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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE
CONTROLE: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONTROLE SOBRE O CORPO
DA MULHER NEGRA
Inara Flora Cipriano Firmino1
Resumo: A pesquisa tem como objetivo fazer uma análise histórica da criminalização da
prática do infanticídio e do aborto entre as mulheres brasileiras sob uma perspectiva racial.
Buscamos analisar a valoração legal estabelecida pelo Estado brasileiro quando
dacriminalização de uma das formas de resistência das mulheres negras ao sistema
escravagista, bem como abordar alguns dos desdobramentos sócio-jurídicos resultantes desse
sistema ao longo do processo histórico brasileiro. A regulamentação desses dois delitos, que
aindahojerepresentam delitos característicos de mulheres subalternizadas pela conjuntura
econômica e social, demonstra formas de controle da atuação de nossos corpos negros. A
análise do tema dialoga com os debates tendentes a afirmar que a imagem do povo negro
continua, ainda hoje, a ser criminalizada, negativizada e subalternizada,não apenas
socialmente, mas principalmente pela manutenção da lógica da criminologia e do direito
penal, por meio de sua dinâmica institucional de construção do suspeito/criminoso. Em
termos metodológicos, o trabalho apoia-se em abordagem histórica e crítica do direito penal
brasileiro, privilegiando as perspectivas dos estudos Pós-coloniais. Em termos de relevância,
esperamos que os resultados possam ampliar as discussões sobre a relação de poder entre o
direito e a população negra, bem como sobre a condição de subalternização da mulher negra
na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Criminologia racial. Mulheres negras. Infanticídio. Aborto.
1 Introdução
No Brasil, as assimetrias que existem na sociedade são mascaradas através da
edificação de uma falsa imagem de democracia racial e social, de um ideal no qual seria
inconcebível a existência de qualquer forma de violência ou qualquer forma de autoritarismo
estatal exercido por meio de aplicação legal. Em função do passado histórico do país, marcado
pelo período escravagista de desumanizaçãodo negro, essa assimetria pende de maneira
negativa na construção social da individualidade desse grupo subalternizado, que sempre
esteve inserido na sociedade, mas na condição de escravos e não de pessoas; na condição de
subalternos e não de cidadãos apresentando, portanto, um status de objeto e não de sujeito.
1Advogada, graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(FDRP/USP). Natural de São Paulo, São Paulo, Brasil.
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O abismo entre a justiça e a sociedade, principalmente das categorias subalternizadas,
criou-se a partir do imaginário dos negros representarem o que foi chamado de classe
perigosa. E aumenta na medida em que o nosso Sistema Jurídico mostra-se conservador,
racista, machista, com informações e recursos escassos para as demandas dessa população.
Assim, o pleno exercício da cidadania é, quando não restrito, negado a essas categorias.
Falar da relação entre racismo e direito significa discutir a forma de judicializar esse
fato social. É a discussão sobre o tratamento jurídico despendido aos problemas que envolvem
a questão racial. E dessa discussão é possível perceber que o processo de democratização das
instituições do Sistema Judiciário Brasileiro não impediu a perpetuação de um pensamento
racializado por entres órgãos do Poder Judiciário por dois motivo: (a) os estereótipos e
estigmas criados em torno da figura do negro na sociedade brasileira ainda são muito fortes e
(b) o racismo institucional, evidenciado na forma como a lei é aplicada pelos magistrados, e
também reproduzido, quando nos atentamos à falta de representatividade negra nesses órgãos.
O Sistemade Justiça criminal corroborou com a perpetuação dos ideias da
Criminologia Positivista trazidos no século XIX e permanece, até os dias de hoje, com o
mesmo objetivo de controle sobre o corpo negro. Opondo-se a esse posicionamento, a teoria
crítica tem com a ciência criminal um embate constante no sentido de reconstruí-la e
transforma-la de acordo com a realidade social. Na perspectiva da teoria crítica racial e da
crítica feminista, tem-se como pressuposto contribuir para a construção da equidade entre
cidadãos contra as todas as formas de opressão por razões de gênero, raça, etnia, religião,
classe ou sexo.
Partindo do pressuposto de que a ciência não é neutra ou livre de ideologias quando
discute questões relativas à raça e a gênero, a proposta do texto encontra-se na
demonstração da instrumentalização do corpo da mulher negra como o corpo da mulher
delinquente, transgressora das normas sociais e dos textos normativos desde o período
escravagista no Brasil.
2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas
Realizando um exame retrospectivo na história da escravidão e na experiência das
mulheres negras escravizadas, a sua condição de coisa somava-se o sexismo e o racismo como
um nó de opressão nas vidas dessas mulheres negras. Direcionar o olhar a essas mulheres
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requer que especificidades em relação à mulher negra escrava sejam abordadas, pois, neste
período de extrema opressão a população negra, significa penetrar no universo de quem viveu
a experiência de ter sua identidade invisibilizada, a sua sexualidade estigmatizada, constantes
submissões a violências sexuais, e constantes ações de resistência à perversidade do sistema.
Sueli Caneiro inicia o texto “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na
América Latina a partir de uma perspectiva de gênero” esclarecendo como o discurso do mito
da democracia racial e da crença de um povo miscigenado perpetrada por senhores brancos
criaram o ideal de igualdade entre as mulheres. Entretanto, a violência sexual ou os estigmas
erotizados de um corpo de mulher recaem sobre a pele negra.
As relações de gênero são mantidas de acordo com a cor ou raça instituídas no período
escravagista. Nesse sentido, constrói-se o questionamento sobre o ideal de igualdade de
gênero, pois as mulheres negras resultam de experiências históricas diferenciadas “que o
discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado
conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade
feminina das mulheres negras. ” (CARNEIRO, 2011).
Apesar de toda transformação social das condições de vida e papel das mulheres em
todo o mundo, principalmente depois dos movimentos que marcaram o ano de 1968, as
mulheres negras continuam a viver uma situação marcada por uma discriminação que é
interseccional, ou seja, são mulheres vitimizadas por múltiplas opressões, que não se
hierarquizam, mas que marcam seus corpos de maneira a subalternizá-las e diferenciá-las.
Assim, a feminista negra Kimberé Crenshaw apresenta interseccionalidade como o produto
resultante da frequente interação entre o racismo e o sexismo na experiência das mulheres de
cor.
O rebaixamento e a anulação da mulher negra, desde sua chegada em terras brasileiras,
apresentam algumas marcas definidoras de sua submissão, sempre passando pela isotopia do
corpo ligado a sexualidade. Em um primeiro momento, o seu corpo foi visto como um
instrumento de trabalho empregado na produçãoa grícola e nos cuidados das casas senhoriais.
Além disso, elas também eram objetos sexuais dos senhores, sendo que a satisfação sexual do
senhor, através de estupros naturalizados, resultava na “mulher negra como cavalgadura da
sociedade brasileira” (NASCIMENTO, 2008, p. 51).
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O segundo momento é marcado pelo estigma da mulher negra como matriz de cria
para a servidão, pois dessas relações sexuais forçadas – com homens brancos, pretos, pardos
ou mestiços – para além das relações desejadas com seus maridos ou companheiros, as
crianças nascidas eram benefícios para os senhores.
Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros eixos de suas vidas ofuscados
pelo trabalho compulsório. Para um sistema que detinha o povo negro como uma propriedade,
as mulheres e os homens eram tidos como uma unidade de trabalho lucrativa. Em
cumprimento desse papel na sociedade escravagista, as mulheres negras apenas
ocasionalmente eram esposas, mães ou donas de casa e, assim, contrariavam, segundo Angela
Davis, a crescente ideologia de feminilidade do século XIX, que “enfatizava o papel das
mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de casa amáveis para os seus maridos.
(DAVIS, 2016, p. 20).
É interessante, para nós, constatarmos o impacto sobre a comunidade negra da
desumanização e subalternização que recai sobre a mulher negra sempre representada
negativamente. Os efeitos da oposição do ideal da igualdade de gênero e a real diferenciação
entre mulheres negras e brancas. O propósito da discussão se faz, então, da demonstração de
como essa representação negativa e estigmatizada autoriza a violência e a violação dos
direitos das mulheres negras, facilitando as práticas de racismo institucionalizado no âmbito
do sistema criminal.
3 A criminalização do silêncio: pode o subalterno falar?
A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a
gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do
esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a
memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar da
emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência
exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição,
consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos do discurso numa dada
cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma
como verdade. (GONZALES, 1984, p,226)
Angela Davis inicia a obra “Mulher, raça e classe” com uma interessante análise
histórica sobre a condição da mulher negra no período da escravidão nos Estados Unidos.
Essa análise fundamenta-se na indicação de uma das formas de resistência das mulheres
negras ao sistema escravagista e as mazelas resultantes desse sistema ao longo do processo
histórico. Assim como essas mulheres negras norte americanas, as mulheres africanas
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escravizadas no Brasil foram consideradas bens móveis e aptas a praticar todo e qualquer
trabalho realizado pelo homem escravo. Não menos exploradas do que os homens
escravizados, as mulheres negras tinham sua condição de mulher invisibilizada diante do
papel multidimensional desempenhado por elas nas fazendas e nas comunidades escravas.
O paralelo realizado entre o histórico das mulheres negras escravizadas nos EUA com
as escravizadas no Brasil nos permite a observação de uma realidade comum dessas mulheres,
qual seja: de reprodutoras de mão de obra e não de mães. Elas não possuíam qualquer direito
legal sobre as crianças nascidas, que poderiam ser vendidas e separadas das mães em qualquer
idade e a qualquer momento.
Com toda a exigência de desempenho, as mulheres negras, proporcionalmente,
“sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o
trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os
primeiros anos de escravidão.” (DAVIS, 2016, p. 17). Como escravas, essas mulheres tinham
todos os aspectos de sua existência silenciados pelo trabalho forçado, pela exploração, maus
tratos e violações sexuais de seus donos, sendo essa a repercussão maior da escravidão sobre
o corpo das mulheres negras.
A opressão estava estampada através de seus corpos. Corpo que se tornou um
importante demonstrativo não só de sofrimento, mas também de resistência. Ao analisar todo
o material de leitura relativo à construção do corpo da mulher negra por meio do
silenciamento de sua condição de mulher, pareceu-me importante considerar como e porque
essas mulheres escravas, às vezes, escolheram o aborto como ato óbvio de resistência atuado
em seus corpos físicos, para questionar as imposições da sociedade branca patriarcal e do
sistema de escravidão, que o povo africano foi forçado a viver. O mesmo incômodo surgiu
sobre os atos de infanticídio que envolveram os corpos dos filhos dessas mulheres, que
também estavam destinados ao castigo da escravidão.
Resistir a essa relação de poder que lhes era imposta era uma forma de alcançar a
sobrevivência ou a liberdade para essas crianças, antes que fossem submetidas ao sistema
escravocrata. Este foi o momento em que seus corpos foram instrumentos de submissão e
obediência camuflados em estratégias de resistência (SILVA, 2010, p. 3).
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Minha leitura, então, sugere que a busca da resistência das mulheres à escravidão
significa lidar com silêncios e lacunas ao domínio de um racismo que já se constituía
estrutural e institucional, e com atenção ao gênero na formação da resistência escrava.
Atenção direcionada às mulheres negras que, ainda, sofrem com o nó interseccional de
opressão, que opera para promover sua exclusão e subalternização diante do privilégio branco.
O problema da interseccionalidade não está no fato de não abordar um único tipo de
discriminação de forma completa, mas sim no fato de uma gama de violações de direitos
humanos ficarem obscurecida quando se deixa de considerar a subalternização histórica
desses atores sociais (CRENSHAW, 2002, p.178). “Como todo mito, o da democracia racial
oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que
exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra” (GONZALES,
1984, p. 228).
Em 1871, com a promulgação da Lei do Ventre Livre, as crianças, mesmo que
nascessem do ventre de escravas, ganhavam a condição de liberdade, mas continuavam a
viver junto a seus familiares nas escravarias. Aos senhores proprietários de suas mães cabia a
oportunidade de escolha entre a prestação de serviços dessas crianças a partir dos oito anos ou
o pagamento de indenização pela criação.
De acordo com o Relatório do Ministro da Agricultura, de 1885, do total de
quatrocentos mil ingênuos – foi com essa denominação que os filhos livres das escravas
passaram a ser conhecidos2 –registrados até aquele momento, apenas cento e dezoito foram
entregues ao Estado em troca da indenização de 600$000, número que não correspondia a
0,5% do total de crianças nascidas livres de mãe escrava em todo opaís (TEIXEIRA, 2007,p.
59).
Outro fator legal que limitava a proteção da escrava da liberdade de seu filho estava na
legislação de 1869 e 1871, que proibia a separação de mães e filhos, pela venda, de crianças
escravizadas menores de quinze anos na primeira data e menores de doze anos na segunda.
Mas essa lei não era uma certeza para essas mulheres, pois, em muitas ocasiões, a lei de
2Otermo“cria”também foiutilizadocomoformadedenominação,nosprimórdiosdoséculoXIX,ascrianças
emgeral.Comotempo,essetermopassou adesignarapenasofilhodaescrava,sendousadocomodistintivo
daquiloquenãonecessariamenteeratidocomohumano.Porisso,otermo“criadacasa”erautilizadoparadesignar
ofilhodaescravaquesetornavaum“protegidoprivilegiadodosenhorqueotememsuacasa.”(MATTOSO,
1991,p.128).
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proteção à família escrava não impedia a comercialização das crianças desacompanhadas de
seus familiares.
Assim, em muitas situações, não havia alternativa às escravas que não fosse o aborto
ou o infanticídio. A narrativa sobre a história de Sethe,trazida na obra de Karina Bidaseca é
muito ilustrativa sobre a condição da mulher negra e o que simboliza a escolha pelo aborto ou
infanticídio de seus filhos como forma de resistência.
Por cierto, la mujeres en India, en Estados Unidos o en cualquier otro lugar, la
subalternad el subalterno. Es objeto de apropiación del hombre; su cuerpo, el
territorio soberano dela conquista. Y ese cuerpo como símbolo trasciende los
tiempos históricos, las guerras o los mensajes mafiosos. Como ayer en India o en
Estados Unidos, hoy, en Ciudad Juárez, elcuerpo feminino estrofeo.
Sethe supo lo que significa para una mujer que alejen a sus hijos cuando sus pechos
están llenos de leche, que la golpeen hasta el hartazgo para quitarle su leche. Fue
violada por su amo y por los otros esclavos de Sweet Home,un eufemismo poco feliz
para el nombre de la plantación que se sostenía bajo un sistema de leyes esclavistas
que colaboraron en ese denigrante destino.
Los disímiles contextos de enunciación – colonialismo y esclavitud – denuncian
diferentes maneras de dar muerte. Como muestran ambos textos,no hay sólo una
forma de morir. La narrativa de Sethe cambia nuestro sentido ético cuando
comprendemos que en la sociedad norte americana de entonces,el infanticidio era
expresión de la resistencia a la esclavitud; cuando las madres sabían que las
niñas,“que aún no habían cambiado los dientes de leche eran vendidas sin darles la
oportunidad siquiera de despedirse de ellas”
Sethe comete infanticido pero no es infanticida. La narrativa criminal de Sethe se
vuelve una narrativa de liberación. Sethe no mata, libera, como las mujeres que
también quisieron liberar a Chandra (BIDASECA, 2010, p.17-18).
Assim, os infanticídios,vistos sob esse prisma, seriam, sobretudo, a única e trágica
forma visualizada pela mãe escrava de livrar seus filhos da escravidão. A mesma ideia pode
ser percebida de um fragmento apresentado por Angela Davis, em que a autora apresenta
a narrativa de uma escrava negra do Sul dos Estados Unidos:
Virgínia, 1812: “ela disse que, para ela, não era cedo demais para que se
revoltassem, já que preferiria estar no inferno a estar onde estava”. Mississipi,
1835: “ela pediu a Deus que tudo estivesse acabado e enterrado, porque estava
cansada de servir a gente branca [...]”.
Pode-se compreender melhor agora uma pessoa como Margaret Garner, escrava
fugitiva que, quando capturada perto de Cincinnati, matou a própria filha e
tentou se matar. Ela se comprazia porque a menina estava morta – “assim ela
nunca saberá o que uma mulher sofre como escrava” – e implorava para ser
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julgada por assassinato. “Irei cantando para a forca em vez de voltar para a
escravidão.” (DAVIS, 2016, p. 34)
Importante se faz a observação da narrativa dessas mulheres e que tal observação seja
feita inserida no contexto social, político e econômico ao qual elas estavam/estejam inseridas.
A modelagem do processo de criminalização de uma manifestação corporal de mulheres
negras subalternizadas se deu, justamente, se a observância da narrativa, subjetividade ou
identidade das mulheres que viam na condição de praticar tais atos. De maneira oposta, a
norma criminalizadora é imposta fundamentada na argumentação da suposta
“monstruosidade” da conduta, mas que, em verdade, representava a função do direito penal
em relação às mulheres negras: a punição por exercerem uma quebra simbólica do poder dos
dominadores.
Essas vozes não foram ouvidas, mas ao contrário, essas vozes foram e ainda são
silenciadas por um discurso jurídico construído e reproduzido sobre diferentes narrativas e
identidades3. Esse discurso jurídico absorveu a subjetividade das mulheres negras ao
criminalizar uma expressão de dor. A criminalização das mulheres é, portanto, um processo
historicamente construído sobre as bases do exercício da dominação econômica de um Estado
fundado em raízes racializadas e patriarcais.
Nessa perspectiva, Patricia Hill Collins demonstra como as condições históricas
específicas trazidas destas narrativas como a escravidão, a segregação racial e o patriarcado
proporcionaram a formação de um discurso diferenciado sobre as mulheres negras, sobre o
significado que elas carregavam da maternidade e sobre a separação da vida social entre
esfera pública e privada. Ao propor o termo motherwork, Collins aponta para a necessidade de
se construir uma análise sobre a maternidade da mulher negra com o objetivo de desconstruir
as narrativas feitas por colonizadores (homens brancos e negros) sobre as colonizadas
(mulheres negras subalternizadas). (COLLINS, 1994, p. 47 ss)
No Código Penal de 1890 já havia a previsão do exame de corpo de delito nos recém-
nascidos, na tentativa de se controlar esta conduta que começava a apresentar caráter delitivo.
Em 05 de maio de 1944, passou a ser de competência da Delegacia de Costumes,Tóxicos e
3Dados do Ministério da Justiça, 2014, dizem que, em relação à raça, cor ou etnia, destaca-se a proporção de
mulheres negras presas (67%) – duas em cada três presas são negras. Na população brasileira em geral a
proporção de negros é de 51%, segundo dados do IBGE. (http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-
da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf)
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Mistificações a apuração de crimes relativos às drogas e saúde pública,questões envolvendo
práticas religiosas, infanticídios, abortos, meretrícios, julgados sobre a moralidade pública e o
decoro familiar. Delegacia que foi intencionalmente criada para o controle das manifestações
culturais e identitárias dos corpos negros.
A regulamentação desses dois delitos, que ainda hoje representam delitos
característicos de mulheres subalternizadas pela conjuntura racial, econômica e social,
demonstra uma forma direcionada de controle da atuação dos corpos negros. A repercussão
direta da aplicação de um controle legislativo sobre a subjetividade das mulheres negras está
no crescimento de ações que buscam restringir garantias fundamentais e direitos
constitucionais destinados a essa parcela social subalternizada. São essas mulheres que sofrem
com a criminalização do aborto e um demonstrativo é o estudo realizado pelo Instituto de
Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o qual revela que o “risco de
morte de uma grávida negra cuja gestação terminou em aborto é 2,5 vezes maior do que o de
grávidas brancas. ”É aqui que a interseccionalidade mostra sua relevância, tanto como um
projeto de conhecimento, mas também um instrumento de luta política, de processo de
reconhecimento das mulheres negras sobre o seu corpo e sobre sua identidade.
4 Conclusões
A imagem do povo negro continua a ser criminalizada, negativizada e subalternizada,
não apenas socialmente, mas, principalmente, pela manutençãoda lógica da criminologia
positivista e do direito penal do inimigo, por meio de sua dinâmica institucional de
construção do suspeito/criminoso.
A luta contra o sistema racista nacional pressupõe uma mudança significativa, não
apenas no olhar social sobre a teorização das questões raciais, mas também na atuação do
sistema judiciário no relacionamento com o social. As estratégias jurídicas para interpretação
de determinado jeito ou de outro trazem características estratégicas e isso é utilizado para
excluir proteção jurídica das camadas sociais subalternizadas. A interpretação equivocada, ou
sem qualquer preocupação de análise da norma de acordo como cenário histórico nacional,de
normas de teor antirracista contribui para o esvaziamento das medidas de promoção da
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igualdade racial e para o entendimento de dificuldade de acesso à justiça da população
subalternizada.
O apontamento dos casos de proibicionismo do infanticídio e do aborto permitiu
demonstrar que o direito esconde e reafirma a estruturada lógica dominante de inferiorização
da identidade negra e o consequente afastamento social por meio do aprisionamento ou do
genocídio da população negra. Usar oficialmente o direito para segregar não significa apenas
elaborar normas jurídicas com caráter afirmadamente discriminatório. Significa a perpetuação
da discriminação racial e a manutenção da exclusão econômica e social.
Identidade racial é algo atribuído de fora. É uma construção imposta a determinados
grupos populacionais com determinadas características. Por isso ser negro no Brasil ainda é
uma desvantagem social.
5 Lista de referências
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The construction of prohibitionism as a racial politics of control: the historical
construction of control over the body of the black woman
Astract: The research aims to make a historical analysis of the criminalization of the practice
of infanticide and abortion among Brazilian women from a racial perspective. We seek to
analyze the legal valuation established by the Brazilian State when it criminalizes one of the
forms of resistance of black women to the slavery system, as well as to address some of the
socio-juridical developments resulting from this system throughout the Brazilian historical
process. The regulation of these two crimes, which still today represent crimes characteristic
of women subalternized by the economic and social conjuncture, represents forms of control
of the performance of our black bodies. The analysis of the topic dialogues with debates
tending to affirm that the image of the black people continues, still today, to be criminalized,
negativized and subalternized, not only socially, but mainly for the maintenance of the logic
of criminology and criminal law, through Its institutional dynamics of construction of the
suspect / criminal. In methodological terms, the work is based on a historical and critical
approach to Brazilian criminal law, favoring the perspectives of postcolonial studies. In terms
of relevance, we hope that the results can broaden the discussions about the power relation
between the law and the black population, as well as on the condition of subalternization of
black women in Brazilian society.
Keywords: Racial criminology; Black women; Infanticide; Abortion