hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda

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    SRIE ANTROPOLOGIA

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    HBITOS E IDEOLOGIAS ALIMENTARESEM GRUPOS SOCIAIS DE BAIXA RENDA:

    RELATRIO FINAL

    Klaas Woortmann

    Braslia1978

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    Hbitos e Ideologias Alimentares em Grupos Sociais de Baixa RendaRelatrio Final

    Klaas Woortmann

    Introduo

    De meados de 1975 a fins de 1976 realizou-se um conjunto de pesquisa decampo sobre o tema Hbitos e Ideologias Alimentares em Grupos Sociais de BaixaRenda. Tal programa de investigaes tomou corpo atravs de um convnio entre asUniversidades de Braslia e Federal do Rio de Janeiro, e a FINEP (Financiadora de

    Estudos e Projetos), qual coube o financiamento do referido programa.Realizaram-se onze pesquisas de campo com grupos sociais rurais e urbanos, nas

    regies Amaznica, Nordeste, Centro Oeste e Leste, abrangendo camponesesindependentes em regies de fronteiras, diferentemente alcanados pela expansocapitalista e pelo mercado de terras; parceiros agrcolas em processo de proletarizao;

    pescadores com tecnologia e processos de produo do tipo chamado artesanal;pequenos produtores agrcolas de produtos comerciais, ainda camponeses, etrabalhadores urbanos (migrantes ou no). No obstante no estarem representadoscertos grupos sociais, como o dos bia-fria plenamente constitudo (que, no entanto,surgem tendencialmente no estudo dos parceiros urbanizados de Gois), o conjunto de

    pesquisas cobriu uma gama significativa de situaes histrico-sociais, desde ocampons de fronteira at o proletrio urbano. Dos estudos realizados, quatrofocalizaram grupos camponeses em diferentes situaes de relacionamento com omercado; quatro outros enfocaram grupos de trabalhadores urbanos de origem rural;dois outros enfocaram comunidades de pescadores, das quais uma em processo dedesagregao, e um estudo abordou um grupo de parceiros em vias de proletarizao.

    No se imps aos pesquisadores nem a seleo de rea ou do grupo social a serestudado, nem qualquer esquema rgido de observao ou anlise. Julgou-se mais

    produtivo que cada pesquisador, ou grupo de pesquisadores, realizasse seu estudo compopulaes ou em reas com as quais j possusse certa familiaridade ou experinciaprvia. Por outro lado, permitiu-se a cada um enfocar o tema geral da forma que lhe

    parecesse mais adequada, e de forma a permitir que cada situao projetasse suaespecificidade no conjunto de investigaes. Assim, enquanto alguns relatrios derammaior nfase aos aspectos cognitivos e simblicos da relao percebida entre o alimentoe o organismo humano, outras enfatizaram a lgica da produo camponesa em suasrelaes com o mercado e as estratgias desenvolvidas para assegurar padres definidosde subsistncia e construir projetos de asceno social. Outros, ainda, puseram nfasenas relaes entre padres de consumo e identidades operrias. A diversidade deabordagens, ao contrrio do que poderia parecer primeira vista, no prejudicou o

    programa de pesquisas como conjunto comparvel. Tal diversidade responde complexidade de situaes concretas encontradas, preferindo-se enfatizar as respostasespecficas a condies naturais e sociais que determinam a dinmica dos hbitos

    alimentares.

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    As pesquisas de campo que compuseram o conjunto de estudos so as que seseguem:

    Tatiana Lins e Silva Os Curupira Foram Embora (regio de

    Santarm, Par).

    Maria Emlia Lisboa Pacheco Circuitos de Mercado e Padres deConsumo Alimentar entre Camponeses de Origem Cearense numaRegio do Par (regio de Santarm, Par).

    Maria Hortense Ferro Costa Mercier Padres Alimentares de umGrupo Campons numa Situao de Expropriao no Estado doMaranho (regio do Vale do Mdio Mearim, Maranho).

    Eliane Cantarino ODwyer Gonalves Bastos - Lavoura Branca para

    o Gasto ou Laranja para Vender? Hbitos Alimentares de Produtoresde Laranja no Estado do Rio de Janeiro .

    Maria Cristina de Melo Marin Emprego e Servio: Estratgias deTrabalho e Consumo entre Operrios de Campina Grande (Paraba) .

    Jane Souto de Oliveira Hbitos e Padres Alimentares de umGrupo Operrio do Rio de Janeiro (Cidade do Rio de Janeiro).

    Carlos Rodrigues Brando Hbitos de Comida em Mossmedes(regio do Mato Grosso de Gois).

    Heraldo Maus & Maria Anglica Mota Maus Hbitos eIdeologias Alimentares numa comunidade de Pescadores (regio deVigia, Par).

    Martin A. de Ibez-Novion Antomo-Fisiologia Popular eAlimentao na Mulher e no Binmio Me-Filho (Cidade Satlite deSobradinho, DF).

    Maria das Graas Tavares Um Estudo do Processo de Mudana de

    Hbitos Alimentares (Belo Horizonte, Minas Gerais).Maria Stella Amorim Padres Alimentares num Grupo dePescadores em Situao de Expropriao (regio de Maric, Estadodo Rio de Janeiro).

    O conjunto das seis primeiras pesquisas de campo acima relacionadas foicoordenado pelo Dr. Otvio Guilherme Velho, do Departamento de Antropologia doMuseu Nacional e Coordenador de seu Programa de Ps-Graduao em AntropologiaSocial, ao qual coube redigir guisa de introduo, penetrante anlise dos problemastericos levantados por aquelas pesquisas. Enquanto os estudos do grupo de

    pesquisadores do Museu Nacional privilegiou a anlise das relaes entre condies deproduo e padres de consumo, o conjunto das cinco ltimas pesquisas, coordenadas

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    pelo autor deste relatrio, enfatizou a percepo cognitiva e simblica do alimento, semtodavia descuidar da anlise das condies de acesso ao mesmo. As diversas posiesocupadas em diferentes sistemas de produo implicam, como se ver, diferentesestratgias de consumo e, por isso, diferentes hbitos alimentares, entendendo-se por

    essa ltima expresso, no somente os alimentos habitualmente consumidos, mastambm as condies que fazem com que sejam habituais e consumidos: condies deacesso natureza, ao emprego e ao mercado. Haver, sob esse ponto de vista,considervel variao de padres alimentares.

    Mas, por outro lado, o alimento algo representado, isto , apreendidocognitiva e ideologicamente. Nem tudo que pode ser comido, ou que possa constituiralimento, percebido como tal. Ademais, o comer no satisfaz apenas a necessidades

    biolgicas, mas preenche tambm funes simblicas e sociais. Por isso, define-se aquipor ideologias alimentares, um sistema cognitivo e simblico que define qualidades epropriedades dos alimentos e dos que se alimentam, qualidades e propriedades essas quetornam um alimento indicado ou contra-indicado em situaes especficas, que definem

    seu valor como alimento, em funo de um modelo pelo qual se conceitualiza a relaoentre o alimento e o organismo que o consome e que definem simbolicamente a posiosocial do indivduo. Se a dieta bsica varia de regio para regio, a depender,

    basicamente, das condies de acesso ao alimento, os estudos que so aqui sintetizadosparecem sugerir a existncia de um modelo ideolgico nico, a um determinado nvel deabstrao.

    O acesso ao alimento

    O conjunto de pesquisas de campo, cujos resultados so aqui comparados esintetizados, abrangem, de um lado, produtores rurais, e de outro, trabalhadoresurbanos. Entre os primeiros, distinguem-se produtores independentes, como aquelesestudados por Lins e Silva, Lisboa Pacheco e Costa Marcier na regio Amaznica (Pare Maranho) e por Gonalves Bastos no Estado do Rio de Janeiro, daqueles outros,subordinados s relaes de parceria, como o so os lavradores estudados por Brandoem Gois, ou os pescadores estudados por Maus & Maus no Par. Entre os segundosesto os operrios de Campina Grande, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte e doDistrito Federal, estudados respectivamente, por Melo Marin, Souto de Oliveira, PinhoTavares e Ibez-Novion.

    As condies de acesso ao alimento por parte dos meeiros e dos pescadores,ambos subordinados ao regime de parceria, so bastante diversas daquelas dos

    camponeses independentes, cujo acesso terra relativamente livre. Ainda que, nocaso dos pescadores, os recursos da natureza sejam formalmente livres o mar e seuspeixes para que o homem chegue a eles so necessrios certos meios, comoembarcaes e redes, inacessveis maioria. Por outro lado, para que o produto de seutrabalho chegue ao mercado, necessrio que se estabelea um sistema deintermediaes que se reflete, de forma direta, sobre os nveis de remunerao, ou derenda, do pescador. Assim, na prtica, o mar to fechado ao pescador como o aterra na fazenda onde labuta o lavrador.

    Supe-se, freqentemente, que o campons um agricultor de subsistnciaque comercializa seus excedentes de produo, sendo estes ltimos geralmentedefinidos como um excedente econmico. Tal conceituao parece inadequada, pois ela

    confunde uma categoria analtica -excedente econmico com outra, emprica, que sepoderia talvez chamar excedente fsico o volume, ou a quantidade de produtos

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    alimentares que excedem s necessidades de consumo da unidade familiar camponesa.Mas, como bem o demonstra o estudo de Lisboa Pacheco, mesmo essa ltima acepo incorreta. Por outro lado, a subsistncia do campons se realiza tanto pelo auto-consumocomo no mercado. apenas em parte que a reproduo da fora de trabalho camponesa

    se realiza pelo auto-consumo; com a comercializao de seus produtos o camponsapura uma renda monetria indispensvel sua subsistncia, inclusive para a compra dealimentos. Longe de se tratar de uma economia de subsistncia, a reproduo da forade trabalho camponesa depende de sua insero no mercado.

    Sem dvida, o campons produz um excedente, mas este no se confunde comaquilo que excede s suas necessidades de consumo. Trata-se de um excedente quelhe extrado no contexto das relaes de dominao social e econmica s quais subordinado.Trata-se pois, desde um ponto de vista estrutural, das relaes que seestabelecem entre um modo de produo subordinado e outro dominante, relaes essasem que se configura a auto-explorao da fora de trabalho camponesa. O campons,nesse contexto, se caracteriza como produtor de um sobretrabalho transferido, pela via

    do mercado, ao setor capitalista; em outras palavras, como um produtor de fatores deproduo excedentes. Se verdade que, em certas circunstncias, pode o camponsapropriar-se de um excedente a ser reinvestido em projetos de ascenso social, adepender dos diferentes circuitos de mercado que lhe so possibilitados, taiscircunstncias so raras, visto que, geralmente, a apropriao da renda diferencialgerada no feita necessariamente pelo campons, antes tende, em graus e formasvariveis segundo cada situao histrica concreta, a ser apropriada por outras classesou fraes de classe (Tavares dos Santos, 1975: 172).

    No caso do parceiro, lavrador ou pescador, o excedente ganha freqentementeoutro significado. Trata-se, aqui, da transferncia de um trabalho excedente ao

    proprietrio da terra, no caso do parceiro lavrador, ou dos meios de produo, no casodo pescador. A parte retida pelo produtor suficiente muitas vezes apenas para cobrir osgastos de subsistncia de sua famlia, seja pelo consumo direto, seja pela venda dos

    produtos no mercado, constituindo-se na remunerao de sua fora de trabalho.Tanto entre camponeses independentes quanto entre parceiros, lavradores ou

    pescadores, as condies de consumo e os padres alimentares esto estreitamenteligados s condies da produo e do mercado. No que se refere aos hbitosalimentares, a base dessa alimentao dada pelos produtos que compem a base daeconomia. A anlise de Pacheco, que focaliza um campesinato de fronteira contribui, deforma exemplar, para a elucidao do problema (ou falso problema) do excedentecampons e da oposio entre troca e subsistncia. Aqueles camponeses, migrantes

    cearenses estabelecidos na regio da Colnia de Santarm, produzemsimultaneamente para o mercado e para o auto-consumo, desenvolvendo, para tanto,estratgias determinadas de alocao de fora de trabalho (domstica) e de diferentestratos de terra. Tais estratgias so tornadas possveis pelo carter de alternatividade desua produo. Analisando criticamente a oposio entre produo de subsistncia e

    produo comercial, Pacheco explora a noo proposta por Garcia (1976) e mostra queo campons distribui os fatores de produo sob seu comando entre uma lavouracomercial-subsistncia e outra subsistncia-comercial, a primeira destinadafundamentalmente venda, mas tambm ao auto-consumo, e a segunda

    primordialmente a este ltimo, mas igualmente venda, particularmente em certosmomentos de preciso:

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    Se num dado momento os preos so compensatrios ocorre a venda de maiorparcela da produo, advindo da renda monetria necessria para atender asnecessidades de consumo. Quando da baixa de preos e concomitantementeexistindo por parte de unidade domstica uma reserva monetria para a aquisio

    dos bens necessrios que no so produzidos por ele, pode ocorrer retraotemporria na venda. Acrescente-se ainda que, em situaes de baixa de preoacompanhadas de insuficincia de reservas monetrias, pode lanar mo (oumesmo se v na iminncia) dos produtos destinados ao auto-consumo visando aaquisio de outros tambm necessrios, via circulao mercantil. (Pacheco,1976: 71).

    todavia importante ressaltar que, para esses camponeses, assim como para osparceiros tratados mais adiante, a base da alimentao e o componente central daideologia alimentar dada, no pela produo subsistncia-comercial mas, aocontrrio, pela produo comercial-subsistncia. Assim que aqueles cearense

    realizam uma readaptao ecolgico-econmica que se reflete, no plano dos hbitosalimentares, pela substituio do milho (base da alimentao no Nordeste) pelo arroz(base da produo destinada ao mercado no Par).

    Por outro lado pode aquele campons explorar tambm normas alternativas ecomplementares de circuitos comerciais (venda a comerciantes locais, comerciantesurbanos, na feira, etc). So diferentes circuitos de mercado aos quais correspondem, deum modo geral, os diferentes produtos cultivados: feira=produo subsistncia-comercial; comerciante=produo comercial-subsistncia), possibilidade essa noaberta, como se ver mais adiante, ao parceiro lavrador em Gois, ou ao pescador noPar. A explorao conjunta dessas duas ordens de alternatividade possibilita aocolono de Santarm no apenas assegurar sua subsistncia (inclusive pela inverso dodestino primordial do produto) como tambm realizar projetos de asceno social. Noentanto necessrio enfatizar, como o faz Pacheco, que o destino comercial quedetermina a alocao de recursos produtivos, configurando produtos principais tanto

    para a venda como para o consumo: a farinha-puba e o arroz so, ao mesmo tempo, osprincipais produtos para a venda e para o auto-consumo:

    ... um dos aspectos mais contundentes de alterao dos padres de consumoalimentar por ns observado na Colnia, refere-se a dois alimentos: a farinhade mandioca e o arroz. O primeiro produto integra a dieta alimentar doscolonos de forma marcante, estando presente nas trs refeies que tomam

    diariamente: a merenda (por volta da 9 ou 10 horas da manh); o almoo (entre12 e 13 horas) e a janta (por volta das 18 horas). Ao migrar para Santarm, afarinha de mandioca seca (preparada com a mandioca in natura), tipo defarinha que consumia no Cear, onde este alimento tambm se constitua emtem presente em sua dieta, substituda pela farinha puba (farinha preparadacom a mandioca deixada em infuso durante 4 dias). No momento de suachegada Colnia, o migrante cearense produz simultaneamente os dois tiposde farinha, sendo o primeiro destinado ao auto-consumo e o segundo comercializao. Com o passar do tempo, no entanto, fabrica apenas a farinha

    puba. Este o tipo tradicionalmente consumido pelos paraenses, no havendo,pois, lugar no mercado para a farinha seca.

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    No discurso dos colonos est presente, quando falam do passado no Cear, areferncia ao consumo em grandes propores do milho. Este o produto, namaioria das vezes, da lavoura comercial-subsistncia em seu Estado deorigem. Uma vez estabelecidos na Colnia este produto perde a posio de

    principalidade em termos de produo, sendo substitudo pelo arroz. O arroz o produto cuja demanda no municpio maior e alm disso detm melhorescondies de preo de mercado se comparado ao milho. A importncia dacomercializao do arroz reside no fato de que este produto proporciona aobteno de maior renda monetria. Cultivado em quantidades maiores, o arroz

    progressivamente passa a ter maior importncia no consumo. Neste sentido que podemos dizer que a produo produz o consumo, fornecendo-lhe amatria e fazendo nascer para o consumidor a necessidade do produto,colocado primeiramente para ele sob forma de objeto. (Pacheco, 1976: 96-97)

    Poderamos ento dizer que os hbitos alimentares obedecem a critrios de

    racionalidade econmica. A substituio da farinha seca e do milho pela farinha pubae pelo arroz para consumo, significa adequar este aos princpios de uma maximizaode retornos por unidade de fator empregada. Insistir no consumo daqueles produtoscearenses como base de uma dieta alimentar significaria dispersar os fatores de

    produo disposio do colono. Assim, racional tornar central dieta alimentaraquele produto que ocupa posio central nas relaes de mercado; em outras palavras,adequar o uso troca.

    Mas, se a produo determina o consumo, o campons resiste a cultivarprodutos de destinao exclusivamente comercial. No Noroeste de Minas Gerais opequeno lavrador recusa-se a alocar terra e trabalho ao cultivo de soja, pela sensatarazo de no poder comer soja. Tambm o lavrador de Mossmedes (Gois), enquantolhe possvel, procura distribuir seus recursos entre uma gama de produtos, de forma aminimizar sua dependncia face ao mercado. Ao colono de Santarm aberta a

    possibilidade do cultivo da malva, mas esta:

    ... requer a reserva de uma rea prpria para seu cultivo. Esta destinaoespecfica de uma faixa de terra estar na dependncia de ser assegurada aextenso necessria ao cultivo itinerante dos produtos que compem a dietaalimentar. Possuindo um terreno cujo tamanho no propicie a conjugao dalavoura comercial com as lavouras comercial-subsistncia e subsistncia-comercial a escolha recair sobre estas em detrimento daquela. Esta deciso

    reveladora das prprias condies de ameaa a que esto submetidos ospequenos produtores. Evidentemente, com as lavouras que se revestem docarter de alternatividade podem garantir diretamente uma faixa substancial deseu consumo. Com a lavoura comercial teriam que realizar o valor de sua

    produo no mercado e, com o dinheiro obtido, comprar os produtos socialmentenecessrios ao consumo, estando presente sempre o risco de que as mercadoriasno alcancem no mercado um preo compensador (Pacheco, 1976: 102).

    Ademais, dada a pequena disponibilidade de fora de trabalho na unidadedomstica, e a quase nenhuma disponibilidade de capital, a mobilizao do trabalho

    para uma cultura comercial (no caso da Colnia, a malva) poria em risco as duas

    outras modalidades de produo pela dificuldade em obedecer s exigncias de seu cicloagrcola (Cf. Pacheco, 1976: 103). Deve-se notar que, realizando seu consumo alimentar

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    em boa medida pela produo prpria, o pequeno lavrador aumenta as possibilidades derealizao, pela via do mercado, de outras formas de consumo, no menos importantes

    para sua reproduo como ser social.Outra estratgia foi observada entre os caboclos da mesma regio, isto , a

    populao regional nativa, ao dividirem seu esforo produtivo entre produtosdestinados apenas venda (malva e fumo; ltex em alguns poucos casos) e outros quetanto podem ser consumidos como vendidos ou trocados. Produtos ambos do roado,combinam-se na economia da unidade familiar com os recursos da mata (caa, pescae coleta) e da casa (horta e animais de terreiro) (Cf. Lins e Silva, 1978). Mas, de outrolado, a presena da mata, na natureza em si assim como no modelo ideolgico-cosmolgico do caboclo, distingue este ltimo do colono, cuja interao com anatureza parece bastante diversa (e talvez mais predatria). De fato, a mataconstitui um componente fundamental no equilbrio da economia do caboclo e de suadieta alimentar; mas tal equilbrio pressupe uma relao equilibrada entre o homem e anatureza, que se expressa ideologicamente pela noo de curupira, tal como analisada

    por Lins e Silva, assim como pela noo de panema, comum a todo o BaixoAmazonas, pois o caador que no respeita o princpio de uma utilizao equilibradados recursos da natureza corre o risco de ficar empanemado (Cf. Galvo, 1955).

    A estratgia do colono pode ser, tambm, comparada prtica produtiva dopequeno produtor de laranjas no Estado do Rio de Janeiro. Aqui o produtor tambmjoga com dois tipos de produo a lavoura branca e a laranja. As duas secomplementam e preenchem funes distintas: enquanto a primeira se destina a cobrir ogasto, a segunda se destina venda. Gasto, todavia, no se confunde com auto-consumo nem com subsistncia, ainda que atenda a ambos. Em parte a lavoura brancase destina ao prprio consumo da unidade domstica produtora, mas seu significado vai

    bastante alm:

    ... o gasto ... est sempre referido ao gasto das refeies dos membros do grupodomstico, ao gasto da prpria casa em termos de reposio dos utensliosdomsticos e ao gasto dos membros do grupo domstico com vestimentas eremdios em caso de doena de algum deles. Esse gasto atendido com a

    plantao de lavoura branca, que como a laranja tambm vendida (GonalvesBastos, 1975: 213).

    De outro lado, a laranja destina-se acumulao e ao investimento:

    O que est em jogo na oposio estabelecida pelos informantes entre laranjapara vender` e lavoura branca para o gasto` o fato da renda de cada um dessesprodutos terem destinaes especficas no clculo econmico do chefe do grupodomstico. O termo renda utilizado pelos pequenos plantadores de laranja paradesignar o produto obtido com a venda das lavouras plantadas nos seus stios,com o qual eles podem atender as necessidades de produo e consumo das suasunidades domsticas.

    ... a renda o resultado de uma estratgia pr-determinada pelo pai sobre osprodutos que devem ser plantados para atender as necessidades de sua unidadedomstica.

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    Os pequenos plantadores de laranja diferenciam a renda da lavoura branca e arenda da laranja, porque o produto que eles obtm com a venda da lavoura

    branca destinado ao gasto, enquanto o da laranja utilizado para crdito, isto ,para se comprar a prazo bens de consumo durveis como fogo, geladeira de

    querosene, mveis, bicicleta, com a condio de se pagar na ocasio da safra dalaranja. Nesse caso, como esses bens de consumo tm um preo mais elevadoque aqueles comprados com a renda da lavoura branca, eles so pagos naocasio da colheita da laranja e muitas vezes s depois de duas ou trs colheitas que a dvida saldada com o comerciante. Alm disso, a renda da laranja empregada para desenvolver o stio, construindo-se uma casa melhor, fazendo-se um pasto e comprando ou arrendando novas terras e ampliando a extenso delaranjeiras plantadas. Dessa forma a renda da laranja empregada no prpriostio, na sua ampliao ou na construo de benfeitorias.

    A renda da lavoura branca empregada tambm na despesa da lavoura - mo-

    de-obra eventual, adubo, instrumentos para o trabalho como enxada, foice e arenda da laranja tambm utilizada para isso. Entretanto a renda da laranja

    possibilita seu emprego na ampliao do seu prprio cultivo, o que determina oacrscimo da renda destinada melhoria do stio do pequeno produtor, enquantoa renda da lavoura branca circunscreve-se ao gasto da unidade domstica.

    Portanto, a formulao dos pequenos plantadores de laranja de que plantamlaranja para vendere lavoura branca para o gasto, diz respeito ao destino quedo renda de um e outro produto. A lavoura branca que sobra do gasto, refere-se ao que sobra da renda da lavoura branca utilizada para atender asnecessidades do gasto. Essa sobra recebe a mesma destinao da renda dalaranja, sendo usada para o pagamento de crdito, a compra de terras ouconstrues de benfeitorias e tambm convertida na criao de animais. Asobra do gasto de acordo com os pequenos produtores para vender, porque suadestinao igual da laranja, que na formulao deles tambm para vender(Gonalves Bastos, 1976: 216, 217, 218).

    J se v que para esses pequenos produtores a produo e as estratgiaseconmicas diferem algo do caso dos camponeses da Amaznia. Em maiores

    propores, a subsistncia se realiza no mercado; no entanto, a lavoura branca tambmaqui apresenta a caracterstica da alternatividade, sob a forma de uma produo

    comercial-subsistncia. No conjunto, h uma complementaridade entre uma lavoura quecobre certos nveis de subsistncia (alimentao e gastos correntes com a casa) e gastosoperacionais do empreendimento agrcola, e a produo de laranjas, que se destina ampliao tanto da empresa econmica como do prprio padro de consumo (aquisiode bens de consumo durveis).

    As condies de produo dos meeiros, pescadores e lavradores, estudados porMaus & Maus e por Brando, diferem bastante daquelas dos pequenos produtoresacima descritos. No se conclua, todavia, que todos os meeiros se defrontam comcondies iguais s desses pescadores e lavradores. Entre os plantadores de laranja doEstado do Rio de Janeiro existem desde produtores independentes at parceiros, mas asituao desses ltimos parece se aproximar mais dos camponeses independentes, no

    que se refere suas possibilidades e estratgias de subsistncia e de acumulao. Noso apenas as relaes de produo em seus aspectos formais que determinam padres

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    PESCA: MERCADO: DINHEIRO: HOMEM :: LAVOURA: CASA:TROCA NO MONETRIA: MULHER1

    Tal diviso de trabalho est intimamente ligada a um modelo cosmolgico e a

    representaes simblicas relativas mulher e ao homem, que, no entanto, no podemser aqui tratadas (Cf. Maus, 1977). O que importa ressaltar que tal oposiocomplementar reflete a relao mercado-subsistncia da produo camponesa.

    pela comercializao do peixe que o pescador obtm os meios bsicos de suasubsistncia social. Esta no se refere apenas sua sobrevivncia fsica ou apenas reproduo de sua fora de trabalho em sentido estrito, mas reproduo de seu sersocial: um chefe de famlia, um membro da comunidade, um participante de ritosreligiosos, com um conjunto complexo de necessidades culturalmente definidas, que serealizam no mercado. As mulheres contribuem tambm para tal subsistncia, mas nombito do auto-consumo, garantindo parte substancial da alimentao do grupodomstico e constituindo a base sobre a qual operam padres de solidariedade comunal

    (o puchirum ou ajutrio e a circulao no comercial de alimentos). Assim, arelao troca-subsistncia deve ser qualificada: na pesca o homem produzfundamentalmente valor de troca; na roa a mulher produz apenas valor de uso. A

    produo simultnea de ambos responde lgica da produo camponesa de uma formapeculiar e coerente, como foi dito, com os princpios da organizao domstica e de umsistema de papis que se define, basicamente, por uma diferenciao de gnero.

    Podendo o peixe ser tanto consumido como comercializado, em proporesvariveis conforme as necessidades da famlia, possui tambm a pesca artesanalaquela caracterstica de alternatividade apontada por Garcia como componente crucialda lgica da produo camponesa (Cf. Garcia, 1976). A racionalidade da produocamponesa liga-se, em boa parte, ao fato de que o campons remunera sua fora detrabalho com o prprio produto, e a reproduz, em parte, com os prprios alimentos que

    produz, independentemente do mercado, ainda que isso implique numa auto-expropriao. O que afirma Tavares dos Santos para a lavoura, tambm se aplica

    pesca:

    O produto da agricultura artesanal tem dois destinos. Uma parte ser consumidapelo produtor como meio de subsistncia, e valor de uso. Outra se transforma emmercadoria, e valor de troca. Ser suficiente que a parcela apropriada do produtoagrcola remunere a fora de trabalho e a reproduo desta para que permaneavivel a agricultura artesanal. Conseqncia imediata consiste nos baixos preos

    que seus produtos podem apresentar no mercado, resultado da auto-expropriaodo produtor direto e no da produtividade de seu trabalho (Tavares dos Santos,1975: 172).

    evidente que a reproduo da fora de trabalho no se faz totalmente pelaparcela auto-consumida, mas esta contribui substancialmente para a alimentao, aoponto de definir a dieta bsica. Consumir parte do produto racional, e constitui umadefesa do pequeno produtor, lavrador ou pescador, face ao mercado do qual depende. o que indica, por exemplo, a j mencionada resistncia ao cultivo da soja por parte de

    pequenos lavradores do Noroeste de Minas Gerais. Conforme foi observado naquelaregio, o pequeno agricultor, para desespero do agrnomo, se recusa a plantar soja, no

    1 de se notar que uma associao ideolgica anloga foi observada por Gonalves Bastos entre osprodutores de laranja j referidos, onde Homem: laranja :: Mulher: lavoura branca.

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    obstante os altos preos que esta alcana no mercado, sob o argumento de que no sepode com-la. De fato, o cultivo da soja retiraria da produo camponesa suacaracterstica de alternatividade, j referida, e colocaria o pequeno produtor nadependncia total de um mercado que, com toda a probabilidade, se configuraria como

    de carter monopsnico. Foi o que ocorreu, como veremos mais adiante, em certas reasdo serto do Nordeste, com a passagem de uma lavoura de subsistncia para umaagricultura comercial, representada pelo sisal.

    Assim, em Itapu, a pesca possibilita simultaneamente a obteno direta doalimento e dos meios para assegurar, no mercado, a subsistncia. A agricultura dasmulheres, por seu lado, assegura o alimento e, atravs dos circuitos de reciprocidade, osuporte comunal. Ento: pesca=comida+dinheiro; lavoura=comida+solidariedade. O

    produto da lavoura nunca vendido, e no em si, alternativo. Mas, assegurandoparte substancial da alimentao, permite que o produto da pesca seja destinadoalternativamente comercializao ou ao auto-consumo.

    Todavia, nem todos os pescadores de Itapu tem acesso direto aos meios de

    produo necessrios a explorao dos recursos da natureza; de fato, a maioria no ospossui. Igualmente, nem todas as famlias possuem roados.

    De um total de 87 pescadores, apenas 20 possuem embarcaes (de tiposvariados), e destes, apenas 15 possuem redes de malhar (o principal tipo de redeutilizado para a pesca comercial). Consequentemente, a maioria depende das relaes de

    parceria que caracterizam a pesca artesanal no litoral brasileiro. Dela dependem,igualmente, os proprietrios de tais meios de produo, visto que necessitam de umafora de trabalho que excede aquela disponvel no prprio grupo domstico paratornarem rentveis tais meios, e visto que, por outro lado, no dispem dos recursosnecessrios adoo de relaes de produo mais caracteristicamente capitalistas, isto, do trabalho assalariado. Ainda, nem todos os donos de barcos e redes so elesmesmos pescadores, mas comerciantes que possuem um uso alternativo do trabalho, seue eventualmente de seus filhos, mais rentvel. No entanto, tambm os comerciantes-

    patres dependem de uma rede comercial, semelhante ao tradicional sistema deaviamento da Amaznia, que reduz bastante seus lucros.

    A metade do produto de uma pescaria, aps descontadas as despesas, cabe aodono da canoa e da rede; caso ambas no pertenam mesma pessoa, o dono de cadauma recebe 25%. A metade restante dividida entre os membros da tripulao. Quandoo dono da canoa e/ou da rede tambm pescador, cabe-lhe igualmente uma parceladessa segunda metade.

    Parte do produto da pesca vendido aos marreteiros que o revendem a

    comerciantes urbanos. Outra parte levada para casa pelo prprio pescador, ou pormembros de outras embarcaes a caminho da vila. Como o peixe no pode serarmazenado, dada a sua extrema perecibilidade e a ausncia de equipamentos derefrigerao, tanto pescadores como patres ficam na dependncia do marreteiro,que recolhe o peixe ao fim da tarde para revend-lo, noite, ao aparador da cidade,equipado com meios de refrigerao e que dispe de empregados encarregados da vendaao consumidor final. A no ser em raros casos, o marreteiro no um comercianteindependente; ele financiado por um aparador, devendo em troca, vender a este todoo peixe que recolhe:

    O marreteiro que trabalha com compromisso (isto , que recebe o dinheiro de

    um aparador para comprar o peixe, obrigando-se a revend-lo ao mesmoaparador) geralmente lucra muito pouco ou, na verdade, no tem lucro nenhum,

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    No obstante ser a agricultura igualmente importante na economia local, aausncia do peixe na refeio que caracteriza, para o itapuense, uma situao decarncia. Menos, talvez, por sua ausncia do prato, onde pode ser substitudo pormariscos, do que pela associao entre o peixe e o dinheiro. Sendo o peixe o nico

    produto transformvel em dinheiro, sua ausncia da refeio revela a penria monetriada famlia.Em circunstncias normais, o pescador, depois de uma semana no mar, volta

    com algum dinheiro. Mas, nem sempre as circunstncias so normais: a falta de ventopode pr a perder o produto da pesca; as redes se rompem com relativa freqncia;naufrgios podem ocorrer. Por isso, no raro que a famlia do pescador se encontre emsituao de preciso, pois os baixos nveis de remunerao normal limitamseveramente as possibilidades de formao de uma reserva para fazer face a situaesde crise, como por exemplo doenas. Isso remete novamente ao carter dealternatividade da produo: teoricamente, o pescador pode destinar partes variveis deseu produto ao mercado ou ao auto-consumo. Produzir o prprio alimento (ou parte

    dele) constitui uma estratgia de defesa e por isso, destinar ao mercado aquilo quedeveria ser o alimento de sua famlia, compromete o padro normal desta, e isto sser feito em situaes extremas. Por outro lado, deixar de vender para consumir,rebaixar a renda monetria e acarretar um aumento na dvida para com o aviador.Ademais, o produto da pesca difere do produto agrcola no sentido de que no pode serconservado por muito tempo, espera, por exemplo, de melhores preos, e o prpriomecanismo da comercializao que domina o mercado exige a venda imediata aomarreteiro. Assim, as possibilidades reais de atualizao daquela alternatividade sorestritas, o que novamente reala a importncia da conjugao no grupo domstico deuma produo mais voltada para o mercado que para o consumo a pesca com outra,voltada apenas para o consumo a roa.

    No entanto, existem outras fontes de alimento que podem substituir o peixe, eexistem formas de cooperao comunitria circuitos de reciprocidade que socorremao pescador e sua famlia em momentos de preciso.

    Vigora em Itapu um sistema de distribuio de alimentos pelo qual,especialmente quando algum est necessitado, o alimento oferecidogratuitamente por parentes e/ou amigos. Muitas vezes, em casos de maiornecessidade, at dinheiro oferecido pessoa, no como emprstimo, mas comodoao (Maus & Maus, 1976: 55).

    ... (a falta de alimentos) no altera substancialmente a vida das pessoas, quecontinuam cuidando normalmente de suas tarefas, sem se preocupar muito emprocurar comida, mesmo porque, como eles dizem, algum sempre d prgente. Quando eles falam assim esto se referindo ao costume extremamentedifundido em Itapu, da troca de alimentos. As pessoas costumam dar peixes aseus parentes... compadres, vizinhos e amigos... chegando s vezes a ficarapenas com o peixe suficiente para uma refeio, por terem repartido tudo o queo chefe da famlia acabou de trazer do mar. Essas doaes so feitasindependentemente de a pessoa que recebe precisar ou no, pois mesmo quetodos tenham peixe, as trocas so realizadas. Mas se tornam quase compulsriasno caso de se saber que um parente, amigo ou vizinho est em necessidade, por

    no poder trabalhar ou por uma outra razo qualquer. Quem recebe a doao,seja de alimento ou de outro qualquer bem, no pode recus-la e, assim que se

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    apresenta a oportunidade, deve retribu-la com doao equivalente (Idem, 85-86).

    Por outro lado, existem fontes secundrias de alimento. A principal destas o

    mangal, onde so apanhados mariscos, especialmente o caranguejo e o tur:

    Os informantes costumam dizer que em Itapu, ningum passa fome, pois,quando falta o peixe, s sair pelo mangal e tirar tur ou pegar caranguejo.A realidade no bem essa, pois o mangal que existe nas proximidades no tofarto e, para se conseguir um tur em boas condies necessrio procurarmangais menos explorados. O prprio caranguejo, que mais abundante, scostuma ser capturado em certas pocas do ano, que os itapuaenses chama desauat` (Maus & Maus, 1976: 67).

    A caa, se bem que rara, outra fonte alternativa, assim como as frutas

    (cultivadas e silvestres) e animais domsticos, especialmente galinhas.

    Mas todas essas so fontes secundrias e os alimentos obtidos raramente fazemparte da alimentao diria, com exceo das frutas (que so normalmenteconsumidas apenas pelas crianas) (Maus & Maus, 1976: 39).

    Se a pesca prov a renda monetria, a agricultura, como foi dito, prov partepondervel da renda no monetria, pela produo do segundo componente da dietabsica, a farinha de mandioca. Secundariamente, planta-se tambm o milho. A roa ocampo de trabalho da mulher, muito embora os homens tambm participem das etapasdo ciclo produtivo de trabalho mais intenso. Nesses momentos, o homem deixa a pesca

    para colaborar na roa por alguns dias; ainda que esteja deixando de gerar rendamonetria durante tais dias, no cmputo geral da economia domstica e a mdio

    prazo, mais rentvel deixar de pescar para plantar.Freqentemente, o tamanho da roa excede a disponibilidade de fora de

    trabalho do grupo domstico e nessas etapas preparo da terra, plantio, colheita efarinhada a dona da roa recruta fora de trabalho entre vizinhas ou parentes (filhascasadas, irms, netas, sobrinhas) sob forma de adjutrio, ou puchirum:

    Na manh do dia da planta todos os que vo fazer o servio se renem bemcedo na casa da dona da roa para seguirem juntos para o local; antes de

    iniciarem o trabalho servido o caf com farinha de mandioca para todos e, maistarde, pelo meio da manh, oferecida uma merenda, que consta geralmente deum mingau preparado com arroz (ou farinha de mandioca) e leite de coco. Oalmoo por conta dos trabalhadores mas geralmente a dona da roa costumareunir os membros de sua famlia (parentes) que esto participando dotrabalho, para almoarem em sua casa. tarde, se o trabalho continua, servidomais um caf ...

    A essa reunio de pessoas para fazer a planta d-se em Itapu o nome deputirum (mutiro), e as pessoas dizem que, em tempos passados, ningumrecebia dinheiro por isso; o sistema funcionava como um grande crculo de

    trocas em que uns prestavam servios espontaneamente nas roas dos outros.Hoje, eles falam, isso no acontece, pois mesmo quem no recebe em dinheiro

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    cobra a ajuda prestada em forma de trabalho em sua roa (Maus & Maus,1976: 60).

    Mas, nem todos os grupos domsticos possuem o mato, isto , a terra para

    botar roa e poucos possuem o forno para o fabrico da farinha. Assim, muitasmulheres trabalham em terras de outras, em regime de parceria, cabendo 50% daproduo dona da terra e igual parcela trabalhadeira; de empleita (pagamentopor tarefa), ou de diria (pagamento em dinheiro). Pelo uso do forno, paga-se umquilograma de farinha por fornada.

    O baixo valor de mercado do pescado (considerando-se os preos pagos aoprodutor), o regime de meiao e a rede de intermediaes presente no sistema deaviamento reduzem consideravelmente, seja a renda monetria, seja o montante do

    produto destinado ao auto-consumo; qualquer necessidade de gasto monetrio um poucoacima do normal torna foroso comercializar o peixe que deveria ser levado para casaa fim de compor o elemento central da dieta, configurando sua ausncia no prato dirio

    uma situao de preciso. O que torna possvel uma venda acima do normal avigncia dos mecanismos de distribuio comunitria.

    O acesso ao mar tem de ser mediado por meios de produo fora do alcance damaioria dos pescadores. Por outro lado, nem todos os grupos domsticos dispem domato para ser cultivado por suas mulheres. Mas, todos tem livre acesso ao mangal,

    pouca caa ainda disponvel, s frutas silvestres e ao quintal. Nenhum desses produtossecundrios (os mariscos do mangal, as frutas silvestres, a caa e os animais everduras de quintal) destinado comercializao, mas eles desempenham importante

    papel nas estratgias de subsistncia do pescador. Embora menos abundantes narealidade que no modelo ideolgico, a combinao dessas fontes gratuitas de alimento,assim como dos circuitos de reciprocidade, s atividades econmicas principais - a

    pesca e a agricultura - tornam possvel uma destinao varivel do produto da primeira comercializao ou ao auto-consumo, segundo as necessidades do grupo domstico. Talcombinao possibilita, ainda que dentro de limites bastante estreitos, uma certaflexibilidade na realizao da subsistncia do grupo domstico.

    Diversa tende a se tornar a situao do lavrador nas fazendas de Mossmedes.Igualmente parceiro, ele est perdendo, ao longo de sua trajetria de agregado, nostempos antigos, a assalariado, segundo as tendncias atuais, o acesso livre natureza,assim como a capacidade de decidir sobre o que produzir em sua lavoura e quanto delavender.

    A ocupao econmica de Mossmedes se fez atravs de grandes fazendas, onde

    a pecuria se combinava ao cultivo de cereais (arroz, milho e feijo). At algumasdcadas atrs, o municpio contava ainda com densas matas, ricas em caa. O RioFartura, por sua vez, permitia uma pesca relativamente abundante.

    Durante a maior parte de sua histria, Mossmedes contava apenas com umlimitado mercado local para a sua produo agrcola, representado pela cidade deGois. Somente o gado alcanava mercados mais distantes, de onde eram tambmimportados os bens no produzidos no local. A prpria distncia tornava tal comrciodifcil e demorado:

    Antigamente, o sal vinha para Gois por estrada de ferro at Uberaba e da parac, em carros de boi. Mais tarde j estava em Araguari, ainda em Minas. De

    Araguari at a Capital (a Cidade de Gois) um carreiro trazia o carregamento por

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    trezentos mil ris e demorava em ida e volta, ao tempo da seca, trs meses,normalmente. Durante as guas, cinco ou seis meses ( Brando, 1976: 12).

    A maior parte da produo agrcola destinava-se ao consumo local. A pecuria,

    por sua vez, no era muito desenvolvida. De forma coerente com tal situao demercado as manchas de terra de cultura das fazendas eram ocupadas por agregados quea produziam cereais sem obrigao de repartirem com o fazendeiro. Aps alguns anosde cultivo, quando as terras comeavam a dar sinal de esgotamento, o agregado deixavaaquele local de lavoura, transformando-o em pasto e, na mesma fazenda, abria novalavoura em outro trecho de mata.

    Aps a consolidao de Goinia como nova Capital e com a abertura de estradasde rodagem, criam-se novas condies de mercado para o gado e forma-se, tambm, ummercado cada vez mais compensador para o arroz. Ao mesmo tempo, as grandesfazendas passaram por um processo de sucessivas divises. Ambos os fatos fizeramcom que o regime de terra cedida fosse substitudo pelo de parceria-meiao que

    prossegue at hoje como uma forma de relao de produo significativa na regio,muito embora esteja se generalizando a utilizao do trabalho assalariado.

    De apenas uns cinco anos para c, pequenos e mdios proprietrios vendemsuas terras e seguem pro Norte` (norte de Gois e sul do Par) em busca denovas pastagens de gado de corte em grandes fazendas de criatrio. Assim, umaregio povoada com levas de goianos e, depois, de mineiros, por declarada faltade terras em seus lugares de origem, comea agora a ver sarem do municpio,aparentemente pelas mesmas razes, alguns de seus proprietrios rurais.

    As relaes sociais do passado eram dadas entre as categorias de fazendeiros eagregados. Os primeiros, donos de terra e gado; os ltimos, vaqueiros dafazenda, pagos geralmente na sorte`, ou ento, ocupantes-agregados, noassalariados e, pelo menos inicialmente, no parceiros.

    Com a introduo do sistema dominante de parceria, as relaes foramredefinidas para o caso dos no-proprietrios que, em maioria, tenderam aconverter-se em agregados-meeiros .

    At cerca de 15 anos, o valor da terra era to insignificante na regio que, poralgumas cabeas de gado chegavam a ser vendidas fazendas ou pores de terra

    de mais de 100 alqueires. No tempo da barateza` era de fato muito restrita acirculao de dinheiro... Lavradores e vaqueiros atravessavam anos sem pegaruma nota de dinheiro na mo`. At hoje, lavradores residentes nas fazendasusam o dinheiro apenas para comprar o sal e o querosene (quando ainda no seusam lamparinas de azeite de mamona e algum tecido). Barraces de venda de

    produtos urbanizados constitudos nas fazendas faziam reverter a ela quase todoo dinheiro ganho com o eventual trabalho de pees` lavradores e vaqueiros(Brando, 1976: 15-16) .

    Hoje, a maioria dos meeiros vive na cidade. Por outro lado, torna-se cada vezmais freqente a combinao da meiao com o trabalho assalariado, seja pelo mesmo

    indivduo, seja pelo grupo domstico. Trata-se de uma estratgia que possibilita famlia, de um lado, o acesso direto ao alimento bsico, resultante da parceria e, de

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    outro, a uma renda monetria necessria aos demais componentes da subsistncia.Sempre que possvel, o meeiro planta arroz, feijo e milho no trato de terra sob seuscuidados; menos freqentemente, planta tambm mandioca, amendoim, caf e banana.Todavia, de forma crescente, o meeiro se v na contingncia de produzir maiores

    propores de arroz, ou mesmo apenas o arroz, o principal produto comercial agrcolada regio.

    Configura-se, aqui, de forma diversa, a relao mercado-subsistncia. J no setrata de produzir para o mercado ou para o auto-consumo, ou de manipular a produo

    para defender-se de, ou para explorar o mercado. Combinam-se valores de troca e deuso, mas a principal mercadoria vendida, para que se possa comprar outras mercadorias, a prpria fora de trabalho. da meiao que se obtm o alimento bsico,complementado pela criao de aves e de porcos, no quintal, e pequenas hortas. pelavenda da fora de trabalho, em troca do salrio, que se realizam outros itens dasubsistncia, inclusive alimentos em parte, porque no so mais produzidos

    domesticamente, como a banha, que tende a ser substituda ou pela mesma compradaem lojas, ou pelo leo industrializado; em parte, tambm, porque a mudana social trazconsigo mudanas de hbitos alimentares, transformando o que antes era iguaria emmantimento, como o caso do macarro. Se antes o lavrador produzia o suficiente

    para comer e vender, mas no encontrava mercado, hoje ele produz apenas o bastantepara comer, e nem sempre. Diferentemente de outros camponeses, particularmentedaqueles chamados independentes, sua estratgia consiste, no em alocar recursos deterra e trabalho produo combinada de alimentos para consumo prprio e para omercado (por serem alimentos, podem ser convertidos de uma categoria outra), masem alocar a fora de trabalho domstica, nico fator de produo que controla,alternativamente meiao e ao trabalho assalariado. Em comparao ao produtorindependente, sua capacidade de barganha vantajosa, ou de adaptao ao mercado es necessidades da famlia, menor. H, porm, uma analogia entre o uso de fatores

    pelo parceiro de Mossmedes e pelo campons independente. O grupo domstico, comounidade de produo e de consumo, a unidade estratgica na alocao de trabalho paraa auto-subsistncia e para o ganho de dinheiro, na medida em que uns trabalham nameiao e outros como diaristas.

    S uma pequena parte do produto da meia vendida, e cada vez menos.Crescentemente, vender tal produto significa subtra-lo ao consumo direto e ter decompr-lo, posteriormente, no comrcio local.

    Nenhum lavrador reconhece em Mossmedes que planta exclusivamente para acomercializao. Atualmente, a maior parte guarda para o consumo familiar todaa produo obtida, sobretudo no caso do arroz e do milho. Outros conseguemreservar a sobra` do consumo para a venda, feita quase sempre dentro doslimites do municpio... O que a famlia do lavrador obtm de lavouras na meia`completa-se com as pequenas plantaes caseiras e com a criao de animaisdomsticos no quintal... O uso do quintal como um espao complementar deobteno de alimentos feito por todas as famlias ... Todo o quintal da parte detrs da residncia dividido entre: a) reas de servios domsticos ... b) reas de

    plantaes de rvores e vegetais de pequeno porte, reas de criao de animais...Muito mais do que com os alimentos obtidos na roa`, o lavrador destina o que

    consegue em seu quintal para o consumo domstico. So excees os casos devenda de aves e ovos, de carne de porco ou de vegetais.

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    Reunidas as alternativas de acesso ao alimento, elas se dividem entre o que olavrador produz em suas roas na meia`, o que a famlia obtm do quintal e oque comprado em Mossmedes (Brando, 1976: 28-29).

    Os quatro alimentos principais da dieta diria so o arroz, o feijo, o milho e amandioca. De um total de 84 lavradores, 55 trazem o arroz das roas na meia` ou orecebem nas fazendas como parte do pagamento como diaristas; 28 o compram, em

    parte, na cidade, durante o final da entressafra; um apenas, produz arroz em seu quintal.Quanto ao milho, obtido tambm na roa e, em menor proporo, no quintal; somente2 lavradores o compraram na cidade. O feijo plantado na roa ou comprado, em

    propores mais ou menos iguais, o mesmo ocorrendo com a mandioca. Verduras elegumes so plantados em quintais ou comprados em pequenas propores. Os demaisalimentos so cada vez menos obtidos nas fazendas e cada vez mais comprados, como acarne de gado ou porco, a banha, o caf. Sintomaticamente, o arroz tende a se tornar o

    componente principal da alimentao. Tradicionalmente combinado ao feijo, essamistura consta, crescentemente, de mais arroz e menos feijo.

    ***

    Cada vez mais, as populaes rurais brasileiras se vem alcanadas pelaeconomia de mercado. Com isso, transformam-se as relaes de produo e as formasde trabalho: o agregado , praticamente, uma figura do passado; transformado em

    parceiro, tende rapidamente a se tornar um proletrio rural3. No interior da fazenda ouda plantation aucareira, as culturas comerciais avanam por sobre as de subsistncia(ou, mais propriamente, de troca-subsistncia). Com esse avano, o morador se vexpulso do interior da grande propriedade e perde suas tradicionais fontes de acesso aoalimento (Cf. Sigaud, 1972, para uma anlise das transformaes das relaes detrabalho no Nordeste aucareiro). Cada vez mais, a terra se configura como mercadoriae como fator de produo escasso. Mas, em algumas reas expande-se a pequenalavoura camponesa independente, produzindo alimentos a baixo custo . Conforme jfoi dito, esse campesinato resiste a dedicar-se exclusivamente produo comercial,desenvolvendo uma estratgia de alternatividade, conforme analisado por Garcia(1976).

    Contudo, tal resistncia nem sempre se concretizou. Exemplo ilustrativo dosefeitos da passagem de uma (impropriamente chamada) agricultura de subsistncia para

    uma agricultura comercial dado pela expanso da produo sisaleira no Nordeste,estudada por Gross (1971, 1971a).Os estudos de Gross oferecem evidncias sugestivas para o tema deste relatrio.

    Analisando os efeitos da introduo do sisal no serto nordestino, Gross mostra como apassagem de uma agricultura de subsistncia para uma produo voltada ao mercadoteve uma srie de conseqncias deletrias para a populao envolvida. A introduo dosisal, planta resistente s secas caractersticas da regio, foi amplamente retratada comoconstituindo a salvao do serto nordestino. De fato, os maiores proprietrios rurais,assim como comerciantes e donos de mquinas de beneficiamento obtiveram altoslucros. Diverso foi, porm, o destino dos pequenos lavradores.

    3Novamente, deve-se atentar para situaes diferenciais de parceria, ainda que, em muitas partes do Pas,se repita o que ocorre em Mossmedes.

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    Antes da introduo do sisal tais lavradores dedicavam-se produo de gnerosalimentcios, parcialmente comercializados, que lhes assegurava uma dieta alimentarrazovel, particularmente atravs do consumo do feijo, do gerimum (abbora) e outros

    produtos, alm da farinha de mandioca. Tendo, todavia, convertido suas pequenas

    lavouras em plantaes de sisal, viram-se privados de seus alimentos essenciais epassaram a se tornar dependentes do comrcio local passando a produzir mercadoria,transformou-se tambm o alimento em mercadoria. Por outro lado, tais pequenoslavradores viram-se compelidos a se tornar, em escala crescente, mo de obra para o

    beneficiamento do sisal:

    Haviam plantado o sisal sonhando com novas roupas, novas casas, at comveculos motorizados, que seriam comprados com os lucros do sisal ... mastornaram-se permanentemente em trabalhadores nas colheitas das grandes

    propriedades. Desta forma, o sisal criou sua prpria fora de trabalho (Gross,1971a: 51).

    De um lado, passaram a realizar toda a sua subsistncia no mercado. De outro,percebem remunerao abaixo do necessrio para uma dieta alimentar adequada.Conforme aponta Gross, um grupo domstico gasta no apenas dinheiro, mas tambmenergia calrica no processo de trabalho. Suas mensuraes revelaram que os gruposdomsticos passaram a viver num regime de dficit calrico, a partir da converso daregio numa economia essencialmente monetria e esse dficit alcanava

    principalmente as crianas, tanto mais quanto mais jovens eram. Tomando um grupodomstico para exemplo, mostra Gross que os adultos (pai e me) satisfaziam suasnecessidades calricas, necessrias reproduo de sua fora de trabalho. Mas, paratanto, eram forados a privar as crianas de uma alimentao adequada:

    O dficit calrico na famlia de Miguel estava, ento, sendo compensadoprivando-se sistematicamente as crianas das calorias de que necessitavam. Istono era intencional, nem tinham os pais conscincia do fato. E mesmo quetivessem, nada poderia Miguel fazer a respeito. Se ele era obrigado a umtrabalho mais pesado e mais prolongado, incorria em maiores gastos calricos etinha de consumir mais alimentos. Se reduzisse seu consumo de alimentos, a fimde deixar mais para as crianas, seria obrigado, por sua prpria fisiologia, atrabalhar menos e assim, a ganhar menos ... Em conseqncia, os filhos deMiguel, como muitas outras crianas de famlias de trabalhadores do sisal, so

    menos desenvolvidas que crianas da mesma idade adequadamentealimentadas... Desde a introduo do sisal o grupo econmico superior revelouuma marcante melhoria em seu padro alimentar ... enquanto o grupo inferiorrevelou um declnio ... As estatsticas mostraram que ... a maioria sofreu um

    prejuzo nutricional (Gross, 1971a: 54-55).

    A concluso de Gross sugestiva: lembrando que a introduo do cultivo dosisal no serto nordestino se deu em funo de incentivos governamentais (orientados

    por uma tica estritamente econmica), mostra ele que:

    Apesar de alguns smbolos de riqueza e desenvolvimento, minhas

    observaes revelaram uma continuao da pobreza endmica atravs da maiorparte da rea rural, e mesmo uma intensificao das divises econmicas e

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    sociais que sempre caracterizaram o serto ... o mundo subdesenvolvido estrepleto de exemplos de esquemas de desenvolvimento que trouxeram progresso

    para apenas uns poucos... O sisal no o nico exemplo de uma mudanaeconmica que trouxe consigo inesperadas conseqncias deletrias (Gross,

    1971a: 55).

    Mossmedes nos fornece outro exemplo. Como j foi visto, a regio passou, nasltimas duas dcadas, por um processo de intensa valorizao de terras e crescente

    produo para o mercado. O prprio sistema de meiao, se significa para o lavradora ltima forma de acesso direto ao alimento, sem necessidade de adquiri-lo no mercado,

    j representa uma forma de ingresso no mercado. Pois a parcela da produo que cabeao lavrador no mais que a remunerao de seu trabalho por uma produo destinada

    pelo fazendeiro comercializao. O arroz, antes simples valor de uso, torna-se opagamento de uma mercadoria a fora de trabalho pela produo de outramercadoria o prprio arroz, na parcela comercializada pelo fazendeiro. Sob outro

    ponto de vista, o que antes era apenas alimento, passou a tornar-se renda da terra, sobforma de renda-produto. Mas, medida que o arroz ganha relaes de mercado maisfavorveis, isto , medida que o arroz se torna mais compensador, torna-se tambmirracional para o fazendeiro pagar sua mo de obra com parte do produto. Por isso, a

    parceria se mantm apenas enquanto a relao entre o preo do produto e o preo dotrabalho for favorvel a que detm a terra; ou enquanto o dono da terra no dispuser desuficiente capital para remunerar monetariamente ao trabalhador, como o caso de

    pequenos proprietrios em muitas partes do Brasil; ou, ainda, naqueles casos em queno existe uso alternativo da terra pelo proprietrio, isto , onde o aluguel da terra a ummeeiro ou arrendatrio se faz a um baixo custo de oportunidade. Em Gois, a expansodas culturas e o uso crescente de fertilizantes e maquinaria, acompanhando umaevoluo favorvel (ao proprietrio) do mercado, tendem a tornar a parceriadesvantajosa. O pagamento por tarefa ou por diria com a constituio de crescenteslegies de bias frias, trabalhadores de rua, ou que outra designao tenham revela-se, ao proprietrio, mais econmica.

    J foi visto que em Mossmedes o lavrador levado a combinar o trabalho nameia com o trabalho assalariado. De um lado, trata-se de uma estratgia adaptativa dolavrador, mas trata-se tambm de uma imposio. As terras dadas em parceria so cadavez menores e de pior qualidade; cada vez mais, o lavrador se v obrigado a plantar

    propores maiores de arroz, ou mesmo apenas o arroz, o principal produto agrcolacomercial da rea, em detrimento dos demais cereais. Se o arroz um produto de

    subsistncia para o lavrador, ele produto comercial para o fazendeiro, e esta suasegunda caracterstica que determina sua dinmica e sua gradativa hegemonia no espaoeconmico regional. Por isso, cada vez mais, o lavrador come mais arroz e menosfeijo.

    H uma queixa comum entre os lavradores de Mossmedes. a de que a cadaano torna-se mais difcil o acesso a terras cedidas em parceria. Os fazendeirosreservam propores maiores de suas fazendas para as prprias lavouras ou paraa formao de pastagens, e destinam a produtores sem terra reas cada vezmenores e de pior qualidade de terreno. Na verdade, o lavrador meeiro no temcondies de cultivar com o seu trabalho e mais a ajuda transitria de familiares

    mais que dois ou trs alqueires de cereais.

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    Uma lavoura maior exige ou o uso de maquinaria rural cara e no acessvel aolavrador ou o trabalho assalariado de diaristas, o que o meeiro procura evitar

    porque onera em muito a sua produo. Entre os lavradores entrevistados, 9plantaram em 1975 menos de alqueire de cereais (de 10 a 40 litros), cuja

    produo quase insuficiente para um consumo moderado de alimentos de umafamlia de 6 pessoas durante um ano. 38 meeiros plantaram entre e 1 alqueiree meio (de 40 a 100 litros) e 11 deles plantaram entre 1 alqueire e meio e 2alqueires. 10 lavradores, plantaram mais de 2 alqueires de cereais (Brando,1976: 25-26).

    Tornando-se a meiao cada vez mais rara e implicando em roas cada vezmenos produtivas, quer pelo esgotamento ou pela pobreza natural da terra, quer pelareduo de sua rea, o meeiro tende a se tornar um assalariado. Ingressando a regiodefinitivamente numa economia de mercado, a terra afirma-se como mercadoria, e comela, o trabalho. Assim:

    Da fazenda para uma casa na vila, a famlia do lavrador completa um ciclo derelaes de acesso aos alimentos que comea com a produo de todos osalimentos consumidos, quando o lavrador agregado de uma das fazendas daregio, e termina com a compra de quase toda a comida familiar, quando olavrador, residente na cidade, um produtor rural assalariado, no produz como

    parceiro e reside na vila em uma casa com quintal pequeno e em terreno deserra (Brando, 1976: 29).

    Em um tempo no muito remoto, o agregado criava seus prprios animais ecultivava todos os vegetais considerados de valor alimentcio ou necessrios para outrosusos domsticos, como o algodo. Ademais, complementava a alimentao da famliacom fontes gratuitas, pela caa, pesca e coleta de frutos silvestres.

    As primeiras grandes fazendas representam um lugar ideal de plantio e colheita,de tratamento e consumo de alimentos e de todos os outros bens de consumoque, fora produtos como o sal e o querosene, eram obtidos dos prprios recursosdo lugar. Desta maneira o lavrador atual compreende a fazenda como umaunidade completa de trabalho e vida; produtora e beneficiadora de praticamentetudo o que precisavam consumir os seus habitantes .

    A percepo da fazenda como uma unidade quase-completa de produo ebeneficiamento de bens de consumo transcende os limites da dieta alimentar.Depois de enumerar os diversos tipos de mantimentos obtidos no lugar, olavrador descreve objetos de uso domstico rstico retirados da mata, docerrado, de barreiros ou de pequenas lavouras. Quase toda a roupa usada era dealgodo plantado no quintal, fiado e tecido em casa para se transformar no snas calas e vestidos de homens e mulheres, como em colchas, toalhas de mesa ede banho, e em panos de prato. A construo de casas, mesmo as sedes defazendas, dependia de madeira, ento farta e de boa qualidade (aroeira, angico,

    jatob, peroba, vinhtico), e de adobes e olarias de fazendas. A iluminao daresidncia era feita com lamparinas de leo de mamona sobre fios torcidos de

    algodo. Os ingredientes de limpeza de pessoas, pratos e casas eram tambmobtidos por transformaes de produtos do lugar, como o sabo, feito de cinzas,

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    mamo, sebo e substncias encontradas na Serra Dourada, nos cerrados e, emmenores variedades, nas matas e nos quintais. Razes, folhas e cascas de rvoresassim como derivados de animais (banha de capivara, sangue e banha de tatu)transformavam-se em um sem nmero de produtos usados com freqncia at

    hoje (Brando, 1976: 36-37).

    Com a transio para a parceria, vantajosa para o proprietrio mas percebidacomo desvantajosa pelo trabalhador pois os nveis de renda auferidos no permitemum consumo adequado no mercado o lavrador deixa progressivamente de produzir osalimentos de uma dieta variada, ou a tem bastante limitada. A produo em regime de

    parceria tende a se limitar ao arroz e, assim, determina a base da alimentao. O que seproduz em parceria o que se destina ao mercado, e nesse produto que se concentra otrabalho. esse mesmo produto, ento, que assume posio preponderante naalimentao. uma situao bastante distinta daquela do campons independente que,se produz para o mercado, pode, no entanto, decidir com maior liberdade sobre a

    alocao do trabalho domstico a outros cultivos.

    Mais do que qualquer outro produto da terra, o arroz , durante todo o ano, oalimento de base em toda a regio. Considera-se que uma famlia muito pobrequando no consegue guardar sequer arroz para todo o ano, no possuindotambm o dinheiro suficiente para compr-lo quando o da roa acaba na tulha(Brando, 1976: 21).

    O lavrador de Mossmedes percebe dois polos extremos ao mesmo tempo doismomentos histricos em suas concepes relativas alimentao. O primeiro destes representado pela mata, hostil, no domesticada, que corresponde a um tempo desacrifcios. O segundo polo a cidade, que corresponde a um tempo de carncia. Entreos dois situa-se a fazenda, o momento de fartura. A fazenda , na ideologia dolavrador, o paraso perdido, o mundo solidrio, a natureza domesticada. A fazenda do

    passado construiu-se sobre uma relao equilibrada entre o homem e a natureza, eimplicava relaes equilibradas entre os prprios homens. Nela havia pouca gente emuita natureza, e no se plantava com vistas ao mercado. Por isso, havia sempre novasterras disponveis quando o solo cultivado comeava a revelar sinais deenfraquecimento. As chuvas eram regulares e o rio era farto em peixes ele referidocomo o Fartura, regularidade e fartura essas que desaparecem com o desmatamentointenso, conforme a prpria percepo local. O pasto era suficiente para suportar

    rebanhos relativamente pequenos. A regio era, em suma, forte e sadia, como o eramtambm os homens e os alimentos. Consumia-se durante o ano todo um alimento farto,sadio e forte. Sendo o homem de constituio forte, comia alimentos consideradosfortes, diferena dos dias atuais, onde predominam alimentos fracos (mais arroz emenos feijo) e homens fracos.

    A base da explicao dos atributos de fora e sade da natureza, da produoagrcola, da criao, dos alimentos e das pessoas, est no reconhecimento deque o tempo da fartura foi um perodo de trocas essencialmente rurais, onde asrelaes entre produtores e a natureza emersas de um tempo anterior dedependncia daqueles com relao a esta eram equilibradas: a) pela existncia

    de uma proporo tida como adequada entre as pessoas e o espao da naturezautilizado (muito mato, pouca roa; muito pasto, pouco rastro); b) pela

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    inexistncia de atitudes devastadoras dos homens sobre a natureza... (Brando,1976:40).

    Segundo a percepo do lavrador, a modificao nas relaes para com a

    natureza se relaciona com a alterao das relaes de troca social.

    A ruptura de uma tica de trocas entre a sociedade e a natureza acompanhadade uma perda correspondente da qualidade das trocas entre categorias de

    produtores rurais, perda essa que se acentua no caso de agentes dos dois polosantagnicos: os patres e os pees. No so poucas as vezes em que o lavradorcomea falando da quebra de um equilbrio de relaes sociais de trabalho paradepois falar de outra quebra, como uma conseqncia direta da primeira. Emsntese, os recursos naturais para o trabalho rural e as relaes solidrias notrabalho rural tm sido destrudos aos poucos porque ... os homens tornaram-seambiciosos fazendo com que se perdessem, em benefcio dos aumentos da venda

    (excedentes) de alguns, as reservas para o consumo (mantimento) de todos ...

    A medida da fartura estava em haver alimento suficiente e garantido durantetodo o ano, tanto para a famlia como para a criao: a capadaria estava nochiqueiro, arroz tava guardado para o ano todo, tinha roa de milho e feijo.(Brando, 1976: 59-60).

    Nas lavouras em parceria, o lavrador trabalha mais e colhe em quantidadesinsuficientes para duas famlias, a dele e a do proprietrio.

    Para trs famlias, dizem alguns lavradores, quando colocam na conta que fazem,o que dividem com os cerealistas e com o governo. O arroz no pode mais ser

    pilado porque, fora da fazenda, o lavrador no tem acesso fcil ao monjolo. Ele ento levado mquina de arroz onde, entre a reduo do peso pela retirada dacasca e a porcentagem paga ao dono da mquina, uma saca de 60 kg volta com 40kg de arroz pilado. O cerealista percebido como grande beneficiado atual dosistema de circulao de arroz... estocando-o para vend-lo com grande lucro nofinal da entresafra. Finalmente, o governo visto como um voraz e agressivocobrador de impostos de circulao de mercadoria que, de forma alguma retribuiao homem do campo, sob a forma de bens e servios, o que leva dela emdinheiro (Brando, 1976: 61).

    Reduzido o acesso terra, o lavrador sente-se empurrado para a cidade, ondeno consegue mais prover a famlia com alimentos durante a entressafra e onde obrigado a compr-los no comrcio a preos altos. O resultado do processo uma dietaempobrecida em quantidade e qualidade, levando os mais empobrecidos a recorrer distribuio gratuita de arroz pela igreja local. Para o lavrador coloca-se um paradoxo:hoje, a produo global aumentou, mas diminuiu seu mantimento, em decorrncia de:

    Um sistema social de produtores rurais agora antagonizados desde osurgimento da ambio, dentro de uma sociedade empobrecida quanto farturade comida e dividida pelo comrcio atual de alimentos, entre os ricos e os

    pobres ... (Brando, 1976: 64).

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    Assim, sucedeu-se uma poca em que no se era rico, mas havia fartura, poroutra, onde alguns se tornaram ricos mas a maioria se tornou carente. Enquantoningum tinha dinheiro na mo, todos tinham uma mesa farta. Hoje, quando h muitodinheiro em circulao, a maioria vive sem poder comprar suficiente mantimento,

    segundo os padres do passado.

    Se a gente vai vender um saco de arroz por 117 cruzeiros eles s pagam cem edesses cem cruzeiros que eles pagam pelo saco de arroz o governo que temmais 17 por cento do que ns compramos. De tudo que ns compramos, ele temmais 17 por cento, de modo que de tudo que ns fazemos ele tem 34 por cento.Alm de trabalhar na meia com o dono da terra, ainda trabalha quase na meiacom o governo. Ento antes o povo se alimentava mais forte. Se alimentava bemo povo de antigamente mas porque no existia ambio (Entrevista deinformante, Brando, 1976: 67).

    ... se eu vou trabalhar numa fazenda, e o fazendeiro ver que minha vontade boa, de fazer algum futuro, ele no deixa eu morar na fazenda trs, quatro ou dezanos no. um ano, dois. Ele vai fazendo opresso, vai apertando, no mandaembora no, at que o sujeito se sente apertado e tem que sair. O que ele tem medo do peo tomar posse porque s vezes o fazendeiro vai vender a fazenda,ele quer que o fazendeiro abone ele (pague indenizao pelas benfeitorias feitas

    pelo lavrador) (Entrevista de informante, Brando, 1976: 69).

    Eu tiro por mim. Esse ano eu quis fazer uma horta. Nem a semente de abboraeu no tive. De formas que a gente no consegue alimentar bem. Ns temos oarroz e feijo. Eu lembro, de primeiro a gente puxava era carro de abbora pra

    porco e hoje a gente no consegue ter uma verdura porque difcil a gente fazerat uma horta. Ento a gente fica com a alimentao fraca, porque a carne degado no tem. L um dia tem uma carninha de porco e tirando isso, um arrozcom feijo. Agora, o que eu acho difcil como dizem, ter um jeito de ganhar a

    parte alimentar, e no comeo de cada ano a crise dobra. A gente s vezes notem verdura assim, toda a qualidade de verdura. A mandioca faz muita fartura ede mandioca faz muitas outras coisas. E a gente no tem nada disso devido aterra, porque a terra dos fazendeiros. Agora, os fazendeiros d pra arar a terra e

    plantar essas coisas? Eles no do (Entrevista de informante, Brando, 1976:68).

    ***

    As transformaes que ocorrem nas reas rurais, afetando as relaes de trabalhoe o acesso terra portanto, a produo e o acesso ao alimento levam tambm aodeslocamento do trabalhador rural para as cidades. Num primeiro passo, o lavrador podese tornar um trabalhador da rua; num segundo passo, num migrante em demanda demelhores oportunidades de vida na cidade. No objetivo deste relatrio a discussodos condicionantes e determinantes das migraes do campo para a cidade, mas apenasanalisar as condies de acesso ao alimento e os hbitos alimentares desse migrante.

    A migrao para a cidade completa um processo que j se inicia no campo,

    processo esse que traz consigo, entre outras conseqncias, a transformao da comidaem mercadoria. Na cidade, toda a comida tem de se comprada, ou quase toda. Por outro

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    lado, a renda familiar baixa, pois o migrante raramente possui uma qualificaoprofissional que lhe d acesso a melhores posies na estrutura ocupacional.Evidentemente, o acesso ao alimento e o padro alimentar dependem do acesso aoemprego e do padro de remunerao.

    A mudana para a cidade , sem dvida, encarada de forma positiva pelomigrante, e a cidade vista como o locus de concentrao de certos serviosinexistentes na roa assistncia mdica, educao, lazer, etc. Por outro lado, otrabalho urbano valorizado positivamente, quando comparado ao rural, por ser maismaneiro, por estar o operrio protegido do sol e da chuva, e por despender menosesforo fsico. Conforme ressalta o estudo deMenezes (1976), relativo a migrantes emAnpolis, o trabalho rural:

    ... representado como uma forma contnua de desgaste fsico. Falar dotrabalho agrcola falar do sol, da chuva, da lama, dos mosquitos, da friagem,dos vermes. Enfim, da destruio do prprio corpo. A roa rouba a sade das

    pessoas, que ficam sem possibilidades de recuper-la, por no disporem deservios mdicos.

    Para os migrantes, o trabalho rural leva a um processo de naturalizao(comparam-se a animais e plantas) no qual o ser passa a identificar-se com oobjeto sobre o qual lana a fora de trabalho. Deste modo indicam as condiesde trabalho como diretamente responsveis por este processo que podemoschamar de alienao (Menezes, 1976: 69).

    O trabalho rural sempre descrito como sujo, pesado, em contraposio aotrabalho urbano mais maneiro.

    No deixa de ser interessante contrastar tais avaliaes com as que faz o lavradorde Mossmedes, com relao ao tempo anterior reorientao da economia regional

    para o mercado:

    O trabalho da famlia do lavrador no tempo antigo considerado como umaatividade gratificante e cujo resultado era a obteno de alimentos em

    propores mais que suficientes atravs de um trabalho mais fcil, (asfacilidades da natureza, tantas vezes mencionadas) e mais solidrio (as relaesadequadas entre agregados e fazendeiros) (Brando, 1976: 59).

    Imagem essa que se contrape dos tempos atuais pois, se nos tempos antigoso trabalho era duro, pesado, no era visto como explorao. Pelo contrrio, os patroera bo.

    Se o trabalho urbano mais maneiro, o migrante , no obstante, pobre emuito mais flagrantemente que o lavrador da roa. Segundo o estudo de Tavares (1976)relativo a Belo Horizonte, 64,4% dos migrantes rurais nessa cidade percebiam menos dedois salrios mnimos. As mulheres so particularmente mal remuneradas, ou no

    possuem renda alguma: 47% colocam-se nesta ltima categoria, contra 6,8% doshomens, e 27,2% percebiam at um salrio mnimo apenas. O baixo nvel de renda leva,evidentemente, a solues habitacionais caracterizadas ou pela precariedade e falta de

    segurana (face constante valorizao das terras urbanas e o sempre presente risco deexpulso), como o caso das favelas, ou pela residncia em lugares afastados dos locais

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    de emprego, com um conseqente nus representado pelo transporte. As limitaes derenda conduzem tambm prtica da partilha da moradia:

    comum no bairro a partilha de uma mesma moradia por mais de uma famlia,

    utilizando uma cisterna e banheiro comuns; em geral se encontram duas famliaspartilhando uma moradia mas pude registrar um caso de seis famliasdistribudas por quatro moradias dentro de um mesmo terreno partilhando umacisterna e um banheiro. Esses casos correspondem explorao de aluguel por

    parte do dono que geralmente no mora junto aos locatrios (Tavares, 1976:11).

    Alm de uma renda baixa, o migrante se v em face de uma nova contingncia:ter de pagar aluguel. No entanto, no o aluguel o item mais pesado das despesas de umgrupo domstico, e sim a alimentao, que corresponde, em mdia, a 36% da rendafamiliar entre os migrantes de Belo Horizonte. Apesar do peso relativamente alto das

    despesas com alimentao, os itens comprados concentram-se em torno ao caf, acar,arroz, feijo e macarro (Tavares, 1976: 24), diminuindo tal concentrao medida quese eleva a renda per-capita disponvel (renda que sobra aps descontados os gastos comaluguel, luz e gs).

    A mudana para a cidade tambm representa a perda de fartura (na realidade,j perdida na prpria rea rural). Quando se referem roa, costumam defini-la comoum local de fartura. Conforme declarou um dos informantes de Menezes:

    A roa a me, voc planta um p de maxixe, uma semente de melancia tudoj serve pros fio (filho) e na cidade se eu tiv dinheiro eu como, se no tiv, sfao olh.

    Dessa forma, a fartura mais um elemento que vem completar a imagem que osmigrantes fazem da roa, pois, se de um lado a representam atravs doscomponentes negativos... (isolamento, escurido, etc.), de outro agregam-lheeste novo dado que, ao inverso dos demais, valorizado. A fartura est referida a

    bens alimentcios de origens diversas (animal e vegetal), assim como quantidade de alimentos de que se pode dispor. Fartura tudo que d muito, porexemplo, muitos p de abacate, laranjeiras, bananais, isto uma fartura. Porexemplo, mais de mil p de abacaxi, mais de mil p de fruta.

    Quando tem galinha t com fartura: que tem muito ovo, porque a gente gasta,gasta, gasta e no acaba mais (Menezes, 1976: 72).

    Fartura um estado de abundncia existente na roa, onde as pessoas:

    ... no se preocupavam com a compra de alimentos, dispunham de sacos demantimentos... Este quadro o inverso da situao que descrevem na cidade,

    pois o salrio ganho na indstria no lhes permite adquirir alimentos suficientes subsistncia familiar, ainda mais em quantidade semelhante a que declaram tertido como lavradores, ou seja, na posio de produtores de alimentos.

    Quer dizer que aqui na cidade, por operrio que vive de salrio no temcondio de fazer fartura. Quer dizer, o salrio s d, por exemplo, pr compr

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    um quilinho de toucinho, um quilinho de arroz, um quilinho de feijo e vai osalrio embora. L (na roa) a gente cria vontade, mata um porco e enchequatro lata cheia, colhe arroz, enche a sacaria... Quem tem bom salrio podefazer fartura... mas em geral aqui em quilo mesmo (Menezes, 1976: 73).

    A fartura um componente ideolgico central no discurso, seja do migrante,seja do lavrador de Mossmedes, na avaliao das transformaes sociais quemodificam sua posio na sociedade e que o transformaram de produtor emcomprador de alimentos. atravs da categoria fartura que tanto uns como outrosestabelecem um referencial contrastivo entre os tempos atuais e o passado perdido (eentre as diferentes classes no tempo atual). No caso dos migrantes, tais avaliaes sonotavelmente ambguas: de um lado, a mudana avaliada de forma positiva, pois otrabalho urbano mais maneiro e mais limpo, e a cidade o centro dos recursos; deoutro, acentuam-se as diferenas sociais. Tal ambigidade parece relacionar-se construo de uma nova identidade complexa (uma identidade que conjuga mltiplas

    identidades parciais): com a mudana para a cidade, o jeca tatu, o caipira, otabaru se torna um homem urbano, civilizado e cumpre-lhe rejeitar uma identidadeanterior, estigmatizada. Mas a mudana no implica apenas uma urbanizao; implicatambm uma proletarizao e com ela, a constituio de um homem pobre, sujeito srelaes de trabalho da fbrica. So, ento, duas identidades que se constrem e seconjugam, ambas igualmente contrastivas, mas, num certo sentido, invertidas: naconstruo ideolgica do migrante, a um nvel, saiu-se do inferno; a outro, perdeu-se o

    paraso. A idealizao do passado no , ento, to paradoxal; ao mesmo tempo, elaafirma o urbano e rejeita o proletrio.

    Se o parceiro de Mossmedes e o migrante de Anpolis representam atransformao pela idealizao do passado, no menos o faz o campons caboclo deSantarm. De forma notavelmente semelhante representao daquele parceiro, areferncia a qualidade da alimentao. Um breve retorno ao mundo rural poder sersugestivo.

    O lavrador de Mossmedes, como j foi mencionado, v nas transformaesocorridas em seu mundo um enfraquecimento da natureza, da sociedade, do homem edo alimento. Tal percepo da mudana relaciona-se a uma concepo dos alimentos esua classificao em fortes e fracos, que ser tratada em detalhes na segunda partedesta anlise. O mesmo foi observado por Lins e Silva para os caboclos de Santarm.

    Nesta regio, o avano das relaes capitalistas de produo transforma a Mata, antesnatureza sem dono, em mercadoria, afetando profundamente a lgica econmica do

    grupo, sua estratgia de combinar a produo para a venda e para o consumo e suacombinao de fontes de alimento. Conforme observa Lins e Silva:

    No existe produo sem reproduo das condies de produo. Sendo areproduo da fora de trabalho um dos elementos para a reproduo dessascondies, nos parece que o crescente desaparecimento da Mata na vida socialdeste campesinato, bem como a restrio no volume de terras disposio dosroados, tende a se constituir numa ameaa reproduo das unidades familiarese consequentemente do prprio grupo (Lins e Silva, 1976: 48).

    expanso capitalista conjuga-se a prpria atuao do INCRA , informada por

    uma racionalidade que no a do campons, com conseqncias negativas sobre este:

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    Est se implantando na regio o Projeto Fundirio que visa a legalizao dasposses dos agricultores. Todavia, essa demarcao dos terrenos est sendo feitasegundo o tamanho dos roados e no segundo o tamanho das capoeiras.Consequentemente, as licenas de ocupao que esto sendo entregues no

    presente momento indicam o reforo de uma poltica de implantao deminifndios... Levando-se em considerao a m qualidade dos solos desta reaprxima dos grandes rios, solos arenosos, e o sistema de agricultura itineranteque funciona basicamente com a possibilidade de rodzio de terras, podemosacentuar uma tendncia nesse processo de pauperizao deste campesinato ou degrande parcela deste grupo social (Idem: 48).

    Da reduo da Mata disposio do campons e da reduo do roado resultamameaas reproduo do grupo. A Mata se transforma em pastagens (para um gado queno do campons), ao mesmo tempo que diminui o tamanho dos roados.

    ... exatamente quando os produtos do Roado passam a ter que cobrir no s osgastos com a despesa da casa, mas ainda a comida (Idem: 47).

    Antes, a comida, isto , o alimento forte, era dada pela Mata, um doscomponentes da trilogia (Casa, Roado, Mata) em que repousa a lgica econmicadesse campesinato. Como a comida provm da Mata, a gradativa perda do acesso aesta representa um enfraquecimento da dieta. Da,

    Esta idia de fora est presente... na valorizao do passado, sendo os antigosconsiderados indivduos mais fortes e mais capacitados para o trabalho, poisexistiam maiores possibilidades de acesso aos alimentos fortes, comida(Idem: 39).

    Muito provavelmente, as transformaes por que passa a regio dessescaboclos levaro tambm ao comprometimento de uma fartura assegurada pelatrilogia analisada por Lins e Silva. A representao do caboclo semelhante dolavrador de Mossmedes, no obstante tratar-se de diferentes situaes histricas. Ascategorias de percepo do alimento exprimem, em parte, a representao dorompimento de um sistema ecolgico-econmico-social equilibrado, e com talrompimento, um enfraquecimento do homem. De um lado, os curupira foram embora;de outro, chegou a ambio, e com ela uma estratificao social visvel.

    Na cidade, tal estratificao ainda mais visvel . Ali, o migrante se torna umpobre. bem verdade que na roa, principalmente a partir da ambio, tambmexistem pobres e ricos, mas nem a riqueza nem a pobreza so conspcuas. Por outrolado, fazendeiros e lavradores participavam de uma mesma fartura:

    Na imagem formulada pelos migrantes, aliam simplicidade e riqueza: o rico daroa no gosta de luxo e nem de demonstrar atravs de atitude ostentatria que possui dinheiro, o que torna, primeira vista, difcil distinguir na roa o ricodo pobre (Menezes, 1976: 59-60).

    Ademais, se verdade que o fazendeiro se distingue do lavrador pela

    propriedade da terra e pelo poder, no se distingue pelos hbitos: usa roupas rsticas,

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    freqentemente no cala sapatos, e alimenta-se da mesma forma, pois tanto para ofazendeiro como para o lavrador a comida era farta.

    Na cidade, a riqueza se manifesta de forma distinta, pelo consumo ostentatrio.Mas a riqueza da cidade se confunde com a civilizao do homem urbano. Conforme

    foi visto, a mudana para a cidade tambm uma mudana de identidade o migrantequer negar o estigma de tabaru, jeca tatu, caipira, e uma das formas de se tornarcivilizado consumir, pois assim se aproxima do rico. Se no mundo rural o pobreno se importa com sua vestimenta ou com seu calado, tampouco o faz o rico. Nacidade, porm,

    se um compra um Volks, outro quer comprar um Opala. Isto uma questo deestudo, o sujeito vai pegando mais sabedoria, vai querendo evoluir mais que ooutro porque o que vale na cidade isso, o sujeito evoludo (Menezes, 1976:60).

    Na cidade, o elenco de alimentos que se apresentam ao migrante freqentemente maior que em sua regio rural de origem; no entanto, os limites derenda impedem que sejam adquiridos muitos desses artigos. Todavia, a urbanizao e aeventual disponibilidade de uma maior variedade de alimentos no altera,necessariamente, os hbitos alimentares. preciso distinguir, a propsito, entre orepertrio de alimentos conhecidos e aquele que efetivamente compe a prticaalimentar de um grupo. Maus & Maus registram um considervel nmero dealimentos conhecidos e classificados segundo suas qualidades intrnsecas e suasrelaes com o organismo humano; no entanto, a prtica alimentar se faz com umelenco muito mais reduzido, freqentemente limitado ao peixe com farinha note-seque a ausncia desses itens que configura, para aquele grupo, uma situao decarncia, e no a dos demais. Por outro lado, o lavrador de Mossmedes dispunha no

    passado recente de um elenco de alimentos efetivamente consumidos bastante maisvasto que aquele que tende a constituir sua refeio habitual, atualmente. Neste caso,no existia no passado contradio entre alimentos percebidos e alimentos consumidos. necessrio, por isso, distinguir entre um modelo ideal e aquilo que habitualmenteconsumido, este ltimo elenco freqentemente reduzido por razes econmicas. Aimpossibilidade de acesso a um conjunto de alimentos percebidos como de alto valornutritivo contraria a ideologia alimentar de um grupo. o que ocorre com os lavradoresde Mossmedes, crescentemente obrigados a centrarem sua dieta em um componentedefinido como fraco, o arroz mais arroz e menos feijo.

    Por outro lado, como observou Tavares (1976), para trabalhadores de origemrural em Belo Horizonte o aumento da renda disponvel pelo grupo domstico noparece conduzir a uma alterao na ideologia alimentar. O que provavelmente podeocorrer que uma maior disponibilidade de renda possibilita atualizar um padroalimentar definido segundo um modelo tradicional de percepo do alimento, o qualser tratado mais adiante. O mesmo deixa entrever a anlise de Novion (1976) relativaaos migrantes de Sobradinho (DF). Novamente segundo as observaes de Tavares, oque parece alterar a ideologia alimentar uma elevao significativa do nve