habitação na baixa pombalina arquitectura

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Habitação na Baixa Pombalina Análise de Tipos e Estudo de Intervenções Catarina Wall Gago Dissertação para obtenção de Grau de Mestre em Arquitectura Júri Presidente: Professora Doutora Teresa Frederica Tojal de Valsassina Heitor Orientador: Professora Doutora Ana Cristina dos Santos Tostões Vogais: Professora Doutora Maria Raquel Henriques da Silva Outubro 2007

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  • Habitao na Baixa Pombalina

    Anlise de Tipos e Estudo de Intervenes

    Catarina Wall Gago

    Dissertao para obteno de Grau de Mestre em

    Arquitectura

    Jri

    Presidente: Professora Doutora Teresa Frederica Tojal de Valsassina Heitor

    Orientador: Professora Doutora Ana Cristina dos Santos Tostes

    Vogais: Professora Doutora Maria Raquel Henriques da Silva

    Outubro 2007

  • INDICE

    0 Introduo 1

    1 Concepes de Habitao XV XX 6

    2 Evoluo do Sistema Construtivo 16

    3 Habitao Anlise da Variao Tipolgica 27

    4 Intervenes no Espao Domstico Estudos de Caso 40

    5 Concluses 59

    Bibliografia

    ndice de Imagens

  • 1

    INTRODUO

    A presente dissertao tem como tema o estudo da habitao nos prdios de rendimento da

    rea da Baixa Pombalina de Lisboa. O objectivo compreender as principais caractersticas da

    organizao espacial na generalidade destas habitaes e, seguidamente, identificar algumas formas

    de interveno qualificada. Pretende-se efectuar esta anlise com o intuito de perceber de que forma

    os pisos habitacionais podem constituir espaos domsticos qualificados, procurando assim reunir

    algumas pistas para futuros projectos de interveno.

    A escolha deste tema prendeu-se, num primeiro momento, com o enfoque do trabalho de

    Projecto Final na Baixa Pombalina, o que implicaria uma reflexo sobre a sua importncia patrimonial,

    o estado de degradao actual do seu edificado e formas possveis de potenciar a modificao desta

    tendncia. Efectivamente, este conjunto constitui uma referncia, tanto no contexto da evoluo da

    habitao colectiva em Portugal como ao nvel da evoluo das estruturas anti-ssmicas ao longo do

    tempo. Tendo sido um local privilegiado para habitar e fazer compras, observa-se actualmente a perda

    deste estatuto, associada degradao dos edifcios, principalmente devido falta de cuidados de

    manuteno e realizao de intervenes pouco criteriosas.

    Neste contexto, um dos aspectos cruciais na sua requalificao geral poder ser a

    requalificao da habitao, que permita ocupaes mais diversificadas e efectivas. Esta investigao

    parte da hiptese que, para tal, seja essencial considerar que tanto a deteriorao como as alteraes

    prejudiciais efectuadas nos edifcios exprimem uma necessidade de adaptao dos espaos a

    expectativas de uso actuais. Assim, considerando a natureza deste edificado, poder ser necessrio

    encontrar formas de interveno adaptadas sua especificidade, que considerem simultaneamente o

    carcter nico do edificado que se pretende conservar e as modificaes ocorridas nos modos de vida

    sociais e familiares, que tero levado a uma organizao espacial e funcional diferente da arquitectura

    domstica. A habitao na Baixa Pombalina poder, deste modo, constituir uma das variveis

    fundamentais para que se torne uma rea mais atractiva e, principalmente, mais vivida.

    A sistematizao das caractersticas que descrevem a habitao nestes edifcios tomou

    como referncia principal a dissertao de doutoramento de Jorge Mascarenhas, A study of the design

    and construction of Buildings in the Pombaline Quarter of Lisbon,1 na qual o autor realiza, por um lado,

    um levantamento importante e exaustivo das plantas dos pisos nobres e, por outro, procura estud-las

    tendo como base a evoluo dos tipos de escadas. Por outro lado, o artigo Casas sobre Casas,2 de

    Maria Helena Barreiros, constitui um primeiro contributo fundamental na descrio dos espaos

    domsticos pombalinos, no qual descreve igualmente o exemplo de um edifcio situado na R. de Santo

    Antnio da S, do qual, excepcionalmente, existem elementos desenhados originais, e que foi

    analisado na presente dissertao como principal estudo de caso. ainda importante mencionar, no

    1 MASCARENHAS, Jorge - A study of the design and construction of Buildings in the Pombaline Quarter of Lisbon, Glamorgan: s.n., 1996, policopiado. Dissertao de Doutoramento apresentada universidade de Glamorgan 2 BARREIROS, Maria Helena Casas em cima de casas, Monumentos. Lisboa, DGEMN, n21, Setembro 2004

  • 2

    contexto deste trabalho, a importncia da dissertao de doutoramento de Joana Cunha Leal,

    Arquitectura Privada, Poltica e Factos Urbanos em Lisboa: da cidade pombalina cidade liberal,3 pela

    sua pertinente anlise da insero do prdio de rendimento pombalino no contexto da sua evoluo

    histrica, e por efectuar uma breve descrio espao-funcional dos pisos habitacionais que constam do

    levantamento de Jorge Mascarenhas. Finalmente, importa referir os trabalhos de Jos-Augusto Frana

    Lisboa Pombalina e o Iluminismo4 e A reconstruo de Lisboa e a arquitectura pombalina,5 que

    estabelecem uma contextualizao histrica e construtiva na poca da reconstruo.

    O termo prdio de rendimento pombalino designa, tal como o indica Jos-Augusto Frana,

    o edifcio pombalino nmero um, que foi estudado para a Baixa e vrias vezes repetido, por todo o

    lado onde vrios focos de urbanismo apareceram. Ainda que o prdio pombalino seja, de qualquer

    maneira, uma abstraco, pois no existem prdios, mas blocos, conjuntos de quarteires de

    prdios.6 No presente trabalho o termo empregue, dado o local de estudo, apenas para designar os

    prdios de rendimento pombalino situados na Baixa Pombalina de Lisboa. igualmente referido o

    sistema estrutural que compe estes prdios, a gaiola, descrita pelo mesmo autor como uma

    estrutura de madeira que, pela sua elasticidade, se adapta aos movimentos do solo sacudido por um

    sismo, resistindo de p e desprendendo-se das alvenarias que podem (ou no) cair, sem que o prdio

    inteiro se desmorone.7 O sistema teria sido mencionado, j com esta denominao, por um visitante

    de 1789: Maneira de construir assaz singular, o carpinteiro o primeiro a ser chamado. Quando a

    gaiola do edifcio est terminada, chamam-se os pedreiros que levantam, entre os prumos, um muro

    de pedra mida ou de tijolos.8

    Relativamente comparao realizada no estudo emprico entre intervenes ainda

    fundamental mencionar como referncia no trabalho de anlise a dissertao de doutoramento de Luiz

    Manuel Amorim, The Sectors Paradigm,9 que aplica o modelo de Anlise Sinttica a habitaes

    modernistas no nordeste brasileiro. Esta ltima tem como base os trabalhos iniciais de Hillier e

    Hanson10 sobre o mesmo tema.

    O principal trabalho emprico realizado nesta dissertao trata-se da investigao realizada

    no mbito dos estudos de caso que tivessem sido alvo de interveno qualificada. A pesquisa foi

    realizada no sentido de encontrar projectos de interveno realizados por arquitectos em edifcios ou

    fogos da Baixa Pombalina. Num momento inicial, foram igualmente recolhidos outros exemplos: de

    edifcios degradados mas cuja compartimentao era ainda muito prxima da original, cujo

    levantamento havia sido realizado pela Unidade de Projecto Baixa-Chiado; do edifcio Confepele,

    3 CUNHA LEAL, Joana Arquitectura privada, poltica e factos urbanos em Lisboa da cidade pombalina cidade liberal, Lisboa: UNL/FCSH, 2005 4 FRANA, Jos-Augusto Lisboa Pombalina e o Iluminismo. 1 Edio. Lisboa: Bertrand Editora, 1987 5 FRANA, Jos-Augusto A reconstruo de Lisboa e a arquitectura pombalina. 3 Edio. Lisboa: Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa, 1989 6 FRANA, Jos-Augusto Lisboa Pombalina e o Iluminismo. 1 Edio. Lisboa: Bertrand Editora, 1987, p.173 7 FRANA, Jos-Augusto A reconstruo de Lisboa e a arquitectura pombalina. 3 Edio. Lisboa: Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa, 1989, p.56 8 FRANA, Jos-Augusto Lisboa Pombalina e o Iluminismo. 1 Edio. Lisboa: Bertrand Editora, 1987, p.167 9 AMORIM, Luiz Manuel do Eirado The Sectors Paradigm: a study of the spatial and functional nature of madernist housing in Northeast Brazil. London: s.n., 1999, policopiado. Dissertao de doutoramento apresentada Faculty of the Built Environment, The Bartlett School of Graduate Studies da University College London. 10 HILLIER, B e HANSON, J The Social Logic of Space. Cambridge: Cambridge University Press, 1984

  • 3

    situado entre a R. urea e a R. do Crucifixo, que foi alvo da interveno do mbito da reconstruo do

    Chiado aps o incndio de 1988; do quarteiro situado entre a Praa da Figueira e o Rossio. Os

    primeiros referidos no foram estudados pois foi escolhido analisar casos que tivessem ou viessem a

    ser alvo de interveno. Optou-se por estudar a compartimentao original dos edifcios da Baixa de

    uma forma mais simplificada, recorrendo sistematizao das plantas dos pisos nobres que fazem

    parte do levantamento de Jorge Mascarenhas. Escolheu-se igualmente analisar os estudos de caso

    fundamentalmente atravs da comparao das plantas dos mesmos antes e depois da interveno. O

    segundo exemplo referido no foi estudado por as plantas que representam a compartimentao do

    edifcio antes do incndio mostrarem que este se encontrava muito alterado face a uma organizao

    espacial interior original. Por ltimo, embora o caso do ltimo quarteiro mencionado constitua um

    exemplo muito interessante, optou-se por no o estudar devido ao carcter da interveno que nele ir

    ser realizada, isto , com funo de hotel, tornando-se muito diferente a comparao entre a nova

    compartimentao proposta neste caso e nos restantes.

    Relativamente aos estudos de caso estudados, estes podem ser divididos segundo o tipo de

    intervenientes e de alteraes realizadas: por arquitectos que habitam, eles prprios, o fogo ou edifcio

    em questo, ou cujo projecto de interveno foi encomendado directamente aos arquitectos; projectos

    referentes a edifcios que esto actualmente na posse de uma entidade colectiva, o que permite a

    interveno na totalidade do imvel, que ser posteriormente vendido aos diferentes proprietrios.

    Dentro destes ltimos casos importa realar o facto de se estudar uma interveno na qual se realizou

    apenas a beneficiao geral do edifcio, e outra, inserida no plano de reconstruo do Chiado aps o

    incndio, na qual foi efectuada a reconstruo total do interior do edifcio. Por ltimo, optou-se por

    incluir nos estudos de caso um exemplo de uma pequena interveno num fogo, realizada pelos

    anteriores proprietrios sem recurso a projecto de arquitectura, que se revela interessante por permitir

    observar os locais onde foi decidido intervir para adaptar a compartimentao e instalaes do fogo

    actualmente.

    Pretendeu-se efectuar a anlise dos fogos, que ser posteriormente descrita de forma mais

    pormenorizada, segundo uma abordagem que permita cruzar, de forma simplificada, dados de vrias

    provenincias. Deste modo, procurou-se identificar e comparar, para cada caso e sempre que

    possvel, a compartimentao dos fogos e a estrutura subjacente aos mesmos, assim como a funo

    atribuda s divises antes e depois das intervenes. Por ltimo, tendo como base a o modelo de

    Anlise Sinttica referido anteriormente, efectuou-se a representao grfica simplificada da

    organizao espao-funcional dos fogos, atravs de grafos justificados que permitam comparar

    facilmente as relaes entre os espaos convexos.

    O trabalho que se segue organiza-se segundo dois momentos principais. Inicialmente,

    procura-se contextualizar e fundamentar a pesquisa no mbito da evoluo de dois aspectos

    fundamentais. Deste modo, no Captulo 1 procura-se dar conta das alteraes gerais que ocorreram

    na arquitectura domstica portuguesa em meio urbano, tanto no perodo anterior reconstruo da

    Baixa como desde esta ltima at actualidade. Este estudo baseou-se principalmente na dissertao

    de doutoramento de Joana Cunha Leal, referida anteriormente, no breve trabalho de identificao dos

  • 4

    tipos de habitao em Lisboa ao longo do tempo de Nuno Teotnio Pereira11 e dos paralelos que foi

    possvel estabelecer com a evoluo da habitao em Frana, atravs dos trabalhos de Anne Debarre-

    Blanchard e Monique Eleb Vidal12, e de Jean Franois Cabestan.13 Por outro lado, no Captulo 2

    pretende-se compreender, inicialmente, a importncia dos sistemas de construo anti-sismica em

    madeira, assim como a sua evoluo temporal. Seguidamente, pretende-se situar a estrutura em

    gaiola pombalina neste contexto, perceber como eram construdos os edifcios poca da

    reconstruo e quais os principais problemas estruturais a que estes estejam sujeitos hoje em dia.

    Esta descrio teve como referncias fundamentais: os artigos de Stephen Tobriner,14 nos quais a

    evoluo e eficcia dos diferentes sistemas estruturais anti-sismicos em madeira equacionada; o

    artigo de Vtor Cias e Silva15 sobre as principais caractersticas da construo dos prdios de

    rendimento pombalinos e patologias mais frequentemente encontradas; o artigo de Rita Bento, Mrio

    Lopes e Rafaela Cardoso16, assim como a dissertao de mestrado desta ltima que, para alm dos

    aspectos previamente citados, referem possveis mtodos de reforo estrutural que melhorem o

    comportamento ssmico dos edifcios.

    Num segundo momento, composto pelos dois ltimos captulos da presente dissertao,

    procedeu-se caracterizao da parte emprica do trabalho. Deste modo, o Captulo 3 trata do estudo

    geral da compartimentao dos pisos habitacionais da Baixa Pombalina, tendo como base a anlise

    feita a partir dos pisos nobres dos edifcios, cujo levantamento foi realizado por Jorge Mascarenhas.

    Estas plantas foram estudadas procedendo distino simplificada segundo alguns factores: o tipo de

    escada, o tipo de quarteiro, insero no quarteiro, o nmero de fogos por piso, o nmero de

    entradas por fogo, o tipo de entrada (social, intermdia, independente ou de servio), o tipo de

    distribuio dos espaos no fogo (encadeada, hall, corredor). Foi igualmente estudada a prevalncia

    de alguns aspectos que ocorrem menos frequentemente em relao aos restantes factores: o nmero

    de linhas de divises paralelas fachada e a presena de um lano suplementar de entrada nos fogos.

    No quarto e ltimo captulo analisam-se doze estudos de caso de edifcios ou fogos que tinham sido

    alvo de intervenes, preferencialmente qualificadas. Esta anlise foi efectuada no intuito de

    compreender quais as principais modificaes presentes entre a organizao espao-funcional antes e

    depois das intervenes, assim como identificar quais os diferentes modos possveis de interveno.

    As plantas dos estudos de caso, antes e depois destas ltimas, foram analisadas tendo como base

    11 TEOTNIO PEREIRA, Nuno Evoluo das Formas de Habitao Plurifamiliar na Cidade de Lisboa, Lisboa: com o apoio da Fundao Calouste Gulbenkian,1978/79 12 ELEB-VIDAL, Monique, DEBARRE-BLANCHARD, Anne Architectures de la Vie Prive. 1 Edio. Bruxelas: AAM ditions, 1989 ELEB-VIDAL, Monique, DEBARRE-BLANCHARD, Anne Linvention de lhabitation moderne. 1 Edio. Bruxelas: ditions Hazan et AAM, 1995 13 CABESTAN, Jean Franois, La Conqute du plain-pied: limmeuble Paris au XVIIIe sicle. 1 Edio. Paris: Picard, 2004 14 TOBRINER, Stephen, Wooden Architecture and Earthquakes in Turkey: A Reconnaissance Report and Commentary on the performance of wooden structures in the Turkish earthquakes of 17 August and 12 November 1999 15 CIAS E SILVA, Vtor - Um novo modelo (e uma nova viso) do edificado pombalino, Monumentos. Lisboa, DGEMN, n6, Maro 1997 16 BENTO, Rita, CARDOSO, Rafaela, LOPES, Mrio Segurana Estrutural na Baixa Pombalina, Monumentos. Lisboa, DGEMN, n21, Setembro 2004 CARDOSO, Rafaela Vulnerabilidade Ssmica de Estruturas Antigas de Alvenaria. Aplicao a um Edifcio Pombalino. Lisboa: s.n., Outubro 2002. Dissertao de mestrado em Engenharia de Estruturas apresentada ao IST (Prmio MOP2003)

  • 5

    tanto os factores estudados no captulo anterior como as funes atribudas aos espaos e o modo

    como estes se relacionam.

    Finalmente, na concluso, ir recapitular-se sinteticamente as elaes principais de cada

    captulo, com especial enfoque nas anlises realizadas nos dois ltimos, isto , tanto da variao

    tipolgica geral das habitaes na Baixa como da observao dos estudos de caso intervencionados.

    Pretende-se, com base neste ltimo captulo, compreender quais as concluses gerais relativamente a

    algumas pistas gerais de interveno em futuros projectos nas habitaes deste conjunto edificado.

  • 6

    CAPTULO 1

    CONCEPES DE HABITAO XV XX

    s principais mutaes ocorridas durante os ltimos sculos no modo de viver em

    sociedade, em famlia e tambm na forma do indivduo estar consigo mesmo se podem, de um modo

    geral, associar as transformaes na arquitectura do espao domstico. No fundo, habitar um acto

    cultural, mais do que material. Ou se quisermos um acto cultural que se concretiza fisicamente.17 A

    organizao da habitao reflecte, ao longo do tempo, o modo como se entende a relao da mesma

    com a sociedade, com cada um dos elementos do grupo domstico, assim como a importncia que lhe

    foi acordada ao nvel do projecto, tanto ao nvel da sua concepo como tecnicamente. Neste caso,

    procurou-se sintetizar esta evoluo em dois momentos considerados relevantes neste estudo: as

    caractersticas da habitao antes e os factores que tero levado, no sculo XVIII, ao aparecimento do

    prdio urbano em distribuio horizontal, que constituiu uma alterao considervel na habitao

    colectiva em meio urbano; as principais modificaes ocorridas, em linhas gerais, na forma de

    organizar e conceber o espao domstico entre este momento, no qual podemos incluir a edificao da

    Baixa Pombalina, e a actualidade. Contudo, importa realar que estas transformaes se processaram

    de forma gradual, mesmo ao nvel da edificao da Baixa, que se prolongou durante um longo perodo

    de tempo e cujos edifcios reflectem tambm algumas alteraes dessa passagem temporal. Optou-se

    igualmente por estabelecer, em vrios momentos, paralelos com a evoluo da habitao francesa,

    tanto por constituir frequentemente uma situao de referncia para os projectistas nacionais, como

    por ser um tema que se encontra mais desenvolvido bibliograficamente e ao qual podemos, at certo

    ponto, reportar as caractersticas gerais da habitao em Portugal.

    Na breve descrio das habitaes da Idade Mdia na cidade de Lisboa feita por Nuno

    Teotnio Pereira so enumerados alguns tipos. O primeiro descreve as casas de andares de ressalto,

    geralmente habitaes muito modestas e com reas exguas18 com vos de pequena dimenso,

    construdas principalmente em madeira, que era usada para estabelecer o ressalto em consola. Este

    tipo de edifcio encontrava-se associado a ruas estreitas, tal como hoje podemos ainda observar, por

    exemplo, em Alfama. So tambm mencionados: o prdio de duas guas com fachada de bico, de

    construo em alvenaria de quatro a seis pisos, caracterizado por ter frentes de lote estreitas e por ter

    sido preponderante em reas urbanas muito densas; o pequeno prdio de alvenaria, mais baixo e

    alargado, com acessos directos aos fogos do rs-do-cho e vrias escadas para o primeiro andar.18

    As descries encontradas das habitaes francesas em meio urbano desta poca, ou seja,

    aproximadamente at ao incio do sculo XVII, parecem aproximar-se destes tipos, identificando

    pequenas casas urbanas em estreitas parcelas com apenas dois ou trs vos para a rua, cuja

    construo era feita inicialmente em madeira, habitualmente com embazamento em pedra. Aps o

    17 TOSTES, Ana A Arquitectura Privada do Quotidiano no Sculo XX, Histrias da Vida Privada, Ceclia Barreira, coordenao. Lisboa: Colibri (no prelo), p.1 18 TEOTNIO PEREIRA, Nuno Evoluo das Formas de Habitao Plurifamiliar na Cidade de Lisboa, Lisboa: com o apoio da Fundao Calouste Gulbenkian,1978/79, p.3

  • 7

    incio do sculo XVI a construo seria feita sistematicamente em alvenaria, embora a linguagem

    formal exterior s se tenha adaptado a esta realidade muito mais tarde. A distribuio das actividades

    ou locaes era feita verticalmente encontrando-se, de um modo geral, os estabelecimentos

    comerciais no piso trreo, assim como uma cozinha e sala a tardoz e, nos pisos superiores, os quartos

    dos proprietrios, empregados ou locatrios, servidos por uma escada de lano nico: nestas

    habitaes, a partilha de espaos faz-se verticalmente. Assim, uma mesma famlia podia ter uma sala

    num andar e quartos repartidos pelos outros andares. Era ento necessrio por vezes deixar que o

    vizinho atravessasse certas divises.19 Esta repartio de espaos parece semelhante que

    encontramos em edifcios de arquitectura vernacular em Lisboa nos quais, segundo Jorge

    Mascarenhas, a subida para os andares superiores feita atravs de escadas de tiro, que eram

    geralmente situadas prximo da fachada de rua para iluminao. No interior, a circulao faz-se de

    forma intercomunicante entre as divises, habitualmente com portas localizadas a meio das paredes

    interiores, sem recurso a espaos medidores. No caso francs, as habitaes mais abastadas so

    descritas como apresentando princpios distributivos semelhantes, isto , tendo compartimentos

    encadeados de grandes dimenses, que comunicam directamente entre si, aos quais no era

    habitualmente atribuda uma funo especfica fixa. Neste aspecto, a vida domstica das habitaes

    desta poca consideravelmente diferente de como a entendemos hoje em dia, existindo nestas

    divises plurifuncionais a evidncia de uma existncia menos individualizada tanto ao nvel familiar,

    pessoal ou profissional, nas quais as noes de pudor ou de intimidade, tal como as entendemos hoje

    em dia no so pertinentes.19

    Ainda no caso francs comea a notar-se, durante o inicio do sculo XVII, uma primeira

    definio de uso de espaos na habitao mais abastada, associada certamente alterao da

    relao do indivduo com os outros, que se pretende mais filtrada, respondendo aos gostos de uma

    sociedade ntima, de vida retirada e cmoda. 19 Uma noo de intimidade que se materializa ao nvel

    da existncia, por exemplo, de uma dupla circulao entre os aposentos, deixando de existir apenas a

    enfilade principal, da multiplicao de escadas de acesso ao piso superior ou da presena de

    compartimentos acessrios ao quarto, que permitem equacionar graus de profundidade atravs de

    vrias divises. Tambm na sala, anteriormente nica, se nota uma maior especificao de funes,

    aparecendo a galeria, a sala de jantar e o salo ou sala de estar, estas no piso inferior, marcadamente

    separadas da rea de servios da cozinha.

    A partir do final do sculo XVII e XVIII, ainda na habitao da aristocracia, a separao entre

    locais de representao social, vida profissional e a intimidade dos locais mais privados ir tomar

    outros contornos, com uma maior ateno dedicada, pela parte dos projectistas, distribuio da

    mesma: A organizao da habitao responde a este novo desejo de defesa contra o mundo. A noo

    de conforto teve as suas origens nesta poca; surgiu ao mesmo tempo que a intimidade, a discrio, o

    isolamento, uma das suas manifestaes.20 Embora no deixando as fachadas de ser um elemento

    de grande importncia no desenho e ornamentao, tambm as relaes estabelecidas entre as

    19 ELEB-VIDAL, Monique, DEBARRE-BLANCHARD, Anne Architectures de la Vie Prive. 1 Edio. Bruxelas: AAM ditions, 1989, p.21 20 ELEB-VIDAL, Monique, DEBARRE-BLANCHARD, Anne Architectures de la Vie Prive. 1 Edio. Bruxelas: AAM ditions, 1989, p.58

  • 8

    divises e o carcter cada vez mais funcionalmente especifico atribudo a cada uma, segundo um

    sistema de circulao mais preciso, sero alvo de maior ateno. Nestas habitaes, distinguem-se j

    principalmente duas linhas de divises na habitao: a enfilade principal sobre a fachada de rua ou

    jardim, na qual se incluem os quartos, as salas, e os espaos secundrios, como antecmaras ou

    compartimentos de apoio, como o guarda-roupa. A multiplicao das divises encontra-se expressa

    no s nestes espaos como, por exemplo, na especificao de compartimentos, que se distribuem

    em sequncia, especificamente dedicados ao homem e mulher. Efectivamente, os estatutos e

    papis do homem e da mulher diferenciam-se, articulam-se e hierarquizam-se de forma diferente

    consoante os perodos, o que se l muito claramente nos espaos que lhes so atribudos.21 Nesta

    poca, reconhecido a cada um a necessidade de espaos especficos e iguais em superfcie

    aparecendo, por exemplo, o boudoir, espao de retiro da senhora da casa.

    O sculo XVIII em Lisboa foi marcado, tal como em Frana, pela incio da ascenso de uma

    classe burguesa qual se destinava, segundo Teotnio Pereira, um outro tipo de edifcios, prdios de

    andares construdos de raiz que prenunciam com evidncia a construo urbana corrente aps o

    Terramoto22, apresentando elementos de fachada semelhantes aos edifcios da nobreza mas nos

    quais deixa de estar presente a hierarquizao vertical, isto , por exemplo, a distino em p direito

    entre um andar nobre e os restantes. Estas concluses vo ao encontro do estudo efectuado por

    Hlder Carita relativamente habitao no Bairro Alto, identificando edifcios de habitao plurifamiliar

    de dois a trs pisos desde, pelo menos, o sculo XVII. Estes edifcios apresentam uma dimenso de

    lote de 7 por 14 metros (30 por 60 palmos), que frequentemente ainda dividida, de modo construir

    fogos de menor dimenso ou a comportar dois fogos por piso, cada um com uma frente habitualmente

    correspondente a apenas um compartimento. As plantas estruturam-se a partir da colocao de uma

    escada de tiro, com patamares sucessivos para a colocao da entrada em cada piso, que se faz para

    um corredor que efectua, j no interior do fogo, a distribuio entre a sala e a cozinha, localizadas junto

    a fachadas opostas e entre as quais existiam normalmente duas divises interiores. Como

    verificaremos, este modelo de habitao iria ser consideravelmente modificado na reconstruo da

    Baixa Pombalina, cujos fogos comportaram maiores dimenses ao nvel da superfcie, assim como um

    maior nmero de vos, apresentando uma mdia de 3 a 5 janelas por fogo, o que significaria um

    relevante aumento da qualidade dos padres da arquitectura domstica prevalecente em Lisboa.23

    Efectivamente, tal como se observa, de um modo ainda elementar nos edifcios referidos

    situados no Bairro Alto, na segunda metade do sculo XVIII, podemos associar esta modificao na

    repartio das fortunas s transformaes profundas que se tinham vindo a desenvolver na habitao

    colectiva em meio urbano. A nova habitao dedicada a uma burguesia com mais recursos financeiros

    baseia-se, segundo o estudo realizado por Jean-Franois Cabestan da habitao parisiense, em

    alguns princpios decorrentes da habitao aristocrtica. Contudo, integra um modo de vida distinto,

    21 ELEB-VIDAL, Monique, DEBARRE-BLANCHARD, Anne Architectures de la Vie Prive. 1 Edio. Bruxelas: AAM ditions, 1989, p.284 22 TEOTNIO PEREIRA, Nuno Evoluo das Formas de Habitao Plurifamiliar na Cidade de Lisboa, Lisboa: com o apoio da Fundao Calouste Gulbenkian,1978/79, p.4 23 CUNHA LEAL, Joana Arquitectura privada, poltica e factos urbanos em Lisboa da cidade pombalina cidade liberal, Lisboa: UNL/FCSH, 2005, p.158

  • 9

    que lhe confere um carcter extraordinariamente inovador.24 esta mudana na repartio de

    classes, assim como a vontade, por parte dos proprietrios, de multiplicar o nmero de habitaes

    disponveis para aluguer, que levar a uma alterao profunda no modo de entender a habitao

    colectiva em meio urbano e ao aparecimento do prdio urbano, inicialmente prdio de rendimento. A

    modificao principal, que se processou de forma gradual, refere-se organizao horizontal das

    habitaes nos edifcios por nveis sobrepostos, to comummente aplicada actualmente, por

    comparao ao modelo anterior, de ocupao ou locao vertical dos espaos. Relativamente

    distribuio, importa destacar a repartio em apartamentos, agora de menor dimenso, associada a

    espaos comuns de acesso aos mesmos, que contribui para a privacidade de cada habitao, e o

    facto das divises de cada uma estarem situadas segundo um mesmo nvel, deixando de se subir para

    aceder aos quartos, obrigando a uma repartio diferente do observado at ento. igualmente nesta

    poca que os arquitectos comeam a intervir cada vez mais frequentemente no contexto da habitao,

    um trabalho ainda muito ligado ao desenho das fachadas, agora desenhadas com um vocabulrio

    adaptado construo em alvenaria, mas que comea a ter uma importncia crescente tambm ao

    nvel dos interiores, associada ao facto de se comear a projectar no para responder as exigncias de

    um proprietrio conhecido mas no intuito de prever as necessidades de potenciais locatrios

    annimos. Contudo, importa realar que, embora existam j alguns exemplos deste tipo de prdio

    urbano totalmente constitudo no final do sculo XVIII, com espaos comuns bem definidos,

    apartamentos completos segundo estratos horizontais e eliminao da hierarquia entre os nveis, estes

    s se generalizariam no sculo posterior, aps um perodo de transio.

    Atravs desta breve contextualizao dos traos gerais da evoluo da habitao ao longo

    destes sculos podemos comear a intuir qual foi, no caso portugus, a relevncia do edificado da

    Baixa e da sua contribuio, mesmo a este nvel, para a constituio de um novo modelo de habitao

    colectiva em contexto urbano. Representava um momento de transformao do panorama da

    arquitectura domstica da capital, concretizando, justamente, uma redefinio do prdio urbano.25

    Para tal contribui o facto de ser, de forma indita, uma interveno planeada urbanamente, ao nvel do

    planeamento dos quarteires, do desenho das fachadas, anteriormente apenas aplicado habitao

    nobre, e do sistema construtivo em gaiola. Por outro lado, este edificado foi construdo com o propsito

    especifico de constituir prdios de rendimento, isto , destinados sua rentabilizao por meio de

    aluguer dos fogos a terceiros. Este facto, de acordo com o enunciado previamente, denuncia uma

    tendencial alterao do quadro das relaes entre os proprietrios-edificantes e moradores-locatrios,

    significando que as habitaes passam a ser dirigidas s necessidades de potenciais residentes, que

    so perspectivadas aprioristicamente e em termos forosamente abstractos.25 Tal como observado,

    ao nvel do investimento nestes edifcios, neste caso ao nvel na Baixa da cidade de Lisboa, existe um

    predomnio da iniciativa de uma burguesia sem nobilitao, com significativos meios econmicos, que

    24 CABESTAN, Jean Franois, La Conqute du plain-pied: limmeuble Paris au XVIIIe sicle. 1 Edio. Paris: Picard, 2004 25 CUNHA LEAL, Joana Arquitectura privada, poltica e factos urbanos em Lisboa da cidade pombalina cidade liberal, Lisboa: UNL/FCSH, 2005, p.45

  • 10

    comea a instalar-se na cidade nova para nela residir, implantar os seus negcios e multiplicar os

    capitais.26

    Embora seja ainda mantida, nomeadamente ao nvel do p direito e, mais raramente, por via

    da subdiviso dos fogos em andares superiores, a hierarquia vertical ao nvel dos pisos, os edifcios

    pombalinos distinguem-se por definirem claramente, no seu interior, os locais comuns, nos quais se

    incluem as escadas, patamares e vestbulos de entrada, e os espaos privados dos fogos, que se

    desenvolvem horizontalmente de forma nivelada. Consumava-se deste modo, segundo Joana Cunha

    Leal, uma ruptura com modos de co-habitao admitidos no quadro da habitao burguesa

    tradicional, transportando para a residncia plurifamiliar as garantias de privacidade normalmente

    asseguradas pelas moradas unifamiliares. Uma ruptura que a evoluo do prdio urbano vinha

    maturando, mas que s com o parque residencial da cidade nova foi imposta em larga escala.27 A

    compartimentao dos fogos foi, salvo algumas raras excepes, deixada aos particulares, sem se

    recorrer, como foi o caso das fachadas, ao seu desenho prvio pelos elementos da Casa do Risco.

    Contudo, tanto a mtrica de fachada como a modularidade da estrutura subjacente aos edifcios definia

    necessariamente algumas das caractersticas destas habitaes. Verificamos sucintamente que estas

    apresentam, de um modo geral, trs linhas de compartimentos paralelas s fachadas: uma, junto

    fachada principal de rua, onde se situam as divises de maior dimenso da habitao, nas quais se

    inclui geralmente um salo e restantes salas em enfilade; a linha intermdia, que comunica

    habitualmente com esta ltima e na qual se incluem divises de menor dimenso, geralmente

    atribudas s alcovas, e frequentemente um pequeno espao mediador de entrada, que permite

    separar os acessos entre as salas e os compartimentos de servio. Estes ltimos, incluindo a cozinha

    com chamin, encontravam-se invariavelmente situados a tardoz, afastados dos espaos de

    sociabilidade, junto fachada com janelas para um saguo que, na rea central da Baixa, constitui um

    longo espao rectangular partilhado pelos edifcios do quarteiro.

    No restante crescimento da cidade de Lisboa se percebe como a tipologia de prdio de

    rendimento pombalino foi adoptado numa variedade de reas e, j sem o rigor das construes iniciais,

    durante um perodo de tempo alargado. Esta influncia seria maioritariamente prevalecente no que se

    refere iniciativa pblica e que, quando se passa para a encomenda particular a sua influncia foi

    restrita, pontual e rapidamente contestada, nomeadamente atravs de bairros nas em reas exteriores

    rea da reconstruo, como o bairro da Lapa ou a nova paroquial de Santa Isabel: a ausncia de

    um plano director possibilitaria, para alm da disseminao de barracas, a construo de estruturas

    prediais que perpetuavam os familiares esquemas vernaculares. Alheias aos princpios arquitectnicos

    da cidade nova e ao seu capital simblico, estas moradas mantinham, em larga medida, espaos de

    habitao muito exguos, mas com uma enorme vantagem: representavam um esforo de investimento

    infinitamente menor do que os prdios pombalinos e estavam, por isso, aptas a oferecer valores de

    26 HENRIQUES DA SILVA, Raquel Lisboa Romntica, Urbanismo e a Arquitectura 1777-1874. Lisboa: s.n., 1997, policopiado. Dissertao de doutoramento apresentada Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, p.43 27 CUNHA LEAL, Joana Arquitectura privada, poltica e factos urbanos em Lisboa da cidade pombalina cidade liberal, Lisboa: UNL/FCSH, 2005, p.47

  • 11

    arrendamento infinitamente menores.28 Contudo, para alm da flexibilidade com que o modelo

    pombalino foi interpretado no sculo seguinte, h que reconhecer a sua influncia no que constituiria o

    tipo base de edifcio de habitao colectiva at aos dias de hoje. A continuao do processo de

    reconstruo, que se prolongou durante um perodo de tempo alargado, nomeadamente na poca

    mariana, continuaria a ser feita segundo as disposies anteriores, embora sejam realizadas vrias

    alteraes, principalmente ao nvel dos ltimos pisos.

    Como vimos, desde a segunda metade do sculo XVIII que alteraes patentes na

    sociedade da poca, tanto ao nvel da distribuio de fortunas, especulao imobiliria e padres de

    intimidade face coabitao num mesmo edifcio se comearam a materializar nas cidades, com

    aparecimento do prdio urbano de rendimento, principalmente destinado burguesia, que se

    caracteriza por uma distribuio horizontal dos fogos sobrepostos, bem isolados dos espaos comuns,

    com o propsito de obteno de rendimento por via do arrendamento. Deste modo, ao contrrio do que

    acontecia na habitao individual, os fogos tm uma dimenso mais reduzida e so ocupados por

    residentes desconhecidos do projectista.

    Segundo estudos que incidiram na habitao francesa destes prdios urbanos no incio do

    sculo XIX, a arquitectura domstica evidencia a adaptao dos modos de compartimentao

    observados na habitao individual nobre a espaos mais reduzidos e organizados horizontalmente,

    embora sejam aplicadas algumas transformaes decorrentes de alteraes no modo de vida da

    poca. Sendo que o incio do sculo XIX constitui um momento de transio no que respeita a

    mentalidades, modos de vida e disposies espaciais () ao longo de um mesmo perodo vo

    coexistir vrias opes espaciais e, portanto, plantas de habitaes diversas.29 De um modo geral

    observam-se, inicialmente, alguns casos em que a compartimentao segue quase unicamente a da

    habitao aristocrtica individual, isto , com aposentos separados, ligados de forma encadeada, para

    cada membro do agregado familiar, incluindo o feminino boudoir e os sucessivos gabinetes de

    toilette. Progressivamente, as divises passariam a ter menores dimenses, evidenciando uma maior

    rentabilizao da rea dos fogos, assim como sinais de mudana nos usos e costumes, que se

    materializam numa distribuio parcialmente distinta dos espaos. Estas transformaes relacionam-se

    principalmente com a evoluo da percepo de conforto, observvel no aumento das reas dos fogos

    destinadas vida quotidiana na famlia (privada e servio), por oposio s divises mais destinadas

    vida pblica. Da mesma forma, as crianas passam a estar mais presentes na vida familiar, o que

    evidente ao nvel da habitao, com o aparecimento do quarto de criana, um compartimento de

    menor dimenso, habitualmente situado na proximidade de um quarto principal, a sala de jantar, um

    espao especificamente dedicado s refeies em conjunto, e a sala de famlia, local de convvio nos

    fins de tarde. Estas divises vo materializar a mudana na ideologia relacionada com os anos de

    formao e a emergncia das relaes de afecto na famlia.29 O aparecimento da sala de jantar

    enquanto espao definido, a partir do inicio do sculo XIX, de uma forma mais generalizada, adquire

    28 CUNHA LEAL, Joana Arquitectura privada, poltica e factos urbanos em Lisboa da cidade pombalina cidade liberal, Lisboa: UNL/FCSH, 2005, p.164 29 ELEB-VIDAL, Monique, DEBARRE-BLANCHARD, Anne Architectures de la Vie Prive. 1 Edio. Bruxelas: AAM ditions, 1989, p.284

  • 12

    ainda mais importncia posteriormente, atravs da sua progressiva aproximao da sala, sobre a qual,

    num primeiro momento, alinhando-se depois mesma junto fachada principal. Contudo, os espaos

    de servio, nomeadamente a cozinha, continuam a localizar-se mais em profundidade nas habitaes,

    por vezes associados a uma escada de servio que separe os acessos a estes locais. Observa-se

    igualmente, quanto s alteraes na habitao relativamente s funes sociais atribudas ao homem

    e mulher, o aumento dos espaos dedicados sociabilidade masculina (sala de fumo ou de bilhar) e

    a reduo dos especificamente atribudos mulher, que o sculo XIX define partida atravs do seu

    estatuto de esposa e me () que ajuda (o marido) na sua trajectria social.29 A este aspecto, e

    reduo da dimenso dos fogos, associa-se a alterao no espao dos quartos, anteriormente

    separado em vrios aposentos para o homem e para a mulher, que se vo tornando no quarto

    conjugal. ainda de salientar o aparecimento, ao nvel dos prdios urbanos, das divises dedicadas

    higiene, que se encontravam por vezes presentes, segundo um esquema de vrios espaos

    encadeados, na habitao aristocrtica do sculo anterior. Embora inicialmente possam encontrar-se

    em nmero reduzido, a sua maior generalizao, que ir ter lugar ainda no sculo XIX, ocorre quando

    as regras de higiene se tornam uma necessidade para as quais preciso reservar um local

    qualificado, adaptado a essas prticas30, e quando essa evoluo se torna simultaneamente possvel,

    atravs de inovaes tcnicas, como a distribuio de gua corrente.

    Contudo, de referir que, embora na habitao de classes com recursos em meio urbano

    parea seguir estas linhas gerais de evoluo, em habitaes mais modestas, especialmente as

    localizadas em meios rurais, a compartimentao continua a assemelhar-se existente nos sculos

    anteriores, com divises em menor nmero, de maior dimenso, nas quais se agrupam diversas

    funes da habitao. o caso da sala, que inclui tambm as funes de cozinha e sala de jantar:

    Esta situao ilustra bem os modos de habitar assim como os limites da sua repercusso.31

    No final do sculo XIX e incio do sculo XX, j no contexto da habitao portuguesa, ainda

    na habitao burguesa que se fazem as principais experincias na compartimentao e inovaes

    tcnicas, associadas transformao progressiva nos costumes e aos progressos da indstria. No

    domnio dos materiais so introduzidos, ainda de uma forma no assumida, o beto armado, o ao e o

    vidro, principalmente como forma de facilitar a colocao da estrutura e potenciar a economia de

    espao. Posteriormente, estes novos materiais, associados distribuio de redes, como gua,

    electricidade e gs, iro contribuir para uma maior qualificao geral da habitao em termos de

    conforto e higiene, e para dar forma a novas ideias. A habitao, tal como referido anteriormente,

    procura reger-se por novas exigncias de conforto e de individualismo (a ideia de um espao para si).

    deste modo que se dissemina a sala de estar comum, ou salo, o agrupamento dos quartos e a

    constituio do quarto conjugal, assim como a progressiva unificao dos espaos dedicados

    higiene, com a constituio da actual casa de banho. A implantao definitiva desta ltima, motivada

    por princpios de intimidade e pudor, ir ser potenciada pela referida distribuio de gua aos edifcios

    e igualmente pela inveno e difuso do sifo, que contribua para a eliminao da propagao dos

    odores no espao domstico. A separao das reas pblicas, privadas e de servio continuam a ter

    30 ELEB-VIDAL, Monique, DEBARRE-BLANCHARD, Anne Architectures de la Vie Prive. 1 Edio. Bruxelas: AAM ditions, 1989, p.284

  • 13

    grande importncia na forma de distribuio dos compartimentos, nomeadamente com a generalizao

    do corredor: a dissociao das circulaes de servio das reservadas famlia e recepo

    determinam na casa burguesa essa constante tripartio e na pequeno-burguesia, onde muitas vezes

    esto ausentes os criados, a bipartio.31 Deste modo, a cozinha continua a encontrar-se afastada

    das restantes reas da habitao, no sendo determinante na sua localizao a relao entre as

    actividades de comer e preparar as refeies, encontrando-se habitualmente associada ao espao

    de saguo e a uma escada de servio, que distanciava os criados dos residentes. Efectivamente,

    vrios espaos, incluindo a cozinha e por vezes os quartos, eram ainda iluminados e ventilados

    apenas atravs do saguo, o que denuncia a importncia ainda conferida s reas de recepo, facto

    para o qual contribui a presena de lotes de dimenses idnticas s anteriormente praticadas. Nos

    prdios de rendimento estes princpios so moldados a espaos de dimenso mais reduzida, nos quais

    a cozinha e instalaes sanitrias se posicionam numa zona hmida na proximidade do saguo, os

    quartos se viram igualmente a tardoz, enquanto os espaos de sociabilidade, salo e sala de jantar, se

    localizam na frente bem iluminada da habitao.

    nesta poca que se inicia o debate sobre as condies de vida no alojamento operrio, no

    qual ainda esto ausentes os arquitectos. Este decorrente de um aumento da procura por parte da

    populao que, motivada pelo crescimento industrial, vem habitar em meio urbano. A habitao

    operria cedo se disseminar sob a forma de Vilas Operrias, habitaes colocadas em torno de um

    ptio, um espao semi-pblico, aproprivel pelos ocupantes. As habitaes so estruturadas em

    funo de reas extremamente reduzidas, com uma sala comum de convvio familiar, locais que se

    procuram separar atravs de cortinas amovveis constituindo alcovas, exprimindo a penria de um

    espao sem circulaes ou antecmaras. A esta realidade acrescenta-se a edificao dos primeiros

    bairros sociais da Ajuda e do Arco do Cego, em 1917-18, que constituem casos pontuais mais

    qualificados, baseados nas premissas da habitao burguesa.

    Durante as dcadas seguintes a generalidade da habitao estabelece uma continuidade

    com a situao observada anteriormente, na qual a principal transformao se refere utilizao

    sistemtica de inovaes tcnicas, como gua corrente, luz e electricidade. No plano social e familiar,

    o papel da mulher enquanto dona de casa comea lentamente a alterar-se, antecipando um papel mais

    activo na sociedade e no mercado de trabalho.

    Contudo, importa salientar alguns exemplos ocasionais de habitaes unifamiliares onde se

    iriam exprimir premissas da habitao moderna internacional, nomeadamente os de le Corbusier. o

    caso das vivendas com projecto de Cassiano Branco e Cristino da Silva, que se caracterizam por uma

    procura de racionalidade na dimenso, articulao e fluidez de espaos, nomeadamente atravs da

    ligao entre sala de estar e de jantar, que se associa presena de grandes vos envidraados. So

    tambm introduzidos novos equipamentos e dispositivos de arrumao associados cozinha. No

    exterior, a cobertura aproveitada como terrao. No contexto da habitao mais modesta, iriam ser

    criados os primeiros bairros sociais do Estado Novo, Alvito, Madre de Deus e Madragoa, segundo um

    31 TOSTES, Ana A Arquitectura Privada do Quotidiano no Sculo XX, Histrias da Vida Privada, Ceclia Barreira, coordenao. Lisboa: Colibri (no prelo), p.5

  • 14

    programa no qual so aplicados os princpios subjacentes pequena casa rural, com entrada para a

    sala comum no andar inferior e os quartos situados no piso superior.

    Nos anos 40 a habitao destinada burguesia, como o caso dos edifcios de Cristino da

    Silva para o Areeiro, exprime nas fachadas o carcter monumental e revivalista que caracteriza a

    arquitectura do regime e, nos interiores, as caractersticas da habitao burguesa do inicio do sculo.

    Comea igualmente a revela uma preocupao de natureza diferente, relativa iluminao e

    ventilao dos espaos, com a proposta de lotes de menor profundidade.

    Contudo, comeam a surgir alguns exemplos, tanto na habitao burguesa como

    econmica, de transformaes e preocupaes que se expressariam no primeiro Congresso Nacional

    de Arquitectura, no ano de 1948. , por exemplo, o caso da habitao no bairro de Alvalade, na qual

    se inicia uma reflexo sobre as caractersticas do espao domestico mais reduzido, nomeadamente

    em relao optimizao da rea dos compartimentos face circulao, a forma de potenciar uma

    maior iluminao natural dos espaos. O debate sobre a habitao econmica precisamente um dos

    aspectos abordados no Congresso, tema este que se reflecte no interesse cada vez mais presente dos

    arquitectos pela arquitectura domstica corrente, nomeadamente atravs da pesquisa de solues

    diversificadas para o alojamento de classes mais desfavorecidas: at ao sculo XIX, os arquitectos

    tm um modelo, a habitao de luxo, que qualificam de completa, a partir da qual fazem as

    adaptaes para a habitao de qualquer classe social. No sculo XX, a lgica parece ser inversa, e

    os arquitectos trabalham antes na habitao reduzida e juntam elementos de conforto e anexos s

    divises.32 Procura-se encontrar formas de modernizar e dar mais conforto a estas habitaes com

    superfcie restrita, que se tornaram local de investigao e reflexo para as transformaes no habitat.

    As habitaes da dcadas seguinte iro exprimir esta pesquisa ao nvel da

    compartimentao, da distribuio, dos dispositivos que podero tornar a vida quotidiana mais prtica.

    De um modo geral, destaca-se a importncia dada relao com o espao exterior, nomeadamente

    atravs da iluminao natural, com menor profundidade dos lotes agora sem sagues, e da integrao

    de varandas terrao no espao dos fogos. As reas de servio, que se procuram racionalizar, passam

    a ser alvo de uma percepo diferente, isto , deixam de ser considerados espaos de secundrios

    para serem colocados junto aos espaos de estar, com vos para o exterior e grelhas que escondem,

    por exemplo, a rea de estendal. Por outro lado, pretende-se igualmente uma simplificao e

    economia dos espaos, o que observvel ao nvel das circulaes, implicando uma reduo dos

    espaos mediadores, existentes anteriormente na habitao burguesa, e tambm ao nvel do modo de

    racionalizao da decorao face estrutura.

    Finalmente, importa ainda destacar as alteraes que se processaram na vida familiar, pelo

    menos de uma forma mais acentuada, a partir dos anos 60, com a sucessiva reduo do agregado

    familiar a habitar o mesmo fogo, passando de famlias alargadas a famlias nucleares, estruturadas em

    torno do casal, associado ao novo papel da mulher na vida activa remunerada, o que contribui para a

    reduo da dimenso dos fogos, assim como a atribuio de um maior nfase ao carcter prtico e

    racional dos seus espaos e elementos constituintes.

    32 ELEB-VIDAL, Monique, DEBARRE-BLANCHARD, Anne Linvention de lhabitation moderne. 1 Edio. Bruxelas: ditions Hazan et AAM, 1995, p.506

  • 15

    Como observmos, o modo como entendemos a arquitectura do espao domstico hoje em dia o

    resultado de transformaes sociais e tcnicas profundas, e sobre as quais os intervenientes que em

    tal processo participam, como os arquitectos, se continuam a interrogar. Verificaram-se suficientes

    alteraes nos ltimos sculos para podermos concluir que haver sempre lugar para mais pesquisas

    num meio to ligado ao quotidiano que dificilmente poderia ser estanque. Relativamente ao edificado

    da Baixa, encontra-se patente o impacto que o seu prdio urbano de rendimento deixou, imediata mas

    principalmente a longo prazo. No entanto, como se observou, ocorreram, durante os sculos que se

    seguiram reconstruo, alteraes no modo de vida social e familiar que potenciaram igualmente

    transformaes na organizao da compartimentao e distribuio dos fogos. na conscincia da

    importncia deste conjunto, e desta evoluo, que se torna crucial perceber como estes pisos de

    habitao se podem adaptar e ser vividos hoje em dia. Neste contexto, duas premissas podero ser

    importantes: a ideia de que o habitante-tipo no existe, ou j no existe, estando antes presentes

    diferentes modos de vida que podem ser considerados normais, e como consequncia diferentes

    maneiras de habitar33; a noo de que a transformao de um habitat no deve ser reduzida

    conservao de uma carapaa, pois toda a reabilitao deve antes permitir reconhecer a ordem

    antiga na ordem nova.34

    33 ALDER, Michael, DIENER, Roger, STEINMANN, Martin, Rflexions sur le logement contemporain, Faces n28, 1993, p.3 34 STEINMANN, Martin, Une maison, un palimpseste. A propos de la transformation d'une ferme jurassienne la Sagne (Vaud), Faces n18, 1999, p.58

  • 16

    CAPTULO 2

    EVOLUO DO SISTEMA CONSTRUTIVO

    Os sismos so fenmenos naturais de origem geolgica, resultantes de uma libertao

    sbita de energia que se foi acumulando numa regio da crosta terrestre, e se propaga depois sob a

    forma de ondas ssmicas. A sua grande maioria de origem tectnica, isto , resultante da deslocao

    de dois bordos de uma falha activa quando submetidos aco de foras.35 A energia referida

    libertada quando o material ultrapassa o seu limite de elasticidade, entrando em ruptura. Segundo

    especialistas, os sismos so inevitveis e praticamente imprevisveis.36 Hoje em dia, a sua previso

    significa geralmente o conhecimento da sua ocorrncia num determinado espao de tempo (como um

    perodo de 10 anos, por exemplo), mas habitualmente no a certeza do seu momento exacto. Como

    sabemos, o risco ssmico num local depende no s da magnitude do sismo mas tambm de como

    este ir afectar uma populao que habita um parque edificado mais ou menos preparado. Assim, as

    perdas tanto humanas, como sociais e econmicas, dependem em grande medida do grau de

    resistncia ssmica dos edifcios. A tomada de conscincia deste facto, ao longo dos anos, ter levado

    procura e evoluo de uma construo anti-ssmica no mundo.37

    Ao longo da histria, a estrutura designada por gaiola, concebida para os edifcios da

    reconstruo da Baixa Pombalina de Lisboa, destaca-se como um dos mais importantes sistemas

    construtivos anti-ssmicos do seu gnero. Foi desenvolvido na reconstruo subsequente ao sismo de

    1755, na qual tanto a planta da cidade afectada foi alterada, como a estrutura dos edifcios. Esta

    estrutura em gaiola, com um sistema interligado cruzado em madeira, permitiu melhorar

    significativamente o comportamento ssmico dos edifcios, face aos at ento assentes apenas numa

    estrutura de alvenaria. possvel observar princpios construtivos semelhantes (embora possivelmente

    no aplicadas de forma to sistemtica e uniformizada) em alguns casos anteriores, decorrentes de

    sismos noutros locais, cujo estudo foi bastante aprofundado por Stephen Tobriner (U. Berkeley).38 o

    35 Durante o sc. XX, o apuramento dos instrumentos ssmicos e, nomeadamente, a utilizao mais frequente de sismgrafos a nvel mundial, tornaram claro comunidade cientfica o facto dos sismos ocorrerem predominantemente em certas reas do globo, sobretudo ao nvel de fossas e cristas medio-ocenicas. Estas descobertas bem como as diversas teorias conduziram incorporao da teoria da deriva dos continentes e da expanso do fundo dos oceanos na teoria sinttica da tectnica de placas: A superfcie encontra-se fragmentada em enormes placas - placas litosfricas. Estas placas deslocam-se e interagem entre si, o que faz com que as suas extremidades constituam locais de intensa actividade geolgica, verificando-se sismos e vulces. Na zona de divergncia de placas ocorre a regenerao da litosfera, enquanto que nas zonas de convergncia uma das placas pode mergulhar para o interior do globo, permitindo a reciclagem dos materiais. in http://www.spes-sismica.org/ (Sociedade Portuguesa de Engenharia Ssmica), acedido em Abril 2007 36 in BENTO, Rita, CARDOSO, Rafaela, LOPES, Mrio Segurana Estrutural na Baixa Pombalina, Monumentos. Lisboa, DGEMN, n21, Setembro 2004, p.177 37 The word antiseismic, is used here to mean a structure which is designed to be seismically resistant. in TOBRINER, Stephen Wooden Architecture and Earthquakes in Turkey: Reconnaissance Report and Commentary on the performance of wooden structures in the Turkish earthquakes of 17 August and 12 November 1999, relatrio efectuado para o Centro de Desenvolvimento Regional das Naes, Abril 2000, p.11 38 O estudo da evoluo de tcnicas construtivas anti-ssmicas no mundo encontra-se bastante aprofundado nos artigos de Stephen Tobriner: op. cit. e TOBRINER, Stephen A Gaiola Pombalina: o sistema de construo anti-ssmica mais avanado do sculo XVIII, Monumentos. Lisboa, DGEMN, n21, Setembro 2004, p.160

  • 17

    caso das aces efectuadas em sequncia do sismo de 1692 na zona sudeste da Siclia, tendo-se

    verificado o redesenho das plantas das cidades danificadas, de modo a criar ruas mais largas e

    direitas, assim como a construo de edifcios mais baixos (ainda em alvenaria). Em Palermo (1726)

    procurou-se o reforo das igrejas danificadas com tirantes de ferro e o uso de elementos mais leves.

    O surgimento de tcnicas construtivas anlogas gaiola comearia em meados do sculo

    XVIII, com o aparecimento de uma estrutura denominada quincha, cujo uso seria tornado obrigatrio

    em Lima, no Peru, aps o terramoto de 1746. Esta grade de madeira e folhas de bambu era envolta

    em lama e gesso, e colocada nas paredes dos andares superiores dos edifcios. Tambm o sistema

    tradicional de construo das casas turcas, muito comum no sculo XVIII, se julga que teria como base

    a diminuio da vulnerabilidade ssmica das mesmas, com uma estrutura em madeira colocada

    geometricamente e na diagonal, associada a um enchimento de tijolo de lama ou adobe. Contudo,

    segundo estudos a edifcios no local, a aplicao das diagonais no era uniforme nem aplicada

    consistentemente, e o uso de outros mtodos de melhoramento do comportamento ssmico, como a

    continuidade vertical ou o uso de plantas simtricas, era raro (ao contrrio da gaiola). Esta estrutura,

    por ser extremamente perigosa (se no estiver coberta por tijolo) em caso de incndio, foi abandonada

    no sculo XIX, tendo sido substituda por tijolo e posteriormente por beto armado. Porm, o

    comportamento das antigas estruturas de madeira no sismo de 1999 relevou-se frequentemente

    melhor do que o das estruturas referidas (muitos edifcios em beto armado eram incorrectamente

    construdos), o que tem levado a estudos mais aprofundados sobre as suas caractersticas e

    vantagens. Foram igualmente usadas estruturas de madeira em Madrid durante os sculos XVIII e XIX;

    estas, provavelmente por se tratar de uma regio sujeita a uma menor actividade ssmica,

    apresentavam poucas diagonais, e eram construdas em simultneo com a estrutura de alvenaria.

    J em finais do sculo XVIII, aps o sismo de 1783 em Calbria, surge um sistema

    semelhante, a casa baraccata, representado numa gravura de Vincenzo Ferraresi. Teria uma

    estrutura de madeira com diagonais em cruz revestida a alvenaria, embora fosse provavelmente muito

    difcil de construir, devido quantidade de madeira necessria (e a incongruncias patentes nos

    elementos desenhados). Existem ainda alguns edifcios construdos segundo um modelo prximo

    deste, embora retirando as diagonais exteriores (engenheiro Francesco La Veja). Este sistema, que

    aparece por vezes referido como tendo originado as primeiras regras tcnicas para a construo anti-

    ssmica,39 baseia-se muito possivelmente no sistema construtivo pombalino. Teria sido, no entanto,

    mal interpretado, ficando em termos de eficcia,()muito aqum da gaiola.40 igualmente de referir

    o desconhecimento internacional existente na poca relativamente divulgao da reconstruo da

    Baixa Pombalina. Embora a notcia do violento sismo de 1755 tenha sido difundida, como podemos

    testemunhar hoje, atravs de diversos relatos escritos por estrangeiros sobre o acontecimento41, a

    inovao presente na gaiola e na planta da Baixa no teve a mesma repercusso.

    39 in CIAS E SILVA, Vtor - Um novo modelo (e uma nova viso) do edificado pombalino, Monumentos. Lisboa, DGEMN, n6, Maro 1997, p.81 40 in TOBRINER, Stephen, op. cit. b, p.166 41 So de referir, entre estes relatos, a referncia ao terramoto feita na poesia Dlices de Voltaire e a Ode dramtica s vtimas do terramoto, de Georg Philip Telemann

  • 18

    J no incio do sculo XIX, importa referir a utilizao do sistema americano de construo

    anti-ssmica de casas, denominado baloon frame. Ao contrrio das construes anteriores, mais

    pesadas e que requeriam conhecimentos especializados, este um sistema leve de madeiras

    verticais, colocadas a intervalos de 16 polegadas e pregadas aos membros horizontais com pregos

    produzidos industrialmente. Era um tipo de construo considerada sismicamente resistente em So

    Francisco; o seu maior problema relaciona-se com a propagao do fogo. Por outro lado, so ainda de

    referir, no Oriente, algumas experincias pontuais de habitaes aristocrticas construdas em madeira

    reforada no Japo, e o complexo sistema de consola chins das dinastias Ming (1368-1644) e Ching

    (1644-1911), o dougong. Segundo alguns autores, provvel que as juntas das consolas

    conseguissem diminuir a vulnerabilidade dos edifcios, embora no haja ainda publicaes

    comprovativas do seu funcionamento anti-ssmico.

    De um modo geral, devido ao seu contexto tectnico, o territrio portugus constitui uma

    zona de sismicidade importante.42 Efectivamente, ao longo da histria, algumas reas tem sido alvo

    de sismos de uma magnitude elevada, como o caso do ocorrido em 1755 em Lisboa.

    Como referido inicialmente, a maioria dos sismos (origem tectnica) ocorrem por deslocao

    de dois bordos de uma falha activa quando submetidos aco de foras. Deste modo, grande parte

    da actividade ssmica ocorrida deve-se proximidade do territrio nacional da fronteira entre duas

    placas tectnicas activas, a placa africana e a placa euroasitica (fenmenos interplacas). Estes

    sismos ocorrem no mar, principalmente com epicentro no Banco de Gorringe, a cerca de 200 km a

    sudoeste do Cabo de S. Vicente, e podem atingir grandes magnitudes. Ocorrem igualmente vrios

    sismos intraplaca (interior da placa litosfrica euroasitica), com epicentro a menores distncias e

    sismicidade moderada (baixa no norte do pas), principalmente na regio do vale do Tejo e no Algarve.

    Para alm destas caractersticas, ao analisar a carta de isossistas mximas observadas, verificamos

    que as maiores intensidades ssmicas esto associadas ao litoral do continente, onde tambm a

    concentrao demogrfica mais elevada. Assim, possvel concluir que o risco ssmico no

    continente elevado,43 e como se torna crucial a vulnerabilidade ssmica do edificado.

    A cidade de Lisboa tem sido atingida ciclicamente por sismos fortes.44 Os mais antigos

    frequentemente referidos so os de 63 a.C e 382 d.C., com epicentro no Banco de Gorringe e sentidos

    em todo o territrio. Posteriormente, Lisboa ter sido bastante afectada durante o sculo XIV, com um

    importante sismo no ano de 1344, com epicentro na falha do vale inferior do Tejo, e outro no ano de

    1356 (B.G.). Seguidamente, aps um intervalo de algum tempo, iro ocorrer alguns sismos no sculo

    XVI, nos anos de 1531 (vale inferior do Tejo) e em 1597. O primeiro encontra-se bastante

    42 in http://www.spes-sismica.org/pSIsmHist.htm (Sociedade Portuguesa de Engenharia Ssmica), acedido em Abril 2007 43 in http://www-ext.lnec.pt/LNEC/DE/NESDE/divulgacao/tectonica.html (Ncleo de Engenharia Ssmica e Dinmica de Estruturas, LNEC), acedido em Abril 2007 44 in BENTO, Rita, CARDOSO, Rafaela, LOPES, Mrio, op. cit. p.177

  • 19

    documentado, sendo referida uma destruio de 25% das casas em Lisboa e principalmente de vrias

    aldeias no Vale de Santarm.45

    Como sabemos, durante no incio do sculo XV que se ir fazer a urbanizao da colina

    da Pedreira () incentivada pela concesso de incentivos construo. () Durante o sculo XVI a

    praa do Rossio e o Terreiro do Pao comeam a adquirir as funes que hoje desempenham, sendo

    os principais aterros na zona ribeirinha feitos nesta poca. Posteriormente, D.Manuel I mandou

    construir novos bairros fora da muralha, nomeadamente a Vila Nova do Andrade, ou Bairro Alto de S.

    Roque, a norte na colina da Pedreira. A edificao, como visvel na planta de 1650 (Joo Nunes

    Tinoco), regularizada mas densa, com declive mdio.46 O traado mais ortogonal desta rea de

    expanso dever-se- a vrios factores, como a ausncia de construes pr-existentes e o facto de

    pertencer a um nico proprietrio, mas tambm, segundo alguns autores, ao referido sismo de 1531.

    Este ocorre durante a poca da sua urbanizao, e poder ter contribudo para uma maior tomada de

    conscincia da importncia de uma mtrica regular na edificao. Por sua vez, o terramoto de 1597

    afectou mais significativamente o local do hoje apelidado Bairro da Bica, no qual a maior parte das

    habitaes era construda de forma precria com base nas tecnologias medievais.47 O sismo levou a

    um grande deslizamento de terras que destruiu mais de uma centena de casas, originou o

    afundamento de trs ruas e levou ao surgimento do vale entre a actual Rua das Chagas e Marechal

    Saldanha. Este factor ter contribudo para a uma reconstruo, efectuada no sculo XVII, diferente do

    habitual, atravs de um plano de urbanizao dos arruamentos da Bica, da Boa Vista e do Poo dos

    Negros encomendado ao arquitecto Teodsio das Frias. A edificao de elevada densidade, mas

    com uma ortogonalidade surpreendente pelo declive do solo, atravs de uma organizao em malha

    regular ordenada pelos eixos direccionais que articulam a zona com o exterior, formando um traado

    em forma de espinha, mais modelado na envolvente da Rua da Bica e mais solto na zona do Poo dos

    Negros/Boa Vista. 48

    Aps o sismo de 1755, cujo impacto ser abordado seguidamente, so de referir ainda os

    terramotos de 1899 e 1909, ambos com origem em actividade intraplacas com epicentro no vale

    inferior do Tejo. Este ltimo originou alguns danos materiais em Lisboa, mas atingiu principalmente a

    rea de Benavente. O sismo mais recente de alguma magnitude sentido na capital ocorreu no ano de

    1969, com epicentro no Banco de Gorringe, provocando apenas alguns danos materiais.

    com base nestes acontecimentos que possvel concluir que a cidade de Lisboa ser

    certamente atingida por sismos de grande magnitude no futuro,49 apenas no se podendo determinar

    o momento exacto da sua ocorrncia. por isso crucial o estudo do desempenho ssmico do seu

    parque edificado, em particular o dos edifcios da Baixa Pombalina, ao nvel do comportamento

    45 in http://lisboa.kpnqwest.pt/p/cidade/cronos/cronos_01.html (Pginas de Lisboa - Cronologia), acedido em Abril 2007 46 in GAGO, Catarina, FIGUEIREDO, Rui, MARTINS, Daniel, SILVA, Alberto Anlise da evoluo urbana da unidade de reabilitao Chiado Sul. Trabalho da disciplina de Histria da Cidade. Lisboa, IST, Janeiro 2007, p.4 47 in CALADO, Maria, MATIAS FERREIRA, Vtor - Lisboa: Freguesia de Sta. Catarina (Bairro Alto). 1 Edio. Lisboa: Guias Contexto, 1992, p.20 48 NDIAS CORDEIRO, Graa, GARCIA, Joaquim - Lisboa: Freguesia de S. Paulo. 1 Edio. Lisboa: Guias Contexto, 1993, p.29 49 in BENTO, Rita, CARDOSO, Rafaela, LOPES, Mrio, op. cit. p.177

  • 20

    estrutural, quer nos casos em que foi mantida a estrutura original, quer quando se introduziram

    alteraes potencialmente prejudiciais nos edifcios.

    Como referido no captulo anterior, seria no Dia de Todos os Santos, 1 de Novembro de

    1755, que a cidade de Lisboa sofreria um terramoto extremamente forte, que foi sentido em toda a

    Pennsula Ibrica. Os principais danos verificaram-se na zona da Baixa e do Chiado, tanto devido ao

    terramoto em si, como provocados pelo incndio e maremoto subsequentes. O seu epicentro foi

    inicialmente atribudo actividade ssmica (interplacas) apenas do Banco de Gorringe. Porm, estudos

    mais recentes (Fonseca, Nunes, Vilanova)50 indicam a possibilidade de que este terramoto no mar

    tenha originado, alguns minutos depois, a rotura da falha intraplacas no vale inferior do Tejo, mais

    perto de Lisboa, explicando assim a sua magnitude quando comparado com outros sismos.

    Aps o terramoto, Sebastio Jos de Carvalho e Melo, Secretrio de Estado do Reino e

    posteriormente Marqus de Pombal, assumiria imediatamente a gesto da situao e a direco do

    processo de reconstruo. Pombal decretaria a proibio de construir fora dos limites antigos da

    cidade, o que j poderia indicar a inteno de reconstruir o local.

    O Engenheiro-mor do Reino, Manuel da Maia, foi encarregado pelo Marqus da direco

    tcnica da reconstruo, de comear a pensar a cidade nova. Vinte e nove dias depois, este

    apresentaria um relatrio sobre as diversas implicaes urbansticas da questo, a primeira parte ()

    das Dissertaes.51

    A opo escolhida foi a de arrasar o que restava e reconstruir com a qualidade necessria

    no mesmo local. Isto permitiu a criao de um aterro ainda maior, que possibilitava ganhar mais

    espao ao rio, assim como prevenir a afectao da cidade pelas cheias. Manuel da Maia, aps

    encarregar seis equipas de estudar diferentes solues, designa os arquitectos que iriam apurar a

    planta final e dirigir as obras, Eugnio dos Santos e Carlos Mardel. Na soluo encontrada, a Baixa

    aparece como um todo programado que recupera os aspectos fundamentais da memoria , sendo,

    contudo, usada uma liberdade competente. Nessa linha se explica a ortogonalidade, () a rgida

    hierarquia e orientao dos espaos.52

    Seria no ano de 1758 que se estabeleceriam os direitos pblicos e particulares para a

    reedificao, procurando resolver os problemas prediais e alterar o estatuto da propriedade. As leis

    pombalinas so uma primeira tentativa do poder poltico para racionalizar alguns aspectos

    fundamentais do estatuto da propriedade.53 Isto permitiria uma reconstruo planeada e com mais

    condies de habitabilidade e segurana.

    Na Parte Terceira da Dissertao, Manuel da Maia j prope, atravs de desenhos tipo,

    sugestes infraestruturais que possibilitem uma reconstruo segura da baixa. So, por exemplo,

    abordados aspectos como a organizao das ruas (pavimentos, alados e coberturas) e aspectos

    50 FONSECA, Joo - Desafios da Observao Sismolgica em Portugal, Revista Proteco Civil. Lisboa: Proteco Civil, 1993, p.2-6; FONSECA, Joo, NUNES, Catarina, VILANOVA, Susana - Fault Interation and short-term earthquake forecasting: What can be learned from the Lisbon 1755 earthquake?, XXIII IUGG General Assembly, Sapporo, Japo, 2003 51 in FRANA, Jos Augusto - A Stima Colina. 1 Edio. Lisboa: Livros Horizonte, 1994, p.42 52 in AA/VV - Histria da Arte Portuguesa (direco de Paulo Pereira). 1 Edio. Lisboa: Crculo de Leitores, 1995, p.298 53 in MRIAS, Manuel Maria - Chiado: do sculo XII ao 25 de Abril. Lisboa: Nova Arrancada, 1996, p.70

  • 21

    sanitrios, como o sistema de drenagem de esgotos, feito a partir do saguo no interior dos

    quarteires, que dirigia posteriormente os resduos domsticos para colectores subterrneos (de 10

    por 14 palmos), situados por baixo das ruas principais. Segundo Jorge Mascarenhas, este sistema

    permitia igualmente drenar as guas vindas das colinas adjacentes. De cariz extremamente moderno,

    esta medida permitia um espao pblico mais higinico, criando o primeiro sistema de esgotos; a

    limpeza do espao interior dos quarteires era considerada problema dos proprietrios. O estreito e

    longo espao de saguo presente nos quarteires da baixa, habitualmente de 45 x 2m, tinha como

    objectivo permitir a iluminao e ventilao dos espaos domsticos mais profundos das habitaes.

    Porm, segundo Jorge Mascarenhas, este sistema nem sempre funcionava da melhor forma, sendo

    necessria por vezes a remoo de uma parte dos resduos do interior dos sagues pelos

    proprietrios.

    O engenheiro-mor do reino sugeria igualmente, por razes de segurana ssmica, que todos

    os edifcios tivessem apenas trs pisos: rs-do-cho, primeiro piso com varandas e segundo com

    janelas de peitoril. Indicava tambm que a altura dos edifcios no deveria exceder a das ruas,

    consideraes face iluminao e ventilao naturais consideradas at hoje consideradas pertinentes.

    Contudo, estas sugestes, provavelmente por questes econmicas e de densidade necessria,

    seriam modificadas, ficando estabelecida uma crcea de quatro pisos mais guas furtadas. Os

    restantes pisos compreendiam as lojas no piso trreo, o primeiro piso nobre com varandas (ambos

    com p direito de 16 palmos, ou 3.7m) e dois pisos com janelas de peitoril, divididos entre a altura

    disponvel no edifcio. O desenho das fachadas variava igualmente consoante o tipo de rua a que

    pertencesse o edifcio (por exemplo, nas travessas o primeiro piso apresentava tambm janelas de

    peitoril). Por vezes o piso trreo inclua tambm uma sobreloja (cujos vos eram combinados com os

    inferiores), de p direito muito baixo. A altura original dos edifcios aproximadamente igual largura

    das ruas principais. Como possvel observar hoje em dia na baixa, existem edifcios em que foram

    acrescentados mais um ou mesmo dois pisos acima deste valor regulamentar. Por vezes este facto

    deve-se a uma construo mais tardia de certos edifcios, numa poca em que existisse uma menor

    fiscalizao; todavia, este acrescento de pisos ocorreu principalmente no sculo XIX, j depois da sua

    edificao.

    A planta final da Baixa, referida anteriormente, estabelecida pelos arquitectos Eugnio dos

    Santos e Carlos Mardel, revela a ateno s preocupaes de Manuel da Maia, tanto relativamente

    organizao urbana como a questes de ordem ssmica. Estas esto implcitas tanto na malha viria,

    segundo um sistema extremamente regular e ortogonal, como no desenho dos quarteires

    rectangulares, de cerca de 70 x 25m, bem proporcionados, sem descontinuidades e sem assimetrias

    volumtricas.54 Encontra-se tambm definido o sistema de hierarquizao viria, com ruas principais

    mais largas, de 60 palmos de largura (Augusta, Prata, Ouro, Nova), ruas secundrias com 40 e as

    travessas com 30 palmos. Todas as interseces entre as ruas eram feitas segundo um ngulo recto e

    em alinhamento rigoroso, o que, segundo o arquitecto Carlos Mardel, permitia atingir menos pessoas

    em caso de sismo, assim como um combate ao fogo mais facilitado. Permitia igualmente uma

    ventilao e iluminao mais adequadas. Outros elementos que foram alvo de projecto incluem o

    54 in CIAS E SILVA, Vtor, op. cit. p.80

  • 22

    desenho estandardizado de todas as fachadas dos edifcios, a indicao das cotas das soleiras dos

    edifcios e pormenores tipo como coberturas e paredes corta-fogo. As paredes corta-fogo consistiam

    no prolongamento das paredes entre edifcios para cima da linha do telhado, de modo a separar os

    edifcios em caso de fogo. Embora este sistema no eliminasse a possibilidade do fogo atingir as

    habitaes adjacentes, diminua consideravelmente o risco da sua propagao.

    A alterao do nmero de pisos inicialmente previstos por Manuel da Maia e a diminuio da

    vulnerabilidade ssmica do edificado da baixa seriam possveis atravs do sistema estrutural escolhido,

    a gaiola pombalina, assim denominada devido sua aparncia antes da colocao da alvenaria.

    Aliada aplicao construtiva sistemtica de sistemas pr-fabricao para maior rapidez, a estrutura

    dos edifcios pombalinos introduz em Portugal o culminar de sistemas construtivos anti-ssmicos

    mundiais, com o objectivo de resistncia a aces horizontais e dissipao de energia. Embora no

    tenham sido encontrados documentos da poca relativos s caractersticas anti-ssmicas da gaiola,

    nem ao estudo de sistemas previamente desenvolvidos noutros locais, podemos imaginar que os

    engenheiros pombalinos tenham tido conhecimento da existncia de alguns, os tenham estudado e

    melhorado de modo a atingir as caractersticas desejadas. Segundo Jorge Mascarenhas, existem

    alguns exemplos medievais de uso de estruturas semelhantes (mas bem mais rudimentares) em

    edifcios na colina do Castelo.

    A inveno do sistema de construo em gaiola atribuda aos engenheiros da Casa do

    Risco, possivelmente a Carlos Mardel, que segundo alguns relatos ter realizado um ensaio ssmico

    da estrutura no Terreiro do Pao.55 Admite-se que os detalhes tenham sido desenhados pelos

    engenheiros da Casa do Risco e posteriormente transmitidos aos construtores verbalmente ou atravs

    de esquios, dos quais no foram encontrados exemplares.

    A inovao contida neste sistema construtivo prende-se com uma percepo apurada dos

    riscos inerentes construo em alvenaria ordinria utilizada at ento, frgil e inflexvel, e a adopo

    da gaiola, uma estrutura treliada tridimensional em madeira (normalmente pinho, carvalho ou

    casquinha, por vezes combinadas na mesma estrutura), que era pr-fabricada, montada e depois

    envolta em alvenaria, constituindo assim as paredes dos pisos superiores dos edifcios. A madeira, por

    ser flexvel, podendo voltar sua forma inicial sem partir, foi uma escolha lgica para conferir

    estrutura destes edifcios uma melhor resistncia a foras horizontais. considerada o sistema de

    construo anti-ssmica mais avanado do sculo XVIII.56

    Os quarteires eram construdos com paredes de alvenaria no seu permetro exterior, volta

    do saguo. Estas apresentam uma espessura de 0.9m ao nvel do rs-do-cho, que diminui um pouco

    nos andares superiores. As paredes meeiras, situadas entre os edifcios interligam as paredes

    exteriores e eram tambm construdas em alvenaria, tendo uma espessura de aproximadamente 0.5m.

    Por sua vez, ao nvel das fundaes dos prdios de rendimento pombalino da baixa, as

    caractersticas do terreno, constitudo por solo aluvionar e aterro de baixa resistncia, levaram

    necessidade de encontrar um sistema de compactao da camada superior de terreno, de modo a

    obter uma superfcie regular para a construo. Esta era obtida habitualmente atravs do entulho das

    55 referido em CIAS E SILVA, Vtor, op. cit. pp. 81, e tambm em STUTZ, Bruce - Ressurecting Lisbon, NewScientist.com News Service. 22 Outubro 2005, p.1 56 in TOBRINER, Stephen, op. cit. b, p.160

  • 23

    construes anteriores (que elevou a rea em quatro ps), sobre o qual era seguidamente assente um

    engradado de troncos de madeira, dispostos sobre estacas muito curtas.57 Sobre este assentavam

    pequenas colunas de pedra, ligadas por arcos do mesmo material, suportando o piso trreo.

    Ao nvel do rs-do-cho a estrutura era habitualmente constituda por abbadas em

    alvenaria de unidades de cermica regulares, combinadas com arcos do mesmo material ou de pedra

    aparelhada. A presena de um piso trreo em alvenaria, assim como a existncia de paredes corta-

    fogo e de paredes exteriores deste material, contribua em grande medida para evitar a propagao de

    incndios. A existncia de janelas para o saguo nos patamares das escadas, assim como a estrutura

    do piso trreo e a construo em pedra do primeiro lano das escadas (e restantes em madeira),

    contribuiriam tambm possivelmente para a proteco destes edifcios contra incndios. O facto da

    estrutura em gaiola no estar presente no piso trreo visava ainda proteg-la, impedindo assim a

    ascenso das guas do solo. Acima do rs-do-cho as paredes exteriores eram reforadas atravs de

    uma grade de madeira interna, seguindo-se alvenaria e a moldura de cantaria dos vos. Estas ltimas

    so ligadas estrutura em madeira atravs de peas metlicas (pregadas na madeira e chumbadas na

    pedra). Por sua vez, a ligao entre a alvenaria e a grade de reforo em madeira feita atravs de

    peas das travessas da grade, designadas por mos, que ficam embebidas na alvenaria.

    No interior (acima do piso trreo), o sistema de travamento tridimensional constitudo pela

    gaiola em madeira ligada grade anteriormente referida, sendo formada por prumos e travessas de

    madeira (verticais e horizontais) de 15x13cm e 10x13cm.58 Estes elementos so por sua vez travados

    atravs de centenas de diagonais em cruz (ou Cruzes de Santo Andr), presentes tanto na estrutura

    exterior como interior, que so cruciais na dissipao de cargas laterais. O uso do tringulo em barras

    de madeira permite que a estrutura tenha uma boa resistncia, pois esta figura geomtrica no pode

    variar de forma sem se fazer variar o comprimento dos seus lados.59 Verticalmente, a gaiola forma

    as paredes resistentes em frontal pombalino, de 0.15 a 0.20m, que constituem simultaneamente

    divisrias principais internas dos fogos, dispostas paralelamente e perpendicularmente s fachadas. A

    sua estrutura em madeira era depois preenchida por uma espcie de alvenaria ligeira constituda por

    pequenas pedras e elementos cermicos argamassados,60 sendo as paredes posteriormente

    rebocadas e estucadas. No local dos vos esta estrutura era reforada com elementos

    complementares estrutura em frontal: vergas e pendurais. Horizontalmente, cada piso constitudo

    por uma estrutura de madeira, ligada s paredes exteriores atravs de peas metlicas. Esta estrutura

    dos pisos serve igualmente de diafragma,61 ajudando a dissipar as aces ssmicas. O comportamento

    ssmico dos edifcios ainda melhorado pelo carcter simtrico da planta da gaiola, a continuidade

    entre pisos e por uma ligao cuidada. No interior dos fogos nem todas as paredes eram frontais,

    existindo igualmente vrias paredes divisrias no resistentes, denominadas tabiques, feitas com

    tbuas de madeira pregadas a barrotes verticais, cuja espessura variava entre 0.10 e 0.15m. Por sua

    vez, a cobertura de guas furtadas, com janelas de trapeira salientes em relao ao telhado, tinha

    57 in CIAS E SILVA, Vtor, op. cit. p.81 58 segundo FRANA, Jos Augusto Lisboa Pombalina e o Iluminismo. 3 Edio. Lisboa: Bertrand Editora, 1987, p.167 59 in BENTO, Rita, CARDOSO, Rafaela, LOPES, Mrio, op. cit. p.178 60 in CIAS E SILVA, Vtor, op. cit. p.83 61 denominao indicada em TOBRINER, Stephen, op. cit. b, p.161

  • 24

    tambm uma estrutura em madeira. Como podemos observar na baixa, alguns edifcios mais tardios

    foram j construdos com uma cobertura diferente, em mansarda.

    A resistncia s aces ssmicas da gaiola pombalina foi comprovada pelo estudo

    realizado por Rafaela Cardoso62 sobre um edifcio na R. da Prata, admitindo que a estrutura se

    encontrava intacta e efectuando os clculos de acordo com os valores mdios das propriedades dos

    materiais. Nessa anlise, concluiu que a gaiola eficiente na resistncia a foras horizontais, como

    as induzidas pelos sismos, limitando os deslocamentos nessa direco e contribuindo para um bom

    funcionamento de conjunto do edifcio.63

    Na estrutura dos edifcios da baixa pombalina possvel encontrar insuficincias em

    aspectos que podero condicionar o seu comportamento, por exemplo, em caso de sismo. Estas

    questes esto relacionadas tanto com intervenes deficientes que tenham comprometido a

    integridade da construo, ou com deficincias construtivas de origem. Segundo Vtor Cias e Silva,

    estas ltimas podero ser pontuais, observando-se por vezes a existncia de pontos fracos ao nvel

    das ligaes entre elementos, ao nvel das alvenarias ou em fundaes deficientes. A um nvel mais

    abrangente, considera igualmente que poder ocorrer um problema de comportamento da estrutura

    dos edifcios devido diferena de rigidez em altura entre o piso trreo e os restantes, resultante da

    diferena nos seus materiais de construo (gaiola s comea na base do primeiro piso). Outros

    autores63, referem que os pilares de alvenaria deste andar sem estrutura de gaiola podero ser

    considerados um ponto menos resistente da estrutura, se as propriedades dos materiais das

    alvenarias forem inferiores s consideradas como valores mdios nos estudos efectuados pelos

    autores do artigo. Segundo as concluses deste estudo (sobre o edifcio na R. da Prata referido

    anteriormente) a resistncia ssmica seria afectada no pela estrutura em gaiola, mas pelas ligaes

    desta alvenaria das fachadas exteriores, que levariam ao possvel colapso destas ltimas (e

    possivelmente da estrutura toda se se verificasse o colapso da cobertura).64

    Para alm destas questes levantadas, decorrentes da construo original destes edifcios,

    a grande maioria dos problemas ocorre devido a tentativas mal dirigidas de resolver dificuldades de

    vivncia e de uso dos espaos de loja e de habitao, criados pela inadequao dos espaos

    construdos na poca face a expectativas de uso actuais. Contudo, as intervenes resultantes desse

    processo no tm muitas vezes em conta o sistema construtivo subjacente ao edificado em causa,

    podendo levar a situaes extremamente prejudiciais estrutura pombalina e aos seus habitantes. As

    insuficincias actuais, para alm das referidas anteriormente, devem-se principalmente a dois factores:

    por um lado, a insuficientes cuidados de manuteno, dos quais so exemplo as infiltraes pelas

    coberturas; por outro lado, como referido anteriormente, a alteraes feitas pelos proprietrios ou

    utentes. Estas incluem, por exemplo, o acrescento de pisos, que contribui para o aumento das cargas

    62 estudo aprofundado na tese: CARDOSO, Rafaela Vulnerabilidade Ssmica de Estruturas Antigas de Alvenaria. Aplicao a um Edifcio Pombalino. Lisboa: s.n., Outubro 2002. Dissertao de mestrado em Engenharia de Estruturas apresentada ao IST 63 in BENTO, Rita, CARDOSO, Rafaela, LOPES, Mrio, op. cit. p.178 64 considerado para este estudo um nvel de aco ssmica de cerca de 40% do sismo regulamentar do tipo 2 (Regulamento de Segurana e Aces para Edifcios e Pontes probabilidade terica de ocorrncia de 5% em cinquenta anos) in CARDOSO, Rafaela, op. cit., p.194

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    actuantes no edifcio em caso de sismo, e as diversas intervenes nas lojas, principalmente ao nvel

    da debilitao de paredes de alvenaria no piso trreo ou corte de pilares para introduo de montras

    (colocao de viga para redistribuio das cargas). Estas intervenes, efectuadas muito

    frequentemente, embora possam no afectar a distribuio de cargas verticais, tm srias implicaes

    na resistncia a foras horizontais.

    Outras alteraes que afectam de um modo significativo a estrutura pombalina em termos

    ssmicos esto relacionadas com a modificao dos painis da gaiola, em alguns casos por corte

    inteiro destes, mas mais frequentemente atravs do seu corte parcial para abertura de espaos

    interiores, ou pelo corte apenas de algumas diagonais para introduo de canalizaes. Contudo,

    todas estas alteraes tm como consequncia facilitar a deformao da estrutura, principalmente em

    caso de aces como as dos sismos, que passam a constituir o maior risco sua integridade.

    Relativamente s fundaes, igualmente referida a possibilidade de obras subterrneas na

    baixa poderem estar a causar variaes no nvel fretico. Este facto por vezes referido como grave

    por poder estar a gerar o apodrecimento das cabeas das estacas de madeira das fundaes dos

    edifcios (ao deixarem de estar submersas, as estacas tornam-se passveis se serem atacadas por

    fungos, que aparecem em ambientes com mais de 21% de humidade). Contudo, outros autores65

    julgam que a curta dimenso das estacas (ap