques serem tocados com as mãos. Nocentro do salão, as iaôs dançam em um círculo, em sentidoanti-horário. Quando chegam as ialorixás, principalmente asde maior idade, sentam-se em cadeiras mais confortáveis erecebem o pedido da benção por parte dos mais jovens ede menor hierarquia. Aos poucos, somam-se à roda nocentro do terreiro, onde continuam participando de umsistema no qual as saudações e as “benzas” refletem ashierarquias do terreiro.

Dona Elda, ialorixá do terreiro, sai da dança e, com ummovimento de cumplicidade e escusa, mostra o joelhoesquerdo inflamado. Não posso deixar de lembrar o joelhoda calunga Dona Inês, detalhadamente deformado. Volta paraa roda. Os tambores soam mais freneticamente. Iaôs eialorixás começam a encarnar os espíritos. As posições dasmãos, espasmos, movimentos marcados são sinais do estadode transe. Aos poucos, as pessoas em estado de transe sãolevadas pelas ekedes ao quarto onde serão vestidas e

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enfeitadas. Um tempo depois, sai do quarto um jovem, vestido de pombagira; seusmovimentos parecem os de uma cigana. Dança no meio do salão, implica com um ou outrohomem. Participa de uma troca de cantos e provocações com o ogã que toca o atabaque. Acigana bebe vinho tinto e fuma um charuto, fala com um e outro, dança e torna-se centro dasatenções por mais de uma hora. O público canta e bate palmas. Finalmente, a cigana retira-se.Continua o som dos atabaques, alguns participantes dançam, com passos do candomblé/maracatu, em uma pequena roda no centro do salão, que gira em sentido anti-horário.

Depois de uma longa espera, a porta da câmara volta a ser aberta e surge a Princesa Isabel,encarnada em Dona Elda. Sua vestimenta, rosa choque e coberta de brilhos, é igual à dacalunga da Princesa Isabel. Apresenta-se e realiza uma evolução com cada um dos homensdo maracatu, que se inicia com o ogã de cargo mais alto na casa, passa pelos batuqueirosaté chegar às pessoas da comunidade. O movimento é repetido com cada um deles. Inicia-se segurando a mão direita, dão-se alguns passos, e a dança termina com a Princesa Isabeldeixando-se cair sobre o braço esquerdo que segura seu corpo. O público canta eacompanha o ritmo com palmas. Depois de terminar as saudações e realizar uma evoluçãocom cada um dos homens integrantes do maracatu, a princesa dança, dá alguns passos,sozinha, no meio do salão e vai sentar-se em uma cadeira especialmente colocada, contra aparede, localizada à esquerda dos atabaques.

Em continuação, saem da câmara as mulheres que encarnaram os “espíritos dos mestres”.Cada uma dessas cinco mulheres, com seus vestidos de tons brilhantes, avança pelo salão,fumando e com uma taça de vinho na mão. Cada uma delas é seguida por seu cambono, queacende os cigarros, junta a cinza e mantém a taça cheia. Elas saúdam os presentes e dirigem-sea suas cadeiras, colocadas à esquerda da princesa. Nesse momento, os participantes da festaaproximam-se, conversam com os espíritos encarnados, pedem conselhos para seusproblemas, realizam consultas, conversam com essas entidades que soltam fumaça. À diferençado candomblé, no qual os orixás mantêm uma certa distância e não se comunicam, a não serpor meio dos ebômins, nesses cultos, como na Jurema, prevalece uma interação direta com asentidades, colocadas em um plano além do bem e do mal. Essas entidades implicam com ospresentes; como pombagira, são sedutoras; como exus, abrem e fecham os caminhos. Maistarde, o ritual é encerrado ao som dos tambores do maracatu.

A forte ligação entre o maracatu e o Xangô e a Jurema, simbolizada pela calunga, cria umpano de fundo cultural compartilhado entre os membros do maracatu e amplos setores dapopulação desses bairros populares. Esta parcela da população é fortemente discriminadapelos “crentes”. A religião aparece como um dos fatores culturais que tem um papelsignificativo na construção da identidade desses grupos.

“O Maracatu Nação Cambinda Estrela tem esse trabalho social e ele tem esse discursopolítico muito forte. Então, por exemplo, à medida que nós colocamos o maracatu na rua,nós colocamos em discussão a questão da liberdade religiosa. Nós contextualizamos aopúblico que nós somos praticantes de Xangô e da Jurema e, como tal, não temos vergonhadisso; pelo contrário, isso faz parte da nossa identidade.” (Ivaldo de França, liderança doMaracatu Nação Cambinda Estrela, bairro de Campina do Barreto, Recife, PE).

A defesa das crenças, frente às pressões de facções intolerantes da população, transformamos maracatus em uma instituição de resistência, que fornece uma estrutura para aorganização desta parcela discriminada da população.

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Na atualidade, o maracatu tem sua mais importante apresentação nocarnaval da cidade do Recife. Os diferentes maracatus apresentam-sedurante os três dias de folia, desfilam na passarela e participam doconcurso que indicará a agremiação campeã. O carnaval, comoacontecimento extraordinário, vem coroar os esforços realizados nassedes durante todo o ano para a apresentação na passarela.

Na sede do maracatu, ocorrem a confecção das fantasias exibidas pelacorte real, os ensaios gerais – realizados poucos dias antes do desfile – eos ensaios dos batuqueiros, intensificados nos meses que antecedem aocarnaval. Na sede, freqüentemente, funciona também um terreiro de Xangôe/ou Jurema.

A sede do maracatu, muitas vezes, funciona na casa do “dono” domaracatu, que pode ser a rainha, o presidente, o diretor ou a pessoa queorganiza as atividades da agremiação. O ideal, para alguns dos entrevistados,seria que cada maracatu funcionasse em uma casa própria em seu bairro.Nos maracatus visitados, os barracões funcionam na casa de quem osorganiza. Em algumas ocasiões, o terreiro, construído junto a casa, serve delugar de ensaio. Quando não dispõem de terreiro e funcionam na casa doorganizador, a alternativa é organizar o batuque na rua.

As ruas da periferia, visitadas durante o trabalho de campo, contrastamcom o resto da cidade pelo escasso número de carros e pela grandequantidade de pedestres: pessoas sentadas na calçada, nas mesas dosbotecos, ou simplesmente paradas às portas das casas, conversando etomando um ar fresco ao final do dia. As crianças brincam na rua, jogambola, mas, quando o baque do maracatu começa a soar, aglomeram-se parabrincar e dançar. Muitos dos maracatus oferecem aulas de percussão paraas crianças do bairro. Em outros, como no Maracatu Nação CambindaEstrela, para estar no batuque os jovens têm de freqüentar a escola.

As sedes dos maracatuse a população da periferia

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dona célia, cor

dessas populações. Os equipamentos culturais resumem-se a algum campinho de futebolsem gramado e empoeirado, colégios de primeira série mal equipados e superlotados e umcentro cultural em um dos bairros. A principal política cultural a contemplar esses grupos éo patrocínio para o desfile de carnaval. Os maracatus, com a mobilização em torno dassedes, ora por motivos religiosos, ora musicais, orientam as relações sociais, apresentam-secomo o núcleo de uma rede de interações sociais das quais participam as pessoas dobairro. As lideranças dos Maracatus-nação visitados durante o trabalho de campo têmconsciência do lugar que ocupam e associam o maracatu a um trabalho social informal.

“O trabalho social é o seguinte: aqui, a semana todinha, e esses meninos não saem daqui decasa. Uns vêm almoçar, outros vêm tomar café, vêm passar o dia trabalhando, fazendocompras, passar o dia desmanchando e montando de novo. Final de semana, é ensaio, comovocê viu. Então, aqui em casa, a minha mãe tá sempre coberta de pessoas. Isso, elesconfeccionam os instrumentos; lá em cima, o pessoal costura, corta, pinta. Enfim, é trabalhoo ano todo. Aí eu pergunto: sabe qual o custo que a gente tem? Nenhum. A gente não temajuda de custo de ninguém, de ninguém. É uma sai daqui, pega tanto, bota aqui, outro pegatanto, bota aqui. E começa a construção, aí pára porque não deu pra terminar, e amanhãpega um dinheirinho, volta de novo e termina. Não tem ajuda de ninguém. Por isso que eufalo, o trabalho que nós fazemos é legal porque a gente consegue que as pessoas tenhamconhecimento das dificuldades e trabalhamos para supera-las.” (Shacom, liderança doMaracatu Nação Porto Rico, bairro do Pina, Recife, PE.)

Como assinalamos anteriormente, as sedes dos maracatus funcionam nos bairros pobres,sobretudo na periferia do Recife Norte. No bairro de Chão de Estrelas, em companhia daliderança do maracatu, procuramos localizar beneficiários da Previdência. A população dobairro é, em sua maior parte, composta por jovens desempregados ou que trabalham nainformalidade. O alto índice de óbitos traduz-se no comentário: “este ano perdemos só doisbatuqueiros. No ano passado, foram quatro batuqueiros mortos. Usam o campo de futebol comolugar de desova para deixar os corpos”. São poucos os velhos no bairro, e os que possuembenefícios são menos ainda.

Os benefícios da Previdência são chamados de “Instituto”, uma abreviação do antigoInstituto Nacional de Previdência Social (INPS). A aposentadoria ou a pensão vitalícia dáuma posição de destaque aos beneficiários; eles são poucos e recebem dinheiro todo mês.Em muitos casos, são a única renda fixa do núcleo familiar. Entre os aposentadosentrevistados no bairro, podemos mencionar a Dona Célia, do Maracatu Nação CambindaEstrela, que recebe uma aposentadoria por invalidez.

“Eu tenho 65. A aposentadoria eu recebo por doença, né? Porque eu lavava pra fora, eu soudoméstica; aí peguei uma doença, e a moça teve pena de mim. Aí chegou e me aposentou,me levou para o médico, e lá ele me aposentou. Tá fazendo seis anos. Agora o dinheiro aí épouco, mas dá pra remediar. Dá pra quebrar o galho. Aqui na casa tem quase doze pessoas,é tudo filho, neto... Essa daqui é minha neta, também sai no maracatu. Tenho quatro filhas edois homens, e o resto tudo tem neto e bisneto. Mora tudo agarrado comigo, meus netostudinho. Minha neta, eu tenho essa daí, tenho Cíntia, tenho Marineide, tenho, no total, unscinco aqui dentro de casa. Agora só aí que a vida é muito dura, estão todos sem emprego.Só quem junta sou eu. Tem um que... esse que faz o maracatu como porta-estandarte, quepuxa carroça, apanha papel. Mas assim Deus vai dando a sorte pra eu viver, né?

Devido aos altos índices de analfabetismo no bairro, a agremiação abriu uma sala onde sãooferecidos cursos de alfabetização, com o fim de viabilizar a inserção dos meninos nosistema de ensino oficial. No Maracatu Nação Encanto da Alegria, a sala da casa que erautilizada como terreiro foi cedida à escola do bairro, que teve sua capacidade esgotada peloexcesso de alunos e optou por usar o local como sala de aula.

A sede do maracatu, como instituição, articula diferentes famílias do bairro que participamda apresentação e do terreiro. Na preparação do carnaval, a rainha e o carnavalescotrabalham intensamente durante o ano todo. Elaboram as fantasias a serem confeccionadase os estandartes. Faltando seis meses para o carnaval, o pessoal do batuque faz ensaiossemanais para coordenar o ritmo dos tambores. A maior parte dos batuqueiros é iniciadano Xangô; alguns deles são ogãs no terreiro da sede. Perguntamos se a corte, as baianas eos outros integrantes do maracatu não precisavam ensaiar. A resposta foi, em diversasocasiões, um não com mistura de assombro e ingenuidade. “Pra que, se os passos são osmesmos que os do terreiro?”

Nos meses que antecedem a apresentação, realizam-se coletas no bairro e pleiteiam-serecursos junto à prefeitura e à comissão carnavalesca para intensificar os preparativos. Sãotiradas as medidas dos participantes do desfile e são confeccionadas as roupas, o bairro semobiliza em torno do maracatu. Realizam-se coletas para comprar os tecidos, disputam-seas vagas para participar da confecção das roupas, o que significa também um empregotemporário. Depois da apresentação, os batuqueiros receberão noventa reais, trinta porcada dia de apresentação, e o porta-estandarte receberá cinqüenta reais. Um modestopagamento em reconhecimento do esforço. As pessoas não participam do maracatu porcausa do dinheiro. A participação no maracatu gera um sentimento de pertencimento a umcoletivo, de participar de um grupo social que compartilha tradições, sentimentos comuns ereligiosidade. Esse sentido de pertencimento serve de base para a realização de diversostrabalhos sociais nestes bairros da região norte do Recife, bairros da periferia queapresentam um marcado déficit social.

“O meu interesse era o de não fazer mais um maracatu para desfilar, para ir às ruas. Não meinteressava mais um maracatu para desfilar no carnaval. Meu interesse era criar um queservisse de instrumento de luta política, pra desenvolver socialmente a comunidade, que émuito carente. Aqui nós temos muitos assassinatos. Muitos garotos que eu ensinei a batermaracatu foram assassinados, já morreram; muitos desfilantes já morreram. Perdemosbordadeiros, perdemos muitas pessoas que detinham o conhecimento de muitos modos defazer, muitos ofícios. Enfim, a minha intenção, em particular, era fazer um maracatu, mas ummaracatu não pra desfilar apenas. Então, eu dizia pra mim mesmo: ‘é preciso pôr estemaracatu para desenvolver socialmente a comunidade’. Mas havia outros interesses em jogo,como existem até hoje. Eu não sei quais eram os interesses de Pai Gerivaldo, ou de PaiMarivaldo, ou de Pai Washington, ou de Mãe Telinha, ou de Pai Valdemir, não sei. O CambindaEstrela se identifica bastante com as lutas sociais da comunidade. Ele tem uma sala dealfabetização, tem um curso de batuque, de ensinar percussão aos garotos daqui. Ele tem essetrabalho social e ele tem esse discurso político muito forte.” (Ivaldo de França, liderança doMaracatu Nação Cambinda Estrela, bairro de Campina do Barreto, Recife, PE.)

A cidade do Recife, segmentada etnicamente e ordenada hierarquicamente como tantasoutras cidades, apresenta um elevado déficit social nos bairros da periferia. São localidadesonde as políticas sociais têm dificuldade de chegar, muitas vezes por falta de identificação deparceiros, outras vezes por desinteresse ou, simplesmente, por não enxergar a problemática

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O dinheiro, quando chega, já é a contade pagar a venda que eu compro. É avenda que eu compro... que o senhorsabe, né? Muita gente aqui pra gentecomprar e comer... não dá pra nada.Não compro nem um chinelo, eu sófaço pagar a barraca que compro. É,ele, o rapaz ali me vende. ‘Não passefome não, que a senhora tá na idade.E eu sei que a senhora é uma criaturaboa.’ Mas, eu tenho que pagar com oinstituto instituto instituto instituto instituto na mão. Tenho crédito porqueeu tenho uns trocadinhos, porque, seeu não tivesse, eu acho que eles nãoficavam assim, né?” (Dona Célia, 65anos, aposentada por invalidez,Chão de Estrelas, Recife, PE.)

Nesse contexto de subemprego einformalidade, poucos têm acesso aosistema previdenciário. Dona Célia obteveo benefício, quando trabalhava comoempregada doméstica, lavando roupa,possivelmente sem carteira de trabalhoassinada. A aposentadoria não é vistacomo um direito, como se depreendedeste depoimento: “peguei uma doença, e amoça teve pena de mim. Aí chegou e meaposentou, me levou para o médico, e lá eleme aposentou”. O “Instituto”, antes de serum direito concedido pela PrevidênciaSocial, é visto como o produto de umamediação, graças a uma relação dedependência. A aposentadoria, pensadaoriginalmente para trabalhadores brancosurbanos, não oferece cobertura paraimportantes setores das periferias dasmetrópoles, excluídos do sistemaprevidenciário.

O depoimento continua e descreve as condições nas quais vive a família que depende dodinheiro do benefício para sobreviver. As rendas dos outros membros da família sãoescassas e esporádicas. O salário mínimo que recebe a título de aposentadoria é o dinheirocom o qual mantém a casa onde moram doze pessoas, entre filhos e netos. Graças ao“Instituto”, ela tem crédito no comércio local. O único membro da família com trabalho“fixo” é o filho mais velho. Ele coleta papelão com um carrinho de mão. Também participado maracatu e brilha como porta-estandarte, anunciando a passagem da corte real.

Depois de percorrer o bairro, encontramos outro beneficiário. Esse outro caso é o de“Pequeno”, como é apelidado Ronaldo Teixeira Nascimento, de 16 anos. Ele tem problemasde saúde e ficou incapacitado. Segundo a mãe, teve problemas no “baço” e teve de recebertratamento no hospital, “cuspia sangue”. Hoje, com um benefício previdenciário, é “ohomem da casa” e sustenta a mãe e os cinco irmãos desempregados.

Outro benefício que deveria ser encontrado entre essas populações é o benefícioassistencial da LOAS; para enquadrar-se nela, como já mencionado, é necessário ter nomínimo 65 anos e comprovar uma renda por pessoa (cônjuge e dependentes menores de21 anos) inferior a um quarto do salário mínimo. Não são poucas as pessoas que poderiamenquadrar-se nesse perfil, mas muitas delas não têm informações e não sabem comoefetivar seus direitos. Na Gerência do INSS do Recife, os dados são agrupados por agências.Para a região norte do Recife, as informações podem ser consultadas a partir da Agência deCasa Forte, um bairro de classe média, com algumas antigas residências senhoriais, o quedificulta desagregar os dados para os bairros de Chão de Estrelas, Alto José do Pinho ouBeberibe.

A análise quantitativa indica que a população negra socialmente desprotegida é aquela quetrabalha na construção civil e no serviço doméstico, sem carteira de trabalho assinada. Essaspessoas, assim como muitas que trabalham com carteira, moram nesses populosos bairros daperiferia. As agências da Previdência ficam no centro e, freqüentemente, estão congestionadas.Para essa população, enfrentar as agências implica gastos com transporte, tempo dedeslocamento e filas intermináveis, o que desestimula a procura pelos serviços. Levar osserviços até os usuários, de forma análoga à parceria entre o PREVmóvel e os sindicatos detrabalhadores rurais, pode ser uma estratégia para desafogar o atendimento nas agências.Neste caso, os maracatus ou outras instituições tradicionais que realizam algum tipo detrabalho social podem ser parceiros potenciais nessa estratégia. Os maracatus poderiam serparceiros do Programa de Educação Previdenciária ou de outros programas de seguridadesocial. As sedes, que tradicionalmente funcionam de portas abertas para a comunidade, tornar-se-iam excelente estrutura para a implementação de ações dirigidas à população dasperiferias, pobre, negra e excluída das redes de proteção social.

No fechamento deste capítulo, trazemos para o leitor um dos depoimentos maissignificativos e emotivos deste trabalho. Ele foi colhido no final do estudo de campo. Era

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noite em Olinda, fotógrafo e antropólogo, andávamos pelas ladeiras da cidade, quandocruzamos com uma velhinha vestida de branco e com uma rosa vermelha nas mãos. Fomosao seu encontro, e a amável senhora relatou a história que agora reproduzimos.Curiosamente, foi o único depoimento a falar da escravatura e reflete a vida dela, bemcomo a memória de tantos brasileiros negros. Talvez, pelo inesperado do encontro, por suacrua representatividade – ela poderia ser a avó de muitos dos entrevistados – é o únicodepoimento que não traz o nome do seu autor, que apelidamos, carinhosa esimbolicamente, de “a velhinha da rosa”:

“Minha mãe morreu com 95. Eles foram escravos mesmo. Ele, quando ele chegou aqui emRecife, Olinda era construída, e Pernambuco tava construindo ainda. Tinha muita coisa. Ele,que eu não sei muito explicar direito, porque ele dizia coisa pouca pra gente, né? Mas aí,quando ele veio pra aqui, o Recife tava começando. Ele veio vendido por 4 pães de açúcar,por tábuas de pão de açúcar, e ele chegou aqui em Recife com 14 anos. Aí ele foi trabalharna casa dos brancos; chamavam-se “os brancos”. Ele passou muito tempo trabalhando,levando as moças. Ele só levava no cabriolé e voltava no cabriolé. Cabriolé hoje não é maiscabriolé, é carro-de-boi. No cabriolé, ficava as moças na frente e aquele carro atrás, e ele ialevar e ia buscar. Ele tinha muito cuidado, ele trabalhava pra isso, vivia nessa luta, nessa vida.Ele nem fumava, nem bebia. Depois, quando foram libertos os escravos, ele ficou comaquela liberdade; mas é que nós não conhecia nada da família dele, nem pai, nem mãe,nem irmão, nem ninguém. Todos da família de meu pai morreu na forca. Minha avó porparte de pai morreu na forca, o pai de meu pai morreu também na forca, os dois irmãomeus assim, acabaram com eles lá, porque realmente minha mãe casou-se nuncaconhecendo ninguém.

Minha mãe era morena forte, ela era Angola, era de Angola. Minha mãe era Angola, e minhaavó também era Angola misturada com caboclo. Agora, só meu pai que era africano puro,puro, puro. Ele tinha a orelha assim por dentro, ele era todo marcado de corrente, marcadodas cinturãozada que ele levava, porque ele apanhava muito pra aprender, porque se elefugisse, aí era fácil pra pegarem. Os irmãos dele, acabaram com eles, irmão, pai, família,tudo; só quem se salvou foi ele. Aí quando ele chegou aqui em Pernambuco, novo, começou atrabalhar. Quando foram libertos os escravo, aí ele ficou liberto e foi trabalhar nos engenhode cana. Ficou lá na agricultura, trabalhando na agricultura. Foi quando a minha mãeconheceu ele, muito novo, assim com seus 30 anos, em Macaparana. Naquela época emque Antônio Severino era Lampião. Já ouviu falar?

É, naquela época... A minha mãe é de Macaparana. É onde vivia Lampião, Maria Bonita,esse povo todo fazendo aquele desate... meu pai chegou até o conhecer. É, quandoacabaram com o povo de Lampião, Maria Bonita, esse povo também todo, aí foi quando aminha mãe veio com meu pai, casou-se, e foram viver em Pernambuco.

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Meu pai contava que os escravos apanhava muito, pilava muito café, era assim muitomalvado, não tinha liberdade na vida, não podia vestir roupa, eram aquelas tangas. Agora,tinha o cafezal que eles faziam, e tinha o cafezal pra eles morarem, e tinha a seita deleafricana que, realmente, hoje aqui é o baque, e lá não era assim. Ele dizia assim: que faziaaquela fogueira, aí juntava aqueles negros, com aquela meia roupa, aquela sunga, aí faziaaquela roda, pegava as caça que hoje fazem um despacho. Aqui no Xangô faz despacho,pega, bota, pega galinha, mata, corta, vai faz aquele... Lá não. Eles abriam, cortava e botavana fogueira. Ali eles destrinchavam, comia aquilo assim, só fazia mesmo tirar assim tudo,porque os antepassados, a falange dos africanos, eram diferentes, não é como agora. Agoraé baque, aí, quando eu tô vestida da África, quando eu tô vestida com as roupas de santo,quando eu tô cheia das minhas pulseiras, das minhas jóias, eu sou uma africana. É comomeu pai dizia: ‘a minha filha vai puxar a mim’, e realmente gosto demais da seita. Me visto,já tirei vários retratos assim na Federação, porque realmente eu tenho cisma de... eu tenhodom de ser mesmo como sou. Então, meus filhos ficam assim: ‘mas minha mãe, a senhora távelha, vamos parar com isso’.

Porque isso aí, dizem assim, ‘é feitiçaria’, mas não é não. Isso aí é um retumbo africano, éuma coisa, é uma história, é um histórico que a gente tem que ser como era. A minhareligião é assim, é um histórico dos africanos. Agora, essa turma de agora que não conhece...Aí fica debochando, dizendo ‘é feiticeiro’, mas não é não, é uma coisa assim daquela épocados negros. É aquela coisa, da época dos negros, como eles faziam, como os negrosdançavam, como brincavam, como os negros davam aquela obrigação. Antigamente não eraassim, e meu pai era um deles, meu pai, meu avô por parte de pai, a minha avó por partede mãe. Só que eram muito judiados, porque eram escravos e nada podiam fazer.

Agora... eu sou uma pessoa assim... que eu acho que eu tô velha já; não agüento maisdecorar algumas coisas, mas eu gosto muito de ler e, às vezes, não entendo um pouquinho,assim de longe, daqueles pensamentos de meu pai. Eu acho que se ele tivesse vivo, ele erauma pessoa de muito retorno do meu lado, porque ele me queria muito bem, porque eu erauma das filhas que era mais ao lado dele, sobre a seita.

Então eu sou uma pessoa que admiro demais, que tenho aquele amor... Eu sou uma pessoavidente, ouço, escuto, vejo, entendeu? É, já é um dom de meus pais, meus africanos. Só temuma coisa comigo que eu adoro e não pode faltar, é reza. Eu rezo muito, eu rezo muito. Já écomo da família de meus pais, porque meus pais eram assim. Meus pais, eles rezavammuito, era muita gente pra rezar e era muita coisa, muita oração, muitas coisas boas... Eu,como era menina, tenho que decorar. Mas depois da minha idade, que eu fui crescendo, aífui entendendo, fui chegando assim, fui chegando lá, fui olhando, aí fui chegando depouquinho. Chegou, mas chegou de pouquinho, porque, realmente, da minha família todinha,dos meus filhos, só quem vive da seita sou eu, e sei que amo demais e não saio nunca...Porque meu pai morreu e nunca foi outra coisa a não ser da seita; agora, só que ele tavamuito velhinho... velhinho, velhinho. Ele cortava a língua, hoje não corta língua, mas elecortava. Eu posso cortar a língua assim, se eu tiver com uma entidade africana. Cortar alíngua assim, o invisível, quando volta, quando chega e empolga, aquela admiração quechega na pessoa, a pessoa corta a língua, fala diferente, como língua de estrangeiro. Eu nãocorto, mas meu pai cortava, porque ele era estrangeiro; ninguém dizia que era. Mas, meuDeus, eu fico com aquela saudade... Eu tenho pra mim que meu pai não é morto, é vivo ejunto de mim. Então é assim. Você gostou demais?” (A velhinha da Rosa, Olinda, PE.)

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O princípio que orientou a pesquisa foi o da tradição cultural como resistência e como formade organização social. A negritude não pode ser reduzida à cor da pele, nem a política socialpode ser pensada como se pensava a modernidade antigamente, inscrita sobre uma tábularasa. O desafio é formular uma política que tenda à universalização dos benefícios econtemple a diversidade das tradições culturais. Observamos a presença ativa dosaposentados nas diversas instituições: aposentados rurais nas comunidades remanescentes dequilombos, aposentados como ministros de ordem religiosa nos candomblés, funcionáriospúblicos e autônomos nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário.

O sistema previdenciário foi instituído há mais de oitenta anos no Brasil. Inicialmentepensado para operários brancos urbanos e, por que não, católicos, só recentemente foireconhecido o direito dessas populações negras aos benefícios previdenciários: aaposentadoria rural, que se fez extensiva na Constituição de 1988; a aposentadoria para asbaianas do acarajé, reconhecidas como trabalhadoras autônomas na década de 90; e aaposentadoria para os pais-de-santo, ebômins, como ministros de ordem religiosa, no ano2000.

O principal déficit de políticas previdenciárias localiza-se nas periferias das grandes cidades,onde mora uma população urbana majoritariamente negra, com altos índices dedesemprego e trabalho informal. Em um país como o Brasil, onde a pobreza é negra, oprincipal desafio é pensar uma política previdenciária não-bismarckiana, orientada para essaspopulações que, do ponto de vista do Ministério da Previdência Social, poderiam estarenquadradas na situação de risco social.

Um olhar orientado pela tradição cultural acerta em cheio as populações excluídas daspolíticas sociais. Nesse sentido, as instituições analisadas podem constituir-se emimportantes parceiras para a ampliação da cobertura do sistema previdenciário. Oreconhecimento das tradições favorece o fortalecimento e a auto-estima desses grupos.Sem reconhecimento reproduz-se a situação de invisibilidade e de exclusão sofrida porestes grupos.

Temascruzados:tradições afro-brasileiras ePrevidência Social

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Os fatos sociais analisados mostram tradições culturais e formas de organização social. Asfestas reatualizam identidades de resistência cultural e revelam verdadeiras redes derelações sociais. Para essas populações, a cidadania, enquanto pertencimento ao Estadonacional, passa pela realização de seus direitos sociais, mas também passa peloreconhecimento da sua identidade tradicional. As diversas instituições tradicionais emquestão podem ser parceiras estratégicas para iniciativas de inclusão previdenciária.

A perspectiva desenvolvida nesta pesquisa ao cruzar tradições afro-brasileiras e políticas dePrevidência põe em xeque a dicotomia tradicional/moderno ao mostrar como essas

instituições articularam muitas iniciativas de luta pelo reconhecimentodos direitos previdenciários. Desses lugares tradicionais de quilombolas,irmandades, terreiros e maracatus, surgem demandas por igualdade dedireitos para trabalhadores rurais, artesanais e ministros de ordensreligiosas. À medida em que as reivindicações encontram eco no Estado,ampliam-se, na prática, os horizontes de uma cidadania cada vez maisplural.

Esta pesquisa, ao situar-se neste campo cruzado, entre as formasculturalmente tradicionais de assistência das populações negras e osbeneficiários das políticas de Previdência e Assistência Social modernas,mostra-nos aposentados que participam, sem contradição, dos mundostradicional e moderno. As formas de assistência tradicionais da culturaafro-brasileira foram modeladas pela exclusão a que foram submetidasas populações negras e, como mostramos nos diferentes grupos, aindacontinuam vigentes em vários contextos. Apesar dessa presença, não sepode cobrar delas que cumpram o papel do Estado, inscrito naConstituição: o de oferecer proteção social aos cidadãos brasileiros.

O estudo também mostra que os benefícios outorgados a essesaposentados, longe de afastá-los das instituições tradicionais, reforçaseu lugar nas diversas instituições. Esse fortalecimento chega pordiferentes caminhos: pelas contribuições dos aposentados rurais nasfestas dos remanescentes de quilombos, pela autonomia dos idososparticipantes da Irmandade do Rosário ou pelo reconhecimento docaráter sacerdotal dos ebômins das religiões afro-brasileiras.

A modernidade não pode ser pensada como um fato novo inscritosobre uma tábula rasa. Pelo contrário, a modernização tem de ter comohorizonte a realização dos direitos sociais e culturais dos diversoscidadãos que fazem parte de um Estado nacional plural. A cidadaniadeve assegurar o direito à diferença, uma diferença geralmente não

enxergada, invisibilizada, apesar de separada por poucos quilômetros, como nosremanescentes, ou por apenas um muro, como no caso dos terreiros. Um direito a umadiferença ancorada em uma visão de mundo e não só na cor da pele.

Ao longo do trabalho, exploramos diferentes formas tradicionais de assistência entre aspopulações negras, tais como: o trabalho coletivo entre os quilombolas e as festas tradicionais;a assistência aos irmãos necessitados na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dosHomens Pretos, nos terreiros de candomblé e nos maracatus. Observamos a presença ativados aposentados nas várias instituições tradicionais. Esses aposentados recebiam diferentestipos de benefícios. No caso dos remanescentes de quilombos, o acesso ao benefício era pela

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categoria de trabalhadores rurais. Já no caso da Irmandade, encontramos aposentados comofuncionários públicos ou como autônomos. Para os terreiros, existem categorias específicas,como o reconhecimento da atividade de ministros de cultos religiosos para os pais e mães-de-santo, e o reconhecimento do seu ofício como trabalhadoras artesanais, para as baianas doacarajé. Apesar da existência dessas categorias, tivemos a oportunidade de observar, no casodos terreiros, alguns pais-de-santo que contribuíam como funcionários públicos e uma mãe-de-santo aposentada como trabalhadora rural. Os maracatus deixaram evidente o déficit deproteção social nas periferias das grandes cidades, principalmente nos setores onde vive umapopulação pobre e urbana.

Nas diferentes categorias analisadas, encontramos uma parte da população que não temacesso aos benefícios, seja por estar indocumentada, no caso dos remanescentes; pormotivos desconhecidos, possivelmente entraves burocráticos, no caso da irmandade; ou pornão terem realizado contribuições, no caso dos terreiros. Esses dados indicam, por um lado,a extensão dos benefícios e a tendência à universalização da cobertura; mas,simultaneamente, apresentam sinais da falta de informação desses grupos e, principalmente,da dificuldade da Previdência em atuar junto às populações negras urbanas das periferias.

No caso dos remanescentes de quilombos, a aposentadoria rural tem uma ampla difusão, masnão acontece o mesmo com benefícios como salário-maternidade ou auxílio-doença. Nãopossuímos esse tipo de informação acerca dos participantes da Irmandade, mas é possível queenfrentem uma situação análoga, pois trata-se de uma população urbana, pobre e discriminada,com pouco acesso à informação. No caso dos terreiros, a Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro cumpre o papel de informar, mas encontra-se fortemente centralizada no estado daBahia. Pais e mães-de-santo de outros estados, como o Rio de Janeiro, têm de reportar-se àFederação em Salvador para obter os documentos necessários, por exemplo, a declaração deexercício do ofício sacerdotal como ebômim. No interior de Minas Gerais, encontramosterreiros que não tinham informações sobre o direito à aposentadoria e desconheciam aexistência da Federação Nacional do Culto Afro-brasileiro. No Recife, existem váriasfederações, o que resulta em fragmentação e descrédito.

A comparação do acesso às políticas de Previdência Social entre essas populações negrasevidencia a grande penetração e eficiência de um sistema não-bismarckiano aplicado nas áreasrurais. O sistema de aposentadorias rurais para homens e mulheres, sem distinções de raça,tem uma ampla difusão e contempla as populações negras que se enquadram nas condiçõeslegais: ter sido trabalhador rural por um período pré-estabelecido ou, no caso dos benefícosassitencias da LOAS, ter 65 anos ou mais e pertencer a um grupo familiar cujo rendimentoseja inferior a ¼ do salário mínimo.

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Nas pequenas cidades do interior, encontramos aposentados que conseguiram o benefíciocomo funcionários públicos dos municípios e o caso de um aposentado que contribuiucomo autônomo: Luiz, o Sapateiro. Nas cidades de grande porte, como Salvador ou Recife,fez-se evidente o déficit das políticas previdenciárias para as populações negras urbanasmoradoras das periferias. A demanda das baianas levou-as a se organizarem para a luta peloque concebiam como direito e a conseguirem o reconhecimento da categoria paraobtenção do direito aos benefícios.

Nos bairros do Recife, o benefício previdenciário é conhecido como “Instituto” e dáprestígio ao beneficiário, que recebe periodicamente seu dinheiro em um contextomarcado pelo desemprego e pela informalidade. As altas taxas de desemprego, o trabalhoinformal e a falta de registros, como a carteira de trabalho, excluem esses grupos dosistema de Previdência urbano, pensado para trabalhadores com carteira de trabalhoassinada e com aportes tripartites: do trabalhador, do empregador e do Estado. Essa é umacondição cumprida, em parte, no importante setor industrial do Brasil. Estas condiçõesdificilmente poderão ser cumpridas pelas populações das periferias urbanas. O desenho depolíticas de inclusão social que contemplem essas populações e sua diversidade é um dosgrandes desafios a serem enfrentados pela Previdência Social. A Previdência foi pensadainicialmente em função da situação dos trabalhadores brancos. A constituição de 1988 e alegislação posterior estenderam o direito a uma aposentadoria não-contributiva aostrabalhadores rurais e às minorias: indígenas, alforriados e populações tradicionais vivendoem regime de agricde subsistência. Os resultados alcançados com os programas dePrevidência rural podem fornecer os moldes para políticas sociais que contemplem essaspopulações do Brasil, onde a pobreza é negra e urbana.

Durante as visitas às diferentes localidades, foram observadas as estratégias implementadaspelo Programa de Educação Previdenciária, cujo objetivo é ampliar a coberturaprevidenciária para as populações excluídas do sistema de proteção social. Dessa análisecomparativa, pode-se assinalar como dado positivo a capilaridade da cobertura dasaposentadorias rurais. A parceria entre os sindicatos de trabalhadores rurais e aPrevidência, mediante o deslocamento dos serviços com o PREVmóvel, permitiu incorporarao sistema a maior parte dos trabalhadores rurais que vivem em uma economia desubsistência. A estreita parceria leva a confundir a ação da Previdência com os serviços dosindicato, priorizando os benefícios rurais em detrimento de outros serviços e benefíciosda Previdência. Em algumas localidades, as mulheres não solicitavam salário-maternidadeporque a Previdência era associada ao sindicato e apenas às aposentadorias rurais. OPREVmóvel poderia ampliar seu leque de parcerias, que incluem basicamente o sindicato detrabalhadores rurais e a secretaria de assistência social do município.

Nas cidades visitadas, Recife e Salvador, entrevistamos os técnicos e estagiários queparticipam do Programa de Educação Previdenciária. O PEP do Recife prioriza as ações decomunicação massiva, como programas de rádio, participação em programas de TV epanfletagem. Essas ações dirigidas a um público não específico, à primeira vista, não chegamàs populações visitadas, tanto nos terreiros como na zona norte, nos bairros queconcentram os maracatus. O atendimento a essas populações é feito na agência de CasaForte, um bairro de classe média, onde vivem algumas famílias tradicionais da cidade. Essadisposição do atendimento agrupa os dados e invisibiliza as informações sobre os bairrospobres, as quais são mascaradas nos indicadores por conta da inclusão dos setores médios.

O PEP de Salvador implementou uma estratégia de trabalho que focaliza os grupos não

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incluídos no sistema de proteção social: trabalhadores informais e outras categorias, comoprostitutas, feirantes, barraqueiros de praia, pescadores, lavadeiras e vendedores ambulantes.O trabalho é realizado em parceria com as associações e os sindicatos que agrupam essascategorias; por exemplo, as associações de feirantes, de prostitutas e das baianas do acarajé.Mediante a realização de cursos de formadores sobre a Previdência, divulga os diferentesbenefícios e as condições necessárias para ter acesso aos serviços oferecidos pelaPrevidência. Esses formadores, muitas vezes os próprios dirigentes da associação,reproduzem a informação, levando-a à grande parte dos associados. A estratégia deparcerias mostrou-se eficaz na inclusão de diversos grupos de populações afro-brasileiras,como as baianas do acarajé e os pais e mães-de-santo dos candomblés da Bahia.

A cidadania, muitas vezes, foi pensada a partir dos movimentos sociais, organizados emtorno de diversas demandas por ampliação dos seus limites. Esses movimentos, comoatores coletivos em uma sociedade capitalista, podem ser classificados de acordo com aorientação de suas reivindicações. Diversos autores assinalam que os mais variadosmovimentos clamam por igualdade de condições em uma sociedade, de fato, desigual. Asdemandas são pela intervenção do Estado para a criação das condições de igualdade, queorientam a ideologia liberal. Podem ser por igualdade no campo do trabalho, do mercadoou de acesso aos recursos do Estado, incluindo cargos e relações fisiológicas. Outro tipo demovimento social ancora-se na diferença, e o motor da mobilização é a defesa dasdiferenças ameaçadas pela condição de minoria étnica, racial, sexual, entre outras, frente àspressões do mercado ou do Estado. Reivindica-se não ficar excluído das políticas por estarinvisibilizado. O desafio está na implementação de políticas universais que contemplem adiferença. O ideal político é a ampliação do espaço público, para que nele tenha lugar a voz

dos diferentes, dos excluídos devido a preconceitos, dos invisibilizados.

Neste trabalho, procuramos visibilizar as diferenças, por contraste com outros trabalhos queas apagam na procura pela igualdade. Não podemos, tampouco, universalizar essas identidadestradicionais, nem transformá-las em limites rígidos que estendam ou imponham essascaracterísticas à totalidade da população. Se as projetarmos dessa forma, corremos o risco decair na essencialização das identidades, ou o que é pior, de transformá-las em estereótipos oucaricaturas de como deveria ser um negro, um índio ou uma mulher. Ao criar estereótipos,recriam-se barreiras, onde, na realidade, temos relações fluidas porosas, hibridações.

Em nossa análise, entramos pelas relações sociais para chegar ao plano das tradições. Nãotrabalhamos com um conceito romântico de cultura, com um todo homogêneo e coerente.Pelo contrário, a cultura apresenta-se como um entrelaçamento de diversas tradiçõesafricanas e brasileiras, as quais se mesclam e formam novos desenhos.

A preocupação com a morte é uma constante em todas as culturas. A busca pela “boamorte”, nas diferentes tradições, sugere a importância que um benefício do tipo auxílio-funeral poderia ter para essas populações.

Podemos ordenar as características, tanto das diferentes tradições afro-brasileiras comodas suas entidades, em um continuum que vai desde as calungas até os eguns, passandopelos inkices e orixás. Essa seqüência pode ser interpretada ao longo de uma escala que asagrupa desde as mais públicas – o Maracatu, que desfila na rua, ou a Irmandade, que sereúne em torno da igreja – até as mais secretas – o culto dos Egum. Cabe ressaltar que,apesar do segredo em torno dos orixás, as deidades africanas são amplamente conhecidasno Brasil. Em contraposição a essa publicidade em torno dos orixás, favorecida pelosincretismo religioso com a Igreja Católica, os eguns são o segredo, a parte mais protegidadessa tradição africana. Como antepassados, são o vínculo com a origem, são a Áfricainvisível. Uma vez dimensionada a importância desse segredo, podemos valorizar o gesto deconsideração com a Previdência – não conosco: fotógrafo e antropólogo –, o qual se deupela apresentação no terreiro de Egum. Ela foi realizada para colaborar com a pesquisa daPrevidência, uma das instituições que reconheceu o candomblé como religião e outorgou,para os ebômins, os mesmos direitos dos ministros de outros cultos religiosos. Essereconhecimento implica um outro: o da diferença, da ampliação da cidadania para quecontemple a diversidade de tradições culturais.

Como assinalamos, na periferia das grandes cidades, nos bairros mais pobres, onde seconcentra uma população majoritariamente negra, encontramos o principal déficit depolíticas de Previdência. Para superar esse déficit, a formulação de uma políticaprevidenciária não-bismarckiana é uma das medidas a serem pensadas para estender acobertura previdenciária às populações excluídas. Algumas alternativas incluem, também, umseguro a um custo menor, que oferecesse benefícios mais limitados, ou alguma novacategoria de segurado facultativo no âmbito do Regime Geral da Previdência Social. Cabedestacar que a extensão dos direitos a esses setores da população está relacionada a umapolítica de Previdência e não de assistência, pois o reconhecimento do trabalho realizadopor essas populações é central, apesar do seu caráter informal ou de difícil enquadramentonos parâmetros da Previdência, como ocorreu com as baianas do acarajé. Por outro lado,não basta a promulgação de uma lei. É necessário chegar a essas populações para difundir,tornar públicas e implementar as reformulações. Nesse sentido, os Maracatus ou outrasinstituições análogas podem ser uma porta de entrada para a chegada da Previdência aesses grupos.

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Durante o transcorrer da pesquisa, observamos as estratégias implementadas pelo PEP notrabalho junto a diversos segmentos da sociedade. No caso das populações rurais, aprincipal estratégia apóia-se no PREVmóvel, como forma de levar os serviços daPrevidência até as populações rurais. O PREVmóvel, com o intuito de descentralizar oatendimento, revolucionou a relação da Previdência com as populações de municípios dointerior, distantes das grandes cidades. Não detectamos nenhum tipo de limitação para aimplementação de uma estratégia análoga nas periferias das grandes cidades. A parceria, queno interior é desenvolvida com os sindicatos de trabalhadores rurais, poderia serimplementada com outros tipos de atores sociais, desde associações de moradores atéassociações culturais, como os Maracatus ou as Irmandades.

A implementação de estratégias do tipo universal, tendentes a atingir um público amplo,com panfletagem e divulgação na mídia, não alcançou as populações visitadas. Um motivo aser apontado é que, no Brasil, o universal é branco; ou, como assinalaram vários autores, aspopulações negras, assim como outros grupos de excluídos, são invisibilizados naconstrução dessa idéia de universal.

As lutas pelo reconhecimento, em Salvador, levaram a equipe do PEP a trabalhar junto àspopulações, com uma ação focal, que teve por objetivo a inclusão social dos grupos nãoatendidos pela Previdência, como as baianas do acarajé e os ministros das ordens religiosasafro-brasileiras. A estratégia de comunicação direta permitiu implementar ações que seestenderam a outros segmentos, como foi o caso do “cofrinho da Previdência” das baianasdo acarajé. O trabalho corpo a corpo e a comunicação direta com os diferentes gruposexcluídos permitiram a inclusão de amplos segmentos da população, tais como feirantes,pescadores e trabalhadores ambulantes.

Ao longo deste ensaio antropológico-fotográfico, com uma perspectiva qualitativa,assinalamos aspectos relacionados às populações tradicionais, suas formas de organização eassistência social e seu acesso aos direitos previdenciários. A perspectiva antropológica,entendida como a arte da tradução cultural, faz-se presente no diálogo estabelecido entreas pessoas apresentadas no trabalho, nos seus depoimentos e nas imagens captadas.

Esperamos que esse diálogo entre o leitor e os personagens aqui retratados seja eloqüentequanto à necessidade de pensar as diferenças na formulação de políticas que tendem àuniversalização. A presença das lutas pelo reconhecimento nos quilombos, nas irmandades,nos terreiros e nos maracatus é um sinal da vitalidade dessas tradições como resistênciacultural e um indicador da imperiosa necessidade de levar em conta o direito à diferença naformulação de políticas de atendimento a populações menos favorecidas. Semreconhecimento, não há auto-estima, e sem auto-estima, não há inclusão social.

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“KKKKKetu/Nagôetu/Nagôetu/Nagôetu/Nagôetu/Nagô

Abokun: ogan que cultua Ogum.

Adô: cabaça.Adoxum: pessoas feitas de santo.

Aficode: chefe do Aramafá (seis corpos),ligado ao Ilê de Ode.

Agbeni Oyê: posto paralelo a Mayê, divide amesma causa.

Agimuda: relação com o Ipadê Exu. Aquelaque carrega a espada. Título feminino usadono culto de Oyá e Geledé.Aiyaba Ewe: responsável em determinadosatos e obrigações de “cantar folhas”.Geralmente são filhas de Oxum.

Aiybá: bate o ejé em grandes obrigações.Tem subposto Otum e Osi.

Àjòiè: camareira do Orixá. Ekedi.Akòwé Ilê Xangô: é a secretária da casa deXangô. Zelo, Orô e compras.Alabawy: pessoa que trabalha na áreajurídica e cuida dos interesses civis do axé.Alagbá: âmbito civil do axé.

Alagbê: responsável pelos toques rituais,pela alimentação, conservação epreservação dos Ilus, os instrumentosmusicais sagrados. No ciclo de festas, éobrigado a levantar de madrugada para quefaça a alvorada durante mais ou menos 40minutos. Se uma autoridade de outro Axéchegar ao Ilê, o Alagbê tem de lhe prestarhomenagem, “dobrar o Ilu” e oferecer atésua própria cadeira. Também possuisubposto.

Alagbede: pessoa que trabalha no ramo deferro e metais e forja as ferramentas do Axé.

Alajopa: pessoa de Ode, que leva a caçapara ele.

Aleikoko: árvore sagrada cujo troncosustenta o Orum e que atravessa os noveespaços.Alugbin: ogan de Oxalufa e Oxaguian, quetoca o Ilu dedicado a Oxalá.Apokan: ligado ao Ilê de Omolu.

Arametã: conselho reponsável pelo culto epela organização da festa de Orixá.

Assogbá: ogan ligado ao Ilê Omolu e acultos de Obaluaye, Nanã, Egum e Exu.

Axogun: responsável pelos sacrifícios. Trazaxé de Ogum. Trabalha em conjunto comIyalorixá/Babalorixá, Oloyês e Ogans. Nãopode errar. Responsável direto pelossacrifícios do início ao fim do ato. Soberanonestas obrigações, é quem se comunica como Orixá para quem se destina a obrigação,transmitindo a Iyalaxé as respostas emandamentos. Deve ser chamado de Pai.Também possui sub-posto Otum e Osi.Babalossain: responsável pela colheita defolhas. Cargo de extrema importância.Balóde: ogan de Ode.

Balógun: título ligado ao Ilê de Ogum.

Egbé: o conjunto dos membros de uma casade santo.

Elémòsó: ogan ou Ajoie de Oxaguian, ligadoao Ilê de Oxalá.

Gymu: Àjòiè de Omolu, que cuida de tudo o

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que se relaciona com Omolu, Nanã eOssayin.

Ibó: relativo aos Egum. Ilê Ibó é o mesmoque casa de Egum.

Iwin Dunse: ligado ao Ilê de Oxalá.Iyabassé: responsável pelo preparo dosalimentos sagrados. Todos os Olorixáspodem auxiliá-la, sendo a única responsávelpor qualquer falha eventual.

Iyadagan: auxilia Iyamoro e vice-versa.Também possui subpostos: Otun-ogan eOsi-dagan.Iyaefun ou Babaefun: responsável pelapintura dos Iyawos.Iyaegbé ou Babaegbé: é a segunda pessoa doaxé, conselheira/o responsável pelamanutenção da ordem, da tradição e dahierarquia. Posto paralelo ao de Iyalorixá ouBabalorixá.Iyalabaké: responsável pela alimentação doiniciado, enquanto este se encontrar deobrigação.Iyalaxé: Mãe do axé, a que distribui o axé. Équem escolhe os Oloyés de acordo com asdeterminações superiores.

Iyalorixá ou Babalorixá: Mãe ou Pai-de-santo; é o posto mais elevado do ilê; tem afunção de iniciar ou complementar o ato deiniciação dos olorixás.Iyamoro: responsável pelo Ipadê de Exu,junto com a Agimuda, a Agba e a Igèna.Iyaquequerê: Mãe pequena do axé ou dacomunidade. Sempre pronta para ajudar eensinar todos no ilê.

Iyarubá: carrega a esteira do iniciado. Usatoalha de orixá no ombro.

Iyasihá: Aiyaba que segura o estandarte deOxalá.

Iyatojuomó: responsável pelas crianças doaxé.

Kaweó: ligado ao Ilê de Ossaiyn.Kólàbà: responsável pelo Làbà, símbolo deXangô.Labã: saco de couro, usado por Xangô.

Leyn: pessoa que zela Ogun ou Ode.Lorogum: festa ritual da qual participamtodos os Orixás e que revive a ida deles àguerra.

Maaawo: grande confiança.Mayê: Mexe com as coisas mais secretas doaxé, ligadas à iniciação do Adoxu.Mojubá: saudação respeitosa.

Oba Odofin: ligado ao Ilê Oxalá.

Odu: Espécie de signo que rege a existênciade uma pessoa durante a vida.

Odum: ano ritual de uma casa decandomblé; o mesmo que ano.

Ogòtún: ligado ao Ilê Oxum.Ojibonã: A mãe criadeira.

Ojuoba: posto de honra do Ilê Xangô epossui subposto Otum e Osi.

Ológum: cargo masculino. Despacha os ebósdas grandes obrigações. A preferência édada aos filhos de Ogum.Olopondá: grande responsabilidade nainiciação, no âmbito altamente secreto.

Oloya: cargo feminino. Despacha os ebósdas grandes obrigações na falta de Ológum.São filhas de Oyá.Omolàrà: posto de confiança.

Opaxorô: cajado de Oxalá.

Orô: canto e dança específicos de um orixá.Ossi: lado esquerdo, ou seja, a 3ª pessoa.

Otum: a pessoa do lado direito, ou seja, a 2ªpessoa.

Oxu: elemento ritual que confirma ainiciação da Iyaô.

Oyês: os cargos de uma casa.

Sarapegbé: mensageiros de coisas civis e deawo.

Sobalóju: título masculino e feminino. Sendoo mais importante e atraente, o preferidodo rei.

Telololá: aquela que acompanha os Obas deXangô.

Xirê: dança.

Ypery: ogan ou Ajòiè de Ode.

AngAngAngAngAngola / Bantuola / Bantuola / Bantuola / Bantuola / BantuDimba Inkice: são as obrigações dadas aossantos.Dimba Nkise: são as obrigações realizadaspara o Nkise.Dizungu Lilumbe: saída do santo.

Dizungu Nlungu: ordem do barco.

1ª - Kamoxi Mona Xikola.2ª - Kaiari Mona Xikola.

3ª - Katatu Mona Xikola.

4ª - Kakuãna Mona Xikola.Eakota Tororó ou Mameto Ndenge: mãepequena.Kalungombe: Tata de Numbi (Egum).

Kijingu: cargo dado no jambeeressu (cuia).

Kijingu:cargo, ou seja, entrega de Cuia.Kinsaba: colhedor de folhas.

Kissicaram Gombe: ogan

Kissicarangombe: o mesmo que Ogan.Kivonda: o que sacrifica os animais.

Kota: são EGBOMIS, filhos com mais de seteanos de feitura.

Kota: são pessoas com mais de 7 anos deobrigações feitas.

Kufumala: defumações.Kumbi Ngoma: dias de toque.

Kutala: herdeiro da casa.

Makota: ekedi.Makota: o mesmo que Ekedi.

Mameto Kamukengo: mãe pequena.

Mameto Nkise: zeladora.Mameto Ria Inkice: mãe, zeladora.

Mona Inkice: filho de santo.

Mona Muzenza: iniciado na nação Angola.Mona Nkise: filho de santo.

Mona Xikola: é o iniciado, Yaô.

Munzenza: é o preterido ao culto,impropriamente chamado de Yaô. O termomuzenza significa noviça.

Muzenza: o mesmo significado de Iyaô.

Nengua Nkise: zeladora.O Jogo de Obi: O Jogo de Obi é um

método simplificado de se consultar oinkice, em feituras, pequenas obrigações oua coisa de informação imediata. É jogado emqualquer lugar, já que o jogo Kassumbencasó é feito no apejó. O obi deve ser jogadono prato de barro com efum espalhado(pó). Uma vela acesa deverá estar ao lado.O obi tem 4 partidas. Deve-se saber quaissão as partes masculinas e femininas.

a) 1 pedaço masculino aberto (Nbô)

b) 1 pedaço feminino aberto (Muntó)c) 1 pedaço masculino aberto, 1 femininoaberto (Umbalá)d) 2 pedaços masculinos abertos (Ageá)

e) 2 pedaços femininos abertos (Umbé)

f) 2 pedaços femininos abertos, 1 masculinoaberto (Baté)

g) 2 pedaços masculinos abertos, 1 femininoaberto (Sianá)

h) 2 masculinos abertos, 2 femininosabertos (Dumbá)

i) Nenhum aberto (Olezó)Obs.: A leitura das caídas constitui segredo; porisso deixamos de mencionar aqui outrasinformações.

Sukurankise: troca das águas das quartinhas.

Tata ingoma: tocados de atabaques.

Tata Kamukengo: pai pequeno.Tata Kinsaba: colhedor de folhas.

Tata Kumbuí: tocador de atabaques.

Tata Ndenge: pai pequeno.Tata Nganga: jogador de búzios (caçueto).

Tata pokô: o que sacrifica os animais.

Tata Ria Inkice: pai, zelador.Tata Vumbí: Ogan ligado à casa dos mortos.

Tata Xicarongongo: tocador de atabaques.

Tata: pai.Tateto Nkise: zelador.

Zakaê Npanzo: árvore (troncos) colocadanas portas dos santos.

Obs.: Esses troncos representam osancestrais (Baculu).

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JJJJJeje / Mareje / Mareje / Mareje / Mareje / MarrimrimrimrimrimAcicinacaba: Vodum.

Açobá: Título de Aziri.

Açoinodum: todos os voduns juntos.Adamachiô: iniciador do cântico.

Adunoblé: nome de Averequete.

Adunxo: nome de iniciado de Azoane.Agajá Maçan: nome do Vodum.

Agonglô: Vodum real.

Ainã, Airoço: título de Xapatá.Ajunto, Ajato, Junto: espécie de anjo daguarda.Aladanu: nome de Ajantó.

Alafrequetiana: nome do cânticoAverequete.

Alogue: Vodum da família de Dambirá.

Aloje: bracelete de Xapatá.Alopé, Aloque: pedido de benção (sic).

Arronoviçavá: Vodum da família de Dariece,irmão de Noedona.

Aseto: altar dos voduns.Assem, Axé: os objetos sagrados, ofundamento do terreiro.Ataxô: nome de Leba.

Atigã: Zelador do atim.

Atimlocô: gameleira branca.Atinsá: árvore consagrada a um vodum,matagal.Atinsen: nome do ronko.

Avamunha: toque de atabaque.

Axegã: zelador do axé.Babá: pai (Fon:Bábá)

Bacanão: sacerdote (Fon: boko nó)

Badê: título de Sobô-Badê Vodum família dequni-oço (Fon: gbáde).

Bagono, Bagone, Bagalo: Vodum de família deDambirá.

Bajigan: a mesma coisa que Axogum.Baranatô: nome iniciativo de Zomadonu

(Fon: Bábáwato).Barriseton: iniciatório de Averequete.

Cota Guaré: Título de entidades de chefesreligiosos. (Fon: Senhor Bará Leba).

Dejô: Ekedi

Derê: mãe pequenaDioroji: Família da Nice (Fon: BasuhôGedeji).Dote: mãe-de-santo

Gaiakú:mãe-de-santo

Mutô: OganPejigan: zelador do Peji.

Rombono: pai-de-santo

Ruedô: saudação para Besseim.

Umbanda

Babãs: mãe-de-santoCambando: autoridade com cargo dehomem ou Ogan.Cambas: todos os filhos.

Ganga: pai-de-santoMucamba: autoridade com cargo (Ekedi).

Obs.: As Cambas só poderão abrir templosde Umbanda, após a obrigação de 7 anos, ouseja, o cargo. (...)

EgumEgumEgumEgumEgum

Alabá: espécie de pai pequeno.Alagba Osi: auxiliar 3ª pessoa.

Alagba Otum: auxiliar 2ª pessoa.

Alágba: chefe ou sacerdote Ojé.Alapini: cargo supremo

Amuichan: cargo de iniciação na nação BabaEgum.

Ojé: cargo de Ebomi, pessoa com sete anosde iniciada em Baba Egum.

Osi Alabá: 3ª pessoa.

Otum Alabá: 2ª pessoa.

Anexo 2 – mapas

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Este livro foi composto nas fontes Century Schoolbook 11/14 e GillSans 11/14,miolo impresso em papel sappi 150 g/m2, capas em papel Couché 120 g/m2 revestido

de papelão pinho, e sobrecapas em couché 150 g/m2, com tiragem de 5.000 exemplares,entre os meses de outubro e novembro de 2006.