habermas, j. - três modelos normativos de democracia

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    CENTRAL CPIASCLCH-CEFO-CE-:CA

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    1. lN \ [iAL------_._._ .. ._ . _ - - - '9Trs modelos normativosde d emoc ra cia *

    Com certo exagero 110 que diz respeito 0 ti pific a o ideal,irei referir-me na seqncia s co mpr ee nses "liberal" e "re-publicana" de poltica - expresses que hoje marcam frentesopostas no debate desencadeado nos Estados Unidos pelosassim chamados cornunitaristas. Referindo-me a F. Michel-man, descreverei Ifm primeiro lugar os dois modelos de demo-cracia (polmicos, quando contrapostos), sob O ponto de vistados conceitos de "c idado do Estado" e "direito", e segundoanatureza do processo poltico de formao da vontade, Na'segunda parte, com base na crtica ao peso tico excessivoque se impe ao modelo repub licano, desenvolverei entouma terceira concepo, procedimentalista, que gostaria dedenominar "poltica deliberativa"o

    A diferena decisiva reside na compreenso do papelque cabe ao processo democrt-ico, Na concepo "liberal",esse processo cumpre a tarefa de programar o Estado para, Tr aduo : Pa ulo Asior Socrhe.

    2 7 7

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    1I 1

    que se volte ao interesse da soc iedade: imagina-se o Estado como apa-rato da administrao pblica, e a sociedade como sistema de circula-o de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, es-truturada segundo leis de mercado. A polt ica, sob essa perspectiva, eno sentido de formao poltica da vontade dos c idados, tem a fun-o de congregar e impor interesses sociais em particular medianteum aparato estatal j especializado no uso administrativo do poderpoltico para fins coletivos.Segundo a concepo "republicana", a poltica no se confundecom essa funo mediadora; mais do que isso, ela constitutiva doprocesso de coletivizao social como um todo. Concebe-se a pol-tica C01110 forma de reflexo sobre um contexto de vida tico. Ela cons-titui o medium em que os integrantes de comunidades solidrias sur-gidas de forma natural se conscientizam de sua in terd epend nci amtua e, como cidados, do forma e prosseguimento s relaespreexistentes de reconhecimento mtuo, transformando-as de formavoluntria e consciente em uma associao de jurisconsortes livres eiguais. Com isso, a arquitetnica liberal do Estado e da sociedade so-fre uma mudana importante. Ao lado da instncia hierrquica regu-ladora do poder soberano estatal e da instncia reguladora descen-tralizada do mercado, ou seja, ao lado do poder administrativo e dosinteresses prprios, surge tambm a solidariedade como terce ir a j a ntede integrao social.Esse estabelecimento da vontade poltica horizontal, voltada aoentendimento mtuo ou ao consenso almejado por via comunicativa,deve gozar at mesmo de primazia, se considerado do ponto de vistatanto gentico quanto normativo. Para a prxis de autodeterminaopor parte dos cidados no mbito do Estado, aceita-se uma base socialautnorna que independa da administrao pblica e da mobilidadesocioeconmica privada, e que impea a comunicao poltica de sertragada pejo Estado e assimilada peJa estrutura de mercado. Na CO I1-op o republicana, confere-se significado estratgico tanto opiniop b li c a de carter poltico quanto sociedade civil, como seu susten-, tculo. Ambos devem conferir fora integrativa e autonomia prxislc entendimento mtuo entre os cidados do Estado'. Ao desacopla-

    J . Cf. H. Arendt, ber die Revolu tion , Mnchen, 1965 I ed. br.: Da revoluo, So1 > 1 1 1 1 1 0 , tica, 1995]; idem, Mac ht und Gewal t , Mnchen, 1970.'.,8 A IN CLU SAO DO OUTR O

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    mento da comunicao poltica em relao sociedade econmicacorresponde uma retroalimentao do poder administrativo a partirdo poder comunicativo decorrente do processo de formao da von-tade e opinio polticas. .Dos dois enfoques concorrentes resultam diversas conseqncias.

    (a) Em primeiro lugar diferenciam-se as concep es d e c idado do .Es tad o . Segundo a concepo liberal, determina-se o status dos cida- )dos conforme a medida dos direitos individuais de que eles dispemem face do Estado e dos demais cidados. Como portadores de direi-tos subjetivos, os cidados podero contar com a defesa do Estado Idesde que defendam os prprios interesses nos limites impostos pelas )leis - e isso se refere igualmente defesa contra intervenes estataisque excedam ressalva interventiva prevista em lei. Direitos subjetivosso direitos negativos que garantem um espao de ao alternativoem cujos limites as pessoas do direito se v em livres de coaes exter-nas. Direitos polticos tm a mesma estrutura: eles oferecem aos cida-Idos a possibilidade de conferir validao a seus interesses particu-lares, de maneira que esses possam ser agregados a outros interesses ~privados (por meio de votaes , formao de corpo raes parlamen- lit ares e composies de governos) e afinal transformados em uma V011- 1tade pol tica que exera influncia sobre a administrao. Dessa ma- \neira, os cidados, como membros do Estado, podem controlar se opoder estatal est sendo exercido em favor do interesse dos cidadosna prpria sociedade".

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    2. Cf. F. 1. Michelman, "Political Truth and the Rule of Law", TeI Avi" Univ. Stu-dies ;/1 Law , n.8, 1988, 283: "The political society envisioned by bumper-stickerrepublicans is the society of private right bearers, an asso~iation whose first principie isthe protection of lives, liberties and estates, of its individual members. ln that society,the state is justified by the'protection ir gives to those prepolitical interests; the purposeof lhe constitution is to-ensure that the state appararus, the governrnent, provides suchprotection for the people at la rge rather than serves the special interests of the governors01' their patrons; lhe function of citizenship is t o operare the constitution and rherebymotivate the governors to act according to that protective purpose; and the value toyou of your political franchise - your ri ght to vote and speak, to have )'our viewsheard and counted - is the handle it give s you oninfluencing the systern so that it willadequately heed and protect your particular, pre-political rights and other interests"I"A sociedade poltica imaginada pelos etiquetados como republicanos a sociedadedos portadores de direitos privados, uma associao cujo primeiro princpio a prote-o das vidas, liberdades e propriedades de seus membros individuais. Nessa socieda-de, o estado justificado pela proteo que d a esses interesses pr-polticos: o prop-

    TR tS MOD ELO S NO RM AT IVOS DE DEMOC RA C IA 27 9

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    De acordo com a concepo republicana, o status dos cidadosno determinado segundo o modelo das liberdades negativas, queeles podem reivindicar co mo pessoas em par t icu l ar. Os direitos de cida-dania, direitos de participao e comunicao po ltica so, em pri-mei ra linha, direitos positivos. Eles no garantem liberdade em rela-o coao externa, mas sim a par ticipao em uma prxis comum,por meio de cujo exerccio os cidados s6 ento se tornam o que tencio-nam ser - sujeitos pol it icamente responsveis de uma comunidadede pessoas livres e iguais', Em tal medida, o processo poltico serveapenas ao controle da ao estatal por meio de cidados que, ao exerce-rem seus direitos e as liberdades que antecedem a prpria poltica,tratam de adquir ir uma autonomia j preexistente. O processo pol-tico tampouco desempenha uma funo mediadora entre Estado esociedade, j que O poder estata l democrt ico no em hiptese algu-ma uma fora originria. A fora origina-se , isso s im, do poder geradocomunicativamente em meio prxis de autodeterminao dos cida-dos do Estado e legitima-se pelo fato de defender essa mesma prxispor meio da institucionalizao da liberdade pblica", A justificaosito da constituio assegurar que o aparato estatal, o governo, fornea tal proteopara o povo, em vez de servir a interesses privados dos governantes ou de seus clientes;a funo da cidadania acionar a constituio e, por meio disso, motivar o s governan-tes a agirem segundo esse objetivo de proteo; e o valor do sufrgio poltico de cadaum - direito a voto e expresso, direito de ter a p rpri a opi nio ouvida e levada emconta - o suporte que ele oferece ao indiv duo para que inf luencie o sistema a darateno e proteo a seus interesses pr -po l t icos particulares e a outros interesses"].

    3.Sobre a liberdade positiva ve rsus a negativa, cf Ch. Taylor, "Was ist menschlichesHandeln?" In: Negative Preiheiti. Frankfurt am Main, 1988, 95S.4. Cf F. I, Michelman, 1988,284: "In civic constitutionaJ vision, political socieryis primarly the society not of right-bearers but of citizens, an association whose firstprincipie is the creation and provision of a public realm within which a people, together,argue and reason about the right terms of social coexistence, terms that they will settogether and which they understand as their common good ... Hence lhe state is justifiedby its purpose of establishing and ordering the public sphere within which persons canachieve freedorn in the sense of self-government by the exercise of reason in publicdialogue". I"Na viso cvica constitucional, a sociedade poltica primariamente a so-ciedade no dos portadores de direitos, mas dos c id ado s, uma associao cujo princ-pio primeiro a criao e proviso de um mbi to pbli co dentro do qual uma popula-o, em conjunto, discuta e raciocine acerca dos termos cor re tos de coexistncia so-cial, termos que sero definidos em conjunto e entendidos como bem comum ... Apartir disso o estado justificado por seu propsito de estabelecer e ordenar a esferapblica dentro da qual as pessoas podem alcanar a liberdade no s entido cf~autogovernopelo exerccio da razo no dilogo pblico").280 A INCLUSO DO OUTRO

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    existencial do Estado no reside primeiramente na defesa dos mes-mos direitos subjetivos, mas sim na garantia de um processo inclusivode formao da op inio e da von tade, em que cidados livres e iguaischegam ao acordo mtuo quanto a quais devem ser os objetivos enormas que correspondam ao interesse comum. Com isso, exige-sedo cidado republicano mais que a orientao segundo seus respecti-vos interesses prprios.(b) Na polmica cont ra o conceito clssico da pessoa do direitocomo portadora de direi tos subjetivos revela-se a controvrsia em tor- ino do c on c ei to de di reit o em si mesmo. Segundo a concepo liberal, osentido de uma ordem jurdica consiste em que ela possa constatarem cada caso individual quais so os direitos cabveis a que indiv-duos; em uma concepo republicana esses direitos subjetivos se de-vem a uma ordem jurdica objetiva, que possibilite e garanta a integri-dade de um convvio eqitativo, autnomo e fundamentado sobre orespei to mtuo. Em um dos casos a ordem jurdica constri-se a par-t ir de direitos subjetivos, no outro caso concede-se um primado aoteor jurdico objetivo desses mesmos direitos.Esses conceitos dicotmicos certamente no atingem o teor in -tetsub jeti vo dos direitos, que exigem a considerao recproca de di-reitos e deveres, em propores simtricas de reconhecimento. Na ver-dade, o projeto republicano vai ao encontro de um conceito de direitoque atribu i pesos iguais de urn lado integridade do indivduo e suasl iberdades subje tivas , e de outro lado integridade da comunidadeem que os indivduos podem se reconhecer uns aos outros como seusmembros e como indivduos. Esse projeto vincula a legitimidade dasleis ao procedimento democrtico de sua gnese, e preserva assim umacoeso interna entre a prxis de autodeterminao do povo e do do- Imnio impessoal das leis: "Para os republicanos os direitos nada so, (em ltima ins tncia , seno determinaes da vontade poltica prevale- ,cente; para os liberais, por sua vez, alguns direitos esto sempreembasados em um 'direito superior' da razo ou revelao transpolti-caso . . Em uma viso republicana, o objetivo de uma comunidade, obem comum, consiste substancialmente no sucesso de seu empenhopolt ico em definir, estabelecer, tornar efetivo e manter vigente o con-junto de d ireitos (ou leis, para ser menos tendencioso) que melhor seajuste s condies e costumes dessa comunidade; por.outro lado, emuma viso liberal contrastante, os direitos baseados num direito supe-

    TR 1:S MODELOS NORM AT 1V OS DE DEMOCRACIA 28 1

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    rior proporcionam as estruturas transcendentais e as limitaes depoder necessrias para que essa busca pluralista de interesses diversose conflitivos possa avanar de forma to satisfatria quanto possvel'"O direito ao voto, interpretado como liberdade positiva, torna-separadigma dos direitos em geral, no apenas pelo fato de ser constitu-tivo para a autodeterminao poltica, mas porque nele f ica claro comoa incluso em uma comunidade de cidados dotados de direitos iguaisest associada habilitao dos indivduos para efetuar contribuiesautnomas e adotar posicionamentos prprios: "A reivindicao quetodos nos interessemos pela concesso do direito de sufrgio a todosporque O) nossa escolha est entre nos mantermosjuntos e nos man-termos separados; (Il) mantermo-nos juntos depende da garantia re-cproca de que os interesses vitais de um sejam considerados por to-dos; e (lII) nas condies profundamente pluralizadas da sociedadeamericana contempornea, tais garantias so alcanveis ... apenasmantendo, ao menos, a aparncia de uma poltica em que se concedevoz a cada um'". Essa estrutura que se pode identificar com base na

    interpretao dos direitos comunic a o e p ar tic ip a o polt ica dis-tribui-se entre to dos os direitos ao longo do processo legislativo que osconstitui. Tambm a atribuio de poder no mbito do direito privadopara que se persigam fins privados e livremente escolhidos obriga con-comitantemente a que se respeitem os limites da ao estratgica acor-dados segundo o interesse de todos.5. "For republicans rights ultimatly are nothing bUI determinatons of theprevailing political will, while for liberals some rights are always grounded in a 'higherlaw ' of transpolitical reason or revelation ... ln a repu blica n view , a co mmuni ty'sobjcctive, the common good substancially consists in the success of its political endeaverto define, establish, effectuate and sustain the set of rights (Jess tendentiously laws)best suited to the conditions and mores of that community, whereas in a contrasting

    liberal view the higher law rights provide lhe tr ansc end ent a l structures and lhe curbson p ower required so that p lura l isti c pu rsuit of div ers e and conflicting interesrs mayproceed as satisfactorily as possible"(F. I. M ichelman, "C oncep tio ns of Democracy inAmerican Constitutional Argument: Voting Right s', Flori da Lciw R evi ew , n. 41, 1989,4465).

    6. "The claim is, that we ali take an interest in each orher's enfranchisemenrbecause (1) our choice lies between hanging together and hanging separately; (Il)hanging to ge ther depend s on reciproca I assur ance to ali of having one's vital int ere stsheeded by the o ther s, and (IJI) in the deeply pluralized conditions of contemporaryAmerican sociery, such assurances are attainable ... only by maintaining ar least lhese rn blanc e of a po li tics in which everyone is conced ed a voice"

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    p ol tic a tem fo r a legit im ado ra no ap enas no sentid o d e u ma a uto riza -co pa ra qu e se ocup em posi es de poder; ma is que i sso, o di scursop o l ti co o c or ri do continu amente tambm ap resenta fo ra vinculativad ia nte d es se tip o de exerc c io de d om in a o p ol tic a. O p o de r a dmi ni s-tra tivo s p ode ser aplicado com base em po ltic as e no l imite das le isque nascem do p roces so democr t i co.

    GPor o ra, () q ue b ast a d iz er sobre a compa rao entre o s do is

    mo delo s de democracia que ho je dominam a discusso en tre o s assimchamados comunitaristus e ox " li be ra is ", s ob retudo nos E stados Un i -do s. () modelo republ i cano tem van tagens e desvantagens. V ejo C OIllOvantagem () ato de el e se firmar I lO sen t ido radicalmente democrticod e U I1 1,l auto-organizno da sociedade pelo s c idados em acordomtuo po r via comunica tiva e no rem eter o s f ins co let ivo s to-se-mente a um ,'de a I" ! um a neg oc ia o! entre interesses p artic ula res o po s-to s . C omo desvantagem . entendo o fato de ele ser bastante ideal ista etornar o p rocesso democ r

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    e da vontade. O terceiro modelo de democracia que me permito suge-rir baseia-se nas condies de comunicao sob as quais o processopoltico supe-se capaz de alcanar resultados rac ionais, justamentepor cumprir-se, em todo o seu alcance, de modo deliberativo.\ . Quando se faz do conceito procedimental da po ltica delibera-tiva O cerne normativamente consistente da teoria sobre a democracia,resultam da diferenas tanto em relao concepo republicana do

    Estado como uma comunidade tica, quanto em relao concep-o liberal do Estado como defensor de uma sociedade econmica.Ao comparar os trs modelos, tomo como ponto de partida a dimen-so da poltica que nos ocupou at o momento: a formao demo-crtica da opinio e da vontade que resulta em eleies gerais e de-cises parlamentares.Segundo a concepo l ib era l, esse processo apenas tem resultadossob a forma de arranjos de interesses. Asregras de formao de acordosdesse tipo - s quais cabe assegurar a justia e honestidade dos resulta-dos atravs de direitos iguais e universais ao voto e da composio re-presentativa das corporaces parlamentares, suas leis orgnicas erc, _so fundamentadas a partir de princpios constitucionais liberais. Se-gundo a concepo republicana, por outro lado, a formao democrti-

    ca da vontade cumpre-se sob a forma de um auto-entendimento tico;nesse caso, a deliberao pode se apoiar quanto ao contedo em umconsenso a que os cidados chegam por via cultural e que se renova narememorao ritualizada de um ato republicano de fundao. A teoriado discurso acolhe elementos de ambos os lados e os integra no C()J1-ceito de um procedimento ideal para o aconselhamento e tomada dei decises. Esse procedimento democrtico cria uma coeso interna en-

    I tre negoc iaes, dis cursos de auto-ent endi ment o e d iscursos so bre a justi -a , alm de fundamentar a suposio de que sob tais condies se al-mejam resultados ora racionais, ora justos e honestos. Com isso, a ra-zo prtica desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidadeconcreta de determinada comunidade e restringe-se'a regras discursivase formas argumentativas que extraem seu teor normativo da basevalidativa da ao que se orienta ao estabelecimento de um acordomtuo, isto , da estrutura da comunicao ling sti ca " .

    H. cr. J . Hab errnas , "V o lk ssouvernitat ais verfahren" ln: J . Haberrnas, 1990,()()()-('.11.

    2!lb 1 \ INCLUSO DO OUTl\O

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    Com essas descries estruturais do processo democrtico ficatraado o itinerrio para se chegar a uma concet tua o normativa deEstado e de sociedade. O pressuposto para isso haver simplesmenteuma administrao pblica do tipo que se desenvolveu no incio daEra Moderna em conjunto com o sistema estatal europeu e que sedesenvolveu sob um entrecruzamento funcional com o sistema eco-nmico capitalista. Segundo a concepo republicana, a formao po-ltica da opinio e vontade dos cidados forma o mcdium sobre o quala sociedade se constitui como um todo firmado politicamente. A so-ciedade centra-se no Estado; pois na prxis de autodeterminao po-ltica dos cidados a coletividade torna-se consciente de si mesma comoum todo e age efetivamente sobre si mesma mediante a vontade cole-tiva dos cidados. Democracia sinnimo de auto-organizao pol- li .rica da sociedade. Resulta da uma compreenso de politica polemica- ! !mente direcionada contra o Estado. Dos escritos polticos de Hannah \\Arendr possvel depr ee nd er a rota de coliso pe la qual se direciona aargumentao republicana: apontada contra o privatismo burgus deuma populao despolrrizada e contra a busca de legitimao por par-te de partidos estatizados, a opinio pblica de cunho poltico devereviralizar-se a ponto de um conjunto de cidados regenerados, nasdiversas formas de uma auto-administrao descentralizada, ser ca-paz de se (re)apossar do poder estatal burocraticamente autnomo.Segundo a concepo liberal, no h como eliminar e~sa sepa- :rao entre o aparato estatal e a sociedade, mas apenas superar a dis- \tnc ia entre ambos pela via do processo democrtico. As dbeis co- !notaes normativas de uma equilibrao regrada do poder e dosinteresses certamente carecem de uma complernentao estatal e ju-rdica. A formao democrtica da vontade de cidados interessadosem si mesmos, entendida de forma minimalista, constitui no maisque um elemento no interior de uma constituio que tem por tarefadisciplinar o poder estatal por meio de precaues norrnativas (comodireitos fundamentais, diviso em poderes e vin cul ao da adminis-trao le i ) e ainda impulsion-Io devida considerao dos diver-sos interesses e orientaes de valores na sociedade. Essa compreen- [:so de poltica centrad a 110 Estado pode prescindir da assuno irrea- .lista de um conjunto de cidados coletivamente capazes de agir. Elano se orienta pelo inputde uma formao poltica e racional da von-tade, mas sim pelo output de um balano positivo ao se avaliar as

    T R E S MODELOS NOHMATIVOS DE DEMOCRACIA 2 87

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    I! conquistas da atividade estatal . A rota de coliso dessa argumentaotem seu alvo no potencial perturbador de um poder estatal que im-pea a circulao social au tnoma das pessoas em particular. O cen-1 \ tro do modelo liberl no a autodeterminao democrtica de ci-dados del iberantes, mas sim a normat izao jurdico-estatal de umasociedade econmica cuja tarefa garantir um bem comum enten-

    dido de forma apol ti ca , pela sati sfao das expecta tivas de felicidadede cidados produtivamente a tivos.A teoria do discurso, que obriga ao processo democrtico comconotaes mais fortemente norrnat ivas do que o modelo iberal , masmenos fortemente norrnativas ~i0que o modelo republicano, assumepor sua vez elementos de ambas as partes e os combina de uma ma-neira nova. Em consonncia com o republicanismo, ele reserva umaposio cen tral para o processo poltico de formao da op inio e davontade, sem no entanto entender a const ituio jurdico-estatal como

    /. algo secundrio; mais que isso, a teoria do discurso concebe os direi-tos fundamentais eprincpios do Estado de d ireito como uma respos-! t a conseqente pergunta sobre como insti tucional izar as exigentes

    condies de comunicao do procedimento democrtico. A teor iado discurso no torna a efetivao de uma poltica deliberativa de-pendente de um conjunto de cidados co letivamente capazes de ag ir,mas s im da ins ti tucional izaodos procedimentos que lhe digam res-peito. Ela no opera por muito tempo com o conceito de um todosocial centrado no Estado e que se imagina em linhas gerais como umsujeito acional orien tado por seu objetivo. Tampouco situa o todo emum sis tema de normas const itucionais que inconscientemente regramo equ ilbrio do poder e de interesses diversos de acordo com o mode-lo de funcionamento do mercado. Ela se despede de todas as f igurasde pensamento que sugiram atribuir a prxis de autodeterminaodos cidados a um sujeito social totalizante, ou que sugiram referir odomnio annimo das le is a suje itos individuais concorrentes entre s i.Na primeira possibilidade o con junto de cidados abordado comoum agente coletivo que reflete o todo e age em seu favor; na segunda,os agentes ind ividuais funcionam como variveis dependen tes emmeio a processos de poder que se cumprem cegamente, j que paraalm de atos eletivos individuais no poderia haver quaisquer deci-silcs cole tivas cumpridas de forma consc iente (ano ser em um senti-do meramente metafrico).7B B / I INCI.\!SAo D O O UT R O

    Em face disso, a teoria do discurso conta com a intersubje tivida-de mais avanada presente em processos de entendimento mtuo quese cumprem, por um lado, na forma institucionalizada de aconselha-mentos em corpo raes parlamentares, bem como, por outro lado, narede de comunicao formada pela opinio pblica de cunho pol t ico.Essas comunicaes sem sujei to, internas e externas s corporaes .pol ti cas eprogramadas para tomar decises , formam arenas nas quais \Ipode ocorrer a formao mais ou menos racional da opin io e da von- .tade acerca de temas relevantes para o todo social e sobre matriascarentes de regulamentao. A formao de op inio quese d de ma-neira informal desemboca em decises e le tivas instituc iona lizadas eem resolues legis lat ivas pelas quais o poder criado por via cornuni- \ \cat iva t ransformado em poder adminis trat ivamente aplicvel. Comono modelo l iberal , respei ta -se o limi te ent re Estado e sociedade; aqui,porm, a sociedade civil , como fundamento socia l das opinies pbli-cas autnomas, distingue-se tanto dos sistemas econmicos de aoquanto da adminis trao pblica. Dessa compreenso democrtica,resulta por via normativa a exigncia de um deslocamento dos pesosque se aplicam a cada um dos elementos na relao entre os trs recur-sos a parti r dos quais as sociedades modernas sat is fazem sua carnciade integrao e direc ionamento, a saber: o dinhe iro, o poder adminis-t rat ivo e a sol idar iedade. As implicaes normativas so evidentes: opoder socialmente integrat ivo da sol idar iedade, que no sepode maist irar apenas das fontes da ao comunica tiva, preci sa desdobrar-se so-bre opinies pblicas au tnomas e amplamente espraiadas, e sobreprocedimentos inst itucionalizados por via jurdico-es ta ta l para a for-mao democrtica da opinio e da vontade; alm disso, ele precisatambm ser capaz de afirmar-se e contrapor-se aos dois outros pode- ; ires , ou seja, ao dinhe iro e ao poder adminis trativo. /G

    Essa concepo tem conseqncias para a compreenso de legi-t imao e soberania popular. Segundo a concepo liberal, a forma- \co democrtica da vontade tem exclusivamente a funo de legitimar \o exercc io do poder pol ti co. Resultados de eleies equivalem a uma ' i :licena para a tomada do poder governamental, ao passo que o gover-no tem de justificar o uso desse poder perante a opinio pblica e oT R S M O DE LO S N OR M AT IV OS D E D EM O CR AC IA 28 9

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    . .

    parlamento. Segundo a concepo republicana, a formao democr-tica da von tade tem a funo essencialmente mais forte de constitu rasociedade como uma coletividade poltica e de manter viva a cada elei-

    ! o a lembrana desse ato fundador. O governo no apenas investi-do de poder para o exerccio de um mandato sem maiores vnculos,por meio de uma eleio entre grupos de liderana concorrentes; aocontrrio. ele est comprometido tambm programaticamente com aexecuo de determinadas polt icas. Sendo mais uma comisso do queum rgo estatal, ele parte de uma comunidade poltica que se ad-ministra a si prpria, e no o topo de um poder estatal separado. Comateoria do discurso. novamente entra em cena outra noo: procedi-mento e pressupostos comunicacionais da formao democrtica daopinio e da vontade funcionam como importantes escoadouros daracionalizao discursiva das decises de um governo e administra-o vinculados ao direito e lei. Racionalizao significa mais que meralegitimao, mas menos que a prpria ao de constituir o poder. Opoder administrativamente disponvel modifica seu estado de meroagregado desde que seja.retroalimentado por uma formao demo-, crtica da opinio e da vontade que no apenas exera posteriormenteo controle do exerccio do poder poltico. mas que tambm o programe.de uma maneira ou de outra. A despeito disso, o poder poltico s

    ! pode ','agir". Ele um sistema parcial especializado em decises cole-tivameirte vinculativas, ao passo que as estruturas comunicativas daopinio pblica compem uma rede amplamente disseminada deI sensores que reagem presso das situaes pr~blemticas no todoI social e que simulam opinies influentes, A opinio pblica transfor-\

    /'omadaem poder comunicativo segundo procedimentos democrticosno pode "dominar", mas apenas direcionar o uso do poder adminis-i trativo para determinados canais.O conceito de soberan ia popul ar deve-se apropriao republi-cana e revalorizao da noo de soberania surgida no incio da EraModerna e inicialmente associada aos dspotas que governavam demodo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios da aplicaolegtima da fora, concebido como um concentrado de poder, capazde prevalecer sobre todos os demais poderes do mundo. Rousseau1ransps essa figura de pensamento (proposta inicialmente por Bodin);1vontade do povo unificado, mesclada idia clssica do autodom-i 11 io de indivduos livres e iguais e suprassumida no conceito moderno

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    de autonomia. Apesar dessa subl ima o normativa, o conceito de so- \berania permaneceu ligado noo de uma corporificao sua no povo I(presente at de forma fsica, no incio). Segundo a concepo repU-i'blicana, o povo (ao menos potencialmente presente) portador deuma soberania que por princpio no se pode delegar: no adrnis-svel que, em sua qualidade de soberano, o povo se deixe representar.O poder constituinte funda-se na prxis autodeterminativa de seus (cidados, no de seus representantes. A isso o liberalismo contrape a '>concepo mais realista de que no Estado de direito democrtico o !I Ipoder estatal que nasce do povo s exercido "em eleies e votaes ie por meio de organismos legislativos especficos, organismos do poder Iexecutivo e da jurisdio" ( o que se l, por exemplo, no art. 20, 2/da Constituio da Repblica Federal da Alemanha).Essas duas concepes certamente oferecem uma alternativa en-tre aquelas premissas muito questionveis de um projeto de Estado ede sociedade que toma como ponto de partida o todo e suas partes-muito embora o todo seja formado ou por um conjunto soberano decidados ou por uma constituio. Ao conceito de discurso na demo-\cracia, por outro lado, corresponde a imagem de uma sociedade des- /\centralizada, que na verdade diferencia e autonomiza com a opinio \pblica um cenrio propcio constatao, identif icao e tratamen- _~to de problemas pertinentes sociedade como um todo. Quando se lisacrifica a formao de conceito ligada filosofia do sujeito, a sobe- 'rania no precisa se concentrar no povo de forma concretista, nemexilar-se na anonimidade de competncias atribudas pelo direitoconstitucional. O si-mesmo da comunidade jurdica que se organizadesaparece em formas de comunicao isentas de sujeitos, as quaisregulam o fluxo da formao discursiva da opinio e da vontade demodo que seus resultados falveis guardem para si a suposio de ra-cionalidade. Com isso, a intuio vinculada idia de soberania po-pular no desmentida, mas interpretada de maneira intersubjeti-vista. Uma soberania popular, mesmo que se tenha tornado anni-ma, s se abriga no processo democrtico e na implementao jur-dica de seus pressupostos cornunicacionais, bastante exigentes porsinal, caso tenha por finalidade conferir validao a si mesma comopoder gerado por via comunicativa. Sendo mais exato, essa validao i ,provm das interaes entre a formao da vontade institucionaliza- 'i!da de maneira jurdico-estatal e as opinies pblicas culturalmente 1 /

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    T RtS M OD EL OS l'\ORMATlVOS DE DEMOCRA CIA 29 1

  • 8/2/2019 habermas, j. - trs modelos normativos de democracia

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    mobilizadas, que de sua parte encontram uma base nas associaesde uma sociedade civil igualmente distante do Estado e da economia.De fato, a autocompreenso normativa da poltica deliberativaexige para a comunidadeiur id ic a um modo de col eti v iza o social; essemesmo modo de co leti viza o social, porm, no se estende ao tododa sociedade em que se aloja o sistema poltico constitudo de maneirajurdico-estatal. T ambm em sua autocompreenso, a poltica delibe-rativa continua sendo elemento constitutivo de uma sociedade com-plexa que no todo se exime de assumir um ponto de vista norrnativocomo o da teoria do direito. Nesse sentido, a leitura da democraciafeita segundo a teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distan-ciada, prpria s cincias sociais, e para a qual o sistema poltico no nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modeloque determina sua marca estrutural, mas sim um sistema de ao aolado de outros. Como a poltica consiste em uma espci e de lastroreserva na soluo de problemas que ameacem a integrao, ela certa-mente tem de poder se comunicar pelo mdi um do direito com todosos demais campos de ao legitimamente ordenados, seja qual for amaneira como eles se estruturem ou di rec ionern. Se o sistema pol-tico, no entanto, depende de outros desempenhos do sistema - comoo desempenho fiscal do sistema econmico, por exemplo -, isso nose d em um sentido meramente trivial; ao contrrio, a poltica deli-berativa, realizada ou em conformidade com os procedimentos con-vencionais da formao institucionalizada da opinio e da vontade,ou informalmente, nas redes da opinio pblica, mantm uma rela-o interna com os contextos de um universo de vida cooperativo eracionalizado. Justamente os processos comunicativos de cunho pol-tico que passam pelo filtro deliberativo dependem de recursos do uni-verso vital - da cultura polt ica Iibertadora, de uma socializao po-ltica esclarecida e sobretudo das iniciativas de associaes formado-ras de opinio -, recursos que se formam de maneira espontnea ouque, em todo caso, s podem ser atingidos com grande dificuldade,caso o caminho escolhido para se tentar alcan-Ios seja o do direcio-namento poltico.

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    S obre a c oe so inte rnae ntre Estad o d e d ire itoe democracia'

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    Embora no meio acadmico seja freqente mencionardireito e poltica de um s6 flego, ao mesmo tempo acos-tumamo-nos a abordar o direito, o Estado de direito e a de-mocracia como objetos pertencentes a disciplinas diversas:a jurisprudncia trata do direito, a cincia poltica trata dademocracia; uma delas trata do Estado de direito sob pon-.tos de vista norrnativos, e a outra, sob pontos de vista em-pricos. A diviso cientfica do trabalho no cessa de valernem mesmo quando os juristas se ocupam ora do direito e.do Estado de direito, ora da formao da vontade no Estadoconstitucional democrtico; nem quando os cientistas so-ciais se ocupam, C01110 socilogos do direito, do direito e doEstado de direito, e, como cientistas polticos, do processodemocrtico. Estado de direito e democracia apresentam- " ise para ns como objetos totalmente diversos. H boas ra- :.ze s para isso. Como todo domnio poltico exercido soba forma do direito, tambm a existem ordens jurdicas emque o poder pol tico a inda no foi domesticado sob a for-ma do Estado de direito. E da mesma forma h Estados de

    * Traduo: Paulo Astor Soethe.

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