habermas j. - esfera pública em direito e democracia v. 2

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7/21/2019 HABERMAS J. - Esfera Pública Em Direito e Democracia v. 2 http://slidepdf.com/reader/full/habermas-j-esfera-publica-em-direito-e-democracia-v-2 1/5 m Atores d sociedade civil opinião pública e poder comunicativo Até o momento tratamos a esfera pública política como se fosse uma estrutura comunicacional enraizada no mundo da vida através da sociedade civil. Este espaço público político foi descrito como uma caixa de ressonância onde os problemas a serem elaborados pelo sistema político encontram eco. Nesta medida, a esfera pública é um sistema de alarme dotado de sensores não especializados, porém, sensíveis no âmbito de toda a sociedade. Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública tem que reforçar a pressão exercida pelos problemas, ou seja, ela não pode limitar-se a percebê-los e a identificá-los, devendo, além disso, tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los de modo convincente e eficaz a ponto de serem assu midos e elaborados pelo complexo parlamentar. E a capacidade de elaboração dos próprios problemas, que é limitada, tem que ser utilizada para um controle ulterior do tratamento dos problema'> no âmbito do sistema político. Não posso mostrar em detalhes como isso é possível. Por isso, adotarei o seguinte procedimento: ventilarei inicialmente os conceitos controvertidos esfera pública ( 1 e socie dade civil (2), a fim de esboçar a seguir, algumas barreiras e s t r u ~ r s de poder que surgem no interior da esfera pública (3), as quais, porem, podem ser superadas, em situações críticas, por movimentos que 9

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http://slidepdf.com/reader/full/habermas-j-esfera-publica-em-direito-e-democracia-v-2 1/5

m Atores

d

sociedade civil opinião pública

e poder comunicativo

Até o momento tratamos a esfera pública políticacomo se fosse

uma

estrutura comunicacional enraizada no mundo da vida através

da

sociedade civil. Este espaço público político foi descrito como uma

caixa de ressonância

onde

os problemas a serem elaborados pelo

sistema político encontram eco. Nesta medida, a esfera pública é

um

sistema de alarme dotado de sensores não especializados, porém,

sensíveis no âmbito de

toda

a sociedade. Na perspectivade uma teoria

da democracia, a esfera pública

tem

que reforçar a pressão exercida

pelos problemas, ou seja, ela não pode limitar-se a percebê-los e a

identificá-los, devendo, além disso, tematizá-los, problematizá-los e

dramatizá-los de modo convincente e

eficaz

a ponto de serem assu

midos e elaborados pelo complexo parlamentar. E a capacidade de

elaboração dos

próprios

problemas, que é limitada, tem que ser

utilizada para

um

controle ulterior do tratamento dos problema'> no

âmbito do sistema político. Não posso mostrar em detalhes como isso

é possível. Por isso, adotarei o seguinte procedimento: ventilarei

inicialmente os conceitos controvertidos esfera pública (

1

e socie

dade civil (2), a fim de esboçar a seguir, algumas barreiras e

s t r u ~ r s

depoder que surgem no interior da esfera pública (3), as quais, porem,

podem ser superadas, em situações críticas, por movimentos que

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adquirem maior importância (4

).

Concluirei com um resumo desses

e l e m e n t o ~ que o sistema jurídico tem que levar em conta quando

elabora a imagem

de urna

sociedade complexa

(5).

1

O conceito esfera pública .

Esfera

ou

espaço público é

um

fenômeno social elementar, do

~ e s : n o modo

que

a

ação,

o

ator,

o grupo ou a coletividade; porém,

ele

nao

e arrolad? entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever

o ~ d ~ m

social.

A esfera pública

não pode ser

entendida como uma

mstltuição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma

estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis,

nem

~ ~ l o

11odo de ~ r t e n ç a

a uma

organização, etc.

Tampouco ela

~ o n s t i t u i um

i ~ t e m a

pois, mesmo que seja possível delinear

seus

limites

mtemos, extenormente ela

se

carateriza através

de

horizontes abertos

permeáveis e deslocáveis. A esfera públicapode

ser

descrita corno

u m ~

r e d e . ª ~ : < i u a d a para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição

e opmwes; nela

os fluxos

comunicacionais

são filtrados

e sintetizados,

a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em tema<;

e s p e c í f i c o s . ~ mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmen

te,

a esfera u b l i ~ a

se e p r o d ~ z através do

agir comunicativo, implicando

apenas

o

dorrnruo de

uma lmguagem natural; ela está em sintonia com

a ~ o m p r e e n s i b i l i d a d e geral da prática comunicativa cotidiana. Desco

bnm?s que o

u n ~ o da

vida é um r ~ s e : v a t ó r i o para interações simples;

eos

sistemas

de.

açao

e saber especializados,

que se formam no

interior

do

~ u n d o

da vida, :ontmuam i n c u l ~ d o s a ele. Eles se ligam a funções

gerais de r e p r o d u ~ a o do mun?o da

vida

(como é o caso da religião, da

escola da

farrn1ia),

ou

a diferentes aspectos

de

validade

do

saber

comurucado através da linguagem comum (como é o caso da ciência

da

moral,

da

a r t e ~ T ~ a v i a ~ e s f e r a

pública não

se

especializa

nenhuma destas d t r e ç o e ~ ; por isso quando abrange questões politica

m e n t ~ r ~ l e v a n t e s ela de1:a

ªº

a r g ~ s i ~ t e i : n a político a elaboração

e s p e c i ~ h z a ~ a .

A

s f e r ~

p u ~ h c a constitui pnncipalmente uma estrutura

comumcacwnal agtr onentado pelo entendimento, a

qual

tem a ver

com oespaço socw gerado no agir comunicativo,

não

com

as

funções

nem com os conteúdos da comunicação cotidiana.

Os

que agem .comunicativamente encontram-se numa situação

que el.es

mesmos a J ~ d a m a constituir

através de suas

interpretações

negociadas cooperativamente, distinguindo-se dos atores que visam

92

o sucesso que

se

observam

mutuamente como algo que

aparece

no

mundo ?b:1et1vo. O espaço de u1,lla sitnação

de fala,

compartilhado

intersubjetivamente, abre-se a t r a v ~ s ~ a s relações interpessoais que nas

cem

no

momento em

que os. a r t i c i p ~ t e s

tomam

posição

perante os

atos

de

fala dos_ u t r o ~ ~ s u m m d o obngações ilocucionárias. Qualquer

encontro

que ~ a o se

hmita a contatos de observação mútua, mas que se

alimenta

da

hberdade comunicativa que

uns

concedem aos outros,

m o v i n : i e n ? 1 ~ s e num e,spaço público, c o ~ s t i t u í d o através da linguagem.

Em pnnc1pio, ele

está

aberto

para parceiros

potenciais do

diálogo,

que

se

encontram

r e ~ n t e s ou que

poderiam vir a

se

juntar. E para impedir

o acesso

de

terceiros a esse espaço constituído

através da

linguagem,

impõem-se medidas

especiais.

Podemos

dar urna forma

abstrata e

perene a essa estrutura espacial

de

encontros

simples

e episódicos,

fundacm no agir comunicativo, e estendê-la a

um

grande público de

presentes. Existem metáforas arquitetônicas para caraterizar a infra-es

trutura de tais reuniões, organizações, espetáculos,

etc.:

empregam-se

geralmente os termos foros , palcos , arenas , etc.

Além

disso,

as

esferas pública<; ainda estão muito ligadas aos espaços concretos de um

público presente. Quanto mais elas se desligam de sua presença física,

integrando

também, por

exemplo, a presença

virtual de leitores situados

em

lugares

distantes, de

ouvintes

ou espectadores,

o

que

é

possível

através

da

mídia, tanto mais

clara se toma a abstração

que

acompanha

a passagem

da

estrutura espacial

das

interações

simples

para a genera

lização da

esfera

pública.

As

estruturas comunicacionais assim

generalizada<;

compri

mem-se em conteúdos e tomadas

de

posição desacopladas dos con

textos densos

da<;

interações simples

de

determinadas pessoas e

de

obrigações relevantes para a decisão. De outro

lado,

a generalização

do

contexto, a inclusão, o anonimato crescente, etc., exigem um grau

maior

de

explicação e a renúncia a linguagens

de

especialistas

ou

a

códigos especiais. A orientação leiga implica sempre uma certa

indiferenciação,

ao

passo

que

a separação entre as opiniões compar

tilhada-; e

às

obrigações concretas da ação caminha rumo a uma

intelectualização. E certo que os processos de formação da opinião,

uma vez que se trata

de

questões práticas, sempre acompanham a

mudança de preferências e de enfoques dos participantes -mas podem

ser dissociados

da

tradução dessas disposições em ações. Nesta me

dida, as

estrutura<; comunicacionais da esfera pública aliviam o

público da tarefa

de

tomar decisões;

as

decisões proteladas conti-

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nuam

reservadas a instituições que tomam resoluções. Na esfera

pública,

as

manifestações são escolhidas

de

acordo com temas e

tomadas

de

posição pró ou contra; as informações e argumentos são

elaborados na forma

de

opiniões focalizadas. Tais opiniões enfeixada<;

são transformadas

em

opinião pública através

do

modo como surgem

e através do

amplo assentimento

de

que gozam . Uma opinião

pública

não

é representativa no sentido estatístico. Ela não constitui

um agregado de opiniões individuais pesquisadas uma a uma ou

manifestadas privadamente; por isso, ela não pode ser confundida com

resultados

da

pesquisa

de

opinião. A pesquisa da opinião política pode

fornecer um certo reflexo da opinião pública , se o levantamento for

precedido por

uma

formação da opinião através

de

temas específicos

num

espaço público mobilizado.

Nos processos

públicos

de comunicação não se trata, em primeiro

lugar, da

difusão

de conteúdos e tomadas de posição

através

de meios

de

transmissão

efetivos.

A ampla circulação

de

mensagens compreen

síveis, estimuladoras da atenção, assegura certamente uma inclusão

suficiente

dos

participantes. Porém,

as regras de

uma prática comunica

cional,

seguida em comum têm um significado

muito

maior para a

estruturação

de uma

opinião pública. O assentimento a temas e contri

buições só se onna como resultado de uma controvérsia mais

ou

menos

ampla, na qual

propostas, informações e argumentos podem ser elabo

rados de forma mais

ou

menos racional. Com esse mais ou menos em

termos de

elaboração racional

de

propostas,

de

informações e

de

argumentos, há geralmente uma

variação no nível discursivo da forma

ção

da

opinião e

na

qualidade do resultado. Por

isso,

o sucesso

da

comunicação pública não se mede per se pela produção

de

generali

dade ,47

e

sim,

por critérios

formais do

surgimento

de

uma opinião

públicaqualificada. As estruturas

de

uma

esfera pública encampadapelo

poder excluem discussões fecundas e esclarecedoras. A qualidade de

uma

opinião pública constitui uma

gra..Tldeza

empírica,

na

medida em

que ela

se mede

por qualidades procedimentais

de seu

processo

de

criação. Vista

pelo

lado normativo, ela fundamenta uma medida para

a legitimidade da. influência exercida por opiniões públicas sobre o

sistema

político.

Certamente, a

influência fática

e a influência

legítima não

47 Cf. J Gerhards e F. Neidhardt. Strukturen

und

Funktionen

moderner Ôffentlichkeit. Wissenschaftszentrum Berlim, 1990, 19.

94

coincidem,

assim como não há

coincidência

entre

a

legitimidade

e ª.fé

na

legitimidade.

Porém, esses conceitos permitem abrir uma perspectiva, a

~ d qual toma-se possível

pesquisar

empiricamente

a relação

entre

a

]nfluência real

e a

qualidade

procedimental

de opiniões

públicas.

Parsons introduziu a influência como uma forma simbolica

mente generalizada

da

comunicação que regula interações através da

convicção

ou

da persuasão.

48

Pessoas ou instituições, por exemplo,

pedem gozar

de

uma reputação que lhes permite exercer influência

sobre as convicções

de

outras pessoas, sem ter

que

comprovar com

petências e sem ter que dar ,explicaç?es. A i n ~ u ê n c i alimenta-se da

fonte

do

entendimento, porem

se

ap01a num adiantamento

de

confian

ça

em possibilidades

de

convencimento ainda não testadas. Neste

sentido, opiniões públicas representam potenciais

de

influência polí

tica, que podem ser utilizados para interferir no comportamento

eleitoral das pessoas ou na formação da vontade nas corporações

parlamentares, governos e tribunais. A

influência

publicitária, apoiada

em

convicções públicas, só

se

transforma em poder político,

ou

seja,

num potencial capaz de levar a decisões impositivas, quando

se

deposita

nas

convicções

de

membros autorizados do sistema político,

passando a determinar o comportamento

de

eleitores'. a r l 3 : 1 l l e n ~ a r e ~

funcionários, etc. Do mesmo modo que o poder social, a mfluencia

político-publicitária só pode ser transformada em poder político atra

vés

de

processos institucionalizados.

Na esfera pública luta-se por influência, pois

ela

se forma nessa

esfera. Nessa luta não

se

aplica somente a influência políticajá adquirida

(de

funcionários comprovados, de partidos estabelecidos

ou

de grupos

conhecidos, tais como o Greenpace, a Anistia Internacional, etc.), mas

também

o prestígio

de

grupos

de

pessoa<;

e

de

especialistas que con

quistaram sua influência através

de

esferas públicas especiais (por

exemplo, a autoridade de

membros

de

igrejas, a notoriedade

de

literatos e artista'>, a reputação

de

cientistas, o

renome de astros do

48

T Parsons. On the Concept o lnfluence , in

id Sociological

Theory

and odem

Society. Nova Iorque, 1967, 355-382. Sobre a

relaçã'a entre influência'; e afinidade com valores . e s ~ b r e a

delimitação destas formas generalizadas de .

o ~ u m c a ç a o

em

relação a meios de regulação, tais como o dmherro e

0

poder

administrativo, cf. J. Habermas (1931 ), vol.

II,

408-419.

95

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esporte, do

showbusiness,

etc.). A partir do momento em que o espaço

público se estende para

além do

contexto

das

interações

simples,

entra em

cena uma diferenciação que distingue entre organizadores, oradores e

ouvintes, entre

arena

e galeria, entre

palco

e espaço reservado ao público

espectador. Os papéis de

ator,

que

se

multiplicam

e se profissionaliZJ1111

cada

vez

mais através

da complexidade

organiz.acional, e o alcance da

mídia, têm

diferentes

chances de

influência.

Porém, a influência

política

que

os atores

obtêm sobre a comunicação

pública, tem

que

apoiar-se, em

mtima instância, na ressonância ou, mais precisamente, no assentimento

de

um

público

de leigos que possui

os mesmos direitos. O público

dos

sujeitos

privados tem que ser convencido através de contribuições

compreensíveis e interessantes sobre temas que eles sentem como

relevantes. O público possui esta autoridade, uma

vez

que é constitutivo

para a estrutura internada esfera pública, na

qual

atores podem aparecer.

No entanto, temos que fazer uma distinção entre atores que surgem

do

público e participam na reprodução da esfera pública e atores que

ocupam uma esfera pública

á

constituída, a fim de aproveitar-se dela.

Tal é o caso, por exemplo, de grandes grupos de interesses, bem

organizados e ancorados em sistemas de funções, que exercem influên

cia

no

sistema político através da esfera pública Todavia, eles não

podem usar manifestamente, na esfera pública, os potenciais de sanção

sobre

os

quais

se

apóiam quando participam

de

negociações reguladas

publicamente

ou de

tentativas

de

pressão não-públicas. Para contabilizar

seu poder social em termos de poder político, eles têm que fazer

campanha a favor de seus interesses, utilizando uma linguagem capaz

de mobilizar convicções, como é o caso, por exemplo, dos grupos

envolvidos com tarifas, que procuram esclarecer a esfera pública sobre

exigências, estratégias e resultados

de

negociações. De qualquer modo,

as contribuições

de

grupos de interesses são expostas a um tipo de crítica

que

não

atinge as contribuições oriundas de outras partes. E

as

opiniões

públicas que são lançadas graças ao uso não declarado

de

dinheiro

ou

de

poder organizacional perdem sua credibilidade, tão logo essas

fontes

* Aqui

os termos

ator e

papel

de

ator

são

tomados

no sentido

sociológico e teatral, isto é, no sentido

de

um personagem que

repre-

senta

um

papel social.

Ao

passo

que na

maior

parte da presente obra

de

Haberrnas, o termo ator é empregado no sentido exclusivamente

sociológico,

como

agente racional

da

ação. N.

T.)

96

de poder social

se

tomam pública5. Pois as opiniões públicas

podem ser manipuladas: porén;_i n ~ o compradas public.amente, nem

obtidas à força Essa circunstancia pode ser esclarecida pelo fato

de que nenhuma esfera pública pode ser produzida a bel-prazer.

Antes de ser assumida por atores que agem estrategicamente, a esfera

pública tem que reproduzir-se a partir de si mesma e configurar-se como

uma estrutura autônoma E essa regularidade, que acompanha a forma

ção de uma esfera pública capaz de funcionar, permanece latente na

esfera pública constituída - e só reaparece nos momentos em que uma

esfera pública é mobilizada. .

Para preencher sua função, que consiste em captar e tematizar os

problemas da sociedade como

um

todo, a esfera pública política tem

que

se formar a partir

dos

contextos comunicacionais

das

pessoas

virtualmente

atingidas.

O público que lhe serve de suporte é recrutado

entre a totalidade das pessoas privadas. E, em suas vozes díspares e

variadas, ecoam experiências biográficas causadas pelos custos exter

nalizados

(e

pelas disfunções internas) dos sistemas de ação funcional

mente especializados - causadas também pelo aparelho do Estado, de

cuja regulação dependem os sistemas de funções sociais, que ~ ã o

complexos e insuficientemente coordenados. Sobrecargas deste tipo

acumulam-se

no

mundo da vida. No entanto,

este

dispõe

de

antenas

adequadas, pois,

em

seu horizonte, se entrelaçam

as

biografias privadas

dos ''usuários dos sistemasde prestações que eventualmente fracassam.

Os envolvidos são os únicos a beneficiar-se dessas prestações na forma

de valores de

uso .

Afora a religião, a arte e a literatura, somente as

esferas da vida privada dispõem de uma linguagem existencial, na

qual

é possível equilibrar, em nível

de

wna

história

vida, os proble

mas gerados pela sociedade.

Os

problemas

t e m a t z a d o ~

na esf

pública política transparecem inicialmente na

p r e s ~ ~ o ~ o c a l e x e ~ c d a

pelo sofrimento

que se

reflete

no

e s ~ ~ h o .de

expenenc1as

pessoais

vida. E, na medida em que essas expenencias encontram sua

x p s e s ~ o

nas linguagens da religião, da

arte

e da literatura, a esfera pubhca

literária , especializada na articulação e na descoberta

do

mundo,

entrelaça-se com a política.

49

9

Sobre essa função de

igrejas

e comunidades

religiosas,

cf _ F. Schüssler-

Fiorenza Die Kirche ais Interpretationsgemeinschaft , m E. Ahrens

(ed.). Habermas un die Theologie Düsseldort, 1989, 115-144.

97

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Há uma união pessoal entre os cidadãos do Estado, enquanto

titulares da esfera pública política, e os

membros da sociedade,

pois

- em seus papéis complementares de trabalhadores e consumido

res, de segurados e pacientes,

de contribuintes do fisco e de clientes

de burocracias estatais, de estudantes, turistas, participantes do

trânsito, etc. - eles estão expostos, de modo especial, às exigências

específicas e às falhas dos correspondentes sistemas de prestação.

No início, tais experiências são elaboradas de modo privado , isto

é, interpretadas no horizonte

de uma

biografia particular, a qual se

entrelaça

com

outras biografias, em contextos de mundos

da

vida

comuns. Os canais de comunicação

da

esfera pública engatam-se

nas esferas

da

vida privada as densas redes de interação da família

e do círculo de amigos e os contatos mais superficiais com vizi

nhos, colegas de trabalho, conhecidos, etc. - de tal modo que as

estruturas espaciais de interações simples podem ser ampliadas e

abstraídas,

porém

não destruídas. De modo que a orientação pelo

entendimento, que prevalece na prática cotidiana, continua valen

do também

para uma

comunicação entre estranhos, que se desen

volve

em

esferas públicas complexas e ramificadas, envolvendo

amplas distâncias. O limiar entre esfera privada e esfera pública

não é definido através de temas ou relações fixas, porém através

de condições de comunicação modificadas. Estas modificam cer

tamente o acesso, assegurando, de um lado, a intimidade e, de

outro, a publicidade, porém, elas não isolam simplesmente a esfera

privada da esfera pública, pois canalizam o fluxo de temas de uma

esfera para a outra. A esfera pública retira seus impulsos da

a ~ s i m i l ~ ç ã o p r ~ v a d a de problemas sociais que repercutem nas

biografias particulares. Neste contexto particular é sintomático

constatar que, nas sociedades européias do século XVII e XVIII,

se tenha formado

uma

esfera pública burguesa moderna,

como

esfera das pessoas privadas reunidas e formando um público . Do

ponto de vista histórico, o nexo entre esfera pública e privada

começou a aparecer nas formas de reunião e de organização de

um

p ú b l i ~ o leitor, composto

de

pessoas privadas burguesas, que se

aglutmavam em tomo de jornais e periódicos.50

50

J.

Habermas. Strukturwandel der Ôffentlichkeit. (1962), Frankfurt/M,

1990,

86;

cf. a introdução de C. Calhoun sobre a coletânea por ele

98