história oral e história indígena

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Revista Latino-Americana de História Vol. 1, nº. 4 – Dezembro de 2012 © by RLAH Página 7 História Oral e História Indígena: Relevância social e problemática das pesquisas nas Terras Indígenas brasileiras. 1 Sandor Fernando Bringmann * Resumo: Neste artigo analisamos alguns aspectos das pesquisas históricas entre as populações indígenas, enfocando a importância e o desafio da utilização da metodologia da História Oral junto a estas comunidades. A partir de experiências com o grupo Kaingang dos Estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, levantamos algumas considerações pontuais sobre os principais obstáculos e as normativas comportamentais que cerceiam as relações entre entrevistador e entrevistado. Destacamos os principais códigos, os limites e as falhas decorrentes deste processo e ainda as virtudes e os méritos da mesma, em uma tentativa de romper com os paradigmas da chamada “história oficial”, que durante muito tempo negou aos indígenas a sua condição de atores sociais. Palavras Chave: História Indígena. História Oral. Kaingang Abstract: This paper analyzes some aspects of historical research among indigenous peoples, emphasizing the importance and challenge of using the methodology of oral history with these communities. From experiences with the Kaingang people of the states of Rio Grande do Sul and Santa Catarina, raise some specific considerations about the main obstacles and behavioral norms that limit the relationship between interviewer and interviewee. We highlight the key codes, limits and flaws of this process and even the virtues and merits of the same, in an attempt to break with the paradigms of the "official history", which has long denied to the Indians to their status as social actors. Keywords: Indigenous History. Oral History. Kaingang Introdução O etnólogo francês Pierre Clastres publicou em 1971 um pequeno conto intitulado “O Atrativo do Cruzeiro”, no qual narra as aventuras de um grupo de turistas estrangeiros 1 Este texto é uma versão revista e ampliada de uma apresentação feita para o XI Encontro Nacional de História Oral: Memória, Democracia e Justiça, realizado entre os dias 10 e 13 de Julho de 2012 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) IFCS - IH. * Doutorando em História pelo PPGH/UFSC. Bolsista Capes. Pesquisador junto ao Laboratório de História Indígena (LABHIN/UFSC) e colaborador da equipe do Observatório da Educação Escolar Indígena (OEEI/MEC/CAPES/UFSC).

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  • Revista Latino-Americana de Histria Vol. 1, n. 4 Dezembro de 2012 by RLAH

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    Histria Oral e Histria Indgena: Relevncia social e problemtica das pesquisas nas Terras Indgenas brasileiras.1

    Sandor Fernando Bringmann* Resumo: Neste artigo analisamos alguns aspectos das pesquisas histricas entre as

    populaes indgenas, enfocando a importncia e o desafio da utilizao da metodologia da

    Histria Oral junto a estas comunidades. A partir de experincias com o grupo Kaingang dos

    Estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, levantamos algumas consideraes

    pontuais sobre os principais obstculos e as normativas comportamentais que cerceiam as

    relaes entre entrevistador e entrevistado. Destacamos os principais cdigos, os limites e as

    falhas decorrentes deste processo e ainda as virtudes e os mritos da mesma, em uma tentativa

    de romper com os paradigmas da chamada histria oficial, que durante muito tempo negou

    aos indgenas a sua condio de atores sociais.

    Palavras Chave: Histria Indgena. Histria Oral. Kaingang

    Abstract: This paper analyzes some aspects of historical research among indigenous peoples,

    emphasizing the importance and challenge of using the methodology of oral history with

    these communities. From experiences with the Kaingang people of the states of Rio Grande

    do Sul and Santa Catarina, raise some specific considerations about the main obstacles and

    behavioral norms that limit the relationship between interviewer and interviewee. We

    highlight the key codes, limits and flaws of this process and even the virtues and merits of the

    same, in an attempt to break with the paradigms of the "official history", which has long

    denied to the Indians to their status as social actors.

    Keywords: Indigenous History. Oral History. Kaingang

    Introduo O etnlogo francs Pierre Clastres publicou em 1971 um pequeno conto intitulado O

    Atrativo do Cruzeiro, no qual narra as aventuras de um grupo de turistas estrangeiros 1 Este texto uma verso revista e ampliada de uma apresentao feita para o XI Encontro Nacional de Histria Oral: Memria, Democracia e Justia, realizado entre os dias 10 e 13 de Julho de 2012 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) IFCS - IH. * Doutorando em Histria pelo PPGH/UFSC. Bolsista Capes. Pesquisador junto ao Laboratrio de Histria Indgena (LABHIN/UFSC) e colaborador da equipe do Observatrio da Educao Escolar Indgena (OEEI/MEC/CAPES/UFSC).

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    (provavelmente norte-americanos) que visitam uma aldeia indgena em um serto remoto da

    Amaznia. Os membros do grupo, frementes de excitao pela oportunidade de conhecer uma

    aldeia indgena, elaboram mil teorias sobre a condio de isolamento, a selvageria, os rituais

    tradicionais e a alimentao dos silvcolas. vidos por fazer valer os dlares pagos pela

    viagem, os turistas lanam-se aldeia com uma animao furiosa, empunhando seus

    equipamentos fotogrficos e de vdeo.

    To logo adentram a aldeia, os visitantes levam um choque que esfria um pouco sua

    animao. Decepcionam-se com a modorra do local, com sua luz e silncio perturbadores.

    Causou-lhes tambm certa repugnncia os trajes imundos com que os ndios vestiam a si e

    suas crianas. Alm disso, os nativos no levantavam os olhos acima dos joelhos dos

    visitantes. Vergonha ou submisso? Mesmo assim, alguns turistas separaram alguns dos

    autctones para fotografar e filmar, mas no antes de mand-los despir-se de seus andrajos.

    Feitas as fotos, para surpresa geral, os indgenas passaram a cobrar pelas mesmas. Os

    aventureiros indignaram-se com isso e, sobretudo, com os valores cobrados pelas fotografias,

    que subiam conforme as exigncias dos clientes (nu, com plumas, danando, com armas,

    etc.). Meia dzia de fotos e minutos de filmagem causaram um grande desfalque nas carteiras

    dos desbravadores. Alm disso, os estrangeiros viam-se obrigados a submeter-se ainda ao

    tempo limite pelos ndios para fotografar ou filmar, o que escandalizou os civilizados

    visitantes.

    Ao final da visita, j de volta ao barco e frente a um sentimento de decepo e

    indignao geral, um turista exclama exaltado: - Um bando de ladres, essa gente!

    Completamente corrompidos pelo dinheiro! E no h como negociar. So realmente uns

    brutos. Uns fingidos. fcil viver assim.2

    Apesar de o conto de Clastres abordar ficticiamente alguns aspectos do contato

    moderno entre os brancos civilizados e as populaes indgenas, uma boa parte do seu

    enredo pode ser traduzido para a realidade. Assim como na fico, os estranhamentos e o

    choque cultural proporcionados por este contato conduzem a opinies diversas sobre como se

    comportam e como deveriam se comportar os ndios. O espelho, logicamente, sempre foi e

    ser o mundo civilizado. Se o ndio est na aldeia, na mata, vivendo seus costumes e

    tradies, deve repelir toda e qualquer expresso da sociedade no indgena. Leia-se aqui,

    roupas, ferramentas, comida, dinheiro, tecnologia, etc. Quando ocorre o fato de homens 2 O conto de Clastres foi originalmente publicado em Les Temps Modernes, n 299-300, Jan-jul. 1971. Republicado em: CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violncia: pesquisas de antropologia poltica. Trad. NEVES, Paulo. So Paulo: Cosac & Naify, 2004. pp. 71-77.

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    brancos depararem-se com ndios vestidos, que possuem os mesmos vcios capitalistas que

    os seus, argumentam que estes j deixaram de ser ndios, passando a ser uma categoria social

    emergente (OLIVEIRA, 1981, p. 2), mas ainda no completamente civilizada.

    Chama a ateno o fato de que estas manifestaes nem sempre partem

    exclusivamente de indivduos leigos, desconhecedores das reordenaes scio-culturais

    advindas ao longo do processo de contatos interculturais (como os turistas de Clastres), cujos

    interesses pelas populaes indgenas so reflexos dos clichs de programas televisivos que

    apresentam ndios, animais e floresta, quase sempre dentro de uma mesma cadeia relacional.

    H uma gama considervel de pesquisadores, sobretudo aqueles que iniciam suas carreiras

    acadmicas, que julgam-se imbudos de um verdadeiro esprito cientfico, indo a campo

    para tentar demonstrar que o ndio ideal, o modelo iluminista do bom selvagem ainda

    existente, mesmo em populaes que sofreram os primeiros contatos h um, dois ou mais

    sculos atrs, como o caso dos grupos J e Tupi, por exemplo.

    No raro encontrar antroplogos, historiadores, arquelogos ou outros pesquisadores

    (que dependem das informaes dos indgenas para seus artigos, teses ou dissertaes),

    clamarem desesperadamente por informaes que enalteam a cosmoviso do mundo nativo,

    em detrimento sociedade nacional envolvente. De acordo com estes pressupostos, o ndio

    verdadeiro aquele que ainda mora na aldeia, que fabrica seus intrumentos, que caa, que

    planta sua roa e segue as rgidas normas de reciprocidade e as estruturas elementares de

    parentesco (MAUSS, 2003; LEVI STRAUSS, 1982). Dessa maneira, proliferam-se pesquisas

    em comunidades indgenas a procura de rituais ancestrais, remanescentes blicos, histrias de

    resistncia ao contato, entre tantas outras informaes que daro, certamente, muito mais

    emoo para suas produes textuais.

    importante lembrar, porm, que a sociedade nacional apresentou-se aos povos

    indgenas de maneiras profundamente diversas, movida por diferentes interesses e

    motivaes, com destaque para as compulses econmicas e para os engajamentos religiosos.

    Em todas estas fases, os povos indgenas passaram por contatos intermitentes ou permanentes,

    cujas condies opressivas e desestabilizadoras levaram a uma pronta desorganizao da vida

    familial, rupturas com a unidade tribal e, em consequncia disso, a um engajamento ativo na

    economia regional (RIBEIRO, 1986, p. 242). Por tais motivos, existem no Brasil atualmente,

    diversas comunidades indgenas apresentando um grande percentual de mestios, advindos

    das relaes seculares estabelecidas com brancos, negros ou ndios de outras etnias. Relaes

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    estas, estabelecidas autonomamente entre si ou atravs de polticas desagregadoras e

    assimilacionistas institudas em diversos perodos da histria brasileira.

    Esta mistura tnica, proporcionou o aparecimento de um interessante e problemtico

    fenmeno: os indivduos mestiados, muitas vezes, mesmo considerando-se e sendo

    considerados por todos os membros de seu grupo enquanto ndios, de acordo com os critrios

    culturais e identitrios especficos de cada grupo, passam a sofrer limitaes por parte da

    populao regional e mesmo dos governos estaduais e federal, que os avalia como

    etnicamente diversos. Este fenmeno reforado quando se trata do reconhecimento e

    demarcao de reas indgenas, momento em que a figura do mestio marginalizada e seus

    direitos de permanncia nas reas demarcadas para os povos indgenas duramente

    questionada.

    Quando se trata de efetuar uma pesquisa histrica entre as populaes indgenas

    brasileiras, o historiador se defronta quase sempre com este tipo de situao e inmeros outros

    obstculos. Os sculos de contato, de convvio pacfico ou conflituoso com as populaes

    regionais deixaram, inevitavelmente, suas marcas. O pesquisador que vai a campo entre os

    Kaingang, por exemplo, procura de vestgios de rituais, de tcnicas de caa e pesca, de

    produo diferenciada de alimentos, entre outros, poder sofrer uma grande decepo, pois

    dado o intenso convvio com as instituies governamentais (SPI, FUNAI, FUNASA, MEC,

    etc.), muito do que se consideraria tradicional, perdeu-se ao longo das geraes. Por isso

    importante ao historiador que pretende seguir pelo caminho da etno-histria, interar-se antes

    sobre todos os aspectos que permeiam a vida e o conjunto da sociedade que almeja inserir-se

    para a execuo de sua pesquisa, visando no cair em armadilhas que muitas vezes

    comprometem seu trabalho e o de outros pesquisadores.

    dessa forma que o presente texto tem como objetivo refletir sobre as principais

    dificuldades do trabalho de campo dos historiadores (ou etnohistoriadores), que se propem a

    utilizar a metodologia da Histria Oral para desenvolver uma pesquisa sobre as rupturas e

    continuidades do ethos tribal nas comunidades indgenas brasileiras. Pensando nisto, partimos

    da nossa experincia com o grupo Kaingang de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, para

    levantar algumas questes consideradas relevantes para se pensar o desenvolvimento deste

    tipo de pesquisa com outras comunidades indgenas brasileiras.

    Povos Indgenas e Oralidade

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    H um consenso entre os pesquisadores da temtica, de que a oralidade o grande

    elemento agregador das culturas indgenas. Isso, obviamente no significa dizer que os

    diferentes grupos compreendem-se mutuamente, tendo em vista a diversidade de troncos e

    famlias lingusticas existentes (5 troncos e cerca de 180 lnguas faladas somente no Brasil). O

    que acentuamos aqui o carter da linguagem como veculo do pensamento de um povo, de

    uma sociedade. Atravs da linguagem, um simples povoado ou uma nao inteira podem

    expressar sua maneira de pensar e consequentemente, atuar enquanto sujeitos histricos. Entre

    as populaes indgenas, de modo geral, a linguagem ganha fora e tem um especial

    significado atravs da oralidade (ROSA, 2009, p. 37).

    Fortemente enraizados na tradio oral, os povos indgenas, sobretudo na Amrica do

    Sul, elaboraram ao longo dos tempos, complexos sistemas polticos e hierrquicos que tem na

    oratria a sua mola mestra. As palavras tm fora de lei e so sinnimos de poder poltico e

    religioso. atravs da lngua que so passados, de gerao em gerao todos os preceitos

    bsicos de cada sociedade indgena, como a identidade, os costumes, o modo de ser e, porque

    no, as formas de sobrevivncia (Ibid., p. 38). A oralidade continua a ser ainda na atualidade, a

    modalidade primria de transmisso e obteno de cultura para muitos grupos tnicos em diversas

    partes do mundo.

    Bartomeu Meli afirma que as violncias, as perseguies, as ameaas, as redues, e

    tambm as alianas, os contratos, o acordos de paz tm passado pela lngua e na lngua tm

    deixado sua marca. O estado no qual se encontram essas lnguas na Amrica um dos

    melhores indicadores do que tem ocorrido com as sociedades americanas (MELI, 1992, p.

    80). Desde os primrdios do contato entre europeus e indgenas, os primeiros empenharam-se

    em desapropriar os nativos desta importante cultura imaterial. Ao escravizar ndios para o

    trabalho na lavoura, por exemplo, era incentivada a separao entre diferentes grupos para que

    os mesmos no conspirassem contra seus senhores. Nas redues e misses religiosas, a

    expropriao da lngua acontecia na forma de ensinamentos da leitura e escrita em lngua

    ocidental.

    Neste longo processo, muitas lnguas indgenas acabaram sendo extintas. As que

    permaneceram, salvo raras excees, encontram-se bastante dissolvidas de seu sentido

    original, isto , perdeu-se muito da associao cosmolgica entre a palavra a compreenso do

    mundo existente em seu sentido tradicional. H certamente explicaes para isso. Uma delas

    refere-se ao fato de muitos indgenas obrigarem-se a assumir funes dentro ou fora das

    aldeias que exigem um contato direto e sistemtico com a sociedade nacional envolvente.

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    Dessa forma, muitos indgenas preferem esquecer sua lngua materna, aderindo ao idioma

    dominante. Fato este, frequentemente motivado pelo preconceito que sofrem ao expressarem-

    se em seu dialeto. De acordo com Talita Salvaro, no caso dos Kaingang da regio oeste de

    Santa Catarina, fatores que se agregam miscigenao, ao contato da aldeia com os centros

    urbanos e principalmente devido a geraes que no aprenderam a lngua, fazem com que a

    mesma no seja repassada para seus filhos (SALVARO, 2009, p. 52).

    Ao perderem sua lngua, as populaes indgenas esto condenadas tambm a perder

    seus conhecimentos tradicionais, em regra passados pelos velhos, os quais geralmente no

    lem e muito menos escrevem seus conhecimentos. Por mais que exista um esforo de

    registrar atravs de livros e vdeos os aspectos fundamentais das culturas indgenas, estes

    inevitavelmente passam por redefinies e releituras que acabam tolhendo o ethos do grupo.

    As conscincias individuais de pertencimento so abaladas, ameaando seriamente a

    autonomia cultural e causando um profundo desequilbrio na vida social dos indgenas.

    Histria Oral e Histria Indgena

    Mas o que os historiadores esto fazendo para registrar a histria indgena? Durante

    um longo perodo, aquilo que se convencionou chamar de histria indgena no Brasil, foi

    registrado atravs de fontes documentais, primrias ou secundrias. Estes registros raramente

    foram produzidos por indgenas, sendo, em sua grande maioria, documentos produzidos por

    funcionrios de instituies governamentais ou rgos privados, cujos contedos abordam as

    mais diversas temticas: conflito, questes de terras, agricultura, foras militares, escravido,

    etc. Nesta documentao, quase sempre, a viso colonialista ou paternalista impera em suas

    linhas. No que tange s anlises historiogrficas destas fontes, por mais que se tenha atribudo

    um olhar crtico e analtico sobre as mesmas, no so raros os juzos de valor praticados,

    onde, muitas vezes, o etnocentrismo acaba contaminando as auto-intituladas imparciais

    narrativas.

    Por outro lado, o processo de reduo escrita das lnguas indgenas e a alfabetizao

    de indgenas em lnguas ocidentais uma realidade na atualidade e acarretam uma srie de

    implicaes, incluindo a a produo de textos diversos e o registro escrito da memria dos

    grupos. Segundo Thiago Cavalcante, esta caracterstica altera significativamente o conjunto

    de registros que podem ser tomados como fontes para a escrita da histria dessas populaes

    (CAVALCANTE, 2011, p. 351). O que precisamos compreender deste processo, que

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    mesmo tendo diminudo a sua preponderncia, a oralidade no desaparece por completo do

    horizonte das populaes indgenas. Mesmo para as populaes mais atingidas pelos ideais

    centralizadores da cultura ocidental, ela continua importante para manuteno do

    pertencimento indgena a um grupo ou uma comunidade.

    Ao longo dos ltimos 30 anos, a produo historiogrfica tem buscado dar visibilidade

    para as parcelas excludas historicamente das produes bibliogrficas e documentais. Dessa

    maneira, vem se destacando a importncia de dar voz aos indivduos margem das elites

    poltico-econmicas. Nessa procura por agentes sociais, que atuam, modelam e modificam a

    estrutura social e econmica da realidade so notrios os avanos metodolgicos que

    proporcionam novas percepes e descobertas (ANTUNES, 2003, p. 108). O surgimento de

    novas abordagens para a interpretao histrica, contribuiu para modificar conceitos terico-

    metodolgicos tradicionais e ampliar as possibilidades de anlise das narrativas sobre o

    passado.

    Neste sentido, a Histria Oral surge nesta corrente para romper paradigmas e dar voz

    aos indivduos menos privilegiados e socialmente excludos, permitindo por um lado uma

    maior abertura compreenso da temtica estudada, e por outro, propiciando aos

    historiadores desvelar novos olhares a temas especficos. No que concerne s pesquisas

    entre comunidades indgenas, a Histria Oral vai ganhar fora a partir de 1988, aps a

    promulgao da Constituio Federal, que garantiu vrios direitos aos povos indgenas

    brasileiros, especialmente o direito aos seus territrios tradicionais, gerando grande demanda

    e valorizao das pesquisas diacrnicas sobre os remanescentes indgenas no pas. Isso

    conduz, inevitavelmente, a reflexes sobre a relevncia social das pesquisas, bem como a uma

    necessria tica que deve estar sempre presente nas preocupaes do pesquisador (2011, Op.

    cit. p. 352).

    Dessa maneira, redutos que antes eram campos privilegiados de antroplogos e

    etnlogos, as aldeias indgenas passaram a ser invadidas tambm por historiadores e

    etnohistoriadores, os quais, tal como os turistas do conto de Pierre Clastres, muniram-se de

    equipamentos eletrnicos em busca do relato dos nativos. justamente neste momento que

    muitos destes pesquisadores esbarram em obstculos e desafios que se mostram extremamente

    complexos e por vezes intransponveis. Referimo-nos questes como a lngua, as diferenas

    culturais, o poder institudo pelas chefias, os tabus, etc. Na sequncia, apresentamos alguns

    desses desafios que permeiam as experincias nas aldeias e obstam o trabalho e as anlises

    dos historiadores.

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    Primeiramente, destacamos o obstculo da fala, que, se no se apresenta como o

    principal, torna-se um importante manancial de incongruncias e anlises precipitadas por

    parte de muitos historiadores, quando os mesmos se propem a entrevistar os velhos

    indgenas. Ressaltamos este ponto, principalmente a partir de nossa experincia com os velhos

    das comunidades indgenas Kaingang e Guarani de Santa Catarina. Geralmente bilngues, os

    velhos indgenas destes grupos, muitas vezes, tem bastante dificuldade de articular o seu

    pensamento fala, visto que articulam mentalmente suas ideias em sua lngua materna e as

    proferem na lngua corrente da sociedade nacional.

    Neste sentido, muitos deles acabam desenvolvendo argumentos que se mostram, no

    raro, confusos ou mesmo incompreensveis para a maioria dos pesquisadores, que tendem a

    excluir a subjetividade dos fatos narrados, por privilegiarem apenas os recortes

    compreensveis das suas narrativas. Sobre este aspecto, chamamos a ateno aqui para os

    argumentos de Alessandro Portelli, quando este afirma que narrar j interpretar, e o

    historiador, ao excluir ou exorcizar a subjetividade como se fosse somente uma fastidiosa

    interferncia na objetividade factual do testemunho, em ltima instncia, est distorcendo o

    significado prprio dos fatos narrados (PORTELLI, 1996, p. 60). Portanto, ao selecionar

    apenas o que se compreende da fala dos velhos, sem contextualizar seus cdigos, seus limites,

    suas falhas, o historiador est condenado a escrever apenas uma parte da histria que se

    props inicialmente.

    Circunscrita fala, est a relao com a cultura, que no caso das populaes indgenas

    transcorre por um vasto processo dinmico de formao cultural, que torna o seu mundo

    denso de significados nem fixos, nem finais, nem nicos (ZALUAR, 1985, p. 50 In:

    MONENEGRO, 2007, p. 39). O historiador, muitas vezes, no domina estes cdigos sociais e

    acaba idealizando situaes do passado nem sempre presentes no imaginrio nativo. Situaes

    de resistncia, de lutas, de defesas de ideias deixam suas marcas dentro dos grupos, mas nem

    sempre fazem ou fizeram parte da realidade de todos os indivduos pertencentes a eles.

    Mesmo nas sociedades indgenas, no h uma homogeneidade de conceitos. A situao de

    risco constante e iminente frequentemente idealizada pelo pesquisador que busca comprovar

    suas hipteses de trabalho.

    necessrio atentar para o fato de que, quando irromperam as polticas de assimilao

    e aculturao dos rgos governamentais sobre as populaes indgenas, nem sempre a

    resistncia a ela foi aberta e constante. Certamente ocorreram os casos de conformismo,

    submisso e colaborao aos preceitos do Estado no que concerne s polticas indigenistas.

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    Todavia, no so todos os narradores que tem a coragem de afirmar isso em seus relatos.

    Cabe ao historiador, portanto, no cair na armadilha da fala oficial e compreender que h

    uma outra fala, uma outra maneira de se comportar do que a historicamente instituda, uma

    outra lgica que rege os pensamentos dos indivduos.

    Neste momento, deve-se atentar tambm para um outro obstculo: a relao da fala

    com o poder. Em sociedades onde o poder institudo familiarmente e de maneira patriarcal,

    no so todos que detm o poder de falar. De acordo com Pierre Clastres, falar antes de tudo

    deter o poder de falar (CLASTRES, 2003, p. 170). E como nem todos os entrevistados

    participam do crculo de poder dentro das aldeias, suas falas sofrem uma autocensura de

    acordo com os padres estabelecidos por quem detm o poder. No caso das aldeias Kaingang,

    o poder encontra-se nas mos do cacique geral e seus comandados (que recebem as patentes

    de capito, major, cabo, etc., j por si s uma aluso aos preceitos disciplinadores da

    hierarquia militar) que exercem o poder legislativo e executivo dentro das comunidades.

    Raramente as narrativas dos entrevistados contestam ou condenam alguma ao do cacique.

    Da mesma forma, o poder exercido pelos chefes de posto durante o regime do Servio

    de Proteo aos ndios (SPI)3 tambm raramente contestado nas falas dos velhos. Nem

    mesmo quando a atividade de produo se transforma em trabalho alienado, contabilizado e

    imposto pelo rgo federal tem-se uma manifestao contrria nos discursos dos que

    passaram por este perodo. Como explicar isso? Poderamos pensar, maneira de Clastres,

    que os velhos Kaingang pararam de exorcizar aquilo que est destinado a viver e morrer com

    eles: o poder e o respeito ao poder (Ibid, p. 216). Ou ainda, que eles preferem reprimir de sua

    memria as lembranas de um momento to difcil, guardando e revelando apenas os aspectos

    positivos que em sua opinio so os mais importantes de serem rememorados.

    Cabe, portanto, ao historiador, um esforo na definio de sua metodologia no que diz

    respeito coleta destas narrativas e o seu consequente emprego nas suas produes textuais,

    buscando, alm de reforar sua argumentao, fugir da tentao de tomar o depoimento como

    3 O Servio de Proteo aos ndios (SPI) foi criado atravs do Decreto n 8.072 de 20 de junho de 1910, tendo por objetivo prestar assistncia a toda populao indgena remanescente do Brasil. Entre seus objetivos estava a assistncia leiga, cuja meta era afastar o predomnio da Igreja Catlica na catequese e civilizao dos indgenas. A orientao deste projeto se dava atravs da idia de transitoriedade do ndio, cuja finalidade estava em transformar o ndio num trabalhador nacional. Para isso, seriam adotados mtodos e tcnicas educacionais controlando esse processo, baseado em mecanismos de homogeneizao e nacionalizao dos povos indgenas. O SPI assume a responsabilidade pela tutela das reas indgenas de Nonoai e Xapec somente a partir de 1941, atuando at sua extino em 1967, quando a FUNAI assume a responsabilidade sobre os ndios brasileiros. Para maiores informaes, vide: OLIVEIRA FILHO, 1987; LIMA, 1987, 1995; GAGLIARDI, 1989; FREIRE, 2005, 2007.

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    verdade em si. importante salientar este aspecto, pois, como lembra Durval Muniz de

    Albuquerque Junior, a identificao entre o sujeito e o objeto de pesquisa, no caso da Histria

    Oral, tem acarretado muitas vezes uma reificao da memria dos entrevistados onde o

    discurso dos indivduos so tomados como uma totalidade fechada em si mesma

    (ALBUQUERQUE JR, 2007, p. 200). No incomum encontrar narrativas apaixonadas e

    apaixonantes sobre histria indgena, em que o historiador que as escreveu despe-se de sua

    neutralidade e assume o papel de defensor implacvel da manuteno dos costumes e

    tradies do povo estudado, mesmo que o prprio povo j tenha esquecido ou recusado as

    suas antigas caractersticas culturais.

    Neste sentido, torna-se extremamente complicado para o historiador formular

    perguntas para seus entrevistados, dependendo de seu tema e do povo estudado. Muitas vezes,

    e aqui encontramos um outro obstculo, esbarra-se em questes compreendidas como

    verdadeiros tabus para o grupo. Alm das relaes de poder j destacadas, confronta-se com

    questes delicadas, tais como os arrendamentos de terras para no indgenas, fenmeno

    comum nas Terras Indgenas Kaingang desde o tempo do SPI, tanto no Rio Grande do Sul,

    quanto em Santa Catarina, cujos meandros so discutidos estritamente entre os interessados.

    Temas mais atuais como o alcoolismo e drogas so igualmente abafados nas conversas

    informais e entrevistas. O historiador fica ento em uma encruzilhada com relao aos seus

    cdigos de comportamento profissional. Ou insiste em desvendar os tabus, correndo o risco

    de ter seu trabalho repudiado pelos entrevistados e pela comunidade, ou abandona seu tema e

    parte para outras questes menos polmicas.

    Neste sentido, Alessandro Portelli traz uma importante reflexo sobre os princpios

    ticos especficos relacionados Histria Oral, quando afirma que os historiadores orais tm

    a responsabilidade no s de obedecer a normas confiveis, quando coligem informaes,

    como tambm de respeit-las quando chegam a concluses e fazem interpretaes

    correspondam ou no aos seus desejos e expectativas (PORTELLI, 1997, p. 13).

    Destarte, os Kaingang, assim como alguns outros grupos indgenas no Brasil, ainda

    possuem um imaginrio social amplo, construdo e reconstrudo de acordo com as suas

    caractersticas culturais e pelas relaes estabelecidas de distintas formas com a sociedade

    nacional. Devemos ter clara esta ideia, pois ao trabalhar com a memria do grupo, vamos nos

    deparar com situaes que no so meros reflexos de uma realidade, mas sim, parte

    constituinte da formao e construo desta realidade. No que se refere memria do grupo,

    portanto, preciso ter clara a ideia de que esse passado no est (mais) dentro deles, como

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    uma memria fixa, mas se move dentro de uma memria mundo, onde os indivduos se

    situam numa ordem geral, aprendendo a se pensar a si mesmos nesse passado coletivo,

    ligando-se ao mundo que o cerca (ENGE, 2008, p. 191).

    Memria e estranhamento: a relao pesquisador/pesquisado

    Compreendemos que a prtica da Histria Oral exige do pesquisador, necessariamente,

    certos cuidados metodolgicos e comportamento tico na leitura e na interpretao das

    narrativas coletadas e registradas, independentemente de grupo tnico, padres culturais,

    estruturas sociais e processos histricos que ele esteja estudando. Tais cuidados, por

    conseguinte, devem ser observados sempre na relao historiador/narrador, independente de

    tratar-se do contexto de uma sociedade indgena ou de uma sociedade no indgena.

    Contudo, se fazer Histria Oral dar voz e dialogar com o outro, de acordo com

    Edinaldo Freitas, fazer Histria Oral indgena ento, realizar esta tarefa de maneira mais

    profunda possvel, pois se trata de contatar o outro no sentido pleno da conceituao cultural

    (FREITAS, 2004, p. 187). Neste sentido, natural que os historiadores que praticam a

    metodologia da Histria Oral junto a comunidades indgenas, tenham inicialmente uma

    sensao de estranhamento ao deparar-se com determinadas situaes especficas. Todavia,

    este estranhamento no parte apenas de si, mas tambm (e sobretudo), parte dos indivduos

    que se est entrevistando e toda sua rede de relaes.

    A relao observador/observado parte das duas frentes e, por mais que se esforce, o

    historiador, pelo simples fato de no pertencer quele grupo tnico e, principalmente, por ser

    pertencente ao grupo considerado opressor, usurpador de terras e exterminador de seus

    antepassados, sofre para pr-se em um mesmo patamar que o seu entrevistado. H uma forte

    tendncia, em muitos casos, de os ndios, especialmente os mais velhos, se inferiorizarem

    frente ao no ndio, por serem em geral analfabetos, morarem em casas humildes, dependerem

    de programas assistenciais do governo etc., o que faz com que pensem que no tem muito

    com o que colaborar. Esta inferiorizao maior quando no se tem muito contato ou no se

    conhece o outro, o estranho. As perguntas, quando se referem a um sistema simblico ou

    categorias culturais estabelecidas socialmente, muitas vezes coloca o entrevistado em uma

    situao constrangedora onde ele fica em uma verdadeira encruzilhada, sem saber se deve

    revelar ou no alguns dos valores considerados importantes demais para compartilhar com um

    estranho.

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    Dessa forma, para analisar, compreender e descrever os fenmenos histricos que se

    sucederam com determinado grupo indgena atravs da metodologia da Histria Oral, torna-se

    imprescindvel alm da visita aldeia, vivenciar sua realidade e suas dificuldades, suas

    tristezas e suas alegrias, os mitos e os tabus que fazem parte do cotidiano das pessoas. Ir

    aldeia, na concepo de Freitas, tarefa de um pesquisador consciente do contato com este

    outro ndio, sendo necessrio compreender os limites e as dimenses que a sua cultura

    impe ao depoimento do indivduo. Se a inteno deixar falar o ndio, h de se saber o que

    este fala, de onde fala, as circunstncias e os entraves que rodeiam esse ato (Ibid. p. 188). Se

    esta observao pode ser estendida para os demais campos da pesquisa em Histria Oral, no

    que se refere pesquisa com os grupos indgenas, estas especificidades se tornam muito mais

    latentes.

    H algumas barreiras que contribuem ainda mais para o estranhamento entre os

    pesquisadores e seus entrevistados, com destaque para o isolamento de certas aldeias, para as

    polticas internas especficas de cada comunidade e a existncia de indivduos e instituies

    no indgenas, que muitas vezes controlam a entrada e as atividades de pesquisadores nas

    reas indgenas4. No contexto de nossa pesquisa com os Kaingang da Terra Indgena Xapec

    (SC) e da Terra Indgena de Nonoai (RS), o principal entrave para as entrevistas a adaptao

    poltica interna destas comunidades. Nas duas Terras Indgenas pesquisadas, quem detm o

    poder so os caciques gerais, e so eles que autorizam ou impedem as pesquisas em suas

    comunidades.

    Estas e outras questes que surgem no contexto de uma aldeia indgena so em parte

    semelhantes ao que acontece em outros contextos onde h uma memria reprimida, um medo

    latente de se falar, de ser ouvido. Por isso, importante que o pesquisador saiba respeitar, mas

    tambm saiba trabalhar dentro destes limites, pois dentro deles que ter que desenvolver seu

    ofcio, onde as regras do jogo nem sempre so lanadas por si. Esta relao supe um jogo

    de alianas e negociaes nas quais o pesquisador, a partir do momento em que se introduz

    nesse espao, passa, direta ou indiretamente, a ser parte das relaes de poder que ento se

    criam ou se manifestam (ALONSO, 2001, p. 126).

    No so raros os casos onde o pesquisador tem que cumprir alguns deveres e efetuar

    certas negociaes para poder desenvolver seus estudos no interior das comunidades

    indgenas. Entre os deveres, o mais importante o dever poltico, que se refere conversa

    4 Geralmente representam estas modalidades os rgos de assitncia do governo (FUNAI, FUNASA) e instituies religiosas.

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    com o cacique, na qual o pesquisador explica para o mesmo os objetivos de sua pesquisa,

    aonde quer chegar e de que forma pretende fazer isso. Quase sempre h a anuncia da

    liderana, quando o mesmo reconhece na pesquisa aspectos de interesse para a comunidade.

    No raro, porm, o cacique decidir quem pode e quem no pode conceder a entrevista.

    O segundo aspecto importante a negociao com o entrevistado ou com sua famlia,

    pois, quase sempre o entrevistado s concede a entrevista com o acompanhamento de algum

    membro da famlia. No so raros os casos onde se pedem alguns favores em troca das

    entrevistas. Geralmente estes favores consistem em doao de alimentos, roupas, remdios ou

    mesmo algum dinheiro. Este aspecto perfeitamente compreensvel, pois, tendo em vista a

    situao precria da maior parte das comunidades indgenas brasileiras, muitas famlias

    aproveitam todas as oportunidades possveis para obter algum tipo de contrapartida.

    Nestas duas situaes, cabe ao historiador eleger as estratgias de ao. sua opo

    aceitar ou no as exigncias dos caciques ou das famlias, mesmo correndo o risco de

    comprometer seriamente seus objetivos, caso contrarie as normas impostas. Com relao aos

    pedidos, Freitas acentua uma caracterstica presente entre praticamente todos os grupos

    indgenas. Trata-se da reciprocidade, um termo antropolgico cunhado para explicar o

    hbito das antigas populaes indgenas de presentearem-se entre si e adaptado para as

    mudanas culturais originadas com o contato. Segundo o autor, o visitante evitar

    constrangimentos ao se prevenir portando alguns brindes costumeiramente oferecidos (2004,

    p. 189.)

    Este pode ser considerado mais um caso de estranhamento, sobretudo pelo fato de no

    ser habitual na relao entre entrevistado e entrevistador, no caso de Histria Oral, o

    oferecimento de presentes, o que poderia conotar um sentimento de compra de informao,

    ou uma tentativa de cooptar o entrevistado para que ele oferea mais detalhes sobre

    determinada informao considerada importante. Penso, entretanto, que sem ferir os

    princpios ticos da Histria Oral, o fato presentear algum para estabelecer uma relao de

    cordialidade, de respeito e com o intuito de criar uma igualdade de posio entre pesquisador

    e narrador, , antes de tudo, uma questo de educao. Este fato no quer dizer,

    absolutamente, que se trate de indivduos completamente corrompidos pelo dinheiro, e, ao

    contrrio do que afirma o exaltado turista do conto de Clastres, h, quase sempre, a

    possibilidade de se negociar.

    Consideraes Finais

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    Quando se solicita autorizao para fazer uma pesquisa histrica em alguma aldeia

    indgena, comum ouvir o seguinte questionamento: de que forma esse estudo vai contribuir

    para a melhoria das condies de vida de nossa comunidade? Tal pergunta, feita geralmente

    pelo cacique ou alguma outra liderana local, tem seu embasamento, pois no so poucos os

    pesquisadores que se utilizam de dados e informaes coletados durante seu trabalho de

    campo, e depois simplesmente desaparecem, sem ao menos justificar onde e como as

    contribuies dos indgenas esto sendo utilizadas. neste ponto que entramos na questo da

    restituio.

    Para Portelli, a tica da restituio, no caso da Histria Oral, no significa apenas

    devolver as fitas, as transcries ou publicaes, pois estes conhecimentos a comunidade j

    dispe. A verdadeira contribuio que o historiador pode prestar comunidade consiste em

    fazer com que sua voz seja ouvida, lev-la para fora, em por fim sua sensao de

    isolamento e impotncia, em conseguir que o seu discurso chegue a outras pessoas e

    comunidades (PORTELLI, op cit., 1997, p. 31). Todavia, muitas vezes apenas isso no basta

    para satisfazer os anseios de uma comunidade. Nestes casos, os estudos histricos, quer sejam

    eles produzidos pela academia ou pelos grupos tcnicos dos rgos indigenistas oficiais, so

    muito importantes pois podem servir para dar suporte aos tcnicos do governo ou de

    organizaes no governamentais na elaborao dos relatrios de identificao de territrios

    indgenas. As narrativas orais e documentais podem tambm ser utilizadas durante a

    realizao de percias solicitadas pelo poder judicirio em causas envolvendo direitos

    individuais e/ou coletivos de indgenas.

    Podemos pensar esta relao enquanto uma troca, onde esto presentes os desejos

    implcitos de pesquisador e pesquisado. Porm, necessrio ter cuidado com esta relao de

    troca, pois ao unir ambos atravs de vnculos de dependncia, o pesquisador pode ser

    compelido a resolver certos conflitos que no est em sua alada, o que pode comprometer as

    relaes futuras com o grupo pesquisado. Muitas vezes difcil separar o trabalho cientfico

    do trabalho poltico, pois o conhecimento da realidade social de um indivduo ou de uma

    comunidade pode manifestar, consciente ou inconscientemente, uma vontade de intervir,

    como se a obrigao j no viesse mais das exigncias do grupo, mas, partisse da prpria

    experincia e vontade do pesquisador (ALONSO, op. cit., pp. 144-145).

    Para finalizar, acredito que em um contexto geral, a elaborao de perguntas e

    respostas histricas (cuja pretenso ampliar a rede de fontes para a histria local e regional)

    fortalecida atravs da coleta de depoimentos dos indgenas. Isto porque ao fornecer

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    subsdios para afirmar o papel dos mesmos enquanto agentes histricos e sociais e no apenas

    como vtimas passivas de uma passado (ou presente) de explorao, j se est de alguma

    forma influenciando poltica e sociologicamente. Trata-se assim, em nossa concepo, de um

    compromisso tico-profissional que, felizmente, vem sendo cada vez mais reforado no

    Brasil, dada a relevncia social que a pesquisa em histria indgena vem adquirindo nos

    ltimos anos.

    Refletir historicamente acerca de comunidades indgenas pode contribuir para que

    possamos refletir sobre as caractersticas de nossa prpria sociedade. A distncia cultural que

    temos de nosso objeto de pesquisa nem sempre to grande assim. A questo que no

    podemos avali-los em relao a ns mesmos, deve-se buscar o entendimento do campo das

    relaes polticas e culturais de cada um e considerar as estratgias dos indivduos que as

    produzem. Dessa forma, aprendemos com a pesquisa entre as sociedades indgenas, que no

    se trata de avaliar se seu modo de vida pior ou melhor que o nosso, se sua cultura inferior

    ou superior cultura no ndia, mas sim, reconhecer que temos muito que aprender com sua

    trajetria de lutas, de resistncia, de negociaes e de alianas. Neste sentido, a histria

    indgena torna-se mais desafiadora e instigante quando so os prprios ndios que a revelam.

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    Recebido em 07 de julho de 2012 Aprovado em 07 de novembro de 2012