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Faculdade de São Bento Manoel Gomes da Silva Filho “Orai sem cessar”: elementos para uma compreensão da Liturgia das Horas como oração pública e comum do povo de Deus São Paulo 2015

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Page 1: Horas como oração pública e comum do povo de Deus · Desde as comunidades primitivas até o Concílio Vaticano II, muita coisa foi reformada e retomada tendo sempre em mente o

Faculdade de São Bento

Manoel Gomes da Silva Filho

“Orai sem cessar”: elementos para uma compreensão da Liturgia das

Horas como oração pública e comum do povo de Deus

São Paulo 2015

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Manoel Gomes da Silva Filho

“Orai sem cessar”: elementos para uma compreensão da Liturgia das

Horas como oração pública e comum do povo de Deus

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

como exigência parcial para obtenção do

título de Bacharel em Teologia na Faculdade

de São Bento.

Orientador: Prof. Me. Gabriel dos Santos

Frade

São Paulo 2015

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Manoel Gomes da Silva Filho

“Orai sem cessar”: elementos para uma compreensão da Liturgia das Horas

como oração pública e comum do povo de Deus

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

como exigência parcial para obtenção do

título de Bacharel em Teologia na Faculdade

de São Bento.

Orientador: Prof. Me. Gabriel dos Santos

Frade

Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 17/11/2015, pela

comissão julgadora:

__________________________________________

Prof. Me. Gabriel dos Santos Frade

__________________________________________

Prof. Me. Domingos Zamagna

__________________________________________

Prof. Me. Danilo Mondoni

São Paulo

2015

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Dedico este trabalho à minha mãe que, ainda em seu colo, ensinou-me a

importância de falar com Deus e mostrou-me com seu exemplo de vida que

confiar no Senhor significa muito mais do que exigir aquilo que julgo conveniente.

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Agradecimentos Ao Deus de eterna bondade pelo dom da vida, inteligência e certeza de sua

presença constante no meu caminhar.

Aos que foram, ao longo da minha vida, presença do amor de Deus. Aos meus queridos mestres, sempre brilhantes na arte do ensino e capazes de abrir,

diante de meus olhos, janelas com vista encantadora que nunca mais me deixaria

ser o mesmo.

À Pia Sociedade de São Paulo (Padres e Irmãos Paulinos), na pessoa do Irmão

Alexandre Carvalho, pela possibilidade de caminhar com segurança neste mundo

encantador da teologia.

Ao amigo e mestre Gabriel Frade, por sua paciência em acompanhar cada etapa

deste trabalho e, sobretudo, por ter me apresentado de modo sério e competente

aquela que se tornaria minha paixão: a sagrada liturgia.

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Bem usada, a Liturgia das Horas dispensa livros de meditação

e pode nutrir substancialmente a vida espiritual e a ação

apostólica de quem dela faz uso. (Dom Clemente Isnard)

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Resumo

Este trabalho visa um estudo da oração oficial da Igreja – Liturgia das Horas –

em alguns de seus aspectos: fenomenológico, bíblico, histórico e formal. A oração é

vista inicialmente como um fenômeno antropológico, parte constituinte do ser

humano. Por ser antropológica, conta com um longo desenvolvimento de formas e

concepções até se chegar à oração judaico-cristã. Dentro da história do

Cristianismo, a oração comum foi tomando forma até chegar ao que hoje se conhece

por Liturgia das Horas. Desde as comunidades primitivas até o Concílio Vaticano II,

muita coisa foi reformada e retomada tendo sempre em mente o mandato de Jesus

de orar sem cessar. A reforma do Ofício Divino realizada pelo Vaticano II teve como

objetivo voltar às fontes da oração cristã. Com esse fim, retirou alguns elementos

que não tinham relação com a piedade cristã ou que eram inspirados na mitologia. A

Liturgia das Horas do Vaticano II é eminentemente bíblica e, no que diz respeito às

leituras patrísticas, o mais comprovada possível. Após o Concílio, muitas foram as

mãos envolvidas na composição do novo livro da Liturgia das Horas. Buscou-se

sempre que essa oração fosse organizada e normatizada de tal maneira que todos

os fieis pudessem ter acesso a ela. Os textos escritos após a publicação da Liturgia

das Horas enfatizaram o caráter público e comum dessa oração. Como disse o Catecismo da Igreja Católica, “a Liturgia das Horas está destinada a ser a oração de

todo o povo de Deus”. Apesar de todo esse esforço da Igreja no Concílio e no

período posterior, a realidade que se constata na maioria das comunidades cristã é

bem diferente. Isso não deve ser motivo para desânimo, mas incentivo para a busca

de formas eficientes para tornar essa oração verdadeira oração de toda a Igreja.

Palavras-chave: Ofício Divino. Liturgia das Horas. Oração litúrgica. Vaticano II.

Consilium.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................8 1. ORAÇÃO: FENÔMENO ANTROPOLÓGICO ............................................................ 10

1.1 A oração nas religiões não bíblicas ...............................................................10

1.1.1 A oração nas religiões da natureza ................................................. 12

1.1.2 A oração nas religiões místicas ....................................................... 13

1.2 A oração na religião israelita ........................................................................... 15

1.2.1 Traços característicos, conteúdo e forma literária da oração ......16

1.2.2 A ambientação e atitudes externas .................................................. 18

1.2.3 A prece cotidiana ................................................................................ 20 2. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO OFÍCIO DIVINO ....................................22

2.1 A oração das comunidades apostólicas a partir da experiência cristã ...... 22

2.2 A formação do ofício divino entre os séculos II e V ...................................... 24

2.2.1 Ofício catedral ......................................................................................27

2.2.2 Ofício monástico ................................................................................. 28

2.3 A formação do ofício divino entre os séculos VI e XV .................................31

2.4 A formação do ofício divino do século XVI ao Vaticano II ...........................34

2.4.1 O Breviário de Quiñones .................................................................... 35

2.4.2 O Breviário de são Pio V .................................................................... 36

2.4.3 O Breviário de são Pio X .................................................................... 38

2.4.4 A Liturgia das Horas de Paulo VI (Vaticano II) ............................... 39 3. A LITURGIA DAS HORAS NA ATUALIDADE: PÓS-CONCÍLIO E TENTATIVAS DE IMPLANTAÇÃO .............................................................................................................. 42

3.1 Estruturação da nova Liturgia das Horas ...................................................... 42

3.1.1 Primeira fase (1964-1965) ................................................................ 43

3.1.2 Segunda fase (1966-1977) ............................................................... 45

3.1.3 Última fase (1968-1972) .................................................................... 47

3.2 Liturgia das Horas nos textos pós-conciliares ...............................................49

3.3 A Liturgia das Horas na prática pós-conciliar ................................................52

3.3.1 A (não) celebração da Liturgia das Horas nas comunidades

paroquiais ...................................................................................................... 53 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 57 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................60

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INTRODUÇÃO O desejo de pesquisar de maneira aprofundada a Liturgia das Horas surgiu não

simplesmente como curiosidade intelectual por parte do autor deste trabalho, mas

como necessidade de conhecer bem algo que há muito tempo era objeto de seu

amor. Tema, para alguns, muito enfadonho, para outros, sem relevo em meio a

tantos outros mais “atuais”, mas encantador e extremamente importante para se

pensar a Igreja como comunidade dos que seguem Jesus Cristo, no pensamento do

autor. Além do seu apreço por esta forma de oração, algo chamou muito atenção do autor:

o desconhecimento da Liturgia das Horas em muitas comunidades cristãs e a pouca

importância dada por aqueles que a conhecem, mas não fazem uso dela, pelos mais

diversos motivos. Se essa oração deve ser a oração de toda a Igreja, muito ainda

falta ser feito. Um dito popular lembra que “só ama quem conhece”. Esta pesquisa

busca aprofundar o conhecimento da oração da Igreja para, quiçá, mais pessoas

passem a amá-la. Na elaboração deste trabalho procurou-se uma compreensão ampla da oração

assumida como oficial pela Igreja. A intenção nunca foi trazer rubricas e normas que

regem a celebração da Liturgia das Horas – embora elas tenham, evidentemente,

sua importância reconhecida. Mais do que isso, quis-se compreender como a oração

está presente na história da humanidade, nos momentos e povos mais diversos.

Dentre as diversas tradições religiosas, foi privilegiada a tradição judaica como

antecedente da oração cristã. A partir daí, pesquisou-se como a Igreja foi formando

e reformando sua oração que, com o advento do Vaticano II, passaria a se chamar

Liturgia das Horas. O objetivo desta pesquisa é procurar entender por que a Liturgia das Horas,

cinquenta anos após o Vaticano II, ainda não é oração de todo o povo de Deus.

Como parte desse objetivo está o olhar atento para a história dessa oração.

Compreendendo-se como foi formada e quais elementos foram influenciando na sua

organização, se entenderá o que fez com que parcela dos fiéis fosse deixada de

lado na prática do Ofício Divino. A terceira parte do trabalho, que versará sobre a estruturação e composição da nova

Liturgia das Horas, torna muito clara a compreensão de que nada é tão

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automático como às vezes se imagina. Cada elemento, o lugar que ocupa e a

maneira como se apresenta tem um porquê. A pesquisa para a elaboração deste trabalho foi, num primeiro momento,

estritamente bibliográfica. Diversos autores foram lidos para ajudar na compreensão

do fenômeno da oração de modo geral e, mais especificamente da oração cristã.

Impossível não destacar a riqueza da obra de monsenhor Bugnini, La riforma

liturgica, que trata de maneira ímpar os trabalhos desenvolvidos no pós-Concílio

para a elaboração da nova Liturgia das Horas. Como fundamento para reflexões presentes na última parte do texto, além de

pesquisa bibliográfica, buscou-se junto a fiéis que participam de celebrações

comunitárias da Liturgia das Horas elementos capazes de iluminar a procura por

explicações para a prática quase inexistente dessa oração nas comunidades cristãs. Há uma ideia que está intimamente ligada a essa reflexão: a maneira como se vive e

compreende a oração da Igreja fala muito de como se entende a própria Igreja e

qual a compreensão que se tem dela. É necessário esclarecer a importância da

missão recebida pela Igreja de orar sempre e de como essa oração é uma de suas

principais funções. O desejo ao iniciar este percurso é que, chegando a seu término, tenha-se

elementos que ajudem na reflexão sobre a importância da Liturgia das Horas e a

necessidade de torná-la cada vez mais “pública e comum”.

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1. ORAÇÃO: FENÔMENO ANTROPOLÓGICO

Este primeiro capítulo pretende fazer uma introdução ao tema da oração. Para isso,

faz-se necessária uma retomada histórica que, embora breve, é de grande

importância para o desenvolvimento de todo o trabalho. Divide-se basicamente em

duas partes: a oração como foi entendida e vivida pelas religiões não bíblicas e a

percepção e vivência por parte das religiões bíblicas, o judaísmo e o cristianismo.

1.1 A oração nas religiões não bíblicas A oração é uma das notas características de qualquer religião. Assim como não se

concebe religião sem lugar sagrado ou ministro, também não se pode definir como

religião um grupo que não cultive alguma forma de oração. Ela pode ser definida, em

um primeiro momento, como o diálogo que se estabelece entre o orante e a

divindade à qual ele se dirige. É, portanto, relação. O ser humano se reconhece como dependente de Deus. O homem vai percebendo,

ao longo dos tempos, que há algo que o transcende e com o qual deve relacionar-

se. Segundo J. M. Canals,

o homem comunica-se com a divindade, fonte de bênção, ajuda e bem; satisfaz sua infinita inquietude de infinito, eleva até ela coração e mente e invoca seu nome para que intervenha nos acontecimentos da história e nos fenômenos da natureza (2000, p. 267).

Define-se também o ato de orar como “aquele em que o indivíduo se dirige à

divindade com uma intenção de louvor, agradecimento, propiciação, instância de

perdão ou solicitação de um bem particular” (TREVI, 1996, p. 22). A oração, como é

possível perceber, alcança graus diversos dependendo do sujeito que a pratica. No

entanto, essa noção de dirigir-se à divindade é sempre parte essencial da oração. A oração surge na história da humanidade unida ao aparecimento da consciência

pessoal. Quando o homem dá o passo que o leva do estado em que vivia no mundo

sem conhecê-lo e sem conhecer-se, sem consciência de si e incapaz de se

diferenciar das realidades exteriores e dos outros indivíduos de sua espécie para

outro modo de viver em que se torna pessoa, consciente de si e capaz de

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comunicar-se de forma simbólica e também estruturada, ele se vê com condições de

descobrir a oração. A vivência da oração como relação com uma divindade suprema faz parte da história

de diversos povos. A Declaração Nostra Aetate do Vaticano II diz na parte em que

se refere às religiões não cristãs:

Desde os tempos mais remotos e até hoje, encontra-se nos diversos povos certa sensibilidade a essa força escondida, presente ao fluxo das coisas e aos acontecimentos da vida humana, e não raro reconhece-se uma Divindade Suprema e até mesmo um Pai. Esta sensibilidade e este conhecimento impregnam a sua vida de íntimo sentido religioso (Nostra Aetate, n. 2).

Essa “sensibilidade” à qual o documento se refere, ainda mais percebida “desde os

tempos mais remotos”, faz pensar na relação do homem com a divindade ou na

necessidade que ele sente de estabelecer esse diálogo como algo intrínseco ao ser

humano. É possível se falar de uma dimensão religiosa presente no ser humano.

Essa dimensão não se reduz ao ato de crer em um conjunto de doutrinas ou viver

conforme determinado código de ética, mas envolve todo o ser daquele que se põe

nessa relação. Trata-se de verdadeira vocação. Segundo Beckhäuser, “o homem constitui um ser chamado para a comunhão eterna com Deus, em harmoniosa união com os outros homens, seus companheiros no amor, abraçando toda a realidade criada” (BECKHÄUSER, 2010, p. 18).

Entende-se, a partir daí, como a oração é fundamental na experiência religiosa. Ela

tem o poder de colocar toda a vida da pessoa diante da divindade – através de

pedidos, louvores, agradecimentos – e também de tornar essa mesma divindade

presente em tudo que ela faz. Depreende-se, portanto, que a oração é verdadeiro diálogo. Este diálogo é muito

importante para o desenvolvimento da pessoa. Aquele que se coloca em oração

deve ter a consciência de que não está totalmente formado, não conhece totalmente

a si, não tem consciência plena do que busca e não sabe o caminho que deve

conduzi-lo até a meta que busca. Percebe-se, desde já, que a oração ajuda ao indivíduo a tomar consciência de sua

“criaturalidade”. Isso porque “a oração supõe que o ser humano não está feito,

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não se encontra já acabado desde fora de si mesmo, definido por um tipo de lei que

dita de cima o que ele é e o que faz” (PIKASA, 2005, p. 685, tradução nossa)1.

1.1.1 A oração nas religiões da natureza Primeiramente, faz-se necessário um esclarecimento. Natureza, aqui, não tem o

sentido de algo contrário ou antagônico ao sobrenatural. Entende-se por natureza o

mundo, enquanto realidade objetiva e distinta do ser humano. Diante dessa realidade objetiva que se mostra superior e independente, o homem

encontrou, e ainda encontra, diversas formas de se comportar. Uma delas é a do

orante. Esse comportamento consiste em um movimento de contemplação. O ser

humano olha a natureza, admira-a como que relacionada ao divino. Talvez essa seja

a maneira mais profunda de sentir e interpretar a realidade. Nas religiões da natureza não se compreende um deus como ser pessoal. Na

experiência de oração fundada na contemplação surgem os deuses como forças

cósmicas. Os deuses seriam os responsáveis pelos eventos da natureza – chuvas,

colheitas, catástrofes – e, portanto, tornava-se importante um conhecimento a

respeito deles, assim como uma boa relação. O ser humano vivia naquilo que se

pode chamar de “imersão e imediatez cósmica”. Ainda não havia a consciência do

valor da racionalidade humana. O homem era visto como alguém, de fato,

dependente das forças cósmicas, portanto, dos deuses. Dois elementos são fundamentais no desenvolvimento do conhecimento e da

relação com a divindade: o mito e o rito. Eles mostram que é possível confiar na

força dos deuses, descobri-los e venerá-los em sua verdade divina. Do muito que se poderia dizer sobre o mito, aqui quer chamar-se a atenção para

aquilo que é fundamental para este estudo: o mito entendido como primeira forma de

oração. Por meio de palavras, poemas, cânticos e aceitação intensa por parte de

seus ouvintes, o mito revela o sentido profundo das coisas. O mundo não aparece

mais como realidade totalmente desconhecida e a vida como algo sem sentido. Pelo

mito é possível perceber o sentido que há neles. Os ritos estão relacionados com a ação do homem sobre o mundo em que vive. Ao

contrário dos animais, o ser humano não é programado para aquilo que

1 “La oración supone que el ser humano no está hecho, no se encuentra ya acabado desde fuera de sí mismo, definido por un tipo de ley que dicta desde arriba lo que él es y lo que hace”.

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deve fazer nem está no mundo como uma simples parte de um todo maior. Diante

da ignorância na qual inevitavelmente se percebe, o homem “atreve-se a ser”, dando

sentido à sua existência por meio do divino. Faz aquilo que naturalmente deve ser

feito – trabalhar a terra, caçar animais, unir-se sexualmente, educar os filhos,

enterrar os mortos –, mas de maneira ritual, ou seja, como expressão da presença

do sagrado. Tendo em vista o que foi dito acerca do mito e do rito, pode-se afirmar que “mitos e ritos constituem a ‘oração primeira’, a forma como os homens e as mulheres

puderam reconciliar-se com a natureza, no sentido mais profundo” (PIKASA, 2005,

p. 686, tradução nossa)2. Esta “reconciliação” é necessária somente para o ser

humano, uma vez que só ele se coloca como vida superior, capaz de perguntar-se

por si mesmo. O homem distancia-se da natureza, sente-se perdido, e, por meio da

oração, retorna ao coração da realidade. Todo esse processo conduzirá o ser humano para o que pode ser chamado de

“oração cósmica”. Na verdade, esse tipo de oração coloca o homem em uma

vinculação paradoxal com o mundo. Por um lado, o homem sente-se menor que o

mundo, como uma pequena parte dentro de um grande processo. Isso gera nele

sentimento de medo e veneração. Por outro lado, reconhece-se como mais que

simples mundo. Prova disso é sua capacidade de conhecer e expressar o sentido do

mundo através dos mitos e ritos, respectivamente. Esse tipo de oração foi, de diversos modos, superado. Mas isso não significa que a

natureza não possa ser, ainda nos tempos atuais, lugar de encontro do homem com

a divindade. Segundo o autor já citado acima, “a natureza continua conservando seu

valor orante neste tempo (princípio do terceiro milênio). Oferecendo seu tesouro de

evocações simbólicas a cristãos e hindus, a mulçumanos e budistas” (PIKASA,

2005, p. 687, tradução nossa)3. Evidentemente, como será visto adiante, todos estes crentes superaram, de alguma

forma, o nível da oração cósmica.

1.1.2 A oração nas religiões místicas

2 “Mitos y ritos constituyen la ‘oración primera’, la forma en que los hombres y las mujeres han podido reconciliarse con la naturaleza, en el sentido más profundo”.

3 “La naturaleza sigue conservando su valor orante en este tempo nuevo (al principio del tercer milênio), ofreciendo su tesoro de evocaciones simbólicas a cristianos e hindúes, a musulmanes y buddhistas”.

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Com as religiões do Oriente, ou religiões místicas (Budismo e Hinduísmo), se dá

uma mudança muito importante na compreensão e prática da oração. Elas

desenvolvem o tipo de oração que pode ser chamada de oração da interioridade. O

cosmo perde o caráter sagrado que tinha nas religiões mais antigas. A ênfase é

dada à veneração ao divino que está no mais profundo de cada pessoa. A oração deixa de ser, portanto, imersão cósmica e passa a meditação

transcendental. Se antes se buscava a relação com o divino por meio dos mitos e

ritos, usando imagens, nessas religiões chamadas místicas busca-se superar

qualquer imagem e forma do mundo exterior. A grande descoberta aqui é que Deus habita cada homem. Ele não está em um Céu,

infinitamente longe; não está fora da realidade humana e não se identifica também

com a natureza. Ele está no interior de cada um e é aí que deve ser buscado.

Quando o ser humano não percebe isso e sai para procurá-lo em outros lugares, a

tendência é que se perca pelo caminho. O caminho da oração é o caminho da

descoberta do divino que habita cada homem e cada mulher. Orar, sob essa ótica, seria um ato de ruptura, passividade e ação. Deve-se romper

com tudo o que é externo e afasta a pessoa do que ela é em sua interioridade:

habitada por Deus. A oração é tanto mais verdadeira quanto mais passiva. Não

impor nada, não tentar forçar nenhuma situação. Deixar que o próprio Deus fale e se

manifeste como Vida radical. A oração é ainda o tipo de ação mais profunda. No

silêncio e no vazio afetivo, desvela-se a verdade da existência humana e percebe-se

como Deus é aquele que leva a pessoa a agir. A oração é entendida como busca. Mas não busca em imagens ou realidades

exteriores. Buscar, nesse contexto, significaria “deixar-se encontrar, descobrindo que

sou desde o princípio o que sou (quem sou), porque me fazem ser, porque me

habita a verdade, a luz me ilumina, e a vida me vive” (PIKASA, 2005, p. 688,

tradução nossa)4. Entender a oração como essa experiência de ruptura e identificação significa dizer

que onde se encontra a verdade de cada pessoa ali se encontra o divino presente

no mundo. Dessa forma, não se poderia falar propriamente de um diálogo. Isso por um simples motivo: falta “o outro” com quem dialogar. O que existe é a

realidade sagrada presente em cada um que se aventura no caminho da meditação.

4 “(...) dejar-se encontrar, descubriendo que soy desde el principio lo que soy (quien soy), porque me hacen ser, porque me habita la verdade, la luz me alumbra, y la vida me vive”.

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Compreende-se assim por que se chama essa oração de “oração da interioridade”.

O caminho da oração deve conduzir o ser humano ao centro de sua vida. Este

centro estará sempre vazio e é, paradoxalmente, nesse vazio que ele encontrará a

plenitude da presença divina. A vida humana vivida como extensão do divino faz

com que o homem viva em outro nível, deixando de ser, desse modo, deste mundo. Pode-se concluir, portanto, que a oração é parte integrante da religião. A oração é o

meio privilegiado para o ser humano comunicar-se com o divino. Segundo J.

Castellano,

A oração é fenômeno religioso universal de comunicação com a divindade. Encontramo-la, com fortes acentos patéticos e poéticos, em todas as religiões; com ela o homem se ergue até Deus com o desejo de unir-se a ele, ou invoca o seu nome a fim de que ele intervenha nas vicissitudes da história e nos fenômenos da natureza; este diálogo com a divindade jorra da presença do sagrado, que o homem percebe no âmbito da natureza ou na revelação que Deus quis fazer de si mesmo através das inúmeras tradições religiosas (CASTELLANO, 1992, p. 814). 1.2 A oração na religião israelita Após termos visto o fenômeno da oração nas várias religiões, busca-se agora uma

compreensão desse fenômeno na religião de Israel. Tendo em vista sua influência

na formação do cristianismo e, consequentemente, no seu modo de rezar, esse

tópico merece especial atenção. Como adverte Hilario Suñer, “a oração cristã deve

ser estudada à luz de seus antecedentes judaicos” (SUÑER, 1972, p. 15, tradução

nossa)5. Em algumas religiões místicas em geral apregoava-se que mesmo envolvido nas

ações da vida cotidiana, devia-se buscar a liberdade de espírito, ou seja, agir como

se não estivesse no mundo, como se não vivesse ligado a ele e a suas lutas.

Enquanto isso, a religião israelita descobre a presença de Deus junto a seu povo nas

lutas e batalhas, ajudando-o a combater todo tipo de adversidade. Trata-se de um

Deus que entra na história do povo e a conduz. Por isso oração e história são

conceitos intimamente ligados na religião israelita.

A oração judaica pressupõe a história religiosa de seu povo. Israel reza meditando sempre sua história. Iahweh é o mistério de sua eleição e história, é o diálogo com seu povo ao qual se revela e em cujo meio permanece, e é quem age prodigiosa e silenciosamente com suas

5 “La oración Cristiana há de estudiarse a la luz de sus antecedentes judios”.

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intervenções. A oração de Israel, podemos afirmar, jamais interrompe o ritmo de sua história, porque sua história é história de sua oração, não se podendo entender essa sem aquela (CANALS, 2000, p. 268).

Percebe-se como se dá a relação entre Deus e Israel. A oração torna-se lugar de

encontro com Deus, onde não se fala simplesmente de Deus, mas se fala a Deus.

Na experiência do povo de Israel, Deus não é objeto de discussão ou reflexão, mas

um sujeito ao qual é possível se dirigir e interpelar (cf. CANALS, 2000, p. 269).

Ao invés de uma interioridade transcendente, sem forma, surge uma pessoa, o Deus

que fala e dialoga com o ser humano, além de dar condições para ouvir sua voz e

lhe responder no mesmo caminho da história. Nesse tipo de oração a natureza não

é desprezada, mas também não é sacralizada. Ela é vista como caminho que pode

levar o homem à reconciliação humana.

1.2.1 Traços característicos, conteúdo e forma literária da oração Podem-se perceber na história do povo de Israel em relação à oração, segundo

Canals, três períodos. Estes, ao mesmo tempo em que se diferenciam também se

complementam. O primeiro desses períodos é o que antecede a atividade dos profetas, tendo como

importante a figura do “amigo de Deus”. Tem-se a ideia de um Deus que cuida

sempre daqueles que ama: “De tuas altas moradas regas os montes, e a terra se

sacia com o fruto de tuas obras; fazes brotar relva para o rebanho e plantas úteis ao

homem” (Sl 104, 13s). Dois elementos merecem especial atenção nesse período. Primeiro, pelo que se

conhece, era mais comum Deus falar ao homem do que esse dirigir-se a Deus. O

segundo elemento talvez seja consequência do primeiro. Um indivíduo poderia

conseguir, por sua oração, a salvação de muitos. É isso que se vê no episódio em

que Abraão intercede em favor das cidades de Sodoma e Gomorra (cf. Gn 18,23s).

Muitos são os casos em que alguém age como líder, ou melhor, torna-se

instrumento de Deus para o bem do povo. O livro dos Juízes traz muitos

testemunhos disso. O segundo período é caracterizado pela atividade dos profetas. Eles não tinham a

mesma função dos líderes do povo, dos quais se falou anteriormente. No

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entanto, existiam como ponte entre Deus e seu povo escolhido. Não são muito

comuns as fórmulas de oração nesse momento. É possível notar que, para estes

homens, a oração está ligada à vida mais do que às palavras. Para Canals, a grande “desmitificação” que os profetas realizam em relação à

oração é mostrar que orar deve ser mais do que simplesmente falar. Segundo ele, “em quase todos os profetas não se encontrará oração verdadeira, que em si tenha

valor, se não acarretar compromisso para com o homem” (CANALS, 2000, p. 271). É

notável nesse sentido o capítulo 58 do Livro do profeta Isaías. Embora faça

referência direta ao jejum, é possível interpretá-lo em relação a toda a prática

religiosa e, portanto, a oração. Mas a oração do profeta é também a oração do restante do povo? Para Mackenzie,

“as relações dos profetas com Yahweh não constituíam um modelo para os israelitas em geral; contudo, as invocações proféticas a Yahweh estão no espírito da oração israelita e obviamente exercem grande influência sobre ela. O profeta, como Moisés, era intercessor de Israel” (MACKENZIE, 1983, p. 670).

Um evento na história de Israel é tido como marco decisivo: o exílio na Babilônia. A

experiência vivida longe do seu país, e muitas vezes vista como consequência da

não observância da lei, fez com que o povo entendesse a Aliança de maneira mais

profunda e também voltasse a ser fiel. Uma das marcas desse período é o tom de

universalidade presente nas orações. O profeta Sofonias, ao falar da conversão dos

povos, diz: “Sim, então darei aos povos lábios puros, para que todos possam invocar

o nome de Yahweh e servi-lo sob o mesmo jugo. Do outro lado dos rios da Etiópia,

os meus adoradores trarão a minha oferenda” (Sf 3,9-10). Especial atenção neste período merece o Livro dos Salmos, como parte da literatura

sapiencial. Eles condensam, de certa maneira, toda a experiência do povo de Israel

em forma de oração. Segundo Canals,

o saltério contém o lastro mais rico da oração hebreia e humana, é o livro da oração por excelência, a cristalização da oração das sucessivas gerações, e a oração privada e litúrgica do povo de Deus (CANALS, 2000, p. 272).

A importância dos salmos irá além da religião judaica. Por ter o cristianismo nascido

dentro do judaísmo, foi “natural” que os salmos fossem assumidos como forma de

oração. Para Weiser, “dentre os livros do Antigo Testamento o Saltério foi

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aquele a que a comunidade cristã teve acesso mais direto e pessoal” (1994, p. 9).

Esses salmos passarão, evidentemente, por um processo de “cristianização”. Isso

não significa distorcer o sentido do salmo, mas interpretá-lo à luz de Cristo,

entendido como aquele que levou à perfeição a história da salvação. O fato dos salmos serem muito variados em suas formas e temas tratados faz com

que eles sejam rezados por pessoas em diversas situações. Merece atenção, nesse

sentido, a afirmação de Bortolini:

Apesar de serem muito antigos, os salmos são eternamente jovens, capazes de falar à alma dos homens e mulheres de todos os tempos e lugares. Por isso é que podemos considerá-los como espelhos nos quais nos vemos, nos movemos e existimos. Falam tão bem de nossa vida, das alegrias e esperanças, das dores e dos conflitos, que parecem ter sido escritos em nossos dias e para o hoje da nossa caminhada (2000, p. 7).

Não há livro bíblico que não traga em suas páginas alguma forma de oração. Esta

oração é sempre lembrança do passado, contemplação do presente e espera pelo

futuro (cf. CANALS, 2000, p. 273). A oração, em suas formas mais genuínas, não

apresenta fórmulas estruturadas, mas é um diálogo espontâneo em que o orante

expressa diante de Deus seus sentimentos. Nem todas as orações presentes no texto bíblico mantiveram sua forma original.

Muitas foram modificadas por mãos hábeis que deram a elas forma literária. “Cada oração leva o selo e o cunho próprio e típico de cada orante e de cada época,

de sua cultura e de sua forma literária” (CANALS, 2000, p. 273). Quanto ao conteúdo destas orações, há grande diversidade. Pode-se dizer que são

tantos quanto as atitudes e necessidades do orante. Em relação ao conteúdo, há dois eixos fundamentais para se entender a oração de

Israel: a anamnese e a súplica. Como já foi dito, é muito forte a relação entre a prece

feita pelo povo israelita e a memória da ação de Deus. Quando o fiel recorda as

maravilhas realizadas por Deus na história do seu povo sente-se levado a dar graças

a Deus e faz da memória uma memória eucarística. A súplica manifesta-se na vida

de Israel de diversos modos, especialmente nos momentos de maior necessidade.

Após essa súplica ser atendida, transforma-se naturalmente em ação de graças.

1.2.2 A ambientação e atitudes externas

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Para um fiel judeu não existe, a princípio, um lugar determinado para elevar a Deus

suas preces. O mundo foi criado por Deus e, portanto, é bom. Até mesmo o fato de

se estar fora da terra prometida não é motivo para a cessação do louvor divino. Não obstante o que acabou de ser dito, os israelitas sempre tiveram certa tendência

a considerar alguns lugares como sagrados. Um dos elementos fundamentais, talvez

o mais importante, para definir um lugar como sagrado era o fato de Deus ter se

manifestado ali. Recorda-se, por exemplo, os lugares em que Deus falou aos

patriarcas. O Livro do Êxodo, já no início do chamado Código da Aliança, traz uma importante fala de Yahweh nesse sentido: “Em todo lugar onde eu

fizer celebrar a memória do meu nome, virei a ti e te abençoarei” (Ex 20,24). Os lugares por onde a Arca da Aliança passou também foram tidos como sagrados e

foram utilizados para o culto. Com o tempo aparecerá Jerusalém como morada de

Deus e o Templo se tornará o centro espiritual de toda a nação de Israel. Ao contrário do que se pode pensar, não existia competição entre o culto sinagogal

e o do Templo. A sinagoga, na realidade, deveria orientar o fiel para o Templo.

O templo era o único lugar oficial para a oração. A sinagoga, que não substituía mas reforçava seu significado, também era recinto para a oração cotidiana ou pelo menos nas segundas e quintas-feiras, porém sobretudo em dias de sábado e festas. Lugar de reunião da comunidade israelita, ela fora estabelecida visando à instrução, à escuta da leitura bíblica e à prece. O culto sinagogal era dirigido por toda a comunidade, pois todos podiam em princípio proclamar a palavra de Deus e fazer a exortação (CANALS, 2000, p. 275).

Um dos elementos diferenciadores entre Templo e sinagoga está muito ligado à

atividade de Jesus em sua vida pública: a dimensão voltada ao ensino. Carmine Di Santi diz que “a sinagoga, além de lugar de reunião e de oração, é lugar de ensino. Assim aprendemos a ler e interpretar as escrituras, orientados por Jesus, como a

vontade de Deus” (DI SANTI, 2004, p. 23). No templo, dentre tantos sacrifícios, um se destacava por sua importância: o Tamid.

Esse sacrifício era oferecido duas vezes ao dia – pela manhã e pela tarde – de modo

perene e permanente. Tinha um ritual próprio e era acompanhado por orações. Sua

normatização encontra-se no Livro dos Números, na parte que especifica os

diferentes sacrifícios. O Tamid é descrito da seguinte maneira: “Estas

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são as oferendas queimadas que oferecereis a Iahweh: cada dia, dois cordeiros de

um ano como holocausto perpétuo” (Nm 28,3). Destes dois sacrifícios, o segundo – o da tarde – era, sem dúvida, o mais importante

e também mais originário. Era acompanhado com o rito do incenso. No trecho do

Livro dos números citado acima, eis como se define esse sacrifício: “É o holocausto

perpétuo realizado outrora no Monte Sinai, em perfume agradável, uma oferenda

queimada a Yahweh” (Nm 28,6). O versículo do salmo 141, tão conhecido e

regularmente rezado na Liturgia das Horas, “suba minha prece como incenso em tua

presença, minhas mãos erguidas como oferta vespertina! (Sl 141,2)”, refere-se a

esse sacrifício. Além do templo e da sinagoga, ainda havia outro lugar para a oração: o assim

chamado santuário familiar. O judeu que, por algum motivo, não podia ir ao templo

ou à sinagoga, estava obrigado a recitar as orações em casa. Três momentos eram

muito importantes no que se refere à oração doméstica: o momento das refeições, o

sabbat e o pesah ou páscoa. Ainda há um aspecto que merece atenção especial ao se falar do culto judaico: a

gestualidade. Segundo Canals, “os gestos externos fazem parte da linguagem

humana e expressam os sentimentos mais profundos do homem” (CANALS, 2000, p. 276). Nas diversas religiões são encontrados gestos válidos universalmente, assim como

aqueles que têm sentido exclusivamente em determinado grupo. Na prática religiosa

do povo de Israel, não poderia ser diferente. De modo geral, o israelita assume para

suas preces postura digna, que é, na realidade, reflexo de seus sentimentos

interiores. Tratando-se de posição corporal, encontram-se diversas. Três são, entretanto, as

mais usuais: estar de joelhos, prostrados, sentados ou de pé. O israelita expressa

por meio de expressões corporais seu estado de espírito: se alegre, canta, dança e

bate palmas; se triste, chora, jejua e veste-se de saco.

1.2.3 A prece cotidiana Da mesma forma que alguns lugares são reservados para a oração, também há dias

e momentos do dia consagrados à prece. O povo de Israel rezava duas vezes

diariamente. Era a maneira de se estar unido aos sacrifícios realizados no

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templo. Alguns textos bíblicos falam de três momentos diários de oração, mas é bem

provável que isso esteja relacionado com o simbolismo do número três –

significando que a oração deve ser constante – mais do que com a prática de Israel. Duas orações diárias constituíam o núcleo central da piedade e da fé de Israel: o

Shemá e as Shemoneh Esreh ou Dezoito Bênçãos. O Shemá, originalmente rezado

individualmente e depois desenvolvendo-se em oração comum, “proclama a verdade

fundamental da unicidade de Deus e expressa os elementos básicos do credo

judaico” (CANALS, 2000, p. 278). As Shemoneh Esreh são a oração por excelência

do povo de Israel, rezadas três vezes ao dia. É formada por 18 bênçãos de ação de

graças e de intercessão. Como grandes contribuições da oração do povo de Israel para a oração cristã, que

será vista mais adiante, pode-se destacar o enraizamento histórico dessa oração e a

organização em horários estabelecidos. Reza-se a Deus não para se libertar da

realidade, mas para, a partir da união com ele e reconhecendo sua ação misteriosa

na história, buscar transformar aquilo que não está de acordo com sua vontade.

Embora seja possível rezar a Deus sempre e em qualquer lugar, alguns dias do ano

e algumas horas do dia são escolhidos e significados como momentos de prece de

todo o povo. Esses dois elementos estarão presentes, como será visto, na formação do Ofício

Divino.

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2. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO OFÍCIO DIVINO

Tendo visto a oração como um fenômeno antropológico e a maneira como foi

entendida e vivida pelo povo de Israel, pretende-se, neste capítulo, compreender a

maneira como foi se formando o que hoje se conhece como ofício divino6. Dos

tempos apostólicos aos dias atuais, muita coisa foi mudando no modo cristão de

rezar. Quais foram e por que se deram essas mudanças? Parece ser muito

importante responder a essa pergunta para que se compreenda o Ofício Divino em

sua forma atual e sua importância para a vida de fé. A história do Ofício Divino é longa e traz em si muitos pormenores. A tentativa neste

texto é trazer uma visão panorâmica dos principais momentos que compõem essa

história. A Igreja sempre se sentiu obrigada a realizar aquilo que o próprio Cristo

pediu referindo-se à oração. Como diz o renomado liturgista espanhol, Julián López Martin, “a história do ofício divino significa a perseguição, ao longo dos

séculos, do ideal: ‘É preciso orar sempre’” (MARTIN, 2006, p. 424).

2.1 A oração das comunidades apostólicas a partir da experiência cristã

Antes de adentrar um pouco na oração das comunidades apostólicas é necessário

entender o diferencial que essa oração assume em relação àquela experimentada

pelo povo de Israel. A novidade dessa oração está em seu conteúdo novo: reunir-se

em nome de Jesus Cristo (cf. BECKHÄUSER, 2007, p. 114). Outro elemento muito importante é a exemplaridade encontrada pelos cristãos

primitivos na vida de Jesus. Como belamente expressa a constituição conciliar

Sacrosanctum Concilium, “Sumo Sacerdote da Nova e Eterna Aliança, Cristo Jesus,

ao assumir a natureza humana, introduz nesta terra de exílio o hino que eternamente

se canta no Céu” (SC 83). A Instrução Geral da Liturgia das Horas (IGLH) também acentua a importância que a

oração teve na vida e missão de Cristo: “A sua atividade quotidiana vemo-la

estreitamente ligada à oração, como que nasce da oração;

6 O termo Ofício Divino “antigamente designava todo ato cultual; foi depois limitado à oração litúrgica da Igreja” (Raffa, 1992, p. 652). Em 1969, apareceu pela primeira vez a expressão ‘Liturgia das Horas’, aceita por muitos autores e consagrada pelos documentos e pela edição oficial. “‘Liturgia’, porque faz parte do culto público da Igreja (SC 83-101), pertence a todo o corpo eclesial, manifesta-o e envolve-o (SC 26; IGLH 20); ‘das Horas’, porque é essencialmente oração destinada a santificar as horas do dia e da noite, isto é, todo o tempo (SC 84; IGLH 10)” (Idem).

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levanta-se alta madrugada ou fica pela noite além, até à quarta vigília, entregue à

oração a Deus” (IGLH 4). Rezar, portanto, para aquelas comunidades formadas por pessoas que conviveram

com Cristo ou que estiveram diretamente ligadas aos apóstolos era fazer aquilo que

o Mestre fez, não por simples imitação, mas para estar em comunhão constante com

o Deus de Jesus Cristo. Quanto à forma, não houve grandes transformações em

relação ao modo judaico de rezar. A novidade está no seu conteúdo. Mas não

apenas nisso. O templo material ganha, para os cristãos, uma nova compreensão:

Cristo é o verdadeiro templo e, unido a ele, é possível rezar em qualquer lugar. O

mais importante, na compreensão dessas comunidades, não é o lugar, entendido

como espaço físico, mas a assembleia reunida. Além dos dois elementos acima apresentados, há outro também de grande

importância para a oração das primeiras comunidades. Segundo R. González,

O mandato de Jesus de “rezar constantemente” influiu decisivamente na comunidade apostólica. Sabemos pelos Atos dos Apóstolos que os discípulos frequentavam diariamente o templo (At 2,46; 5,12; 5,19-21). E Lucas termina o relato da ascensão em seu evangelho com afirmação paralela: “Quanto a eles (os discípulos), após se terem prostrado diante dele, voltaram para Jerusalém, cheios de alegria, e estavam sem cessar no templo, bendizendo a Deus” (Lc 24,52-53). Num primeiro momento, a união entre o cristianismo e o judaísmo, nesse campo da oração, é muito próxima, mas não dura muito. Desencadeia-se no ano de 44 a perseguição contra os cristãos (At 18,12) por parte dos judeus. O concílio de Jerusalém estabelece no ano de 49 a independência entre o culto cristão e o hebreu (At 15). Pode-se sustentar com segurança que antes da destruição do templo (a. 70) os cristãos já não tinham consciência da obrigação de participar de sua liturgia (GONZÁLEZ, 2000, p. 291-292)

Na verdade não são muitos os elementos disponíveis para uma tentativa de “reconstituição” da forma de rezar das primeiras comunidades. Há o texto da Didaché, escrita provavelmente em fins do século I, que fala de três momentos de

oração, sem especificar, no entanto, quais seriam esses momentos. Alguns autores reconhecem a dificuldade de tratar sobre o modo como se rezava

nas comunidades desse período. Para Martin, “os primeiros séculos cristãos

oferecem pouquíssima informação sobre a oração em certas horas” (MARTIN, 2006,

p. 424). Não obstante isso, Neunheuser afirma que “apesar de uma certa flutuação,

podemos dizer que se conheciam no século I d.C. duas ou talvez três horas fixas de

oração: pela manhã, à tarde e ao meio-dia” (NEUNHEUSER, 2007, p. 71). Também Humberto Porto é do parecer que “cedo consolidou-se na vida da primeira

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comunidade cristã o costume de fixar determinadas horas do dia para a prática da

oração (PORTO, 1977, p. 230). Há algo em que todos os autores parecem concordar: a influência do judaísmo com

sua prática de oração no modo cristão de rezar. Todo estudo sobre a oração cristã

deve ter esse elemento em consideração. Sustentando a tese de que já havia no

primeiro século uma tripartição da oração cristã, Porto afirma que

nesta prece horal em que tiveram lugar de destaque os salmos, hinos e cânticos bíblicos legados pela sinagoga, mirou-se a jovem Igreja no exemplo dos judeus piedosos que chegavam por vezes a ser, nesse ponto, até meticulosos e inflexíveis (PORTO, 1997, p. 230).

Referindo-se também a este mesmo elemento e sua importância na oração das

primeiras comunidades, Pedro Sérgio dos Santos faz uma observação de muito

valor:

Ao lado dos Evangelhos e Cartas Testamentárias, a oração cristã era alimentada pelos salmos e textos da Antiga Aliança, uma vez que a Igreja não renegou suas raízes, seu cordão umbilical preso ao povo de Israel e nem poderia ser de outro modo, posto que Jesus também não renegou o judaísmo, mas em seu contexto religioso completou o processo revelatório, dando a conhecer a si e ao Pai, Pai de bondade, misericórdia, clemência e salvação (SANTOS, 2010, p. 60).

A partir do século II já se tem mais testemunhos e alguma documentação sobre

como foi se organizando a oração das comunidades cristãs. É do período que ora se

inicia que o próximo item tratará.

2.2 A formação do ofício divino entre os séculos II e V O texto da Didaché acima mencionado é “o único escrito que antes do século III nos

fala expressamente de horas para a oração cristã” (GONZÁLEZ, 2000, p. 296). No

seu capítulo VIII, há a orientação para que os cristãos rezem três vezes ao dia a

oração do pater. Para muitos trata-se de uma clara substituição da prece do Shemá

rezada pelos judeus também três vezes ao dia. Embora o texto não especifique, as

três horas referidas deviam ser de manhã, ao meio dia e ao entardecer (cf. Idem). Em inícios do século II, em uma carta dirigida ao imperador romano Trajano, Caio

Plínio Segundo (Plínio o moço) diz, referindo-se aos cristãos: “a culpa deles, ou

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o erro, não passava do costume de se reunirem num dia fixo, antes do nascer do sol,

para cantar um hino a Cristo como a um deus” (www.veritatis.com.br, acesso em

19/03/2015). Era característica dos cristãos já nessa época, portanto, uma reunião

semanal ao amanhecer do domingo. Referindo-se aos tempos de oração, a Primeira Carta de Clemente Romano traz um

texto muito importante:

Sendo óbvias todas essas coisas e tendo nós sondado as profundezas do conhecimento de Deus, devemos fazer com ordem tudo aquilo que o Senhor nos mandou cumprir nos tempos determinados: Mandou-nos oferecer os sacrifícios e celebrar o culto, não ao acaso ou desordenadamente, mas com tempos e horas marcadas (40, 1-2).

Percebe-se a importância dada à organização do culto em horários determinados. O

autor apresenta como mandamento divino o estabelecimento de horas fixas para as

orações. Tamanha é a consideração de Clemente por esse aspecto da vida de

oração da comunidade que na mesma carta ele diz: “Aqueles que fazem suas

oferendas dentro dos tempos determinados, são-lhe agradáveis e abençoados, já

que seguem as determinações do Senhor e não pecam” (40,4). O século III conheceu cinco grandes mestres e testemunhas da oração: Clemente de

Alexandria († 211-215), Tertuliano († depois de 220), Hipólito de Roma († 235),

Orígenes († 253-254) e Cipriano de Cartago († 258). Os quatro primeiros

desenvolvem seu pensamento de forma independente, enquanto Cipriano recolhe

elementos de quase todos os anteriores. Todos esses autores buscam, entre outras coisas, dar concretude a momentos fixos

de oração. Esforçam-se também para explicar o significado das horas,

especialmente as menores7 – terça, sexta e nona. Hipólito, por exemplo, em sua

Tradição Apostólica, faz uma relação entre as horas de oração e momentos da

paixão de Cristo:

Se estiverdes em casa, rezai e bendizei a Deus na hora terceira. Se estiverdes num outro local, rezai a

Deus no coração, pois foi nessa hora que Cristo se viu pregado no madeiro. Também por essa razão, a Lei

do Antigo Testamento prescreve que se ofereça o pão da proposição, como imagem do Corpo e Sangue

de Cristo, e a imolação do cordeiro, como imagem do Cordeiro perfeito: Cristo é o Pastor e o Pão que

desceu do céu. Rezai, igualmente, na hora sexta, pois quando Cristo foi pregado na cruz, o dia se 7 Essas horas são assim chamadas para serem diferenciadas de Laudes e Vésperas, tidas como as Horas principais do Ofício Divino.

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dividiu e as trevas surgiram. Nessa hora, todos rezarão uma oração fervorosa, imitando a voz Daquele que, ao rezar, cobriu de trevas toda a criação perante os judeus incrédulos. Façam, ainda, uma grande prece exaltando o Senhor por volta da hora nona, para sentirem como a alma dos justos glorifica a Deus, que não é mentiroso e lembra dos seus santos, enviando seu Verbo para iluminá-los. Foi nessa hora que Cristo, ferido no lado, verteu água e sangue, e iluminou o resto do dia até o final da tarde. Começando a dormir, Cristo originou o dia seguinte e concluiu a imagem da ressurreição. Rezai ainda antes de dormir. Por volta da meia-noite, levantai, lavai as mãos com água e rezai (41).

Outros elementos são apresentados ainda para justificar a prática das horas

menores: relação com a Trindade e com alguns fatos narrados nos Atos dos

Apóstolos (At 2,1-15; 10,9; 3,1). Além dessas três horas, os padres do século III

conhecem a oração da manhã e a da tarde. Tertuliano e Cipriano chamam-nas de

horas legítimas. Essas dispensariam justificação por já se encontrarem devidamente

instituídas (cf. Idem, p. 299). O século IV foi de grande importância para a história do cristianismo e não seria

diferente no que se refere à sua oração pública, o Ofício Divino. Em 313 o imperador

Constantino publica o Edito de Milão fazendo do cristianismo uma religião lícita.

Aquele que professasse essa fé já não seria perseguido. Diferentemente do que se diz em alguns lugares, esse Edito não fez do Cristianismo

a religião oficial do Império8. No entanto, o número de convertidos aumentou

consideravelmente, por fatores diversos. Esse aumento das comunidades será

responsável por muitas mudanças na estrutura da Igreja. Uma delas, como se verá,

a sistematização do Ofício Divino. Uma vez que o cristianismo deixou de ser perseguido,

(...) os cristãos passaram a ter público culto e nasceu a necessidade de se organizar mais adequadamente a oração coletiva nos templos. Assim, a Liturgia das horas ganha sistematização, até mesmo porque a celebração eucarística não era diária, porém semanal (dominical), ficando nos demais dias da semana acesa a chama da oração bíblica partilhada, como forma de santificação do tempo do dia e também de se fazer memória da Sagrada Escritura, particularmente dos Salmos e dos Evangelhos (SANTOS, 2010, p. 62).

O século IV é marcado também por grandes construções de templos e santuários

cristãos. É compreensível, portanto, que

8 A oficialização do cristianismo viria em 380, com o imperador Teodósio I.

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à medida que os santuários se multiplicam, o culto organiza-se em conformidade com duas tendências que se completam: uma vem das comunidades paroquiais ou catedrais, a outra, das comunidades monásticas (SALMON, 1965, p. 918).

Os cristãos já podem rezar publicamente sem receio de serem presos e condenados

como seguidores de uma seita. Essa oração é realizada pelos monges e ascetas

que vivem retirados e também pelos cristãos que vivem “no mundo”. Daí as duas

formas de oração que o autor acima citado refere e que, como o mesmo diz, “se

completam”. Não se trata de concorrência ou qualquer coisa do gênero.

2.2.1 Ofício catedral O ofício catedral era aquele presidido pelo bispo, em horas determinadas, com

assistência do povo. Tinha lugar nesses ofícios uma pregação do bispo ou

presbítero que presidisse, sempre fundamentada no Evangelho. O ofício divino era,

dessa forma, a oração da comunidade local, e também uma espécie de “catequese

diária”. Participar do ofício divino não era questão de gosto, mas parte integrante do

ser cristão. Um resumo muito bom de como se dava e era entendida a oração comum por

padres daquele período é dado por Henrique C. J. Matos:

O lugar costumeiro dessas assembleias orantes é a igreja central e normalmente a única da cidade: a Catedral. O povo participa “em grande número” desses ofícios matutino e vespertino. Eusébio de Cesareia († 339) fala de hinos e louvores que se elevam na Igreja inteira e por toda parte, pela manhã e à tarde. Epifânio de Salamina († 403) afirma que “na Igreja universal celebram-se assiduamente as laudes, as orações matutinas, e assim também os salmos e as orações lucernárias”. São João Crisóstomo († 407), por sua vez, adverte aos catecúmenos que essas celebrações constituem parte não desprezível da tarefa (“ofício”) diária na vida do cristão (MATOS, 2004, p. 82).

Ao que parece, o ofício catedral estava organizado em dois momentos: uma oração

da manhã e uma oração da tarde. Esses dois momentos constituíam uma

experiência diária do mistério pascal de Cristo, morte e ressurreição. Era a oração

da igreja local. Nela, todos tomavam parte: o bispo, os presbíteros, os diáconos, os

ministros, os ascetas e os simples fiéis. Uma das diferenças fundamentais entre os dois ofícios estava na maneira de

computar o tempo. Para Beckhäuser,

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O ofício da igreja catedral inspirou-se no cálculo do tempo dos judeus: a experiência pascal diária pela manhã e à tarde. Surgiu, então, o ofício diário das Laudes matutinas ou simplesmente Laudes, e das Laudes vespertinas, que logo se denominaram Vésperas pelo adjetivo. Ademais, havia esporadicamente também uma Vigília noturna. Primeiro, nas grandes vigílias anuais de Páscoa e Pentecostes, de Natal e Epifania. Depois, também as vigílias das ordenações e as vigílias das quatro têmporas, com rogações especiais, ligadas às quatro estações do ano (BECKHÄUSER, 2007, p. 115). Dessa maneira os cristãos procuravam viver aquilo que Cristo havia pedido: “orai sem cessar”. Com suas orações pessoais, feitas na intimidade do coração, e

tomando parte nas orações da comunidade, eram chamados a estar no mundo como

seres transfigurados a partir do encontro diário com o divino. O ofício catedral

possibilitava esse encontro diário a todos os fiéis. Uma última observação faz-se necessária: nesses ofícios, os clérigos tinham seu

papel bem definido e de muita importância. Não se deve ver na participação de toda

a comunidade uma espécie de anarquia, como se a todos fosse permitido

desenvolver qualquer função. Já havia uma organização na liturgia dessas Igrejas. A

esse respeito, bem esclarece Salmon:

Se os diáconos, os presbíteros e os bispos não são obrigados pela força dum texto legislativo, não podem todavia dispensar-se de ocupar o seu lugar na assembleia; sem eles o ofício seria incompleto, e a ninguém seria permitido dizer ou fazer em seu lugar o que é próprio deles (SALMON, 1965, p. 921). 2.2.2 Ofício monástico Ao lado do ofício rezado nas catedrais com a participação das diversas categorias

de fiéis, desenvolveu-se também o ofício monástico. Esse, segundo López Martin,

“estava marcado, (...), pelo desejo de dedicar o maior tempo possível do dia à

oração, seguindo os conselhos evangélicos e buscando o equilíbrio entre a oração e

o trabalho” (LÓPEZ MARTIN, 2006, p. 425). Trata-se da oração praticada por aqueles ascetas que viviam junto às igrejas e pelos

monges que viviam em seus mosteiros. Diferentemente daquele celebrado nas

igrejas catedrais, o ofício monástico não computava o tempo de acordo com o modo

judeu, mas com o romano.

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Foram os monges, porém, que organizaram o ritmo de suas orações segundo as vigílias romanas. No modo romano de marcar o tempo, o dia vai de meia-noite a meia-noite. Eles se propõem a cultivar a oração como Ofício Divino, procurando cumprir as palavras de Cristo: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação” (Mt 26,41), ou a exortação de Jesus acerca da necessidade de “orar sempre, sem deixar nunca de fazê-lo” (Lc 18,1; cf. Lc 21,36). Surgiu, assim, em certos ambientes monásticos, o hábito de rezar a cada hora do dia (BECKHÄUSER, 2007, p. 116).

Enquanto o ofício catedral era formado basicamente por uma oração pela manhã

(Laudes) e outra à tarde (Vésperas), com algumas vigílias em dias especiais, o

monástico vai acrescentar a essas horas as menores (terça, sexta e noa), prima,

completas e ofícios noturnos. Como pode-se perceber, algo muito exigente para

aqueles que tinham que se dedicar a atividades comuns e não estavam dedicados

totalmente ao louvor divino. Nessa organização do ofício, vale ressaltar, foi de muita importância a aparição de

uma vida cenobítica e regrada (cf. SALMON, 1965, p. 922). A diversidade existente entre as diferentes comunidades monásticas era a mesma

encontrada no seu modo de organizar seu ofício. Não havia uma unificação em torno

de uma regra. Por isso,

Não se pode dar uma relação exata do modo de celebrar o ofício divino nas comunidades monásticas. Cada uma destas tem sua forma peculiar. Só pode-se afirmar que em todos os elementos essenciais do louvor divino consistiam nos salmos, leituras para as vigílias e uma oração

coleta (GARRIDO, 1961, p. 534, tradução nossa) 9. Havia nesta época uma liberdade muito grande no que se refere à organização do

ofício. “Toda comunidade eclesial ou monástica podia ter o seu [cursus]”. Seria mais

adiante, entre os séculos V e X, que a as liturgias do Ocidente e do Oriente

constituiriam sua estrutura definitiva (cf. SALMON,1965, p. 931).

Vale ressaltar que, embora com suas diferenças, esses dois modos de organização

do Ofício Divino não se opuseram. A peregrinação de Etéria, um escrito que descreve as liturgias celebradas em

Jerusalém por volta do ano 400, mostra bem como se dava essa integração entre o

ofício monástico e o celebrado nas igrejas. Quando a peregrina Etéria faz sua

9 “No se puede dar uma relación exacta del modo de celebrar el oficio divino em las comunidades monásticas. Cada uma de éstas tiene su forma peculiar. Sólo se puede afirmar que em todas los elementos esenciales de la divina alabanza consistían en los salmos, lecturas para las vigilias e una oración colecta”.

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descrição do ofício celebrado na Basílica do Santo Sepulcro, percebe-se bem a sua

organização:

Abrem-se, cada dia, antes de os galos cantarem, todas as portas da Anástasis aos monazontes e parthenae – como aqui dizem – e não apenas a estes mas também aos leigos, homens e mulheres, que, entretanto, desejem fazer a primeira vigília. Desse momento até o dia claro, dizem-se hinos, responde-se aos salmos e antífonas, e, a cada hino, reza-se uma oração. Dois ou três presbíteros e diáconos alternam, todos os dias, com os monazontes e, a cada hino ou antífona, dizem as orações (Peregrinação de Etéria, 24,1).

Essa descrição refere-se ao ofício celebrado nos dias comuns. Em seu relato, a

autora se detém também sobre o ofício dominical e, de maneira detalhada, sobre a

maneira como é organizado o ofício durante a quaresma. Aqui vale ressaltar o

caráter comunitário do ofício, sendo este aberto a todos os fiéis, e a integração entre

presbíteros, diáconos e monazontes (monges). A experiência da Igreja de Jerusalém, assim como de outras, permite observar que,

de modo diverso do que se pode pensar,

A distinção desses dois ofícios não foi obstáculo para coexistirem em uma mesma igreja, em harmonia e com enriquecimento mútuo. E mais, foi-se criando unidade entre os dois “cursus” de oração e sua gente respectivamente, sobretudo nas igrejas frequentadas por ascetas e monges que viviam nas cidades. Isso ocorre em mosteiros urbanos e nos casos de presbíteros que levam vida comum em torno de um bispo, como Agostinho e Cesário de Arles. Nesses casos, os fiéis são convidados a participar, inclusive nas horas não obrigatórias, sobretudo em tempos de súplica mais intensa. A união harmoniosa das duas expressões e ritmos de oração constitui, tanto no Oriente como no Ocidente, o patrimônio tradicional da liturgia das horas (GONZÁLEZ, 2000, p. 308).

Com o passar do tempo o ofício catedral entrou em decadência e o modo monástico

de organização do ofício se espalhou por toda a Igreja (cf. BECKHÄUSER, 2007, p.

117). Evidentemente que com a carga que significava o ofício monástico – oito horas

canônicas – a Liturgia das Horas foi se tornando cada vez mais a oração de grupos

seletos, clérigos e membros de ordens religiosas. Com a impossibilidade dos fiéis tomarem parte na celebração do ofício, os clérigos

tornam-se “representantes” do povo nessa ação litúrgica.

Sob múltiplas influências e por uma série de circunstâncias devidas a diversos fatores, os clérigos acabam sendo encarregados da oração das suas respectivas igrejas, “deputados” ao louvor na ausência dos fiéis; não apenas pela manhã e à noite, mas nas sete “horas canônicas” herdadas do

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monarquismo. Trata-se do “Officium divinum”, o ofício divino (BRAULT, 1990, p. 23). 2.3 A formação do ofício divino entre os séculos VI e XV

No período que vai do século VI até o século IX “o ofício era a oração da Igreja local, do clero e do povo” (LÓPEZ MARTÍN, 2006, p. 425). Não havia ainda a

prática da eucaristia celebrada diariamente. Desse modo, era o Ofício Divino a

oração voltada à santificação dos dias de semana. O ofício passa a ser celebrado com solenidade, embora nas igrejas em que os

monges não estavam presentes as tentativas de organização de um ofício completo

tenham sido tímidas. Nesse período foi grande a produção de elementos não bíblicos para o ofício, como

hinos, antífonas, responsórios e orações. Os escritos dos santos padres dão prova

da profusão de material desse tipo criado a fim de ser utilizado nos ofícios das

diversas Igrejas. Não havia até então um padrão de ofício a ser rezado em todas as

comunidades. A grande produção de elementos para o ofício serviu também de porta para a

entrada de heresias e da gnose no seio da Igreja. Ao longo do tempo a Igreja irá

selecionar muito bem o que, desse material, poderia ser utilizado em sua liturgia, de

modo que “de cerca de trinta mil hinos conhecidos e publicados que nos deixou a

época patrística e a Idade Média, somente 75 figuram no Breviário Romano” (Salmon, 1965, p. 948). O ofício desenvolveu-se nas diversas Igrejas do Oriente e do Ocidente. A

diversidade era a “nota comum”. Por necessidade de síntese serão tratados aqui os

dois que deram origem ao ofício que com o tempo se tornaria o de todo o Ocidente:

o ofício romano e aquele conforme a regra beneditina. O ofício celebrado na Igreja de Roma

inspirava-se no ofício dos monges. Recomendavam-se às pessoas piedosas as horas matutinas (laudes) e do anoitecer (o lucernário), mais terça, sexta, nona, e também o ofício noturno. O “cursus” já se achava bastante organizado no século IV. No século V já havia vigílias nas basílicas dos mártires na data de seus aniversários. É possível que em algumas igrejas fossem cotidianas, com a presença de monges e pessoas piedosas. Os ofícios eram em geral austeros. Admitem-se hinos apenas tardiamente (GONZÁLEZ, 2000, p. 311).

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O saltério era recitado integralmente a cada semana. As laudes, completas e horas

menores tinham salmos fixos para a sua recitação. As vésperas e ofício noturno

comportavam a grande maioria de salmos. Aos domingos, por exemplo, o ofício

noturno constava de 24 salmos distribuídos em três grupos acompanhados, cada

grupo, de uma leitura. O ofício das paróquias antigas de Roma - títulos -, no entanto, era formado apenas

por laudes e vésperas. Os outros elementos, como as vigílias, introduzidas a partir

do século VI, eram vistos como parte do ofício monástico. Paralelamente à vida das igrejas locais, foi surgindo, a começar pelo oriente, o

espírito monástico: homens e mulheres que, retirados ao deserto, buscavam a

santidade no silêncio e despojamento dos bens e tinham como principal atividade o

olhar contemplativo e um permanente louvor divino, tido como o maior dos trabalhos, “opus Dei”. As regras depois escritas para orientar a vida retirada desses homens e

mulheres seriam de grande importância para a consolidação do Ofício Divino. Essas

regras

não tratam apenas das normas da vida comum, nos seus aspectos da rotina doméstica dos mosteiros ou da hierarquia e divisão dos trabalhos, mas enfatizam sobremaneira o aspecto orante da vida do monge, muito particularmente a Liturgia das Horas (SANTOS, 2010, p. 72).

Dentre essas regras, a de maior influência foi, sem dúvida, a Regula monasteriorum

(530) escrita por são Bento para o Mosteiro de Monte Cassino. Essa regra sintetiza diversas tradições, organizando o saltério de modo a ser rezado

no tempo de uma semana, mas não impõe sua distribuição. Bento abreviou as

vésperas e as horas menores e manteve para as matinas os doze salmos

determinados por Cassiano10. Contribuição particular foi a inclusão do pai-nosso nas

laudes e vésperas. O ofício da Regra de são Bento era, na verdade, o ofício romano adaptado. Como

faz notar Manuel Garrido,

Existe muita semelhança entre o cursus da Regula S. Benedicti e o cursus romano (...). Fundamentalmente, os dois são os mesmos. Só que o cursus beneditino admite outros costumes de tipo mais monástico. A todas as horas precede o versículo Deus in adiutorium meum intende. Antes das

10 João Cassiano (c. 360-435) foi um teólogo cristão, do período patrístico, monge de Marselha na atual França. Foi o principal teólogo da controvérsia semipelagiana e fundador do monasticismo ocidental.

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leituras se pede a benção do abade. Precede ou segue um hino. Antes das matinas se canta o invitatório (Sl 94). As vigílias noturnas constam de três noturnos: os dois primeiros, de seis salmos, e o terceiro, de três cânticos; a cada noturno seguem quatro lições com seus responsórios. O terceiro noturno termina com o Te Deum, a leitura do evangelho e o Te decet laus. Os dias feriais não têm

mais que dois noturnos, com seis salmos cada um (BONAÑO, 1961, p. 536, tradução nossa)11. Esse ofício “difundiu-se pouco a pouco por todo o império franco-germânico e pela

Inglaterra. Generalizou-se, com Carlos Magno, o “cursus” completo, mas variando

cada dia de igreja” (GONZÁLEZ, 2000, p. 312). Com o passar dos anos, mais especificamente no final do século VIII, foram sendo

acrescentados ofícios e orações de cunho devocional, mas que foram se tornando

obrigatórios. Dessa forma, o ofício monástico foi ficando sobrecarregado, e, com o

tempo, também o das outras igrejas. Aconteceu assim que “o ofício romano,

originalmente muito sóbrio, foi se complicando cada dia mais até precisar de

numerosos livros para sua celebração” (LÓPEZ MARTÍN, 2006, p. 426). Com toda essa sobrecarga, chegou a ser necessário utilizar sete volumes, além da

Bíblia, para a recitação do ofício divino. Do século X ao século XV algumas mudanças foram introduzidas na liturgia e

também no ofício divino: uma tendência cada vez maior a abreviar o ofício, tendo em

vista o peso quase insuportável dos elementos acrescentados com o tempo; muitos

clérigos já não comparecem à oração coral, tomando corpo, assim, a recitação

individual do ofício; com padres vivendo nos campos, e com os religiosos que

começam a viajar por motivo de pregação, torna-se impossível o uso de vários livros

para a oração do ofício e surge, então, o Breviário (que não foi uma compilação

rápida nem tampouco centralizada). Alguns elementos como a reforma gregoriana – que impôs a liturgia romana a todo o

Ocidente –, os cônegos que não mais vivem em comunidade e os padres que viviam

nas universidades e eram, portanto, impedidos de assistirem o ofício em suas

11 “Existe mucho parecido entre el cursus de la Regula S. Benedicti y el cursus romano que hemos descrito anteriormente. Fundamentalmente, los dos son los mismos. Sólo que el cursus benedictino admite otras costumbres de tipo más monástico. A todas las horas precede el verso Deus in adiutorium meum intende. Antes de las lecturas se pide la bendición del abad. Precede o sigue um himno. Antes de maitines se canta el invitatorio (Salmo 94). Las vigilias nocturnas constan de tres nocturnos: los dos primeros, de seis salmos, y ele tercero, de tres cánticos; a cada nocturno siguen cuatro lecciones con sus responsorios. El tercer nocturno termina con el Te Deum, la lectura del evangelio y el Te decet laus. Los días feriales no hay más que dos nocturnos con seis salmos cada uno”.

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igrejas, o ofício solene e coral foi sendo abandonado e a recitação individual

encontrando mais espaço. Surgiu na capela do palácio de Latrão, em Roma, o uso de uma abreviação dos

livros litúrgicos utilizados na basílica. Essa abreviação ficou conhecida como

Breviário da Cúria Romana e teve muita influência na oração da Igreja. Esse

breviário foi assumido pelos franciscanos e se espalhou rapidamente por toda a

Europa. O uso de um único livro para a recitação do ofício trouxe consigo um inconveniente:

a introdução da recitação particular. Essa, tida como exceção, foi tornando-se a

prática mais comum. No século XV houve grande influência do movimento denominado devotio

moderna12 que trouxe consigo um intimismo e subjetivismo que também atingiu a

espiritualidade sacerdotal. Os padres começaram a ver a celebração da eucaristia e

do ofício divino como simples obrigação pessoal. Houve muita discussão acerca de qual ofício deveria ser assumido. Concílios e

bispos continuavam insistindo na prática do ofício coral enquanto teólogos e juristas

defendiam a substituição desse pela recitação privada. Fato é que no início do

século XV a recitação de modo privado já era prática habitual, com exceção dos

ambientes monásticos. Com a generalização do ofício privado surge a necessidade de normas

pormenorizadas que expliquem o modo de se rezar. Surge, então, a palavra “rubrica” (tão utilizada ao longo dos séculos) durante a Idade Média, com o

significado de ritual ou “ordo” (cf. GONZÁLEZ, 2000, p. 316).

2.4 A formação do Ofício Divino do século XVI ao Vaticano II O Ofício Divino foi sendo reformado – às vezes acumulando elementos, outras vezes

sendo reduzido – ao longo dos séculos. Nesse período, houve quatro reformas do

ofício: a que originou o chamado Breviário de Quiñones e ou da Santa

12 Movimento surgido nos Países Baixos em inícios do séc. XIV e que teve como auge o séc. XV. “Nasceu como reação reformadora da vida religiosa, então muito formalista e superficial” (R. M. Valabek, 2003, p. 323). As liturgias, embora celebradas regularmente, eram sem solenidade e dava-se mais ênfase às disposições pessoais de recolhimento e serenidade. O movimento teve basicamente dois ambientes em que se encarnou: os Irmãos e Irmãs da Vida Comum e a Abadia de Windesheim. O famoso livro A imitação de Cristo é fruto desse movimento e mostra bem suas ideias, como a devoção afetiva e a contemplação da humanidade de Cristo.

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Cruz, em 1535; no mesmo século, a realizada pelo papa são Pio V que resultou no

breviário com seu nome, em 1568; em 1911 surge o Breviário de são Pio X, que

deveria ser o início de uma reforma mais ambiciosa a ser concretizada dali a dois

anos, mas que não foi concretizada; e, por fim, a reforma mais profunda e tradicional

ao mesmo tempo: a liturgia das horas de Paulo VI. A recitação solene do ofício foi aos poucos sendo suplantada pela de caráter

privado. Para facilitar essa recitação surgiu o breviário que continha os diferentes

elementos do ofício em um único volume, sendo possível levá-lo para qualquer

lugar. Esse ofício, no entanto, não estava voltado para a recitação privada. Foi aí que se

viu a necessidade de uma reforma que fizesse com que o breviário respondesse às

necessidades da época.

2.4.1 O breviário de Quiñones

O papa Clemente VII encarregou o cardeal Quiñones13 da missão de elaborar um

novo breviário. Foi pensado, então, um breviário voltado para a recitação privada,

especialmente por parte dos sacerdotes dedicados ao estudo ou a trabalhos muito

importantes. Com esse objetivo o Breviário de Quiñones foi aprovado pelo papa

Paulo III, mas a prática foi bem diferente do que se previa: muitos clérigos, cabidos e

até mesmo mosteiros o adotaram como forma de oração. Apesar de sua rápida aceitação, essa reforma foi alvo de muitas críticas por parte de

teólogos e não agradou a grandes santos da época, como são Carlos Borromeu e

são Francisco Xavier. Para muitos, o Breviário de Quiñones

rompia com o modo de orar da Igreja, modelado ao longo de séculos de experiência oracional. Em dois traços significativos, e exagerados talvez, dizia-se que o ofício de Quiñones era livro mais de instrução e leitura que de oração (GOENAGA, 2000, p. 318).

Essa reforma deve ser vista dentro do contexto do Humanismo. O Breviário de

Quiñones era uma tentativa de “purificação”, ou seja, de retirar do ofício aqueles

elementos considerados pouco críveis ou “supersticiosos”.

13 Francisco de Los Ángeles Quiñones, franciscano español, Ministro Geral, Cardeal, representante da renovação católica pré-tridentina. Nasceu por volta do ano 1480 em León (?), ignora-se o mês e o dia. Morreu em Veroli (Itália) em 27 de outubro de 1540.

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Do ponto de vista teológico, o ofício de Quiñones era “funcional”: oração a ser

rezada para o bem espiritual da Igreja e de seus ministros. O ano litúrgico tinha

pouco relevo em sua formulação e o santoral foi relativamente reduzido. Quanto ao

saltério, Quiñones seguiu a tradição da recitação semanal. Para essa recitação, por

vezes, deveriam ser rezados salmos que nada tinham a ver com aquilo que era

celebrado; gerou-se uma incoerência entre os salmos, as horas e as festas.

Quiñones deu muita importância às leituras, especialmente da Sagrada Escritura.

Não sabe-se bem por que, mas as leituras patrísticas não foram acolhidas nesse

ofício. Alguns elementos adicionais foram mantidos, como o pai-nosso antes de cada

hora. O ofício de Quiñones teve vida curta: publicado em 1535, teve seu uso proibido em

1556 e foi definitivamente supresso em 1568 pelo papa Pio V.

O fim pretendido por Quiñones foi que os clérigos encontrassem no ofício um meio de formação religiosa pessoal. Porém, introduziu uma distinção fundamental entre o ofício coral e o ofício privado, e isto foi sua ruína. Por isso, depois do entusiasmo com que foi acolhido quando apareceu, foi sendo

relegado até ser proscrito pelo concílio de Trento (GARRIDO, 1956, p. 538, tradução nossa)14. Pode-se dizer que esta foi a reforma mais revolucionária pela qual o ofício passou e,

mesmo tendo “fracassado”, algumas de suas ideias persistiram até o concílio

Vaticano II.

2.4.2 O Breviário de são Pio V A segunda reforma considerável pela qual passaria o Ofício Divino deveria ter sido

empreendida pelo concílio de Trento. Não houve tempo, no entanto, para isso e foi

confiada à Santa Sé essa tarefa. Hengemulle faz um apanhado riquíssimo a respeito desse fato:

Igualmente o Concílio de Trento ocupou-se da reforma do Breviário. Isso em 1563, em sua terceira sessão. Mas não a concluiu. Razão pela qual foi remetida ao papa – o cardeal Caraffa, conhecido por Paulo IV. Mas esse 14 “El fin pretendido por Quiñones fue que los clérigos encontrasen en el oficio un medio de formación religiosa personal. Pero introdujo una distinción fundamental entre el oficio coral y el oficio en privado, y esto fue su ruina. Por eso, después del entusiasmo con que fue acogido cuando apareció, se fue relegando hasta ser proscrito por el concilio de Trento”.

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tampouco a terminou, por haver falecido em seguida, isto é, em 1564 [sic]15. Quem completou a

incumbência foi Pio V, o qual promulgou o novo breviário em 1568. Nessa promulgação, afirmava-se o princípio de que a reza privada e o canto coral deviam seguir o mesmo esquema e o mesmo texto. A partir do Ofício romano-franciscano, volta-se à estrutura primitiva, purificada, porém de acréscimos estranhos e postiços agregados ao longo dos anos. Quanto às leituras, estabelecia-se que pelo menos uma delas fosse bíblica, e buscavam-se textos autênticos e apropriados para a alimentação espiritual, incluídos Padres gregos. Dessa maneira, ao final do século XVI, praticamente esteve unificada a oração em toda a Europa – o que não impediu que a reforma de Pio V respeitasse liturgias locais com larga tradição. A reforma realizada por Pio V, com pequenas modificações, perdurou até são Pio X: quase quatro séculos (HENGEMULLE, 2007, p. 28).

Teologicamente o ofício de são Pio V é oração gratuita e funcional: tem como fim a

glorificação de Deus e o cumprimento da missão própria dos eclesiásticos. A

recitação individual passa a ser obrigatória para os que não puderem estar no coro. Dessa forma, “insensivelmente, e por razões de espiritualidade sacerdotal, o ofício

passa a ser a oração do e para o sacerdote” (GOENAGA, 2000, p. 325). O breviário proveniente dessa reforma apresenta uma diminuição relativa do santoral

e uma importância dada ao ano litúrgico cristológico. Manteve-se a recitação

semanal do saltério, no entanto o santoral tinha seu saltério próprio. Mesmo com a diminuição do santoral já mencionada, esse ainda “invadiu o ciclo do Senhor, impedindo a utilização do saltério segundo a antiga organização romana”

(LÓPEZ MARTÍN, 2006, p. 427). Depois da reforma de Pio V foram sendo feitos pequenos retoques em alguns

pontificados, como os de Urbano VIII e Bento XIV. Merece destaque – embora aqui

não seja possível tratar em profundidade – a questão dos breviários galicanos, isto

é, aqueles que foram produzidos na região então denominada Gália (antiga

província do Império Romano que abrangia o atual território da França e outras

regiões). Cada diocese possuía seu breviário e missal próprios. Ao mesmo tempo

em que traziam textos riquíssimos, também continham elementos de movimentos

ideológicos e até heréticos. Esse movimento, conhecido como “dispersão galicana”, encontrou forte resistência

na restauração católica do século XIX, com destaque para a figura de Guéranger,

fundador de Solesmes (cf. GOENAGA, 2000, p. 320). O Concílio Vaticano I também

deveria fazer uma reforma no Breviário, mas não houve tempo para esse trabalho.

15 Provavelmente houve engano na elaboração desse texto. O ano da morte do papa Paulo IV foi, na realidade, 1559. Em 1563, o papa era Pio IV.

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2.4.3 O breviário de são Pio X Caberia a são Pio X promover verdadeira reforma no Ofício Divino quase

quatrocentos anos depois daquela realizada por seu predecessor, são Pio V. Vale

ressaltar que são Pio X foi o papa que “iniciou” o movimento litúrgico na Igreja. Seu

motu proprio Tra le sollicitudini é tido como um marco na história da reforma litúrgica. O monge beneditino Manuel Garrido faz uma bela síntese da reforma empreendida

pelo pontífice:

A reforma do Breviário levada a cabo no pontificado de são Pio X foi (...) verdadeiramente revolucionária. Encontra-se nela o domingo e o ofício do tempo mais bem revalorizado, pois anteriormente ficava quase afogado pelo santoral. Mas foram abandonadas tradições seculares; por exemplo: que as matinas constassem só de nove salmos, sendo que foi regra geral da salmodia, tanto no Oriente como no Ocidente, que as vigílias constassem de doze salmos. Foi supresso das laudes o salmo 149 que, juntamente com os salmos 148 e 150, se encontravam nas laudes em todos os ritos desde tempos remotíssimos. Os tradicionais cânticos bíblicos fora do saltério que se recitavam em laudes, foram deixados para os dias de quaresma e as vigílias, e no ofício ferial ordinário foram substituídos por outros que não têm nada de comum com a antiquíssima tradição

cristã e não se encontram em nenhuma liturgia oriental (BONAÑO, 1961, p. 540, tradução nossa)16. O ofício de são Pio X centra-se no saltério. Os salmos são o sacrifício de louvor

oferecido ao Pai e, ao mesmo tempo, a voz de Cristo que fala em todo o saltério.

Como na reforma anterior, o ofício é uma oração gratuita e funcional. Gratuito

porque expressa o louvor do ser humano a Deus e funcional porque, por meio dele,

os clérigos exercem sua função de rezar pela Igreja. Manteve-se a recitação semanal do saltério, não obstante as petições em contrário

do Vaticano I. No entanto, deu-se nova disposição ao saltério. Juntamente com a publicação do Breviário, são Pio X anunciou uma reforma mais

aprofundada a ser empreendida nos próximos anos. Isso, porém, não foi possível.

16 “La reforma del Breviario llevada a cabo en el pontificado de San Pio X fue en este punto

verdaderamente revolucionaria. Se encuentra en ella el domingo y el oficio del tiempo mejor revalorizado, pues anteriormente quedaba casi ahogado por el santoral. Pero se abandonaron tradiciones seculares; por ejemplo: que los maitines constasen sólo de nueve salmos, siendo así que fue regla general de la salmodia, tanto en Oriente como en el Occidente, que las vigilias constasen de doce salmos. Se suprimió de los laudes el salmo 149 que, juntamente con los salmos 148 y 150, se encontraban en los laudes en todos los ritos desde tiempos remotísimos. Los tradicionales cánticos bíblicos fuera del salterio que se recitaban en laudes, se dejaron para los días de cuaresma y las vigilias, y en el oficio ferial ordinario se suplieron por otros que no tienen nada de común con la antiquísima tradición cristiana y no se encuentran en ninguna liturgia oriental”.

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A morte do papa e a Primeira Guerra Mundial impediram a realização completa dos projetos de reformulação, obra de tal importância que o próprio Pio X previa que ela deveria estender-se por cinquenta anos aproximadamente (BRAULT, 1990, p. 24-25).

Depois do pontificado de Pio X, duas modificações merecem ser mencionadas: uma

nova versão do saltério introduzida por Pio XII – que seria esquecida depois do

Vaticano II – e novas rubricas para o missal e breviário promulgadas por João XXIII

já às vésperas do Concílio Vaticano II. Concluindo esse item, vale a pena conhecer um pouco da expectativa vivida pouco

antes da realização do Vaticano II:

Teremos, então, uma reforma litúrgica definitiva? O papa e os padres conciliares verão até que ponto isso é possível. Certamente há também que ter presentes as circunstâncias atuais, compatíveis com o princípio antes anunciado da comissão litúrgica criada por Pio IV e confirmada por Pio V. Todos

veem a necessidade de simplificar mais o ofício (BONAÑO, 1961, p. 541, tradução nossa)17.

2.4.4 A Liturgia das Horas de Paulo VI (Vaticano II)

Finalmente, o Concílio Vaticano II propôs uma reforma global da Liturgia das Horas. Entre seus objetivos figuravam a recuperação da “verdade das horas” no intuito de santificar o curso inteiro do dia e da noite, a adequação da celebração à época atual e a participação dos fiéis no Ofício divino (LÓPEZ MARTÍN, 2006, p. 427).

Essa afirmação do liturgista Julián López Martín sintetiza aquilo que representou a

reforma, não mais apenas do “breviário”, mas da Liturgia das Horas. De fato, o

Concílio Vaticano II foi mais profundo em sua reforma do que o Concílio de Trento. A

tarefa dessa reforma foi confiada pelo Concílio ao Consilium (Conselho para a

implementação da constituição sobre a liturgia), instituído por Paulo VI. Com a

constituição apostólica Laudis canticum, Paulo VI promulgou o “novo breviário”.

Segundo suas próprias palavras, “nada igual se encontra em toda a história da

Igreja” (Laudis Canticum).

17 “Tendremos entonces una reforma litúrgica definitiva? El papa y los padres conciliares verán hasta qué punto esto es posible lograrlo. Ciertamente hay también que tener presentes las circunstancias actuales, compatibles con el principio antes enunciado de la comisión litúrgica creada por Pio IV y confirmada por Pio V. Todos ven la necesidad de simplificar más el oficio”.

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A oração das horas é entendida como a prolongação da oração do Verbo de Deus

que reza ao Pai em Igreja. Trata-se de uma oração de louvor e intercessão, gratuita

e funcional (cf, SC 83s, 86, 88, 94 e 99). Embora rezada individualmente, não deixa

de ser oração comunitária e estende-se por todas as horas do dia e da noite com

objetivo de santificá-las. O Vaticano II consegue a revalorização do ano cristológico iniciada desde são Pio V,

mas nunca atingida. Organizou o ano de tal modo que o domingo e o ciclo do

Senhor receberam seu devido valor e o santoral também foi colocado no lugar que

lhe convém. A organização semanal do saltério foi abandonada e aprovou-se a divisão em quatro

semanas. Foram retirados do saltério a ser rezado na Liturgia das Horas três salmos

(57, 82 e 108) e alguns versículos de outros tidos como imprecatórios. Com a

distribuição dos salmos em quatro semanas foi possível diminuir a quantidade

presente em cada uma das horas. Mas é evidente que a reforma realizada pelo Concílio Vaticano II não ficou

simplesmente no aspecto formal. Foi muito mais profunda. “Com o Concílio, os fiéis leigos são novamente convidados a beberem da Liturgia

das Horas, fonte abundante de espiritualidade cristã” (Beckhäuser, 2012, p. 123). Essas palavras do frei Alberto Beckhäuser se referem ao número 100 da

Constituição Sacrosanctum Concilium em que, depois de falar das diversas classes

de fiéis obrigadas ao ofício, declara: “Recomenda-se também aos leigos que recitem

o Ofício Divino, quer juntamente com sacerdotes, quer reunidos entre si, e até cada

um em particular”. Nesse sentido, Hengemulle observa:

Na nova Liturgia das Horas o sujeito volta a ser explicitamente a Igreja toda. O povo cristão inteiro é o protagonista pensado. A Sacrosanctum Concilium afirma claramente que o Ofício Divino, “sendo a oração da Igreja toda, os leigos podem celebrá-lo, mesmo sem a presença do sacerdote”. E o próprio Código de Direito Canônico convida vivamente os fiéis cristãos em geral a participarem na celebração das Horas, ou a sós ou em grupo, ou na igreja ou na família. A Liturgia das horas passou, portanto, não só a estar aberta ao povo cristão, mas voltou a pertencer-lhe novamente de direito. Novamente por quê? Porque nisso, o Vaticano II apenas voltou às origens. Nos primórdios, como se viu na parte histórica, a celebração da oração comum não era da responsabilidade apenas do clero; toda a Igreja local se congregava para essa celebração (HENGEMULLE, 2007, p. 32-33).

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O sujeito da Liturgia das Horas é toda a Igreja. Igreja aqui entendida como foi

descrita pelo Vaticano II: povo de Deus chamado a viver na unidade e ser “luz para

as nações” (cf. LG II). O esforço empreendido pelo concílio foi muito grande no sentido de simplificação e

popularização do ofício. O que se percebe, no entanto, é um paradoxo:

A liturgia das horas do Vaticano II foi muito bem acolhida, por um lado, e por outro marginalizada pelos próprios encarregados de celebrá-la e educar o povo cristão para a oração eclesial. Não obstante os desejos do concílio e dos organismos pós-conciliares, a nova liturgia das horas penetrou muito pouco no âmbito da oração dos fiéis (GOENAGA, 2000, p. 321).

Embora dura, essa constatação é plena de verdade. Os objetivos propostos pelo

Concílio Vaticano II na sua reforma da Liturgia das Horas não foram ainda

alcançados. Conhecendo um pouco da história da Igreja percebe-se, entretanto, que

muitas vezes demora para que determinações conciliares entrem em vigor, de fato.

Talvez seja esse o caso da reforma em questão.

O trajeto percorrido nesse capítulo mostra, embora de modo resumido, como a

história da Liturgia das Horas é dinâmica e processual. O Vaticano II com seu intuito

de voltar às fontes conseguiu resgatar elementos muito importantes que tinham sido

esquecidos com o tempo, como o caráter comunitário, a revalorização do ano

cristológico e o conjunto de fiéis como protagonista dessa que é a oração de toda a

Igreja.

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3. A LITURGIA DAS HORAS NA ATUALIDADE: PÓS-CONCÍLIO E TENTATIVAS

DE IMPLANTAÇÃO

No capítulo precedente fez-se um percurso histórico na tentativa de perceber como o

Ofício Divino – Liturgia das Horas – foi sendo modificado ao longo dos séculos e

quais os principais elementos presentes em cada momento histórico dessa forma de

oração. Foi possível notar como o Vaticano II retomou elementos fundamentais do

Ofício Divino que, com o passar do tempo, haviam sido esquecidos.

O objetivo deste último capítulo é buscar entender como se deu o processo de

formação do “novo breviário”18, que passaria a se chamar Liturgia das Horas19, e

como se iniciou o processo de implantação junto às comunidades – processo que

ainda continua inacabado. A partir da observação junto a pessoas que rezam a

Liturgia das Horas em comunidade e de outras que o fazem individualmente, será

feita uma reflexão acerca da necessidade de boa formação litúrgica.

3.1 Estruturação da nova Liturgia das Horas

A Constituição Sacrosanctum Concilium deu as normas gerais para a reforma do

Ofício Divino (cf. SC 89). Dentre as mudanças pedidas pelo Concílio estavam a

supressão da Prima (ofício semelhante às Laudes destinado a consagrar os

trabalhos do dia), a organização do Ofício de Leituras de modo que possa ser

rezado a qualquer hora do dia e a possibilidade de escolher uma das chamadas

Horas Médias para quem não está obrigado ao coro. Além dessas mudanças assinaladas, muitas outras deveriam ser colocadas em

prática. O Ofício Divino deveria ser reorganizado em toda a sua estrutura. A

comissão responsável pela realização das determinações conciliares dividiu-se em

oito grupos para melhor trabalhar os diversos elementos da Liturgia das Horas.

18 Certamente já não é correta a nomenclatura “breviário” e por isso a colocamos entre aspas. Com a reforma litúrgica, não há mais um ofício abreviado, e sim o livro da liturgia das horas; no entanto usamos aqui o termo, ainda que indevidamente, por ser de uso muito generalizado.

19 O Concílio Vaticano II continuou usando a terminologia tradicional, Ofício Divino (SC 83-101). No entanto, a comissão intitulada Consilium (Consilium ad exsequendam Constitutionem de sacra Liturgia) decidiu, em assembleia realizada entre os dias 12 e 13 de novembro de 1969, decidiu que, a partir de então, Liturgia das Horas seria o nome da oração oficial da Igreja (Cf. BUGNINI, 1983, p. 505).

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Dentre as chamadas linhas programáticas do Vaticano II, no que se refere à Liturgia

das Horas, merecem destaque: a Liturgia das Horas como oração de todo o povo de

Deus, o novo saltério litúrgico, novo lecionário bíblico, patrístico e hagiográfico, a

adaptabilidade e os subsídios para interiorização. Em relação à primeira delas,

afirma Raffa:

O ofício divino é concebido não mais como oração própria do clero e dos monges, como chegara a ser tido em uma época de decadência litúrgica, mas como oração de todos os batizados. Por isso ele gira agora principalmente em torno de laudes e vésperas, definidas como duplo eixo do ofício cotidiano (SC 89a) e completamente reelaboradas sobretudo para a celebração popular. Os leigos, como grupos e como indivíduos, que celebram também uma parte da Liturgia das Horas, realizam a missão da Igreja orante, inserem-se mais intimamente nela (SC 85), cumprem ação litúrgica e culto público e contribuem não pouco para a salvação de todo o mundo (RAFFA, 1992, p. 655).

A concretização destas linhas programáticas não seria tarefa simples. Muitos

pastores e estudiosos doaram-se na execução dessa tarefa para, depois de longo

tempo, a Igreja ter seu novo livro de orações, a nova Liturgia das Horas20. É sobre

esse processo que queremos nos debruçar, embora de maneira resumida, a partir

daqui. O processo de reestruturação da Liturgia das Horas, que se deu entre 1964 e 1972,

pode ser dividido em três fases. É dessa maneira que Bugnini o apresenta em sua

obra sobre a reforma litúrgica e, por fidelidade ao autor, também este trabalho o fará.

3.1.1 Primeira fase (1964-1965) A primeira fase, assim como em qualquer projeto, foi de fundamental importância.

Isso porque, antes de os trabalhos de reforma serem iniciados, fazia-se necessário

compreender bem os princípios conciliares referentes à reforma da Liturgia das

Horas e resolver alguns problemas que se impunham como condição para definir a

nova estrutura do Ofício.

20 Para a pesquisa sobre os trabalhos de reestruturação da Liturgia das Horas seguimos a consagrada obra de Annibale Bugnini, La riforma litúrgica (ainda não traduzida para o português).

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Na segunda reunião do Consilium, A. G. Martimort apresentou os quatro princípios

conciliares para a reforma do ofício. A partir dessa lista de princípios, serão

elaboradas 33 questões que buscam resumir a problemática. Segundo a relação apresentada por Martimort, seriam quatro os princípios

conciliares:

1) fidelidade ao passado e sensibilidade às condições atuais do clero

pastoral; 2) o orante deve poder viver espiritualmente dos textos do ofício; 3) os fiéis devem poder participar frutuosamente; 4) as horas do

ofício sejam rezadas no tempo real e competente (BUGNINI, 1983, p. 482, tradução nossa)21. Estes princípios norteariam a elaboração das propostas em vista da reestruturação

da Liturgia das Horas. Desde o princípio, dois grupos se fizeram notar entre os

membros do Consilium: um a favor que a oração não fosse abreviada e outro que

defendia uma estrutura mais simples. Como tentativa de solução para este problema

foi proposto trabalhar em dois esquemas para as Vésperas (o grupo de estudos

achava problemática a participação popular nas Laudes): um para a celebração com

o povo e outro para o coro ou para a recitação individual (cf. BUGNINI, 1983, p.

483). O Consilium se mostrou desde o princípio contrário a esta ideia e pediu que se

aprofundassem os estudos. Outra questão a ser resolvida nessa fase foi o problema dos salmos. Na reunião de

1º de outubro de 1964 foram apresentadas pelo grupo responsável pela distribuição

do saltério algumas questões: a extensão dos salmos e a integridade do saltério.

Esta segunda haveria de se tornar mais grave e demandaria ainda muita discussão. Em relação à integridade do saltério, eram dois os problemas mais relevantes: “a) utilizar todos os salmos, ou só salmos selecionados (por exemplo, eliminando os

salmos ‘imprecatórios’, ou usando-os somente em algumas ocasiões do ano?); b)

em quantas semanas distribuir o saltério?” (BUGNINI, 1983, p. 485, tradução

nossa)22.

21 “1) fedeltà al passato e sensibilità alle condizioni attuali del clero pastorale; 2) l’orante deve poter vivere espiritualmente dei testi dell’ufficio; 3) i fideli vi devono poter partecipare con frutto; 4) le ore dell’ufficio siano pregate nel tempo vero e competente”.

22 “a) utilizzare tutti i salmi, o solo salmi selezionati? (per esempio, eliminando i salmi “imprecatori”, oppure usandoli solo in alcuni occasioni dell’ano?); b) in quante settimane distribuire il salterio?”

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A princípio o grupo da estrutura geral do Ofício decidiu que deveria se manter todo o

saltério. Nas discussões, Martimort lembrou que os salmos não são rezados em

pessoa própria, mas “in persona Christi et Ecclesiae”. Essa questão haveria, no

entanto, de retornar algumas vezes nas discussões do Consilium. Muitas outras questões foram levantadas nessa primeira fase dos trabalhos da

Comissão e o cardeal presidente decidiu apresentá-las ao papa. O papa se

posicionou sobre os problemas a ele relatados em uma carta datada de 5 de abril de

1966. Entre as orientações dadas por Paulo VI figuravam: Laudes e Vésperas sejam

preparadas tendo em vista a participação do povo; alguns elementos da Prima

deveriam ser inseridos em Laudes; faça-se uma escolha dos melhores salmos,

usando os “imprecatórios” em alguns momentos do ano e os históricos como leitura (cf. BUGNINI, 1983, p. 488-489). No outono de 1966 o Consilium se reuniu para refletir sobre cinco problemas

fundamentais: a) salmos imprecatórios e históricos; b) três Horas Menores ou

apenas uma; c) estrutura de Laudes e Vésperas; d) se deveria se propor um

breviário ou dois; e) se os elementos corais deveriam ser mantidos ou não. Ainda em relação aos salmos imprecatórios, foi ressaltado como o problema havia

sido resolvido em outras comunidades cristãs. A partir dessa observação foi

proposto pelo relator do grupo seguir e exemplo da Igreja Anglicana, mantendo todo

o saltério, mas indicando com rubricas ou sinais apropriados os salmos que

poderiam ser substituídos e versículos passíveis de omissão. Essa posição

prevaleceu (nessa assembleia do Consilium), apesar do pensamento do papa seguir

outro caminho. Segundo Bugnini, “faltava a coragem de tomar um novo caminho”

(BUGNINI, 1983, p. 491, tradução nossa)23.

3.1.2 Segunda fase (1966-1967)

A VII assembleia geral do Consilium analisou a nova definição da estrutura do Ofício

e posteriormente foi encaminhada ao papa uma relação do trabalho desenvolvido

nessa reunião. Uma das preocupações era que os fiéis leigos não vissem sua

participação na Liturgia das Horas como uma “concessão”, mas como um encargo

que é também seu como membro da comunidade eclesial orante.

23 “Mancava il coraggio di imboccare um nuovo cammino”.

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É importante que haja um único esquema, para evitar a impressão que por causa das abreviações, quando o povo está presente, apareça como algo puramente clerical, de que o povo participa quase por pura concessão e por força das simplificações feitas propositalmente para eles (BUGNINI, 1983,

p. 492, tradução nossa)24. Na relação enviada ao papa apareciam também outros pontos trabalhados na

assembleia do Consilium: três salmos para Laudes e Vésperas, e possibilidade de

leitura mais longa ou homilia, quando celebradas com o povo; inserção de alguns

cânticos do Novo Testamento na salmodia de Vésperas; conservação das três Horas

Menores no breviário, embora seja possível escolher uma delas para a oração dos

que não estão obrigados ao coro; o problema persistente do uso do saltério;

conservação de elementos corais na estrutura do ofício. Nesse momento já se trabalhava com a proposta de divisão quadrissemanal do

saltério. Por isso na assembleia do Consilium de 10 a 19 de abril de 1967 foi

distribuído um espécime do Ofício para uma semana a fim de que os padres

pudessem avaliar melhor e chegar a conclusões oportunas. A assembleia do Sínodo dos Bispos, reunida em 1967, teve como um dos elementos

de discussão a estrutura da nova Liturgia das Horas. Quatro pontos foram objeto da

preocupação do Sínodo: a) os salmos; b) Laudes e Vésperas; c) Horas Menores; d)

Ofício de leituras. No dia 26 de outubro fizeram votação referente aos pontos citados e a maioria quis

que fossem conservados todos os salmos e distribuídos em quatro semanas, que a

estrutura de Laudes e Vésperas seguisse o esquema apresentado pelo Consilium

(hino, 3 salmos (cântico), leitura (breve ou longa), cântico (Magnificat, Benedictus),

preces, Pai-nosso, coleta e conclusão), que fosse obrigatória só uma das Horas

Menores e que o Ofício de leituras tivesse três salmos, uma leitura bíblica e uma

patrística (ou hagiográfica). Não obstante aquilo que o Sínodo havia sinalizado em relação à organização do

saltério, o papa responde à presidência do Consilium (após esta enviar os resultados

das discussões sinodais sobre a questão) que “parece ser preferível a escolha dos

salmos mais adequados à oração cristã, omitindo aqueles

24 “Importante è che unico sia lo schema, per evitare l’impressione che, a causa dele abbreviazioni, quando è presente il popolo, l’ufficio appaia come qualcosa di puramente clericale, cui il popolo partecipa quasi per pura concessione e in forza di simplificazioni fatte apposta per lui”.

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‘imprecatórios’ e aqueles ‘históricos’” (in BUGNINI, 1983, p. 499, tradução nossa).25

No entanto, essa questão ainda não se deu por resolvida. Em abril de 1968 o

assunto foi discutido na X assembleia do Consilium e houve muita argumentação

para que o saltério fosse mantido na íntegra. Ao final, decidiu-se apresentar a

questão novamente ao papa e aceitar aquilo que fosse por ele decidido. O papa aceitou a posição apresentada pela secretaria do Consilium e decidiu-se que

os salmos 57, 82 e 108 seriam omitidos do ciclo ordinário dos salmos, alguns

versículos mais duros de outros salmos também seriam omitidos e os salmos 77,

104 e 105 (históricos) seriam usados somente em alguns tempos do ano como o

advento e a quaresma. Tendo finalmente chegado ao fim as discussões acerca do conteúdo e estrutura da

nova Liturgia das Horas, era o momento de começar a preparação do material para

a impressão do livro litúrgico pensado para regular a oração da Igreja.

3.1.3 Última fase (1968-1972)

Em duas assembleias do Consilium, foram discutidos detalhes e algumas questões

importantes para que pudesse ser iniciado o trabalho de composição do material a

ser impresso. Em novembro de 1969, conforme já foi acenado, decidiu-se que o

ofício de Laudes se chamaria Laudes matutinae e o Ofício como um todo se

chamaria Liturgia Horarum (Liturgia das Horas). Houve da parte dos componentes do Consilium outras sugestões, mas por motivos

bem determinados foi esta terminologia que mereceu a maioria dos votos. O termo

“ofício” parecia muito genérico sendo inclusive usado para nomear outras ações

litúrgicas. “Liturgia das Horas” pareceu ideal por dois motivos: o termo “liturgia” dá a

entender que se trata de verdadeira ação litúrgica e a especificação “das horas”

apresenta uma das principais características dessa oração, a santificação do tempo

(cf. BUGNINI, 1983, p. 503. n. 31). Foi enviado aos bispos do mundo inteiro, assim como aos superiores gerais

religiosos, um espécime contendo dois ofícios (um ferial e um do santoral)

acompanhados de ampla descrição da estrutura, normas e critérios utilizados na

nova Liturgia das Horas. Daqueles que se manifestaram acerca dessa consulta, a

25 “Sembra doversi preferir e la scelta dei salmi più adatti alla preghiera cristiana, omettendo quelli ‘imprecatori’ e quelli ‘storici’”.

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maioria mostrou-se satisfeita com o trabalho realizado. Enviaram algumas

observações, entre elas a impressão de um Ofício muito monástico (inadequado

para a recitação individual) e a necessidade de esclarecer alguns elementos, como a

obrigatoriedade. Na consulta feita aos bispos, algo foi insistentemente solicitado: que se fizesse logo.

A causa dessa insistência estava no fato de muitos padres estarem deixando o

Ofício Divino para aderirem a outras formas de oração. Na tentativa de solucionar esse problema, a Conferência episcopal francesa foi a

primeira a tomar iniciativa: solicitar ao Consilium a permissão para utilizar os textos

já preparados enquanto a edição típica não fosse publicada. Em audiência com o

secretário da Comissão o papa permitiu que a concessão fosse feita a todas as

conferências episcopais de língua francesa. Poucos meses depois o Consilium

recebeu o manuscrito para a última aprovação. O volume intitulado Prière du temps présent foi muito bem avaliado e encorajado.

Segundo Bugnini, “bom número de sacerdotes reencontraram o gosto e a fidelidade

à oração do Ofício” (Bugnini, 1983, p. 505, tradução nossa)26. Isso encorajou

diversas outras conferências episcopais a solicitar a permissão de ter um livro de

orações experimental. Diversamente daquilo que alguns imaginavam (que esses

livros enfraqueceriam o interesse pela Liturgia das Horas), a expectativa pela edição

típica só aumentou. Uma problemática ainda devia ser resolvida antes da publicação da nova Liturgia

das Horas: a obrigatoriedade. Já havia uma indicação por parte do Consilium quanto a essa questão, mas seu

enunciado foi considerado incompleto e, por isso, foi refeito, dando origem ao texto

definitivo. Esse texto foi enviado ao papa e a cinco dicastérios da cúria romana

(Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Sagrada Congregação para o Clero,

Sagrada Congregação para os Religiosos, Sagrada Congregação para a Educação

Católica e Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos). A maioria dos consultados aprovou o texto que definia a obrigatoriedade do Ofício

Divino para os sacerdotes e ainda estabelecia um esquema com diversos graus de

valores. A Sagrada Congregação para os Religiosos, no entanto, fez dura crítica,

afirmando que não cabe a um livro litúrgico legislar sobre quem está obrigado

26 “Buon numero di sacerdote ritrovarono il gusto e fedeltà alla preghiera dell’ufficio”.

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ou não à recitação das Horas litúrgicas (cf. BUGNINI, 1983, p. 507). A Sagrada

Congregação para o Clero insistia para que fosse determinada a recitação integral

do Ofício e definida como falta grave a sua omissão. Tendo em vista as observações, o texto haveria de ser refeito. A nova redação foi

revisada pela Secretaria de Estado e aprovada em 3 de outubro de 1970. Esse foi o

texto que entrou para a Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas (n. 29-32). O

papa Paulo VI, na Constituição Laudis Canticum, assim se expressaria em relação à

obrigatoriedade:

Aqueles que, tendo recebido a sagrada ordenação, são destinados a ser, de modo especial, o sinal de Cristo sacerdote, e aqueles que pelos votos da profissão religiosa se consagram de maneira especial ao serviço de Deus e da Igreja, ao celebrarem o Ofício Divino, não se sintam impelidos unicamente por uma lei a cumprir, mas antes pela reconhecida importância intrínseca da oração e pela sua utilidade pastoral e ascética (Laudis Canticum, p. 22). 3.2 Liturgia das Horas nos textos pós-conciliares Refletindo o tema da Liturgia das Horas no pós-Concílio e tendo já visto um pouco

de como se deu a sua estruturação, passa-se agora para uma breve análise de

alguns textos importantes do período pós-conciliar que tratam da Liturgia das Horas,

definindo-a e também tratando da sua obrigatoriedade. O primeiro desses textos, ao qual já se fez referência neste trabalho, é Instrução

Geral sobre a Liturgia das Horas (IGLH). Esse texto, considerado um dos mais ricos

e possivelmente o mais prestigioso da reforma litúrgica, trata da teologia da Liturgia

das Horas, bem como de normas e princípios para a sua execução. Compõe-se de

cinco capítulos, trazendo no primeiro “a teologia e o valor da Liturgia das Horas no

conjunto da vida da Igreja” (cf. Aldazábal, 2010, p. 27). Os outros capítulos

trabalham mais os elementos que constituem o Ofício e como celebrar

frutuosamente esta ação litúrgica. A IGLH inicia com uma afirmação que traz em si uma bela definição do que é a

Liturgia das Horas: “A oração pública e comum do povo de Deus é considerada com

razão entre as principais funções da Igreja” (IGLH 1). Trata-se, portanto, de oração

pública, ou seja, ação da própria Igreja. É também, conforme o texto, oração comum.

A Liturgia das Horas é a oração de todo o povo de Deus. Não é uma atividade a

mais, mas uma das “principais funções da Igreja”.

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A Instrução compreende a Liturgia das Horas como continuidade daquela oração

que os homens de todos os tempos elevaram a Deus. Isso porque, como já foi dito,

a oração mostra ao homem sua dependência de Deus. Nessa linha, diz a Instrução: “Tudo o que o ser humano tem deve a Deus, e por isso precisa

reconhecer e confessar essa dependência diante do seu Criador. Assim, homens

piedosos de todos os tempos o fizeram por meio da oração” (IGLH 6). Em relação à obrigação de recitar o Ofício, a Instrução tem passagens deveras

interessantes. Antes de tratar do mandato de celebrar a LH, enfatiza a importância

de se rezar comunitariamente. Isso porque “a Liturgia das Horas, como as demais

ações litúrgicas, não é ação particular, mas algo que pertence a todo o corpo da

Igreja e o manifesta e atinge” (IGLH 20). Inspirado na Regula Monasteriorum de são

Bento, o texto diz que:

Para que essa oração seja algo próprio de cada um dos que nela participam e se torne fonte de piedade e da multiforme graça divina e alimento de oração individual e da ação apostólica, é preciso que nela a mente concorde com a voz, celebrando-a com dignidade, atenção e devoção (IGLH 19).

Toda a insistência no caráter público e comum da Liturgia das Horas não leva a

esquecer daqueles que estão a ela obrigados. Sobre essa questão, o texto citado no

item anterior expressa bem o pensamento da IGLH. Por sua beleza e profundidade,

cita-se aqui o número referente aos ministros ordenados:

Aos ministros sagrados se confia de maneira tão especial a Liturgia das Horas, que, embora não havendo povo, deverão celebrá-la fazendo, obviamente, as necessárias adaptações. A Igreja os encarrega da Liturgia das Horas, para que esta missão da comunidade seja desempenhada ao menos por eles de maneira certa e constante, e a oração de Cristo continue sem cessar na Igreja (IGLH 28).

O Código de Direito canônico, promulgado em 1983, já depois de alguns anos de

uso da nova Liturgia das Horas, se expressa acerca do seu conteúdo e da obrigação

de sua celebração por parte de determinados fiéis. Diz o Código:

Cumprindo o múnus sacerdotal de Cristo, a Igreja celebra a Liturgia das Horas, por meio da qual, ouvindo a Deus que fala a seu povo e celebrando o mistério da salvação, louva-o sem cessar com a canto e a oração e lhe suplica com insistência pela salvação de todo o mundo (CIC 1173).

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Em relação à obrigatoriedade da celebração da Liturgia das Horas, o Código traz

dois cânones. Na parte em que fala dos direitos e deveres dos clérigos determina-se

que “os sacerdotes e os diáconos que aspiram ao presbiterato são obrigados a rezar

todos os dias a liturgia das horas, de acordo com os livros litúrgicos próprios e

aprovados” (CIC 276, § 2, 4º). Quando fala de atos do culto divino que não são sacramentos, o Código reserva um

Título inteiro para tratar da Liturgia das Horas. Em relação à obrigação, o Código é muito claro: “Têm obrigação de rezar a liturgia das horas os clérigos, de

acordo com o cân. 276, e, conforme suas constituições, os membros de institutos de

vida consagrada e sociedades de vida apostólica” (CIC 1174, § 1). O parágrafo imediatamente posterior a essa determinação é de grande importância.

Ali se diz que “também os outros fiéis são vivamente convidados, de acordo com as

circunstâncias, a participar da liturgia das horas, já que é ação da Igreja” (CIC 1174, § 2). Para o Código de Direito Canônico, a Liturgia das Horas é ação da Igreja à qual

todos os fiéis são convidados. Alguns dentre os fiéis, entretanto, por seu próprio

estado de vida, estão obrigados a celebrá-la. Mais uma vez lembrando aquilo que

disse Paulo VI, que esses fiéis “não se sintam impelidos unicamente por uma lei a

cumprir, mas antes pela reconhecida importância intrínseca da oração e pela sua

utilidade pastoral e ascética” (Laudis Canticum). Fazendo referência à Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, o Catecismo

da Igreja Católica, escrito quase trinta anos após esse documento, afirma que “O

Mistério de Cristo, sua Encarnação e sua Páscoa, que celebramos na Eucaristia, especialmente na celebração dominical, penetra e transfigura o tempo de

cada dia pela celebração da Liturgia das Horas, ‘o Ofício Divino’” (CEC 1174). Nesse ponto, o Catecismo fala da estreita ligação entre a Liturgia das Horas e a

Celebração Eucarística. Já a IGLH havia tratado dessa relação, mostrando que a

Eucaristia encontra no Ofício Divino sua melhor preparação, ao mesmo tempo em

que este espalha por todo o dia a memória do mistério da salvação (cf. IGLH 13). O Catecismo da Igreja não se preocupa em tratar da obrigação de celebrar a Liturgia

das Horas. O Código de Direito Canônico já havia cumprido essa tarefa. Em

contrapartida, o Catecismo fala da Liturgia das Horas como oração destinada a todo

o povo de Deus. Aquilo que já a Sacrosanctum Concilium dizia (inclusive sendo

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citada no parágrafo correspondente), assume uma clareza impressionante no texto

citado a seguir:

A Liturgia das Horas é destinada a tornar-se a oração de todo o povo de Deus. Nela, o próprio Cristo “continua a exercer sua função sacerdotal por meio de sua Igreja” (SC 83); cada um participa dela segundo seu lugar próprio na Igreja e segundo as circunstâncias de sua vida: os presbíteros, enquanto dedicados ao ministério da Palavra (cf. SC 86, 96; PO 5); os religiosos e as religiosas, pelo carisma de sua vida consagrada (cf. SC 98); todos os fiéis, segundo suas possibilidades: “Os pastores de alma cuidarão que as horas principais, especialmente as vésperas, nos domingos e dias festivos mais solenes, sejam celebradas comunitariamente na Igreja. Recomenda-se que os próprios leigos recitem o Ofício Divino, ou juntamente com os presbíteros, ou reunidos entre si, e até cada um individualmente” (SC 100) (CEC 1175).

É possível notar como os textos da época pós-conciliar levaram adiante aquilo que

os padres conciliares expressaram como necessidade na Sacrosanctum Concilium.

A Liturgia das Horas se mantém como obrigação para determinadas classes de fiéis

(com aquela bonita ideia de garantir a celebração “certa e constante” ao menos por

parte de alguns), mas deve “tornar-se a oração de todo o povo de Deus”. Os textos

analisados parecem coerentes nesse sentido.

3.3 A Liturgia das Horas na prática pós-conciliar No item anterior foram expostos alguns textos do pós-Concílio que tratam da Liturgia

das horas. Pôde-se perceber a abertura que se apresenta nesses textos e a

coerência existente entre eles. Neste ponto, pretende-se refletir brevemente sobre a

aplicação destes conceitos na Igreja do Brasil. Como foi dito acima, depois de amplos detalhes do processo de organização da

nova Liturgia das Horas, “a publicação da Liturgia das Horas renovada a partir do Concílio Vaticano II no original latino deu-se em 1971” (BECKHÄUSER, 2010, p. 9).

Isso, no entanto, não significava trabalho terminado. A partir dessa tradução deveria

ter início o trabalho das conferências episcopais para a tradução do texto nas

línguas vernáculas. Antes da tradução da Liturgia das Horas em quatro volumes foi adotado como livro

de orações o já mencionado Oração do Tempo Presente. Para Beckhäuser, essa

adoção pode ter influenciado na demora para a tradução dos quatro volumes (cf.

idem, id.). Sendo essa hipótese confirmada ou não, o fato é que somente em

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1984 estaria pronta a tradução da Liturgia das Horas em um volume, ainda sem as

leituras bíblicas e patrísticas do Ofício das Leituras. Seriam necessários mais dez anos para que a tradução dos quatro volumes

estivesse disponível, já trazendo as várias alterações trazidas pela 2ª edição típica,

publicada em 1985. Dessas alterações, merecem destaque o uso da Neovulgata, o

número dos versículos dos salmos e cânticos e os cânticos e evangelhos para as

vigílias. Finalmente a nova Liturgia das Horas podia ser rezada integralmente pelos

fiéis brasileiros em sua própria língua. Nos anos que sucederam o Vaticano II e as primeiras publicações da nova Liturgia

das Horas foi possível perceber que essa modalidade de oração não alcançava

todas as pessoas, de modo especial as mais simples. Tendo em mente essa

situação, um grupo de liturgistas resolveu elaborar uma modalidade da Liturgia das

Horas capaz de atingir as mais diversas realidades. Era década de 80 e as

comunidades eclesiais de base viviam seu momento de apogeu. Foi pensando

também nessas comunidades que surgiu o Ofício Divino das Comunidades (ODC),

publicado em 1988. Como disse o insuperável Dom Clemente Isnard na apresentação da 7ª edição

desse livro de orações, o Ofício Divino das Comunidades é uma “tentativa de fazer

chegar ao povo as riquezas estruturais da Liturgia das Horas” (ISNARD, 1994, p. 6).

Dom Clemente fala ainda do sucesso que teve essa modalidade da Liturgia das

Horas: “Não somente se sucederam as edições, como, em alguns lugares, o povo

passou a se reunir de manhã cedo, nas igrejas, para cantar o Ofício, pois os que não

sabem ler decoram mais facilmente um texto cantado do que falado” (idem). De fato, ainda hoje muitas comunidades utilizam este Ofício para seus momentos de

celebração. Com o tempo foram surgindo formas “especializadas” do Ofício Divino das Comunidades: para adolescentes, para jovens, dos mártires etc.

Trata-se de um trabalho desenvolvido por grandes nomes da liturgia e que merece

ser estudado a fundo.

3.3.1 A (não) celebração da Liturgia das Horas nas comunidades paroquiais Aquilo que se percebe na maioria das comunidades e paróquias, no que diz respeito

à celebração da Liturgia das Horas, está muito distante do que o Concílio desejou e

todos os documentos publicados na sequência incentivaram. As reflexões

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expostas nesse item baseiam-se em duas pesquisas realizadas pelo autor deste

trabalho: junto aos fiéis de uma igreja em que há a prática de cantar as Laudes antes

da missa dominical e visita a outras comunidades. Em muitas comunidades verifica-se grande desconhecimento em relação à Liturgia

das Horas. No âmbito comunitário predomina a prática sacramental e no pessoal, as

orações de cunho devocional. Muitos fiéis não sabem que existe uma oração

litúrgica de caráter eclesial. Dentre os fiéis leigos que já ouviram falar da Liturgia das

Horas, muitos a veem como oração própria dos padres, religiosos etc. Em algumas comunidades faz-se confusão em torno do Ofício Divino das Comunidades. Um dos entrevistados disse já ter ouvido que “o ODC era próprio para

a oração dos leigos, enquanto a LH era destinada aos padres e religiosos”. O ODC,

como foi visto, é uma forma inculturada da Liturgia das Horas, e não algo oposto a

ela. Ambas as formas podem ser utilizadas por todas as classes de fiéis. Tendo em

consideração, evidentemente, que a forma aprovada pela Santa Sé para o

cumprimento da obrigação por aqueles que estão obrigados à LH é a que está

publicada nos quatro volumes, com a tradução reconhecida. Na comunidade do Pateo do Collegio (comunidade no centro de São Paulo, dirigida

pelos jesuítas) há a prática da oração das Laudes com o povo, antes da Celebração

Eucarística dos domingos. Presidida pelo diretor do Pateo e cantada pelos cantores

daquela comunidade, é um momento que cumpre bem aquela ideia da IGLH de

preparação para a Eucaristia. A participação, entretanto, é muito pequena se comparada ao número de fiéis

presentes na Missa. Dos fiéis entrevistados, a maioria disse encontrar na oração com a Liturgia das

Horas uma riqueza bíblica difícil de se encontrar em outras formas de oração. Alguns

falaram que a partir da oração feita aos domingos na comunidade foram se sentindo

motivados à prática individual nas suas casas. Praticamente todos tiveram o primeiro

contato com a Liturgia das Horas por meio da comunidade. Uma característica do Ofício Divino destacada por um dos fiéis entrevistados foi a

“objetividade” dessa oração. Para ele, o fato da Liturgia das Horas não ser uma

oração meramente subjetiva, mas de toda a Igreja, é digno de nota. Esse foi um dos

que passou a rezar individualmente a LH depois que começou a frequentar o Pateo.

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Foram entrevistadas vinte pessoas, entre jovens e adultos. De modo geral, avalia-se

como muito positiva a experiência de oração comunitária da LH nessa comunidade. Quando perguntados por que a maioria dos fiéis presentes na missa não tomam

parte no ofício de Laudes e porque em outras igrejas não há momentos semelhantes

àqueles, a resposta foi basicamente a mesma: falta formação. Formação para os

fiéis leigos, mas também formação para o clero.

Concluindo este capítulo, resulta importante ter em mente de maneira sucinta e

esquematizada aquilo que foi colocado nas três partes do texto. Durante mais de cinco anos o Consilium trabalhou para organizar a nova estrutura e

os conteúdos da nova Liturgia das Horas. Muito foi discutido acerca do saltério, das

leituras bíblicas e patrísticas, da composição de um ou dois breviários etc. Passando

por consultas ao papa, bispos e especialistas chegou-se a estrutura que se tem

ainda hoje. Umas das preocupações marcantes nesse período de preparação era o

acesso de todos os fiéis à Liturgia das Horas. Uma vez alcançado o consenso acerca do conteúdo e da estrutura do Ofício, teve

início a sua composição. Depois, alguns documentos foram publicados tratando,

entre tantos outros temas, da Liturgia das Horas. Desde a Instrução Geral sobre a

Liturgia das Horas, passando pelo Código de Direito Canônico e terminando com o

Catecismo da Igreja Católica, percebe-se a importância dada ao caráter público do

Ofício Divino. Há os fiéis que estão obrigados à celebração, coral ou individual, mas

todos os fiéis são chamados a assumir essa forma de oração como oração pessoal. No Brasil, o processo para a tradução dos quatro volumes da LH foi demorada.

Enquanto não se tinha a publicação da edição típica, utilizou-se Oração do Tempo

Presente como livro para oração. Mesmo com a publicação dos quatro volumes, a

grande maioria dos fiéis não aderiu, por muitos motivos, à Liturgia das Horas. Foi

elaborado, na tentativa de alcançar maior número de pessoas, com seu modo

inculturado de rezar a Liturgia das Horas, o Ofício Divino das Comunidades. A realidade percebida em grande número de comunidades mostra um verdadeiro

abismo entre o que sonhou o Vaticano II e aquilo que se vive em relação à “oração pública e comum do povo de Deus”.

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A maior parte dos fiéis alimenta sua fé com orações de cunho devocional. A riqueza

que a LH traz ainda continua, para muitos, um tesouro escondido. O breviário é um

livro que padres e religiosos usam, e não cabe aos fiéis leigos rezarem as orações

ali contidas; muitos pensam assim. As comunidades eclesiais preocupam-se

basicamente com a vida sacramental dos fiéis. Enquanto isso, a espiritualidade

fundada na oração vai sendo deixada de lado. Muitas foram as pessoas que se doaram para que a Liturgia das Horas chegasse a

todos e fosse para todos alimento na caminhada para Deus. Quando cada um reza o

Ofício Divino, é a Igreja que reza. Essa certeza deveria influenciar uma prática que

leve a uma cultura de oração mais de acordo com o Concílio Vaticano II.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A questão colocada no início deste trabalho, se não satisfatoriamente respondida,

foi, sem dúvida, devidamente valorizada e investigada. Não há uma resposta

definitiva para o problema do desconhecimento da Liturgia das Horas por parte de

muitos fiéis cristãos e seu consequente distanciamento dessa forma de oração à

qual todos os fiéis são vivamente convidados. O que é possível a partir deste texto é

encontrar elementos que podem proporcionar reflexões acerca do tema e aumentar

o desejo de conhecer melhor essa que é a oração litúrgica por excelência, por ser

oração toda ela eclesial. A pesquisa realizada em diversos autores mostrou como, desde as primeiras

gerações cristãs, houve momentos de oração em que todos tomavam parte como

membros ativos da comunidade. Testemunhos cuja antiguidade não se contesta,

como a Didaché e a carta de Plínio ao imperador Trajano, falam de orações comuns

feitas pelos cristãos. Também a Peregrinação de Etéria mostra como, no século IV,

os cristãos de Jerusalém tomavam parte nos ofícios da comunidade. Esses textos, como tantos outros, fazem notar o caráter comum dessa oração feita

em determinadas horas do dia, seja nas igrejas catedrais, com todos os fiéis

reunidos, seja nos monastérios. Com o passar do tempo e por motivos não

totalmente claros, o Ofício Divino foi sendo deixado de lado pelos fiéis leigos e

tornando-se função basicamente do clero e dos monges. Assim foi por séculos. O Concílio Vaticano II, tido por muitos como uma primavera na Igreja, iniciou sua

grande reforma com a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a liturgia, e

dentro dessa reforma dedicou um capítulo inteiro à reforma do Ofício Divino. Essa

reforma teve como objetivo tornar a oração da Liturgia das Horas mais simples e fiel

à tradição. Não poderia faltar nessa reforma a insistência no caráter comunitário da

Liturgia das Horas. Nos textos promulgados durante e após o Vaticano II e nas atas

dos trabalhos da reforma do Breviário percebe-se a preocupação para que essa

oração pudesse ser rezada por todos. A partir da observação feita em várias comunidades paroquiais e junto a alguns fiéis

que participam dessas comunidades notou-se infelizmente que a prática pastoral

está muito distante daquilo que foi o desejo do Vaticano II. Dentre mais de dez

paróquias visitadas na cidade de São Paulo apenas uma comunidade tem em

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suas atividades um momento comum de celebração da Liturgia das Horas. A grande

maioria segue como se essa oração nem existisse. Na comunidade onde há a celebração comum das Laudes aos domingos (Pateo do

Collegio), nota-se grande interesse por parte dos fiéis que tomam parte na

celebração e como essa prática influenciou positivamente sua vida espiritual. O

momento escolhido para essa celebração – imediatamente antes da missa – é muito

propício também para mostrar aos fiéis a estreita relação entre Liturgia das Horas e

celebração eucarística. A realidade presenciada em muitas comunidades leva a três considerações

importantes para a compreensão da não concretização das orientações do Concílio. Há na maioria das comunidades uma acentuação por vezes exagerada na

administração dos sacramentos. Estes são meios necessários para a vida de

santidade e busca pela salvação, isso não se discute. Mas quem está à frente das

comunidades deve perceber que há outros meios de proporcionar proximidade entre

o fiel e Deus, que não apenas os sacramentos. A Liturgia das Horas é oração

comum, portanto, aberta a todos. Em tempos em que se discute tanto a acolhida de

algumas categorias de fiéis nas comunidades, a oração das Horas apresenta-se

como possibilidade de reunir todos para rezar a Deus como iguais. Outro fator muito presente nas comunidades, por influências de alguns movimentos

neopentecostais, é a visão da oração como meio para se pedir coisas. A tão famosa

teologia da prosperidade se faz presente em muitas de nossas igrejas. Para essas

pessoas, a Liturgia das Horas pode parecer algo muito monótono e sem sentido. O

mais importante é a oração que brota do coração; este é um argumento muito

utilizado. O subjetivismo exacerbado não permite entender a beleza de rezar junto

com a Igreja e unir sua voz à de todos os que mundo afora tomam parte nessa

oração. Por fim, dois fatores que se relacionam e influenciam para que a Liturgia das Horas

não seja oração de todos os fiéis: a falta de incentivo por parte dos padres e o

clericalismo. A grande maioria dos padres que estão à frente de paróquias não se

esforça em fomentar momentos nos quais os fiéis possam tomar parte na

celebração da Liturgia das Horas. Não formam o povo nem buscam criar momentos

propícios para tal fim. Como o clericalismo ainda é muito presente nas comunidades,

se o padre não valoriza e não propõe, torna-se algo a ser deixado de lado.

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O trabalho de tornar a Liturgia das Horas verdadeiramente “a oração de todo o povo

de Deus”, como afirma o Catecismo da Igreja Católica, deve partir desses três

elementos apresentados. As pessoas precisam adquirir consciência da grande

riqueza que é a Liturgia das Horas e tomar parte nela, fortalecendo sempre mais seu

senso de pertença à Igreja. A Liturgia das Horas é, para muitos, um tesouro a descobrir!

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